TERRITÓRIOS DO ROCK EM SOBRAL: UM ENSAIO

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TERRITÓRIOS DO ROCK EM SOBRAL: UM ENSAIO Territories of rock in sobral: an essay Territorios del rock en Sobral: un ensayo Luis Carlos de Souza Lima * Nilson Almino de Freitas ** RESUMO Reflexo das pesquisas do projeto de mestrado em geografia, o presente artigo articula as transformações socio-espaciais ocorridas na cidade de Sobral-CE ao longo das últimas duas décadas, com as transformações culturais ocorridas na mesma cidade, dando ênfase ao crescimento e à evidenciação dos grupos sociais de rock, do gênero "Metal". Utilizando procedimentos metodológicos como a oralidade e a videografia, pensamos o processo de formação deste grupo, seu crescimento e desenvolvimento, destacando a conexão inseparável da formação de uma identidade e, consequentemente, de um território dos "metaleiros" no espaço urbano sobralense. Palavras-chave: Território. Identidade. Espaço urbano. Grupo social. Rock. ABSTRACT Reflection of research of the master's project in Geography, this article articulates the socio-spatial transformations in the city of Sobral, Ceará, along the last two decades, with the cultural changes occurred in the same city, focusing on growth and disclosure of social groups of the Rock, gender "Metal". using methodological procedures such as orality and videography, we have thought the process of formation of this group, their growth and development, highlighting the inseparable connection of the formation of an identity and therefore a territory of "metalheads" in Sobralense urban space. Keywords: Territory. Identity. Urban area. Social group. Rock. RESUMEN Reflexión de las investigaciones del proyecto de maestrazgo de geografía. Este artículo encadena las transformaciones socio-espaciales en la ciudad de Sobral, Ceará, ocurridas a lo largo de las últimas dos décadas, con los cambios culturales que se producen en la misma ciudad, centralizándose en el crecimiento y en la evidencia de los grupos sociales de rock, del género "Metal". Utilizamos procedimientos metodológicos como la oralidad y videografía, pensamos que el proceso de formación de este grupo, su crecimiento y desarrollo, destacando la conexión inseparable de la formación de una identidad y, por lo tanto, un territorio de los "metaleros" en el espacio urbano Sobralense. Palabras-clave: Territorio. Identidad. Zona urbana. Grupo social. Rock.

(*) Mestrando em Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Bolsista CAPES. Graduado em História. E-mail: [email protected]. (**) Professor da área de Antropologia da Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA/Sobral-CE. Coordenador do Laboratório das Memórias e das Práticas Cotidianas – LABOME. Coordenador do Programa de extensão Visualidades. Professor do Mestrado Acadêmico em Geografia da UVA – MAG. Pesquisador Associado do Pós-doutorado em Estudos Culturais do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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1. INTRODUÇÃO Nosso trabalho deve ouvir as razões, os sentidos, as histórias, as percepções, as dores, os minúsculos rituais, os sonhos, os dramas, as crenças, as lembranças que criam o mundo, espaço, lugar e tempo daquilo que é aquele “canto” como um “todo” vivencial e não somente conceito ou rede conceitual fria. (CALDAS, 2006, p. 01)

