Territórios, poderes e identidades: a ocupação do espaço entre a política e a cultura

June 3, 2017 | Autor: Gilvan Ventura | Categoria: Politics, Culture, Identity, Power relations, Territory
Share Embed


Descrição do Produto

ADRIANA PEREIRA CAMPOS ANTONIO CARLOS AMADOR GIL GILVAN VENTURA DA SILVA JULIO CESAR BENTIVOGLIO MARIA BEATRIZ NADER Organizadores

ADRIANA PEREIRA CAMPOS ANTONIO CARLOS AMADOR GIL GILVAN VENTURA DA SILVA JULIO CESAR BENTIVOGLIO MARIA BEATRIZ NADER Organizadores

Vitória, ES 2012

 2012 GM Editora/Université Paris-Est/Universidade do Minho Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte da obra, por qualquer meio, sem autorização da editora, constitui violação da LDA n° 9.610/98

Conselho Editorial Antônia de Lourdes Colbari (Ufes) João Fragoso (UFRJ) Keila Grinberg (UNIRIO) Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ) Manolo Garcia Florentino (UFRJ) Margarida Maria de Carvalho (UNESP/Franca) Norma Musco Mendes (UFRJ) Surama Conde Sá Pinto (UFFRJ) Wilberth Clayton F. Salgueiro (Ufes) Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica Edson Maltez Heringer | 27 8113-1826 | [email protected] Revisão Os autores Impressão GM Gráfica e Editora | [email protected] / 27 3323-2900

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) XXX Territórios, Poderes, Identidades : a ocupação do espaço entre a política e a cultura / Adriana Pereira Campos, Antonio Carlos Amador Gil, Gilvan Ventura da Silva, Julio Cesar Bentivoglio, Maria Beatriz Nader, organizadores. – Vitória, ES : GM, 2012. 280 p. : il.

Inclui bibliografia. ISBN: 000.00-000-000-0

1. Escravidão – Séc. XIX. 2. Escravidão – Séc. XIX. I. Campos, Adriana Pereira. II. Gil, Antonio Carlos Amador. III. Silva, Gilvan Ventura da. IV. Bentivoglio, Julio Cesar. V Nader, Maria Beatriz. VI. Título. CDU: 0000

Ilustração da Capa Detalhe de mapa do Continente Africano confeccionado por Frederik de Wit em 1680. Ilustração da contracapa: Detalhe de mosaico romano (séc. II d.C.)

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ...................................................................................................................................7

Parte I – O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO ...................................................................................11 Gilvan Ventura da Silva IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.) ..................................................35 Fábio Vergara Cerqueira TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR ..................57 Manuela Martins ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO ........................91 Gabrielle Frija

Parte II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA .....................................................................................................................107 Modesto Florenzano MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH .............................................123 Julio Cesar Bentivoglio INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO ......................153 Lucia Maria Paschoal Guimarães JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO .......................................................167 Adriana Pereira Campos

Parte III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA .......................................................................................193 Geneviève Bührer-Thierry

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA ................................................................................213 Frédéric Moret TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA .............................235 Antonio Carlos Amador Gil A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA ..........................................247 Maria Beatriz Nader REFERÊNCIAS DAS ILUSTRAÇÕES .............................................................................................277 SOBRE OS AUTORES ........................................................................................................................279

APRESENTAÇÃO

Este livro é composto pelas conferências apresentadas no III Congresso Internacional realizado pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo em consórcio com a Université Paris-Est e a Universidade do Minho, em novembro de 2011. O tema do referido evento, Territórios, poderes, identidades, pretendia estimular o debate acerca da maneira pela qual as sociedades e/ou grupos sociais delimitam, circunscrevem o território por eles ocupado, numa tentativa de imprimir, na paisagem, os símbolos por meio dos quais se afirma uma identidade às expensas daquilo que se localiza nas margens, no exterior, na no man’s land habitada por “invasores”, aos quais se recusa amiúde o próprio estatuto de humanidade. Sabemos que o território, sendo cruzado a todo o momento por indivíduos em permanente deslocamento, carece de univocidade e de estabilidade. É no território, no entanto, que afloram os lugares mediante o estabelecimento de contornos que dividem, separam e subtraem da apropriação coletiva determinados ambientes, controlados por grupos e comunidades, que sobre eles exercem poder, seja sob uma perspectiva bastante abrangente, como o de uma nação ou império, seja sob uma perspectiva mais modesta, como uma cidade, uma aldeia ou mesmo uma edificação. Apreendido na sua dimensão geográfico-cultural, o território pode ser considerado sob um duplo viés, o de produto e o de produtor do social, assumindo a partir daí uma multiplicidade de funções: a de um amplo quadro no interior do qual os grupos sociais se organizam do ponto de vista da fixidez e da mobilidade e estabelecem as regras de convívio e de socialização; a de um suporte de obras materiais, muitas vezes eternizadas em pedra; a de um ambiente no qual práticas e representações encontram o seu ponto de convergência; a de um repositório de vestígios do passado imprescindíveis para a produção da memória coletiva, memória esta que preserva a lembrança daquilo que lhe é conveniente ao mesmo tempo em que devota ao esquecimento tudo o que lhe suscita repulsa TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

7

ou estranhamento. Mediante essas funções, o território etéreo, aberto, indefinido é progressivamente domesticado, dando margem à emergência dos lugares, das zonas geográficas esquadrinhadas pelo intelecto, revestidas de um sentido, saturadas de representações, zonas fundadoras de identidades que permitem uma dupla atualização: a do encontro entre o presente e o passado e a da oposição entre o sagrado e o profano. São reflexões como esta que o leitor encontrará nas páginas deste livro que, esperamos, venha a contribuir para o debate acerca das modalidades de ocupação do espaço ao longo da História. Vitória, abril de 2012 Os organizadores

8

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

Parte I

O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO Gilvan Ventura da Silva

Palavras iniciais A cidade representa, sem sombra de dúvida, uma das mais surpreendentes produções do intelecto humano. Sua importância pode ser avaliada pelo fato de que a sua formação e desenvolvimento se confundem grosso modo com o ingresso do homem na fase histórica propriamente dita, após um período inicial e bastante extenso que costumamos designar como Pré-História. À parte as arbitrariedades subjacentes a toda e qualquer proposta de periodização, o fato é que a experiência urbana constitui uma notável característica da trajetória da Humanidade sobre a Terra, adquirindo, em cada época e lugar, feições próprias, peculiares, mas nem por isso capazes de apagar as marcas de identidade que nos permitem falar da existência de padrões regulares de ocupação territorial e de organização sociopolítica e econômica comumente sintetizados no vocábulo “cidade”. Tanto ontem como hoje, as cidades são espaços de residência, de trabalho e de interação social, mas são igualmente espaços de reflexão sobre como os homens elaboram e reelaboram a sua existência a partir de uma apropriação bastante peculiar da paisagem que os circunda. Nosso mundo é responsável por conferir à vida na cidade uma dimensão hiperbólica, como nos dão exemplo as megalópoles, marcadas por uma ambiguidade insolúvel, pois ao mesmo tempo em que se mostram uma fonte inesgotável de bens e serviços variados e postos ao alcance da mão, abrigam dentro de si ilhas de desconforto e insegurança, como nos dão testemunho as manchetes dos jornais e os noticiários televisivos, repletos de notícias sobre os transtornos provocados pelo modus vivendi urbano, dentre os quais o mais evidente é o crescimento incontrolável da violência, donde resulta que, se por um lado, o viver na cidade inspira confiança, ele inspira igualmente o medo. Desse ponto de vista, hoje, mais do que nunca, a cidade se impõe como um desafio a ser compreendido e decifrado, razão pela qual se multiplicam

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

11

GILVAN VENTURA DA SILVA

as investigações que, sob os mais diferentes aspectos, procuram contribuir de algum modo para minimizar os impactos que uma convivência maciça de pessoas num ambiente restrito tem trazido, não apenas para as relações sociais, mas para o meio-ambiente, pois, como é público e notório, as cidades criam e produzem, mas também destroem e degradam. Quanto nos debruçamos sobre o estudo das cidades sob uma perspectiva diacrônica, partindo do foco primário de urbanização que foi o sul da Mesopotâmia, território identificado como País de Sumer ou Suméria, nos encontramos diante de um fenômeno que alguns pesquisadores costumam explicar em termos econômicos, pretendendo amiúde, como o fez certa vez Henri Pirenne, que a cidade seja “filha do comércio”, vale dizer, que a experiência urbana resulte da necessidade de os agricultores do Neolítico comercializarem o excedente da produção, obtendo em troca utensílios confeccionados pelos artesãos urbanos. Por essa interpretação, a cidade, ao permitir que determinados indivíduos se ausentem do plantio e da criação de animais para viver da produção e troca de utensílios artesanais, dos quais aqueles feitos de metal seriam os mais valiosos, se definiria, antes e acima de tudo, pela especialização do trabalho que promove. Uma explicação como essa, é bom que se diga, desconsidera por completo as evidências de que a cidade, desde o seu surgimento e ao longo de toda a Antiguidade, foi de modo bastante evidente uma realidade política, uma modalidade particular de associação coletiva por meio da qual os indivíduos não apenas subverteram os arranjos societários herdados do Neolítico, como o fizeram num espaço próprio, modelado conforme as exigências da centralização do poder que então se impunha. Nesse sentido, a cidade antiga é uma entidade que não pode ser, de modo algum, dissociada das relações de poder que se cristalizam em torno do Estado. Por outro lado, considerando os aspectos sobrenaturais que cercam o surgimento da cidade, um recinto posto desde sempre sob a proteção dos deuses e que com eles mantêm uma relação privilegiada, é impossível, do mesmo modo, separar a experiência urbana da experiência religiosa, como nos demonstram os líderes políticos que controlavam a cidade, os quais costumavam se apresentar como os portavozes das divindades e os executores de seus caprichos. Em face dessa constatação, temos por objetivo discutir, neste capítulo, os vínculos entre cidade e poder na Antiguidade, com a finalidade de demonstrar como, no 12

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

Oriente Próximo e no mundo clássico, a conformação física das cidades seguiu de perto as configurações do corpo político. Para tanto, buscaremos nos afastar de uma abordagem tradicional sobre o assunto que, ao enfatizar as relações de poder entre os citadinos, costuma supor uma assimetria entre a unidade política, representada pelo Estado, e a realidade topográfica representada pela cidade, deixando de lado assim aquilo que poderíamos qualificar como a “cartografia” do poder, isto é, a percepção de que o exercício do poder político se encontra enraizado num território do qual depende e que modifica segundo seus propósitos, como comprova a própria arquitetura cívica, uma arquitetura saturada de representações do poder.

A caminho da urbanização Em 1865, o naturalista e filósofo inglês John Lubbock criou as denominações “Paleolítico” e “Neolítico” para distinguir duas fases evidentes nas escavações dos sítios pré-históricos. No início, os critérios empregados por Lubbock para operar a distinção dos sítios se baseavam na presença da pedra polida e da cerâmica. No entanto, descobertas arqueológicas posteriores tornaram os conceitos de Paleolítico e Neolítico mais complexos, em detrimento da referência lítica propriamente dita. Pelas escavações, se observa que as sociedades neolíticas passaram por transformações bastante amplas, incluindo alterações no sistema produtivo e nos padrões de organização social. O Neolítico propiciou uma sensível redefinição do papel do homem diante da natureza e isso, segundo o arqueólogo australiano Gordon-Childe, representou uma autêntica revolução. De acordo com o autor, o advento do Neolítico foi um acontecimento de ampla magnitude, comparável apenas às Revoluções Urbana e Industrial. No Neolítico, o homem, que era caçador e coletor, ou seja, um predador obrigado a se deslocar continuamente em busca de alimento, torna-se produtor, intervindo no sistema de seleção natural das espécies animais e vegetais. A domesticação de plantas e animais favorece a adoção de um estilo de vida cada vez mais sedentário, ao passo que a caça, a pesca e a coleta vão se convertendo em atividades secundárias diante da agricultura e do pastoreio. O advento do Neolítico, contudo, não deve PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

13

GILVAN VENTURA DA SILVA

ser considerado um processo homogêneo, pois foram muitas as variações locais, de acordo com as condições do meio-ambiente. Como uma subfase do Neolítico, os pesquisadores costumam identificar o Calcolítico (do grego kalkós, cobre), na qual surgem, no registro arqueológico, artefatos de metal martelados a frio. Isso, no entanto, não equivale ao desaparecimento da indústria lítica, uma vez que esses artefatos são, em geral, amuletos e adornos e não instrumentos de trabalho. No Calcolítico ocorrem os primeiros experimentos de manipulação do metal que conduzirão, mais tarde, no final do Neolítico, à Idade do Bronze, um passo decisivo rumo à civilização, como veremos adiante. Pelo que é possível recuperar por intermédio dos vestígios arqueológicos, existiram dois centros regionais e independentes para o surgimento do Neolítico. O primeiro deles se situa no Oriente Próximo por volta de 10.000 a.C. e o segundo na América Central entre 3.000 e 2.000 a.C. A estes dois centros se atribui o nome de Zona Nuclear. Ao que tudo indica, o Neolítico se iniciou na Palestina, mais especificamente na região de Jericó, pródiga em trigais selvagens, de onde provêm os primeiros silos contendo trigo e cevada semidomesticados. Os sítios como os de Jericó pertencem à assim denominada “era incipiente de cultivo e domesticação”, em contraste com a fase seguinte, das “comunidades agrícolas primárias”, nas quais a difusão do Neolítico já permite a permanência de populações por muito tempo na região, como demonstra o registro arqueológico, que se sofistica diante da presença de habitações e do aprimoramento das técnicas de fabrico da cerâmica. Por volta de 7.000 a.C., temos o surgimento das primeiras comunidades agrícolas primárias nas encostas do Zagros, cadeia montanhosa do norte do Iraque. Um dos sítios mais representativos dessa fase é o de Jarmo, com construções de barro e palha que atestam uma ocupação permanente. No total, a comunidade de Jarmo deveria ter cerca de 150 pessoas, o que configura um crescimento demográfico considerável1. Do ponto de vista arquitetônico, o padrão era a existência de casas isoladas, quase sempre idênticas, símbolo de certa igualdade social. De fato, a aldeia

1



14

De fato, uma das principais características do Neolítico é o crescimento demográfico, já que num modus vivendi de tipo nômade, velhos e crianças se tornam um fardo. No caso dos !Kung, da Namíbia, as tribos são formadas por 30 membros e as mulheres têm 1 filho a cada 4 anos.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

de Jarmo era composta pela justaposição de casas de igual importância, habitadas por indivíduos que pareciam ocupar uma posição semelhante dentro do sistema de aprovisionamento alimentar. A existência de obras coletivas de construção, a exemplo de templos, já demonstra uma alteração na natureza da aldeia, sugerindo um controle exercido por parte de um grupo sobre a população local. No entanto, hoje os arqueólogos são muito mais reticentes em classificar como “templos” neolíticos edifícios que podem ter sido tão-somente abrigos comunitários. Seja como for, uma evidência sólida de obras coletivas próprias do Neolítico nos é fornecida pelos muros de proteção de alguns sítios, às vezes acrescidos de fosso. Como constatado em Jarmo e outros sítios contemporâneos, o advento do Neolítico é acompanhado por uma tendência crescente ao aumento populacional, o que não acarreta, a princípio, um rompimento com os padrões de organização societária herdados do passado, pois as comunidades neolíticas perpetuam a divisão sexual e etária de tarefas própria do Paleolítico. Não se verifica tampouco a produção ordinária de excedentes, prevalecendo o igualitarismo comunitário. Para que ocorra um reordenamento da sociedade, com a produção de papéis sociais calcados não apenas em critérios de ordem biológica (o sexo, a idade), mas resultantes de convenções sociais derivadas amiúde de uma distribuição desigual do poder no interior do agrupamento social, a variável decisiva será o surgimento da civilização, um vocábulo cujas raízes semânticas provêm do verbo “civilizar”, ou seja, tornar civil um processo criminal. Em 1752, Turgot, na sua História Universal, já definia civilização como oposta à barbárie, subvertendo assim por completo o sentido original da palavra. A partir do início do século XIX, civilização passa a ser empregada no plural para identificar espaços, sociedades, economias e mentalidades coletivas, adquirindo assim uma abrangência que a aproxima bastante do conceito de cultura. Em sentido estrito, no entanto, a civilização se relaciona com a criação de cidades, ou seja, um conglomerado de aldeias possuindo um centro no qual residem os especialistas da guerra, da administração e da religião, a quem se atribui a responsabilidade de organizar a vida em comunidade, processo que assinala um rompimento do poder difuso próprio do sistema de comunidade primitiva. A civilização pressupõe, assim, a existência de hierarquias e de especialização de tarefas, fatores que PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

15

GILVAN VENTURA DA SILVA

desembocam na instauração do Estado, um tipo particular de associação política que, como dissemos, altera profundamente a estrutura societária advinda do Neolítico. Civilização, Estado e cidade são realidades que guardam entre si uma profunda conexão, configurando o acontecimento histórico que Gordon-Childe denominou, de modo muito apropriado, como Revolução Urbana. Dentre as principais características da Revolução Urbana, poderíamos mencionar, em primeiro lugar, a existência de um organismo político formal identificado como o Estado, instituição gerenciada por especialistas que evocam para si o monopólio legítimo da força física e o direito de formular decisões vinculatórias, ou seja, leis cuja obediência é exigida de todos os que residem num dado território. Disso resulta que a fase do igualitarismo do Neolítico é superada em prol da formação de uma sociedade de tipo classista, na qual os meios de produção passam a ser apropriados a título privado. A concentração do poder político e da propriedade fundiária nas mãos de uma elite que explora o trabalho das comunidades aldeãs é acompanhada pela incorporação das crenças locais pelo poder central, cujo titular costuma ser associado a uma ou mais divindades. Tal concentração depende, em larga medida, do desenvolvimento de um eficaz sistema de notação, cujas funções primárias são de natureza político-religiosa e econômica, auxiliando na manutenção do poder ao perpetuar a memória dos soberanos e dos seus deuses protetores e possibilitando o inventário dos bens à disposição de templos e palácios. Outra característica notável da Revolução Urbana é o surgimento de um artesanato especializado voltado para a produção de bens de luxo e armamentos que são manejados pela elite como reforço simbólico e material ao seu poder, incluindo os monumentos arquitetônicos, a exemplo de palácios e tumbas. Na realização dessas construções monumentais, os próprios camponeses são chamados a dar a sua contribuição nos termos de um sistema de exploração e de racionalização da mão-de-obra por vezes bastante sofisticado, como vemos no Egito. Por último, mas não menos importante, a civilização depende da criação de cidades, essa nova experiência de ordenamento do espaço e de arranjo entre os grupos sociais destinada a desempenhar doravante um relevante papel.

16

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

Cidade e civilização no Oriente Próximo A civilização se desenvolveu primeiramente nas planícies aluvionais do Tigre e do Eufrates (Mesopotâmia) e do Nilo (Egito), regiões em que o solo é fértil, mas a agricultura depende da cheia dos rios e do seu controle por intermédio dos diques e canais. Na Mesopotâmia, O processo de formação do Estado se inicia entre 4.000 e 3.200 a.C., na fase Uruk, e se consolida na fase Jemdet-Nasr, mas desde o ubaidiano já se verifica uma clara tendência à urbanização. A cidade de Ubaid se localizava no sul da Mesopotâmia, próxima de Ur. No seu berço original, no delta que desemboca no Golfo Pérsico, os homens de Ubaid se dedicavam à pesca, à criação de animais e à agricultura irrigada por meio de canais. O excedente de cereais, lã e peles era trocado por obsidiana e metais. Embora seja temerário afirmar que os ubaidianos fossem os sumérios, parece que sua cultura constituiu o primeiro estágio da civilização que emergiria a seguir, em Sumer. É da fase final do ubaidiano que remonta o templo de Eridu, indicando uma forte influência templária na organização da vida coletiva na Mesopotâmia. A cultura de Uruk sucede no tempo a de Ubaid, mas não representa a priori uma ruptura com esta. Pelo contrário, os elementos de continuidade são muito mais relevantes, o que sugere uma transição pacífica de uma fase à outra. A partir de 4000 a.C., a região meridional do atual Iraque é atingida por profundas modificações demográficas, técnicas e culturais que conduzirão mais tarde, por volta de 3000 a.C., aos principados históricos da Suméria e da Acádia. Todo o processo histórico de criação da Civilização Mesopotâmica é pautado pela urbanização, resultado direto da explosão demográfica que se verifica no período. Três fatores podem ser apontados como responsáveis por esse acentuado surto populacional: a) o crescimento endógeno de uma população estabelecida em um meio ecológico favorável; b) a sedentarização progressiva das tribos nômades e seminômades dispersas pelo território e c) a migração de agrupamentos vindos do norte, atraídos pelas enormes vantagens oferecidas pela agricultura irrigada. Muito embora o delta mesopotâmico seja bastante fértil, as zonas cultiváveis permanecem restritas em função dos pântanos próximos do Golfo e das cheias violentas dos rios, o que exige um intenso trabalho sobre o meio e o aprimoramento das técnicas a fim de tornar o solo próprio para o plantio. É nessa fase que PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

17

GILVAN VENTURA DA SILVA

se inventam o arado, o trenó, o carro de quatro rodas para transportar os grãos, o barco a vela e a roda do oleiro, bem como se descobre o ponto de fusão do cobre, essencial para o fabrico do bronze. As transformações sociais e tecnológicas operadas no período de Uruk levam a que uma parte da população se especialize no comércio, no artesanato e na administração, constituindo-se uma elite cujos primeiros representantes são os sacerdotes. É no templo arcaico de Eanna, do nível IVb, em Uruk, datado aproximadamente de 3.300 a.C., que aparecem os mais antigos textos do mundo sob a forma de tabletes pictográficos. O período seguinte, o de Jemdet-Nasr, é considerado o da Revolução Urbana, tendo recebido seu nome em homenagem ao sítio próximo a Kish escavado por arqueólogos ingleses e americanos em 1925. O período de Jemdet-Nasr não apresenta nenhuma diferença substancial com relação ao de Uruk, sugerindo muito mais uma continuidade. Em termos estritos, a principal novidade que se observa é o desenvolvimento extraordinário da escultura aplicada a objetos variados (jarras, vasos, taças, murais, selos). As fases finais de Jemdet-Nasr são reconhecíveis apenas em sítios da Suméria. No norte, no território de Acad, predomina a cultura típica de Uruk. No entanto, não podemos atribuir apenas aos sumérios os créditos pelo surgimento da civilização, conforme uma antiga tendência historiográfica. De fato, muito embora os sumérios tenham, em algum momento, se instalado no sul da Mesopotâmia, dado que não eram autóctones, eles não trouxeram a civilização pronta da sua região de origem, mas a construíram valendo-se de elementos próprios da região na qual se fixaram. Os sumérios consideravam a cidade o fato principal da civilização, opondo-a à estepe e ao deserto, espaços marcados pela desordem, pelo predomínio das forças malignas e pela pobreza. Mas a prosperidade da cidade dependia sempre de uma relação favorável entre os reis e os deuses. De acordo com a cosmovisão suméria a cidade era propriedade de uma divindade. Todo o IV milênio a.C. é marcado pelo nascimento das cidades, processo finalizado na fase Jemdet-Nasr e melhor caracterizado na região meridional da Mesopotâmia. Aí, num território de cerca de 30.000 Km2, temos o aparecimento de aproximadamente vinte cidades, distribuídas ao longo da zona ribeirinha do Eufrates. De modo geral, a experiência urbana se encontra condicionada pela existência de construções monumentais que 18

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

servem de suporte a atividades político-religiosas, razão pela qual somente podemos falar de urbanismo na presença de duas variáveis: 1) uma ação que integre a população local em um conjunto organizado; 2) uma diferenciação espacial associada à especialização das atividades sociais e dos ofícios. Na Mesopotâmia, a urbanização se conecta à prática do regadio por meio do aproveitamento do potencial hídrico dos rios e à existência de relações comerciais entre os territórios, uma vez que a Mesopotâmia era carente de diversos produtos, tais como madeira e metal. Quanto a esse último aspecto, a navegação fluvial foi sempre muito importante para o transporte de mercadorias. Daí resulta que as aglomerações urbanas sejam o mais das vezes ribeirinhas. Nesse contexto de incremento das atividades agrícolas de regadio e das transações comerciais, mas sem que tenhamos condições de discernir muito bem as etapas do processo, emerge o poder político, mais ou menos confundido com o poder religioso, que advoga para si o controle da comunidade outrora independente. Esse poder se materializa em dois padrões arquitetônicos distintos: o palácio e o templo. Templos e palácios, na Antiguidade, não eram tão-somente o local de moradia de reis e deuses, mas autênticas máquinas de governo, abrigando armazéns, silos, estábulos, oficinas e explorando contingentes de mão de obra cujo trabalho revertia para a manutenção de uma elite. Desde o ubaidiano, já é possível detectar a presença de uma arquitetura diferenciada de tipo templário no território urbano, incluindo depósitos de produtos. Os templos chegam mesmo a ostentar uma decoração de luxo, confeccionada com produtos importados, como acompanhamos no caso do templo de Eridu, um dos mais antigos. Em termos arquitetônicos, os templos se situam em territórios elevados, chegando mesmo a dominar um determinado bairro da cidade. A devoção régia para com as divindades impulsiona os mesopotâmicos a embelezar os templos, reconstruí-los e dotá-los de riquezas e propriedades. Nesse momento, diversos indícios sugerem também a existência, no centro da comunidade, da residência do chefe da aldeia, mas sem que isso nos autorize a identificar essas construções como residências régias. Seja como for, em meados do III milênio, já na fase histórica portanto, constata-se a existência inequívoca de palácios que, muito embora associados a um centro religioso, não se confundem com os templos. Os palácios podiam mudar de lugar ao longo do tempo ou mesmo se multiplicar, de PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

19

GILVAN VENTURA DA SILVA

modo a garantir o controle régio sobre um território mais extenso. No que diz respeito ao ordenamento espacial, os arqueólogos tem se interessado muito mais pela escavação de templos e palácios do que por ruas, praças e mercados. Ao que tudo indica, as praças públicas não foram um componente original das cidades mesopotâmicas, embora, em algumas ocasiões, fossem abertos amplos espaços diante de um palácio ou ziggurat2. A tradição, no entanto, concede grande importância às portas da cidade, ponto de encontro entre o interior e o exterior, local de reunião das caravanas que logo vê crescer em torno de si um mercado. Outro sítio importante da cidade mesopotâmica era o porto (karum), onde mercadorias eram embarcadas e desembarcadas, tarifas alfandegárias eram recolhidas e se processava o intercâmbio de produtos e informações. Pólo econômico de primeira grandeza, o porto permanece muitas vezes desconhecido para nós, em parte pelo fato de ser o primeiro terreno atingido pelas inundações periódicas. A muralha, por sua vez, era considerada pelos antigos o componente essencial de uma cidade, pois delimitava a fronteira entre o mundo ordenado, civilizado e a natureza inóspita e selvagem. Para todos os povos do Oriente Próximo que adotaram a civilização, a realeza era vista como a forma ideal de Estado, encontrando-se diretamente associada à cidade, na medida em que, conforme os relatos míticos então correntes, a realeza, ao ser ofertada aos homens pelos deuses, se instalou pela primeira vez na cidade de Eridu. Destruída por ocasião do dilúvio, a realeza teria sido reabilitada, mas desta vez a sede escolhida foi Kish. Para os sumérios, a realeza era considerada uma dádiva enviada pelos céus desde a origem dos tempos. Embora alguns especialistas, com base em argumentos extraídos da mitologia babilônica, tenham proposto que o sistema político dos sumérios corresponderia a uma “democracia primitiva” na qual o rei seria eleito pelos cidadãos apenas em tempos de crise e por breves períodos, esta hipótese não apresenta uma base muito sólida. De fato, temos conhecimento da existência de assembleias locais (ukkin), autênticos conselhos de anciãos ou notáveis, que gozavam de um papel importante na administração de 2

O ziggurat é uma arquitetura templária surgida na Mesopotâmia no final do III milênio a.C. Construído sob a forma de uma torre piramidal, o ziggurat, em termos simbólicos, é comumente interpretado como uma espécie de escada unindo céu e terra e por meio da qual os deuses podiam visitar os homens sempre que desejassem.

20

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

uma aldeia ou cidade. Em épocas históricas, entretanto, estas assembleias surgem para nós como órgãos meramente consultivos, ainda que em algumas ocasiões tenham se oposto ao poder do rei e de seus representantes. Além disso, não há, na história da Suméria, nenhuma evidência de que o poder tenha, em algum momento, ficado a cargo de órgãos coletivos. O rei e somente ele era o titular legítimo da autoridade, devendo prestar contas de seus atos apenas aos deuses. Para o estudo das instituições monárquicas mesopotâmicas, dispomos de Listas Reais sumérias datadas do século XVII a.C. contendo nomes de reis que, supostamente, teriam reinado sobre o país desde os primeiros tempos. Ao que parece, as cidades sumérias possuíam um grande sacerdote e um chefe “secular” que, por um processo ainda obscuro, passa, num determinado momento, a dominar o principado. A união das estruturas templárias e palacianas constitui o que chamamos por Estado, mas o poder supremo repousa nas mãos do monarca, o mandatário dos deuses, que recebe em Uruk e Ebla a denominação de en (“senhor”), designativo aplicado a deuses como En-lil. Em outras cidades o rei é qualificado como lugal (grande homem) ou ensi, traduzido habitualmente por rei ou governador. A esposa do monarca se intitula nin e goza de um papel importante na vida pública. Em Girsu, por exemplo, é a nin que administra os recursos do templo da deusa Baba. O poder real na Mesopotâmia é hereditário e passa normalmente de pai para filho. O soberano governa o principado como executor da vontade divina, assegurando a fertilidade do país, liderando as tropas em combate, firmando alianças, julgando e coordenando aos obras públicas, especialmente a construção de templos. A administração régia, assim como a templária, tinha como principal atribuição gerir a fortuna crescente do soberano. O burocrata (escriba) era um servidor do rei e não do reino, como convinha a uma monarquia de tipo patrimonialista. O desenvolvimento das atividades burocráticas foi favorecido com a formação dos impérios mesopotâmicos a partir do período sargônida (2296-2150 a.C.), quando então uma entidade supra-regional começa a se sobrepor às unidades autônomas constituídas pelas cidades, determinando novas modalidades de arranjo político. Os impérios de Akkad, Ur e Hamurábi, por exemplo, englobavam inúmeras cidades outrora rivais. Dessa reunião, nasceram Estados de um tipo novo, de vocação universal. O desenvolvimento da burocracia representou um PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

21

GILVAN VENTURA DA SILVA

papel importante nessa universalização, assegurando a coesão do império em torno do soberano, mas a cidade continuou sempre como uma importante referência política. Já no caso do Egito, a experiência urbana apresenta algumas características que a distanciam do caso mesopotâmico. Segundo os egípcios, seu país se dividia em dois espaços: “terra negra” (Alto e Baixo Egito) e “terra vermelha” (deserto), oposição estabelecida entre o espaço fértil e permanentemente ocupado e o espaço ocupado de modo esporádico para punir tribos do deserto ou explorar os portos do Mar Vermelho e do Sinai. O Delta do Nilo ou Baixo Egito, área sujeita à formação de pântanos, constituía uma zona de colonização rural, contando com os melhores vinhedos e colmeias e com pastagens mais extensas. Também no Baixo Egito localizava-se o centro metalúrgico mais importante e o maior pólo de manufatura têxtil, sediados em Mênfis e Saís respectivamente. A região ao sul, denominada Vale ou Alto Egito, apresentava uma concentração demográfica mais intensa e maior densidade agrária devido à presença de tanques menores e mais manejáveis, o que favorecia a irrigação. A terra cultivável era dividida em três grandes categorias, segundo os documentos: a) “terra baixa”, aquela sempre fertilizada pela cheia do Nilo; b) “terra alta”, atingida apenas em anos de cheia mais intensa e c) “ilhas”, sempre cercadas de água. No Vale, os campos inundados onde se cultivavam o linho e os cereais se distinguiam dos vergéis, vinhedos e jardins, situados em lugares mais elevados e dependentes de irrigação artificial, realizada por intermédio de caçambas e mais tarde, a partir do século XIV a.C., por shadufs, um eficiente instrumento de irrigação por contrapeso. Em seu conjunto, a zona agrícola se opunha aos pântanos (região de criação de gado, caça e pesca) e às zonas desérticas. No Egito, a relação urbano/ rural era marcada pelo caráter maciçamente agrícola da economia. Desse modo, o espaço urbano costumava ser invadido pelo espaço rural, o que corresponde à hipótese de Marx da unidade indiferenciada entre campo e cidade no Oriente. O termo utilizado para designar cidade era niut. A preocupação da realeza faraônica em estimular a fundação de novas cidades remonta ao Reino Antigo. A função da cidade era eminentemente administrativa, mas existiram também cidades templárias e fortalezas urbanas. No centro da zona urbana, situavam-se os templos e as repartições 22

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

administrativas, conforme os interesses do governo faraônico. Algumas cidades, como Deir El Medina, foram construídas para abrigar artesãos que trabalhavam nas tumbas e templos. Abaixo da categoria de cidades, temos as vilas (dmi), mais numerosas. As habitações dos egípcios eram feitas de barro, palha, madeira e os tijolos, quando empregados, eram cozidos ao sol. Mesmo as residências da nobreza eram construídas com tijolos crus, embora costumassem conter partes em pedra. As construções inteiramente em pedra eram aquelas devotadas à eternidade, como os templos e tumbas, e aquelas que deveriam ficar em contato permanente com a água.

Cidade e cidadania na Grécia e em Roma Quando deslocamos nosso olhar do Oriente Próximo para os territórios a Ocidente, nos deparamos com outras experiências igualmente determinantes na formulação da nossa ideia contemporânea de cidade. Nesse caso, as linhas de força são representadas pelas civilizações grega e romana, responsáveis por produzir uma autêntica equiparação entre a cidade, compreendida em termos territoriais, e a comunidade cívica que nela habita. Com os gregos e os romanos o espaço urbano transformado pela ação do homem e o corpo de cidadãos passam a conviver em estreita simbiose, como nos revela a ambiguidade contida no vocábulo pólis, empregado para designar a um só tempo a cidade do ponto de vista físico e o regime de governo republicano aí instalado. A pólis é uma realidade que começa a emergir no século VIII a.C. como uma reação mais ou menos generalizada aos regimes monárquicos então predominantes nas Penínsulas Balcânica e Itálica. A pólis designa, a rigor, uma comunidade que se autogoverna. Como, em geral, o território políade apresentava uma extensão reduzida, convencionou-se chamá-la “cidade-Estado”, mas esse termo não é uma tradução apropriada para pólis por dois motivos: em primeiro lugar, pelo fato de ignorar a população assentada na zona rural (khóra), que constituía a maioria dos cidadãos; e, em segundo lugar, por sugerir que o núcleo urbano governava o campo, o que não é correto, pois havia póleis que não contavam sequer com um centro urbano propriamente dito, a exemplo de Esparta, cuja localização geográfica exata é ainda hoje motivo de discussão entre os arqueólogos. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

23

GILVAN VENTURA DA SILVA

As póleis surgiram inicialmente na Grécia Continental, nas ilhas do Egeu e no litoral da Ásia Menor, tendo sido mais tarde, no decorrer das duas vagas de “colonização” (750 e 650 a.C.), transplantadas para os territórios do Mediterrâneo Ocidental e para o litoral do Ponto Euxino (Mar Negro). Devemos assinalar, no entanto, que as póleis não existiram em todas as regiões da Grécia. A Tessália, a Arcádia e a Macedônia, por exemplo, conservaram uma estrutura de realeza tribal (Estado-Ethnos), embora, do ponto de vista etnocultural, fizessem parte do mundo grego. O número elevado de póleis atesta uma excessiva fragmentação do poder na fase posterior à Idade Homérica (1200 a 800 a.C.). Para explicar esse processo, alguns autores, recorrendo ao determinismo geográfico, sustentaram no passado a hipótese, hoje amplamente desacreditada, segundo a qual as regiões nas quais surgiram as póleis eram montanhosas e de comunicação difícil, o que concorreu para o seu isolamento. Em contraposição a isso, argumentou-se que as condições geográficas não são capazes de explicar as razões pelas quais a Ática se organizou em torno de Atenas enquanto a Beócia, um território vizinho com uma extensão um pouco maior, se repartiu numa dezena de póleis distintas. Embora seja muito difícil encontrar uma explicação definitiva para essa fragmentação, é forçoso reconhecer a importância dos fatores de natureza cultural, uma vez que durante muito tempo vigorou, entre os gregos antigos, a crença de que a pólis era a única modalidade aceitável de organização social para o homem civilizado, como sustentou Aristóteles ao declarar que o homem era um zoon politikon, ou seja um animal destinado a viver numa pólis. Em termos da ocupação territorial, a pólis costumava apresentar um centro urbano, que durante muito tempo não passou de um vilarejo, residência dos mais abastados; e um recinto de reunião do corpo cívico denominado ágora. Antes de ser uma praça de mercado flanqueada por edifícios públicos, a ágora foi um descampado no qual ocorriam as assembleias dos cidadãos. As póleis possuíam também uma acrópole ou cidade-alta, região elevada e de difícil acesso onde se encontrava o templo das principais divindades; uma khóra (zona rural) e, na medida do possível, um porto. Já no que diz respeito à organização política, as póleis apresentavam como características a tripartição de governo em assembleias, conselhos e magistraturas; a participação direta dos cidadãos no processo político por meio da ocupação 24

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

das instâncias acima referidas e a inexistência de separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e entre religião e política. As magistraturas eram, em geral, regidas pelos princípios da anualidade e da elegibilidade e costumavam ser agrupadas em colégios a fim de evitar a concentração de poderes nas mãos de um único indivíduo. Os conselhos, sempre de extensão restrita, poderiam ser vitalícios ou não, ao passo que as assembleias eram abertas à participação de todos os membros do corpo cívico. A organização em cidade-Estado nada nos informa sobre o regime de governo, que poderia ser a aristocracia, a oligarquia ou a democracia. No caso da aristocracia, a inclusão no corpo cívico obedeceria a critérios de linhagem, de modo que somente os melhores, os aristoi, agrupados em famílias extensivas (gene), eram considerados cidadãos, podendo assim exercer ativamente a política. Em contrapartida, a população comum, genericamente denominada demos, estava alijada da participação na cidade. A oligarquia, por sua vez, poderia ser definida como o governo dos mais ricos, ou seja, daqueles que apresentavam um nível mínimo de riqueza, variável de região para região. Já a democracia é em geral qualificada como o governo da maioria. Num regime democrático, o corpo de cidadãos é ampliado e a assembleia (ecclesia) assume o primeiro plano na vida política, embora as principais magistraturas permaneçam nas mãos dos mais ricos. no seu início, todas as póleis foram aristocráticas, pois o poder era monopolizado por um conjunto restrito de famílias que, contando com a autoridade conferida pela tradição, controlavam o acesso às instâncias políticas. Posteriormente, uma parte delas caminhou rumo à instauração da oligarquia e a outra, da democracia. Em toda a Hélade, assim como em Roma, o exercício da política era um privilégio dos homens, dela encontrando-se excluídas as mulheres, as crianças e os escravos. As póleis se estruturavam conforme o sistema do cidadão/ camponês/soldado, de maneira que o mesmo indivíduo deveria atuar na política, prover o sustento de sua família e defender sua cidade, não existindo, a princípio, especialização militar. Nesse caso, como em tantos outros, a exceção mais notável foi Esparta, cujo corpo cívico era constituído por hoplitas em tempo integral, treinados para manter sob vigilância constante a população hilota explorada em caráter compulsório. A competição era um elemento característico da práxis política na Antiguidade, devendo-se distinguir apenas as cidades nas quais essa competição era restrita a um PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

25

GILVAN VENTURA DA SILVA

seleto grupo de cidadãos e aquelas nas quais os pobres tinham uma atuação efetiva. Como todas as póleis apresentavam uma participação popular em algum nível, nem que fosse apenas por ocasião da eleição dos magistrados, os líderes políticos eram compelidos a manobrar para obter apoio. A política antiga não era representativa, não comportando partidos políticos e nem engrenagem de bancada. O voto era direto e condicionado pelos debates. É importante assinalar que a liderança das póleis, mesmo em Atenas durante o auge da democracia, sempre foi um patrimônio dos ricos pelo fato de que a eles cabia a maior parte das despesas de guerra e de manutenção da cidade, o que era cumprido por intermédio de um eficiente sistema de munificência pública. Além disso, a política, em nível de liderança, era uma atividade que não contava com nenhum tipo de remuneração, exigindo-se assim do candidato recursos suficientes para se manter. Dentre todos os regimes que vigoravam na Grécia, o democrático foi o que mais espaço concedeu à participação política de toda a comunidade cívica. As assembleias eram franqueadas a todos e os seus poderes eram teoricamente ilimitados. Atenas foi a pólis que melhor resolveu o problema da participação dos pobres na política por intermédio da mistoforia, um sistema de retribuição financeira pelo dia de trabalho perdido em prol dos assuntos públicos. Em Roma, o exercício da política também se encontrava intimamente conectado à organização do espaço urbano, posto que a civitas republicana tem como antecedente necessário a Urbs, a cidade fundada na época da realeza. De acordo com a tradição, logo depois de uma fase inicial em que Roma emerge como uma monarquia independente governada por reis de origem latina e por uma aristocracia reunida no Senado, veio se sobrepor, em algum momento do século VII a.C., um poderio estrangeiro, resultado da expansão dos etruscos rumo à Campânia. No passado, havia a tendência a se considerar Roma uma cidade fundada durante a fase de dominação etrusca. Na realidade, embora a Arqueologia demonstre que a Roma arcaica pertencia à mesma civilização das cidades etruscas, não podemos qualificá-la como uma “cidade etrusca” em termos estritos, uma vez que em pleno século VI a.C., período de máxima expansão etrusca sobre a Península Itálica, as inscrições públicas eram redigidas em latim, o que sugere uma autonomia linguística – e sem dúvida política – da cidade. Além disso, a drenagem do fórum romano remonta aproximadamente a 625 a.C., sendo portanto 26

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

anterior ao governo de Tarquínio Prisco, o primeiro monarca etrusco. Durante a fase de dominação etrusca, os conquistadores não respeitaram a auctoritas patrum do Senado nem as prerrogativas da aristocracia e por isso foram tidos como vis e traidores. No entanto, os reis etruscos, ao exercerem um poder central forte, minaram os alicerces das gentes patrícias, auxiliando na integração das populações assentadas no território da Urbs. Em meados do século VI a.C., Sérvio Túlio, sucessor de Tarquínio Prisco, parece representar um momento de adoção de diversas reformas, dentre as quais uma das mais importantes foi a distribuição da população livre em quatro tribos territoriais urbanas – Colina, Esquilina, Palatina e Suburana – e dezesseis tribos rusticae, isto é, rurais. A partir de então, a população passa a se organizar em bases geográficas, superando-se assim os marcos familiares das gentes, ao menos para efeito de composição do corpo cívico. Sérvio Túlio parece ser o responsável também pela repartição dos infantes em classes censitárias constituídas por um número fixo de centúrias. O termo classis, derivado do latim calatio (chamada, convocação), significava o conjunto dos cidadãos recrutáveis para a guerra. Abaixo, ficavam os que não possuíam condições de se armar e, portanto, não participavam do exército, razão pela qual eram denominados infra classem. Tal reforma se conecta com a criação ou pelo menos a institucionalização da assembleia do populus em armas, os comitia centuriata, destinada a desempenhar um relevante papel no decorrer da República. Com as suas reformas, Sérvio Túlio, ao mesmo tempo em que enfraquece o controle da aristocracia sobre a Urbs, favorece a integração da população urbana, o que terá um impacto decisivo na criação da civitas, acontecimento que, segundo a tradição, ocorre em 509 a.C., com a derrubada dos reis e a instauração da República, momento em que os cidadãos em seu conjunto se apoderam da cidade, num movimento semelhante ao que ocorreu na Grécia entre os séculos VIII e VII a.C. Em termos político-institucionais, podemos dizer que Roma é uma civitas governada pelo populus, de modo que o Estado romano é constituído pelo conjunto dos cidadãos e pelos assuntos que a eles dizem respeito. As principais categorias que definiam esse Estado eram, em primeiro lugar, a res publica, associação implantada após a superação da realeza e que se definia como uma libera civitas, uma comunidade que se auto-governava conforme a livre iniciativa dos seus componentes visando a um bem comum. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

27

GILVAN VENTURA DA SILVA

Em seguida, temos a civitas, estatuto sociojurídico de uma comunidade independente e soberana em relação aos seus bens e indivíduos, ancorada na reverência para com os deuses e no respeito às leis e assentada num território urbano (urbs) e rural (ager). A civitas era uma entidade unitária, empenhativa e totalitária, no sentido de que a adesão a ela era integral, adquirindo a vontade coletiva uma precedência extraordinária diante dos interesses e caprichos individuais. Uma das características mais evidentes desse Estado era a soberania da Lex, de modo que as relações de mando e obediência se encontravam sob a chancela da lei emanada segundo o princípio da soberania do populus. Os cidadãos obedeciam às leis criadas pela vontade política de fazer do direito o meio de regular as relações humanas. Por último, temos a categoria populus, entendida não como sinônimo de “povo”, ou seja, de habitantes de um determinado território, mas como a totalidade do corpo cívico constituído por indivíduos do sexo masculino aptos a participar da política. Cumpre notar que, na República, não havia uma especialização funcional, sendo todos os cidadãos credores e devedores da comunidade na condição de soldados, contribuintes, eleitores e candidatos. O desenvolvimento da República ao longo dos seus quinhentos anos de existência não foi linear, mas antes marcado por diversos conflitos internos e externos. Por ocasião da sua implantação, a República é controlada pelos patrícios, membros da aristocracia organizados em linhagens gentilícias cujos desafios são garantir a independência de Roma e o controle do poder político. Roma vive então os dilemas próprios de outras cidades contemporâneas a ela, quais sejam: a) necessidade de expansão territorial para a manutenção do território vital e da soberania; b) ameaça de outras cidades e tribos do Lácio, o que conduz ao desenvolvimento da organização militar e das técnicas de recrutamento; c) necessidade de integrar a comunidade que habitava os espaços urbanos e rural de acordo com os princípios de uma cidade-Estado antiga. No início, como a cidade foi dominada pela aristocracia patrícia, amplos setores da população que não estavam integrados nas gentes nem assimilados nas redes de clientela/patronato não tinham reconhecida a sua condição de cidadania. Estes setores são grosso modo identificados como plebeus, em luta contínua pela igualdade de direitos civis e políticos num longo conflito encerrado em 287 a.C., com a aprovação da Lex Hortensia, que converteu o consilium plebis, a antiga assembleia da plebe, nos comitia 28

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

tributa, ou seja, na assembleia dos cidadãos repartidos em tribos. Desse modo, o alargamento gradual do corpo cívico e o incremento da sua solidariedade foram acontecimentos simultâneos à formação das instituições políticas, militares e jurídicas da República. Em Roma, assim como na Grécia, a política era uma atividade em tempo integral, um estilo de vida, e o acesso a ela era extremamente competitivo. Roma era controlada por uma elite política patrício-plebeia – a nobilitas – que, para governar, não se apoiava tão-somente na linhagem familiar, mas dependia do reconhecimento público, da eleição e do exercício do patronato individual e comunitário. A liderança ficava a cargo dos setores mais ricos da comunidade, os assim denominados boni e optimi, que, na condição de magistrados, iniciavam uma carreira que, se bem sucedida, poderia conduzilos ao Senado. Em latim, o termo magistratus significa “o que é ou pode mais”. Logo, o magistrado era muito mais um portador do poder estatal do que um funcionário público, cabendo aqui lembrar que a República romana não possuía burocracia, razão pela qual o próprio magistrado deveria prover o pessoal administrativo necessário para o desempenho das atividades pelas quais era responsável. Somente aos poucos foi se desenvolvendo um embrião de burocracia, com os escribas, lictores, e viatores. Além disso, o exercício de cargo público em Roma era considerado um honor, de modo que ninguém recebia remuneração pelos serviços prestados à cidade. As magistraturas costumavam ser eletivas e anuais, havendo, no entanto, algumas exceções, como no caso da ditadura e da censura. Os magistrados formavam amiúde um colégio de pelo menos dois membros, mas cada um possuía a competência integral que o cargo lhe atribuía. A fim de evitar abusos no exercício do poder havia o dispositivo legal da intercessio, que permitia a um magistrado vetar a decisão do outro. Só poderia se candidatar às magistraturas um ingênuo (nascido livre) cuja ascendência remontasse à segunda geração, que não fosse condenado judicialmente e que não exercesse um ofício remunerado. Em ocasiões normais, não era autorizada a repetição de uma magistratura nem a acumulação de várias por um único indivíduo. Durante o exercício do seu mandato, o magistrado não estava sujeito a ninguém, mas finda a magistratura poderia ser chamado a prestar contas dos seus atos. Com o tempo, foi se fixando o cursus honorum, a carreira das honras composta pelas diferentes magistraturas. Em 180 a.C., por meio de texto legal, esse cursus PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

29

GILVAN VENTURA DA SILVA

foi regulado, obrigando-se um intervalo de dois anos entre as magistraturas e a exigência de prestação de serviço por dez anos como tribuno militar de uma legião para aqueles que desejassem fazer carreira política. Essas regras, no entanto, foram diversas vezes burladas, especialmente na fase final da República, quando a guerra civil adquiriu contornos endêmicos. Em Roma, existia um acirrado confronto nas eleições para as magistraturas, com o suborno de eleitores e a extorsão das províncias, obrigadas a sustentar os vultosos gastos das campanhas eleitorais. Cursus honorum – quadro sinóptico Magistratura Membros Funções Consulado 2 Comando do exército, liderança da República, exercício da justiça Pretura 8 Comando de exército, exercício da justiça Censura 2 Confecção da lista de cidadãos e de senadores, vigilância sobre a moral e os bons costumes, purificação da Urbs Edilato 4 Controle policial de Roma, manutenção de ruas e edifícios, abastecimento da cidade, patrocínio de jogos e festivais Tribunato 10 auxilium ao conjunto dos da plebe cidadãos e redação de leis Questura Administração do Erário e manutenção dos arquivos do Estado Ditadura3 1 Plenos poderes para reorganizar a República

Mandato 1 ano 1 ano 1 ano e meio 1 ano

1 ano 1 ano 6 meses

À parte as magistraturas, que desempenhavam um papel significativo para a dinâmica do sistema político romano, podemos afirmar que o Senado era, ao fim e ao cabo, o bastião da República. Seu número total era de 300 membros, escolhidos dentre os cidadãos mais e ricos e prestigiados. A nomeação para o Senado ocorria após o exercício do consulado e era vitalícia, mas com possibilidade de expulsão por conduta imprópria. Sila

3



30

A ditadura romana, na realidade, não compunha o cursus honorum, mas era uma magistratura excepcional, acionada apenas em momentos de grave crise para a República, quando então se nomeava um ditador com plenos poderes. Contra sua ação o veto dos tribunos não surtia efeito.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

elevou o Senado para seiscentos membros e César para novecentos. Com Sila, decidiu-se que a investidura da questura já daria lugar ao Senado. O Senado era convocado pelo cônsul, pretor ou tribuno da plebe, que o presidiam. Os senadores discursavam conforme uma hierarquia, falando os antigos cônsules e censores em primeiro lugar. O mais afamado era o princeps senatus, que detinha o privilégio de ser inscrito em primeiro lugar no álbum senatorial elaborado pelos censores. Após os debates ocorriam as votações que resultavam no senatus consultum, um dos fundamentos jurídicos do direito romano no período republicano. O Senado conservava a auctoritas patrum, prerrogativa segundo a qual nenhuma decisão popular poderia entrar em vigor sem a autorização do Senado. No entanto, com a aprovação da lex Hortensia, decidiu-se que as decisões tomadas nos comitia tributa (o antigo consilium plebis) não estariam mais submetidas à sanção senatorial prévia. Praticamente todas as atividades do Estado romano eram supervisionadas pelos senadores, principalmente as que diziam respeito à política externa. O Senado decidia sobre as operações militares e proporcionava os meios necessários para executá-las, incluindo a arrecadação de fundos; celebrava a paz, distribuía províncias e recebia embaixadas. No âmbito interno, sua função primordial era gerenciar o Erário depositado no templo de Saturno, cunhar moedas e administrar as terras públicas obtidas mediante a extensão do Império. O terceiro componente institucional da República romana eram as assembleias (comitia) do populus, que reuniam todos os cidadãos, embora o voto fosse em bloco e não individual. A realização das assembleias dependia da consulta aos auspicia, ou seja, da vontade dos deuses. Nelas, o voto não era secreto e não havia debate nem emendas às propostas apresentadas, cabendo aos cidadãos apenas pronunciar-se contra ou a favor de uma determinada proposta. Para que fossem válidas, deveriam ser convocadas em dias declarados propícios (fasti) pelos magistrados. As assembleias romanas eram três. A mais antiga eram os comitia curiata, reunião das trinta cúrias e que tinha como principal encargo votar a lex curiata de Imperio, que concedia o imperium, um amplo feixe de poderes militares, políticos, jurídicos e religiosos, aos cônsules e pretores. Com o passar do tempo, os comitia curiata foram perdendo importância, a ponto de muitos cidadãos ignorarem a cúria a qual pertenciam. Em seguida, temos os comitia centuriata, cujo princípio PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

31

GILVAN VENTURA DA SILVA

de organização eram as centúrias agrupadas em classes censitárias. No fim da República, em sua versão final, aparecem divididos em 373 centúrias. A partir de 287 a.C., como mencionamos, surgem, em substituição ao consilium plebis, os comitia tributa, assembleia formada pelo conjunto do populus repartido nas 35 tribos. Em Roma, a adscrição do indivíduo a uma tribo era o sinal distintivo da cidadania. As assembleias possuíam funções eletivas, legislativas e judiciárias, mas em caráter restrito. Os comitia centuriata elegiam os cônsules e os pretores, votavam a paz e a guerra, julgavam os crimes punidos com a pena capital e aqueles cometidos contra o Estado. Já os comitia tributa elegiam os demais magistrados, votavam os plebiscitos e julgavam crimes punidos com a aplicação de multa.