O presente artigo apresenta algumas discussões preliminares da pesquisa de mestrado em Geografia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA, buscando contribuir com a análise de construções de identificação territorial na cidade de Sobral-CE. O objetivo da pesquisa é compreender como grupos roqueiros da cidade de Sobral agenciam práticas e usos do espaço urbano desta cidade média cearense. A epígrafe já mostra um pouco as intenções epistemológicas do artigo: discutir a palavra dos diferentes atores envolvidos em rede com outros atores, lugares, territórios, objetos e instituições, como fontes da pesquisa sobre o tema proposto. Dizer que as reflexões estão em fase preliminar não parece demérito do artigo. É necessário romper com uma concepção corrente no campo acadêmico de que a pesquisa pode ter pretensões universalistas de racionalização do mundo e de que ela pode ser conclusiva em seus argumentos. Logicamente que esta ruptura não é um projeto novo, mas ainda faz parte da cultura acadêmica que não permite a demonstração de “fragilidades” no processo de pesquisa. Dizer que um processo de conhecimento é inicial e ainda inusitado para os pesquisadores é um risco que se corre, pois o leitor pode avaliar que este trabalho não é merecedor de crédito por uma pretensa fragilidade sua. Em favor da pesquisa, vale a pena questionar se é possível pensar a ciência também como uma experiência sensível constante, contínua e sem fim. Viajar por caminhos ainda não trilhados não deveria ser demérito para nenhum projeto de conhecimento, já que o “perder-se” é condição fundamental para “encontrar-se”; mesmo reconhecendo que, sempre que o pesquisador se “encontra”, é porque está perdido em enquadramentos rígidos que não permitem a fluidez de navegações fortuitas pelas trilhas sinuosas e confusas de nossa existência corporal e espacial no mundo. Dizer que a pesquisa está em fase inicial também é uma forma de humanizar o processo de produção do conhecimento, pois a humanidade é uma constante busca pela compreensão para melhor viver no mundo. Feitos os esclarecimentos iniciais, esboça-se, a partir de então, uma reflexão que visa compreender a complexidade das dinâmicas urdidas no espaço urbano, o que pressupõe o exercício de uma percepção que extrapole uma determinada categoria analítica estável, fixa, universalizável e definitiva. Se os papéis e Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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os usos da cidade se misturam, cabe ao pesquisador lançar mão de uma gama de categorias de análise que lhe permitam ampliar sua visão sobre a realidade estudada de forma contínua. O espaço urbano se apresenta como uma construção social, e é o ser humano que realiza a ação social. Logo, o estudo deste e da cidade são indissociáveis. Os indivíduos são os atores da composição destes espaços. Meihy (2005, p. 83) nos chama a atenção ao afirmar que “ao se falar de industrialização, quase sempre esquece-se dos operários; ao analisar-se a agricultura, não se vê o agricultor; ao falar-se de partidos políticos, não se contempla o militante. Por isso, a história oral busca reinserir o indivíduo no contexto”. De acordo com o pensamento de Meihy, acreditamos que a oralidade se apresenta como um suporte significativo para que o geógrafo insira definitivamente o indivíduo no seu campo de análise, pensando o espaço como uma construção que é agenciada pelo corpo, entendido como pensamento e ação no mundo. São agências que exigem uma decodificação, compreensão e uso de símbolos apreendidos pela experiência nos diferentes espaços usados pelo corpo que remetem a ações compartilhadas com outras subjetividades e espacialidades. Ao entendermos a narração como forma de linguagem embasada em uma tríade – tempo, espaço e experiência (TEDESCO, 2004) –, definimos a “Geografia Oral” como metodologia de análise desta pesquisa qualitativa, tomando a proposta da Cápsula Narrativa a partir de Alberto Lins Caldas como procedimento metodológico. Isso nos dará os resultados esperados em uma pesquisa de observação participativa que se fundamenta, em larga escala, em entrevistas, análise de documentos e produção audiovisual. Buscamos na narrativa, nos textos, nos sentidos, na imagem técnica e na expressão corporal, uma relação dos “narradores” com os seus territórios. O crescimento urbano, associado ao desenvolvimento tecnológico, atribui outros sentidos para a cidade e novos parâmetros de sociabilidade. Estes se constituem a partir da fruição de produtos culturais. Assim, vemos surgir espaços que se transformam através do consumo de grupos identificados com determinados produtos, estilos de vida etc. Em uma trama citadina, na qual a Geografia se torna o campo da memória social territorializada, os grupos “demarcam simbolicamente a urbanidade, na medida em que assumem conteúdos significativamente construídos. Tornam-se representações espaciais e históricas, relacionadas com o processo de construção social da identidade da sociedade.” (KNAUSS, 2003 p. 26). Com a pesquisa ainda em andamento, propõe-se, pois, uma reflexão acerca da formação de identidades e territórios, tendo como foco os grupos roqueiros, formados a partir do consumo deste gênero Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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musical e realização de shows na cidade de Sobral. A escolha de grupos específicos e a delimitação são importantes em uma pesquisa que obedece a propostas metodológicas como esta, tendo em vista que a memória é elaborada sobre os espaços ocupados por grupos sociais específicos, recorrendo, consequentemente, à realidade vivida no contexto de cada um deles. As lembranças do indivíduo dependem de seu relacionamento com grupos de convívio específico. Portanto, há tantas memórias quanto grupos existentes. (FREITAS, 2000, p. 28)

Definimos os grupos de rock do gênero "Metal"1 como nossos principais interlocutores. A escolha e definição de grupos se dão por uma estratégia delimitadora, a qual acreditamos ser crucial para a concretude da pesquisa. Assim, ressaltamos as lutas pela co-presença e a disputa de espaços que evidenciam o encontro e o confronto dos diferentes modos de (vi)ver a cidade. Dessa forma, as práticas dos grupos sociais no espaço urbano evidenciam a definição de identidades e territórios, constituindo campos demarcadores de memórias, e contribuindo, de forma significativa, para o entendimento da construção destas territorialidades.

2. OS ROQUEIROS E A CIDADE: PRÁTICAS E MEMÓRIAS Visualizando o território como ponto de partida, pensamos as transformações ocorridas na cidade de Sobral no período do ano 2000 aos dias atuais, sob uma leitura geográfica da atuação dos roqueiros locais. O recorte temporal escolhido obedece às balizas de uma matriz periódica proposta, que será apresentada de forma resumida mais adiante. Esta periodização vem de acordo com as propostas de Milton Santos, onde acreditamos que os processos na evolução da sociedade ocorrem pelos contextos, e as variáveis demonstram situações datadas no tempo e materializadas no espaço. Para além, em cada momento histórico é demonstrada a importância de se verificar o peso das novidades e das heranças no estágio do recorte espacial analisado. Nesse sentido, “o espaço é sempre histórico. Sua historicidade deriva da conjunção entre as características da materialidade territorial e as características das ações”. (SANTOS & SILVEIRA, 2006, p. 248). Desta forma, definimos a matriz de periodização como um elemento fundamental para nossa 1O

termo "metal" é geralmente usado para se referir ao Heavy Metal e suas ramificações: death metal, black metal, trash metal, dentre outros, sendo os "metaleiros", sujeitos que se interessam por esses estilos musicais. No entanto, o termo "metal" não é capaz de dar conta da variedade, em termos musicais, deste estilo de rock e o termo “metaleiro” não é suficiente para englobar a variedade cultural ali urdida. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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pesquisa, uma vez que nos permite distinguir pedaços coerentes de tempo, revelando um arranjo territorial que reflete uma modernização material e organizacional. Sobral está situada na região Noroeste do Estado do Ceará, distando 224 km da capital, Fortaleza. Posiciona-se aos 3°41′10′′ de latitude sul e 40°20′59′′ de longitude, em uma altitude de 70m (ver figura 01). A cidade figura como um dos principais eixos das relações econômicas e culturais na mesorregião do noroeste do Estado. O crescimento econômico do município nas três ultimas décadas, devido ao processo de industrialização e urbanização, direcionou uma forte corrente migratória para a cidade, que possui uma taxa de urbanização em cerca de 88%. Figura 1: Localização de Sobral, Ceará.

Ao longo do século XX, a cidade de Sobral experimentou um crescimento econômico bastante significativo, que alterou profundamente os modos de vida na cidade. Esse crescimento se deve, em grande Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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medida, ao processo de industrialização; intensificados nos meados da década de 1970. No entanto, foram as atividades comerciais, administrativas e serviços os principais responsáveis por avivar a cidade na rede urbana cearense. Obviamente, é salutar entender que a ebulição dos meios técnicos, científicos e informacionais ocorrem em todo o Brasil. Quando, na década de 1990, o poder público local, junto ao então grupo que governava o Estado de Ceará, proporciona um ideal de modernização à Sobral e a cidade vive uma intensa dinamização, não só econômica, mas social e cultural, entendemos essa dinamização como reflexo de uma intensificação do processo de globalização que ocorre em todo o mundo a partir deste período; como nos adverte Milton Santos: A unicidade do tempo não é apenas o resultado de que, nos mais diversos lugares, a hora do relógio é a mesma. Não é somente isso. Se a hora é a mesma, convergem, também, os momentos vividos. Há uma confluência dos momentos como resposta àquilo que, do ponto de vista da física, chama-se de tempo real e, do ponto de vista histórico, será chamado de interdependência e solidariedade do acontecer. Tomada como fenômeno físico, a percepção do tempo real não só quer dizer que a hora dos relógios é a mesma, mas que podemos usar esses relógios múltiplos de maneira uniforme. (SANTOS, 2010, p. 14)