Conclusão Em virtude da posição central ocupada, no mundo pós-Revolução Industrial, pela cidade, as reflexões sobre a construção do espaço urbano e sobre as modalidades de sua gestão/administração constituem um tema da maior relevância, não apenas para os pesquisadores, mas também para os citadinos, atordoados com o ritmo intenso de transformações que convertem as metrópoles em megalópoles e com todo o impacto que isso provoca sobre as relações sociais entre grupos e indivíduos. O fundamental, no entanto, é compreender que a cidade, embora por vezes pareça adquirir vida própria, não pode ser naturalizada e reificada, como se constituísse uma entidade transhistórica e dissociada daqueles que nela habitam. As cidades comportam decerto uma materialidade muitas vezes eternizada em pedra, mas elas também sugerem formas próprias de sociabilidade e de estruturação da comunidade política, de maneira que é na confluência entre os grupos sociais em interação – os usuários, por assim dizer – que elas são apropriadas, ressimbolizadas e incessantemente remodeladas. Para a compreensão dessa dinâmica, devemos conhecer a trajetória das cidades desde o seu surgimento, na passagem do Neolítico à civilização, com especial destaque para o período clássico, no qual o conjunto dos cidadãos assume o papel de protagonista na gestão dos assuntos públicos, incluindo a própria organização do território cívico, que recebe fontes, aquedutos, 32

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

CIDADE E PODER NO MUNDO ANTIGO

pórticos, teatros e ginásios, elementos tidos como indícios de refinamento cultural diante de um exterior inóspito e bárbaro. Por essa razão, os historiadores da Antiguidade têm uma importante contribuição a dar nas discussões contemporâneas que tentam racionalizar uma experiência tão complexa e pulsante como a cidade, experiência que, muito embora criada e gerida por nós, a todo momento parece se colocar além do nosso alcance.

Referências BAKOS, M. M. Fatos e mitos do antigo Egito. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Lisboa: Relógio d’Água, 2006. BOUZON, E. Ensaios babilônicos: sociedade, economia e cultura na Babilônia pré-cristã. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. BRAIDWOOD, R. Homens pré-históricos. Brasília: Editora da UnB, 1988. BRAUDEL, F. Gramática das civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 1989. CARDOSO, C. F. S. A cidade-Estado antiga. São Paulo: Ática, 1985. CARDOSO, C. F. S. O Egito antigo. São Paulo: Brasiliense, 1982. CARDOSO, C. F. S. Sete olhares sobre a Antiguidade. Brasília: Editora da UnB, 1994. CORASSIN, M. L. Sociedade e política na Roma antiga. São Paulo: Atual, 2001. FINLEY, M. A política no Mundo Antigo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. FINLEY, M. Economia e sociedade na Grécia antiga. São Paulo: Martins Fontes, 1989. FUNARI, P. P. A. A Cidadania entre os romanos. In: PINSKY, J. & PINSKY, C. B. (Org.) História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 49-79. GORDON CHILDE, V. O que aconteceu na História. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. GRANDAZZI, A. Les origines de Rome. Paris: Presses Universitaires de France, 2003. GUARINELLO, N. Cidades-estado na Antiguidade Clássica. In: PINSKY, J. & PINSKY, C. B. (Org.) História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003, p. 29-47. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

33

GILVAN VENTURA DA SILVA

LACAZE, J. P. A cidade e o urbanismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. LEAKEY, R. A origem da espécie humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2004. LEICK, G. Mesopotâmia, a invenção da cidade. Rio de Janeiro: Imago, 2003. MENDES, N. M. Roma republicana. São Paulo: Ática, 1988. POLLOCK, S. Ancient Mesopotamia. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. ROYO, M.; GALINIÉ, H. A arqueologia à conquista da cidade. In: BOUTIER, J.; JULIA, D. Passados recompostos. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 1998, p. 261-268. SENNETT, R. Carne e pedra. Rio de Janeiro: Record, 2006.

34

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECO-INDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V e IV a.C.) Fábio Vergara Cerqueira

Instrumentos musicais na Magna Grécia e iconografia da cerâmica ápula O objetivo desse texto é analisar a iconografia dos vasos ápulos de figuras vermelhas produzidos entre o final do século quinto e o começo do século terceiro. Trata especificamente de cenas que representam instrumentos musicais. Estas cenas possuem ora caráter mitológico, ora caráter cotidiano, e, às vezes, uma mistura entre o mítico e a vida diária. Os instrumentos musicais abrangidos por este estudo incluem percussão (como o týmpanon e o assim chamado sistro ápulo), sopro (como o aulós, a sálpinx e a sўrinx) e cordas (lýra, bárbitos, cítara e harpa). A ponta inicial do arco temporal estudado inicia-se no período clássico médio, no último terço do século quinto, quando a pintura de vasos com figuras vermelhas foi introduzida no Sul da Itália, sob a influência dos colonos atenienses de Thourioi. Abordo o período em que as cidades coloniais gregas (apoikíai) perderam a sua hegemonia política, militar e cultural sobre o território da Magna Grécia. Na segunda metade do século quarto, o Sul da península itálica foi posto sob o controle local de povos da Lucânia, Campânia, Paesto e Apúlia (onde viviam os messápios, peucécios e dáunios). A cidade de Tarento, bem como Régio e Nápoles, foram as únicas cidades gregas que mantiveram sua soberania regional na Itália meridional (Estrabão, 6.1.2), preservando a proeminência cultural e econômica que lhes assegurou papel de destaque na indústria da cerâmica. O arco temporal estende-se até o primeiro terço do século terceiro, quando encerrou-se a produção de cerâmica ápula pintada, em decorrência da decadência de Tarento provocada pelas Guerras Púnicas e pela invasão romana. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

35

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Estudo aqui especificamente a região da Apúlia, também conhecida como Japígia, localizada na porção sudeste da Península Itálica, limitada a Leste pelo Mar Adriático e a Sul pelo Mar Jônico, onde os espartanos haviam fundado a apoikía de Tarento, que desempenhou um importante papel, no século quarto, na política, filosofia, economia, cultura e produção oleira. A região se dividia entre três micro-regiões nos século quarto e terceiro: Messápia, na Península do Salento, Peucécia, na média Apúlia, e Dáunia, mais ao Norte (Mapa 1). Mapa 1: Magna Grécia: Campânia, Lucânia, Apúlia (Tarento, Messápia, Peucécia e Dáunia)

Durante o século quinto as antigas populações da Japígia conviveram com a incursão de novos grupos migratórios itálicos (os sabélicos). Entre o final do século quinto e começo do século quarto, povos nativos da região travaram conflitos militares com Tarento, o que resultou no enfraquecimento do 36

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

domínio grego na área. Os povos ápulos praticaram intensas trocas comerciais com os atenienses ao longo do século quinto e primeira metade do século quarto, representando um forte estímulo externo no sentido da helenização A partir de meados do século quarto, as elites locais experimentaram um notável enriquecimento, que pode ser testemunhado por meio das construções sepulcrais e do crescimento de estabelecimentos urbanos. A cultura regional presente na cerâmica ápula revela um processo de transculturação, com miscigenação entre gregos e nativos e com o nascimento de uma nova cultura (LEPORE, 2000, p. 175-195; DE JULIIS, 1996, p. 263-298).

O mundo clássico e o mundo colonial. Centro e periferia. Aculturação e transculturação. Ao abdicarmos do paradigma etnocêntrico “clássico” e assumirmos uma perspectiva pós-colonial, vemos como o mundo colonial coloca desafios importantes para a sua compreensão: de um lado, as relações entre a Grécia “metropolitana” e os gregos das cidades coloniais (apoikíai); de outro, as relações, no mundo colonial, entre os habitantes das cidades coloniais gregas e as várias populações nativas; e, por último, mas não menos importante, as relações entre as sociedades indígenas. Nosso foco volta-se agora para o ponto de vista dos gregos coloniais, para o ponto de vista dos não gregos que interagiam com os gregos e com a cultura grega, e, finalmente, o ponto de vista da nova realidade que emergiu da interação entre os gregos coloniais e os nativos. O estudo da iconografia ápula, que corresponde a mais de dez mil vasos conservados, torna possível reunir um material empírico muito rico e numericamente compatível para se pensar questões teóricas relevantes no debate moderno das Ciências Sociais, marcadas pela influência do pensamento pós-colonial e pós-moderno, que inspirou posições anti-etnocêntricas comprometidas com a heterogeneidade e o pluralismo. Olhamos, neste estudo, as relações entre os gregos e os mundos indígenas sob uma perspectiva intercultural, inspirada no conceito de transculturação (ORTIZ, 1968; DOMÍNGUEZ, 1984, p. 31-32), rejeitando o caráter vetorial PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

37

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

do conceito de aculturação (no nosso caso, helenização). O modelo teórico da aculturação, atualmente criticado, orientou uma parte significativa da arqueologia da Magna Grécia entre os anos 1970 e 1990. Podemos defini-lo como uma “[...] concepção de cultura material como um indicador passivo de etnicidade. Este modelo é baseado no pressuposto de que a adoção, por parte de um grupo étnico, de itens materiais de outro grupo, envolve também a adoção dos traços culturais, acarretando na gradual perda da identidade étnica original do grupo que está adotando a cultura material forânea. Tratase, assim, de um modelo unidirecional, que considera somente a perspectiva do grupo politicamente dominante” (SYMANSKY, 2009, p. 3). O historiador italiano Ettore Lepore (2000, p. 53-95) apontou, nos anos 1980, as dificuldades que o conceito de aculturação trouxe para a compreensão do mundo colonial, criticando assim o conceito de helenização, do mesmo modo como atualmente Richard Hingley (1996) o faz com relação ao conceito de romanização. Tomamos a definição de transculturação delineada por Fernando Ortiz como um paradigma para se pensar as relações interculturais entre gregos “metropolitanos”, gregos coloniais e populaçõers nativas, porque configura um horizonte de negociações, resistência e reformulações identitárias sincréticas: Toda mudança cultural, […] toda transculturação, é um processo no qual sempre se dá algo em troca do que se recebe (…). É um processo no qual ambas as partes da equação resultam modificadas. Um processo no qual emerge uma nova realidade, composta e complexa: uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem tampouco um mosaico, mas sim um fenômeno novo, original e independente (ORTIZ, 1968, p. XIII).1

Parece-me adequado transportar as palavras de Ortiz do contexto caribenho do século dezesseis para o contexto da Magna Grécia do século quinto e quarto a.C.: “[...] ‘foram dois mundos que reciprocamente

1



38

“Todo cambio de cultura, […] toda transculturación, es un proceso en el cual siempre se da algo en cambio de lo que se recibe […]. Es un proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas. Un proceso en el cual emerge una nueva realidad, compuesta y compleja: una realidad que no es una aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un mosaico, sino un fenómeno nuevo, original e independiente.” (ORTIZ, 1968, p. XIII).

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

se descobriram e entrechocaram’, e deste modo deram origem (...) a situações novas na convivência entre aborígenes e europeus” (ORTIZ apud DOMÍNGUEZ, 1984, p. 31-32)2. Ou, poderíamos dizer, a coexistência entre gregos e não gregos, resultando em uma identidade híbrida (cf. HALL, 1996). Os instrumentos musicais estão representados em um grande número de vasos ápulos (em torno de 10%), o que possibilita uma análise sistemática com o objetivo de verificar os elementos étnicos presentes nas representações iconográficas, permitindo que se produza uma reflexão sobre as diferentes influências; de elementos culturais de origem grega, de origem indígena ou originados no processo local de transculturação entre gregos e nativos. Historiadores e arqueólogos, desde a década de 1970, se voltaram progressivamente para as relações entre gregos e não gregos (PONTRANDOLFO, 1990; DESCOEUDRES, 1990; MAIURI, 1971), até mesmo nos estudos sobre artes figuradas (ORLANDINI, 1971). Estes trabalhos mostram uma perspectiva globalizante da Magna Grécia, incluindo o compromisso com o estudo das relações interétnicas no mundo colonial, vendo o não grego não mais como um nativo passivo diante da helenização (LAMBOLEY, 1996; GRECI, 1992; CARRETELLI, 1996; ANTONETTI, 1996). De acordo com as palavras de Margo Schmidt (1996, p. 447): Nas últimas décadas, a geração atual de pesquisadores, particularmente italianos, foi capaz de fazer avanços significativos no sentido de obter um foco propriamente nos povos nativos. Nesse sentido, a questão histórica da recepção cultural torna-se um problema central. Os vasos italiotas assumem interesse particular quando vistos em um contexto de troca recíproca, e seu significado histórico torna-se mais crítico, em prol de nossa melhor compreensão da estrutura altamente complexa que foi a Magna Grécia, a qual deve muito de sua natureza específica ao fato de ser enraizada na península itálica.3

2



“[...] ‘fueran dos mundos que recíprocamente se descubrieron y entrechocaron’, y de este modo dieran origen […] a situaciones nuevas en la convivencia de aborígenes e europeus”.

3



“Over the last few decades the present generation of scholars, particularly of Italians, has been able to make significant advances toward obtaining a proper focus of the native peoples. In this sense, the historical question of cultural receptiveness becomes a central issue: Italiot vases assume particular interest when seen in the context of reciprocal exchange, and their historical significance becomes more critical for our better understanding of the highly complex structure that is Magna Graecia, which owes much of its specific nature to its been rooted in the Italian peninsula” (SCHMIDT, 1996, p. 447).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

39

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Os instrumentos musicais. As diferentes tradições organológicas na cultura musical ápula Os instrumentos musicais representados na iconografia da cerâmica ápula compreendem tanto instrumentos gregos tradicionais, no sentido de trazidos pela tradição cultural grega colonizadora, cuja morfologia conhecemos muito bem da iconografia ática, quanto instrumentos regionais do Sul da Itália (DI GIULIO, 1988, p. 119), o que sugere a ocorrência de um processo cultural de sincretismo musical entre tradições gregas e tradições locais. Entre os primeiros, poderíamos destacar a lýra, a kithára e o bárbitos; entre os instrumentos locais, deveríamos lembrar o týmpanon, o sistro ápulo e a cítara retangular. O primeiro estudo completo sobre a iconografia ápula dos instrumentos musicais é a dissertação de Di Giulio sobre os instrumentos musicais do Salento, datada de 1982, e sintetizada em seu artigo Iconografia musicale nell’Arte Apula (1988). Textos importantes sobre o assunto foram publicados nos últimos três anos. Daniela Castaldo (2009) aborda a música em Tarento, enquanto Annamaria Di Giglio (2009) dedica-se aos instrumentos de percussão. A exposição La musica nella Japigia di Aristosseno (D’AMICIS; TEMPESTA, 2009), produzida pela Universidade de Lecce e apresentada ao público no Museo Castromediano, em Tarento, conferiu destaque regional ao assunto, mostrando o mundo greco-messápico completamente permeado pela música. Absolutamente inovadora é a organização sistemática de dados arqueológicos concernentes a vestígios de instrumentos musicais feita por Angela Bellia (2010, p. 96-98, n. 34), que corroboram a disseminação do bárbitos na Itália e apontam ainda uma antiguidade, mais recuada do que se supunha, do uso do chamado sistro ápulo (BELLIA, 2011), recomendando ainda que se descarte a identificação do sistro com a platagē de Arquitas de Tarento (BELLIA, 2010, p. 93). As singularidades regionais podem ser notadas na existência de tipos especiais de instrumentos (como o sistro) e variações organológicas (como ocorrem com o týmpanon, a harpa e a cítara). Os týmpana representados na cerâmica ápula eram muito mais incrementados do que aqueles figurados nos potes áticos. São quase um instrumento novo: as membranas eram ornadas com motivos geométricos concêntricos ou florais e com pontos; fitas 40

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

decorativas pendiam do pandeiro; às vezes parecem ter pequenos guizos; seu tamanho varia, desde muito pequenos até bastante grandes, atingindo em média 60cm de diâmetro, tamanho incomum na cerâmica ática. Conforme Di Giulio (1991, p. 6), a originalidade do týmpanon ápulo “demonstra um nível de independência cultural da população indígena” (Figuras 1 e 2)4. Figura 1 – Týmpanon ático

Figura 2 – Týmpanon ápulo

4



“[…] demonstrates a level of cultural independence of the indigenous population.”

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

41

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Outra variação organológica ápula é a cítara retangular, muito diferente da kithára trapezoidal figurada na iconografia ática, chamada Asia e usada na música de concerto. Este instrumento veio a se tornar comum no mundo greco-romano e talvez possa ser identificado como o nablas (lat. nabilium ou nablium), cuja origem na Itália meridional pode resultar de antigos contatos com culturas oriundas do Leste, como fenícios ou cartagineses5. Algumas diferenças morfológicas são os braços retos e a barra harmônica plana, no lugar da caixa de ressonância pentagonal típica da kithara (Figuras 3 e 4). Figura 3 – Representação ática da kithára

Figura 4 – Representação ápula da cítara

5

42

O nome nablas vem de uma palavra grega para designer uma forma de harpa hebraica, que possuía forma parecida. Palavras relacionadas existiam também no aramaico e no hebreu. Essa forma de instrumento, entre os gregos, teria origem em Posidônia, na Magna Grécia (Ath. IV, 175. Estrabao I.471), que provavelmente o teria recebido a partir do contato com uma tradição organológica oriunda do Oriente Médio. Du Cange, Charles du Fresne [1610-1688]. Glossarium ad scriptores mediae et infimae Latinitatis, Paris: Didot Fratres, 1850: “Nabilium erat phoenicium organum lirae vel citharae símile”. Josephus, Ant. lib. vii. cap.: “Alguns instrumentos musicais têm nomes bárbaros, como a nabla e a sambuca, o bárbitos, a mágadis e muitos outros”.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

O assim chamado ‘sistro ápulo’ é um tipo de instrumento completamente ausente do registro iconográfico e literário da Grécia metropolitana. Era um instrumento de percussão formado por duas hastes, conectadas por um número variado de travessas, com pequenos sinos e guizos nas extremidades que soavam quando chocalhados. Não temos condições de determinar com precisão a sua denominação, apesar de que alguns autores tendem a identificá-lo com a platagē mencionada por Arquitas de Tarento (SMITH, 1976, p. 137). Alguns arqueólogos preferiram denominá-lo xilofone (TRENDALL, 1982; 1978), baseados em uma aparente homologia morfológica dada pelo seu formato tipo escada; já outros o denominam ‘sistro ápulo’, numa analogia formal ao instrumento egípcio de Hathor e Ísis, e baseados na suposição de que o instrumento seria de origem ápula, “autóctone”, em razão da frequência com que é retratado na cerâmica regional. Estudos recentes, baseados em achados arqueológicos do Sul da Itália e em testemunhos iconográficos similares da Mesopotâmia, indicam, todavia, que o sistro seria de origem oriental e não autóctone, e que já era conhecido na Sicília e Itália meridional (especificamente na Calábria) há alguns séculos, graças ao comércio de mercadorias orientais, mantido provavelmente com os fenícios (BELLIA, 2011). Bellia argumenta, por esta razão, que deveríamos abandonar a denominação de “sistro ápulo” e passar a denominá-lo como “sistro retangular”, levando-se em conta apenas sua forma. Esta acepção enfraquece ainda mais as teorias que ligavam sua origem ao culto a Isis (DI GIULIO, 1988, p. 116-17) ou Afrodite (SMITH, 1976, p. 137). Ver figura 5. Figura 5 – Sistro ápulo

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

43

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Outra singularidade pode ser observada na representação das harpas, uma vez que o mais comum é a pēktís, muito pouco usual na iconografia ática, onde o mais frequente é o trígōnon, novamente sugerindo uma influência direta do Oriente (Figura 6). Há um outro pormenor, de caráter ornamental, que diferencia a confecção das harpas ápulas: diferentemente dos modelos áticos, a pēktís ápula, na forma como é representada na pintura dos vasos, possui sempre um ornato cisneforme na barra externa do instrumento, seja compondo o conjunto da barra, seja como um acabamento superior. Este dado ornamental é, sem dúvida, uma marca de etnicidade, cujo significado particular liga-se provavelmente à sua inserção em contextos amorosos, o que se verifica na iconografia deste instrumento no repertório ápulo. É possível se pensar, neste aspecto, que se processe, para marcar diferença com relação à tradição ática, uma recepção e recriação local de um elemento da tradição organológica próximo-oriental, conservado na memória cultural de longa duração (ASSMANN, 2008, p. 17-50): a inclusão de ornatos em forma animal em partes do instrumento (DUCHESNE-GUILLEMIN, 1984, p. 129-142), como é o caso das barras cisneformes das harpas ápulas. Figura 6 – Representação ática do trígōnon

44

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

Figura 7 – Representação ápula da pēktís, com detalhe cisneforme

A ocorrência desta influência oriental direta sobre a forma que alguns instrumentos assumiram na cultura musical da Sicília e Itália meridional, apontada hipoteticamente como origem do sistro e da cítara retangular, sustenta-se em achados arqueológicos que evidenciam trocas com a cultura material oriental como um caminho alternativo de interculturalização, diferente dos contatos mantidos pelo Sul da Itália e Sicília com o mundo grego (POUZADOUX; PRIOUX, 2009). Deste modo, além da helenização, incidiria outro processo intercultural sobre a transculturação regional ápula, qual seja, a orientalização. Podemos analisar o tratamento étnico da representação dos instrumentos de corda na iconografia ápula. No estilo ápulo recente, entre 430 e 370 a.C., a representação da lýra era predominante entre os cordófonos, demonstrando a força da identidade dos colonizadores gregos nas escolhas temáticas dos pintores de vasos áticos, levando-se em conta que a lýra era considerada o instrumento nacional tipicamente grego (CERQUEIRA, 2011, p. 192; 199203). Nos estilos ápulo médio e tardio, entre 370 e 280 a.C., as representações da lýra praticamente desaparecem. São substituídas, numericamente, pela representação da kithára e da cítara retangular regional. No entanto, a análise do repertório iconográfico deste período mostra um tratamento diferenciado destes dos instrumentos: a kithára aparece nas cenas mitológicas, associada principalmente a Apolo (Figura 8) e Orfeu PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

45

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

(Figura 9), enquanto a cítara retangular aparece em cenas relativas à vida diária (Figura 10) ou às práticas e crenças funerárias locais (Figura 11). O pintor de vasos de forma muito clara demarca a fronteira entre a cultura grega e a cultura ápula através do contexto de representação da kithára tradicional e da cítara retangular. Figura 8 – Apolo com kithára

Figura 9 – Orfeu com kithára em contexto funerário

46

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

Figura 10 – Jovem afinando cítara retangular, em cena amorosa

Figura 11 – Cítara retangular em contexto funerário

Considerações finais Assume-se hoje que a influência cultural deriva não somente da presença física do colonizador, mas também da presença de traços tangíveis e intangíveis de diferentes culturas, com as quais os nativos mantinham trocas comerciais, e que esses elementos tornaram-se importantes estímulos para as transformações culturais (GRAELLS I FABREGAT, 2008; GUZZO, 2008, p. 43). Devemos lembrar que a Apúlia manteve contatos comerciais com o Mar PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

47

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Egeu desde o período micênico, particularmente na península do Salento, e que a costa do Mar Adriático foi uma porta aberta para intercâmbios intensos, inicialmente com a Ilíria, e, mais tarde, com Corinto e Atenas, entre os séculos sétimo e quarto. Além disso, o contato com o Oriente Próximo, principalmente através do comércio com os fenícios, existiu desde há muito tempo. Estas trocas trouxeram diferentes estímulos interculturais, tanto helenizantes quanto orientalizantes, assimilados pelas elites locais, paralelamente aos contatos interculturais com as cidades coloniais, como Tarento (LEPORE, 2000; DE JULIIS, 1996), criando uma nova cultura, resultante do sincretismo com as tradições locais. Temos então configurado um cenário de trocas interculturais muito propício às relações interétnicas. Este cenário interferia diretamente sobre a constituição de identidades híbridas, que recorriam a estoques de memória, de curta e longa duração, que, consciente e inconscientemente, receberam e retrabalharam tradições musicais distintas, que se faziam presentes na cultura musical do mundo colonial ápulo. Estas tradições ressonavam nas regiões de presença ou influência direta grega (como a cidade de Tarento e seu entorno), assim como nas regiões com predomínio de populações nativas (como a Messápia, a Peucécia e a Dáunia). Essas sociedades locais, relativamente helenizadas, continuavam a cultivar valores e gostos tradicionais, ao mesmo tempo em que, no contato com gregos e outros estímulos externos, geravam manifestações culturais novas, originais. Neste ambiente cultural, a representação iconográfica dos instrumentos musicais, na cerâmica ápula, foi claramente utilizada como um sinalizador étnico, no âmago de um acentuado sincretismo multiétnico. No contexto que se consolidou a partir de meados do século IV, em que as elites coloniais gregas das apoikíai haviam perdido a hegemonia política, militar e, até mesmo, cultural, sobre a Itália Meridional, estas representações evidenciam a força das tradições locais, bem como dos novos produtos culturais gerados a partir do diálogo transcultural entre memórias gregas e indígenas. Diferentemente, a representação dos instrumentos musicais na primeira fase da cerâmica ápula, sobretudo entre 440 e 400 a.C., expressava a assimilação (ou imposição) de valores culturais ligados ao colonizador grego, no período em que as elites citadinas coloniais gregas exerciam domínio sobre a região. 48

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

Foi assim que a lýra grega cedeu lugar à cítara retangular ápula; que o trígōnon foi preterido, em favor da pēktís, que ganhou ornamentação cisneforme; que o týmpanon foi incrementado e virou expressão da popularidade regional do dionisismo; que se disseminou o uso do sistro retangular, já conhecido no Sul da Itália e Sicília desde o século VIII, impondo-se quase como um símbolo cultural ápulo; que a tradicional kithára grega, chamada Asia, permaneceu como instrumento da música erudita, de concerto, associado a excelsos valores da cultura grega, que continuavam a ser prestigiados – sobretudo a música, que encontrava em Apolo e Orfeu citaredos o símbolo de seu requinte e respeitabilidade.

Referências Documentação iconográfica Figura 1 Enócoa (khoûs). Figuras vermelhas. Sem atribuição. Ref.: Deubner, 1959, p. 244, nota 3, pr. 31.3. Cerqueira, 2001, cat. 387. Atenas, Museu Nacional, 1222. Último quartel do século V. Descrição: Cena de kômos infantil realizado durante as Antestérias, com meninos tocando instrumentos. Figura 2 Cratera em sino. Painter of the Genova 2754 Ref.: Trendall, 1989, n. 154-55. Genova, 2753. Ca. 374-350 a.C. Descrição: Mulher com týmpanon e jovem com bandeja, no interior do gineceu. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

49

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Figura 3 Ânfora. Figuras vermelhas. Pintor de Berlim. (ARV2 197/3) Ref.: Cerqueira, 2001, cat. 405. Laurens, 1984, p. 144-5, notas 12-14. Nova Iorque, Metropolitan Museum of Art, 56.171.38 (Fletcher Fund). Em torno de 490. Descrição: Jovem citaredo canta, acompanhando-se com a kithára. Figura 4 Esquifo. Ápulo tardio. Estilo “di Gnathia”. Ref.: De Juliis, 1996, n. 247. Bari, Museo Archeologico di Bari. Final do século IV. Descrição: Cítara retangular. Figura 5 Lécito. Ápulo Médio. Estilo Simples. Ascensão do Estilo Barroco. Group of Ruvo 425. Entre o Ilioupersis Painter e o Licurgus Painter. Ref.: Trendall, 1989, n. 147. Trendall, Cambitoglou, 1978, pr. 144, n. 15/44a. Essen, Folkwang Museum, 74.158 A 3. H. Froning, Griechische und italische Vasen, pp. 214-9, n. 89. Meados do século IV. Descrição: Figura feminina, flanqueada por outras duas mulheres, toca sistro ápulo. Figura 6 Lebete nupcial. Figuras vermelhas. Pintor do Banho. (ARV2 1126/6) Ref.: Bundrick, 2000, cat. 75, fig. 9. Nova Iorque, Metropolitan Museum, 16.73. Ca. 430-20. Descrição: Cena de epaulía (entrega de presentes à noiva). Eros e esposa com harpa.

50

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

Figura 7 Pelica. Figuras vermelhas. Ápulo Tardio. Circle of the Darius Painter and Underworld Painters (A) Larger vases. Vases closely associated with the Underworld Painter. The Tarrytown Group. Ref.: Trendall, Combitoglou, 1982, pr. 205.5-6, n. 18.357, Nápoles, coleção privada, 23. Ca. 330-20 a.C. Descrição: cena amorosa, com jovem apoiado em bacia segurando cisne, Eros sobre bacia brinca com o cisne. Mulher jovem, sentada, tocando pēktís, cuja barra externa possui forma de cisne. Figura 8 Fragmento. Ápulo recente (fase final). The Development of the Ornate Style. Early Ornate Vases. The Black Fury Painter Ref.: Trendall, Combitoglou, 1978, pr. 53.4-5, n. 7.8 Nova Iorque, 20.196, Rogers Fund. 386-60 Descrição: Apolo citaredo em cena mitológica do ciclo troiano (no outro fragmento: Hermes e Príamo suplicante) Figura 9 Ânfora. Ápulo tardio. Ganymede Painter. Ref.: Schmidt, 1996, n. 214. Basileia, Antikenmuseum, inv. 540. Ca. 330-20 a.C. Descrição: Contexto funerário. Orfeu com kithára, no interior de um naikos, juntamente à representação de ancião morto, o qual segura na mão um rolo de papiro. Figura 10 Pelica. Ápulo Médio. The Licurgus Painter and his Circle. Close associates of the Lycurgus Painter. (ii) Vases Connected in style. Ref.: Trendall, 1978, pr. 156.1-2, n. 16.57. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

51

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

Geneva, Chamay Coll. 350-40 a.C. Descrição: Cena amorosa, com dois pares enamorados. Ao centro, rapaz sentado, ao lado da jovem pretendida, afinando uma cítara retangular. Figura 11 Cratera com volutas. Ápulo tardio. Painter of Copenhagen 4223. Ref.: Trendall, 1989, n. 189. Geneve, HR 69. Último terço do século IV. Descrição: Cena funerária. No interior de um naiskos (pequeno templo funerário), uma cítara retangular, suspensa no setor superior esquerdo, pouco acima do ombro direito da representação juvenilizada do morto (figura com retoque branco), acompanhado por seu cão, apoiado sobre uma bacia. Personagens no entorno do naiskos trazem oferendas e homenagens ao morto.

Obras de apoio ANTONETTI, C. Il dinamismo della colonizzazione greca. Napoli: Loffredo Editore, 1996. ASSMANN, Jan. Religión y memoria cultural. Diez estudios. Colección Estudios y Reflexiones, Buenos Aires: Lilmod, Libros de la Araucaria, 2008. BELLIA, A. A female musician or dancer of Iron Age in Southern Italy? AMS Acta. Contributi di recerca dell”Alma Mater Studiorum, Università di Bologna, 2011 (preprint). BELLIA, A. Considerazioni sugli strumenti musicali e oggetti sonori nell’Italia meridionale e in Sicilia dall’età arcaica all’età ellenistica. Sicilia Antiqua. An International Journal of Archaeology, n. 7, p. 79 – 118, 2010. BUNDRICK, S.D. Expression of harmony: Representation of female musicians in fifth-century athenian vase painting. (disseração) Michigan: UMI – Dissertation Service, 2000 (1998). 52

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

CARRETELLI, G.P. (ed.) The western Greeks. Classical Civilization in the Western Mediterrenaen. London: Thames and Hudson, 1996. CASTALDO, D. Musica a Taranto in età ellenistica. In: La Musa dimenticata. Aspetti dell’esperienza musicale greca in età ellenistica. Convengo di studio Pisa, Scuola Normale Superiore 21-23 settembre 2006. Eds. Maria Chiara Martinelli, Francesco Pelosi, and Carlo Pernigotti. Pisa: Edizioni della Normale, 2009, p. 271-283. CERQUEIRA, F.V. A música grega antiga: origem, identidade e etnicidade. In: TACLA, A.B.; MENDES, N.M.; CARDOSO, C.F.; LIME, A.C.C. (org.) Uma trajetória na Grécia antiga. Homenagem à NeydeTheml. Rio de Janeiro: Editora Apicuri, coleção Aedos, 2011, p. 187- 208. CERQUEIRA, F.V. Os instrumentos musicais na vida diária da Atenas tardo-arcaica e clássica (540-400 a.C.). O testemunho dos vasos áticos e de textos antigos. 3 vols. Tese de doutoramento. São Paulo, Universidade de São Paulo. 2001. D’AMICIS, A.; Tempesta, A.L. (org.) La musica nella Japigia di Aristosseno. Catálogo de Exposição. Lecce: Università di Lecce, Museo Provinciale Castromediano, MoviMedia, 2009. DE JULIIS, E. Magna Grecia: l’Italia Meridionale dalle origini leggendarie alla conquista romana. Bari: Edipuglia, 1996. DESCOEUDRES, J. P. (ed). Greek colonists and native populations. Proceedings of the First Australian Congress of Classical Archaeology. Oxford: Clarendon Press, 1990. DEUBNER, L. Attische Feste. Hildesheim: Gerog Olms Verlagsbuchhandlung, 1959. DI GIGLIO, A. Gli strumenti a percussione nella Grecia antica. Logos 10. Firenze: Le Cáriti, 2009. DI GIULIO, A.M. Iconografia degli strumenti musicali nell’arte apula. In: GENTILI, B.; PRETAGOSTINI, R. La Musica in Grecia. Bari: Laterza, 1988, p. 108-120. DI GIULIO, A.M. The frame drum as a Dionysian Symbol in Scenes on Apulian Pottery. RidIM Newsletter, XVI, p. 2-7, 1991. DOMÍNGUEZ, L. El Yayal: sitio arqueológico de transculturación indohispanica. In: Domíngues, L. Arqueología colonial cubana. Dos estudios. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1984, p. 29-97. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

53

FÁBIO VERGARA CERQUEIRA

DUCHESNE-GUILLEMIN, M. L’animal sur la cithare, nouvelle lumière sur l’origine sumérienne de la cithare greque. Acta Iranica, 23, p. 129-142, 1984. GRAELLS I FABREGAT, R. Análisis de las manifestaciones funerarias in Catalunya durante los ss. VII y VI a.C. Sociedad y cultura material: la asimilación di estímulos mediterráneos. Lleida: Universitat di Lleida, 2008 (tese de doutorado). GRECI, E. Archeologia della Magna Grecia. Roma: Laterza, 1992. GUZZO, G. Do clássico na periferia. In: MARQUES, Luiz (org.). A fábrica do Antigo. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008, p. 41-47. HALL, S; Gay, P. du. Questions of Cultural Identity. London: Sage Publications, 1996. HINGLEY, R. The ‘legacy’ of Rome: the rise, decline and fall of the theory of Romanization. In: Webster, J.; Cooper, N. (eds.). Roman Imperialism: PostColonial Perspectives. Leicester Archaeological Monographs, n. 3. Leicester, 1996, p. 35-48. LAMBOLEY, J.-L. Les Grecs en Occident. Paris: Ed. Cedes, 1996. LAURENS, A.–F. Catalogue des Collections. II Céramique attique et apparenté. Société Archéologique de Montpellier. 1984. LEPORE, E. La Grande Grèce: aspect et problèmes d’une ‘colonisation’ ancienne. Quatre conference au Collège de France (Paris, 1982). Études V, Centre Jean Bérard, Paris: De Boccard; Bari: Edipuglia, 2000. MAIURI, A. Greci e Italici nella Magna Grecia. Atti del Convegno di Studi sulla Magna Grecia 1, 1971, p. 1-28. ORLANDINI, P. Aspetti dell`arte indigena in Magna Grecia. Atti del Convegno di Studi sulla Magna Grecia, 11, 1971, p. 273-308. ORTIZ, F. Contrapuento cubano del tabaco y el azúcar. La Habana: Consejo Nacional de Cultura, 1968. PONTRANDOLFO, A. Greci e indigeni. In: Un secolo di ricerche in Magna Grecia, Atti del XXVIII Convegno di studi sulla Magna Grecia, Napoli, 1990, p. 329-350. POUZADOUX, C.; Prioux, Évelyne. Orient et Occident au miroir de l’Alexandra et de la céramique apulienne. In: Cusset, Ch., Prioux, É. (éd.). Lycophron, éclats d’obscurité. Colloque international, Lyon-Saint-Étienne (18-20 janvier 2007), Saint-Étienne, 2009, p. 451-485. 54

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

IDENTIDADE CULTURAL E RELAÇÕES INTERÉTNICAS GRECOINDÍGENAS NA MAGNA GRÉCIA. O SENTIDO DA ICONOGRAFIA DOS INSTRUMENTOS MUSICAIS NA CERÂMICA ÁPULA (SÉCULOS V E IV A.C.)

SCHMIDT, M. Southern Italian and Sicilian Vases. In: Carretelli, G.P. (ed.) The western Greeks. Classical Civilization in the Western Mediterrenaen. London: Thames and Hudson, 1996, p. 243-256. SMITH, J.K. Funerary Symbolism in Apulian Vase-painting. Los Angeles: University of California Press, 1976. SYMANSKI, L.C.P. Arqueologia histórica no Brasil: uma revisão dos últimos vinte anos. In: Morales, W. F.; Moi, F. P. Cenários Regionais de uma Arqueologia Plural. São Paulo: Annablume/Acervo, 2009, 01-29. TRENDALL, A.D. Red Figure Vases of South Italy and Sicily: A Handbook. London, Thames and Hudson, 1989. TRENDALL, A.D.; Cambitoglou, A. The Red-figured vases of Apulia. Volume I. Early and Middle Apulian. Oxford: Clarendon Press, 1978. TRENDALL, A.D.; Cambitoglou, A. The Red-figured vases of Apulia. Volume II. Late Apulian. Oxford: Clarendon Press, 1982

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

55

.

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR Manuela Martins

Introdução Este texto pretende fornecer uma leitura do processo de romanização ocorrido na região do NO peninsular, tendo por base os mais recentes resultados da investigação arqueológica, mas também o contributo da epigrafia e das revisões críticas das fontes literárias disponíveis para a região em análise. Pretendemos centrarmo-nos na temática da mudança, abordando algumas das transformações mais substantivas ocorridas num período de tempo de cerca de dois séculos, situado entre finais do século II a.C. e finais do século I d.C. Trata-se de um período de crucial importância na evolução das comunidades indígenas do NO peninsular, que decorre entre o momento em que as mesmas tomam pela primeira vez contacto com tropas romanas, em 138-136 a.C., e a dinastia Flávia, quando se consolida a estrutura organizativa da Hispânia romana, desenhada por Augusto, que se manterá vigente até à reforma de Diocleciano. O contexto espacial de análise contempla várias escalas, compreendendo, num primeiro momento, todo o NO peninsular, no qual pretendemos sublinhar a diversidade cultural pré-romana e demarcar os diferentes territórios identitários que vão sendo referenciados pelo poder romano, à medida que são militarmente controlados. Num segundo momento, a nossa análise incidirá sobre a região abrangida administrativamente pelo convento bracarense, para, finalmente, focarmos a nossa atenção no território dos Bracari, em cujo centro foi fundada a cidade romana de Bracara Augusta. Porque o território de análise é vasto, porque as identidades culturais são múltiplas e complexas e porque os poderes nem sempre se adivinham, escondidos que estão sob a polissemia das materialidades e das representações, PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

57

MANUELA MARTINS

forçoso é que rasguemos algumas “janelas de observação”, que nos facilitem a leitura do processo de mudança. O que muda e como, na organização do território e do povoamento, na negociação dos poderes entre as elites indígenas e a administração romana, ou na identidade das comunidades e dos indivíduos? Para o compreendermos necessitamos convocar as particulares características geográficas da região, bem como as diferentes entidades culturais que conformavam os territórios políticos das comunidades préromanas do NO peninsular, nos finais do I milénio antes da nossa era, uma vez que pretendemos valorizar o modo como as comunidades indígenas conformaram diferentes contextos identitários e estruturaram diferenciadas formas de organização sociopolítica. O paulatino contacto do poder romano com as populações do NO peninsular criará as condições para o desenvolvimento de uma assaz variabilidade de contextos favoráveis à mudança, que decorre em diferentes ritmos e envolve diversos interlocutores, revelando novos hábitos, necessidades e prerrogativas, intimamente ligadas ao protagonismo das elites indígenas, ou aos particulares interesses de Roma sobre a região. Assim, nossa narrativa procurará individualizar os territórios, as identidades e os poderes que foram influenciados pelos micro e macro processos que caraterizaram o processo histórico em análise, particularmente estimulante na negociação de novas identidades. Afinal, falamos de um período em que a área geográfica do NO peninsular foi sendo progressivamente inserida no âmbito romano, até à sua definitiva integração administrativa no Império Romano, na sequência da reorganização provincial da Hispânia, realizada no fim das guerras cantábricas.