Holanda endossa as transformações ocorridas na cidade ao nos dizer que "no contexto da intensificação da globalização, amparada pelo meio técnico científico informacional, Sobral passa a abrigar novos objetos, com modernas lógicas que se impõem ao uso do território, no novo comportamento da circulação e do consumo". (HOLANDA, 2007, p. 144). O acontecimento que consideramos de maior destaque para o aceleramento dessas transformações em Sobral foi a instalação da indústria calçadista Grendene Calçados S/A2, em 1993. Inicialmente, a fábrica gerava 794 empregos diretos. Em 1995, a Grendene já contava com um quadro de 2.846 funcionários. Os resultados na economia local já eram visíveis. Segundo dados do Manual do Investidor (2ª. edição), publicado pela Prefeitura de Sobral, a arrecadação de ICMS em Sobral, em 1995, aumentou em 223,2% após a instalação da Grendene3. Isso coincide com um momento peculiar na política sobralense, uma "ausência de poder". Ferreira (2013) apresenta esse momento, 1990, como um período em que Sobral vivia A Grendene é responsável por um expressivo impacto sócio-econômico no município e na região messoregião Noroeste do Estado do Ceará, com profundas transformações na economia urbana, usos do território e na organização socioespacial da cidade. 3 Fonte: Prefeitura Municipal de Sobral; Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Manual para investir em Sobral. 2ª. ed. Sobral: Prefeitura Municipal de Sobral; Secretaria do Desenvolvimento Econômico, 1996. 2

Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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um período nada glorioso, tendo em vista seu passado. A cidade estava, como afirmam pessoas que acompanharam aquele momento, “entregue às moscas”. Simbolizada pela disputa entre os “Barreto” e os “Prado”, a cidade, na primeira metade dos 1990, transformou-se no que chamam até hoje de “troca-troca”. Tal faceta originou-se por conta de uma série de denúncias que levaram o então Prefeito Ricardo Barreto a ser investigado por improbidade administrativa advinda de práticas de corrupção. (FERREIRA, 2013. p. 87)

Nas eleições de 1996, é iniciada uma nova gestão em Sobral. Com o discurso de "modernizador" e encabeçada por Cid Ferreira Gomes, essa gestão, que durou até 2002, iniciou um processo de transformação e "embelezamento da cidade", construindo diversas áreas de passeio público, praças, anfiteatros etc. Sobre este momento, Freitas (2000) nos lembra que essa administração, eleita em 1996, desde o período da campanha eleitoral constrói e projeta uma auto-imagem coerente com movimento de um determinado segmento político no âmbito estadual inaugurado nas eleições de 1986, que resultou na eleição de Tasso Gereissati para o Governo do Estado. Este grupo político mais amplo, que vem garantindo sua hegemonia no âmbito estadual, se denominou, no primeiro mandato, de "Governo das Mudanças". A condição de "moderno" é reafirmada no discurso deste grupo a partir de atributos diversos associados aos seus integrantes, tais como juventude, qualificação profissional, conduta ética na política, condição de gestão empresarial e racionalização no uso do patrimônio público. Este discurso, nascido fora do contexto de Sobral, é adaptado ao momento histórico das eleições municipais de 1996 na cidade. (FREITAS, 2000, p. 24)