Territórios, identidades e poderes indígenas 1. Quadro geral A região do NO peninsular, longe de constituir uma unidade geomorfológica, oferece múltiplas subunidades físicas que podem ser categorizadas em altas montanhas, zonas planálticas, interflúvios, terras 58

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

baixas, planícies aluviais e peri litorais, oferecendo um diversificado conjunto de paisagens e recursos que contribuíram para acentuar a diversidade cultural, económica e sociopolítica das populações protohistóricas. Assim, o NO apresenta uma geografia muito contrastante e fragmentada, que se contrapõe a um litoral mais homogéneo e ao mar, que jogou um importante papel no desenvolvimento da região, favorecendo a comunicação e oferecendo-se como o caminho mais fácil para a circulação de pessoas, objetos e ideias De facto, a costa ocidental das Astúrias tem mais semelhanças culturais com a região galaico bracarense do que com o interior da província de Pontevedra. Também as áreas litorais partilham entre si caraterísticas comuns, registando, simultaneamente, uma assinalável diferenciação cultural relativamente ao interior mais montanhoso (GONZÁLEZ RUIBAL, 2008, p. 907). Cabe igualmente sublinhar o papel estratégico do NO da península Ibérica como nó de articulação entre o Mediterrâneo e o Atlântico, algo que se encontra representado na antiquíssima “rota atlântica”, percorrida desde a Idade do Bronze, muito antes dos romanos a terem tornado no principal eixo de abastecimento dos exércitos estabelecidos no limes germânico e na Britânia. Tendo por base a epigrafia e as fontes greco-latinas é possível considerar que a matriz do povoamento pré-romano do NO peninsular é quase tão diversificada quanto a sua geografia, muito embora se destaquem duas grandes unidades étnicas, referenciadas pelos romanos como Astures e Galaicos, que se distinguem de outras formações, dispostas na sua periferia. De facto, a geografia populacional da região em análise é ela também uma realidade contrastante e fracionada, onde cabe distinguir os Astures Cismontanos dos Transmontanos, ou os Galaico Lucenses, distintos dos Bracarenses (BRAVO CASTAÑEDA, 2007, p. 50).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

59

MANUELA MARTINS

Figura 1 – geografia política pré-romana do NO peninsular de acordo com as fontes escritas e epigráficas

Astures e Galaicos integravam vários populi, referidos pelos geógrafos e historiadores da Antiguidade, sendo alguns identificados apenas nas fontes epigráficas, as quais têm permitido adensar a mancha do povoamento préromano do NO, graças à descoberta de novas inscrições. Apesar da diversidade do quadro étnico do NO peninsular, conhecido a partir da referenciação latina dos seus nomes, a ocupação pré-romana desta região foi tradicionalmente inserida na chamada “Cultura Castreja”, que teria no castro, ou povoado fortificado e na sua caraterística casa redonda de pedra, os seus elementos definidores. No entanto, as investigações realizadas nas últimas décadas têm demonstrado que os castros revelam uma forte heterogeneidade regional, em termos de topografia, de dimensão, bem como na sua organização interna. Algo que se prende com a história distinta de cada povoado, mas também com o papel que desempenharam no quadro geral da evolução das diferentes sub-regiões em que se integravam e com a identidade cultural das mesmas, quando confrontadas no contexto mais 60

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

amplo do território do NO ibérico. De facto, as investigações mais recentes permitiram constatar que os povoados fortificados da área meridional bracarense são mais antigos que os da Galiza e das Astúrias, remontando normalmente à Idade do Bronze, sendo substancialmente mais abundantes na área litoral e nas bordaduras dos vales que no interior mais montanhoso. Assim, o NO peninsular oferece paisagens culturais deveras diferenciadas, consoante o período histórico em análise, ou a área observada, que se têm vindo a precisar graças às investigações arqueológicas de âmbito regional. A diversidade cultural do NO peninsular acentua-se consideravelmente na II Idade do Ferro, sendo sobretudo percetível ao nível da arquitetura doméstica (AÝAN, 2008, p. 903-1003), que regista um acentuado polimorfismo regional e da produção cerâmica, que constitui um indicador deveras expressivo da variabilidade das formações sociais existentes na região (CARBALLO ARCEO; FÁBREGAS VALCARCE, 2006, p. 66-91). Na verdade, as diferenças registadas nos povoados, ao nível da habitação e da cerâmica, expressam identidades diferenciadas, às quais correspondem formas de organização distintas, bem como modos diferentes de estruturar o poder no seio das comunidades proto-históricas. Usando a cultura material de prestígio vários autores consideraram poder subdividir o NO peninsular em três grandes áreas de organização sociopolítica, que estariam representadas pelas chamadas “sociedades heroicas”, que ocupariam a região setentrional (PARCERO OUBIÑA, 2002), pelas “sociedades de casa”, que caracterizariam a área meridional e ocidental (GONZÁLEZ RUIBAL, 2006, p. 144-177) e as “sociedades segmentárias”, que ocupariam grande parte do território do interior da Galiza e as áreas montanhosas das Astúrias (SASTRE PRATS, 20012002, p. 213-248). Nas primeiras, os valores guerreiros, o gado e as joias, sobretudo os torques, constituiriam as principais formas de adquirir e sustentar o poder. Entre as segundas, que se desenvolvem sobretudo a partir do século II a.C., a unidade doméstica, representada pela casa, definiria o elemento fundamental na competição pelo poder, pois era nela que se invertia boa parte do capital social material e imaterial destas comunidades. Este era constituído por joias, bens de prestígio importados, decoração arquitetónica, mas, também, por terras, títulos, cargos, ou PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

61

MANUELA MARTINS

mesmo genealogias (GONZÁLEZ RUIBAL, 2008, p. 909). Finalmente, nas “sociedades segmentárias”, ou “rurais profundas”, regista-se uma prática ausência de bens de prestígio, sendo a arquitetura doméstica muito homogénea, não existindo práticas de investimento favoráveis à diferenciação social. Assim, a diversidade e fragmentação geográfica do NO peninsular parece ter correspondência em diferentes subunidades culturais, que representam, na prática, formações sociais com distintas identidades, que se foram consolidando ao longo do I milénio antes da nossa era, acabando por ser referenciadas pelos romanos, que estabeleceram uma clara distinção entre Galaicos e Astures. Figura 2 – unidade doméstica característica da citânia de Briteiros, com pátio lajeado

2. As subunidades regionais e culturais A região meridional e ocidental do NO ibérico, que integra o território português entre Douro e Minho e a faixa sul e ocidental da Galiza, distingue-se claramente dos restantes territórios mais interiores e 62

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

montanhosos. A sua identidade desenvolve-se desde a Idade do Bronze, acentuando-se com a continuidade dos contactos marítimos desta zona com o Mediterrâneo, favorecidos pela navegação atlântica, ao longo do I milénio a.C., mas sobretudo desenvolvidos na II Idade do Ferro (GONZÁLEZ RUIBAL, 2004, p. 289-290). Tais contatos estão bem documentados pelas cerâmicas púnicas e gregas e por outros artefactos de prestígio, bem como pelas cerâmicas romanas republicanas e neopúnicas presentes no registo arqueológico de numerosos povoados litorais (SILVA E PINTO, 2001, p. 232-233; GONZÁLEZ RUIBAL et al., 2007, p. 43-74). Com efeito, a região meridional e ocidental do NO, bem como o litoral da Galiza e da Corunha parecem ter conhecido contactos regulares com a área mediterrânica, facto que terá influenciado a sua evolução histórica e favorecido o particular desenvolvimento que conheceram no último século antes da nossa era, o qual está na origem de uma forma particular de organização sociopolítica, designada por González Ruibal (2006, p. 144-177) como “sociedades de casa”. Será nesta região que se regista o desenvolvimento de grandes povoados fortificados, com áreas compreendidas entre 2,5ha e 9ha, possuindo alguns dimensões ainda superiores (LEMOS, 2009, p. 128-131). A área abrangida por estes povoados corresponde a parte do território que será integrado no convento bracarense, mais concretamente à sua parte ocidental, coincidente com o atual território do Entre Douro e Minho e com o sul da província de Orense. Estamos perante verdadeiros oppida, que se desenvolvem a partir do século II a.C., atingindo a sua máxima expressão ao longo do século seguinte, oferecendo um modelo de organização interno particular, habitualmente designado por proto urbano. Muito embora alguns autores considerarem que este tipo de povoados representa já uma consequência da romanização (SASTRE PRATS, 2004, p. 99-110), que alguns consideram fazer-se sentir a partir das campanhas de D. Junius Brutus (QUEIROGA, 2007, p. 169-179), a verdade é que o seu desenvolvimento ocorre num contexto eminentemente indígena, precedendo claramente o controlo romano da região, que só se efetivará a partir de 19 a.C., uma vez terminadas as guerras cantábricas. Parece inclusivamente desajustado poder falar-se numa romanização anterior a Augusto, momento em que se começa a criar verdadeiramente uma identidade cultural imperial, PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

63

MANUELA MARTINS

conforme tem sido defendido, também, para outras regiões integradas no mundo romano (WOOLF, 1998). O registo arqueológico disponível, sobretudo o que se reporta a escavações mais recentes, permite situar o desenvolvimento dos grandes povoados tipo oppida, no contexto de um processo de profunda reorganização do povoamento e das estruturas de poder das comunidades indígenas da região meridional e ocidental do NO peninsular. A grande maioria desses povoados remonta as suas origens ao Bronze Final, tendo conhecido uma considerável expansão nos dois séculos que antecedem a transição da era, enquanto outros são fundados de novo. Em ambos os casos parece ter ocorrido uma integração de populações oriundas de outros castros, entretanto abandonados, como poderá ter acontecido com o povoado de Sanfins (SILVA, 1999). Em qualquer dos casos, a elevada concentração populacional referenciada nos oppida galaicos parece associar-se a práticas de sinecismo, fenómeno conhecido noutras regiões da Península Ibérica nos últimos dois séculos da República, o qual poderá constituir uma influência dos modelos de organização mediterrânicos (Curchin, 2004, p. 81). A emergência destes grandes povoados, que vão desempenhar o papel de lugares centrais, parece articular-se, igualmente, com a estruturação de um povoamento mais hierarquizado, com povoados maiores a controlarem outros mais pequenos instalados nos vales e dedicados sobretudo à prática agrícola (MARTINS et al. 2005, p. 284). Os oppida galaicos parecem colher paralelos em povoados similares reconhecidos noutras regiões temperadas da Europa, que se estruturaram pela mesma época, também eles associados a processos de concentração territorial, ao desenvolvimento de intercâmbios e à intensificação agrícola e artesanal (WOOLF, 1993, p. 224; COLLIS, 1996, p. 227). Os povoados de tipo oppida possuem sempre uma ampla visibilidade sobre o território envolvente, dispondo invariavelmente de um sistema defensivo complexo, normalmente com várias linhas de muralhas, que oscilam entre 3 e 5. Internamente apresentam uma estrutura viária ortogonal, mais ou menos desenvolvida, que divide o espaço em áreas habitacionais, ocupadas por unidades sociais de tipo familiar (LEMOS, 2009, p. 130-131). Frequentemente, essas áreas domésticas encontram64

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

se interligadas por pavimentos lajeados, que unificam entre si diferentes construções, funcionalmente diversificadas, sendo umas habitações, normalmente com vestíbulo, outras celeiros e outras espaços dedicados a atividades artesanais. Estes povoados oferecem ainda vários equipamentos públicos. Um dos mais característicos está representado pelos balneários dedicados a banhos rituais, bem representados na região bracarense, que integravam um forno, uma câmara de vapor, uma antecâmara e um pátio (Silva e Machado, 2007, p. 20-60; Lemos et al., 2008, p. 319-328). Este, normalmente lajeado, regista quase sempre a presença de reservatórios de água e de canalizações de abastecimento e drenagem. Um dos elementos característicos destas construções comunitárias está representado pelas “pedras formosas”, que se dispunham entre a antecâmara e a câmara de vapor, sendo normalmente ricamente ornamentadas. Outros edifícios de carácter público são as grandes casas do conselho, com bancos corridos em redor dos muros, referenciadas por Estrabão e identificadas em vários castros, sendo o exemplar de Briteiros, com 11m de diâmetro, o melhor conhecido. As características enunciadas estão bem representadas em inúmeros povoados1, muito embora se possam considerar como casos paradigmáticos a citânia de Briteiros, no concelho de Guimarães (LEMOS, 2009, p. 131) e a Citânia de Sanfins, em Paços de Ferreira, com mais de 15ha (SILVA, 1999), por serem os povoados mais extensamente escavados. A organização interna, a dimensão, a elevada concentração populacional, bem como o desenvolvimento de atividades artesanais, permitem considerar estes povoados como verdadeiras cidades, que se contrapõem às formações sociais segmentárias, características da região das Astúrias, que persistiram até à conquista romana (SASTRE PRATS, 2001).

1



Estas características estão presentes em vários povoados, entre os quais podemos referir Briteiros (Guimarães), Sanfins (Paços de Ferreira), Santa Luzia (Viana do Castelo), S. Julião (Vila Verde), ou S. Lourenço (Esposende) (LEMOS, 2009, p. 112-115).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

65

MANUELA MARTINS

Figura 3 – itinerário da campanha de D. Junius Brutus (138-136 a.C.) na área galaico bracarense e da incursão de J. Caesar a Brigantium (61/60 a.C.)

Sem dúvida que as particularidades dos povoados pré-romanos da área galaico bracarense constitui um desafio em termos explicativos, sendo tentador pensar que possam constituir o resultado de uma reorganização populacional ocorrida na sequência da expedição que D. Junius Brutus realizou à região, entre 138-136 a.C., a qual não terá ultrapassado o rio Minho (ALARCÃO, 1988, p. 8-9; FABIÃO, 1993, p. 217-218). Com efeito, é notória a coincidência da área que terá sido pacificada por Brutus com a zona onde se vão desenvolver os grandes povoados tipo oppida. No entanto, as mudanças operadas na região dos Callaeci Bracari, ao longo do século I a.C., têm que ser explicadas no quadro mais amplo da organização e das características culturais das populações da região, que se revelavam já diferentes de outras áreas do NO durante os finais da Idade do Bronze e cuja identidade se foi forjando ao longo da Idade do Ferro. Por outro lado, o 66

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

desenvolvimento dos oppida não pode ser desfasado da elevada demografia da região bracarense e, naturalmente também, das potencialidades agropecuárias da zona, que sustentaram o aumento populacional que parece registar-se na última centúria do I milénio antes da nossa era. De facto, se a pacificação da região bracarense, no quadro do avanço romano no interior da Península Ibérica, pode justificar a reorganização de alguns povoados e o aumento das trocas comerciais com o sul já romanizado, intensificadas sobretudo após a campanha de J. César a Brigantium, entre os anos 61-60 a.C. (TRANOY, 1981, p. 188; MARTINS, 1990, p. 166), esses factos não são suficientes para explicar o desenvolvimento assinalado e, muito menos, os característicos traços identitários desta região, que se revelam tanto a nível sociopolítico, como no âmbito da cultura material, entre a qual cabe destacar as formas de expressão artística. A arte destas comunidades faz-se representar em diferentes contextos, designadamente na ornamentação de casas e monumentos, mas também pela original estatuária dos guerreiros, que regista uma acentuada especificidade, quando confrontada com outros grupos de escultóricos conhecidos nas regiões mais interiores do NO peninsular (CALO LOURIDO, 1994, p. 75-100). Não deixa de ser sugestivo considerar que as representações de guerreiros galaicos poderão constituir evocações do poder das elites da região (SILVA, 2003, p. 41-50. Também alguns dos elementos de adorno, que surgem invariavelmente esculpidos nestas estátuas, podem ser considerados como símbolos do poder dos chefes guerreiros, como acontece com as joias, designadamente as viria, braceletes masculinos e os torques colocados no pescoço, ou ainda o escudo redondo ou caetra, disposto na parte dianteira das peças. O aparecimento da base de sustentação do guerreiro de Sanfins, num conjunto de penedos que dominava uma das entradas do povoado, permite igualmente considerar que poderemos estar perante representações de figuras heroicizadas que tutelariam os povoados principais (SILVA, 1999, p.16).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

67

MANUELA MARTINS

Figura 4 – guerreiro galaico de S. Julião (Vila Verde)

Alguns dos motivos que ornamentam a vestimenta dos guerreiros, designadamente a túnica, bem conservados na estátua de D. Julião (MARTINS e SILVA, 1984, p. 34-35), estão igualmente presentes nas pedras formosas dos balneários rituais, já referidos (QUEIROGA, 1992, p. 25), bem como na decoração das habitações (SILVA, 1986, p. 48-51; CALO LOURIDO, 1994, p. 70-80; 141-148), facto que demonstra o forte investimento que estas comunidades faziam no capital simbólico da casa, como forma de diferenciação social. Muito embora haja autores que considerem que este universo artístico deva ser datado já da transição da era, por impulso da romanização (CALO LOURIDO, 1994; QUEIROGA, 2007, p. 169-179), julgamos antes que ele decorre de um processo evolutivo específico da região bracarense, que se estruturou num contexto perfeitamente indígena, ainda que com influências de âmbitos culturais distintos, que se fazem sentir na região desde o Bronze Final, os quais se repercutem no trabalho do bronze e na ourivesaria, mas também na original arte destas comunidades. 68

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

Figura 5 – porta decorada do castro de Sabroso (Museu da S.M.S.)

Tudo leva a crer que os territórios da área galaica se encontrassem pacificados à data do início das guerras cantábricas, que decorreram entre 29 e 19 a.C., findas as quais se procedeu à reorganização provincial da Hispânia, de que foi encarregue Agripa, o general vencedor dos últimos confrontos na frente cantábrica (BRAVO CASTAÑEDA, 2007, p.109). Isso significa que grande parte do território do NO terá ficado pacificado na sequência da expedição de Brutus, em 138 -136 a.C., tendo sido deixado sem ocupação militar. Entre esse período e as guerras cantábricas decorrem cerca de 100 anos, durante os quais se assiste ao grande desenvolvimento dos castros da área bracarense, num contexto que alguns autores consideram ter sido estimulado pelos romanos (QUEIROGA, 2007, p. 169-179). Discordamos dessa visão e entendemos que o século Ia.C. corresponde a um período de profundas mudanças na região galaico bracarense, sem qualquer repercussão direta nas regiões mais interiores do NO, assistindose a uma reorganização do território e a uma intensificação económica, que desenham um contexto favorável para o desenvolvimento de formas de PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

69

MANUELA MARTINS

arquitetura mais complexas e para um original desenvolvimento artístico, que beneficiará sobretudo a emulação do poder das elites. De resto, a original organização da região bracarense, bem representada no território dos Bracari, terá contribuído para a não menos original transformação que esta região irá sofrer sob domínio romano, o qual passa a exercer-se de forma efetiva no fim das guerras cantábricas, ou seja, a partir de 19 a.C.

Novos poderes, novas identidades 1. Quadro geral Entre 19 e 15/13 a.C. emerge uma nova realidade política na Hispânia, que foi administrativamente dividida em três províncias, por sua vez subdivididas em conventos jurídicos, cada qual com a sua capital. Durante o mesmo período registou-se a promoção de cidades e fundaram-se outras onde eram necessárias. O período que decorreu entre os anos de 19 e 15 a.C. foi palco de uma intensa atividade reformadora, presidida por Augusto, pois tratava-se de encontrar as melhores soluções para gerir o vasto e heterogéneo território da Península Ibérica. Este terá sido também um período de amplas negociações entre as elites indígenas, os agentes imperiais e o próprio Imperador, conforme o demonstra o chamado bronze do Bierzo, ou tabula de Bembibre2, redigida no ano 15 a.C. (SÁNCHEZ PALENCIA e MANGAS, 2000; GRAU e HOYAS, 2001), que refere explicitamente a região do NO como integrada numa província Transduriana, governada pelo legatus Lucio Sestio Quirinal, antes da mesma ser definitivamente integrada na Tarraconense, em data incerta, que alguns autores situam entre 16 e 13a.C. (TRANOY, 1981, p.146) e outros entre 12 e 7 a.C. (ALFÖLDY, 1969, p. 207).

2



70

A origem desta peça é controversa. De facto, poderá ser oriunda de Castropodame, em San Román de Bembibre, local considerado como correspondente à cidade romana de Interamiun Flavium, descoberta e destruída nas obras da Autovía A-6 Madrid-Corunha, ou do lugar de Viñales, no municipio de Bembibre.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

Figura 6 – divisão administrativa da Hispânia implementada por Augusto

Este Édito de Augusto, assinado em Narbona, na Gália, revela-nos as hesitações relativas à organização da região do NO, que parecem refletir o reconhecimento por parte de Roma da especificidade daquele território relativamente aos que foram incluídos na Lusitânia e na Citerior, demonstrando igualmente que a reorganização provincial da Hispânia e, muito provavelmente também, a fundação das cidades augustas, constituíram processos dinâmicos que terão envolvido inevitáveis compromissos entre o poder romano e as elites indígenas, conforme é sugerido pelo teor dos dados epigráficos disponíveis (DOPICO CAÍNZOS, 2009, p. 35). Estes ajudam-nos a perceber que a montagem da máquina política e administrativa romana não foi o resultado de uma inspiração genial, nem o fruto de um exercício de régua e esquadro, mas um processo que, embora rápido, sofreu alterações e viveu de indecisões que nos escapam por ausência das fontes adequadas. Julgamos que o papel da negociação deve ter sido intenso nas duas décadas que antecederam a transição da era, a avaliar pelo teor do Édito do PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

71

MANUELA MARTINS

Bierzo, em que Augusto se envolve diretamente na recompensa dos habitantes de um castro da tribo dos Sussarros, concedendo-lhes a exploração de terras e a imunidade perpétua (DOPICO CAÍNZOS, 2009, p. 35). O conteúdo deste documento revela o interesse de Roma em definir claramente os territórios que ficavam sujeitos ao pagamento de tributos, algo que deve ter sido bem negociado entre as elites indígenas e os representantes de Augusto. É ainda a epigrafia que demonstra que a criação dos conventos jurídicos foi obra de Augusto e não dos imperadores Flávios, conforme foi tradicionalmente sugerido (TRANOY, 1981, p. 153). Sabemo-lo através de uma das tesseras de Caurel, também conhecida por tabula Lougeiorum (DOPICO CAÍNZOS, 1988), datada do ano 1 d.C., onde se lê que o povo dos Lougeios, que estabelece um pacto de hospitalidade com Cayo Ansio Galo, pertencia ao convento de Ara Augusta, na região dos Astures. Existem outros documentos epigráficos que estabelecem pactos de hospitalidade, individual ou coletiva, entre indígenas e patronos romanos, fornecendo-nos uma leitura dinâmica dos processos de reorganização do território do NO peninsular. Neste contexto de negociação cabe destacar uma outra tessera de Caurel, encontrada em Torre Cabreira, Cido, Carbedo, que se reporta a um pacto de hospitalidade entre um indígena, de nome Tigelus, do povo dos Susarrus, do castro Aiobaigiaeco, com os Lougeios, habitantes de outro castro, designado por Toletum. Já as duas tesseras de Monte Murado (SILVA, 1983, p. 9-26), datadas uma do ano 7 d.C.3 e outra do ano 9 d.C.4, assinalam o estabelecimento de relações de clientelismo entre um cidadão romano e alguns indígenas residentes no castro. Na verdade, estamos perante o testemunho da precoce imigração de cidadãos romanos para os novos territórios integrados, facto que terá criado um ambiente propício à alteração dos costumes, tanto mais que indígenas e cidadãos romanos passam a partilhar entre si estreitos laços de patronato e clientelismo. Ligeiramente mais tardia, mas nem por isso menos importante, é a chamada Tábua de Astorga, texto jurídico que refere

3



Este texto refere um pacto entre D(ecimus) Iulius Cilo, da tribo Galeria, com os indígenas Niger, Rufus e Priscus, dos Turduli Veteres, seus filhos e descendentes.



Este outro documento refere-se a um outro pacto, realizado igualmente pelo cidadão D(ecimus) Iulius Cilo, desta feita com Lugarius, filho de Septanius, dos Turduli Veteres.

4

72

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

um pacto de hospitalidade entre dois grupos tribais (gentilitas) do povo dos Zoelas, os Desoncos e os Tridiavos, assinalando as suas posteriores renovações, datadas respetivamente de 27, em Curunda e do ano 152, em Astorga (CIL II: 2633). O período que decorre entre 19 a.C. e os primeiros anos do século I da nossa era assistirá a mudanças profundas na organização do povoamento das diferentes sub-regiões do NO peninsular. O território continua ocupado maioritariamente por castros, verificando-se que alguns começam a ser abandonados (CARVALHO, 2008, p. 181-183), enquanto noutras zonas são fundados novos castros, dedicadas à mineração ou à produção agrícola intensiva, como acontece no interior transmontano (LEMOS, 1993); e nas Astúrias (SASTRE PRATS, 1998, p. 34). Na área ocidental bracarense a tendência será para o abandono dos pequenos e médios castros de baixa altitude e para o aparecimento de novas formas de ocupação do território, representadas por villae e vici, que contribuem para alterar a fisionomia da paisagem cultural da região. De modo geral podemos considerar que o NO ibérico se integrou plena e rapidamente na nova estrutura administrativa criada por Augusto, que teve a sustentá-la os centros urbanos, a rede viária e a exploração intensiva dos recursos. No entanto, esta romanização política e administrativa foi sobretudo favorável às elites indígenas, particularmente nos territórios que não conheceram ocupação militar, ou a presença de agentes imperiais ligados à exploração mineira, como aconteceu na zona das Astúrias. As cidades de modelo clássico fundadas por Augusto (Bracara Augusta, Lucus Augusti e Asturica Augusta), enquanto centros políticos, religiosos e económicos, irão constituir os novos centros de poder e de decisão. No entanto, apesar de possuírem todas as mesmas funções, equipamentos e arquiteturas de prestígio, estas cidades revelam diferenças substantivas na sua estrutura e evolução, algo que se prende com o papel que desempenhavam no âmbito das regiões em que se implantaram, mas sobretudo com a natureza da sua composição social, que se revela bastante diversa, sendo percetível através da epigrafia (TRANOY, 1981).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

73

MANUELA MARTINS

Figura 7 – distribuição dos castros pré-romanos em torno de Bracara Augusta

Sabemos que os novos centros urbanos constituíram potenciais contextos de promoção para as antigas elites indígenas, verificando-se que o protagonismo destas foi muito maior em Bracara Augusta do que em Lucus ou Asturica, algo que nos é transmitido pela epigrafia, mas também pelos resultados da arqueologia urbana desenvolvida nas três cidades nas últimas décadas. São os resultados conjugados dessas duas fontes de informação que nos permitem valorizar diferentes contextos culturais urbanos, nos quais se assistem a mudanças identitárias e à emergência de novos poderes. Um exemplo ilustrativo das diferenças que persistem entre distintas regiões do NO peninsular, agora sob domínio romano, é-nos fornecido pela comparação entre Asturica Augusta e Bracara Augusta. A cidade de Asturica Augusta, fundada a partir de um acampamento militar para controlar a exploração estatal de ouro, num território com uma população relativamente hostil, vencida após uma longa guerra, possuía naturalmente uma estrutura de organização social e económica muito diferente daquela que podemos encontrar na zona mais meridional do convento bracarense. Aí o protagonismo social centrava-se nos quadros da administração romana, 74

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

que garantiam a eficácia da gestão da exploração mineira, indispensável ao Estado romano, sendo pouco expressivo o protagonismo da população indígena no contexto global da vida urbana. Pelo contrário, Bracara Augusta teve uma origem civil, tendo sido fundada no coração de uma área com elevada densidade populacional e um grande desenvolvimento, que mantinha relações com zonas já romanizadas do sul, evidenciando, também, um povoamento hierarquizado, facto que facilitava a sua fácil inserção na nova dinâmica imposta pelos romanos nos territórios conquistados.

2. A especificidade da região bracarense No território correspondente ao Callaeci Bracari destaca-se a entidade étnica dos Bracari, que ocuparia a região entre Lima e Ave, onde se encontram dezenas de castros, muitos dos quais de grandes dimensões (LEMOS, 2009, p. 128-131), no centro da qual foi fundada a cidade de Bracara Augusta. A implantação desta cidade teve um impacto direto no abandono de vários castros, no seu território envolvente, mantendo-se apenas ocupados aqueles que possuíam uma clara função no controle da rede viária, cuja construção se iniciou em torno da transição da era, ou os que se associavam a funções precisas no novo contexto político, económico e social (CARVALHO, 2008, p. 259-264). No entanto, a sobrevivência dos castros já nada tem a ver com a estrutura social que os suportava anteriormente, passando a integrar-se nos territórios das civitates, unidades administrativas de segundo grau, que dependiam do novo poder político residente na capital do convento (MARTINS et al., 2005, p. 281-282). Velhos ou novos castros são atingidos por reformas que alteram a forma tradicional das casas de planta circular, passando a dominar as de forma retangular ou quadrada, bem como o uso de materiais arquitetónicos tipicamente romanos, como as colunas. Encontramos mesmo alguns castros onde se constroem verdadeiras casas romanas, como é o caso de uma domus construída no castro do Monte de Padrão, em Santo Tirso (MOREIRA, 2009, p. 105-109). Para além dos castros que subsistem, surgem novos aglomerados abertos, de tipo vici, que possuem uma distribuição preferencial ao longo das vias, surgindo também associados à exploração mineira e de águas termais PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

75

MANUELA MARTINS

(CARVALHO, 2008, p. 264-267). A par destes sítios, que constituem, por vezes, verdadeiras cidades secundárias, surgem também novas explorações agropecuárias de modelo itálico, as villae, muito abundantes à volta da cidade de Bracara Augusta, mas também ao longo das vias e dos vales (CARVALHO, 2008, p. 268-283). Testemunha-se igualmente o aparecimento de alguns aglomerados que adquirem maior dimensão, dotando-se de equipamentos diversos como termas e fora, como acontece com Tongobriga (DIAS, 1997), mas também com Aquae Laiae, futura Aquae Flaviae (atual Chaves), cujo desenvolvimento justificou a sua promoção municipal na época Flávia. Figura 8 – rede viária principal, aglomerados urbanos secundários, castros n, vici « e villae p

Bracara Augusta foi a única fundação civil das três realizadas por Augusto, no NO ibérico, uma vez que Lucus Augusti e Asturica Augusta se desenvolveram a partir de acampamentos militares (RODRÍGUEZ COLMENERO; COVADONGA CARREÑO, 1999; SEVILLANO FUERTES; 76

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

VIDAL ENCINAS, 2002). Rodeada de castros, a cidade foi implantada numa plataforma aplanada controlando as férteis planícies do vale do rio Cávado, a norte e do vale do rio Este, a sul. As investigações arqueológicas realizadas na cidade documentam que ela foi fundada ex nuovo, possuindo um traçado ortogonal com orientação de 19º N/NW, que define quarteirões quadrados com 150 pés de lado, identificado a partir da trama viária, das cloacas, pórticos, mas também da orientação dos edifícios públicos (MARTINS, 2009, p. 190-192). Entre eles destacam-se as termas do Alto da Cividade (MARTINS, 2005) e um teatro (MARTINS et al., 2006, p. 9-30), sabendo-se que a cidade terá possuído também um anfiteatro (MORAIS, 2001, p. 55-76). Figura 9 – forma urbis de Bracara Augusta no Alto Império

Por outro lado, os estudos realizados no território rural permitiram identificar profundas alteração na paisagem, associadas à implantação de uma precoce rede de villae e de um cadastro, que nos mostra uma das mudanças mais importantes ocorridas com a integração da região no mundo romano. Falamos naturalmente da delimitação e divisão do território rural, realizada PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

77

MANUELA MARTINS

através da atribuição de lotes para exploração, cujo rendimento era taxado. Testemunhos importantes dessa prática são-nos fornecidos por dois marcos gromáticos, encontrados perto de Braga, que definem os limites de uma centuria de cerca de 20 actus, com uma orientação de 16º N/NW, praticamente coincidente com a da cidade romana (CARVALHO, 2008, p. 319-325). Figura 10 – traços do cadastro romano de Bracara Augusta (CARVALHO, 2008)

78

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

Bracara Augusta desenvolveu-se dentro dos padrões urbanos e arquitetónicos característicos de qualquer cidade romana, adotando a linguagem clássica da arquitetura, que estabeleceu o contexto onde as populações indígenas residentes podiam desenvolver uma nova identidade cultural. Um dos espaços privilegiados onde se podem evidenciar as novas identidades continua a ser o doméstico, agora caracterizado por casas de tipologia romana, dominantemente de peristilo. De facto, o espaço doméstico oferece-se como um terreno fértil para compreender os processos de representação e emulação social, nos quais as colunatas, pórticos de circulação e peristilos se constituem como cenários de vivência e representação, onde têm lugar a conversa e o debate e onde se faz igualmente a mediação entre o domínio natural, representado no jardim e o domínio humano, representado pelas salas de jantar e receção (MAGALHÃES, 2010). Um dos exemplares da arquitetura doméstica de Bracara Augusta que nos permite analisar esses processos é constituído pela domus das Carvalheiras, construída nos inícios da época Flávia, que ocupava a totalidade de um quarteirão da cidade (MARTINS, 1997-98, p. 23-46). Por constituir a única casa cuja planta se conhece na totalidade, esta habitação oferece-nos informações preciosas sobre a organização do espaço doméstico, revelando um claro protagonismo dos espaços de receção em torno do átrio e do peristilo, relativamente às áreas de serviços que ocupavam uns modestos 5% da área habitada e às áreas privadas que não ultrapassam 8% da mesma. Deste modo, podemos verificar que na época flávia se encontravam claramente assimilados os modelos e componentes da arquitetura clássica, facto que subentende que o proprietário da domus se integrava perfeitamente nos cânones da educação romana, transmitindo através do seu espaço doméstico indicadores do seu estatuto social e da sua conformidade com o modo de estar e ser romano (MARTINS et al., 2012).

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

79

MANUELA MARTINS

Figura 11 – organização do espaço doméstico da domus das Carvalheiras. A. atrium; P. perystilium; Ta. tablinum; Tr. triclinium; C. cubicula; Cu. culina; La. latrina; T. taberna

Uma vez que a grande maioria das domus de Bracara Augusta surge entre meados do século I e a época Flávia julgamos que muitos dos seus possessores deverão ter tido origem indígena, tendo adquirido, pelo menos ao longo de duas gerações, a capacidade de compreender a linguagem dos novos espaços domésticos, de influência helenística, facto que os habilitava a usá-los de forma adequada. É através da epigrafia que podemos saber a origem da população que ocupou as cidades. Em Braga sabemos que grande parte do povoamento foi feito por indígenas, muitos dos quais oriundos dos castros da região, 80

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

referenciados em várias inscrições por um C invertido, indicador de castellum, ou castro (PEREIRA MENAULT, 1983, p. 169-192). A predominância de indígenas na composição social da cidade constitui uma especificidade da mesma, quando a comparamos com as cidades de Lugo e de Astorga, onde os grandes protagonistas da epigrafia são elementos ligados ao exército e à administração. Figura 12 – estela funerária de um indígena de nome Arquio, filho de Viriato, originário de um castro chamado Agripia

Com efeito, apesar de a epigrafia urbana documentar a presença de cidadãos romanos que negociavam na cidade, no tempo de Cláudio (ALFÖLDY, 1966, p. 363-372; Morais, 2005, p. 70-71), é francamente maioritário o número de inscrições que reportam nomes indígenas (Tranoy e Le Roux, 1989-90, p. 224-225). Estamos certamente em presença de franjas privilegiadas da população oriunda dos castros da região, que terão negociado a sua deslocação para a nova cidade, onde se encontram PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

81

MANUELA MARTINS

já instaladas por volta do ano 4 ou 3 a.C., quando homenageiam Augusto, através de uma estátua da qual se conhece apenas o pedestal (Le Roux, 1975, p. 155; Tranoy, 1981, p. 328). Trata-se do primeiro monumento conhecido erguido ao imperador pelos bracaraugustanos, menção que nos permite compreender que estamos perante uma nova identidade coletiva, que se designa já pelo nome da nova cidade. A precoce datação do pedestal de estátua erguida a Augusto, semelhante a outros dois que se perderam, permite-nos igualmente compreender a importância que os monumentos e a escrita passaram a ter para as elites indígenas, como modos de representação e símbolos do seu novo poder. De facto, a escrita era um conhecimento apenas partilhado por alguns, que funcionava como um meio de mostrar diferenças e afinidades e definir papéis e estatutos, em suma, negociar identidades, constituindo uma verdadeira tecnologia de prestígio (SASTRE PRATS, 2004a). Figura 13 – pedestal de estátua, dedicada a Augusto, pelos bracaraugustanus, no dia do aniversário de Paulus Fabius Maximus, datada entre 4-3 a.C. (Museu da S.M.S.)

Por isso, os espaços funerários, com os seus monumentos epigráficos, evocativos da identidade dos sepultados, constituem um contexto privilegiado para analisar as mudanças culturais que se registaram entre finais do século I a.C. e meados do século I d.C. De facto, sabemos que as populações indígenas do NO praticavam a cremação dos mortos, tal como os romanos. No entanto, os cultos funerários indígenas caracterizavam-se pela invisibilidade, ao contrário, dos romanos, que se associavam a práticas de visibilização da identidade dos defuntos, associadas aos altares, estelas ou lápides, que eram colocados junto das suas sepulturas, onde os seus nomes eram gravados. 82

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

Neste sentido, regista-se uma importante alteração identitária das populações indígenas, que adotam as práticas funerárias romanas, tanto nos espaços urbanos como rurais, passando a sinalizar as suas sepulturas com monumentos epigrafados. A natureza das inscrições de Braga demonstra que não estamos perante sectores indiferenciados da população, mas sim perante elementos de origem indígena que integrariam a elite urbana e que procuravam reconhecimento, fazendo-o através dos espaços funerários. Parte desse reconhecimento foi feito através de estelas, fincadas ao longo das vias, onde se escreviam o nome e a genealogia dos indígenas, mas onde se recreava, também, a rica iconografia da região bracarense do período pré-romano, caracterizada por rosetas, lúnulas, círculos, e cordões. Através desses símbolos, as elites indígenas que se fixaram em Bracara e se constituem como uma aristocracia urbana, afirmavam a sua ligação ao passado, aos seus castros de origem, transmitindo, simultaneamente, a sua nova identidade, o seu novo status, através do uso de monumento funerários de tipologia romana e da escrita. Por isso, as necrópoles representam novos contextos para representar e negociar identidades. Na prática, as “residências” dos mortos substituíram as casas e os próprios castros de origem dos indígenas, onde tradicionalmente se acumulava o capital simbólico familiar da sociedade pré-romana.

Figura 14 – estela funerária encontrada nas escavações da necrópole da via XVII que referencia três gerações de indígenas ligados por laços familiares, que aí foram sepultados. A epígrafe tem a seguinte transcrição: Caturo, filho de Camalo, Meditia, filha de Medamo, Medamo, filho de Caturo, Culecienses, aqui estão sepultados

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

83

MANUELA MARTINS

Em jeito de conclusão Julgamos ter demonstrado a diversidade da expressão geográfica de diferentes identidades culturais do NO nos finais da Idade do Ferro, que se contrapõem claramente a uma suposta “identidade castreja”, específica daquela região ibérica. Pelo contrário, a realidade pré-romana configura-se assaz complexa e diferenciada, tanto em termos sociais e económicos, como simbólicos, sendo devedora de diferentes ritmos de desenvolvimento e de influências diversas. Este quadro condicionou, necessariamente, o processo de desenvolvimento das populações indígenas, sob domínio romano, que regista marcadas assimetrias e especificidades. De facto, a arqueologia das últimas décadas tem demonstrado que o território do NO peninsular permaneceu culturalmente diverso após a sua integração no Império romano e que evoluiu de forma muito diferenciada ao longo do século I d.C. Este facto associa-se naturalmente aos contextos préromanos e à expressão e natureza das diferentes identidades sub-regionais que foram enunciadas. Tal como rejeitamos a existência de uma “identidade castreja” também refutamos a ideia de que exista “identidade cultural romana”, única e unívoca, que possa constituir uma referência para validar ou medir o maior ou menor grau de aculturação das populações indígenas do NO peninsular. De facto, a “romanização” desta região, não se configura, nem como processo periférico, ou incipiente, como defendem alguns, nem como o resultado da imposição de políticas de natureza macroeconómica, que teriam determinado a passagem forçada de sociedades segmentárias ou heroicas para um modelo de sociedade classicista e tributária, conforme é defendido por outros. O quadro emergente dos dados disponíveis sugere antes que as sociedades indígenas conheceram mudanças culturais substantivas, que se processaram a diferentes ritmos, consoante as regiões e os substratos anteriores, determinadas, sobretudo, pelas alterações registadas no seu quotidiano e nas suas perceções do mundo, algo que decorre do uso de uma cultura material diferente, que se foi impondo e que foi sendo negociada e integrada na vivência das populações. Estamos certamente ante um processo complexo e polimorfo, cuja compreensão carece ainda de investigações aprofundadas, mas onde certamente as comunidades indígenas assumiram um papel preponderante. 84

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

Referências AYÁN VILA, X. M. A. Round Iron Age: The Circular House in the Hillfort of the Northwestern Iberian Peninsula. E-Keltoi. Journal of Interdisciplinary Celtic Studies, Vol. 6, p. 903-1003, 2008. (Revista online). ALARCÃO, J. Roman Portugal. Warminster: Aries & Philips Ltd, 1988. ALFOLDY, G. Um “cursus” senatorial de Bracara Augusta. Revista de Guimarães, vol. VXXVI, nºs 1-2, p. 363-372, 1966. ALFOLDY, G. Fasti Hispanienses. Senatorische Reichsbeamte und Offiziere in den spanischen provinzen des römischen Reiches von Augustus bis Diokletian. Wiesbaden, 1969. BRAVO CASTAÑEDA, G. Hispânia. La epopeya de los romanos en la Península. Madrid: La Esfera de los Livros, 2007. CALO LOURIDO, F. A. Plástica da Cultura Castrexa Galego-Portuguesa. La Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, Conde de Fenosa, 1994. CARBALLO ARCEO, L. X. e FÁBREGAS VALCARCE, R. Variaciónes rexionais nas sociedades pre e protohistóricas galaicas. In: ÁLVAREZ, R., DUBERT, F., SOUSA, X. (eds) Lingua e territorio, Santiago de Compostela: Universidade de Santiago de Compostela, Consello de la Cultura Galega, 2006, p. 66-91. CARVALHO, H. O povoamento romano na fachada ocidental do Conventus Bracarensis. Dissertação de doutoramento (policopiada). Braga: Universidade do Minho, 2008. Disponível em http://hdl.handle.net/1822/87555. COLLIS: J. Urbanisation in Atlantic Europe in the Iron Age. Gallaecia, 1415, p. 223-239, 1996. CURCHIN, L.A. Roman Spain, Conquest and Assimilation. London: Routledge, 2004. DIAS, L. A. Tongobriga. Porto: Instituto Português do Património Arquitectónico, 1997. DOPICO CAÍNZOS, M. D. La Tabula Lougeiorum.Estudios sobre la implantación romana en Hispania. Vitoria, 1988. DOPICO CAÍNZOS, M. D. A transformação dos pobos do noroeste Hispánico na época de Augusto: a evidencia epigráfica. In: DOPICO CAÍNZOS, D., VILLANUEVA ACUÑA, M. e RODRÍGUEZ ALVAREZ (eds) Do castro á Cidade. A romanización na Gallaecia e na Hispânia indoeuropea, Lugo, 2009, p. 31-53. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

85

MANUELA MARTINS

FABIÃO, C. O povoamento proto-histórico e romano. In: MATOSO, J. (Dir.) História de Portugal. 1, Lisboa: Círculo dos Leitores, 1993, p. 76-299. GRAU, L. e HOYAS, J. L. (eds) El bronce de Bembibre: un edicto del emperador Augusto del año 15 a.C. León, 2001. GONZÁLEZ RUIBAL, A. Facing two seas: Mediteranean and Atlantic contacts in the NW of Iberia. Oxford Journal of Archaeology, 23 (3), p. 287317, 2004. GONZÁLEZ RUIBAL, A. House societies vs. kindship-based societies: an archaeological case from Iron Age Europe. Journal of Anthropological Archaeology. 25 (1), p. 144-173, 2006. GONZÁLEZ RUIBAL, A. Galaicos. Poder y Comunidad en el Noroeste de la Península Ibérica (1200a.C – 50d.C.). Brigantium 18-19. La Coruña: Museu de San Antón, 2006-07. GONZÁLEZ RUIBAL, A. Los pueblos del Noroeste. In: GRACIA ALONSO, F. (coord) De Iberia a Hispania. Barcelona: Ariel Prehistoria, 2008, p.899-930. GONZÁLEZ RUIBAL, A., RODRÍDEZ MARTÍNEZ, R., ABOAL FERNÁNDEZ, R., CASTRO HIERRO, V. Comercio mediterráneo en el castro de Montealegre (Pontevedra, Galicia. Siglo IIa.C.-inicios del siglo Id.C. Archivo Español de Arqueología, 80, p. 43-74, 2007. LE ROUX (1975). Aux Origines de Braga (Bracara Augusta). Bracara Augusta, p. 155-157, 1975. LEMOS, F. S. Povoamento romano de Trás-os-Montes Oriental. Dissertação de Doutoramento (policopiada). Braga: Universidade do Minho, 1993. LEMOS, F. S. A transformação do habitat e da paisagem castreja no contexto da romanização: o exemplo dos grandes castros. In: DOPICO CAÍNZOS, D., VILLANUEVA ACUÑA, M. e RODRÍGUEZ ALVAREZ (eds) Do Castro á Cidade. A romanización na Gallaecia e na Hispânia indoeuropea. Lugo, 2009, p. 109-141. LEMOS, F. S., CRUZ, G., FONTE, J. Estruturas de banhos do território do Bracari: os casos de Briteiros e de Braga. Fervédes, Villalba, 5, p. 319-328, 2008. MAGALHÃES, F. Arquitectura doméstica em Bracara Augusta. Dissertação de Mestrado (policopiada). Braga: Universidade do Minho, 2010. Disponível em http:hdl.handle.net/1822/13619. MARTINS, M. O povoamento proto-histórico e a romanização da bacia do curso médio do Cávado. Cadernos de Arqueologia. Monografias 5. Braga: UAUM, 1990. 86

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

MARTINS, M. A zona arqueológica das Carvalheiras. Balanço das escavações e interpretação do conjunto. Cadernos de Arqueologia, Braga, 2ª série, 14-15, p. 23-46, 1997-98. MARTINS, M. As termas romanas do Alto da Cividade. Um exemplo de arquitectura pública em Bracara Augusta. Bracara Augusta. Escavações Arqueológicas. 1. Braga: UAUM/ NARQ. MARTINS, M. Bracara Augusta. Panorama e estado da questão sobre o seu urbanismo. In: DOPICO CAÍNZOS, D., VILLANUEVA ACUÑA, M. e RODRÍGUEZ ALVAREZ (eds) Do Castro á Cidade. A romanización na Gallaecia e na Hispânia indoeuropea. Lugo, 2009, p. 181-211. MARTINS, M e SILVA, A. C. F. A estátua de guerreiro de S. Julião (Vila Verde). Cadernos de Arqueologia, Braga, Série II, 1, p. 29-47, 1984. MARTINS, M., LEMOS, F. S., PÉREZ LOSADA, F. O povoamento romano no território dos galaicos bracarenses. In: Actas do Colóquio Internacional Unidad y Diversidad en el Arco Atlantico. Gijon: BAR IS1371, 2005, p. 279-296. MARTINS, M., RIBEIRO, R., MAGALHÃES, F. A arqueologia em Braga e a descoberta do teatro romano de Bracara Augusta. Forum, Braga, 40, p. 9-30, 2006. MARTINS, M., RIBEIRO, R., MAGALHÃES, F., BRAGA, C. Urbanismo e arquitetura de Bracara Augusta. Sociedade, economia e lazer. In: Atas do Colóquio Evolução da Paisagem Urbana: Economia e Sociedade. Braga: CITCEM, 2012. MORAIS, R. Breve ensaio sobre o anfiteatro de Bracara Augusta. Forum, Braga, 30, p. 55-76, 2001. MORAIS, R. Autarcia e Comércio em Bracara Augusta. Contributo para o estudo económico da cidade no período Alto-Imperial. Bracara Augusta. Escavações Arqueológicas. 2. Braga: UAUM/ NARQ. MOREIRA, A. B. Castellum Madiae. Formação e desenvolvimento de um “aglomerado urbano secundário” no ordenamento do povoamento romano entre Leça e Ave. Tese de Doutoramento, Santiago de Compostela, 2009. PARCERO OUBIÑA, C., La construcción del paisaje social en la Edad del Hierro del noroeste ibérico. Ortigueira: Fundación Federico Maciñeira, 2002. PEREIRA MENAULT, G. Los castella y las comunidades de Gallaecia. In: Actas do II Seminario de Arqueologia del Noroeste. Madrid, 1983, p 169-192. QUEIROGA, F. War and Castros: New Approaches to the Northwestern Portuguese Iron Age. Unpublished Ph.D. dissertation. Oxford University, 1992. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

87

MANUELA MARTINS

QUEIROGA, F. The Late Castro Culture of Northwest Portugal: Dynamics of Change. In: GOSDEN, C., HAMEROW, H., JERSEY, P. de, LOCK, G. (eds) Communities and connections. Essays in Honour of Barry Cunliffe. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 169-179. RODRIGUEZ COLMENERO, A. e COVADONGA CARREÑO, M. Lucus Augusti, Capital romana del finisterre hispânico. In: Actas da Mesa Redonda, Emergência e Desenvolvimento das cidades romanas no norte da Península Ibérica. Tongobriga, 1999, p. 115-132. SÁNCHEZ PALENCIA, F. J. e MANGAS, J. El Edicto del Bierzo: Augusto y el NO de Hispania. Léon, 2000. SASTRE PRATS, I. Formas de dependencia social en el Noroeste peninsular (Transición del mundo Preromano al Romano y Época Altoimperial). Ponferrada: Instituto de Estudios Bercianos, 1998. SASTRE PRATS, I. Las formaciones sociales rurales de la Asturia romana. Madrid: Ediciones Clásicas, 2001. SASTRE PRATS, I. Forms of social inequality in the Castro Culture. European Journal of Archaeology, 5 (2), p. 213-248, 2002. SASTRE PRATS, I. Los procesos de la Complejidad social en el Noroeste Penisular: Arqueologia y Fuentes Literárias. Trabajos de Prehistoria, Madrid, 61, nº 2, p. 99-110, 2004. SASTRE PRATS, I. La epigrafia de Las Médulas. Escritura y sociedad. Cuadernos de la Fundación las Médulas, Las Médulas, nº 4, 2004a. SEVILLANO FUERTES, A. e VIDAL ENCINAS, J. M. Urbs Magnífica. Una aproximación a la Arqueología de Asturica Augusta Astorga, León. Museo Romano (Guía-Catálogo). Astorga, 2002. SILVA, A. C. F. As tesserae hospitales do Castro da Senhora da Saúde ou Monte Murado (Pedroso, Vila Nova de Gaia). Contributo para o estudo das instituições e povoamento da Hispânia Antiga. Gaya. 1, p. 9–26, 1983. SILVA, A. C. F. Citânia de Sanfins. Catálogo Museu da Citânia de Sanfins. Paços de Ferreira: Câmara Municipal, 1999. SILVA, A. C. F. As expressões guerreiras da sociedade castreja. Madrider Mitteilungen. Madrid, 44, p. 41-50, 2003. SILVA, A. C. F. e PINTO, J. M. M. Comércio púnico com o Noroeste. In: TAVARES, A. A. (ed) Os púnicos no Extremo Ocidente. Lisboa: Universidade Aberta, 2001, p. 229-238. 88

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIOS, IDENTIDADES E PODERES EM MUDANÇA. UMA LEITURA DO PROCESSO DE ROMANIZAÇÃO DO NO PENINSULAR

SILVA, A. C. F. e MACHADO, J. Banhos castrejos do Norte de Portugal. Pedra Formosa, Arqueologia Experimental. VN Famalicão: Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão / Museu Nacional de Arqueologia, 2007, p. 20-60. TRANOY, A. (1981) La Galice romaine. Recherches sur le Nord Ouest de la Péninsule Ibérique dans l’Antiquité. Paris: Diffusion du Boccard, 1981. TRANOY, A. e LE ROUX, P. As necrópoles romanas de Bracara Augusta – Les inscriptions funéraires., Cadernos de Arqueologia, 6-7, p. 183-230, 1989-90. WOOLF, G. Rethinking the oppida. Oxford Journal of Archaeology, 12 (2), p. 223-234, 1993. WOOLF, G. Becoming Roman. The Origins of Provincial Civilization in Gaul. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

89

.

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO1 Gabrielle Frija

Este texto aborda a relação entre os níveis de poder existentes no Império Romano, no interior das províncias de cultura grega, durante os três primeiros séculos de nossa era. Relembrarei, inicialmente, os princípios gerais de funcionamento do Império no que concerne à administração do território, antes de apresentar algumas características mais específicas dessas regiões muito helenizadas, ricas e pacificadas durante o Alto Império, que são a Grécia e a Ásia Menor Ocidental. O primeiro elemento fundamental, bem conhecido, é que as autoridades romanas desenvolveram pouquíssimas ferramentas de administração direta do território provincial. Como regra geral, os romanos deixaram às autoridades locais amplos poderes e uma forma de autonomia, e mesmo de soberania, bastante extensa. No direito romano, parece que a operação que consistia em confiar o poder às autoridades locais era a restitutio: as autoridades romanas restituíam ao povo vencido suas terras e suas instituições. É isso que mostra um célebre documento, a tábua de Alcântara, inscrita em 104 a.C., na Espanha: O imperador mandou que se lhes restituíssem os campos, os edifícios, as leis e todas as outras coisas por eles possuídas à véspera de sua submissão, no estado que então se encontravam, enquanto assim desejarem o povo e o Senado romanos.

Os campos, os edifícios e as leis são citados como um mesmo conjunto: devolver a propriedade das terras a uma comunidade é também devolver-lhe as ferramentas de governo para administrar essas terras e, de certa maneira, a soberania sobre essas terras, enquanto os romanos não tomassem outra

1

Tradução do original em francês por Belchior Monteiro Lima Neto. Revisão técnica de Sandro Deccotignies.

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

91

GABRIELLE FRIJA

decisão. Cento e vinte anos mais tarde, Tácito não diz outra coisa a propósito dos frísios das margens do Mar do Norte submetidos por Corbulão: Os frísios [...] doaram reféns e se acantonaram no território que lhes foi atribuído por Corbulão. Esse general estabeleceu na terra deles um senado, magistrados, leis; e, para assegurar a sua obediência, construiu uma fortaleza no país.

Aqui também a atribuição de um território preciso implica uma organização política; devolver uma terra a um povo significa, ao mesmo tempo, organizá-la em cidade, com um senado, magistrados, leis, quer dizer, uma administração local – certamente, aqui, imposta por Roma. O status jurídico das terras provinciais devolvidas aos povos conquistados é complexo. Corbulão estabelece uma fortaleza romana no território deixado aos frísios. Os romanos conservam, então, a administração direta de uma parte da região, mas não se apropriam de todo o território. Pertencentes a Roma, as terras conquistadas deviam, contudo, ser incorporadas ao domínio do povo romano, ao ager publicus; é, aliás, sobre essa base que Roma se apropria diretamente de certas terras, por exemplo, para instalar acampamentos ou fundar colônias. Mas as terras que não são administradas por Roma, aquelas que são deixadas ou devolvidas às populações locais, não são mais, estritamente falando, ager publicus. Terras tributárias, elas dão lugar ao pagamento de um imposto, o tributo, marca da sujeição e da submissão a Roma, mas elas são administradas conforme o direito local. No Ocidente, esse direito local é muitas vezes diretamente inspirado no direito romano: de fato, foram os romanos que criaram as estruturas municipais da administração e assim fizeram de acordo com o modelo de suas próprias instituições – vemo-lo claramente no caso dos frísios, em Tácito. O direito latino e o direito romano, ademais, se difundiram muito rapidamente no Ocidente no curso do primeiro século do Império, e ocorreu certo nivelamento de direitos e de status. No Oriente grego, todavia, a situação é mais complexa, pois lá os romanos encontraram cidades já existentes, com tradições e leis locais. Vários direitos e instâncias soberanas podiam, então, coexistir num mesmo território, de modo ainda mais flagrante que no Ocidente. É dessa partilha de poder entre as estruturas romanas e as locais, nas províncias gregas, que eu vou falar agora. 92

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

Quando Roma conquista as cidades gregas da bacia mediterrânea oriental, ela substitui as outras grandes potências: no Oriente helenístico, as cidades gregas já haviam sido obrigadas a aprender a negociar sua autonomia com os poderes régios. Na Ásia Menor, a presença dos Lágidas no Egito, dos Selêucidas e, um pouco mais tarde, dos Atálidas de Pérgamo implicava para as cidades um jogo complexo de alianças e de submissões que permitia negociar o máximo de liberdade no seio dos reinos concorrentes. Com a chegada de Roma e a eliminação progressiva de todas as dinastias helenísticas, as cidades não tinham mais a possibilidade de jogar uns contra os outros e, ao mesmo tempo, elas corriam menos o risco de se enganar em suas escolhas e suportar as consequências. Lembremos que, na época helenística, o território das cidades da Grécia e da Ásia Menor ocidental raramente foi ocupado por tropas régias: se eles colocam guarnições aqui e ali, os reis helenísticos procuram de maneira mais frequente obter o reconhecimento formal de sua dominação numa dada região do que constituir administrações que substituem as das cidades. Contudo, no mesmo momento, os Lágidas retomam uma grande parte da administração antiga do Egito e os Selêucidas fazem o mesmo na Mesopotâmia com relação à administração persa: os soberanos gregos conhecem, então, regimes de administração direta, mas não utilizam esse modo de dominação em relação às cidades. A chegada dos romanos não marca, assim, uma grande ruptura desse ponto de vista: como os reis, as autoridades romanas reivindicam o reconhecimento de sua superioridade, o repasse do tributo e, se necessário, apoio material e militar. As cidades gregas continuam a ser proprietárias de seu território e a administrá-lo. É uma propriedade frágil, pois os romanos podem dispor do território conquistado antes mesmo de transformá-lo em província: depois da derrota de Antíoco III, em Apameia, em 188 a.C., os romanos repartem a Ásia Menor ocidental entre Pérgamo, ao norte, e Rodes, ao sul. A cidade de Mileto, por exemplo, passa para a esfera de Rodes. São, desse modo, os romanos que decidem a sorte das cidades, mas isto não significa de modo algum que o território de Mileto é administrado por Rodes: é um reconhecimento da superioridade rodeana e uma obrigação de alinhar sua política estrangeira à dessa ilha, nada mais. As províncias romanas no Oriente grego sucedem, portanto, sistemas PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

93

GABRIELLE FRIJA

de dominação que tinham vários séculos de existência, mas elas não modificaram fundamentalmente os modos de administração e os direitos locais. Em 148, na Macedônia, em 146, na Grécia, e em 133, no oeste da Ásia Menor, os romanos transformam em províncias vastas regiões, nas quais eles já exerciam o papel de árbitro há várias décadas. Sobre a base da tradição que eu acabo de descrever muito sucintamente, as cidades conservam suas instituições e continuam a se administrar, mas pertencem, a partir de então, ao império do povo romano. Suas assembleias continuam a se reunir, os magistrados são eleitos todos os anos, os tribunais, a polícia e os outros instrumentos de administração são mantidos. Uma parte das cidades chega a obter um status bastante raro no Ocidente, mas não completamente desconhecido: o de cidade livre. As cidades livres estão geograficamente situadas numa província, mas juridicamente não fazem parte dela. Elas não são mencionadas na lista das cidades, a formula provinciae, que define o modo de funcionamento da província e serve como uma espécie de enquadramento para os poderes do governador romano. Na maior parte do tempo, elas não pagam tributo; mas isto não é sistemático, pois uma cidade podia ser livre, mas submetida ao pagamento do tributo. O status de cidade livre implica que o direito local seja aplicado em todos os domínios e que as autoridades romanas não devem intervir na cidade. Por exemplo, certas cidades continuam a ter o direito de condenar à morte, direito que, em outros lugares, tende a ser progressivamente reservado às autoridades romanas. Sua autonomia não é total: a maior parte das cidades livres assinou um tratado com Roma no qual os limites dos poderes de cada uma das partes estão definidos; e elas permanecem muito minoritárias em relação às cidades pertencentes à província. Mas a própria existência desse status de cidade livre revela um traço fundamental da organização do Império Romano: a dominação política não implica a administração do território. Com efeito, qualquer que seja o status da cidade, livre ou não, as autoridades romanas evitam intervir na administração local: o que permite ao Império Romano funcionar com uma estrutura administrativa extremamente leve é precisamente o fato de que ele deixa às autoridades cívicas, neste caso, às cidades gregas, o exercício da maior parte das tarefas da administração. Não se trata realmente de uma delegação de poder, nem de níveis de poder dentro do mesmo Estado: não há nenhuma ligação jurídica 94

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

entre os poderes locais e o poder central. Os magistrados das cidades são designados localmente sem que as autoridades romanas intervenham; e as autoridades romanas são designadas em Roma sem nenhuma consulta às autoridades locais. Não se pode dizer que o Estado romano delegue às cidades uma parte das tarefas administrativas, mas antes que ele deixa subsistir micro-Estados, cada um com seu direito, sua religião, seu modo de designação dos magistrados, suas assembleias, às vezes mesmo sua moeda. Simplesmente, esses micro-Estados estão sob a tutela eminente de Roma, e devem assegurar o pagamento do tributo. Roma não delegou poder às cidades, mas lhes retirou um: sua liberdade em matéria de política externa. A leveza das estruturas estatais no Império Romano é conhecida há tempos. Contudo, faz apenas trinta anos que a historiografia leva verdadeiramente a sério a cidade grega da época imperial, enquanto que a fraqueza da intervenção romana direta tem precisamente por corolário a importância das estruturas locais. Mas, durante muito tempo, considerouse que a cidade era esvaziada de sua substância tão logo ela era submetida aos reis, depois a Roma: a perda da independência em matéria de política externa significava o fim do mundo das cidades gregas. “A cidade grega morreu em Queroneia” – última vitória de Filipe da Macedônia, em 338 a.C., contra as cidades agrupadas em torno de Atenas – era uma ideia globalmente admitida; a submissão aos reis marcava o fim da verdadeira cidade e o início de uma espécie de longa decadência grega. Na França, é mérito de Louis Robert ter chamado a atenção inicialmente para a vitalidade das cidades da época helenística inicialmente e, em seguida, da época imperial: os estudos epigráficos desenvolvidos por e em torno de Louis Robert permitiram restabelecer uma imagem mais equilibrada da vida cívica, plenamente dinâmica vários séculos após Queroneia. Os historiadores concordam hoje em dizer que a cidade grega não morre em Queroneia; e cada vez mais estudos mostram que ela também não morreu em Ácio, quando da vitória de Augusto, que abriu a via ao regime do Principado, em 31 a.C. Durante todo o Alto Império, a cidade conserva seu papel tanto na gestão da vida cotidiana dos habitantes do Império quanto na sua identidade. É-se, primeiramente, cidadão de uma cidade e o patriotismo cívico não diminui durante toda a época romana. As querelas fronteiriças e de precedência também não cessam, prova PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

95

GABRIELLE FRIJA

de que a diplomacia entre as cidades não desapareceu, mas apenas se transformou. Uma das tarefas principais dos dirigentes das cidades gregas é a de negociar a máxima autonomia, a máxima liberdade possível em relação às autoridades romanas, e de manter o status de sua pátria frente às cidades vizinhas. As províncias do Oriente romano conservam uma vida diplomática e política ativa e a vitalidade das cidades gregas na época romana repousa verdadeiramente sobre a continuidade de muitas dessas prerrogativas. De fato, se a soberania sobre o território é, de algum modo, partilhada entre as autoridades romanas e as autoridades cívicas, é uma partilha que não é jamais definida nem adquirida. Os romanos deixam as autoridades locais governar seu território, mas são eles que decidem em que condições e em que limites. A soberania local é, então, o objeto de negociações permanentes e são essas negociações que eu vou evocar agora. De início, a soberania local se define caso a caso. Não há tratamento único às cidades por Roma. Na medida em que as cidades permanecem entidades políticas e não estruturas administrativas de execução, a negociação de sua autonomia e de seus privilégios se faz caso a caso. Os status, privilégios e títulos das cidades são sempre suscetíveis de serem modificados em função da qualidade das relações entre os notáveis locais e os representantes da autoridade romana. Os status cívicos são, então, diversos. Distinguem-se três grandes categorias: as colônias romanas, de que eu não falarei porque são raras na região que nos ocupa; as cidades estipendiárias, que figuram na lista provincial; as cidades livres, que não fazem parte da província. As cidades livres podem pagar o tributo ou não, ter assinado um tratado com Roma ou não, e se beneficiar de diversos privilégios fiscais ou jurídicos. Minha proposta não é listar todos os status possíveis nem descrever ponto por ponto como os dirigentes das cidades livres e estipendiárias defendem sua parte de soberania: estudos recentes mostraram como se repartia o poder, notadamente em matéria de ordem pública e de justiça. Em vez dos problemas jurídicos e administrativos concretos, eu me interessarei pela linguagem utilizada para reivindicar a soberania, tendo em consideração a supremacia romana, e abordarei a questão da repartição do poder sob o ângulo do discurso e da simbologia. 96

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

A autonomia das cidades é objeto de uma negociação permanente entre três partes: o imperador, as autoridades provinciais e as autoridades cívicas. O imperador é aquele que decide em última instância, mesmo nas províncias gerenciadas pelo Senado, como são a Ásia e a Acaia. A título de exemplo, eu citarei um texto que mostra o imperador representando o papel de uma instância de apelação e impondo às autoridades romanas provinciais o respeito à liberdade de uma cidade numa província senatorial: trata-se de uma resposta de Adriano a uma embaixada da cidade de Afrodísias, na Cária, na província senatorial da Ásia. O texto data de 119 d.C. e foi gravado pela cidade. O imperador César Trajano Adriano Augusto, filho do deus Trajano Pártico, neto do deus Nerva, grande pontífice, em sua terceira potência tribunícia, aos magistrados, ao conselho e ao povo de Afrodísias, salve. A liberdade, a autonomia e os outros privilégios concedidos a vós pelo Senado e pelos imperadores que me precederam, eu já os confirmei anteriormente. Vossa embaixada me submeteu uma petição a respeito da utilização do ferro e da taxa sobre os pregos. Embora o caso seja controverso, posto que não é a primeira vez que os coletores tentaram cobrá-la em vossa terra, sendo sabido, contudo, que a cidade é, em outros aspectos, digna de honra e excluída da formula provinciae, eu a dispenso do pagamento. Eu escrevi a Cláudio Agripino, meu procurador, para informar ao coletor da Ásia para ficar longe de vossa cidade.2

Esse texto mostra que o imperador garante o respeito aos privilégios já concedidos e repete que a cidade não está na formula provinciae – o que a cidade manda gravar e afixar a fim de que isso não seja mais posto em dúvida. Além disso, ele decide sobre uma consequência concreta da liberdade, após o desacordo entre as autoridades de Afrodísias e os procuradores imperiais: a cidade não tem que pagar a taxa sobre os pregos, o que significa, na prática, que o coletor não tem o direito de entrar no território da cidade. Aliás, nas cidades livres, não se espera que nenhum membro da administração romana penetre no território cívico

2



IAph2007 8.34

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

97

GABRIELLE FRIJA

sem autorização especial; vê-se, assim, no século III, um governador de província recusar o convite de uma cidade livre por medo de violar a lei ao adentrar seu território. Para retornar ao papel do imperador, vê-se que os príncipes regularmente tomam o partido das cidades contra os governadores ou procuradores; numa correspondência entre Plínio, o Jovem, governador da província anatoliana de Bitínia-Ponto, e o imperador Trajano, no início do século II, este último recorda repetidamente a Plínio que seu status de governador não o autoriza a tudo exigir das cidades, como mostra esta troca de cartas a propósito da cidade livre de Amisos: PLÍNIO A TRAJANO: A cidade livre e federada de Amisos se governa, graças à tua benevolência, por suas próprias leis. Lá me entregaram um registro acerca dos depósitos de socorros mútuos, que eu anexo a esta carta, a fim de que tu decidas, mestre, o que acreditas que deva ser permitido ou proibido, e em que limite. TRAJANO A PLÍNIO: Para os habitantes de Amisos, cujo registro tu anexaste à tua carta, se as leis deles, de acordo com as obrigações do tratado, lhes dão o direito de ter uma associação de socorro mútuo, nós não podemos impedi-los de tê-la, ainda mais se tal sociedade não lhes servir para organizar transtornos e reuniões ilícitas, mas vier a ajudar os mais pobres. Nas outras cidades, que estão submetidas ao nosso direito, uma prática desse gênero deve ser proibida.3

Está claro aqui que a cidade de Amisos é soberana e vive de acordo com seu próprio direito, segundo os acordos inscritos no tratado entre a cidade e Roma. O imperador garante a soberania das autoridades de Amisos sobre o território da cidade. É notável ver o próprio imperador romano afirmar que não pode fazer nada, uma vez que Amisos tem seu próprio direito, e renunciar a proibir uma prática que, contudo, o inquieta: as associações são vistas como lugares possíveis de agitação popular. Não se trata, evidentemente, de dizer que as cidades e o imperador discutem em pé de igualdade. Os dirigentes das cidades devem negociar cada privilégio, que permanece frágil. Nesse contexto de negociação permanente,

3



98

Plínio, o Jovem, Lettres, X, 92-93.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

as cidades inventaram uma gama complexa de honras aos imperadores para exprimir sua lealdade e, ao mesmo tempo, sua capacidade de se autogovernar. Os cidadãos de Afrodísias, por exemplo, recorrem ao seu parentesco comum com os cidadãos romanos, também descendentes de Afrodite desde Eneias, filho da deusa; mas eles também evocam, permanentemente, sua fidelidade durante os transtornos das guerras civis romanas, a calma que reina em sua cidade e sua lealdade em relação ao imperador. Essa última aparece na epigrafia sob formas muito variadas, como em todas as cidades, desde as estátuas honoríficas clássicas até as honras divinizantes no quadro do culto da família imperial. A linguagem elaborada à época helenística para agradecer aos reis e aos cidadãos com mérito é utilizada para o imperador, que se tornou o benfeitor e o fundador por excelência. Por exemplo, Afrodísias, no início do reinado de Domiciano, participa na dedicação de um templo erigido coletivamente em Éfeso pelas cidades da província em honra ao imperador. A dedicação do templo, feita “em razão de sua piedade pelos Augustos”, é assinada pelo “povo de Afrodísias, livre e autônomo desde as origens graças aos Augustos”4. Não se poderia afirmar mais nitidamente a coexistência da reivindicação da liberdade, a da soberania do povo de Afrodísias, e a afirmação da lealdade para com os imperadores. Não há contradição entre esses diferentes elementos. Mas antes de chegar ao imperador, o primeiro nível de relações com as autoridades romanas ocorre na própria província, junto aos governadores. Os governadores de província podem ser procônsules designados pelo Senado, nas províncias ditas “públicas”, gerenciadas pelo Senado, ou legados propretores designados diretamente pelo imperador nas províncias ditas imperiais. Nos dois casos, eles dispõem de um poder extremamente amplo. Certamente, eles não podem conceder diretamente privilégios tão importantes como a liberdade ou a imunidade fiscal. Mas, de uma parte, são intermediários preciosos para se dirigir ao imperador e ao Senado; e, de outra parte, são eles que asseguram a administração corrente na província. Como para os imperadores, as alusões, na epigrafia, aos poderes respectivos de uns e outros se situam tanto no terreno do símbolo e do discurso quanto no terreno jurídico.

4



I. Ephesos 233

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

99

GABRIELLE FRIJA

Um domínio no qual essas duas dimensões são claramente expressas é o das inscrições funerárias. Para proteger as tumbas de eventuais reutilizações, é frequente o aparecimento, na epigrafia, de ameaças de sanções contra os profanadores. Na época imperial, não é raro que o profanador corra o risco de pagar duas multas: uma à cidade e outra ao fisco imperial. A título de exemplo, eis aqui um extrato de um texto de Mileto que exprime claramente a multiplicidade de autoridades envolvidas: Esta é a tumba de Flávia Hígia [...]. É proibido enterrar outra pessoa. Aquele que enterrar outro, que verta 2500 denários ao fisco imperial e 2500 denários ao conselho sagrado de Mileto, e que seja perseguido em nome da lei sobre a violação das sepulturas. A esse respeito, um documento está registrado nos arquivos [da cidade]. Sob a estefaneforia de Júlia, filha de Fileros, ao 25º dia do mês de Lenaikos; sob o proconsulado de Flávio Sulpiciano, ao 10º dia do mês de Lenaikos.5

As inscrições cívicas, normalmente, utilizam datações locais; aqui, a datação para o nome do governador é destinada a reforçar o valor do texto e tem um valor simbólico, e não legal. Certamente, as autoridades romanas estão bastante interessadas na proibição, uma vez que o profanador incorre em dupla multa, ao fisco e ao tesouro público da cidade. Mas não é o governador que recebe esta taxa, pois ela é vertida ao fisco imperial e não à caixa senatorial, mesmo que estejamos numa província gerenciada pelo Senado. Três tipos de autoridades intervêm, então, para proteger uma simples tumba: a da cidade, que é a mais importante nesse caso; a do imperador, por meio da multa ao fisco; e a do governador, que acrescenta uma garantia. A epigrafia fornece numerosos exemplos dessa soberania partilhada não somente entre autoridades locais e autoridades romanas, mas mesmo, mais precisamente, entre as autoridades locais, a autoridade imperial e um governador de província designado pelo Senado. Mas eu gostaria, para finalizar, de me concentrar sobre um tipo de documento emanado pelos dirigentes das cidades e que permite precisar o modo como esses últimos reconheciam a autoridade do governador, ao mesmo tempo em que defendiam seu próprio poder local.

5



100

Milet VI 2, 564.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

Esse tema foi menos estudado até agora que os discursos referentes ao imperador. Os dirigentes das cidades também precisaram inventar, em relação às autoridades provinciais, um vocabulário e tipos de discursos suscetíveis de exprimir suas reivindicações, como o fez Afrodísias sob Domiciano no texto citado acima. Nesse domínio, como em muitos outros, os dirigentes das cidades souberam, ao mesmo tempo, utilizar as noções romanas, novas para eles, e adaptar as noções cívicas gregas tradicionais. Eles associam, assim, respeito à tradição e integração à nova ordem política; afirmação da identidade cívica e reconhecimento da supremacia romana. É isso que mostra o estudo de um tipo de documento muito frequente na Ásia romana, as estátuas honoríficas em honra dos governadores. É banal desde a época helenística erigir estátuas em honra de homens importantes, cidadãos da cidade ou estrangeiros. A forma do monumento é quase a mesma para os benfeitores locais e para os benfeitores estrangeiros. Por outro lado, o vocabulário não pode ser o mesmo. Certas fórmulas, criadas à época helenística, são progressivamente reservadas apenas aos imperadores romanos. Por exemplo, o termo ktistès, fundador, é apenas excepcionalmente utilizado para outros que não o imperador. Pelo contrário, outros termos, como euergétès/benfeitor, podem ser utilizados dentro de contextos muito diferentes. Eu não falarei aqui das estátuas honorárias públicas, erigidas pelas cidades, mas das estátuas honorárias privadas, dedicadas pelos notáveis cívicos a título pessoal, com a finalidade de ver como esses últimos definiam suas relações com os governadores. Os notáveis cívicos utilizam raramente um vocabulário que reconhece abertamente a superioridade política dos governadores da província. As relações de clientela do tipo romano, notadamente, aparecem muito pouco. O termo patrão, frequente nos monumentos similares no Ocidente romano, permanece excepcional; contudo, é quase certo que as relações romanas de patronagem e clientela foram exportadas pela aristocracia romana nas províncias. Encontramos o termo, principalmente, para exprimir a patronagem sobre as cidades, e muito raramente a patronagem sobre os indivíduos, que devia, contudo, também existir. Mas os notáveis gregos, que fazem gravar as bases da estátua, disfarçam essa relação desigual numa relação mais igualitária. Por exemplo, muitos dos governadores são qualificados de xenoi, hóspedes daquele que dedicava a estátua, de euergetai, benfeitores, e de philoi, amigos. PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

101

GABRIELLE FRIJA

Quais relações se escondem por trás desses termos? Desde a época real, está claro que a philia, a amizade, não implica a igualdade; os amigos dos reis são administradores poderosos, mas não reis. No entanto, a philia não pode se aplicar a personagens separadas por uma enorme distância social. Assim, os príncipes, depois de Augusto, têm por amigos exclusivamente membros da mais alta aristocracia romana. A manutenção de uma philia entre notáveis locais e governadores de província pode exprimir muitas coisas. Os governadores podem ter uma lista oficial de amigos, como no caso do imperador; mas nós não temos traços disto. Eles têm, por outro lado, uma clientela na província, e é isto que pode ser expresso no termo philos: uma relação romana muito desigual seria expressa em termos gregos que atenuariam seu caráter de desigualdade. É ainda mais provável porque philos, amigo, é frequentemente acompanhado de euergétès, benfeitor; ora, a relação entre o benfeitor e aquele que recebe o benefício é, por definição, desigual. A xenia, a hospitalidade, é mais difícil de definir; o amigo deve oferecer a hospitalidade, mas esta não implica, em si, uma hierarquia entre as duas partes. Também não se sabe como são estabelecidos esses laços nem com que direito os notáveis podem exibi-los na cidade por meio das estátuas. Seja como for, isso mostra que os laços diplomáticos e políticos são expressos por intermédio da menção de alianças pessoais, e que os notáveis utilizam um vocabulário que atenua a desigualdade e a diferença de status entre eles e os governadores. Além disso, o destaque dado aos laços pessoais com os governadores permite ao notável afirmar seu próprio status social em relação aos seus concidadãos: ter um homem importante por benfeitor significa ser importante. E é também a chance, frequentemente, de evocar suas próprias funções e responsabilidades e, de certo modo, de situar a esfera de seu próprio poder. Eis aqui um exemplo de estátua honorífica de procônsul, de uma data um pouco tardia, de meados do III século d.C.: “A L. Inácio Vítor Loliano, muito ilustre procônsul pela terceira vez. M. Aurélio Fausto, devotado aos Augustos, cantor de hinos, primeiro estratego, irenarca, secretário do povo, e M. Aurélio Halóforo, devotado aos Augustos, cantor de hinos, primeiro estratego, irenarca, secretário do povo, fizeram a dedicatória para o benfeitor de sua pátria”6.

6



102

I. Ephesos 3088.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

ADMINISTRAR O TERRITÓRIO DAS CIDADES NO IMPÉRIO ROMANO

M. Aurélio Fausto e M. Aurélio Halóforo erigem a estátua do procônsul; mas, nesta ocasião, fazem lembrar que eles próprios exercem funções importantes em Éfeso. De fato, a stratêgia e a irenarquia implicam assegurar a ordem pública e a secretaria do povo é a magistratura mais importante em Éfeso. O agradecimento ao procônsul dá lugar, ao mesmo tempo, a uma reivindicação de autonomia. Os notáveis gregos não cessam jamais de destacar, ao mesmo tempo, o patriotismo local, a defesa dos interesses locais e sua própria filiação à classe dominante local. Os dirigentes das cidades tinham uma tarefa complexa: manter uma autonomia local a mais ampla possível, assegurar sua própria carreira e saber jogar com os diferentes componentes da autoridade romana. Todo um jogo de linguagem descreve relações desiguais, mas negociáveis, porque pouco fundadas juridicamente. De fato, a diversidade de tipos de partilha do poder está fundamentalmente ligada à ausência de um sistema de governo romano centralizado e anterior à conquista. Há somente sistemas, implementados progressivamente, de forma muito pragmática, à medida que ocorriam as conquistas romanas. As autoridades romanas souberam assegurar a lealdade dos notáveis locais, pois lhes deixavam uma parte importante do poder, e asseguravam a calma nas províncias, uma vez que perturbavam o menos possível os quadros da vida cotidiana. É assim que o poder romano se sobrepõe aos poderes existentes e que um mesmo território pode ser administrado, ora de acordo com o direito romano, ora segundo o direito local. Esse sistema nunca foi revisto nem racionalizado até as crises e mudanças do fim do século III. As relações pessoais e diretas, o apelo à tradição e a negociação têm, então, um peso real, inversamente proporcional às forças do Estado romano. Isso permite que as estruturas políticas e administrativas gregas perdurem e que os habitantes do Oriente romano continuem a se pensar como gregos e, consequentemente, a se administrar.

PARTE I - O MUNDO ANTIGO E SUA DINÂMICA TERRITORIAL

103

GABRIELLE FRIJA

Referências BRELAZ, C. La sécurité publique en Asie Mineure sous le Principat: Institutions municipales et institutions impériales das l’Orient romain. Basel: Schwabe, 2005. EILERS, C., Roman patrons of Greek cities. Oxford, 2002. FOLLET, S. (Éd.) L’hellénisme d’époque romaine: nouveaux documents, nouvelles approches (ier s. av. J.-C.- iiie s. apr. J.-C.). Actes du colloque international à la mémoire de Louis Robert, Paris 7-8 juillet 2000, Paris, 2004. FOURNIER, J. Entre tutelle romaine et autonomie civique. L’administration judiciaire dans les provinces hellénophones de l’Empire romain (129 av. J.-C. – 235 apr. J.-C.), Athènes, 2010. GUERBER, E., Les cités grecques dans l’Empire romain. Les privilèges et les titres des cités de l’Orient hellénophone d’Octave Auguste à Dioclétien, Presses Universitaires de Rennes, Rennes, 2009. HELLER, A., Les bêtises des Grecs, Bordeaux: Ausonius, 2006. REYNOLDS, J., Aphrodisias and Rome: documents from the excavation of the Theatre at Aphrodisias conducted by Kenan T. Erim (Journal of Roman Studies Monographs, 1), Londres, Society for the promotion of Roman studies, 1982. ROBERT, L. La titulature de Nicée et de Nicomédie. La gloire et la haine. HSPh, 81, 1977, p. 1-39. SALOMIES, O. (Éd.) The Greek East in the Roman Context, Papers and Monographs of the Finnish Institute at Athens, vol 2, Helsinki, 2001. SARTRE, M. L’Empire romain et ses cités: le cas du monde grec. In: BURASELIS, K.; ZOUMBOULAKIS, K. The idea of European Community in History. Conference Proceedings, vol.2, 2003, p. 217-225. SARTRE, M., L’Orient romain. Provinces et sociétés provinciales en Méditerranée orientale d’Auguste aux Sévères (31 av. J.-C.-235 ap. J.-C.), Paris, 1991. SVIATOSLAV, D. City government in Hellenistic and Roman Asia Minor, Oxford: Oxford University Press, 2005. VAN CAUWENBERGHE, C.  Empire romain et hellénisme: bilan historiographique. Dialogues d’histoire ancienne supplément 5, p. 141-178.

104

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

Parte II

DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

.

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA Modesto Florenzano

I Do Império Britânico pode-se dizer que se não foi o mais duradouro no tempo, o foi em extensão espacial e poder universal, tendo sido o maior de todos quantos a história já registrou. No seu auge, na segunda metade do século XIX, dominava sobre todos os oceanos, sobre toda a economia mundial (particularmente comércio e finanças) e tinha possessões diretas em todos os continentes: possuía toda a Austrália e Nova Zelândia, ou seja, todo o novíssimo continente; todo um subcontinente, o indiano; um grande território, o Canadá, e várias ilhas, na América; e muitos e estratégicos territórios na África. Mas antes de tratar do Império Britânico no tempo de Edmund Burke, isto é, na segunda metade do século XVIII, e de tratar do próprio significado da palavra império, é preciso que se diga desde logo que na história desse Império, que vai de meados do século XVI a meados do século XX, três lugares, a Irlanda, os Estados Unidos e a Índia foram, no imaginário dos que o vivenciaram, e são na visão retrospectiva dos historiadores, os mais importantes e estratégicos e isso por que neles, de uma maneira ou de outra, combinados ou não, estiveram presentes todas as determinações e motivações – geográficas, políticas, econômicas, religiosas, étnicas, linguísticas e identitárias – implicadas nas trajetórias dos grandes impérios. No caso dos Estados Unidos, sua independência da Inglaterra foi motivo suficiente para os historiadores ingleses do século XIX considerarem que esse acontecimento representava um divisor de águas, separando um primeiro Império Britânico, que se encerrava no último quartel do século XVIII, de um segundo Império Britânico, que se iniciava aproximadamente meio século depois, na primeira metade do século XIX, com a consolidação da conquista militar e ocupação territorial da Índia. Em carta a um seu ministro,

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

107

MODESTO FLORENZANO

de 1779, ou seja, em plena guerra com suas ex-colônias da América do Norte, o rei Jorge III, escrevia: “[...] aos poucos as demandas da América do Norte foram surgindo – a independência é seu objetivo [...] se ela for bem sucedida nisso, as Índias Ocidentais deverão segui-la; a Irlanda também irá seguir o mesmo projeto e se tornar um Estado separado [...] então esta Ilha [a Inglaterra] ficará reduzida a si própria e logo será de fato uma Ilha pobre” (O’BRIEN, 1992, p. 208). Essa visão equivocada de Jorge III, que parece anunciar uma espécie de teoria do dominó avant la lettre, ao mesmo tempo que confirma a obtusidade política desse rei, mostra como a Coroa inglesa não podia admitir a independência da América do Norte. A Índia, nem precisaria lembrar, será na Era do Imperialismo, iniciada em meados do século XIX, o centro do Império Britânico, a joia da coroa. Nas palavras de um historiador: “Na história dos impérios modernos o britânico ocupa de longe o lugar mais importante, e no Império Britânico a Índia. Os principais padrões de toda a administração colonial britânica foram formados na Índia e para o público o Império com todas as suas associações românticas era basicamente a Índia” (KIERNAN, 1995, p. 33). Quanto à Irlanda, basta dizer que é aí que tudo começa e, de certa maneira e simbolicamente, tudo termina. Será a Irlanda a primeira colônia inglesa, representando e combinando processos de expansão marítima e de povoamento precedido, este último, de conquista e subjugação violenta da população nativa. Com efeito, uma parte da Irlanda, a Irlanda do Norte, é ainda em nosso tempo um território sob dominação colonial inglesa; pelo menos se vista pelos olhos dos irlandeses católicos e como disso deram testemunho, na segunda metade do século XX, as ações do IRA. Mas, poder-se-ia perguntar, e a Escócia, para não falar do chamado País de Gales, não poderia também ser lembrada como uma espécie de colônia primordial inglesa? Não. E por duas razões essenciais. Uma geográfica e outra religiosa. A Escócia, como o País de Gales, é território contíguo ao da Inglaterra, e de religião protestante e certamente por isso, embora dominada pela Inglaterra, nunca foi tratada como colônia. A Irlanda, além de católica, é uma ilha; e embora muito próxima da Inglaterra, o mar que as separa, é, ou melhor, foi suficiente para funcionar nesse caso como barreira e não como ponte, ou seja, como fator determinante para que os irlandeses fossem vistos como estranhos e não como vizinhos. Em outros termos, como inimigos, por 108

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

causa da religião, e como inferiores por causa desse insulamento geográfico. Em pleno século XIX, quando a Irlanda, desde 1801, era formalmente um dos três reinos que compunham a Grã-Bretanha, o líder conservador inglês e defensor da política de coerção naquela ilha, Lord Salisbury, dizia que os irlandeses, como os Hotentotes, eram incapazes de se autogovernarem (KIERNAN, 1995, p. 29). Resumindo: o primeiro Império Colonial Britânico começa a ferro e fogo na Irlanda (com a consolidação da ocupação da ilha no século XVII, pelo exército chefiado por Cromwell, que expropria e extermina grandes contingentes da população local, de religião católica, substituindo-a por colonizadores ingleses, de religião protestante) e termina a ferro e fogo na América do Norte (com a guerra de independência dos Estados Unidos); o segundo Império Britânico começa com a conquista da Índia, igualmente a ferro e fogo, e aí termina do mesmo modo em 1947, com a independência indiana. Em outros termos, esses três territórios coloniais – dos quais surgiram três repúblicas, a dos Estados Unidos, a da Índia e a da Irlanda – para se tornarem independentes, tiveram que recorrer a guerras de libertação nacional, tiveram que derrotar militarmente o Império Britânico, obrigando-o a capitular. E essas guerras de libertação foram revolucionárias, equivaleram a revoluções; revoluções pelo menos políticas que, para glória desses países, formaram e formam democracias estáveis e duradouras. No caso da Irlanda, o historiador J. Pocock (1982, p. 334) lembrou com muita perspicácia que: Assim como a Revolução norte-americana é a exceção entre as revoluções do final do século XVIII, a Revolução irlandesa é a exceção entre as do começo e meados do século XX. Em nenhum outro país da Europa Ocidental foi, em consequência da Primeira Guerra Mundial, criado um novo Estado por meio de revolução; contudo, por não ter sido essa revolução nem comunista nem fascista, ela não interessou aos intelectuais e tem recebido pouca atenção dos historiadores. Eles podem ter deixado escapar um caso instrutivo. Por um lado, a moderna guerra de insurgência é em grau significativo um presente irlandês ao mundo; sua teoria foi elaborada (na etapa de resistência passiva) por Arthur Griffith, sua ação simbólica por Patrick Pearse e sua conduta prática por Michael Collins.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

109

MODESTO FLORENZANO

Não é possível tratar do tema império sem remontar ou fazer referência ao Império Romano, o primeiro grande império do Ocidente, entre outras razões porque a própria palavra que designa o fenômeno e permite conceituá-lo e interpretá-lo é de origem romana; e porque todos os impérios que, no Ocidente europeu, se lhe seguiram no tempo, pelo menos até o século XIX, tiveram seus próprios teorizadores e ideólogos e estes produziram discursos e textos tendo o imaginário imperial romano como paradigma e referência inescapável. No caso da Inglaterra, a identificação, por parte da aristocracia inglesa, com o Império Romano foi tão forte e a hegemonia dessa classe na sociedade tão avassaladora, que o consagrado historiador Edward Thompson, insuspeito de qualquer simpatia nesse caso, acabou por adotar os termos latinos patriciado e plebe para tratar da sociedade inglesa do século XVIII (THOMPSON, 1998)1. A palavra império carrega desde a Antiguidade romana mais de um significado, e na Idade Média, bem como na Idade Moderna, sem perder os significados originais, foi ganhando outros, mas para o que nos interessa aqui basta registrar os seguintes sentidos, além do original (que significa, por um lado, mando e poder, a capacidade legal de mandar; e, por outro, territórios e populações sujeitas a um poder dominante): o de um poder ou governo independente e completo, o de um território abarcando mais do que uma comunidade política, e o de uma soberania absoluta encarnada em um individuo específico. Mais duas coisas sobre os sentidos dessa palavra: a) império sempre foi uma linguagem do poder, de um poder ou autoridade com pretensão à universalidade, seja na escala de um espaço territorial limitado, de um reino, daí a fórmula do início da era moderna de que cada rei in regno suo erat imperator, seja na escala de um espaço que abarca todo um mundo múltiplo e variado (de territórios, de etnias, de culturas, de religiões, etc.); b) como bem lembrou o historiador Victor Kiernan, “[...] impérios sempre põem em movimento uma mistura de povos, de linguagens e de culturas” (KIERNAN, 1995, p. xix). E esse mesmo historiador lembra que na Europa moderna, quase todas as monarquias que reinaram sobre territórios extensos reivindicaram ou aspiraram ao império; que, por exemplo, o famoso rei

1



110

Ver, em especial, o capítulo 2 da obra, intitulado “Patrícios e plebeus”.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

francês Luís XIV não sabia ao certo se governava sobre um royaume, isto é, uma entidade política constituída de ou por uma única nação, ou sobre um empire, isto é, um Estado formado por muitos povos. Do outro lado do canal da Mancha, embora desde o século XVI houvesse a pretensão da Coroa inglesa a ser imperial, e nos séculos seguintes com a criação da Grã-Bretanha, constituída pelos reinos da Inglaterra, Escócia e Irlanda e das colônias, ela fosse de fato um Império – não era aceita como tal pelo continente; formalmente e no imaginário fora do mundo britânico, digamos assim, foi preciso esperar o século XIX para o trono inglês ser visto e reconhecido como imperial, acumulando a titular da Coroa naquele momento, a rainha Vitória, também o titulo de imperatriz da Índia. Uma última e importante questão sobre impérios em geral, e sobre o Império Britânico em particular, antes de passarmos para Edmund Burke. Todo império precisa, para se efetivar e durar, entre tantas coisas imprescindíveis (como exército e burocracia), de uma ideologia imperial, de grandes homens (e pequenos também), de uma classe social que a encarne, de intelectuais (grandes e pequenos), que a elaborem e a expressem – e o grande Império Romano foi grande e duradouro nisso e por isso. Nas palavras de George Lichtheim, um lúcido e independente pensador marxista do século passado: Juntos [esses grandes homens] incorporaram os valores de sua cultura e criaram a primeira ideologia imperialista de êxito na história. A característica especial dessa ideologia foi sua seriedade moral... a estima romana pelo valor, o patriotismo, a piedade familiar e certa honestidade rústica, junto com seu desprezo pelos escravos e os tiranos, constituía uma sólida base de virtudes autênticas, e o imperium viu-se tão sustentado por essa base como pelo exercício constante da força armada2.

Para esse estudioso, o imperialismo alemão dos séculos XIX e XX, constitui uma espécie de contraprova a essa sua tese aqui endossada, pois, nas suas palavras, “o imperialismo alemão pôs-se em marcha sem uma ideia universal que o sustentasse, e ao final esta circunstância resultou ser sua ruína”3.

2



Para essa discussão, consultar El imperialismo (1972, p. 25).

3



El imperialismo (1972, p. 78). O itálico é do autor.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

111

MODESTO FLORENZANO

Assim sendo, cabe, pois, a pergunta: qual foi a ideologia do Império Britânico? Esclareça-se desde logo que há uma excelente literatura sobre esse assunto, como demonstra, entre outros, o livro do historiador David Armitage, intitulado The Ideological Origins of the British Empire, de 20004. Recorro, pois, a este autor para apresentar resumidamente a ideologia do Império Britânico. Essa ideologia imperial, que se forma e desenvolve em concomitância com o próprio Império, de meados do século XVI a meados do XVIII, se autodefine como protestante, comercial, marítima e livre. Para os formuladores e historiadores desse credo, a expansão imperial britânica fez-se sob a justificação da fé cristã protestante e da proteção divina, pela necessidade do comércio e dos benefícios que este trazia aos que o praticavam e ao país, pelo mar a todos aberto e livre e, last but not least, sob o império da lei britânica, ou seja de uma constituição e regime político que garantiam a liberdade a todos os ingleses livres de nascimento, portanto, a todos os súditos britânicos; assim esperavam e queriam acreditar todos quantos, embora não ingleses, viam a si próprios como britânicos, como era o caso dos colonos da América do Norte. Antes de terminar a primeira metade do século XVIII, essa ideologia fora tão bem sucedida e internalizada que, essa é a tese do autor há pouco citado, se transformara em uma identidade coletiva, tanto inglesa quanto britânica, identidade que dava a quem a ostentava ou pretendia ostentar o sentimento de ser um súdito e cidadão de um Império livre e glorioso. Quando Montesquieu, em Do Espírito das Leis, publicado em 1748, afirma sobre os ingleses que “eles foram os que mais progrediram de todos os povos do mundo em três coisas importantes: na religião, no comércio e na liberdade”, ele está fazendo eco a essa ideologia imperial e identidade inglesa. Goste-se ou não, os adeptos dessa ideologia acreditavam, como foi o caso de Burke, que o Império Britânico era o único que combinava os ideais classicamente incompatíveis de liberdade e império. Classicamente incompatíveis como atestavam os exemplos dos impérios modernos, sobretudo o espanhol, e o de Roma antiga que ao se tornar império pôs a perder a liberdade.

4



112

A versão eletrônica da obra (e-book) foi publicada em 2004.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

Na segunda metade do século XVIII, o problema com essa ideologia é que, se para os cidadãos britânicos vivendo na Inglaterra e pertencentes às classes não populares ou subalternas, essa ideologia e identidade eram, para o bem e para o mal, uma realidade, para os britânicos fora do país isso não funcionava, como, para sua decepção e fúria, iriam descobrir os ingleses que habitavam a América do Norte. Em outros termos, na década de 1760, os colonos da América do Norte, tomaram consciência de que embora britânicos fossem, dentro do Império, uma espécie de cidadãos de segunda categoria, sem direito à representação no Parlamento. Para muitos historiadores (e para quem aqui escreve), foi isso, vale dizer, um conflito ideológico e identitário profundo e algo inconsciente, mais do que uma incompatibilidade de interesses econômicos, que evidentemente existia e que saltava à vista de todos, mas que não era irredutível, que esteve na essência do processo de independência da América do Norte. Para sorte desses cidadãos ingleses de segunda categoria, vivia o Ocidente como um todo naquele momento, o auge do Iluminismo e do nascimento da economia política, sendo desnecessário lembrar que o ano da declaração da Independência é também o ano da publicação do famoso livro de Adam Smith, sobre a riqueza das nações. Na Inglaterra, não só este filósofo, mas outros igualmente importantes e famosos, como David Hume, eram não só contrários ao mercantilismo como também ao próprio sistema colonial, de sorte que quando os colonos ingleses da América do Norte entraram em conflito com a Metrópole por causa das taxações e restrições a eles impostas pelo Parlamento a partir de 1763, eles encontraram muitos defensores de sua causa dentro da própria Inglaterra.