Toda essa reestruturação territorial potencializa e diversifica os serviços de saúde, lazer, educação, transporte, mercados etc. na cidade. Entretanto, este processo não é uma característica própria da cidade de Sobral, mas uma transformação que percorre todos os municípios do Brasil, a partir da constituição de 1988, quando os municípios passaram a ter maiores recursos e maior autonomia. Diante do exposto, entendemos que, confinante as transformações econômicas, políticas e sociais já citadas, é promovida uma diversidade das culturas locais. Inserida neste processo, a cidade de Sobral também passa por essa fruição de "novos" elementos em seu arcabouço cultural. Assim, evidenciamos o surgimento de grupos roqueiros (metaleiros), bem como seus lugares de atuação em Sobral. Esse grupo se destaca dentre os tantos grupos de jovens na cidade, não só pela forma como se vestem ou pelas preferências musicais, mas pela sua cultura, ideologias, formas de manifestação e, principalmente, pela apropriação de territórios, construção de identificação e reconhecimento social dos espaços públicos da cidade. A partir das entrevistas que realizamos, identificamos, no ano de 2001, um acontecimento significativo no processo histórico dos metaleiros sobralenses: a fundação da "Casa de rock produções", Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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mais antiga e principal articuladora dos shows de rock na cidade. Em meados da primeira década do ano 2000, diversas bandas de metal surgiram, e junto a elas, outras tantas produtoras independentes se formaram e intensificam cada vez mais os shows pela cidade. É neste momento que passam a ser moldados grupos e espaços dos roqueiros metaleiros em Sobral. Dentre os locais de encontro desses jovens, se destaca o “Clube dos artistas", fundado em 1973 como um “clube operário” e localizado no centro da cidade (ver figura 02). O lugar é ressignificado e se transforma no palco central dos shows de rock, ostentado ainda hoje, embora sem funcionamento, nas memórias dos sujeitos como o principal cenário do rock sobralense. O Clube dos artistas figurava como o lugar que apresentava bandas de outras cidades ao público sobralense e, em grande escala, é lembrado como o primeiro palco para muitas recém surgidas bandas de rock da cidade de Sobral. Concomitantemente, oportunizara, também, para muitos, o primeiro contato com um show de rock. Após anos de uso do Clube como “território” do rock sobralense, os shows foram proibidos; no final da primeira década dos anos 2000. Por se tratar de uma área habitacional, a vizinhança fazia reclamações constantes aos organizadores e às autoridades nas rádios locais. O fim dos shows no clube marca um segundo momento para o rock sobralense, uma dispersão dos shows pela cidade, antes concentrados no centro da cidade. Sem uma “casa”, os shows passaram a ocorrer em vários bairros diferentes, na periferia da cidade, deixando de lado o centro e assumindo, principalmente, os espaços públicos. No entanto, algumas propostas de políticas públicas promovidas pela gestão municipal tentaram reorganizar esses eventos em um espaço significativo para a cidade. Atualmente, o principal palco dos roqueiros sobralenses é um espaço público às margens do rio que corta a cidade, o Rio Acaraú. O lugar, denominado “Margem esquerda”, é um complexo de lazer construído no ano de 2004, na tentativa de incrementar as áreas de lazer e espaço urbano na cidade. Além da construção da estrutura primária (passeio público, estacionamento, espaços para a prática de esportes etc.) ocorreu a implantação de equipamentos com vieses culturais, como uma Biblioteca pública, um museu e o edifício da Escola de Comunicação, Cultura, Ofícios e Artes – ECCOA. Sendo este último, o espaço de acolhimento de eventos culturais e expressões artísticas de caráter diverso.

A ECCOA, associada ao elenco de intervenções urbanas até agora citados, é mais um elenco que compõe o complexo de obras com finalidades diferentes, todas voltadas para o mesmo objetivo: ressaltar o lugar como especial e inovador, tendo em vista, estruturar a cidade para ser um lugar de consumo e, ao mesmo tempo, consumido. (FREITAS, 2005)

Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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O mapa a seguir, nos dá uma dimensão espacial acerca dos espaços citados, sua composição na cidade, como um todo, e os limites do centro da cidade. Figura 1: Mapa de localização do centro da cidade de Sobral

Após uma enchente, no ano de 2009, grande parte da estrutura física do complexo da margem esquerda ficou sem funcionamento, até que, no ano de 2011, por intermédio da produtora "Casa de rock produções", a prefeitura concede o espaço para realização dos eventos. Após cinco anos, a estrutura ainda é bastante precária, sem condições mínimas de funcionamento, mas os shows continuam a ocorrer, moldando este espaço como território do rock metal sobralense.