II Passo agora a Edmund Burke e a algumas coisas que ele disse e escreveu sobre esses três territórios de que estamos tratando. Apesar de o nome de Burke mal ser lembrado por essa historiografia recente que estuda o Império Britânico, e não vou entrar aqui no mérito de porque isso acontece, considero que vale a pena revisitar algumas de suas reflexões sobre o assunto; até porque elas muito impactaram os políticos ingleses e a opinião pública da época. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

113

MODESTO FLORENZANO

Mas, quem era, quem foi Burke? Começo com quatro afirmações sobre ele para lembrar sua genialidade como orador, escritor, pensador e autor de Reflexões sobre a Revolução em França, sua obra-prima. Como orador, um scholar, em biografia recente e atualizada, afirmou que “[...] os discursos de Burke permanecem os únicos que, como os de Demóstenes e de Cícero, são ainda lidos com proveito e com deleite” (LOCK, 2006, p. 118). Como escritor, não foram – e não são – poucos os que, como “[...] William Hazlitt, Mattew Arnold e Leslie Stephen concordavam em chamá-lo de o maior mestre da prosa inglesa; o historiador Macaulay considerou-o o maior homem desde Milton, e Mackintosh e Morley colocaram-no em um nível, juntamente com Shakespeare, acima do mero talento” (COPELAND, 1958-1970, p. xv). Como pensador, talvez a melhor formulação sobre Burke e seus escritos seja a do historiador vitoriano William Leaky ao afirmar que “talvez chegue o tempo em que eles não mais serão lidos. Mas nunca chegará o tempo em que os homens lendo-os não aumentarão sua sabedoria” (KRAMNICK, 1977, p. 41). E, sobre as Reflexões, quem melhor captou sua genialidade foi o poeta romântico alemão, Novalis, que, em 1794, apenas quatro anos depois da publicação do livro de Burke, afirmou: “Foram escritas várias obras antirrevolucionárias sobre a Revolução; Burke escreveu um livro revolucionário contra a Revolução” (GÉRARD, 1970, p. 19). Sobre a América do Norte, se Burke não foi o único a defender a conciliação entre as colônias e a Metrópole, visando à unidade do Império Britânico, ele foi, de longe, quem mais investiu e se destacou nesse posicionamento. Para defender a política de conciliação – que era também defendida pela corrente partidária à qual pertencia e da qual nesse momento ele era o grande ideólogo, isto é, os whigs liderados pelo marquês de Rockingham – Burke desenvolveu, nos diversos discursos que dedicou ao tema, uma argumentação tão brilhante em termos retóricos, e tão bem sistemática e fundamentada, abrangente e imaginativa em termos analíticos e históricos, que parecem ter alcançado o patamar mais próximo do conhecimento histórico possível. Ainda em 1769, em discurso no Parlamento, afirmava, com uma lucidez e concisão impressionantes: “Os norte-americanos fizeram uma descoberta, ou pensam que fizeram, de que temos a intenção de oprimi-los: nós fizemos uma descoberta, ou pensamos que fizemos, de que eles têm a intenção de levantar 114

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

uma rebelião contra nós [...] não sabemos como avançar; eles não sabem como retroceder... Um dos dois deve ceder” (BAILYN, 2003, p. 155). Já em 1775, um ano antes da declaração de Independência, em carta a um amigo escrevia: “Temo que todas as nossas expectativas de reconciliação com a América do Norte, estejam acabadas. O sangue foi derramado. O dique está aberto. Onde, quando, ou como ele será fechado só Deus sabe” (HARRIS, 1993, p. 205). Também em 1775, afirmava que os norte-americanos “farejam a aproximação da tirania na menor brisa insuspeita”; e, dois anos depois, em discurso de 1777, sentenciava que os norte-americanos, “são completamente avessos a qualquer outro tipo de governo que não um governo livre” (BAILYN, 2003, p. 145). Em março de 1775, num dos mais consagrados de todos os discursos de Burke e o mais brilhante e sem rival, entre todos os pronunciados na Inglaterra, dentro e fora do Parlamento, Speech on Conciliation with América [Discurso sobre a Conciliação com a América do Norte], ele indicava as causas dessa sensibilidade, dessa desconfiança exacerbada, quase paranóica, dos colonos ingleses da América do Norte com relação ao poder, com relação a toda forma de poder, seja de fora, da mãe-pátria, a Inglaterra, seja de dentro, do próprio Estado em formação, os Estados Unidos. Depois de ter apresentado tais causas, responsáveis pelo “temperamento e caráter” dos colonos ingleses da América do Norte, Burke assim as resume: [...] por essas seis fontes capitais que são a descendência [inglesa], a forma de governo [self-government], a religião nas províncias do norte [puritanismo], os costumes nas do sul [da aristocracia escravocrata e, por isso, como as das cidades antigas, amante da liberdade], a educação [muito desenvolvida no campo jurídico] e a distancia do governo central [que o oceano fazia imensa] – por todas essas causas desenvolveu-se um ardente espírito de liberdade” (KRAMNICK, 1977, p. 259-273).

Vejamos aqui apenas a terceira dessas causas, ou seja, como Burke descreve “a religião nas províncias do norte”, que em outro momento do discurso ele chama de “religião republicana”. Afirma: [...] as igrejas não conformistas [da Nova Inglaterra] surgiram em oposição direta a todos os governos ordinários do mundo, e não podiam justificar tal

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

115

MODESTO FLORENZANO

oposição a não ser com uma forte aspiração à liberdade natural. Sua existência mesma dependia da afirmação poderosa e incessante de tal pretensão. Todo o protestantismo, inclusive o mais frio e passivo, é uma espécie de dissidência. Mas a religião que mais prevalece em nossas colônias é um refinamento do princípio de resistência: é uma dissidência do dissentimento e o protestantismo da religião protestante” (KRAMNICK, 1977, p. 262).

Não chega a ser impressionante, assombrosa, essa capacidade de Burke ter penetrado até o mais fundo dessa mentalidade religiosa e cultura política tão peculiares dos colonos ingleses da América do Norte? Será preciso esperar pela A Democracia na América, de Tocqueville, em 1835, para suceder de outro europeu falar com tal sensibilidade e profundidade sobre essa sociedade. Com relação à dominação inglesa na Índia, Burke disso se ocupou no Parlamento, de maneira contínua, de 1783 a 1794, quando se retirou da Câmara dos Comuns, depois de quase trinta anos de carreira parlamentar ininterrupta. Mais precisamente, envolveu-se por inteiro com o processo de impeachment de Warren Hastings, governador geral de Bengala e Índia entre 1772 e 1783. Aberto em 1786, por iniciativa de Burke e do partido whig, e só concluído em 1795, pela perseverança e obstinação dele, o processo de impeachment terminou com a absolvição de Hastings. Com a Índia, Burke, manterá o mesmo procedimento que adotara não só com relação à América do Norte, mas com relação a tudo o que, do início ao fim de sua trajetória, atraiu seu interesse e ocupou sua mente, ou seja, procurar reunir o máximo de informação e de conhecimento possíveis sobre o assunto com o qual estava às voltas. O que disse, em 1777, sobre seu empenho em compreender a América do Norte, aplica-se igualmente e mais ainda à Índia e à França: “Penso conhecer a América [do Norte] – se assim não for minha ignorância é incurável, porque não poupei esforços visando compreendê-la” (KRAMNICK, 1977, p. 283). No caso Warren Hastings, quando decorrido algum tempo da instauração do processo de impeachment, o partido whig se desinteressou do assunto e instou Burke para que o deixasse morrer, ele se recusou afirmando: “mesmo sendo ruins as nossas chances e grande o desencorajamento sob o qual trabalhamos”, nada “me tirará desse dever” (COPELAND, 1958-1970). Burke 116

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

acabou por se tornar um verdadeiro especialista em história da Índia e, como lembrou um especialista, “seus discursos e informes sobre a Índia ocupam sete volumes de suas obras reunidas em dezesseis volumes, e ao fim de sua vida disse que preferiria ser, mais do que qualquer outra coisa, lembrado por seus esforços em defesa do povo da Índia” (MACPHERSON, 1984, P. 51). Essa sua maneira de agir foi obviamente percebida pelos seus contemporâneos, como seu conhecido Philip Francis, que definiu a mente de Burke “como um armazém de informações cheio de andares de todos os tipos” e se admirava de “como ele encontrava tempo para ler tudo” (LOCK, 2006, p. 142). Contudo, com a Índia, e a seguir com a Revolução Francesa, Burke apresentará, além de um conhecimento impressionante sobre esses dois lugares, um envolvimento tão extremado, tão obsessivo e persistente, que não foram poucos os que passaram a explicar tal comportamento estranho como decorrente de uma suposta fraqueza venal dele e/ou manifestação de loucura pura e simples. Como quer que seja, na altura em que Burke começou a se envolver também com a Revolução Francesa, sua carreira e trajetória de vida, depois de conhecer o zênite por dois breves momentos em 1765 e 1782, estava no nadir, pois ele estava isolado e desacreditado em termos políticos, dentro do partido e no Parlamento e arruinado em termos financeiros. Dir-se-ia que foi justamente essa situação de descrédito e isolamento que fez com que ele não se visse obrigado, digamos assim, a prestar contas aos vivos, mas apenas à posteridade, estando livre para dizer o que realmente sentia e pensava a respeito seja da dominação inglesa na Índia, seja da Revolução Francesa. No caso da primeira, o fato de Burke criticar e denunciar incansavelmente e sem reservas a maneira tirânica e violenta pela qual o governo inglês, por meio da Companhia das Índias Orientais, fincava e estabelecia sua dominação na Índia, não quer dizer que ele fosse contrário à expansão imperial inglesa, fosse no subcontinente indiano ou em qualquer outra parte do mundo; pelo contrário, achava isso um fato natural, recorrente na história, e desejável. Mas estava convencido que império e liberdade não eram necessariamente incompatíveis, podendo ser vantajosos para dominadores e dominados. Ainda mais e, sobretudo, porque a Inglaterra era um Estado onde vigia, fortemente enraizada e respeitada, uma constituição que se não era perfeita era – pelo menos aos olhos dos ingleses dos dois PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

117

MODESTO FLORENZANO

lados do Atlântico – a melhor de quantas havia no mundo. Assim, Burke considerava uma verdadeira tragédia, passível de ser evitada, o que os ingleses estavam fazendo na Índia, justamente eles que eram portadores de uma constituição baseada no respeito sagrado às leis e instituições antigas: estavam destruindo uma civilização mais antiga do que a europeia e tão ou mais rica, complexa e refinada. Responsabilizava a Companhia das Índias Orientais e Warren Hastings por essa catástrofe que envergonhava a Inglaterra, que fazia sua dominação ser pior e mais destrutiva do que as dominações anteriores sobre a Índia, a dos árabes, tártaros e persas. No processo de impeachment, Burke agia, nas suas palavras, “em nome do povo da Índia, cujas leis, direitos, e liberdades ele [Hastings] subvertera, cujas propriedades destruíra, cujo país deixara arruinado e desolado” (KRAMNICK, 1977, p. 388). Burke estava, nesse momento final do impeachment, repisando o que começara a denunciar já em discurso de 1783: Que cada rupia de benefício conseguida por um inglês é uma rupia perdida definitivamente para a Índia... [aí] A Inglaterra não erigiu igrejas nem hospitais, nem palácios, nem escolas; a Inglaterra não construiu pontes, nem fez estradas, nem abriu canais nem drenou pântanos. Qualquer outro conquistador de qualquer classe teria deixado atrás de si algum monumento estatal ou beneficente. Se fossemos expulsos hoje da Índia, não ficaria nada que lembrasse que este pais fora possuído, durante o período nada glorioso de nossa dominação, por alguém melhor do que o tigre ou o orangotango (KRAMNICK, 1977, p. 372).

Se, pois, a Câmara dos Lordes aprovasse o impeachment contra Warren Hastings, que ele Burke, como se disse acima, conseguira praticamente sozinho fazer a Câmara dos Comuns levar até o fim, então, assim queria ele acreditar, haveria esperanças de que a dominação inglesa na Índia pudesse mudar de forma. Se o Parlamento não aprovasse o impeachment, aquela corrupção e tirania desenfreadas, empregadas para dominar a Índia, iriam se voltar contra a própria Inglaterra. Como dirá no seu discurso final contra Warren Hastings: “Hoje os Comuns da Grã-Bretanha processam os delinquentes da Índia: amanhã os delinquentes da Índia podem ser os Comuns da Grã-Bretanha” (KRAMNICK, 1977, p. 401). 118

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

Quanto à Irlanda, a deixamos por último porque é ela que permite explicar e compreender Burke e a sua extraordinária sensibilidade e imaginação histórica, ou melhor, foi a sua condição inescapável de irlandês que potencializou ao máximo aqueles predicados de sua inteligência. Inescapável porque ele não podia se desfazer de sua identidade e formação irlandesa; não podia porque já tinha vinte anos quando chegou à Inglaterra e decidiu aí se estabelecer e se integrar socialmente; não podia porque, mesmo que quisesse, os ingleses não deixariam de vê-lo como um irlandês; mas ele nunca quis esconder e repudiar sua identidade irlandesa. Com efeito, em uma de suas últimas cartas, de 1796, afirma: “Considerando como eu considero a Inglaterra como meu país, por longo hábito, por longa obrigação e por instituição, e, considerando ainda, que meus deveres primordiais estão aqui, não posso conceber como um homem pode ser um inglês genuíno sem ser ao mesmo tempo um irlandês verdadeiro, embora a fortuna o tenha feito nascer do lado irlandês do mar” (O’BRIEN, 1992, p. 570). Registre-se a respeito disso o que declarou, muito tempo depois e com ácida ironia, outro irlandês ilustre, Bernard Shaw, “enquanto a Irlanda produzir homens com tino suficiente para deixá-la, ela não existirá em vão” (HARRIS, 1993, p. 93). O destino de Burke, deliberado ou não, foi o de se integrar ao establishment inglês e, de dentro do mesmo, lutar pela sua infeliz terra natal, “ser de alguma valia para o lugar de meu nascimento e educação, que em muitos aspectos internos e externos, penso ser mal e impoliticamente governado”, dirá em 1780 (HARRIS, 1993, p. 88). Para Burke, a Irlanda era um país infeliz porque via “todos os meios a ela dados pela Providencia para fazer a vida segura e confortável [...] serem pervertidos em instrumentos de terror e tormento” (HARRIS, 1993, p. 92). Foi sobre a Irlanda que Burke escreveu e publicou, numa revista estudantil, seu primeiro texto, quando cursava o Trinity College em Dublin; foi também sobre a Irlanda que escreveu suas últimas cartas privadas. Era a Irlanda que estava presente em sua mente quando tratava da América do Norte, porque defendendo a conciliação com as colônias e o fim das leis coercitivas que as fizeram revoltar-se, Burke estava implícita e sutilmente fazendo ver ao establishment inglês, do qual fazia parte, que também na Irlanda haveria tudo a ganhar com a retirada das leis penais que incidiam sobre os católicos irlandeses PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

119

MODESTO FLORENZANO

e os excluíam da vida política e com a concessão de mais autonomia e liberdade comercial e administrativa à ilha. Era igualmente a Irlanda que estava presente na mente de Burke quando ele denunciava Warren Hastings e a cruel e devastadora dominação inglesa na Índia. Essa dupla identidade de Burke, como inglês e irlandês a um só tempo, comportava uma ambiguidade ao mesmo tempo fértil e de alto custo psicológico. Como bem viu Conor Cruise O’Brien, o conhecido intelectual irlandês do século XX, em sua polêmica biografia sobre Burke: “Desde 1781, há sinais de que, no mais fundo da psique de Burke, a Irlanda e a Índia estão começando a se fundir numa coisa só. Seu horror à opressão dos hindus, e seu horror à opressão dos católicos irlandeses tornaram-se um único horror”; e, prossegue O’Brien, Seu, de Burke, interesse pelo sofrido povo hindu tem claramente algo a ver com o seu interesse pelo seu próprio sofrido povo: os católicos da Irlanda sob as leis penais. Em parte, e numa medida importante, esta é uma questão de capacidade de empatia com outro povo oprimido, fora da própria experiência de um sistema opressivo. Mas as forças em ação são mais complexas do que isto, e mais dinâmicas. Não se trata apenas de uma questão de defender um povo oprimido ou simpatizar com ele. Trata-se também de uma questão de desertar de um povo oprimido, e, portanto, de traí-lo. Edmund Burke provinha de um povo oprimido mas, como um protestante privilegiado, ele era parte de um sistema opressivo. Uma pessoa nessa situação sentirá necessariamente algum grau de culpa (O’BRIEN, 1992, p. 271-2).

É igualmente essa ambiguidade em Burke que, de acordo com O’Brien, explica porque ele foi capaz de enxergar com uma profundidade e presciência assombrosas o que se inaugurava na França com 1789 e ver dentro da Revolução, já em 1790, aquilo que ainda a ninguém era dado ver, nem mesmo e muito menos aos próprios revolucionários. Burke, afirma O’Brien, escreveu as Reflexões “na persona de um inglês – que é em si mesmo uma causa de confusão – mas era de fato um irlandês até a medula dos ossos”. No fim da vida de Burke, o elemento irlandês, como uma espécie de retorno do reprimido, volta a dominar-lhe o espírito. Como se evidencia nessa impressionante afirmação que faz, em carta de 1795, a um irlandês, seu conhecido: “Penso 120

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

EDMUND BURKE, UM DEFENSOR EXCÊNTRICO, DE DENTRO DA DOMINAÇÃO BRITÂNICA, DAS CAUSAS NORTE-AMERICANA, HINDU E IRLANDESA

que dificilmente superestimo a malignidade dos princípios da supremacia protestante tal como eles afetam a Irlanda; ou do Indianismo, tal como eles afetam esses países, e como afetam a Ásia; ou do jacobinismo, tal como eles afetam toda a Europa, e o próprio estado da sociedade humana. O último é o mal maior. Mas ele prontamente se combina com os outros, e flui a partir deles” (O’BRIEN, 1992, p. 459). Para O’Brien, seguindo um insight de Mary Wollstonecraft, contemporânea de Burke, se este “tinha razões para saber quais seriam os sentimentos de um revolucionário é porque as forças da revolução como da contra-revolução existiam não somente no mundo como também dentro dele próprio”. Hoje conhecida como uma das primeiras feministas, Mary Wollstonecraft, foi também a primeira a publicar uma critica às Reflexões – e a perceber sobre Burke, com uma intuição de que só as mulheres são capazes – “Lendo as suas Reflexões cuidadosamente, cheguei à conclusão de que, tivesse sido você um francês, apesar do seu respeito pela hierarquia e pela Antiguidade, você teria sido um revolucionário violento... A sua imaginação teria se incendiado” (O’BRIEN, 1968, p. 20). Dir-se-ia que se Burke foi capaz de ver dentro da Revolução, Wollstonecraft foi capaz de ver dentro de Burke. Seja como for, e para concluir, sobre esse posicionamento e esse discurso de Burke, humanista com relação à Índia e conciliador com a América do Norte e a Irlanda, não resta dúvida que não levou à nada, como o curso da história demonstrou. Se poderia ter levado à alguma coisa é ocioso saber. Mas embora retórico, e impregnado de preconceitos, de ideologia imperial e britânica e de eurocentrismo, ele representou – tal como o contexto cultural histórico iluminista no qual se insere e do qual é expressão – senão um momento alto do pensamento ocidental, um dos seus momentos menos baixo e ignóbil no que se refere à visão sobre o outro.

Referências ARMITAGE, D. The ideological origins of the British Empire. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. BAILYN, B. As origens ideológicas da Revolução Americana. Bauru: Edusc, 2003. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

121

MODESTO FLORENZANO

COPELAND, T. W. The correspondence of Edmund Burke. Chicago: Chicago University Press, 1958-1970. v. 1-5. EL IMPERIALISMO. Madrid: Alianza, 1972. GERARD, A. La Révolution Française, mythes et interpretations 1789-1970. Paris: Flammarion, Paris, 1970. HARRIS, I. (Org.) Burke pré-revolutionary writings. Cambrige: Cambridge University Press, 1993. KIERNAN, V. The lords of human kind. London: Serif, 1995. KRAMNICK, I. The rage of Edmund Burke: portrait of an ambivalent conservative. New York: Basic Books, 1977. LOCK, F.P. Edmund Burke. Oxford: Clarendon Press, Oxford, 2006. v. 2. MACPHERSON, C. B. Burke. Madrid: Alianza Editorial, 1984. O’BRIEN, C. C. (Org.) Edmund Burke: reflections on the French Revolution. London: Penguin, 1968. O’BRIEN, C. C. The great melody: a thematic biography and commented anthology of Edmund Burke. Chicago: Chicago University Press, 1992. POCOCK, J.G.A. The limits and divisions of British History: in search of the unknown subject. American Historical Review, vol. 87, n. 2, 1982. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

122

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH Julio Cesar Bentivoglio

O desenvolvimento de nossas Áreas de Proteção tem detectado deficiências graves e aprendido com a revolta no sul da África e mais recentemente pelos tumultos do Sudoeste Africano. Sacrifícios em Togo em sangue e em dinheiro foram impostos ao nosso país [...]. Obrigado àqueles oficiais e homens que, em reconhecimento, devem se orgulhar, pois, cresceram em minha reputação ao defenderem com bravura heróica nosso patrimônio até a morte. Os sacrifícios não foram em vão. Fala do Kaiser Guilherme II na Abertura do Reichstag em 28/11/1905.

Introdução A genealogia representa para Michel Foucault o encontro do saber com o poder. Ela revela uma cartografia complexa de nexos, aproximações e distanciamentos entre os discursos e as práticas, bem como indica momentos de territorialização dos poderes, onde formações discursivas dispersas, descontínuas e irregulares se ligam a dispositivos, ações e a determinadas relações de força. Este texto analisa uma determinada genealogia do terror (entendido aqui como o uso da força por um poder excessivamente repressivo) relacionada com o extermínio das populações de namas e hereros no sudoeste africano, na região onde hoje fica a Namíbia, durante a colonização alemã entre 1904 e 1908, procurando evidenciar a tensão entre a formação de discursos sobre a diferença das raças postuladas pelo colonizador europeu e os grupos étnicos nativos. Ele procura sublinhar também os mecanismos de conquista e exploração dos territórios africanos que resultaram nas primeiras experiências políticas de exclusão racial e de extermínio praticadas pelos alemães durante o Segundo Reich. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

123

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Antes de Auschwitz e do genocídio contra os judeus durante a Segunda Guerra Mundial, os alemães construíram seus primeiros campos de extermínio e praticaram um primeiro genocídio no início do século XX no sudoeste africano. Em apenas 30 anos de colonização, estima-se que eles tenham sido responsáveis pela morte de aproximadamente 200 mil nativos africanos de diferentes etnias, em maior parte hereros e namas, exacerbando a intolerância racial que, naquele momento, promoveu uma apropriação pela sociedade dos estudos e pesquisas científicas que tratavam das diferenças e hierarquias existentes entre as raças (DRECHSLER, 1984). Não por acaso, acredita-se que muitos dos nativos confinados nos campos de extermínio foram cobaias de estudos antropológicos e genéticos, sendo fotografados, classificados e acompanhados (cf. ZIMMERER, 2001, 2003); e muitos daqueles que foram mortos tiveram partes dos seus corpos, especialmente os crânios enviados para museus e laboratórios de diferentes universidades alemãs, em especial Berlim e Freiburg, para serem investigados por cientistas e suas equipes de alunos, dentre os quais são citados, em particular, Eugen Fischer, Felix von Luschan e Wilhelm Waldeyer-Hartz. Algumas fotografias tiradas naquele momento, ainda hoje preservadas, servem como poderosos indícios da construção das diferenças raciais e da subjugação de nativos africanos pelos alemães, algumas delas feitas pelos próprios oficiais e cientistas europeus (ver GEWALD, 2003). Tais imagens não deixam qualquer dúvida sobre a violência praticada pelas autoridades alemãs sobre os povos africanos, embora sejam aqui brevemente discutidas. Elas são registros que revelam valores e relações de poder, integrando um quadro que permite compreender a genealogia do preconceito e do terror que foram documentadas tanto em textos administrativos quanto em pesquisas científicas, que apregoavam a preeminência da raça branca sobre as demais existentes. Integram um conjunto de práticas e saberes, portanto, que serviram de justificativa para o uso da força pelos alemães que procuravam se impor aos nativos africanos. Os três cientistas alemães frequentemente identificados como expoentes daquele ideário são aqui tomados para se demonstrar algumas complexidades daquele discurso racial, tanto em sua apropriação posterior pelo nacional socialismo, quanto por alguns estudiosos. Apesar das críticas generalizadas não se pode afirmar categoricamente que Eugen Fischer, Felix von Luschan e Wilhelm Waldeyer124

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Hartz foram todos eles defensores fervorosos das políticas de exclusão racial ou que tivessem realizado pessoalmente experiências com restos mortais de nativos africanos. Pelo menos não os dois últimos. As teorias raciais não são uma invenção exclusivamente alemã, tampouco algo recente. Elas remontam à Nouvelle division de la terre par les différents espèces ou races qui l’habitent publicada por François Bernier em 1684. Desde então, muitos outros pensadores e vários naturalistas realizaram estudos sobre as raças humanas como Georges Cuvier, James Cowles Pritchard, Louis Agassiz, Charles Pickering e Johann Friedrich Blumenbach (Delacampagne, 2005). Em todos eles as diferenças eram dadas pela cor da pele, pelo tipo facial (forma da testa, dos olhos, do nariz e do lábio), pelo tipo craniano e pela cor do cabelo. Naquela altura já eram feitas especulações sobre a relação entre o tipo de raça e seus caracteres morais ou a inteligência. Igualmente consagrou-se a divisão das raças humanas em três: a mongolóide ou amarela dos povos do sudeste asiático e do leste do globo, a caucasóide ou branca, do continente europeu e norte da África e a negróide ou raça negra dos povos da África subsaariana. Alguns nomes, contudo, se destacaram nos estudos sobre as raças. Carl Lineus, o pai da classificação biológica, com sua décima edição do Systema Naturae (1735), e Georges-Louis Leclerc de Buffon, o primeiro cientista natural que usa sistematicamente o termo raça na divisão da humanidade e o significado na linguagem da ciência estabelecida, como descreve em sua Histoire Naturelle (1749). Ou ainda Johann Friedrich Blumenbach, que já fazia distinção entre raças melhores e piores, bem como foi responsável pela inclusão dos judeus em sua classificação racial. Em seguida, Charles Darwin e a publicação, em 1859, do seu A origem das espécies, responsável por uma biologização da Antropologia que novamente reforçou o uso do conceito de raça como categoria biológica para distinguir seres humanos (Delacampagne, 2005). A obra de Joseph Deniker, na Alemanha terá destaque por ser ele o primeiro a associar o conceito de raça com o de nação (Fredrickson, 2004). Por fim, a grande referência no assunto, durante todo século XIX foi, sem dúvida, o francês Arthur de Gobineau e seu Essai sur l’inegalité des races humaines, em quatro volumes publicados entre 1852 e 1854. De certo modo ele representa a base teórica fundamental de onde emergem boa parte das futuras teorias e práticas racistas (Delacampagne, 2005; BARBUJANI, 2007). PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

125

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Vem deste universo de ideias o entendimento bastante disseminado entre os alemães no último quartel do século XIX acerca da superioridade da raça ariana, que convergia, logo após o triunfo da unificação, com o antigo mito borussiano da hegemonia alemã sobre os destinos da Europa. Mas, até 1871 não havia Alemanha. Foi somente através do processo de unificação que ela surgiu sob o Império Alemão, que reuniu os antigos 35 Estados germânicos independentes criados após o Congresso de Viena (1814-1815) depois de três guerras: contra a Dinamarca pela posse dos ducados de Schleswig e Holstein em 1864-1866, contra a Áustria em 1866 e, por fim na Guerra Francoprussiana de 1870-1871. Coube ao Reino da Prússia o papel de liderar este movimento. Do ponto de vista interno, a unificação se alimentou do nacionalismo alemão exacerbado com a ocupação napoleônica entre 1806 e 1814, da consolidação de uma importante liga comercial que conferia impostos menores e isenções de impostos entre Estados germânicos envolvidos, o Zollverein e também devido à interligação territorial promovida pelo impressionante crescimento das linhas ferroviárias que em 1869 ligavam as mais importantes cidades alemãs. A criação do Império Alemão em 1871 – o Segundo Reich –, cuja proclamação foi feita no Salão dos Espelhos do Palácio de Versalhes, em Paris, sob o comando de Guilherme I, gerou um período de grande prosperidade econômica e de intensa militarização que reverberaram em políticas expansionistas na Europa e no resto do mundo. Não por acaso o próprio chanceler alemão Otto Von Bismarck, responsável pelo êxito no projeto da unificação, liderou em Berlim, no ano de 1885, a Conferência do Congo, onde se realizou a partilha da África pelas potências europeias. Naquele contexto, a sociedade alemã viveu um momento de euforia e prosperidade. E a Alemanha tornou-se um dos impérios mais poderosos da Europa, a despeito das tensões e conflitos internos – políticos (entre os estados que compunham a Federação), sociais (entre as diferentes classes, notadamente entre a nobreza antiga, os junkers, a burguesia e os trabalhadores) e culturais (relacionados com a Kulturkampf e o antagonismo contra judeus e católicos). Tensões acompanhadas de uma modernização nas mais diferentes áreas (administrativa, jurídica, educacional) e de afirmação cultural marcada pelo avanço nas artes, nas técnicas e no pensamento entre os alemães, que favorecia a disseminação já antiga de doutrinas, prática e sentimentos xenófobos, afinal o 126

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Império Alemão passou a rivalizar com potências como a Inglaterra e a Rússia, e havia demonstrado superioridade frente à França e à Áustria. Essa atmosfera foi também bastante favorável em alastrar concepções racistas e nacionalistas. Isso tudo favorecia a sedimentação de sentimentos arraigados de afirmação da identidade alemã face aos estrangeiros, embora não eliminasse, in totum as próprias diferenças étnicas e raciais dentro do Império (cf. NAGL, 2007). No bojo deste universo entre muitos alemães não era difícil reproduzirem-se crenças de superioridade racial, sentimento que, aliás, não era incomum em outros lugares. No geral, afirmava-se uma convicção da superioridade da civilização europeia sobre as demais. Tratava-se de uma época, portanto, em que a disputa pela hegemonia europeia e quiçá mundial acentuou-se. E ela adquiria uma fisionomia particular que evocava imagens marcantes no imaginário popular germânico: a Grossdeutsch – grande Alemanha – com a integração de todos os povos germânicos numa grande nação, reproduzida agora como um ideal de expansão física (político-territorial) e também simbólica (cultural) dos alemães sobre o globo, diferentemente da característica Grossdeutsch vivida entre 1815 e 1866. Agora surgia uma nova ambição, uma Mittelseuropa do governo de Guilherme II que deveria controlar toda a Europa central, acompanhado de uma sombra que lentamente ganharia contornos perigosos: o Lebenswelt, espaço vital, que adquiria papel relevante posteriormente, no contexto das duas grandes guerras do século XX, particularmente com o nazismo. É no bojo deste espírito que se animou a empresa colonial alemã na África e na Ásia, com forte apelo e apoio junto à opinião pública. Desse modo, durante o Segundo Reich, entre 1885 e 1918 os alemães não só exploraram várias colônias como tiveram o monte Kilimanjaro na África Oriental como sendo o ponto mais elevado do Império Alemão.

Raça e nação: alemães e africanos A forma pela qual se deu a ocupação de territórios fora da Europa pelos alemães, seguiu um padrão mais um menos conhecido. Era comum a organização e envio de expedições científicas, realizadas por botânicos, geólogos, naturalistas, etc., que iam em direção a outros continentes para PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

127

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

realizar atividades de estudo, observação e pesquisa. Também podia ser a formação de missões religiosas que se dirigiam para territórios não convertidos pelo protestantismo ou pelo cristianismo para lá desenvolverem suas atividades evangelizadoras (cf. GRÜNDER, 1982). A essas duas possibilidades via de regra seguia-se bem de perto uma outra: a iniciativa de comerciantes que acompanhavam aquelas expedições científicas ou missionárias para empreender atividades de compra e venda de produtos nativos e a comercialização de mercadorias europeias. O passo decisivo era quando alguns desses aventureiros compravam terras de algum líder local nativo. Foi assim que entre 1881 e 1885 muitos territórios foram adquiridos por alemães que, em seguida, requisitavam ao Reich proteção e garantias de exploração comercial. A princípio Bismarck não se mostrou muito receptivo a essas iniciativas, talvez sabiamente, visto que, de fato, tais territórios representariam para o Império Alemão mais despesas com proteção e desvantagens políticas que lucro efetivo. De fato, os gastos com essas zonas de proteção coloniais, os Protetorados na África e na Ásia, eram muito maiores que a arrecadação que auferiam para o Império (cf. CONRAD, 2008, 2010). As receitas provenientes das colônias com impostos, direitos aduaneiros, rendas administrativas e outros proventos extraordinários eram pequenos e ficavam quase sempre nas mãos das companhias, ao passo que os gastos administrativos e militares do governo eram elevados, devido aos custos de construção e manutenção de estradas, ferrovias, instalações portuárias, escolas, fortes e hospitais. No ano de 1916 eram protetorados alemães: o Sudoeste Africano (hoje Namíbia) com uma área de mais de 835 mil quilômetros quadrados, Camarões com quase 500 mil quilômetros quadrados, o Triângulo Kionga um pequeno entreposto oriental com mil quilômetros quadrados, Togo com aproximadamente 88 mil quilômetros quadrados e a África Oriental (hoje Tanzânia e parte de Burundi e de Ruanda) com quase um milhão de quilômetros quadrados de área. Mas o Império Alemão possuía ainda territórios em parte de Papua Nova Guiné, as Ilhas Marshall, a Baía de Jiaozhou, as Ilhas Carolinas, Salomão, Nauru, Palau e Marianas (hoje Estados Federados da Micronésia) e Samoa. A Alemanha era a terceira potência colonial, possuindo na África um império de 2,6 milhões de km2 e 14 milhões de habitantes. 128

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Os colonos alemães em todas estas áreas não chegavam a 20 mil habitantes, o que dá uma ideia de sua inferioridade face às populações nativas. Mas, esta diferença numérica era compensada por seu poderio militar. Este seria demonstrado, por exemplo, no desfecho de um conflito vivido no Sudoeste Africano (Figura 1), palco onde se desenrolou uma forte política de exclusão racial, amparada pelo pensamento científico e pelo imaginário social alemão, o genocídio dos hereros e dos namas. Na África Oriental, também se estima a morte de mais de 60 mil nativos na Revolta Maji-maji, que não será aqui discutida. Tais conflitos revelam o ímpeto e a força do interesse comercial alemão na África, que estava relacionado, sobretudo, com a plantação de algodão e café, culturas altamente lucrativas e apreciadas na Europa, ao extrativismo de plantas e produtos nativos como o amendoim, borracha e coco. Além destes havia também a caça e a venda de animais africanos para zoológicos e instituições de pesquisa, bem como matança de elefantes para a exploração do marfim. E, por fim, a principal meta, que era a exploração das minas de cobre, mármore, alumínio, diamantes e ouro. Não por acaso mais de 20 sociedades e empresas foram constituídas na Alemanha para se dedicar ao comércio nas colônias africanas. Dentre elas podemos destacar a Companhia Alemã da África Oriental, a L. & O. Hansing Mineração e Plantação de Hamburgo, Usambara Café de Berlim fundada em 1893, a Reinische Handeï Plantações de Colônia, a Sociedade de Comércio e Plantio Alemão de Dusseldorf, a Sigi-Plantio Gmbh de Essen, a Usindja Gold depois Victoria Gold Njansa Syndicate de Berlim, a Kilimanjaro Comércio e Sociedade Agrícola, a Plantação de Café Sakarre AG de Berlim, a Hinterland Lindi Gmbh, dentre outras. Só para se ter uma ideia, entre 1908 e 1913 mais de 52 milhões de dólares foram financiados somente para a mineração de diamantes. Forte evidência dos lucros auferidos no comércio dos produtos africanos explica-se pela construção de milhares de quilômetros de ferrovias ligando os principais centros comerciais.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

129

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Figura 1 - O sudoeste africano, território de ocupação alemã

Minha tese é a de que foi nesse processo de contato e disputa com os europeus, mas, sobretudo, de encontro com africanos e asiáticos que se efetivou a construção dramática de uma identidade nacional alemã, acompanhada por conflitos permanentes de assimilação e contenção de diferenças internas algo eclipsado devido à exacerbação e rejeição de identidades e diferenças externas, cuja expressão evidente pode ser vista na afirmação da superioridade da raça branca face à raça negra na África (NAGL, 2007). Ou seja, a identidade do povo alemão foi uma construção intensificada no século XIX por conta das lutas de unificação alemã, cuja formação de uma identidade escamoteia diferenças étnicas, culturais e raciais da população europeia que habitava os Estados germânicos que se reuniram mediante o uso de estratégias políticas e o uso da força militar 130

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

por parte da Prússia de Bismarck. Mas esse processo coroou-se, de fato, no reconhecimento, negação ou exacerbação das identidades externas ou não germânicas, que conduziram a um sentimento de superioridade racial, tanto na opinião pública, quanto em certos meios científicos, tal como ocorreu, dramaticamente, no solo africano. É preciso sublinhar que a Alemanha no final do século XIX era um império formado por múltiplos povos – resultado da presença de celtas, bálticos, germanos e eslavos – e por diferentes nações1. Aliás, do final da Antiguidade e durante a Idade Média, saxões, anglos, francos, turíngios, alamanos, eslavos e bávaros habitavam a Germânia e, posteriormente, os reinos germânicos. Na era moderna, algumas etnias germânicas já se faziam sentir, havendo distinções claras entre alemães, austríacos, suíços, luxemburgueses, escandinavos, neerlandeses, flamengos e frísios. Mas a questão da identidade nacional e cultural alemã construiuse, sobretudo, através de suas políticas deliberadas de diferenciação e hierarquização das raças, para o qual foram decisivas as experiências coloniais na África e Ásia (cf. LANGBEHN, 2011). A política colonial alemã pode ser dividida em duas fases, na primeira, sob a administração de Bismarck, as aquisições eram aceitas sem grande entusiasmo pelo governo, visto serem onerosas (WESSELING, 1993). A demissão do chanceler em 1891 inaugurou uma nova etapa, imperialista e austera de exploração comercial. Durante a primeira fase o governo alemão reconhecia as regiões adquiridas como protetorados (cf. CONRAD, 2008, 2010). Foi também o momento onde surgiu a possibilidade de adquirir territórios fora da Europa. Após a Guerra Francoprussiana, por exemplo, os franceses ofereceram sua colônia da Conchinchina para não perderem a Alsácia-Lorena. E também quando se fundaram algumas sociedades para explorações científicas no continente africano, como a Sociedade Africana na Alemanha, fundada em 1873, a Sociedade Colonial Alemã de 1882 ou sua concorrente, a Sociedade para a Colonização da África, de 1884, que se fundiram em 1885 e formaram a Sociedade Alemã Colonial. Após

1



Atualmente, dentro da Alemanha existem 82 grupos étnicos. Até a Lei da Nacionalidade do Império Alemão e dos Estados (RuStAG), de 22 julho de 1913, que padronizou o acesso a cidadania em todo Império Alemão a conferia para todo aquele que nascesse em solo alemão ou estrangeiro mas que um dos seus genitores fosse alemão.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

131

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

a instalação de algum empreendimento comercial, como, por exemplo, em Camarões, onde um posto comercial foi fundado em Douala pela companhia Hamburguer Woermann de Navegação e cujo entreposto foi explorado por Gustav Nachtigal era feito o pedido ao Reich para proteger o empreendimento e as terras obtidas. O Sudoeste Africano foi adquirido por Franz Adolf Eduard Lüderitz em 1884. A África Oriental por Carl Peters, a Somália por Gustav Hörnecke, Claus von Anderten e Ludwig Karl Jühlke, o território de Witu (sul do Quênia) por Gustav e Denhardt Clemens e Papua Nova Guiné por Otto Finsch. Para Hans-Ulrich Wehler, em seu O Imperialismo de Bismarck (1972), a expansão colonial foi usada para atenuar as tensões sociais e políticas internas. Em A partilha da África (1993), Wesseling afirma que do ponto de vista da política externa, entrar naquele continente teria sido uma estratégia de reaproximação com a França, visto ajudá-la na contenção da expansão britânica em solo africano, bem como se tratou de um período de ascensão da Marinha Imperial sob a era guilhermina com a presença militar naval alemã em diferentes partes do globo. As colônias viviam sob a direção direta do Reich, que nomeava os governadores para os protetorados que comandavam os processos judicais e representavam o governo alemão, auxiliados por secretários e outros profissionais. Havia o capitão das estações e, nos distritos, os guardas. O governador também podia requisitar tropas militares, caso houvesse necessidade, que ficavam sob o comando de um general, que eram chamadas de forças de proteção. A justiça local era feita pelos governadores e incluía desde castigos corporais até a pena de morte por enforcamento nos crimes contra o Reich. A adaptação às regras aplicadas pelos colonizadores alemães não se fazia sem tensão, gerando revoltas, sobretudo com a aplicação de castigos físicos. Enquanto para os nativos restava a expulsão de suas terras e o rigor do uso de sua mão de obra no plantio, na mineração ou em atividades gerais, os alemães limitavam-se à exploração e contavam com o auxílio de organizações humanitárias e culturais, em especial, voltadas para a assistência médica e suporte educacional. A parte administrativa do Império Colonial era comandada, em Berlim, pelo Departamento Colonial, que teve como diretores Paulo Kayser, Oswald von Richthofen, Gerhard von Buchka, Oskar Stubel Wilhelm, Ernst zu Hohenlohe-Langenburg e Bernhard Dernburg. 132

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

A conquista da África foi feita através da compra de terras por cidadãos do Império Alemão. Foi assim que, em abril de 1884, o comerciante Adolf Lüderitz (1834-1886) adquiriu grandes extensões de terra no sudoeste africano colocando-as sob a proteção do Reich. Este era o mesmo modelo adotado pelos ingleses.  Em julho, Camarões e Togo foram também adquiridos e incorporados sob o Império. Em fevereiro de 1885 Carl Peters comprou territórios no leste da África. Essas compras eram feitas sem que a população local tivesse a menor consciência de seus desdobramentos presentes e futuros.  A corrida para a África criou entre as potências europeias a necessidade de mediação diplomática para evitar disputas e definir as fronteiras de suas possessões coloniais. Espanha e Portugal viram seus antigos territórios serem ocupados por ingleses, franceses, holandeses e alemães. O início de rivalidades e a iminência de conflitos demandaram a necessidade da Conferência de Berlim, realizada entre 19 de novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885. Do congresso particiaram, além da anfitriã Alemanha, Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Estados Unidos, Suécia, Áustria e Império Otomano.

As teorias raciais alemãs e os africanos Ao mesmo tempo em que partia para as conquistas na Ásia e África, ampliava-se a afirmação do nacionalismo alemão e a disseminação de teorias raciais que se desenvolveram ainda mais no último quartel do século XIX e início do século XX (CONRAD, 2010, p.8s), em especial nos estudos anatômicos e na antropologia física. A noção de raça que era bem anterior e se baseava não somente na cor da pele, olhos ou cabelos, mas também através das medidas e da morfologia corporal, com destaque para a análise craniana, agora era meticulosamente estudada por cientistas alemães. Os estudos etnográficos dessa época estão cheios de medidas, avaliação de médias e proporções do crânio, tamanho do corpo, taxas de reprodução, dentre outros. Na Alemanha, para além da descrição, lentamente os estudos ganham um conteúdo político-social de valorização de determinadas raças e defesa da seleção e eugenia (GROSSE, 2004). Com o tempo ampliava-se uma suposta convicção na superioridade da raça branca, intelectual, física PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

133

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

e tecnicamente em alguns setores médicos e científicos, como também no restante da sociedade. Nos estudos de alguns cientistas como, por exemplo, Eugen Fischer existe a defesa da preservação da cultura e nacionalidade alemãs por meio da exclusão de linhas geneticamente degeneradas (os mestiços), pregando a fertilização maior das mulheres por indivíduos saudáveis e impedindo casamentos com africanos ou asiáticos. No rol dos estudiosos das raças, destacava-se Felix Ritter von Luschan (1854-1924), médico e professor de Antropologia na Univesidade de Viena e depois na Universidade de Berlim entre 1904 e 1922. Ele foi responsável pela Seção da Oceania e África do Museu de Etnologia de Berlim entre 1904 e 1911, sendo ainda um membro destacado da Sociedade de Antropologia, Etnologia e Arqueologia de Berlim. Seus estudos associavam a morfologia craniana a aspectos da biologia e antropologia humana (ZELLER, 2005). Seu interesse no campo ocorreu logo no início de sua carreira, quando realizou estudos antropológicos e arqueológicos na Ásia Menor, dedicandose às análises craniológicas e suas conexões lingüísticas, físicas e culturais. Luschan reanimou o estudo da craniologia em escavações arqueológicas que desenvolveu na Turquia e na Armênia. Sua abordagem históricoreconstrutiva dos crânios permitiu grandes avanços aos estudos étnicos na Ásia Menor, identificando vários tipos humanos como os antigos egípcios, judeus, turcos e otomanos. Em 1905 ele realizou viagens de pesquisa à África do Sul, de onde enviou a famosa coleção de arte de Benin para o museu alemão. Foi o criador da famosa Escala de Luschan em 1888-9, muito utilizada na primeira metade do século XX para caracterizar a cor da pele. Dentre seus textos sobre o problema das raças destacam-se Visão antropológica da raça de 1911 e Nações, raças e línguas publicado em 1922. Neste último deixava nas entrelinhas certa superioridade da raça branca face aos negros africanos do ponto de vista técnico e cultural. É preciso destacar, contudo, sua posição contrária face à pretendida supremacia ariana em relação aos judeus, que ele rejeitava como sendo um postulado não científico. A partir de 1914 esteve nos Estados Unidos, onde estudou coleções etnográficas em Chicago, Nova Iorque e Washington, bem como as populações de negros e mestiços, averiguando sua relação com problemas de discriminação racial, criminalidade e prostituição. De 1915 a 1918 foi 134

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

membro da Comissão Real Fonográfica Prussiana, registrando nos campos de prisioneiros de guerra mais de 70 rolos de gravações com mais de 250 línguas e dialetos, bem como canções e cantigas que posteriormente desapareceram ou se encontravam em vias de desaparecer. Embora seja considerado um dos precursores do racismo alemão, Luschan sublinhou, durante o nacional-socialismo, como sendo insustentáveis a defesa de uma unidade racial judaica e sua suposta inferioridade étnica. Postulou a não existência de uma raça ariana pura, bem como de tipos heterogêneos como formadores dos judeus gregos e armênios face aos existentes na Europa. A despeito disso, ainda é visto por muitos estudiosos como um defensor de doutrinas raciais e de ter feito experiências com nativos africanos, algo que não está devidamente comprovado. Sob o impacto da discriminação racial das populações africanas e suas próprias experiências na África Lushan revela: “Décadas atrás, eu disse publicamente que em África não tinha tantos selvagens como alguns brancos enlouquecidos, haja vista as atrocidades dos belgas [...] vai a velha África sofrer agora uma morte rápida, devido à influência europeia com seus maiores males: comércio de escravos, bebidas, contágio da sífilis e a exploração de gêneros” (LUSCHAN, 1889: 198). Sobre seus estudos craniológicos diz, em 1922: “Nós realizamos todos os testes, dividimos a raça humana pela cor da pele, pelo comprimento ou a largura da cápsula cerebral, tipo de cabelo, etc., em grupos artificiais, totalmente enganosos [...] Toda a humanidade tem apenas uma única espécie. Homo sapiens [...] Não há ‘povos selvagens’, só há povos com uma cultura diferente da nossa. [...] As propriedades de caracterização das raças são causados principalmente por condições climáticas, sociais e outros fatores ambientais. [...] Não há raças inferiores em si” (LUSCHAN, 1889: 198). Em que pesem estas declarações que contrariam a acusação de racismo, a leitura e a apropriação das teorias de Luschan por parte dos nazistas colocaram-se sob o estigma de antisemita e de defensor da superioridade racial ariana. Entre suas principais obras estão Contribuições para a Etnologia dos protetorados alemães de 1897, Etnografia antropologia e pré-história de 1905, O negro nos Estados Unidos de 1915, as Antiguidades do Benin em 3 volumes e, também, Povos, raças, línguas de 1922. Para Luschan, a suposta inferioridade de certos grupos étnicos ou de populações mestiças seria mais o resultado de um processo cultural – presente PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

135

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

desde a Antiguidade, sendo difícil associá-los exclusivamente como sendo naturalmente propensos a doenças, à criminalidade ou à prostituição – que uma condição racial. De qualquer modo, ele recomendava o afastamento dos negros africanos no sentido de proteger a sociedade alemã da miscigenação. Quando dirigiu o Museu de Etnologia de Berlim, este cientista recebeu muitos crânios e esqueletos humanos vindos da África, inclusive estipulou regras e alguns procedimentos para embalar os crânios, esqueletos e cérebros humanos que seriam despachados para a Europa. Figura 2 – Heinrich Wilhelm Gottfried von Waldeyer-Hartz (1836-1921)

Existem indícios que o professor de anatomia, responsável pela identificação e consolidação dos estudos sobre o sistema nervoso, responsável por dar nome aos neurônios bem como descrever seu funcionamento por meio das sinapses, além de também nomear os cromossomos em 1888, o geneticista Heinrich Wilhelm Gottfried von Waldeyer-Hartz (1836-1921), também tenha utilizado alguns crânios de namas com suas equipes de pesquisa nos trabalhos relacionados com o desenvolvimento dos dentes e do cabelo humano (Figura 2). Mas, não há confirmação categórica a esse respeito (cf. TILMAN, 1993). Waldeyer-Hartz ficou bastente conhecido por sua oposição à presença de mulheres na universidade, justificando que sua capacidade de raciocínio era inferior à dos homens por conta do tamanho menor de seus cérebros. Sua obra mais importante é Alguns estudos recentes 136

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

sobre a anatomia do sistema nervoso central (Ueber einige neuere Forschungen im Gebiete der Anatomie des Centralnervensystems) publicado em 1891 em Berlim. Ele também dirigiu a Revista Alemã Semanal de Medicina (Deutsche medicinische Wochenschrift). Tanto Luschan quanto Waldeyer-Hartz são alvo de intensa polêmica. Para uns são vistos como precursores das teorias raciais alemãs que defendiam a superioridade da raça branca, para outros tais acusações não procedem. O que se percebe no debate atual é a presença de disputas sobre a memória em torno da colonização alemã na África e das histórias a respeito do envolvimento ou não daqueles cientistas com experiências com os namas e hereros. Do mesmo modo como existe uma enorme polêmica sobre o caráter racial do imperialismo colonial alemão na África, visíveis na historiografia alemã, anglo-saxã e africana, em particular aquela proveniente da Namíbia (CORREA, 2011). Figura 3 – Eugen Fischer examinando algumas fotos em seu laboratório

Só há consenso sobre a efetividade desse envolvimento entre pesquisas raciais alemãs e colonização na África em relação a um único cientista. De todos os responsáveis pelo desenvolvimento de teorias raciais, Eugen Fischer (1874-1967), médico, antropólogo e eugenista foi, de fato, o precursor de teorias racistas aplicadas durante o nazismo (Figura 3). Fischer foi professor PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

137

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

em Freiburg, Würzburg e em Berlim. De 1927 a 1942 dirigiu o Instituto Imperador Guilherme I de Antropologia, Hereditariedade Humana e Eugenia de Berlim. Nesta instituição ficou famoso por sua contribuição na formulação das leis raciais nazistas. Fischer foi reitor da Universidade de Berlim entre 1933 e 1934. Em 1932 tornou-se presidente da Sociedade de Berlim para a Antropologia, Etnologia e Pré-História. Estudioso de anatomia, ele esteve no Sudoeste da África em 1908. Sua avaliação era a de que os filhos bastardos de alemães com mulheres namas ou boer representavam uma provável degeneração racial dos alemães (LOESCH, 2001). Curioso paradoxo nesta obra – Bastardos mestiços de 1913 – reside na afirmação, para contrariedade dos nazistas, de que a mistura das raças não é necessariamente ruim e que seria preciso avaliar a herança genética e não somente os caracteres externos para avaliações mais conclusivas (GESSLER, 2000). De qualquer modo, no livro que publicou em 1936, juntamente com Erwin Baur e Fritz Lenz, Plano de hereditariedade humana e da eugenia, desenvolveu diretrizes precisas para a política populacional eugenista germânica, cujos três primeiros pontos são: 1) a defesa da procriação de qualidade, de filhos mais aptos e saudáveis, 2) o entendimento de que a miscigenação pode em alguns casos produzir a degeneração da espécie e 3) o incentivo de casais saudáveis para terem filhos pode ampliar a eficiência da raça. Fischer recebeu inúmeras homenagens e prêmios. Ele foi doutor honoris causa pelas universidades de Freiburg (1937), Coimbra (1939); ganhou condecorações e prêmios da Sociedade Antropológica de Itália (1926), Áustria (1929), Espanha (1931) e Alemanha (1952) dentre outras. Foi premiado com as medalhas de Broca (1900), Rudolnf Virchow (1934), Goethe (1939), Hans Thomaz (1944), bem como o escudo e a águia do Império Alemão (1944). Fischer publicou ainda: Raças e povos de 1912, O problema do cruzamento humanos de 1914, Hereditariedade e eugenia de 1921 e Raça e formação racial nos seres humanos 1927. Em sua viagem ao Sudoeste Alemão adquiriu coleções com vários itens enviados para o Museu de Etnologia da Universidade de Freiburg como objetos de ferro e joias em couro dos namas, armas Ovambo e aparelhos domésticos dos hereros. Pode-se dizer que a Coleção Africana no Museu de Etnologia de Freiburg é a prova material da amplitude e sistemática do colonialismo alemão, que não se limitou à exploração política e econômica. 138

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

A colonização alemã no Sudoeste Africano: do conflito ao genocídio Quando Adolf Lüderitz de Bremen comprou, em primeiro de maio de 1883, uma porção de terra dos nama na baía – que leva hoje seu nome – de cinco quilômetros de extensão por cem libras e duzentos fuzis velhos, aqueles nativos não tinham ideia de seus infortúnios futuros. Em 24 de abril de 1884 a área tornou-se um protetorado alemão e no dia 7 de agosto desembarcaram funcionários e soldados de dois navios de guerra alemães, a fragata Leipzig e a corveta Elisabeth. Mediante novos tratados o território inicial foi ampliado e consolidado após o tratado de Helgoland-Zanzibar feito com a Inglaterra. Viviam na região cerca de 80 mil hereros, 60 mil ovambos, 35 mil damaras e 20 mil namas (KÖSSLER, 2004). Foram descobertas e exploradas minas de diamantes e cobre em Tsumeb e a pecuária se constituiu em uma das principais atividades econômicas. Em 1902 havia aproximadamente 2,5 mil de colonos alemães vivendo naquela colônia, número que subiu para mais de 10 mil em 1914, quando estourou a Primeira Guerra (Gründer, 1994). Uma malha ferroviária de mais de 2 mil quilômetros havia sido construída. Navios da companhia Woerman atracavam religiosamente todo dia 25 de cada mês. Em 1884 Gustav Nachtigal se tornou o governador, mas seu mandato teve curta duração, sendo substituído por Heinrich Goering, pai do líder nazista Hermann Goering. Como os namas e os hereros disputavam terras desde 1830, os alemães tentaram se aproveitar disso. Assinaram um tratado de proteção com os herero, firmado entre Leutwein e Samuel Maharero em 1895. Em 1897 criaram uma reserva de 120 mil hectares para os namas. O equilíbrio político-social entre os povos complicou-se com o advento de uma peste bovina e de uma praga de gafanhotos, no final de 1897, que provocaram a morte de centenas de cabeças de gado. O preço da carne subiu e as pastagens melhores se tornaram mais disputadas. E então os nativos se viam obrigados a alugar a terra das fazendas de colonos alemães. As tensões passaram a se ampliar. Os herero ou ovaherero formavam uma nação de pastores nômades que viviam na região da atual Namíbia e de Botswana desde o século XVII.  Compreendiam vários subgrupos, os himba, ovatjimba, mbanderu e os kwandu. Eles tinha rivalidades com outra nação pastoril, os nama, PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

139

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

também conhecidos como hotentotes ou khoi khoi. Os namas teriam vindo da região da África do Sul por volta do ano mil e criavam gado nguni. No início do século XIX, os colonos holandeses entraram em contato com os namas, que passaram a adotar nomes de origem europeia e também a usar armas. Sucessivas perdas do gado devido a doenças durante os anos 1890, mas também a contínua chegada de colonos e posterior perda de territórios por parte dos grupos provocaram rivalidades entre eles e com os colonos alemães. A Sociedade Colonial Alemã adquiria mais terras e obrigava os nativos a se deslocarem cada vez mais para o interior, ocupando as melhores terras (Bridgman, 1981). Junto a isso o uso de castigos físicos pelos colonizadores, bem como as acusações de estupro, levaram ao surgimento de muitas revoltas. A ocupação das terras para exploração comercial produziu rivalidades permanentes entre os alemães, os witbooi e os herero. Uma aliança inicial com os witbooi, que começaram a saquear e a atacar postos coloniais, foi tentada junto aos chefes daquela etnia e, em seguida os herero começaram a colaborar na criação de gado, embora muitos indivíduos desta etnia tenham se rebelado pela perda de suas terras e pelas penas com castigos físicos. Uma tropa de 50 soldados era usada para restaurar e manter a ordem, ampliada para 212 homens em 1893 liderados pelo major Theodor Leutwein, quando se tornou mais intensa a luta contra os witbooi (KUSS, 2003). Em 12 de janeiro de 1904, surgiu um novo conflito, dessa vez contra os hereros liderados por Samuel Maharero, que juntou mais de dois mil nativos e ordenou que fossem atacados apenas os colonos do sexo masculino adultos e soldados. Maharero recomendou também que missionários, britânicos, mulheres, crianças e boers não fossem atacados. Tratava-se de uma reação à ocupação maciça de suas terras pela Sociedade Colonial Alemã que os obrigava a se deslocar cada vez mais para o interior do continente, para terras menos férteis e mais áridas. Cortaram fios de telégrafo em Windhoek, destruíram trechos das linhas ferroviárias como a ponte de Osona ou a chegada da estação de Swakopmund, roubaram gado e invadiram estações militares para pegar armas e munições. Foram atacadas estações comerciais, casas e ferrovias dos alemães com terríveis confrontos na região da cidade de Okahandja. Inicialmente, cerca de 50 alemães foram mortos, o que provocou indignação no poder colonial. Mas, os hereros subestimaram a capacidade dos alemães enviarem tropas rapidamente para a África. Então 140

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

o administrador do Sudoeste Africano Alemão, Theodor Leutwein, foi substituído pelo Tenente General Adrian Dietrich Lothar von Trotha, que embarcou com 500 fuzileiros no dia 21 de janeiro para acabar com a rebelião nativa (GEWALD, 2003). Inicialmente os namas foram convidados a ajudar os alemães contra os hereros. Figura 4 – foto das tropas de Lothar von Trotha no território africano em 1904

Assim, em meados de 1904, as forças de proteção ampliaram-se, chegando a aproximadamente 800 soldados alemães e mais de uma centena de soldados nativos. Entre março e junho chegaram mais 1.141 homens, reservistas e voluntários (Figura 4). Trotha usou da guerra total para subjugar completamente os hereros, que foram derrotados em 11 e 12 de agosto na batalha de Waterberg (KÖSSLER, 2004). Os alemães usaram uma estratégia de extermínio, perseguindo os nativos em sua fuga, impedindo-os de alcançar poços de água e empurrando-os para a savana seca de Omaheke, no deserto de Kalahari, onde muitos morreram de fome e de sede (cf. KUSS, 2003; KöSSler, 2004) (Figura 5). Foram usados nesse cerco balões de observação e até aviões. Em 2 de outubro de 1905, Lothar von Trotha deu ordem de extermínio contra os hereros. Tal declaração, bem como as notícias das operações militares desencadeadas pelos alemães, levantou críticas PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

141

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

por parte das nações europeias, de modo que o imperador Guilherme II pediu ao general que revisse seu pronúncio. Em novembro, Von Trotha foi substituído. Era tarde. Milhares de hereros haviam morrido na guerra ou de sede e fome em sua permanência no deserto. Os que retornaram foram capturados e obrigados a realizarem trabalhos forçados (DRECHSLER, 1984; KUSS, 2003). Ainda em outubro foi a vez dos namas atacarem no sul da colônia, liderados por Hendrik Witbooi e James Morenga. O que se seguiu foi então uma política ainda mais acirrada de extermínio e de genocídio contra namas e hereros (TILMAN, 1993). Muitos deles foram aprisionados e, entre 1904 e 1906, relegados a morrer de doenças, fome, abusos e sede em quatro campos de concentração no continente e um nas Ilhas Shark (cf. TILMAN, 1993). Estima-se que aproximadamente 60 mil hereros tenham morrido e cerca de 10 mil namas, conquanto apenas 76 alemães tenham sido listados como desaparecidos e mortos. Dos quase 80 mil hereros em 1904, em 1911 havia apenas 15.130. Dos namas restaram menos de 10 mil. Outras etnias também foram atingidas, como os damaras e os ovambos, mas não existem números concretos sobre sua mortandade (KUSS, 2003). O que se sucedeu depois foi a troca de governadores e a tentativa de se imprimir uma administração que mantivesse a ordem, tendo sido aberta a primeira estrada de ferro em 1908, ano em que também começou a exploração de diamantes. Em apenas três meses foram encontrados aproximadamente 2.720 quilates do precisoso mineral. Em 1912 a produção diamantífera gerava 10 milhões de marcos. Figura 5 – hereros e namas aprisionados pelos alemães

142

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Figura 5 – (continuação)

Indústria da morte a serviço do saber Tal como o Oriente no século XIX, a África ocupava um lugar destacado no imaginário europeu no início do século XX, seja pelos animais, seja pela natureza exuberante, seja pela presença dos aborígenes (cf. ZANTOP, 1998). Histórias sobre reinos de ouro e diamantes, tribos canibais, belezas naturais paradisíacas eram frequentes em narrativas e imagens construídas. Muitos colonos e empresas instalados na África eram procurados para enviar objetos para lojas, curiosos, mas também para pesquisadores alemães, de várias universidades e museus. Outros ofereciam coleções de objetos para serem vendidos. Assim, no dia 20 de julho de 1907, por exemplo, o governador Puttkammer ofereceu à Universidade de Freiburg, conforme indica a relação que recebeu do médico do 136º Esquadrão de Infantaria do Exército Imperial Alemão, o senhor Kirsch, vários objetos como arcos e flechas ovambospeere, cascos de tartarugas, jóias de ferro e couro, bem como crânios hereros bem conservados [grifos meus] (SAF DS Carta de 18/02/1912). Soldados também negociavam crânios de africanos namas ou hereros. Centenas foram vendidos para cientistas, museus e universidades alemãs. A prática era muito comum, como indica a Figura 6. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

143

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Figura 6 – embalagem de crânios humanos por oficial alemão, em cujo trecho se lê: “Crânios Hereros foram acondicionados em caixas da South-West Africa pelas tropas alemãs, para serem enviados para o Instituto Patológico em Berlim para que possam ser usados em pesquisas científicas”.

Um ano depois do início da guerra de extermínio no Sudoeste Alemão, em 1907, Felix Luschan pediu ao comandante de Okahandja, o Tenente Zürn Ralf, que se empenhasse em coletar um bom número de crânios hereros. Na Alemanha, estes africanos eram retratados como selvagens assassinos, ladrões e sanguinários. Além de von Luschan, o antropólogo Wilhelm Waldeyer também recebeu partes de corpos e ossadas dos hereros, bem como crânios namas dos campos de concentração.  Eles foram enviados para Berlim pelos médicos 144

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Mayer, Dansauer, Jungels e Zöllner, sendo dissecados e estudados sobretudo por Eugen Fischer e seus alunos2. Existem relatos de que Fischer teria recebido centenas de corpos ou partes de corpos de hereros e namas mortos durante as guerras entre 1904 e 1908.  As cabeças eram preservadas – recebendo indexação e denominadas como hotentotes – termo alemão utilizado para os namas (Figura 7). Sente-se, contudo, na historiografia, discursos dissonantes a respeito das mortes ou do envolvimento dos médicos alemães nos estudos com corpos dos nativos. A respeito da guerra no sudoeste africano pode-se inferir que a história anotada (Aufschreiben), cuja temporalidade é a da curta duração, foi escrita pelos ‘vencedores’. Já a história cumulativa (Fortschreiben) permitiu certo distanciamento crítico em relação à primeira, mais suscetível à subjetividade de quem viveu a experiência. No entanto, um século depois do acontecimento, a história reescrita (Umschreiben) se aproximou dos ‘vencidos’ (CORREA, 2011, 86).

Com o fim da guerra, em 1908, Fischer continuou a realizar pesquisas de campo, estudando os filhos de pais alemães ou boer que tiveram filhos pelas mulheres namas. Como resultado, pedia leis para proibir os casamentos mistos. Suas recomendações foram seguidas e em 1912 o casamento interracial foi proibido em todas as colônias alemãs. Ele se juntou ao Partido Nacional Socialista, logo depois de sua criação em 1919 e foi nomeado reitor da Universidade de Berlim por Adolf Hitler. Foi Fischer quem planejou as esterilizações forçadas realizadas extensivamente na Alemanha nazista. O próprio Adolf Hitler escreveu, em Mein Kampf, que a obra de Fischer havia sido uma inspiração para ele (EHMAN, 1998). O Instituto Imperador Guilherme de Antropologia Hereditariedade Humana e Eugenia fundado em 1927, em Berlim, concentrou boa parte dos estudos relacionados com as pesquisas envolvendo seres humanos e foi o centro difusor das teorias raciais durante o nazismo. Seu primeiro diretor foi, não por acaso, Eugen Fischer e seu sucessor Otmar von Verschuer.

2



Conforme relatório do Tenente Kuthe ao Comando Imperial de 25 de abril de 1889. Ver Ethnographischer Bericht über die Eigeborenen der Musa Halbsinsel (Nordwestlicher Teil von Neu-Mecklenburg), 1899, MFV, IB, 48, v.1, p.822-99. ZIMMERMAN, Andrew. Anthropology and Antihumanism in Imperial Germany. Chicago: University of Chicago Press, 2001.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

145

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Lá pesquisou, entre outros médicos nazistas, Josef Mengele. Entre 1932 e 1935 pesquisas sobre gêmeos foram financiadas pela fundação americana Rockefeller. A Sociedade de Antropologia, Etnologia e Pré-História de Berlim, fundada em 1869, também patrocinou pesquisas desenvolvidas a partir de crânios e ossadas de africanas. Figura 7 – os hotentottes

Durante a guerra entre os alemães e os nativos diversas imagens ilustram o assassinato destes últimos, que eram enforcados ou fuzilados, ou ainda tinham suas cabeças enviadas para laboratórios em universidades alemãs (Figura 8). Figura 8 – fotografias retratando a morte de Hereros

146

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

Com a entrada dos namas nos conflitos a partir de dezembro de 1904, a guerra entre europeus e nativos ganhou ares dramáticos. Muitos alemães morreram em emboscadas e no confronto com as guerrilhas. No final de 1904 os combates intensificaram-se, embora somente em 1907 o governo alemão tenha feito a declaração oficial de estado de guerra no sudoeste africano. Entre 1904 e 1905 foram construídos os primeiros campos de concentração – a exemplo dos primeiros campos britânicos usados contra os bôer na África do Sul – em Okahandja, Luderitz, Windhoek (Figura 9), Swakopmund e nas Ilhas Shark, cujas poucas fotos existentes (Figura 10) testemunham sua existência. Figura 9 – Hereros prisioneiros em Windhoek

Naqueles campos, os nativos permaneciam em condições desumanas, com falta de água potável, de comida, tratamento médico, tendo sido vitimados por várias moléstias como o escorbuto, a desinteria ou a febre tifóide, por exemplo (LANGBEHN, 2011). Além disso, eram submetidos a trabalhos para construir e reparar estradas e trechos da malha ferroviária. Estudos indicam que nem a metade dos prisioneiros conseguiu sobreviver (MADLEY, 2004). PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

147

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

Figura 10 – Shark Island Camp Morte. Fotografias feitas pelo tenente von Durling

Conclusão Procurou-se demonstrar a relação entre desenvolvimento das pesquisas raciais com o nacionalismo e o expansionismo alemão no sudoeste africano, mostrando como as guerras movidas contra os hereros e os namas levaram à construção dos primeiros campos de concentração naquele continente. As imagens apresentadas ilustram não somente aqueles conflitos, como documentam uma genealogia das diferenças raciais produzidas na prática cotidiana e no pensamento científico no final do século XIX e início do século XX na Alemanha. Elas revelam que antes mesmo do advento do nazismo, 148

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

o Segundo Reich já havia produzido os primeiros campos de concentração alemães no sudoeste da África. E discutiu algumas das críticas que procuram associar três importantes médicos alemães relacionados com o estudo da anatomia antropológica ao desenvolvimento de experimentos com partes dos corpos de africanos nas universidades de Berlim e de Freiburg, reconhecendo Eugen Fischer como o principal mentor da eugenia e das políticas de segregação racial que inspiraram posteriormente preceitos fundamentais das leis e preceitos raciais do nacional socialismo.

Referências BARBUJANI, Guido. A invenção das raças. São Paulo: Editora Contexto, 2007. CONRAD, Sebastian. Deutsche Kolonialgeschichte. München: Beck, 2008. CONRAD, Sebastian. Globalisation and the Nation in Imperial Germany. New York: Cambridge University Pres, 2010. CORREA, Sílvio M. de Souza. História, memória e comemorações: em torno do genocídio e do passado colonial no sudoeste africano. Revista Brasileira de História, v.31, n.61, 2011. DELACAMPAGNE, Christian. Die Geschichte des Rassismus. Düsseldorf: Artemis & Winkler, 2005. DRECHSLER, Horst. Le Sud-Ouest africain sous la domination coloniale allemande: la lutte des Hereros et des Namas contre l’impérialisme allemand, 1884-1915. Berlin RDA: Akademie-Verlag, 1986. EHMAN, Annegret. From colonial racism to Nazi population policy: the role of the so-called Mischlinge. p. 115-133 in M. Bernbaum/ A. J. Peck (eds.). The Holocaust and history. The known, unknown, the disputed and the reexamined. Bloomington/Indianapolis: Indiana University Press, 1998. FREDRICKSON, George M. Rassismus – Ein historischer Abriss. Hamburg: Hamburger Edition, 2004. GESSLER, Bernhard. Eugen Fischer (1874-1967). Leben und Werk des Freiburger Anatomen, Antrhopologen um Rassenhygienikers bis 1927. Frankfurt: Lang, 2000. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

149

JULIO CESAR BENTIVOGLIO

GEWALD, Jan-Bart. Herero genocide in the twentieth century: Politics and memory. p. 279-304 in Jon Abbink et al. (ed.): Rethinking resistance. Revolt and violence in African history. Leiden/Boston: Brill, 2003. GROSSE, Pascal. Kolonialismus, Eugenik and bürgerliche Gesellschaft in Deutschland 1850-1918. Frankfurt am Main/New York. Campus Forschung, 2000. GRÜNDER. Horst. Christliche Mission und deutscher Imperialismus. Schöningh, Paderborn 1982. GRÜNDER, Horst. Geschichte der deutschen Kolonien. 5. München/Wien/ Zürich: Ferdinand Schöningh, Paderborn, 2004. KÖSSLER, Reinhart og Henning Melber. Völkermord und Gedenken. Der Genozid and den Herero und Nama in Deutsch-Südwestafrika 1904-1908. p. 37-75 in Fritz Bauer Institut (ed.). Völkermord und Kriegsverbrechen in der ersten Hälfte des 20 Jahrhunderts. Jahrbuch 2004 zur Geschichte und Wirkung des Holocaust. Frankfurt/New York: Campus, 2004. KUSS, Susanne. Der Herero-Deutsche Krieg und das deutsche Militär: Kriegsursachen und Kriegsverlauf. p. 62-77 in L. Förster et al. (eds.): Namibia-Deutschland. Köln: Rautenstrauch-Joest Museum für Völkerkunde der Stadt Köln, 2004. KUSS, Susanne. Deutsches Militär auf kolonialen Kriegsschauplätzen. Eskalation von Gewalt zu Beginn des 20. Jahrhunderts. Berlin: Ch. Links Verlag, 2010. LANGBEHN, Volker, SALAMA, M (org). German Colonialism: Race, the Holocaust, and Postwar Germany. [Paperback], 2011. LOESCH, Niels C. Rasse als Konstrukt. Leben und Werk Eugen Fischers. Frankfurt: Lang, 1997. LUSCHAN, Felix von. Anthropologische Studien. in: PETERSEN, Eugen & LUSCHAN Felix von (orgs.). Reisen in Lykien Milyas und Kibyrati. Wien: s.n. 1889. MADLEY, Benjamin. From Africa to Auschwitz: how German South West Africa included ideas and methods adapted and developed by the Nazis in Eastern Europe. European History Quarterly, vol. 33, no 3: 429-464, 2004. NAGL, Dominik. Grenzfälle – Staatsangehörigkeit, Rassismus und nationale Identität unter deutscher Kolonialherrschaft. Frankfurt/Main: Peter Lang Verlag, 2007. 150

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

MÉDICOS, TEORIAS RACIAIS E CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO ALEMÃES NO SUDOESTE AFRICANO DURANTE O SEGUNDO REICH

TILMAN, Dedering. The German-Herero War of 1904. Journal of Southern African Studies 19, v.1, p.80-88, 1993. WEHLER, Hans-Ulrich. The German empire 1871-1918. Oxford: Berg, 1972. WESSELING, H.L. Divide and rule. The partition of Africa. 1880-1914. Harlow: Longman, 1993. ZANTOP, Susanne. The Imperialist Imagination: German Colonialism and Its Legacy (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1998); ZELLER, Joachim. Genozid und Gedenken. Ein dokumentarischer Überblick. p.163-189 in H. Melber (ed.). Genozid und Gedenken. Namibischdeutsche Geschichte und Gegenwart. Frankfurt am Main: Brandes & Apsel, 2005. ZIMMERER, Jürgen. Krieg, KZ under Völkermord in Südwestafrika. Der erste deutsche Genozid. p. 35-63. In: J. Zimmerer/J. Zeller (eds.). Völkermord in Deutsch-Südwestafrika. Berlin: Ch. Links Verlag, 2003. ZIMMERER, Jürgen. Kriegsgefangene im Kolonialkrieg. Der Krieg gegen die Herero und Nama in Deutsch-Südwestafrika (1904-1907), p. 277-294. In: Rüdiger Overmans (ed.). In der Hand des Feindes. Kriegsgefangenenschaft von der Antike bis zum Zweiten Weltkrieg. Köln: Böhlau, 1999. ZIMMERER, Jürgen. Rassenkrieg und Völkermord. Der Kolonialkrieg in Deutsch-Südwestafrika und die Globalgeschichte des Genozids. p. 23-48 In: H. Melber (ed.). Genozid und Gedenken. Namibisch-deutsche Geschichte und Gegenwart. Frankfurt am Main: Brandes & Apsel, 2005. ZIMMERMAN, Andrew. Anthropology and Antihumanism in Imperial Germany. Chicago: University of Chicago Press, 2001.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

151

.

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO Lucia Maria Paschoal Guimarães

Ao longo dos anos oitocentos, o saber histórico alcançou grande notoriedade no mundo ocidental. Tal visibilidade explica-se por uma combinação de fatores, a começar pelo aparecimento do conceito moderno de Estado-nação, forjado no último quartel do século XVIII, no contexto das revoluções americana e francesa (BERGER, 1999, p. 3-14). Ora, o conceito de Estado-nação se baseia em uma ficção, a da homogeneidade: um povo, uma raça, um território, um governo. O Estado que uma nação projeta, tanto quanto os relatos construídos pelos historiadores de ofício, podem ser percebidos como respostas para uma mesma questão formal: como estabelecer unidade dentro da diversidade? Não por acaso, o Estado-nação moderno empenhou-se em incorporar e realçar certas homogeneidades, de modo a dar dimensão nacional a velhas tradições regionais e confessionais. Buscava-se, assim, despertar na população o sentimento de pertencimento ao que Benedict Anderson denomina de “comunidade política imaginada”, que inventa e ao mesmo tempo mascara o passado, que se pretende representar por meio de um conjunto de manifestações culturais (ANDERSON, 2008, p. 31-32). O historiador, por sua vez, ao narrá-las, compõe uma trama, de maneira a dar sentido a fatos e opiniões nem sempre convergentes. A história passara a desempenhar, estrategicamente, uma função integradora, ou seja, a de dotar os indivíduos de um passado comum, promovendo a coesão. Mas, se cada Estado-nação é único, ele é sempre um entre muitos. A unidade não se constrói apenas sobre a diversidade interna, mas também em relação ao outro, do ponto de vista extraterritorial. E, não se pode esquecer, de que para cada história narrada existiriam outras histórias. Assim, diferentes encaminhamentos foram propostos para esboçar os contornos da consciência histórica nacional, consoante uma perspectiva PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

153

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

temporal. Na França, Jules Michelet projetou a gênese da nacionalidade na Idade Média. Já para Droysen e Sybel, o espírito alemão originara-se na Prússia. Aos olhos de ambos, Martinho Lutero emerge como profeta da nacionalidade. Por sua vez, no caso da Península Itálica, cuja unificação só viria a ser alcançada no final da década de 1860, Carlo Cattaneo fixa suas raízes no Risorgimento, consoante a tradição liberal. Por outro lado, a escrita da história constitui apenas uma das manifestações voltadas para estimular a formação da consciência nacional. Os textos dos historiadores influenciaram, sobretudo, as elites letradas. Outros meios de expressão seriam empregados para promover a integração das camadas populares, tais como as celebrações dos chamados fastos da pátria, a institucionalização de feriados nacionais, o estabelecimento de museus, de monumentos e a fixação de símbolos, representativos da memória nacional. Isto sem falar da disseminação das novelas históricas, cujos enredos costumavam atrair leitores de todos os segmentos sociais, de ambos os sexos. Aliás, Frank Ankersmit, adverte que no mundo ocidental, entre 1800 e 1830, mais do que a história, a literatura representou papel de primeira grandeza no processo de formação da consciência nacional (ANKERSMIT, 2002, p. 73). De qualquer modo, o século XIX testemunharia a crescente profissionalização da escrita da história. Tal evolução operou-se inicialmente no sistema universitário alemão reformado, cujas bases mais tarde seriam adotadas na França, na Itália e na Grã-Bretanha. Passo a passo, a produção historiográfica se transformou em um exercício acadêmico, orientado por protocolos próprios. É bem verdade que o estatuto científico da história sempre enfrentou sérios questionamentos, uma vez que a disciplina nunca alcançou o rigor conceitual das ciências naturais. Vale lembrar que estas percebiam o conhecimento sob a forma de generalizações e leis abstratas, enquanto que o foco do conhecimento histórico privilegiava indivíduos e culturas concretas no tempo, nas palavras de Thomas Carlyle, [...] homens de bochechas coradas, com paixões nos estômagos, que falavam idiomas, possuíam traços característicos e vitalidades como todos os seres humanos (CARLYLE, 1971, p. 90). O certo é que influenciados pelo paradigma das ciências naturais, os historiadores assimilaram com otimismo a crença de que a investigação 154

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

metodologicamente controlada tornaria possível o conhecimento objetivo. Tanto quanto outros cientistas acreditavam que a verdade consistia na correspondência do conhecimento com uma determinada realidade. No entender de Leopold Von Ranke, tratava-se de revelar o passado tal como havia ocorrido. Para tanto, fazia-se necessário o levantamento exaustivo das fontes, de preferência coletadas nos arquivos oficiais, e submetidas à rigorosa análise crítica. No fundo, ao se autodefinir como disciplina científica, a história provocou uma cisão não apenas entre o discurso científico e o literário, mas também entre historiadores de ofício e amadores. Entretanto, sua transformação em disciplina institucionalizada, ensinada e estudada nas universidades, não trouxe descontinuidade em relação a antigas formas de escrita da história. A historiografia oitocentista assentava-se em fundamentos que remontavam aos clássicos da Antiguidade grega. Continuava, pois, a tomar como base a distinção entre mito e verdade (IGGERS, 1997, p. 3). Além disso, apesar da almejada cientificidade e do pretendido caráter não retórico, o discurso histórico operava consoante a tradição, de que a história é sempre uma narrativa. Donde se pode inferir que o rompimento entre a história científica e os velhos cânones literários foi muito menos profundo do que se imagina. A história cientifica de Ranke compartilhava de três pressupostos básicos da tradição estabelecida desde Heródoto e Tucídides (MOMIGLIANO, 2001, p. 53). Em primeiro lugar, a premissa de que a história se ocupa de pessoas que realmente existiram, bem como de ações que de fato aconteceram. Em segundo, a ideia de que os atos humanos refletem a intenção de quem os pratica, assim, cabe ao historiador compreender seus propósitos, de modo a construir um relato coerente. Em terceiro, a adoção de uma concepção linear e diacrônica de tempo, na qual os eventos se sucedem em ordem cronológica. Para o historiador, portanto, a lei se resumiria na estrita apresentação dos fatos. Resta, então, indagar que tipos de acontecimentos deveriam merecer a sua atenção? A resposta parece simples: os de natureza política, naturalmente. Homem do tempo da restauração, Ranke, ao formular o conceito de Estado, embasava-se na realidade política da Prússia, nos anos que precederam a unificação alemã (1848). Anterior, portanto, ao estabelecimento PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

155

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

das instituições representativas, à expansão acelerada da industrialização e ao surgimento das sociedades de massa. Daí a ênfase que atribui aos aspectos políticos, relativamente isolados das forças sociais e econômicas, bem como a dependência do historiador ao exame quase que exclusivo da documentação oficial do Estado. No Brasil, os estudos históricos se iniciaram, formalmente, com o estabelecimento do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), destinado a coligir, metodizar, arquivar e divulgar documentos para a escrita da história do Brasil. Criado em 21 de outubro de 1838, por iniciativa do cônego Januário da Cunha Barbosa e do marechal Raimundo da Cunha Matos, e organizado de acordo com o modelo do Instituto de Paris. O programa de atuação do Instituto combinava três elementos: um discurso legitimador da monarquia, um projeto de pedagogia social, voltado para o incentivo ao ensino público, e um formidável plano de pesquisa, que privilegiava a coleta e a divulgação de toda a sorte de documentos relevantes, de modo a construir a memória nacional. Januário da Cunha Barbosa justificava a fundação do reduto intelectual, com o argumento de que a história nacional estava entregue às interpretações de autores estrangeiros. Figura de destaque nos eventos que precederam o 7 de setembro, um dos articuladores do episódio do Fico, o cônego manifestava o seu desapontamento ao ver “[...] relatados desfiguradamente até mesmo os modernos fatos da nossa gloriosa independência [...] ainda ao alcance das nossas vistas, porque apenas se passaram dezesseis anos”. Sustenta que caberia ao Instituto, recém-criado, chamar para si o encargo de escrever a história pátria (GUIMARÃES, 2011, p. 65). Para tanto, esboçara um ambicioso “programa de investigação”, publicado no número de lançamento da Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o título “Lembranças do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto Histórico [...] para remeterem à sociedade central”. Entre outras medidas, Januário aponta a necessidade de providenciar cópias autênticas de documentos e extratos de notas, a serem compulsados em secretarias, arquivos, cartórios civis e eclesiásticos (BARBOSA, 1839, p. 128-130). Por aquela mesma ocasião, outro sócio-fundador do IHGB – José Silvestre Rebelo, indicou que o Instituto solicitasse ao Ministério dos Negócios Estrangeiros a designação de um funcionário, adido à legação do 156

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

Império em Madrid, com a missão de investigar e reproduzir manuscritos de interesse para a escrita da história do Brasil, existentes nos arquivos ibéricos. Entre os comissionados para desempenhar aquelas funções, cabe aqui lembrar os nomes de José Maria Amaral, de Francisco Adolfo de Varnhagen, de Antonio Gonçalves Dias, de João Francisco Lisboa, assim como o de Joaquim Caetano da Silva, que devassou os arquivos holandeses e franceses. Como se pode constatar, para além das preocupações expressas com a pesquisa documental, Januário e Silvestre Rebelo mostravam-se atentos às formas correntes de se escrever história nacional (BERGER, 1999, p. 14). E, no caso brasileiro, com justa razão. Recém saído da condição de colônia, o Império instaurado nos antigos domínios portugueses da América, em 1822, necessitava fixar as suas origens, de maneira a dotá-lo de um passado único e coerente, que o legitimasse. O trabalho desenvolvido nos primeiros anos do Instituto Histórico não ficou restrito apenas à organização da memória de papel, parafraseando Leibiniz. Nem se limitou às atividades do que Ernest Renan costumava denominar de atelier de trabalhos científicos, apesar da erudição e do rigor que ali se dispensava ao levantamento e à crítica documental. Construiu-se a memória nacional, consoante a definição cunhada por Pierre Nora, isto é, “[...] a formação gigantesca e vertiginosa de estoque de material, de tudo que nos é impossível lembrar; o repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de recordar” (NORA, 1984, p. XXVI. O grifo é meu). A ideia de organizar esse gigantesco estoque de material aparece externada nas já citadas “Lembranças” do ensaio publicado por Januário da Cunha Barbosa, assim como na mencionada iniciativa de enviar missões de pesquisadores aos arquivos europeus. Quanto à necessidade de recordar, ela se norteou pelas condições originais em que os integrantes do IHGB dialogaram com as circunstâncias históricas. Bata dizer que dentre os 27 fundadores do Instituto, 14 eram notórios homens públicos (GUIMARÃES, 2011, p. 40)!

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

157

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

Quadro nº 1 IHGB: Relação dos Fundadores Alexandre Maria de Mariz Sarmento Antonio Alves da Silva Pinto Antonio José de Paiva Guedes de Andrade Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho Bento da Silva Lisboa Caetano Maria Lopes Gama Candido José de Araújo Vianna Conrado Jacob Niemeyer Emilio Joaquim da Silva Maia Francisco Cordeiro da Silva Torres e Alvim Francisco Gê de Acaiaba Montezuma Inácio Alves Pinto de Almeida Januário da Cunha Barbosa João Fernandes Tavares Joaquim Caetano da Silva Joaquim Francisco Vianna José Antonio da Silva Maia José Antonio Lisboa José Clemente Pereira José Feliciano Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo) José Lino de Moura José Marcelino da Rocha Cabral José Silvestre Rebelo Pedro de Alcântara Bellegarde Raimundo José da Cunha Matos Rodrigo de Sousa Silva Pontes Tomé Maria da Fonseca Num rápido golpe de vista, ao lado de indivíduos aparentemente desvinculados do panorama político, sobressaem-se algumas notabilidades da Corte. Nomes cujas biografias se confundem com a própria história da 158

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

instituição do Estado imperial. Para se ter uma ideia, à exceção do visconde de São Leopoldo e dos marechais Francisco Cordeiro da Silva Alvim Torres e Raimundo da Cunha Matos, que prestavam serviços à dinastia de Bragança desde o período joanino, na relação dos fundadores do IHGB há que se destacar a presença de dois grupos de políticos: aqueles que se iniciaram na vida pública por ocasião da independência e os que ascenderam ao aparato de governo após a Abdicação. No primeiro caso, destacam-se as figuras emblemáticas de Januário da Cunha Barbosa e de José Clemente Pereira, além de um conjunto de parlamentares que haviam participado da Assembleia Constituinte de 1823, como Caetano Lopes Gama, Cândido José de Araújo Viana, José Antonio da Silva Maia e Francisco Gê de Acaiaba e Montezuma. A esses nomes cabe acrescentar o do financista José Antonio Lisboa, Ministro da Fazenda, no 11º Gabinete do Primeiro Reinado. No segundo grupo, salientam-se as figuras de Aureliano de Sousa Coutinho, de Bento da Silva Lisboa – filho do Visconde de Cairu, de Joaquim Francisco Vianna e de Rodrigo de Sousa da Silva Pontes. A questão, portanto, se desloca do âmbito científico, para se situar no plano da ação política. Deste patamar é que se tomaram as decisões sobre a conveniência de dar publicidade a certos documentos, de arquivar fontes cuja veiculação poderia prejudicar a reputação política de determinados sócios ou de censurar obras cujas versões de episódios históricos se mostrassem incompatíveis com o projeto de consolidação do Estado monárquico. Ou, ainda, de instituir a “arca do sigilo”, uma espécie de cofre-forte, idealizado por Francisco Freire Allemão, com a finalidade de manter guardadas “[...] notícias históricas que alguém queira enviar, lacradas em cartas [...] que só serão abertas no tempo em que seu autor determinar” (ALLEMÃO, 1847, p. 567). Neste sentido, à guisa de ilustração, vale a pena recordar dois casos exemplares: na sessão de 20 de abril de 1839, por sugestão do dr. Euzébio de Queiroz Mattoso, o Instituto aprovou um indicativo para que fossem convidados os sócios Januário da Cunha Barbosa, José Clemente Pereira e Joaquim Gonçalves Ledo, a fim de formarem uma “comissão especial”, com o propósito de “[...] escrever tudo aquilo que possa esclarecer ao historiador sobre a glória da nossa independência” (GUIMARÂES, 2011, p.73-74). A proposta, encaminhada pelo futuro Ministro da Justiça de D. Pedro II e mais tarde autor da lei que iria extinguir o tráfico negreiro, apesar da sua PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

159

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

relevância, não foi levada adiante, protelada por sucessivas vezes, pelo que pudemos rastrear em nossas investigações. As únicas referências a respeito, encontram-se no “Relatório do Secretário Perpétuo”, relativo ao exercício de 1839. No documento, Januário, que na época ocupava aquela função, informava, laconicamente, que o “comitê especial” não se desincumbira da missão que lhe fora confiada, tendo em vista “[...] a falta de tempo, o excesso de ocupações e outras circunstâncias” (BARBOSA, 1839, p. 268). Se, por um lado, é de se lamentar a falta do depoimento daqueles vultos que, juntamente com José Bonifácio e D. Pedro I, foram personagens de primeira grandeza no processo da nossa emancipação política, por outro, não fica difícil compreender as razões do seu silêncio. Como iriam explicar certas questões contraditórias, a exemplo do seu afastamento do governo, não havia transcorrido dois meses da proclamação de 7 de setembro? E a devassa que fora mandada instaurar contra eles, por ordem de José Bonifácio, sob a acusação de serem partidários do regime republicano? De mais a mais, conforme pondera Januário no seu “Relatório”, havia também “as circunstâncias”, ou seja, a conturbada conjuntura do período regencial e dos primórdios do Segundo Reinado, repleta de incertezas e marcada por disputas pelo poder político. A situação, portanto, não parecia oportuna para se trazer à superfície acontecimentos recentes e contraditórios, e que envolviam personalidades em plena militância político-partidária (GUIMARÃES, 2011, p. 73). Outro caso emblemático que merece ser mencionado foi o destino dado a um “manuscrito raro”, doado ao IHGB pelo sócio honorário general José Inácio de Abreu e Lima, filho do chamado “Padre Roma”, um dos participantes da Revolução Pernambucana de 1817. No documento, se evidenciava certa simpatia para com os rebeldes, por parte do então governador de Pernambuco, Caetano Pinto de Miranda Montenegro. O testemunho, inicialmente, fora “recebido com especial agrado”. Afinal, tratava-se de uma carta do próprio punho de Caetano, cuja autenticidade era inquestionável. Encaminhada à Comissão de História, como de praxe, para julgar o mérito e a conveniência de sua divulgação, a fonte acabou caindo nas malhas da censura. A Comissão opinara pelo seu arquivamento, veredicto ratificado no plenário do Instituto, sob as seguintes alegações: “[...] conquanto um tal documento seja na verdade de muito apreço, não convém publicá-lo já, pelo comprometimento que sua publicação poderia levar 160

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

a pessoas ainda existentes; [...] que seja guardado nos Arquivos do Instituto, até que todos os nomes nesse mencionado documento tenham comparecido perante o tribunal da posteridade” (GUIMARÃES, 2011, p. 77. O grifo é meu). Ao tomar essa decisão, que acabou por se transformar em uma espécie de jurisprudência para o exame de outros casos semelhantes, os membros da Comissão de História tinham seus motivos. Dentre as personalidades encarregadas de reprimir o movimento de 1817, além do sócio efetivo general Francisco Soares de Andréa, figurava o marechal Raymundo da Cunha Mattos, um dos idealizadores do IHGB. Tanto assim que, por ocasião do falecimento de Cunha Mattos, meses antes da divulgação do mencionado parecer, no elogio fúnebre que lhe dedicou o confrade Pedro de Alcântara Bellegarde, publicado na Revista do IHGB, salientava-se, justamente, a sua atuação contra os rebeldes pernambucanos, dentre os serviços relevantes que prestara à Pátria. À luz dessas evidências, rememorar os acontecimentos históricos recentes, implicaria em trazer à tona uma série de contradições, dúvidas e até mesmo rivalidades pessoais, que em nada poderiam contribuir para o fortalecimento das debilitadas instituições monárquicas. Frente a esse contexto crítico, que outra alternativa restaria senão relegar a um saudável esquecimento, deixando dormitar nos arquivos todos os vestígios ou testemunhos que pudessem comprometer o difícil e complexo processo de enraizamento e legitimação da Coroa? No âmbito do Instituto Histórico, a construção da memória nacional foi um longo e seletivo empreendimento, no qual se procurou pinçar, no “repertório” das experiências do passado, os esclarecimentos que pudessem auxiliar na definição do presente. A nortear a organização do “estoque” das lembranças, estava a necessidade de levar adiante o projeto político iniciado em 1822, assentado em bases ainda frágeis, devido à falta de unidade das Províncias e à vacância do trono, que perdurava desde a Abdicação do primeiro imperador, em 1831, e todos os percalços daí decorrentes. Assim, o Estado monárquico começaria a “inventar suas tradições”. Converteu-se no herdeiro legítimo e sucessor do império ultramarino lusitano. Legado que se sustentava, não apenas por preservar o idioma de Camões, mas, sobretudo, pela presença de um representante da Casa de Bragança no Trono brasileiro. Subjacente a essa ideia, forjou-se a noção de PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

161

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

que a passagem do estatuto de colônia para o de país independente foi um processo natural, sem traumas ou rupturas. Aspecto singular com que se buscava distinguir o processo de formação do Estado brasileiro, em contraste com as convulsionadas experiências republicanas dos seus vizinhos no continente. O Império do Cruzeiro do Sul sobressaía-se como uma espécie de ilha de ordem e tranquilidade, em meio aos “furores democráticos”, que haviam fracionado a América Espanhola (GUIMARÃES, M. S., 1988, p. 5-27). A essa memória nacional, cujas bases se delinearam nos primeiros anos de atuação do IHGB, deveria corresponder uma determinada história. Mas qual história? Sem dúvida, não haveria de ser obra da pena de estrangeiros, como o inglês Robert Southey, ou o francês Alphonse de Beauchamps, embora este último não discrepasse da noção de continuidade sustentada no Instituto, já que para Beauchamps, a independência do Brasil remontava à época da emigração da família de Bragança. A contribuição, sem dúvida, deveria obrigatoriamente vir assinada por autor nacional. Neste sentido, vale a pena retomar as interpretações externadas pelo já mencionado José Inácio de Abreu e Lima, no Compêndio de História do Brasil1, dedicado ao imperador, publicado pela primeira vez em 1843, e adotado como leitura obrigatória no Colégio de Pedro II. Antigo combatente do exército de Simon Bolívar, Abreu e Lima não desprezava o legado lusíada, embora não lhe teça maiores elogios. Admite que a presença da corte portuguesa no Rio de Janeiro carreou vantagens para o Brasil. Porém, não relaciona o fim do sistema colonial com as instituições aqui estabelecidas por D. João VI, nem tampouco com a quebra do monopólio metropolitano. Inspirado, talvez, nos sucessos de Bolívar, o general vê a emancipação como uma ruptura e afirma textualmente: “[...] a Independência foi obra de um povo que reivindica seus direitos [...], de um Príncipe [D. Pedro] que previne os votos de seu povo; de um sábio [José Bonifácio] que firma a soberania da sua pátria” (LIMA, [s.d.], p. 169). A versão de Abreu e Lima seria contestada por Francisco Adolfo de Varnhagen, na História geral do Brasil antes da sua separação de Portugal, cuja

1



162

A 1ª edição do Compêndio de História do Brasil, publicada em 1843, em 2 volumes foi dedicada ao imperador d. Pedro II. No presente trabalho utilizamos a edição condensada, provavelmente datada de 1882

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

primeira edição foi lançada em Madrid, no ano de 1854.2 Não vem ao caso, no momento, fazer uma apreciação circunstanciada dessa obra monumental, formada por 54 capítulos, apoiados em farta documentação. Entretanto, é importante sublinhar que, do ponto de vista interpretativo, a História geral... se apresenta como uma continuação da historia da metrópole, consoante a memória nacional que vinha sendo tecida no Instituto Histórico. Tal abordagem está delineada com clareza, sobretudo na edição de lançamento do primeiro volume do livro, que se inicia justamente com a narrativa da viagem de Pedro Álvares Cabral. Por sinal, o autor defende a existência de direitos prévios da dinastia de Aviz sobre as terras situadas na parte leste do continente sul americano, garantidos pelo tratado de Tordesilhas. Seja como for, Varnhagen escova a contrapelo a interpretação do general Abreu e Lima, ao avaliar o significado da transmigração da Corte portuguesa. Começa por advertir que este episódio possui dimensões diferentes para as histórias do Brasil e de Portugal: Não pertencem à história especial do Brasil os pormenores das injustiças e horrores e atentados, [...], praticados nessa aleivosa ocupação [francesa].... Pelo que respeita ao Brasil [...]: em vez de colônia ou de principado honorário, vai ser o verdadeiro centro da monarquia [...]; e para nós daqui começa a época do reinado, embora o decreto de elevação a reino só veio a ser lavrado em fins de 1815 (VARNHAGEN, 1956, p. 34).

Para comprovar seus pressupostos, Varnhagen oferece um panorama das idéias que circulavam na colônia, bem como das respectivas condições econômicas, administrativas e sociais, à época do desembarque da família real. O cenário desenhado pelo historiador serve de pano-de-fundo para anunciar a deliberação que alterou definitivamente os destinos da América portuguesa: o decreto régio de 28 de janeiro de 1808, o da abertura dos portos, que “o emancipou [o Brasil] de uma vez da condição de colônia e o constituiu nação independente de Portugal” (VARNHAGEN, 1956, p. 177).



2

Francisco Adolfo de Varnhagen publicou o primeiro volume da História Geral do Brasil em Madrid, em 1854, na Imprensa da Viúva de Rodriguez. A obra era dedicada ao imperador d. Pedro II, que havia patrocinado a edição. Neste trabalho utilizamos a 5ª edição integral, publicada em 1956 (ver referência bibliográfica).