3. TERRITÓRIOS E IDENTIDADES: UMA ANÁLISE O universalismo apresentado nos espaços urbanos contemporâneos produz e dissemina comportamentos variados, ideias, estéticas e conhecimentos. Isso se reproduz em outras tantas possibilidades de vivências e formas de identificação nestes espaços. Desta forma, a vida na cidade é urdida por uma teia de processos e subjetividades, possibilitando a formação de identidades, agregando e Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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desagregando os indivíduos, em uma perspectiva social e espacial. Confinante a esse turbilhão de "produções identitárias", passa a existir uma indigência de encontro com pares, uma busca por semelhantes. Desta empreitada, dois processos são cruciais: o primeiro deles seria o fracionamento destas identificações em detrimento de uma coletivização. Como exemplo, podemos citar as classes, os sindicatos, grupos políticos em geral, dentre outros; o segundo processo seria a necessidade de se agregar as diferentes identidades produzidas pela cidade e seu consumo, a exemplo dos espaços de lazer, trabalho, sexualidade, música etc. É necessário, pois, apresentar aquilo que pensamos ser "identidade". Concebemos a ideia de identidade como resultado de um processo que é edificado pelas relações sociais constituídas. Essas identidades são arquitetadas, manipuladas e transformadas a partir das relações sociais estabelecidas nos diferentes grupos e espaços que compõe o cotidiano dos indivíduos. Logo, não tomamos a identidade como algo rígido ou único nos grupos, tempo e/ou espaço de relações dos indivíduos. Essa identidade “nunca é uma, é múltipla” (HAESBAERT, 1999, p. 175). Para além, a identidade se estabelece partindo de uma necessidade de afirmação dos papéis sociais que os indivíduos representam, pois “a(s) identidade(s) implica(m) uma busca do reconhecimento que se faz frente à alteridade” (TAYLOR apud HAESBAERT, 1999, p. 175). A "alteridade" a que o autor nos chama a atenção, diz respeito ao sentido de existência e permanência dos grupos sociais nos espaços urbanos. Acreditamos que todo processo de formação de identidade necessariamente passa, também, por um processo de territorialização, e essa territorialização possibilita uma permanência destas identidades. São os territórios que proporcionam a existência, os objetivos e a visibilidade dos tantos grupos que compõe a sociedade. Claude Raffestin (1993) nos instiga a pensar que o território é o principal palco das relações de poder, ou seja, o território é produto e produtor das ações dos grupos e seus atores. “Em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores que produzem territórios” (RAFFESTIN, 1993, p. 152). Neste sentido, a territorialidade seria permeada de um "senso espacial", um sentimento de exclusividade, e é importante ressaltar que não é rígido, mas obedece a um processo. Assim, o espaço urbano figura como uma teia de relações onde se tecem os processos de identificação. Deste processo, resultam múltiplas apropriações da cidade, onde os grupos se confrontam e disputam os seus lugares, se territorializam e definem os indivíduos que pertencem àquele grupo e território, segregando e sendo segregados. Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Entendendo o processo de transformação experimentado pela cidade de Sobral ao longo das últimas duas décadas, identificamos a formação e/ou evidenciação dos grupos roqueiros de gênero metal na cidade. É salutar considerar a expressão das transformações políticas, econômicas e espaciais na cultura local. Acreditamos que o processo de reestruturação territorial e a forte corrente migratória são um dos principais fatores para o número crescente de indivíduos que se interessam pelo gênero metal em Sobral. Isso tem uma relação direta com as transformações ocorridas no território brasileiro e refletidas na política econômica local. Para além, a atuação de "produtoras independentes", e a chegada de lojas de instrumentos musicais, a fundação de uma escola de música e um curso de Licenciatura em Música, ofertado pela Universidade Federal do Ceará – UFC/Sobral, oportuna o surgimento de dezenas de bandas de metal, que figuram, ora como músicos, ora como público. Formam também uma importante demanda, pressionando o poder público por eventos culturais que os contemplem, enquanto metaleiros; além de produzirem seus próprios shows. Tudo isso fortalece a existência destes enquanto grupo, na medida em que molda suas identidades. Pensar a formação identitária de grupos no espaço urbano é entender que esta identidade possui vínculos diretos com o seu processo de territorialização. A identidade requer um território, assim como o território constitui identidades. Para Haesbaert (2007), territorializar-se significa criar mediações espaciais que proporcionem efetivo poder sobre a reprodução enquanto grupos sociais. Buscando dimensionar uma forma de identificação apresentados por uma dimensão entre o cotidiano, passado e presente, no uso do território sobralense, pelos "metaleiros", corroboramos Raffestin, quando o mesmo nos adverte que a análise da territorialidade só é possível pela apreensão das relações reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal. (...) Entretanto, não é possível compreender essa territorialidade se não se considerar aquilo que a construiu, os lugares em que ela se desenvolve e os ritmos que ela implica (RAFFESTIN, 1993, p. 162).