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

163

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

Desse ponto em diante, o futuro visconde de Porto Seguro enumera as transformações que se operaram no Brasil, depois que passou a abrigar o aparato de Estado lusíada. Ao final do relato de tantas realizações e progressos, introduz um problema espinhoso: a Revolução Pernambucana de 1817. Ele desqualifica o movimento, reduzindo-o a um simples motim de quartel, provocado por militares insubordinados, insuflados por rivalidades locais e pela velha rixa entre brasileiros e portugueses. E, quase num desabafo, conclui: “[...] o braço da Providência, bem que à custa de lamentáveis vítimas e sacrifícios, amparou o Brasil, provendo em favor da sua integridade”(VARNHAGEN, 1956, p. 150). A História geral, contudo, não poderia ser arrematada com um episódio que confrontava a noção de continuidade, fio condutor da narrativa, desde a sua primeira página. Por outro lado, Varnhagen não ousara abordar a proclamação da independência, por certo, o grand finale daquela trama, conforme o próprio autor confessa, em carta dirigida ao imperador D. Pedro II (VARNHAGEN, 1961, p. 201).3 De qualquer forma, chegaria bem perto, valendo-se de alguns artifícios. No último capítulo da História geral, intitulado Escritores, viajantes e imprensa, o historiador faz um inventário analítico dos autores que escreveram a respeito do período reinol. Nesse balanço, destaca o papel desempenhado por Hipólito da Costa, acompanhado de um resumo das suas opiniões políticas, divulgadas no jornal Correio Braziliense, editado em Londres, entre 1808 e 1822. Assim, por meio de corte e colagem dos textos assinados por Hipólito, Varnhagen elabora a sua versão da independência. Assinala que a prolongada permanência de D. João VI no Rio de Janeiro ensejara a organização de um sistema administrativo em que Portugal e Brasil se tornaram dois Estados diversos, ainda que sujeitos ao mesmo rei. Adverte que de ambas as partes havia fortes interesses em jogo, e pondera que aquela composição política não possuía maiores chances de ir avante, mormente se o monarca regressasse para a Europa, o que àquela altura parecia inevitável. Diante desse argumento, levanta duas indagações: até quando o arranjo haveria de perdurar? No caso da emancipação brasileira, qual regime político deveria ser adotado? 3



164

Carta de Francisco Adolfo de Varnhagen dirigida ao Imperador d. Pedro II, datada de Madrid, 6 de maio de 1853.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO: A MEMÓRIA NACIONAL E A ESCRITA DA HISTÓRIA NO ALVORECER DO IMPÉRIO

À primeira pergunta a resposta do historiador é curta e clara: o desenlace se efetua em decorrência da revolução do Porto e seus desdobramentos. Quanto à segunda indagação, ele deixa evidente que não haveria de ser a república, inspirada nos abomináveis princípios franceses, que repudia e aponta como a fonte da anarquia e do despotismo que assolaram os antigos territórios espanhóis no continente. Para Varnhagen, apenas uma opção se mostra viável: a da monarquia representativa, tendo como chefe um representante da Casa de Bragança. E, calcado na autoridade de uma testemunha de época, frei Francisco de Monte-Alverne, vai ainda mais longe e fecha a questão “[...] os grilhões coloniais estalaram um a um entre as mãos de um príncipe [D. João], que a posteridade reconhecerá por o verdadeiro Fundador do Império do Brasil” (VARNHAGEN, 1956, p. 89-90). Da descoberta de Cabral à independência da Terra de Santa Cruz, fixavam-se as raízes e a gênese do Estado nacional brasileiro, conferindolhe unidade e legitimidade. O caminho da continuidade estava traçado: o Instituto Histórico já havia guarnecido a régua e o compasso...

Referências ALLEMÃO, Francisco Freire. Revista do IHGB. Rio de Janeiro, 9 (4): 567, 1847. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ANKERMIT, Frank. Trauma and Suffering. A forgotten source of Western Historical Consciousness. In: Rüsen, Jörn (ed). Western Historical Thinking: An Intercultural Debate. New York; Oxford: Berghahn Books, 2002, p.72-84. BARBOSA, Januário da Cunha. Relatório do Secretário Perpétuo. Revista do IGHB, Rio de Janeiro, 1(4): 268, 1839. ______. Lembrança do que devem procurar nas províncias os sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro para remeterem à sociedade central. Revista do IGHB, Rio de Janeiro, 1(4): 128-130, 1839. BEAUCHAMPS, Alphonse de. L’ Independence de l’Empire du Brasil. Paris: Delaunay, 1824. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

165

LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES

BERGER, Stefan. Apologias for the nation-state in Western Europe since 1800. In: ______, DONOVAN, Mark & PASSMORE, Kevin (eds.). Writing National Histories. Western Europe since 1800. London and New York: Routledge, 1999, p. 3-14. CARLYLE, Thomas. On History. In: STERN, Fritz (editor.), The varieties of history: from Voltaire do present. 2nd edition. Nova York (USA): The World Publishing Company, 1971, p.90-101. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. Debaixo da imediata proteção imperial: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1838-1889). 2ª edição. São Paulo: Annablume, 2011. GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 1: 5-27, 1988. IGGERS, Georg. Historiography in the Twentieth Century. From scientific objectivity to the postmodern challenge. Hanover and London: Wesleyan University Press, 1997. LIMA, José Inácio Abreu e. Compêndio de história do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, [s.d.]. MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiografia moderna. Tradução de Maria Beatriz Florezano. Bauru (SP): EDUSC, 2001. NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Paris: La République, 1984. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Correspondência Ativa. Coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1961, p. 201. ______. História geral do Brasil. Revisão e notas de Rodolfo Garcia. 5ª edição integral. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1956, tomo V.

166

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO Adriana Pereira Campos

Em 1988, promulgou-se a Constituição que recebeu a denominação de cidadã porque encerrava longo período de Ditadura Militar que dominara o país por mais de uma década. Diversos institutos lançados naquela carta, porém, aguardaram e aguardam ainda sua implementação, em clara afirmação das dificuldades da consolidação democrática no Brasil. Na esfera do Judiciário, os avanços foram tímidos e, nesta década de 2010, observase a polêmica implantação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que foi instituído em obediência à Constituição Federal somente no último dia de 2004, quinze anos após sua previsão. Ainda assim, esperou-se pela decisão histórica do Supremo Tribunal Federal neste ano de 2012 para confirmar sua autonomia na investigação dos magistrados, que, por meio de suas associações, recorreram à câmara máxima do Judiciário questionando o papel do órgão fiscalizador. Outra previsão constitucional, porém, aguarda se transformar em realidade. Trata-se da eleição de juízes de paz com poderes para realizar casamentos e conciliações. De acordo com a Constituição Federal Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: II – justiça de paz, remunerada, composta de cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificar, de ofício ou em face de impugnação apresentada, o processo de habilitação e exercer atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, além de outras previstas na legislação.

Mesmo a responsabilidade cabendo ao Legislativo, deve-se em grande medida ao Poder Judiciário a inaplicabilidade dessa prerrogativa constitucional. Tal como ocorrido com o CNJ, assiste-se ao jogo corporativo dos juízes e, talvez, à manifestação mais concreta da tentativa de transformar PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

167

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

o Judiciário brasileiro na oligarquia dos bachareis. O CNJ, coerente com sua missão de se opor aos interesses corporativos da classe, determinou aos Tribunais estaduais a imediata convocação das eleições de Juízes de Paz, conforme Recomendação de 27 de maio de 20081. Nos poucos lugares onde se implementou, entretanto, a situação pouco se alterou desde esse período. Alguns estados, como o de Minas Gerais, chegaram a disciplinar a eleição de juízes de paz na atual ordem constitucional. O Estado mineiro dispõe da Lei nº 13.454/2000 que não apenas disciplina a eleição dos juízes de paz, como também amplia suas funções, mas tramita ação direta de inconstitucionalidade contra a medida, que por enquanto se encontra, portanto, obstada. Nesse texto interessa discutir que essa instituição não é nova no Brasil e surgiu há longo tempo, por ocasião da Constituição em 1824, quando se criou a magistratura leiga formada de Juízes de Paz e Jurados. Seus poderes naquela época variaram ao longo do século, mas suas funções incluíam atividades judiciárias, policiais e administrativas. Pode-se qualificar a iniciativa daquela carta como parte das medidas de cunho liberal moderado, por meio da criação de órgãos eletivos e ao mesmo tempo com reserva de amplas margens de controle do Estado.

1



RECOMENDAÇÃO Nº 16, DE 27 DE MAIO DE 2008.



Recomenda aos Tribunais de Justiça a regulamentação da função de Juiz de Paz prevista no artigo 98, inciso II da Constituição Federal. O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições, e CONSIDERANDO que a Emenda Constitucional 45/2004 atribuiu ao Conselho Nacional de Justiça o poder de recomendar providências; CONSIDERANDO que o artigo 98, inciso II da Constituição Federal estabelece que a Justiça de Paz será remunerada e composta por cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos; CONSIDERANDO a decisão exarada na Sessão Plenária do dia 27 de maio de 2008, nos autos do Pedido de Providências nº 200810000000110, RESOLVE: RECOMENDAR aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios que, em observância ao artigo 98, inciso II da Constituição Federal, no prazo de um ano a partir desta publicação, regulamentem e encaminhem proposta de lei à Assembléia Legislativa que trate: 1. Das eleições para a função de juiz de paz, na capital e no interior; 2. Da remuneração para a função de juiz de paz, na capital e no interior; 3. Da atuação dos juízes de paz perante as Varas de Família; 4. Da atuação dos juízes de paz na atividade conciliatória. Publique-se e encaminhe-se cópia desta Recomendação a todos os Tribunais de Justiça. Ministro Gilmar Mendes Presidente

168

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

Diversos dos institutos criados inspiravam ou copiavam correlatos da Inglaterra e da França. A herança lusitana, contudo, permanecia influente, sobretudo, no campo do fortalecimento do poder central. Lúcia Neves (2001, p. 100) interpretou a síntese dessa confluência de matrizes institucionais como a busca de “certas práticas fundamentais da cultura política do liberalismo” voltadas para a superação “[d]as visões litúrgicas de uma ordem imemorial para reconhecer na política do Estado um instrumento de ação sobre a sociedade”. A idealização da magistratura eleita obedecia ao viés liberal e autoritário ao mesmo tempo, pois lhe cabia “conter a revolução e a anarquia” e “manter a ordem na sociedade” (NEVES, 2001, p. 99). Em 1° de outubro de 1827, três anos após a previsão constitucional, aprovou-se a lei que disciplinava a eleição, em cada freguesia e capela curada, de um Juiz de Paz e um suplente. Dois elementos, considerados conjuntamente, podem ser interpretados como contraditórios do ponto de vista político na regulamentação do Juizado de Paz. O primeiro é a ampliação da participação popular na escolha desses magistrados. Mesmo o Brasil contando com as restrições impostas pela divisão entre cidadãos ativos e passivos, e entre aqueles que podiam votar e ser votados (Eleitores) e os que apenas poderiam escolher os eleitores (votantes), a Câmara e o Senado entenderam que estes últimos deveriam participar da escolha dos vereadores e dos juízes de paz. As paróquias ou os Distritos de Paz concentravam a oportunidade única de os votantes realizarem a escolha direta de seus representantes – os vereadores e os Juízes de Paz, ao contrário da seleção dos deputados, provinciais e gerais, que se realizava indiretamente por meio dos eleitores. O segundo elemento afigurou-se na amputação dos poderes da Câmara dos Vereadores, que passou a contar, em tese, com atuação política mais fraca. Já se enunciava, ainda em 1827, o Juizado de Paz como um órgão absolutamente independente da Câmara, regido apenas pela legislação do Império, sem vinculação orgânica, do ponto de vista doutrinal, com o colegiado de vereadores. Assim, se, por um lado, o Juizado de Paz representava, como bem lembrou Oliveira Vianna (1987, p. 221), maior participação na política local, por outro subordinou as municipalidades aos governantes provinciais.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

169

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

Dos modelos Os parlamentares brasileiros se referiam, em geral, aos modelos europeus na discussão de suas propostas, em particular, quando discutiram as atribuições dos juízes de paz: [...] Eu quero, que haja juízes de paz ambulantes, como na Inglaterra, os quais em certos tempos do ano, despacham os feitos cíveis, e crimes; e quereria que não houvesse mais de um juiz de direito, a que chamaria de corregedor, para conservar esta antiga disposição, mas com jurisdição ordinária; que não houvesse dos juízes de paz recurso senão para as relações, o que é conforme a constituição, que manda que não haja mais de duas instâncias (Deputado Vasconcellos: ACD: 28/06/1827, p. 178).

Como leciona José Murilo de Carvalho (2000, p. 143), as citações estrangeiras, na tradição brasileira oitocentista, convertiam-se em argumento retórico, o que “não significava necessariamente adesão às ideias, embora pudesse significar”. Inglaterra e França possuíam em seu quadro institucional a figura do Juiz de Paz e torna-se útil comparar ao modelo experimentado no Brasil com o existente nesses países. O juizado de paz, na Inglaterra, possui raízes medievais e os titulares dessa magistratura eram senhores territoriais. A instituição derivou de outra mais antiga, o conservador da paz, que tinha funções policiais e administrativas locais. A inovação, implantada por volta do século XV, se constituiu na inclusão de poderes jurisdicionais que transformou o conservador da paz em juiz de paz. Com a centralização da era Tudor, a nomeação dos juízes de paz passou a ser prerrogativa do Rei (BEARD, 1904). Nova transformação, desta vez no século XVII, proporcionou aos juízes de paz mais autonomia. Os tribunais – assizes – tiveram sua ação de revisão restringida, deixando as decisões desses juízos sem a possibilidade concreta de recurso (LANDAU, 1984). Ao final do século XVIII, os juízos de paz espalhavam-se por toda a Inglaterra e possuíam notória independência. Embora houvesse variação, em geral, o trabalho não era remunerado, exigia-se renda superior a cem libras e residência fixa na vila. Eles não eram eleitos, pois sua nomeação cabia à Coroa. Não se exigia formação em direito dos indicados, apenas dos 170

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

escrivães sob sua nomeação. Além disso, raramente suas decisões sofriam revisão. Existiam duas funções principais do Juiz de Paz, a primeira era a de Juízo de admissão, decidindo se levaria o réu a julgamento, a segunda era a de Juízo de sentença, presidindo o julgamento. A partir de 1835, tornaram-se responsáveis também pela administração pública, decidindo desde o reparo de estradas até sobre o aumento de impostos (SAUNDERS, 1852). Conforme Jean-Pierre Nandrin (1998), o juizado de paz francês provém diretamente da Revolução Francesa, de sua vontade de desmontar institucionalmente o Antigo. Embora Bartolomé Clavero (2007, p. 20) advirta que a Declaração de 1789 não incluísse o Judiciário como um dos poderes do Estado, houve preocupação em inaugurar nova ordem judicial guiada por equidade e livre de taxas, suprimindo-se as jurisdições senhoriais. Antoine Follain (2003) assevera que os juizados de paz foram pensados em França entre os anos de 1770 e 1789 e, depois, instituídos em 1790. No entanto, Follain considera equívoca a afirmação dos juizados de paz como uma inovação radical da revolução. Segundo seus estudos, ainda no Antigo Regime, a justiça senhorial enfrentara a severa crítica por parte do parlamento. As reformas propostas em 1771 e 1772 criaram nova hierarquia judiciária na França. Passaram a existir três instâncias de justiça real, em que a primeira teria dois graus de jurisdição: o primeiro seria a Justiça Senhorial e o segundo uma corte recursal. A justiça senhorial, apesar de preservada, fora desqualificada, pois poderia ser ignorada pelos requerentes. Tornara-se apenas uma alternativa aos querelantes que, no plano civil, se apresentava como instituição de conciliação ou de arbitragem, e, no plano criminal, de polícia judiciária, sobretudo, encarregada de flagrantes delitos. A opinião pública, todavia, legitimava em certa medida a justiça senhorial, considerando-a mais próxima, mais rápida e menos cara. Após a revolução, contudo, era impensável aos Constituintes a manutenção da justiça senhorial, em seu lugar se criou os juizados de paz. A antiga corte, no entanto, forneceria o modelo, uma vez que os constituintes conheciam bem a forma como era exercida. Resolveram estatizar a instituição senhorial, que “[...] não era completamente perversa, nem ineficaz, nem abusiva, mas, sobretudo, adaptada às necessidade locais [...]” (FOLLAIN, 2003, p. 33). Os próprios serventuários da Justiça de Paz, nos primeiros anos, eram os mesmos da antiga Justiça Senhorial e diversos de seus procedimentos foram adotados. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

171

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

De toda sorte, o juizado de paz é uma das criações consideradas mais inovadoras da Revolução Francesa. Para o delineamento das atribuições, as discussões datam, pelo menos, da grande reforma advogada pelo deputado pelo terceiro estado, Jacques-Guillaume Thouret. É a primeira grande lei em matéria de Justiça votada pela Constituinte e responsável pela dupla ordem de jurisdição na França, a administrativa e judicial2. Como se observa, o título III tratava da justiça de Paz, que deveria funcionar em cada “canton”. Os cidadãos ativos elegeriam, assim, cerca de 7.000 juízes de paz, quando a maioria dos cantões era rural, cujas localidades não contavam com mais de 2.000 habitantes. O Juiz de Paz deveria ser um homem com mais de 30 anos, figurar na lista dos cidadãos elegíveis3. Seu mandato era de dois anos e poderia ser reeleito. Os interesses locais eram representados por quatro assessores de cada comuna do cantão, eleita dentro da mesma assembleia primária. As assembleias funcionavam com voto individual, secreto e sem campanha pública. A eleição obedecia a ritos comuns, com a realização da assembleia em igrejas, aos domingos e após a missa. Na maioria das vezes as eleições ocorriam com certa brevidade, mas em outros, como em Île-de-France, as contestações frequentes conduziam a anulações e reeleições. Os eleitos eram, em geral, juristas e grandes proprietários, o que significa a prevalência do prestígio, sobretudo econômico. Resta agora, portanto, observar como ser realizou tal processo no Brasil.

Do direito de voto O liberalismo europeu foi marcado pela nítida diferenciação entre direitos políticos e direitos sociais, legado das constituições de 1791 da

2



A Assembléia aprovou um decreto que estabelecia a lista de “questões preliminares” que deveriam ser abordadas. Os juízes vão ser eleitos ou nomeados? Será que eles serão autonômos ou sofrerão revisões? Precisarão de um tribunal de recurso? Essas questões foram resolvidas entre 30 de abril e 27 de maio, em seguida, os deputados discutiram a lei como um todo. Adoptada 16 de agosto, a lei é sanciona por Luís XVI em 24 de agosto de 1790.

3



Para ser Eleitor era necessário, além de todas as características do cidadão ativo, ser proprietário ou usufrutuário de um rendimento igual ao valor local de duzentos dias de trabalho. Nas cidades com menos de 6 mil habitantes a renda exigida diminuía para 150 dias de trabalho (Constituição Francesa de 1791, Título III, Capítulo I, Seção Segunda, Artigo 7).

172

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

França e de 1812 de Cádiz. A discussão na época se desenvolvia em torno da independência e da autonomia dos cidadãos para decidirem livremente. A reflexão se guiava pela convicção que o indivíduo, para decidir politicamente, precisava se encontrar livre de manipulações e influências de outros. O critério de renda pareceu atender perfeitamente a esse fim. As pessoas mais abastadas teriam condições de resistir a pressões pessoais ou institucionais. Adotou-se, com efeito, a distinção entre os cidadãos ativos e passivos. Apenas os primeiros formavam o conjunto de cidadãos com direito de participar das assembleias primárias de onde saiam os escolhidos para compor a assembleia eleitoral. Apenas aqueles com renda superior, criando nova distinção de renda dentre os cidadãos ativos, poderiam concorrer à posição de Eleitor. O colégio de eleitores se reunia diante de uma junta eleitoral e realizava-se a sufrágio. A eleição direta dos juízes de paz e dos vereadores por parte dos votantes foi proposta lançada pela Câmara de Deputados do Império, reunida em 1826, após o trauma do fechamento da constituinte por ordem de D. Pedro, em 1824. A singularidade das eleições de magistrados pelas assembleias primárias resultou do esforço do parlamento brasileiro em dotar o país de instituições liberais capazes de regular a influência do poder central. A eleição pareceu aos parlamentares o instrumento mais adequado a esse fim. As magistraturas eleitas converteram-se, assim, em mandatos populares, cuja finalidade consistia, em princípio, na afirmação das forças locais diante do Estado. A eleição dos juízes de paz, portanto, subvertia a exclusividade de eleição de representantes por parte das assembleias eleitorais. Além dos eleitores de segundo grau, as assembleias primárias realizavam diretamente a escolha dos vereadores e das magistraturas locais. Nesse sentido, pode-se afirmar que se verificou importante mobilização política em torno das eleições de juízes de paz apesar da barreira de renda para a qualificação do eleitor. Ademais, Mircea Buesco (1981) concluiu ser modesta a limitação proporcionada pela restrição censitária no Brasil oitocentista. Em primeiro lugar, a escravidão retirava 18,7% dos indivíduos do processo eleitoral. Em segundo, a exclusão das mulheres dentre os livres proporcionava a queda na participação da ordem de 30%. Em terceiro lugar, a proibição do voto para homens menores de 25 anos resultava na retirada do direito de voto ao contingente de 27% de pessoas. Enfim, afastavam-se 75,7% indivíduos das assembleias primárias a título de ser escravo, mulher ou menor de idade. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

173

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

Em análise sobre a mesma temática, José Murilo de Carvalho (2004), deduziu dos dados do censo de 1872 que 13% da população brasileira total, excluídos os escravos, votavam. A maior parte dos homens adultos, com efeito, podia participar das eleições primárias. Carvalho buscou comparar a proporção de pessoas que votavam no Brasil com a Europa na mesma época. Ele verificou ser a participação eleitoral brasileira superior aos 2% da Itália, aos 7% da Inglaterra, aos 9% de Portugal e apenas inferior aos 18% de pessoas que votaram para presidente nos Estados Unidos em 18884. Nas leis liberais do Império brasileiro, a criação dos Juizados de Paz significou, em certa medida, a continuidade e o aceleramento do controle sobre os poderes locais. Da Câmara transferia-se para os Juízes de Paz o poder de policiamento da cidade, da disciplina social local, e da imposição de multas por transgressão de seus estatutos e regulamentação municipais (posturas). Sem dúvida, colocava-se a cargo dos Juízes municipais a disciplina social local, fato que decepava o poder de influência dos vereadores, e consequentemente, das Câmaras. A Constituição de 1824, no artigo 161, estabeleceu a obrigatoriedade da conciliação para o início de qualquer processo judicial no Brasil. O artigo seguinte definiu que tal tarefa caberia aos Juízes de Paz, eletivos pelo mesmo tempo, e maneira, por que se elegem os Vereadores das Câmaras. Resguardouse o detalhamento das funções dos juizados de paz para leis ordinárias. Essa indefinição resultou na anulação de vários processos eleitorais, ou mesmo no adiamento até que a Assembleia Geral apresentasse solução para o dilema. Houve lugares, como a Bahia, onde se elegeram Juízes de Paz logo a seguir da constituição. Noutras cidades, porém, a Câmara Municipal colocava em questão o modo pelo qual se realizaria a eleição desses magistrados. O Rio de Janeiro não realizou as eleições de juiz de paz antes da década de 1830. A província do Espírito Santo tentou realizar a eleição de Vereadores e Juízes de Paz, na forma do Projeto de Lei de outubro de 18235. O processo de escolha, entretanto, teve de ser interrompido porque havia denúncia que retratava nulas as eleições (ORV, 30/08/1824).

4



Não se comparou à França, pois existia sufrágio desde 1848.

5



Trata-se de proposta da Constituinte de 1823.

174

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

Os debates da Câmara em 1826 revelam o quadro de dúvidas que se espalhou no Império a respeito do processo eleitoral de Juízes de Paz, Júri e vereadores. A Constituição de 1824, em seu capítulo VI, definiu que as nomeações dos Deputados e Senadores para a Assembleia Geral, e dos Membros dos Conselhos Gerais das Províncias seriam realizadas por Eleições indiretas. Os eleitores seriam escolhidos pelos cidadãos reunidos em Assembleias Paroquiais. Esse processo eleitoral foi denominado pela constituição de eleições primárias, e definiu somente a eleição dos Eleitores. Não estabeleceu regras a respeito dos juízes de paz e vereadores, bem como os jurados. A incerteza, por parte das autoridades, para colocar em prática a eleição dos magistrados trazia grave prejuízo no campo judicial. A Constituição impedia o início de qualquer processo sem a prévia conciliação, colocada ao encargo dos juízes de paz. Em novembro de 1824, o governo apresentou como solução autorizar a conciliação por outros magistrados até que se realizasse a escolha dos responsáveis por tal tarefa. O Decreto acendeu na Câmara, reunida em 1826, o debate acerca da constitucionalidade da medida, acusada de absurda e tirânica (ACD, 1826, p. 195). A partir de então, os legisladores passaram a discutir projetos para disciplinar a política local, desde os conselhos provinciais, as câmaras até as magistraturas eleitas, como júri e juizados de paz. Trata-se de um processo legislativo marcado pelo ímpeto da elite brasileira em avançar em direção ao liberalismo político, que se expressou fortemente no plano institucional por meio da criação de órgãos eletivos. Em 11 de julho de 1826, o Deputado Feijó apresentou extenso projeto com o regimento dos presidentes de províncias e das câmaras municipais (ACD, 1826, p. 195). Na proposta, os vereadores deviam ser eleitos da forma praticada nas eleições de eleitores e os juízes de paz, ao mesmo tempo e pela mesma forma que os vereadores e com igual duração destes. Em 1° de outubro de 1827, três anos após a previsão constitucional, aprovou-se uma lei que disciplinava a eleição, em cada freguesia e capela curada, de um Juiz de Paz e um suplente. Não se definia, porém, a disciplina das eleições dos vereadores e, assim, em muitos lugares persistiam diversos tipos de escolha. José Clemente Pereira, Deputado e Ministro da Justiça, discursou acerca das dificuldades nas eleições municipais e declarou que apenas duas freguesias PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

175

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

no Império realizaram escolhas dentro da legalidade (ACD, 1828). A Câmara dos Deputados debateu longamente a respeito dos Juízes de Paz e, para esta apresentação, destaco a discussão acerca da autonomia dos Juízes de Paz e sua forma de eleição. A Câmara iniciou o debate com projeto enviado pelo governo e lido na sessão de 9 de julho de 1828. Repetiu-se no primeiro artigo a previsão constitucional de a eleição dos juízes corresponder à eleição dos vereadores. A proposta definia que a Assembleia paroquial reuniria os homens bons do povo para a escolha da mesa eleitoral entre os cidadãos presentes à reunião anual na primeira oitava do Natal. Os cidadãos reunidos nomeariam seis Eleitores, que, por sua vez, escolheriam o Juiz de Paz, por meio de voto secreto, escrito ou oral6. Na discussão da matéria, o Deputado Vasconcellos admitiu a importância do projeto, pois a lei anterior não definia a eleição dos juízes. Discordava, porém, da forma da eleição e advertia que outros projetos a respeito da eleição de vereadores já tramitavam no Senado. O Deputado Custódio Dias disparou sua crítica ao emprego do termo homens bons no projeto. Declarou que não sabia “[...] o que sejam homens bons; a constituição diz que para ser eleitor deve-se estar no gozo dos direitos políticos; isto é muito bastante e nada de chicana”. Na verdade, a manifestação representava a recusa ao antigo vocabulário político e afirmação dos conceitos liberais que nortearam boa parte desse debate parlamentar. Com a apresentação do projeto, o governo declarava sua vontade em colocar em funcionamento os juizados de Paz. Seu empenho explica-se, em parte, pelo fato de a conciliação constituir-se na fase preliminar dos processos e ser de responsabilidade exclusiva dos Juízes de Paz. O Imperador considerava a conciliação um “benefício da Constituição”7, mas a própria constituição vinculara a conciliação aos Juízes de Paz. A lei aprovada em 1827 pouco adiantara no sentido de prover o Império dessa importante magistratura, cuja ausência devia criar sérias dúvidas processuais no campo judicial. O projeto proposto pelo governo, contudo, apresentava uma redação que colocava a eleição dos Juízes de Paz sob o escrutínio dos eleitores, tornando-a indireta, e pouco avançava nas funções desses magistrados.

6



Artigos 2° ao 5°, conferir Anais da Câmara de 9 de julho de 1828. Disponível em: http://imagem.camara. gov.br/dc_20b.asp. Acesso em 21 fev 2010.

7



Decreto de 17 de Novembro de 1824.

176

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

A Câmara acolheu o projeto porque reconhecia a ineficiência da legislação de 1827 para colocar em funcionamento os juizados de Paz do Império. O debate, contudo, exibiu um parlamento oposicionista e cioso de transformar os Juizados de Paz em órgãos com plena autonomia e independência, longe da influência do governo imperial. O Deputado paulista Souza França definiu, inclusive, o Juizado de Paz como uma magistratura popular que deveria substituir a intendência de polícia, abolida pela Câmara, traduzindo a vontade desses parlamentares em ampliar o espectro de funções desses juízes. Em relação às eleições, o Ministro da Justiça, Clemente Pereira manifestou-se pela constitucionalidade da eleição indireta, no que foi corrigido imediatamente pelo Deputado mineiro Vasconcellos, que acentuou ter a constituição definido por essa forma de escolha somente os conselhos gerais de província, deputados gerais e senadores (ACD, 1828, p. 175). Argumentou que as eleições das câmaras não afiguravam no texto, abrindo a possibilidade de a Câmara escolher como lhe conviesse. Finalmente, os Deputados Paula e Souza e Vasconcellos discursaram pelas eleições diretas, igualando a eleição dos juízes de paz à dos eleitores. Outra questão relevante na formatação dada aos juízes de paz em 1828 consistiu na criação dos instrumentos processuais de controle dessa magistratura. O Ministro da Justiça, Clemente Pereira, expôs sua preocupação, pois existiam queixas contra os juízes paz eleitos, assim como acusava a necessidade de instrumentos para inibir que pessoas desqualificadas assumissem a função (ACD, 1828, p. 21). Imediatamente Vasconcellos advertiu, em contraposição, que “tais questões nunca devam pertencer ao governo” e a perda do cargo somente deveria ocorrer “por sentença” (ACD, 1828, p. 21). O debate parlamentar de definição da eleição direta para o cargo de juiz de paz e o esboço de sua autonomia ainda no ano de 1828 traduz, sem dúvida, a tendência dos parlamentares em votar projetos que tornassem o poder central menos concentrado, parcelando-o entre as províncias e as autoridades locais. Por outro lado, necessário reconhecer que o próprio governo considerava a magistratura eleita importante e pensava em viabilizála. A divergência encontrava-se centrada no caráter popular requerido pela Câmara. Em seu ímpeto oposicionista, a Câmara pretendia fortalecer os Juizados de Paz como órgão e libertá-lo da influência do governo central. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

177

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

Das práticas eleitorais Em 1828, a legislação entregou as antigas funções jurisdicionais das Câmaras para os Juízes de Paz, que passariam a julgar as contravenções às posturas municipais8. Com poder coercitivo, o Juiz de Paz fortalecia-se politicamente diante dos vereadores. Além disso, após 1828, as câmaras passaram a ter de submeter as posturas municipais ao Conselho Geral da Província9. E, a partir de 1832, às Assembleias Legislativas provinciais cabiam propor, discutir e deliberar sobre a polícia e a economia municipal, precedendo propostas das Câmaras10. Em Victoria, na Província do Espírito Santo, reagiu-se contra tal centralização “provincial”, dirigindo-se o colégio de vereadores, por meio de representação, à Câmara de Deputados, cuja resposta coube ao deputado e representante espiritossantense, João Climaco de Alvarenga Rangel, que negou o pedido e aproveitou para manifestar sua concordância com as reformas propostas. Ele assim se expressou: “Aproveito esta ocasião para, por meio dessa ilustre Câmara, dar a nossa Província os parabéns pelas reformas da Constituição do Império, que espero serão ali aceitas com os regozijos e festejos que incumbe aos brasileiros o seu patriotismo e civilização” (ORV, 02/05/1834). A nova realidade política, que se estabelecia no Brasil, modificava, portanto, os arranjos institucionais. Desde os tempos coloniais, verificava-se acentuada tensão entre os dirigentes locais, sobretudo, alocados nas Câmaras Municipais e as autoridades centrais. Boxer (2002, p. 298) registra que as “câmaras coloniais raramente se tornavam meros carimbos ou capachos [...], e mesmo nos casos em que os conselheiros tivessem se tornado uma espécie de ‘panelinha oligárquica’, em geral continuavam a representar os interesses locais de outras classes além da sua [...]”. Na mesma direção, Avanete Sousa (2005, p. 317) assevera que as câmaras serviram às elites locais como “anteparo ao Estado absolutista” concentrando poderes nas mãos de poucos notáveis da

Art. 88 da Lei de 01/10/1828 e §7° do Art. 12 do Código de Processo Criminal de 1832. Art. 39 da Lei de 01/10/1828. “Art. 39. As Camaras, na sua primeira reunião, examinarão os provimentos, e posturas actuaes, para propôr ao Conselho Geral o que melhor convier aos interesses do municipio; ficando, depois de approvados, sem vigor todos os mais.” 10 Item 4 do Art. 10 da Lei nº 16, de 12 de Agosto de 1834. 8 9



178

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

terra. Desde Pombal, buscava-se impor certos limites “para o enquadramento político-administrativo dos poderes locais” (BICALHO, 2001, p. 200). A organização do Estado brasileiro independente aprofundou essas reformas e transferiu o poder coercitivo das Câmaras aos Juizados de Paz, um órgão cuja eleição se realizava diretamente pelos cidadãos da paróquia ou distrito. Desta vez, o liberalismo invertia o processo de controle dos conselhos municipais, pois entregava aos eleitores a eleição do órgão de controle e não ao Estado. Mal comparando, os Juízes de Fora deram lugar aos Juízes de Paz. Não se afirma que houvesse oposição sistemática entre vereadores e Juízes de Paz, como se verificou em algumas ocasiões. Admite-se apenas que os cidadãos passaram a integrar o jogo político e a Câmara viu-se forçada a renovar seu diálogo com as forças locais, pois não podia mais agir como uma corporação que distribuía entre seus membros os papéis de poder sobre a população. Não se afirma igualmente que não houvesse, desde os tempos coloniais, disputas internas entre as elites locais, apenas ressalta-se o novo ator político dos votantes introduzidos no xadrez das relações de poder. Num primeiro plano, importa discernir na população aqueles que possuíam o direito de compor a assembleia paroquial que elegia Eleitores, Vereadores e Juízes de Paz. Participavam desse processo eleitoral todos os cidadãos masculinos, com idade mínima de 25 anos e com renda igual ou superior a cem mil réis, livres das restrições previstas em lei11. Podiam votar os analfabetos, os libertos e os cidadãos de 21 anos que tivessem independência financeira. Os levantamentos realizados para pesquisa sobre Juizados de Paz na Província do Espírito Santo ratificam a afirmação de José Murilo de Carvalho (2004) sobre a pouca importância da limitação da renda, já que não excluía a população pobre do direito de voto. Na Província do Espírito Santo, encontrou-se a qualificação de votantes do Distrito de Carapina (Termo de Victoria), em 1849, com a seguinte distribuição profissional: 11



Eram excluídos de votar pela Constituição de 1824 “Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes. I. Os menores de vinte e cinco annos, nos quaes se não comprehendem os casados, e Officiaes Militares, que forem maiores de vinte e um annos, os Bachares Formados, e Clerigos de Ordens Sacras. II. Os filhos familias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem Officios publicos. III. Os criados de servir, em cuja classe não entram os Guardalivros, e primeiros caixeiros das casas de commercio, os Criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas ruraes, e fabricas. IV. Os Religiosos, e quaesquer, que vivam em Communidade claustral. V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos.”

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

179

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

Quadro 1 – Ocupação dos eleitores de Carapina em 1849 Lavrador Negócio Padre Professor Ofício Pescador Lavoura Agências Total

Número 98 2 1 1 5 3 4 2 116

Percentual 84,5 1,7 0,9 0,9 4,3 2,6 3,4 1,7 100,0

Fonte: Informações coligidas no Livro de Atas de Formação da Mesa Eleitoral de Qualificação de Carapina 1849. Arquivo da Câmara Municipal de Vitória.

A freguesia de Carapina possuía, em 1872, 906 habitantes livres (IBGE). Se considerarmos a média nacional de votantes encontrada por José Murilo (2004, p. 31), deveriam possuir qualidade para votar em eleições primárias, naquele ano, cerca de 13% desses habitantes, i. é., 118 pessoas. No distrito de Carapina, 22 anos antes, já existiam 116 votantes! Embora a eleição indireta retirasse essas pessoas dos processos eleitorais decisivos para o país e decididos apenas pelos eleitores, como critica Miriam Dolhnikoff (2010), o jogo político local alterava-se com a inclusão deles. Ocorria interessante processo de politização das disputas locais com a inclusão de contingente expressivo da população. Talvez possamos, inclusive, ousar dizer que influíam além do espaço local, mas não nos dedicaremos a essa hipótese neste espaço. Os cargos eleitorais de Juízes de Paz e Vereadores movimentavam, por um lado, vizinhos, compadres, amigos e inimigos; e, por outro, a força política dos líderes que pretendiam eleger eleitores ou candidatos. Suas estratégias precisavam contar, em alguma medida, com a aceitação e a popularidade de seus pleitos entre os votantes locais. Nesse ponto, portanto, cabe qualificar a eleição dos Juízes de Paz. As ocupações dos eleitores do Distrito de Cariacica carregam certa ambiguidade, dado que lavrador constitui-se numa ocupação extensa o suficiente para abrigar pessoas de diferentes situações sociais. Além disso, há a qualificação de lavoura, que poderia significar uma diferenciação de status social com o lavrador. Na qualificação dos Juízes de Paz de Carapina incorre-se na mesma imprecisão em relação à ocupação. A prosopografia, todavia, ajudou-nos a encontrar em outros documentos o detalhamento da ocupação de certos juízes de paz. 180

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

Quadro 2 – juízes de paz no distrito de Carapina (1832-1842) Ano 1832 1833 1834 1835 1838-1839 1840-1841

Nome José Rodrigues Atalaia Francisco da Silva Vasconcelos Cyrillo Pinto Homem de Azevedo Joaquim Duarte Carneiro Francisco José Pinto Justiniano Martins Meyrelles

1841-1842 Manoel Pinto Rangel e Silva 1841-1842 João Pinto de Sant’Ana 1841-1842 Manoel Pinto Rangel de Silva

Ocupação (Não se sabe a ocupação) Dono de Engenho de Cachaça Dono de Engenho de Cachaça Lavrador (Dono de Engenho de Cachaça) Lavrador (Não se sabe o tipo de propriedade) Lavoura (Não se qualifica a lavoura) Lavrador (Não se sabe o tipo de propriedade) e ex-Deputado da Primeira Legislatura da Assembleia Provincial (1835) Dono de Engenho de Cachaça Lavrador (Não se sabe o tipo de propriedade) e ex-Deputado da Primeira Legislatura da Assembleia Provincial (1835)

Fonte: Informações coligidas nos Ofícios Recebidos e Enviados da Câmara Municipal de Victoria/ES (em especial do ofício de 02/03/1842). Arquivo da Câmara Municipal de Vitória.

Observa-se que, nesse ambiente com votantes de poucas posses, as funções de Juiz de Paz recaíam sobre homens com posses mais expressivas. Tratava-se de um distrito de população pequena, com apenas 906 habitantes, segundo censo de 1872, em que 434 eram homens e existiam 194 fogos (residências) no lugar. À lavoura dedicavam-se 175 homens e 32 ao comércio. Significa, portanto, que 61% população masculina do distrito se dedicavam à agricultura, transformando a paisagem local numa área extremamente ruralizada. Seus líderes eleitos eram homens com igual perfil de lavradores que possuíam engenhos, forma de produção mais abastada desse humilde lugar. Além da constatação comum de a eleição dos Juízes de Paz recair entre os homens de mais posses do lugar, o Distrito de Carapina mostra a vinculação entre a política local, mesmo em pacatos lugarejos, e a provincial, entrelaçando círculos de poder. Para a freguesia da Serra, na Província do Espírito Santo, em 8 de fevereiro de 1829, se elegeram o Alferes Ignacio de Loyola, com 113 votos, e o Sargento João Francisco Pinto da Costa, com 108 votos. Infelizmente, o ofício não esclarece o número total de votantes da freguesia, permitindo supor apenas haver mais de uma centena de cidadãos habilitados a votar naquele distrito. A Freguesia da Serra possuía 679 homens livres, dentre eles havia 472 brancos, 182 pardos e 25 pretos. A povoação contava com 428 fogos. Considerando a proporcionalidade de 1,5 PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

181

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

homens livres por fogo, a idade mínima de 25 anos para o exercício do voto e a limitação censitária, razoável supor a qualificação de pouco menos de duas centenas de pessoas para o exercício do voto na assembleia paroquial. Admite-se, portanto, que o comparecimento para a eleição do Alferes Ignacio de Loyola mobilizou fortemente a população local em torno da eleição do juizado de paz. Outra eleição ocorrida no mesmo ano de 1829, na freguesia de São João da Barra, da Província do Espírito Santo, verifica-se o número de 498 cédulas depositadas na escolha dos vereadores e juízes de paz da localidade. De acordo com a legislação de 1° de Outubro de 1828, artigo 7°, os votantes entregavam duas cédulas, uma para o cargo de vereador e outra para o de Juiz de Paz e suplente. Supõe-se, então, a participação de 249 votantes no pleito de São João da Barra, a exemplo da freguesia da Serra como descrito antes12. Na capital da Província do Espírito Santo, em 1° de fevereiro de 1829, consoante ofício da Câmara, elegeram-se, finalmente, os Juiz de Paz e suplente juntamente com os Vereadores para a Câmara Municipal, obedecendo-se à Lei de 1° de Outubro de 1828, dessa vez sem impedimentos. Abaixo segue quadro de Juízes de Paz no período de 1829-1844 da Freguesia de Victoria. Quadro 3 – Juízes de paz de Victoria (1829-1844) 1829-1832 1833 – 1836

Luiz da Silva Alves d’Azambuja Susano Manoel Moraes Coutinho (suplente) Capitão João Antônio de Moraes João Malaquias dos Santos

1837 – 1840

João Malaquias dos Santos

1841 – 1844 (4º Juiz de Paz, só desempenhou as funções em 1844)

Manoel Moraes Coutinho João Teixeira Maya

Fontes: Ofícios recebidos e enviados da Câmara Municipal de Vitória (Arquivo Municipal de Vitória/ES)

Na primeira escolha para Juiz de Paz de Victoria venceu o pleito o jurista e literato Luiz da Silva Alves d’Azambuja Susano, anteriormente eleito para o cargo de Secretário da Junta de Governo Provisório (1822-24) com 12

Livro de Atas de Formação da Mesa Eleitoral de Qualificação de Carapina 1849. Arquivo da Câmara Municipal de Vitória.

182

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

onze votos, enquanto o Vigário José Nunes da Silva Pires obtivera apenas sete votos, concorrendo ao cargo de Presidente da mesma Junta. Azambuja Susano recebeu o maior número de votos também em 1835, para, desta vez, ocupar a cadeira de Deputado da Assembleia Provincial. Impressiona que ele jamais tenha permanecido à testa desses órgãos. O Vigário de Guarapari, José Nunes da Silva Pires, fora o presidente da Junta de Governo Provisório e o Padre, Advogado e ex-Deputado Geral, João Clímaco, saíra escolhido presidente da Assembleia Provincial, quando ambos receberam pouco mais da metade dos votos de Susano. Além da capacidade eleitoral, Azambuja destacava-se intelectualmente por meio da publicação de obras de interesse jurídico e romances em importantes editoras cariocas. Sua passagem no cargo de Juiz de Paz afigurou-se breve, pois foi obrigado optar entre a magistratura eleita e a função de Juiz Ordinário, vedada legalmente a acumulação. Em 03/12/1828, Susano dirigiu correspondência à câmara e em seu lugar ascendeu ao posto Manoel Moraes Coutinho (ORV). Manoel Moraes Coutinho também participava do núcleo de poder da Província. Em 1824, participara do Conselho Provincial, que assessorava o Presidente de Província; cargo que voltou a ocupar em 1830. Num dos momentos mais importantes da vida política da Província, os Eleitores escolheram-no, junto com Susano, Deputado na Primeira legislatura da Assembleia Provincial do ES (49 votos) (apud GOULART, 2008). João Antônio Moraes, porém, possuía posição mais subalterna do que seus antecessores. Desde a organização da Junta Provisória em 1822, figurava entre os Eleitores da Província, mas quando disputou um lugar no órgão, viu-se preterido por José Ribeiro Pinto, homem cuja rica família chegara ao Espírito Santo no início do século XVIII e unira-se a outra família de grande estirpe, Pinto Homem de Azevedo, por meio de matrimônio. A disputa demonstra que a elite possuía suas dissensões e, em algumas oportunidades, a riqueza não era suficiente no jogo político. As alianças familiares também possuíam importância destacada no processo. Das correspondências recebidas e enviadas da Câmara Municipal de Vitória não foi possível ainda identificar todos os Juízes de Paz. Não houve até a presente data qualquer levantamento dessa natureza e os ofícios não possuem sequer catálogo. A pesquisa em curso encontrou apenas a PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

183

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

identidade desses três Juízes de Paz. Pela lei de criação dos juízes de paz13, até modificação proporcionada pelo Código de Processo Criminal de 1832, cada titular possuía apenas um suplente. Após 1832, elegiam-se quatro Juízes de Paz pelo período de quatro anos, em que cada um assumiria em um ano, tendo os demais como suplentes, sucessivamente de acordo com o número de votos recebidos. O Juiz de Paz e seu suplente, diferentemente do Distrito de Carapina, pareciam se dedicar exclusivamente às atividades políticas, de onde tiravam seus proventos. Azambuja, inclusive, acomodou sua vida profissional ingressando na Tesouraria, como inspetor, em 1846, onde se aposentou dez anos mais tarde. Em Carapina, portanto, os Juízes de Paz eleitos eram quase sempre homens da lavoura, enquanto em Vitória, como se viu, se elegiam políticos com forte vinculação aos cargos públicos. Indiscutivelmente, esses homens pertenciam ao círculo de pessoas com mais poder na região. Muitos pertenciam a famílias que ocupavam postos de poder desde os tempos coloniais, tais como os Pinto Homem de Azevedo, os Pinto Ribeiro ou os Duarte Carneiro. Cabe, no entanto, aquilatar a transformação na política local com as novas práticas eleitorais, tal como a escolha dos vereadores e juízes de paz por um contingente de votantes, antes excluídos de pleitos desta natureza. Dois episódios eleitorais do Termo de Vitória podem lançar alguma luz sobre esse problema. Um foi retratado em ata de formação da mesa eleitoral de qualificação de eleitores do Distrito de Carapina em 1849. Há nesta lista, como já se relatou, o número de 116 votantes, que por falta de estatística populacional do ano, usou-se o censo de 1872. Apurou-se nesse mesmo censo que a população adulta masculina desse Distrito contava 167 indivíduos com idades entre 21 e 90 anos. Ganha relevo, portanto a afirmação de Carvalho quando asseverava que deviam votar quase todos os homens adultos (CARVALHO, 2004, p. 30-31). Não se pode, portanto, desprezar a mobilização política realizada à época, em que a inclusão de

13

Lei de 15/10/1827 – “Art. 1o Em cada uma das freguezias e das capellas filiaes curadas, haverá um Juiz de Paz e um supplente para servir no seu impedimento, emquanto se não estabelecerem os districtos, conforme a nova divisão estatistica do Imperio.” Disponível em: http://www2.camara.gov.br/legislacao/ publicacoes/doimperio/colecao3.html. Acesso em: 13/02/2010.