Desta forma, nossas escolhas metodológicas estão pautadas na oralidade, sob o viés daquilo que Alberto Lins Caldas convencionou chamar de "Geografia oral" e da "videografia", metodologia que consiste na utilização de equipamentos de filmagens em entrevistas e análises de campo. Ainda em curso, a pesquisa Revista da Casa da Geografia de Sobral, Sobral/CE, v. 17, n. 1, p. 18-29, Mar. 2015, Edição Especial, http://uvanet.br/rcgs. ISSN 1516-7712 © 1999, Universidade Estadual Vale do Acaraú. Todos os direitos reservados.

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trás essas reflexões iniciais, que funcionam bem mais como uma pequena manifestação daquilo que pensamos acerca das relações territoriais do grupo roqueiro sobralense com a cidade de Sobral.

5. REFERÊNCIAS CALDAS, Alberto Lins. Espaço e Experiência: História Oral e Geografia Humana. Revista Online Zona de Impacto, ISSN 19829108: Vol.8, Ano VIII, 2006. Disponível em: http://www.albertolinscaldas.unir.br/espacoexperiencia.htm _________. A Noção de Cápsula Narrativa. Revista Caderno de Criação. Porto Velho: ano VI, nº 20, outubro, 1999. FERREIRA, Diocleide Lima. A (re)invenção de uma cidade: Cid marketing e a requalificação urbana em Sobral-CE. 2013. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP. Campinas, 2013 FREITAS, Nilson Almino de. "Olhar" o espaço urbano: alternativas para compreender os usos da cidade de Sobral. In: Revista da Casa da Geografia. Vol.2, n. 1: Sobral, 2000 HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. _________ Identidades territoriais. In: ROSENDHAL , Z; CORRÊA, R. L. Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1999. KNAUSS, Paulo. Sorriso da cidade: imagens urbanas e história política de Niterói. Niterói; Fundação e arte de Niterói, 2003. LEFÈBVRE, H. O direito à cidade. Trad. Rubens Eduardo Frias. São Paulo, Centauro, 2001. MAGNANI, José Guilherme Cantos. Tribos urbanas: metáfora ou categoria? In Cadernos de campo, revista dos alunos de pós graduação em antropologia, departamento de antropologia FFLCH/USP, São Paulo, ano 2, Nº 2, 1992. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2005. RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993. RELPH, Edward C. As Bases Fenomenológicas da Geografia. In revista de Geografia, 4 (7): 1-25, abril s/d. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal. 19ª Ed; Rio de Janeiro: Record, 2010. SIMMEL, G. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. TEDESCO, João Carlos. Nas Cercanias da Memória: Temporalidade, Experiência e Narração. Passo Fundo: UPF: Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

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