184

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

votantes se afigurava alta proporcionalmente, superando, certamente, a média nacional encontrada por Murilo de Carvalho. A listagem contemplava, provavelmente, todos os homens adultos em idade de votar do Distrito. E, nota-se dos documentos arrolados nesta pesquisa, o cumprimento legal de multar quem não comparecesse às urnas14. O procedimento implicava, no entanto, o controle por parte das forças políticas locais do processo eleitoral com vistas a garantir os cargos municipais que levassem em conta as vontades dos eleitores. José Murilo de Carvalho (2004, p. 35) lança a hipótese de que o voto transformava-se nas mãos dos votantes em um capital simbólico de barganha em lugares onde a dependência constituía-se a tônica dos vínculos verticais na sociedade brasileira. Outro episódio bem ilustra o tema. Trata-se de fato registrado em ata do dia 07/09/1848, da Junta de Paz de Victória, cabeça do Termo na Província do Espírito Santo, para a realização de votações para Vereadores e Juízes de Paz. Durante a apuração houve séria desavença entre os membros da mesa paroquial. No verso da página 4 da ata, seis eleitores postaram sua discordância em relação a certa urna, alegando que não cumpria o artigo 100 da Lei de 19/08/1846, pois as cédulas não continham o cargo para o qual se votava. Diante da negativa de anulação por parte do Presidente da Junta, os eleitores recorreram ao Presidente da Província, que negou, em parte, provimento ao recurso e multou os membros da mesa por se recusarem a participar da apuração restante. O próprio Presidente da Província providenciou uma portaria convocando outros eleitores para completar a mesa paroquial e prosseguir na realização da apuração de Juízes de Paz. Em primeiro de novembro procedeu-se nova eleição, segundo a ata, em razão das eleições que não puderam ser realizadas em sete de setembro. A apuração transcorreu sem maiores problemas desta vez. Os pedidos de anulação e

14

Arquivo Municipal de Vitória. Ofícios Recebidos e enviados (17/05/1833). “Ilmos Senhores, A Mesa Paroquial desta Cidade e Freguesia da Victória tem a honra de enviar a V.V.S.S. o livro das Atas em que se acham a f.13 até 16 as atas da apuração a que se procedeu das quatro pessoas votadas para Juizes de paz dos distritos desta Cidade, Carapina e Cariacica e juntamente seus Suplentes, nas quais se acham também incluído a lista dos Votantes que não compareceram e por isso foram multados na pena da Lei. D.G. a V.S. Victoria 17 de Maio de 1833. Ilmos. Senhores Presidente e Vereadores da Câmara Municipal. João Antônio de Moraes – Presidente, Vigr. Domingos Leal, Joaquim José Fernandes – Escritador, José Joaquim Pereira (M-) Escriturador, José Ribeiro Coelho – Secretário, Manoel de Siqueira de Sá – Secretário”.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

185

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

fraude não eram raros e o exemplo acima demonstra que os expedientes de submissão e subserviência dos eleitores locais nem sempre resultavam no sucesso esperado. Nesses momentos colocavam-se em marcha as manobras políticas como a assinatura de votantes ausentes, inserção ilegal de votos e anulação de votos. Ademais, a Freguesia devia, seguramente, possuir o maior número de votantes da Província, o que tornava os eleitores locais menos dependentes. Durante o episódio relatado, verificou-se a apuração de 432 cédulas para as cadeiras de vereadores. Como para a data não se tem uma estatística segura da população da freguesia de Victoria, retomou-se o expediente de usar os dados do censo de 1872 para calcular o número de eleitores. Para a população de 3.360 pessoas livres, dever-se-ia ter 436 votantes (13%). Em 1848, votaram 432 pessoas. E mais, em 1872, existiam em Victoria 871 homens adultos, isto é, com idades de 21 e 90 anos. Duas décadas antes, o número de adultos devia ser pouco superior ao número de votantes. Esses números mostram mais uma vez o envolvimento geral da população na escolha dos representantes locais. É verdade que os antigos 70 votos na primeira eleição de setembro, reduziram-se a 20 votos em novembro.

Considerações finais Apesar desses eventos, o alargamento das bases da cidadania brasileira após a Independência dava passos curtos, porém vitais para a formação de uma comunidade política. Antes o voto era um privilégio e não um direito. O alvará de 12 de novembro de 1611 que regulava os princípios eleitorais das Câmaras Ultramarinas baseava-se em critérios de exclusão por origem e a cidadania consistia numa plêiade de privilégios. As práticas herdadas do tempo colonial conferiam aos cargos municipais o grau mais elevado do exercício político. A eleição para as funções da Câmara davam aos escolhidos o status de cidadão (BICALHO, 2001, p. 205; SOUSA, 2005, p. 320). Talvez o significado mais profundo de tal herança não tenha se desfeito no primeiro quartel do Oitocentos. As disputas pelo privilégio de ocupar funções municipais continuavam acirradas, pois seus titulares ainda perseguiam o prestígio advindo de tais colocações. Transformaram-se, contudo, as regras 186

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

para o governo locais. A estratégia se transformara e a inclusão passou a ser uma regra com a qual a elite política planejava suas ações. O Juiz de Paz possuía o papel de impor certo controle sobre o espírito corporativo das Câmaras, e sua escolha se entregara a cidadãos por direito e não por privilégios. Os Juízes de Paz, talvez, tenham raramente rompido o jogo das oligarquias locais, mas, como se viu dos levantamentos, a população com o direito a voto participava do teatro das eleições e sobre ela exercia alguma influência, da qual retirava poucas vantagens, ainda que com atitudes pouco políticas. O fato, todavia, que o Estado brasileiro desistiu muito cedo de manter esse sistema político e, em 1842, decepou grande parte do poder dos Juízes de Paz, principalmente a disciplina social e a entregou aos agentes do Estado, os Delegados de Polícia. Não acabara o órgão, mas uma de suas fontes mais importantes de poder fora retirada e sua fraca posição o deixou menos preparado para o exercício do contrapeso com as oligarquias locais.

Referências Fontes ANAIS DA CÂMARA DOS DEPUTADOS (ACD). Disponível em: http:// imagem.camara.gov.br/dc_20b.asp. Acesso em fev 2010. OFÍCIOS Recebidos pela Câmara de Vitória (ORV). Arquivo Municipal de Vitória. SUSANO, L. S. A. Digesto Brasileiro ou Extrato e Comentário das Ordenações e Leis Posteriores até o presente. Rio de Janeiro: E. & H. Laemmer, 1856. SUSANO, L. S. A. A baixa de Matias: ordenança do Conde dos Arcos, vice-rei do Rio de Janeiro. 3a ed. Vitoria/Brasília: FCAA/ INL, 1988.

Obras de apoio BEARD, Charles Austin. The office of the justice of the peace in England: in its origin and development. New York: The Columbia University Press, 1904. BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. BICALHO, Maria Fernanda. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

187

ADRIANA PEREIRA CAMPOS

BUESCO, Mircea. (No Centenário da Lei Saraiva) Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 330, Rio de Janeiro, 1981. p. 178-186. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 189-229. BOXER, C. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAMPOS, A. P. A Independência e o Espírito Santo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, Vitória/ES, v. 59, n. 59, p. 75-84, 2005. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, nº 1, 2000, p. 123-152. CLAVERO, Bartolomé. El orden de los poderes: Historias constituyentes de la Trinidad Constitucional. Madrid: Editorial Trotta, 2007. DOLHNIKOFF, Miriam. Representação na Monarquia brasileira. Almanack Braziliense, N. 9, 2009. Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br. Acesso em 15 fev 2010. FAORO, R. Os donos do poder. 6 ed. Porto Alegre: Globo, 1984. FOLLAIN, Antoine. De la justice signeuriale à la justice de paix. In: PETIT, Jacques-Guy. Une justice de proximité: la justice de paix (1790-1958). Paris: Presses Universitaires de France, 2003. GOULARTE. R. S. Figurões da Terra: trajetórias e projetos políticos do Espírito Santo no Oitocentos. 2008. 187 f. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. HESPANHA, António Manuel. História de Portugal Moderno: político e institucional. Lisboa: Univesidade Aberta, 1995. LANDAU, Norma. The justices of the peace, 1679-1760. University of California Press, 1984. NANDRIN, Jean-Pierre. La justice de paix à l’aube de l’indépendance de la Belgique, 1832-1848: La professionalisation d’une fonction judiciaire. Bruxelles: Publications des Fac. St Louis, 1998. 188

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL DO OITOCENTOS: DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE HISTÓRIA E DIREITO

NEVES, L. M. B. P. Liberalismo Político no Brasil: Ideias, Representações e Práticas (1820-1823). In: Guimarães, L. M. P. G.; Prado, M. E. (Org.). O liberalismo no Brasil Imperial: origens, conceitos e prática. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001. OLIVEIRA, J. T. História do Espírito Santo. 2 ed. Vitória: Arquivo Público do Espírito Santo, 2008. ROSAVALLON, Pierre. Le sacre du citoyen. Paris: Gallimard, 2002. SAUNDERS, Thomas William. The Duties, Rights and Liabilities of Justices of the Peace. London: John Crockford Law Times Office, 1852. SOUSA, Avanete. Poder local e autonomia camarária no Antigo Regime: o Senado da Câmara da Bahia (século XVIII). In BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar: ideias e práticas políticas no Império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005. p. 311-325. VIANNA, Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: USP, 1987.

PARTE II – DOMÍNIOS DO IMPÉRIO E DA NAÇÃO

189

.

Parte III

CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

.

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA1 Geneviève Bührer-Thierry

Tenho o grande privilégio de abrir com esta conferência o colóquio franco-brasileiro que a UFES desejou organizar com a UPEMLV sobre a rica temática que relaciona “territórios, poder e identidades”. Gostaria de começar por uma breve reflexão sobre o termo território, que me conduzirá à minha questão sobre as fronteiras e as sociedades de fronteira que ilustrarei em seguida por um exemplo – sem dúvida, bastante exótico, visto a partir das margens do Atlântico Sul – escolhido em minha área de pesquisa, que concerne à fronteira entre o mundo germânico e o mundo eslavo entre os séculos IX e XI. A noção de “território”, muito utilizada pelo conjunto das ciências sociais, vem sendo objeto, há vinte anos, de numerosos debates sobre seu uso e sobre os riscos inerentes ao seu emprego, notadamente entre os geógrafos, que procuram se precaver em relação ao papel essencial que esse termo desempenha em sua disciplina: eminentemente polissêmico, ele permitiria mascarar os conflitos por meio de um conceito “guardachuva” e comportaria, sobretudo, numerosos riscos de instrumentalização sociopolítica, notadamente na sua articulação com a problemática da identidade (RIPOLL; VESCHAMBRE, 2005). Sem entrar nesses debates, parece-me importante retomar uma dimensão fundamental da noção de “território”: ele é, por um lado, um dado da vida cotidiana de homens e mulheres que o concebem e praticam de maneira tangível, em sua vida cotidiana, e um conceito teórico fabricado pelos pesquisadores (MONNET, 2010). O território é, portanto, antes de tudo, uma construção social e concerne a todas as sociedades, em todos os tempos, já que não existe, em parte alguma, sociedade sem dimensão geográfica ou espacial, mas essa

1



Tradução do original em francês por Geraldo Antonio Soares. Revisão técnica de Sandro Deccotignies.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

193

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

construção é mais difícil de compreender quando se trata de sociedades muito distantes das nossas no tempo ou no espaço e é necessário, como sempre, precaução ao aplicar a elas nossa própria concepção de território. Eu proponho abordar a noção de território não frontalmente, mas partindo de um elemento da definição de território no sentido político: na sua etimologia mesmo, o território remete à organização do espaço da cidade romana pela autoridade pública, já que territorium, em latim, define o espaço no qual os magistrados têm o direito de “causar medo” (terreo, de onde vem a palavra terror) em nome do interesse público (LAUWERS; RIPART, 2007, p. 116), mesmo considerando que a construção territorial no mundo romano é bem mais longa, complexa e flutuante do que aquilo que pensamos por muito tempo. De qualquer modo, para construir um território, é necessário delimitar uma zona no espaço, falar dos limites e, portanto, falar das fronteiras, o que me conduz diretamente ao meu propósito. Falar de fronteiras é, com efeito, primeiramente falar dos limites e, acima de tudo, de limites territoriais definidos por um poder. Mas em toda reflexão sobre a aplicação territorial de um poder, qualquer que seja a natureza desse poder (político, econômico, religioso, etc.), coloca-se a questão da delimitação e, assim, do estabelecimento de “fronteiras” em sentido amplo. Portanto, é por uma reflexão sobre as diferentes definições e as diferentes maneiras de pensar a “fronteira” que entendo aqui no sentido amplo de “delimitação” e não somente no sentido restrito de fronteira política entre dois Estados, que eu gostaria de começar, de modo a sensibilizar o público para o caráter flutuante dessa noção, que não significa necessariamente a mesma coisa em todas as tradições historiográficas e em todas as línguas. Parto da questão mais geral: o que é uma “fronteira” num espaço? Como ela funciona enquanto delimitação? Devemos considerá-la como uma linha que separa duas concepções distintas ou, mais propriamente, como uma “zona” que permite – ou impede – o contato entre dois espaços? Estas duas concepções de fronteira, “linear ou zonal”, são correntemente utilizadas pelos historiadores, pelos geógrafos e pelos antropólogos, com implicações diferentes em cada disciplina, mas, sobretudo, em cada tradição historiográfica. Existe, com efeito – e notadamente na historiografia francesa – uma espécie de “hipertrofia” da noção de fronteira linear em razão do 194

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

desenvolvimento, no século XIX, da história de formação dos Estados nacionais, mas também em razão do registro geométrico preciso da totalidade do espaço (tipo cadastro napoleônico, cf. GUERREAU, 2010). Esse não é um bom ponto de partida para pensar a “fronteira” na História, na medida em que o caráter multifuncional desta linha-fronteira estatal, tal como a conhecemos hoje, aparece apenas raramente antes do século XVII, notadamente porque as concepções de espaço estão mudando radicalmente com a geometria cartesiana e com o uso de marcos ortonormais: ora, na parte da Europa correspondente ao antigo Império Romano, os únicos limites mais ou menos estáveis eram os das cidades, e nas zonas recentemente cristianizadas, o primeiro processo de definição espacial está relacionado à constituição das dioceses, cujos limites se modificam muito pouco em seguida. Daí que, na Idade Média, toda divisão de um território era de fato uma repartição de cidades (ou de dioceses) e de modo algum um traçado de fronteiras (o que não impede os historiadores de construir mapas a partir disso, o que coloca certo número de problemas metodológicos): estamos num sistema no qual a organização do espaço procede por ligação e inclusão de elementos num conjunto concebido mais ou menos como um polo, e não traçando limites: se existe uma “geografia medieval” ela se apoia sobre listas, jamais sobre mapas (GAUTIER-DALCHE, 1992). Ao que podemos acrescentar que estamos em um mundo no qual o território não é um dado do poder institucional: a territorialização dos poderes não funciona como uma herança de circunscrições ancestrais, e sim como um processo de delimitação que traduz uma relação de força e, portanto, conflitos entre os diferentes poderes. Em termos de cronologia, podemos dizer que esse processo de “territorialização de poderes” se cristaliza muito pouco antes do século XI2. Isso não significa, evidentemente, que não existissem nem “fronteira”, nem concepções de “limites” no espaço durante a Alta Idade Média. Desde o fim do século VIII, portanto à época de Carlos Magno, vemos, com efeito, aparecer a noção de marche, que designa uma “zona-tampão”: ela explicita, desse modo, o Império Franco como um conjunto espacial e traduz ao mesmo tempo o caráter móvel de seus limites: zonas periféricas, 2



Ver o conjunto do volume publicado por CURSENTE & MOUSNIER (2005) assim como aquele de DEPREUX; BOUGARD; LE JAN (2007), em especial o artigo de MAZEL (p. 361-398).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

195

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

zonas críticas etc... No século XI aparecem as primeiras descrições de limites, sobretudo para definir as novas dioceses da Germânia. Mas listas significativas de espaços pertencentes a um mesmo conjunto (por exemplo, a uma paróquia) não existem antes do século XII e só se generalizaram no século XIII, num desenvolvimento ligado ao amplo processo de particularização que levou a uma redistribuição metódica do espaço na escala local. Encontramos aqui então o “momento” importante para a territorialização dos poderes, que é a época feudal, digamos entre os séculos XI e XIII3. Existem, enfim, menções de delimitação concreta do espaço laico a partir do século XIV, mas essas operações são sempre muito limitadas e sempre explicitadas por textos e descrições, jamais por mapas. No entanto, a sociedade medieval não utilizava limites muito mais vagos que os nossos: cada um sabia quem tinha que direitos, sobre qual parcela etc. Mas as formas de jurisdição, de autoridade, de direitos eram muito variadas e, sobretudo, cada uma dessas formas correspondia a uma organização espacial diferente; além do mais, essa organização espacial era geralmente constituída de elementos separados, e não de um bloco compacto. Daí um embaralhamento estrutural impossível de traduzir no nosso sistema comum de faixas contínuas delimitadas por contornos simples (daí também as imensas dificuldades em cartografar esse tipo de realidade); é justamente a redução desse embaralhamento – dito de outra maneira, a escalada do Estado moderno – que torna possível a geometrização do espaço natural e a cartografia. As coisas mudam, de fato, com o Renascimento e, sobretudo, no século XVII, que constitui de fato a grande virada, como bem demonstrou Daniel Nordman (2006), momento do nascimento da concepção cartesiana de extensão (quer dizer, um espaço homogêneo e ortonormal), mas também, certamente, do nascimento do Estado moderno e da noção contemporânea de fronteira como linha geométrica multifuncional. A fundação do Estado moderno é acompanhada de um esforço para assinalar os limites e o novo Estado constrói para si limites cada vez mais sólidos aos quais ele dá um sentido político, fiscal e, sobretudo, militar, elemento fundamental no

3



196

Sobre esta evolução, cf. LAUWERS & RIPART (2007).

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

próprio vocabulário já que em francês – como em espanhol e em português – “frontière/frontera/fronteira” vem diretamente do campo semântico militar: trata-se de “fazer front” ao inimigo que está do outro lado. Permanece, todavia, posta a questão da relação entre esta concepção cartográfica e a realidade: de fato, podemos dizer também que devemos a “ilusão linear” da fronteira aos geógrafos-cartógrafos do século XVII: o mapa acelerou a mutação das fronteiras, que passaram do estado de espaço mal conhecido, porque mal controlado, àquele de conceito e abstração carregados de simbolismo e de imaginário. Essa linearidade, materializada pelos traços pontilhados do mapa que lembram os arames farpados sobre o solo, fez esquecer que as fronteiras são também regiões, espaços com certa profundidade, uma estrutura particular, um modo de funcionamento ligado à presença da linha-fronteira (RENARD, 1997). Se, de qualquer maneira, essa linha fronteiriça é somente uma abstração (TOUBERT, 1997), isso não quer dizer que ela não exista, que ela não seja materializada por sinais no terreno: ao contrário, a fronteira linear pertence a dois domínios complementares, o do visível e o do simbólico, que são suas duas modalidades principais de materialização. No domínio do visível, a fronteira pode recuperar particularidades físicas da paisagem: é a fronteira dita “natural”, a respeito da qual os trabalhos de Vidal de la Blache, no início do século XX, e os de Jacques Ancelle, nos anos 1930, mostraram que ela não tinha absolutamente nada de “natural”, mas que ela correspondia a uma construção social; a outra solução é inscrever, na paisagem, marcos artificiais, como sabemos que existiam em certas fronteiras do reino da Itália nas quais a passagem era controlada desde a alta Idade Média (POHL, 2004). No domínio simbólico, a fronteira se constitui em lugar de memória e em limite sagrado: a significação das fronteiras era, na Antiguidade, essencialmente religiosa, ou seja, definida pelas divindades (MARTIN, 2003, p. 280)4, e não está excluído que, apesar do desaparecimento dos deuses ligados aos lugares em favor do Deus cristão transcendente, a transgressão das fronteiras não tenha sido sentida por muito tempo como um risco do qual se buscava a prevenção por meio de verdadeiros rituais de transgressão visando, por

4



Para o mundo grego, consultar POLIGNAC (1995).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

197

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

exemplo, a atrair para os exércitos a Providência divina, como faz Carlos Magno, em 795, quando empreende, a partir da Baviera, uma campanha militar contra os Ávaros, atravessando o Danúbio (REIMITIZ, 2000)5. Simbolicamente, a linha-fronteira que separa dois espaços de maneira brusca, criando assim o que os geógrafos chamam uma “descontinuidade”, é certamente muito importante, porque ela tem a ver com uma visão religiosa do espaço: a religião está intimamente ligada à partição através de todos os fenômenos de hierotomia (o sagrado que corta). Certos autores veem uma prova da antiguidade e da força dos ritos de delimitação na imensa variedade lexical da raiz indo-europeia pag-pak: fincar, fixar, o que deu origem a pax, termo que, antes de designar a “paz” no sentido em que nós entendemos, designava, antes de tudo, “o marco fixado na terra por acordo entre dois povos vizinhos”, portanto, uma fronteira e daí “tratado de paz”. No latim clássico, utiliza-se de resto sempre o verbo pango para expressar o ato de delimitar: (no passado perfeito pepigi terminos, fines, etc..). É esta mesma raiz que nos legou, em francês, palavras tão diversas como “paliçada”, mas também pagus, de onde vem nosso termo de “país” etc... Não se trata, portanto, de postular que a fronteira, como linha capaz de provocar uma descontinuidade profunda, não exista, mas de nos interrogarmos sobre as modalidades de sua existência nas sociedades antigas e, em particular, na Alta Idade Média. Pois o que continua sendo o aspecto mais sensível no terreno daquela época é menos a linha-fronteira que a zona fronteiriça, a “marche” fronteiriça em sentido geral de um “espaço-tampão” que pode tomar essencialmente duas formas. Podemos estar tratando de uma zona deserta, um deserto fronteiriço representado, no Ocidente medieval, pela marche de florestas protegidas pelas autoridades contra o desmatamento sistemático e marcadas por topônimos de confins. No entanto, ela jamais é um espaço vazio, mas sempre uma zona de caça, de extração ocasional de madeira, de refúgio de eremitas: posso facilmente dar um exemplo, o de um eremita que conheço bem por tê-lo estudado de perto (BÜHRER-THIERRY, 2001), um antigo conde da Turíngia denominado Gunther que, em 1005, quando deveria ter cerca de

5



198

Sobre a importância dos limites, ver também Harrisson (2000).

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

50 anos, decide se recolher ao monastério de Niederaltaich, na Baviera, e em seguida foge para uma região quase completamente inacessível, na fronteira do ducado da Boêmia, no “deserto”. Podemos nos perguntar em que consiste precisamente esse “deserto” chamado ora de aquilonalis silva = Nordwald, ora de saltus Bohemicus. Trata-se de um antigo maciço que apresenta, de certo modo, três “estágios”: • os pontos culminantes a 1300 e 1450m formam ainda hoje a fronteira entre a Baviera e a República Tcheca: é o maciço de Arber, totalmente impróprio para a colonização; • por oposição, a parte mais baixa apresenta um relevo penetrado por numerosos vales que se alargam em sua parte final, tornando assim possível uma implantação humana; • entre os dois se estende um relevo que se eleva a 500-700m sob a forma de falésias muito pouco hospitaleiras, mas que são bons refúgios para eremitas...: é lá que Gunther vai se refugiar, o suposto lugar – Frauenbründl – é ainda hoje uma igreja de peregrinação em homenagem a Gunther. O clima é terrível: nas partes mais baixas, neva por 120 dias (150 nas mais altas). Há somente 20 a 30 dias por ano nos quais a temperatura é superior a 25º, principalmente em razão do vento muito frio dominante, daí o provérbio local: “é inverno durante ¾ do ano, e para o quarto que resta, faz frio”. Efetivamente, pode gelar de outubro a maio. Enfim, o solo é particularmente pantanoso em razão da sua natureza, pois é composto de 9/10 de gnaisse e de granito, da duração do período em que neva e da grande dimensão da cobertura de neve. Apesar de tudo, tendo superado – e sobrevivido – à crise espiritual, Gunther desceu de sua falésia e trabalhou para valorizar a zona mais baixa, criando uma pequena comunidade às margens do Rinchnach, indo mesmo até o ponto de abrir uma nova via de comunicação que conservou o seu nome: Guntherweg, o caminho de Gunther, feito de pranchas de madeira colocadas em cima das partes inconsistentes do terreno, abrindo assim uma verdadeira rede secundária que permitiu a primeira fase de colonização e exploração desse espaço fronteiriço que, apesar de ser tão pouco acolhedor, serve também como ligação entre a Baviera e a Boêmia, a ponto de o PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

199

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

monastério se tornar uma etapa do caminho. É uma constante da História Medieval que os eremitas acabem eles mesmos por contribuir para a destruição de seu próprio “deserto”. A zona-fronteira, no entanto, não é sempre um “deserto”: ela pode também corresponder a um “tecido de desenvolvimento” 6, um espaço no qual o Estado multiplica os sinais de sua presença, que são também elementos da “mise en scène ideológica” (THÉBERT, 1995): por exemplo, pelo desenvolvimento de uma rede de fortificações – ou ainda uma rede de monastérios –, fazendo assim da marche uma zona de superinvestimento da presença pública, que se traduz em impactos importantes na ordem econômica e social. Daí que as fronteiras devem ser consideradas não como limites, barreiras, mas como lugares privilegiados de troca, em particular de transferências econômicas, tecnológicas e culturais: cada fronteira se constrói por vias específicas a cada região em função de medidas impostas pelo Estado e resulta das relações que este último teceu e manteve com as populações locais (CALANCA, 2006). Nem por isso elas deixam de ser um limite político, ou seja, que separa organizações politicamente antinômicas7. Sobre esse ponto, uma das questões fundamentais que permanecem é a do enfrentamento: no termo mesmo de “fronteira” – a frontera do mundo hispânico, termo documentado pela primeira vez em 1059 no testamento do rei Ramiro I de Aragão, local em que, em alguns anos, o termo aparece três vezes e sempre no sentido da fronteira com o Islã – está inclusa a dialética do enfrentamento, do front elaborado contra o inimigo que se tem diante dos olhos (BURESI, 2001). Podemos admitir então que a fronteira, quando é linear, o é apenas por abstração e que ela se apresenta de fato sempre como uma zona. Ela é estática apenas em aparência, na medida em que resulta sempre de um movimento e somente materializa, no espaço, um equilíbrio precário. Como zona, ela pode ser o terreno privilegiado do desenvolvimento ou, ao contrário, de uma desertificação planejada, mesmo quando não exclui formas de presença humana. Em outros termos, não devemos conceber a fronteira como uma

6



Esta expressão vem do geógrafo Fr. Ratzel, « Entwicklungsstoff », citado por P. Toubert, op. cit., p. 226.

7



Sobre a distinção entre “fronteira” e “limite”, ver os trabalhos de Nordman (1998 e 2006).

200

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

simples barreira e sim como uma membrana viva, uma espécie de órgão periférico no qual as diferentes funções constituem outros tantos elementos de classificação. Vamos, a partir de agora, dar uma grande atenção às relações estabelecidas pela fronteira com os órgãos centrais do sistema do qual ela depende, que incluem a organização dos modos de ligação, rotas e etapas, entre centro e periferia. Vista do centro, ela está ligada de certa forma a todo o corpo da sociedade que ela delimita e, por assim dizer, que ela contém. Sua mobilidade é um reflexo da dinâmica global do Estado e, em qualquer sistema, ela assume funções próprias que podemos classificar em duas grandes rubricas: funções de proteção e funções de troca. E para distinguir a fronteira “linear”, que, no fim das contas, só existe no quadro dos Estados modernos8, das zonas fronteiriças, podemos recorrer à noção de “confins”, que concebe a separação entre dois espaços não como uma ruptura brusca entre um “dentro” e um “fora”, mas, antes, como uma passagem progressiva de um a outro. Encontramos esses confins em tipos particulares de território: eles são, sobretudo, um componente essencial dos territórios não submetidos à lógica geopolítica, notadamente nos casos dos espaços etnolinguísticos ou em contextos nos quais domina a interpenetração de culturas. Trata-se de situações com fraca consistência institucional nas quais a sobreposição de espaços é corrente, como em toda sociedade sem Estado. Mas eles são também uma característica dos impérios vencedores ou ameaçados, que são pressionados a administrar zonas sensíveis (as marches), de controle delicado e decisivo: as áreas disputadas podem então se tornar pólos de um poder militar eficaz e ameaçador para as zonas vizinhas. Nos Bálcãs, a existência de confins durante o longo conflito entre o império dos Habsburgos e o Império Otomano marcaram profundamente as situações geográficas, notadamente pela constituição de uma zona de ocupação sérvia (a Krajina = a fronteira) face à Bósnia turca. Na Europa dos Estados ainda não fixados pelo controle linear das fronteiras, ou seja, até o século XIX, os confins são parte integrante da

8



« La frontière n’a pas d’objet avant que l’Etat n’existe », cf. LÉVY & LUSSAULT (2003, p. 384).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

201

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

paisagem geopolítica constituída de fronteiras penetráveis, de minorias, de regiões de dupla lealdade. Enfim, os confins são a regra no ambiente urbano no qual a passagem de um subconjunto a outro raramente se faz de maneira brusca. Podemos medir facilmente a que ponto todas essas definições podem se aplicar a numerosas situações históricas e também o quanto a tradição geográfica – e histórica – francesa supervalorizou a fronteira em detrimento dos confins. Tal não é, evidentemente, o caso em outros lugares, como mostra a escolha de palavras para “dizer a fronteira”: em alemão, o termo mais antigo para designar fronteira, que existe em todos os dialetos germânicos, inclusive no inglês antigo, é o termo Mark, de onde vem o francês marche, e ele tem, em todos os lugares, o sentido duplo de “linha-fronteira” e “região-fronteira”. Mas hoje o termo mais comum para designar a fronteira é Grenze, que vem de um empréstimo das línguas eslavas, provavelmente do polonês granica. Este termo apareceu em torno da metade do século XIII na documentação proveniente da Ordem dos Cavaleiros Teutônicos. Ele se difundiu no fim da Idade Média por toda a fronteira germano-eslava antes de espalhar-se por todo o domínio alemão no século XV, e é provável que tenha sido Lutero que o tenha imposto como termo de referência no alemão comum (FEBVRE, 1962). Portanto, quando os alemães falam de fronteira, eles designam antes de tudo, de maneira implícita e nos dias de hoje sem dúvida de modo inconsciente, A fronteira, ou seja, aquela que os separa do mundo eslavo, e é evidentemente sobre essa fronteira que são mais numerosos os trabalhos dos historiadores de todos o períodos9. Os austríacos se defrontam com outro gênero de “fronteira”, o que, evidentemente, traduz-se pouco no vocabulário, uma vez que eles escrevem também em alemão, mas nas escolhas historiográficas: de uma parte, são eles que foram mais longe nas pesquisas sobre a constituição das “identidades” nas fronteiras; de outra parte, eles redobraram o termo “confins” com o de Horizont: esse termo vem do geógrafo Gerhard Sandner (1987), que define Horizont como um território que não é uma “região” / “país”. O termo

9



202

Uma síntese cômoda pode ser encontrada em DEMANDT (1990)

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

aplicado à “paisagem cultural” (Kulturlandschaft) da Mitteleuropa mostra que estamos no caso típico de um espaço de natureza territorial, mas cujos limites são difíceis de delimitar e não tomam quase nunca a forma de uma linha, ou seja, um espaço que, de alguma maneira, escapou ao Estado, mas que nem por isso deixa de ser um território que desenvolve suas características contínua e contiguamente. Os exemplos típicos são os espaços culturais trans-estatais, como a “germanidade”, que constituem precisamente o princípio de definição da Mitteleuropa. Os italianos se interessam mais pelas fronteiras “internas”, que eles chamam confini, e principalmente pelas fronteiras de povoamento, assim como os espanhóis e os portugueses que cuidam muito dessas fronteiras de povoamento, notadamente no quadro da Reconquista, concentrando-se sobre a “verdadeira” fronteira (a frontera/fronteira para a qual eles inventaram o termo), que é o lugar de enfrentamento entre a Cristandade e o Islã. Os franceses, seguindo Daniel Nordman, mas também outros historiadores, estão mais engajados em uma reflexão sobre a construção do espaço que faz da fronteira um objeto polimorfo, construção mental e também realidade política, social e econômica10. Quanto aos norte-americanos e também a uma boa parte dos anglosaxões, eles enfatizam, sobretudo, a fronteira cultural e as sociedades de fronteira como “processo”, herança direta das teorias de Turner, das quais vou falar em um instante, seja sobre os “limites” de todos os tipos, distinguindo, por outro lado, no vocabulário mesmo, frontier, boundary e border: digamos que frontier, em inglês, nunca deva ser traduzido por “frontière” em francês, e sim por “front pioneiro”, porque é o termo que se refere ao front de progressão da conquista do Oeste – fronteira hoje ameaçada em seu flanco meridional pelo front pioneiro de imigração latina. Esta concepção ampla e, sobretudo, “conquistadora” da fronteira americana, engendrando um tipo de sociedade específico, tal como ela foi descrita por Turner, teve grande influência sobre os trabalhos dos historiadores, notadamente medievalistas, e é por isto que vou me deter um pouco sobre ela.

10

O modelo desta abordagem é a tese de P. Bauduin (2004).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

203

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

A concepção de “sociedades de fronteira” remonta aos trabalhos de Frederic Jackson Turner (1893) sobre a fronteira norte-americana como lugar de encontro entre o mundo selvagem e a civilização11, concepção que influenciou, por muito tempo, os medievalistas12, principalmente pela aplicação que foi feita por J. W. Thompson dessa concepção, desde 1913, à história da Germânia13. Nesses trabalhos, as “sociedades de fronteira” são caracterizadas por uma grande militarização, mas também por uma grande flexibilidade na negociação: quanto mais liberdade, mais fluidez social, uma sociedade fragmentada em uma pluralidade de fidelidades para fazer face à necessidade de se defender e de tomar posse de vastos espaços oferecidos à colonização. Turner foi o primeiro a ver, no fenômeno da fronteira, não somente uma linha ou uma marche de conquista pioneira, mas sobretudo o processo original de formação de uma sociedade como um todo, o lugar estratégico no qual se operou a tomada de consciência coletiva da construção nacional: assim, seria a periferia que criaria o centro, e não o inverso. Superando a concepção de Turner, que vê na fronteira uma vasta zona intermediária entre o mundo selvagem e a civilização, mas na qual o mundo selvagem está irremediavelmente destinado à destruição, trabalhos recentes de americanistas – notadamente canadenses – chamaram a atenção, ao contrário, para a fronteira como zona de interações culturais que deve ser considerada por ela mesma (WHITE, 1991): um “espaço de acordo” – middle ground – um lugar intermediário – a place in between – entre as culturas, entre os povos, entre os impérios. Trata-se de considerar a fronteira, não como um lugar de enfrentamento, e sim – pelo menos durante certo tempo – como um lugar de interpenetração de mundos diferentes. Certamente, essa “acomodação” só pode ter lugar em períodos nos quais nenhum grupo social pode ignorar o outro, nem impor suas leis: é o que eu vou tentar demonstrar agora por meio de um exemplo tomado da fronteira do mundo eslavo-germânico, não mais entre a Baviera e a Boêmia, mas um pouco mais ao norte, no alto vale do Elba,

11



Cf. Turner (1920). O capítulo introdutório, intitulado The significante of the frontier in American History é a publicação de uma conferência proferida em 1893.

Encontramos toda a historiografia influenciada pelos trabalhos de Fr. J. Turner em BURNES (1989).

12

13

Ver Thompson (1913). A respeito desse assunto, consultar o prefácio de Berend em Abulafia & Berend (2002, p. X-XV).

204

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

onde se desenvolve o que podemos chamar de “sociedade de fronteira” em torno do ano 1000. Esta região do Elba representa, durante toda a Idade Média, uma espécie de arquétipo da fronteira medieval: é uma região na qual o encontro de culturas se alterna com enfrentamentos extremamente violentos que acabam por levar a uma renegociação permanente da “fronteira” entre entidades políticas em construção. Se o leito do Elba aparece bem como um limite tangível, toda tentativa de estabelecer um limes de tipo romano naquela região foi destinada ao fracasso desde Carlos Magno: com efeito, os Francos tentaram se estabelecer sobre os dois lados do rio construindo fortalezas, mas nenhuma delas conseguiu se manter além da segunda metade do século IX, na qual a maior parte dos castelos francos foram destruídos ou se tornaram sedes de poder para os príncipes eslavos (HARDT, 2001). Um século mais tarde, os Otonianos restauram Magdeburgo – que se tornará rapidamente um lugar central da realeza saxônica – e em 929 as tropas de Henrique I constroem a fortaleza de Meissen, que desempenha a partir de então um papel fundamental em um sistema fronteiriço muito diferente, na medida em que ele não se apóia sobre um sistema linear, como o limes romano, e sim sobre zonas de marche confiadas a “marqueses”, marches cuja espessura é, por um lado, uma garantia contra as incursões das populações hostis e um meio de fincar pé do outro lado do leito do rio visando à colonização, mas, sobretudo, à cristianização: é, portanto, uma zona duplamente aberta às influências dos dois lados. Essa relativa “abertura” não impede, no entanto, os enfrentamentos, notadamente em 983, quando as populações situadas a leste do Elba expulsam ou massacram todos os cristãos fixados nesses lugares, episódio conhecido pelo nome de “reação pagã”. Essa grande revolta leva à destruição de todas as igrejas fundadas a leste do Elba, ao mesmo tempo em que Magdeburgo e Meissen se tornam novamente os postos mais avançados da cristianização em território eslavo: a ideia de que Magdeburgo representa o bastião cristão face aos eslavos pagãos aparece exatamente como um elemento constitutivo da identidade do clero da catedral nessa época (PATZOLD, 2008). Temos então o sentimento de que existe realmente sobre o Elba uma fronteira confessional que opõe radicalmente os cristãos aos pagãos, duplicada por uma fronteira cultural opondo as populações germânicas às populações eslavas. Ora, as PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

205

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

coisas são muito mais complexas e muito menos definidas que isso, como nos mostram tanto a Arqueologia quanto a principal fonte escrita para esta época, a crônica do bispo Thietmar de Merseburgo,14 que revelam, de uma parte e de outra da fronteira, uma grande fluidez das identidades religiosas e das fidelidades políticas. A reação pagã certamente acabou por destruir todas as igrejas, nas quais o clero foi com frequência massacrado, como em Brandemburgo e em Oldemburgo: ela consistiu também em uma transformação dos lugares de culto cristãos em lugares de culto pagãos, como atestam notadamente as escavações de Oldemburgo, onde a reação pagã se concretizou pela colocação de um “ídolo” de madeira exatamente no local do antigo altar da catedral. Foi encontrado no local um suporte de pedra de 2 metros por 2, medindo um metro de altura e comportando, em seu centro, uma cavidade na qual o famoso ídolo devia ser colocado. Foram encontrados também, em volta da antiga igreja, depósitos funerários de cavalos que representam a parte do sacrifício destinado aos deuses, como também traços de banquetes ligados a esses sacrifícios, que serviam para reforçar os elos no interior da comunidade, para sinalizar a identidade cultural e a independência política (GABRIEL, 2000). Tudo isso é bem conhecido pela crônica de Thietmar que, no entanto, acrescenta o seguinte comentário: “infelizmente, não somente os pagãos, mas também os cristãos exaltaram essa transformação”15, o que pode, sem dúvida, se aplicar aos cristãos que “retornavam” ao paganismo, mas também àqueles que, embora desejando permanecer cristãos, reprovavam a ação política e, sobretudo, fiscal da Igreja, que recolhia os dízimos; do rei germânico e de seus representantes, que exploravam as populações. Sem dúvida, é necessário compreender da mesma maneira a expulsão do bispo Folkold pelos habitantes, majoritariamente eslavos, mas também cristãos, da cidade de Meissen em 984: aqui, nada de perseguição de cristãos e sim uma ligação com o príncipe polonês Boleslaw, ele também cristão, mas que não cobra imposto, ou cobra menos. A fronteira que separa os grupos não é então forçosamente religiosa nessa sociedade impregnada de uma grande fluidez,

14

Refiro-me aqui à edição de W. Trillmich (1974), doravante citado como Thietmar.

15

Thietmar III, 17: … flebilis haec mutacio non solum a gentilibus, verum etiam a christianis extollitur.

206

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

e o pretenso retorno ao “paganismo” mascara eventualmente uma vontade de escapar de um sistema de governo e de exploração fiscal das populações que tem pouca relação com a identidade religiosa. Esta fluidez, no entanto, concerne também às fidelidades pessoais que parecem tanto mais instáveis na medida em que é fácil jogar uma autoridade contra a outra, o que ilustra particularmente a história do cavaleiro (miles) Kizo em Brandemburgo. Thietmar parece ter conhecido bem este personagem: ele o descreve como um cavaleiro do marquês Dietrich que passou “para o inimigo”, ou seja, à coalizão pagã dos eslavos, porque Dietrich o havia maltratado e porque ele não via como poderia obter justiça16. Ora, depois da tomada de Brandemburgo, os eslavos confiam a guarda da fortaleza a esse Kizo, manifestando assim uma grande confiança em sua nova fidelidade. No entanto, Kizo acabará, em 993, por retornar ao refúgio imperial, traindo novamente, ao entregar ao imperador a fortaleza de Brandemburgo que os condes da região conseguem retomar. Kizo vem então, segundo as regras em uso17, pedir sua graça no palácio de Quedlimburgo, onde, num primeiro momento, ele é penalizado pela perda da fortaleza e também de sua esposa – que é provavelmente enviada ao monastério – e de seus vassalos; mas, numa data posterior, que ignoramos, “tudo lhe foi restituído, exceto a fortaleza”18 na qual se estabelece, a partir de então, um dos próprios vassalos de Kizo, de nome Boliliut, de origem eslava, mas instalado pelo soberano germânico. Pouco tempo depois, sabemos que Kizo foi assassinado com todos os seus.19 Essa história, contada por Thietmar, mostra a exacerbação da competição entre os cavaleiros pela detenção de uma praça fortificada no contexto de uma guerra permanente, mas ela mostra também a fluidez das fidelidades e a recomposição incessante dos poderes na fronteira, ainda

16

Thietmar IV, 22: Fuit in nostra vicinitate quidam miles inclitus, Kiza nomine, qui a merchione Thiedrico aliter, quam sibi placeret, habitus est. Ob hoc et quia facultas suae nequaquam pietati suppeteret, ad hostes perrexit nostros.

17

Sobre a deditio, consultar ALTHOFF (1987).

18

Thietmar IV, 22: Post haec Kizo ad Quidilingaburg cum veniret, civitatem suam cum uxore et satellitibus suis perdidit; quae omnia urbe excepta post recepit.

19

Ibid: Kizo… optimus miles cum suis interfectus est. Sobre a complexa história da fortaleza de Brandenburgo, ver Grebe (2000) e Ludat (1971).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

207

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

mais na medida em que o bispo de Merseburgo não parece se ofender com isso: se é muito crítico em relação a Boliliut, que, segundo sua opinião, detém injustamente a fortaleza de Brandemburgo20, ele não condena, em nenhum momento, a atitude de Kizo, que qualifica, ao contrário, de miles inclitus, depois de optimus miles, – “cavaleiro ilustre e excelente. Mas Thietmar emprega apenas raramente esses qualificativos no conjunto de sua obra e ele os atribui também a outros jovens cavaleiros estreitamente ligados às grandes famílias eslavas da região e, por esta razão, suspeitos de cumplicidade com o inimigo21. Existiam, com efeito, numerosas ligações pessoais entre os Saxões e os Eslavos, principalmente matrimoniais, em todos os níveis da sociedade: por exemplo, o célebre marquês Dietrich deu sua filha em casamento ao príncipe polonês Miesco e o estudo dos necrológios conservados nas igrejas saxônicas mostra que essas alianças acabavam por levar igualmente à construção de uma memória comum no mais alto nível da aristocracia (ALTHOFF, 1984). Todas essas ligações permitiam o desenvolvimento de uma sociedade de fronteira, onde se entrecruzavam ligações pessoais e fidelidades, sem consideração pela origem das pessoas, num sistema bem mais complexo que aquele que opunha uma identidade eslava a uma identidade germânica, dos dois lados de uma fronteira sempre em movimento e sempre renegociada.

Conclusão Espero ter mostrado toda a riqueza da problemática que vai ocupar nosso congresso e a necessidade de repensar o território, a natureza da fronteira que o delimita e a sociedade que ao mesmo tempo o pratica e o constrói. Não existem fronteiras “naturais” entre os povos e os Estados, entre os grupos sociais e as diferentes religiões. Elas tendem sempre a se tornar menos nítidas e mais permeáveis. Mas o esforço feito para mantê-las e lhes dar um sentido é uma parte essencial da construção das comunidades.

20

Thietmar, IV, 64: …iniusto provisore civitatis Boliliuto…

21

Para mais detalhes, cf. Bührer-Thierry (2011).

208

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

Trabalhar com as margens do mundo germânico por muitos anos me convenceu de que praticamente não existe formação territorial nem grupo social que seja constituído de uma vez por todas e que é necessário voltarmos nossa atenção de historiadores para as modalidades dessas construções, para os discursos ideológicos que as sustentam, para o papel desempenhado pelos atores que as fabricam, seja na Europa do norte da Alta Idade Média ou na América do Sul do século XXI... e espero também tê-los convencido e ter despertado em vocês o gosto pelo trabalhos que virão a seguir.

Referências ALTHOFF, G. Adels-und Königsfamilien im Spiegel ihrer Memorialüberlieferung. Studien zum Totengedenken der Billunger und Ottonen. Munich: Wilhelm Fink, 1984. ALTHOFF, G. Das Privileg der deditio. Formen gütlicher Konfliktbeendigung in der mittelalterlichen Adelsgesellschaft; In: ALTHOFF, G. Spielregeln der Politik. Kommunikation in Frieden und Fehde. Darmstadt: Primus, 1997, p. 99-125. BAUDUIN, P. La première Normandie (Xe-XIe s.): sur les frontières de la haute Normandie. identité et construction d’une principauté. Caen. Presses Universitaires de Caen, 2004. BEREND, N.; ABULAFIA, D. (Éd.) Medieval frontier: concepts and practices. Aldershot: Ashgate, 2002, p. X-XV. BURESI, P. Nommer, penser les frontières en Espagne aux Xie-XIIIe siècles. In: JOSSERAND, P. et al. (Éd.) Identidad y representacion de la frontera en la Espana medieval (siglos XI-XIV). Madrid: Casa de Velasquez, 2001, p. 51-74. BURNES, R. I. The significance of the frontier in the Middle Ages. In: BARTLETT, R.; McKAY, A. (Dir.) Medieval frontiers societies. Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 307-330. CALANCA, P. Introduction. In: CALANCA, P. (Èd.) Desseins de frontières, Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2006, p. 5-16. CURSENTE, B. C.; MOUSNIER, M. (Dir.) Les Territoires du médiéviste. Rennes: Presses Universitaires Rennes, 2005. DEMANDT, A. (Éd.) Deutschlands Grenzen in der Geschichte. Munich: C. H. Beck, 1990. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

209

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

DEPREUX, P.; BOUGARD, F.; LE JAN, R. (Dir.) Les élites et leurs espaces: mobilité, rayonnement, domination (du VIe au XIe siècle). Turnhout: Brepols, 2007. FEBVRE, L. Frontière: le mot, la notion. In: FEBVRE, L. Pour une Histoire à part entière. Paris: Sevpen, 1962, p. 11-24. GABRIEL. S. O. In: WIECZOREK, A.; HANS-MARTIN. H. (Ed.) Europas Mitte um 1000. Berlin: Theis, 2000 Europas Mitte um 1000. Beiträge zur Geschichte, Kunst und Archäologie. Berlin: Theis, p. 658-661. v. 2. GAUTIER-DALCHÉ, P. De la liste à la carte. Limites et frontières dans la géographie et la cartographie de l’Occident médiéval. In: POISSON. J. M. (Éd.) Frontières et peuplement dans le monde méditerranéen au Moyen Age. Rome/Madrid: École Française de Rome/Casa de Velázquez, 1992, p. 19-31. GREBE, K. Brandenburg an der Havel. In: WIECZOREK, A.; HANSMARTIN. H. (Ed.) Europas Mitte um 1000. Berlin: Theis, 2000, p. 274-277. v. 1. GUERREAU, A. Frontière. In: GAUVARD, C. (Dir.) Dictionnaire du Moyen Age. Paris: Presses Universitaires de France, 2002. HARDT, M. Hesse, Elbe, Saale and the frontiers of the Carolingian Empire. In: POHL, W. (Ed.) The transformation of frontiers from Late Antiquity to the Carolingians. Leiden/Boston: Köln, 2001, p. 219-232. HARRISON, D.  Invisible Boundaries and places of power: notions of liminality and centrality in the early middle ages. In: The transformation of frontiers from Late Antiquity to the Carolingians. Leiden/Boston: Köln, 2001, p. 83-93. LAUWERS, M.; RIPART, L. Représentation et gestion de l’espace dans l’Occident médiéval. In: GENET, J.-P. (Dir.) Rome et l’Etat moderne européen. Rome: École Française de Rome, 2007, p. 115-171. LÉVY, J.; LUSSAULT, M. Dictionnaire de la géographie et de l’espace des sociétés, Paris: Belin, 2003, p. 384. LUDAT, H. An Elbe und Oder um das Jahr 1000. Skizzen zur Politik des Ottonenreiches und der slawischen Mächte in Mitteleuropa. Cologne/Vienne, 1971, p. 42-51. MARTIN, C. La géographie du pouvoir dans l’Espagne wisigothique. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 2003. MAZEL, F. Des familles de l’aristocratie locale en leurs territoires: France de l’Ouest, du IXe au XIe siècle. In: DEPREUX, P.; BOUGARD, F.; LE JAN, R. (Dir.). Les élites et leurs espaces. Mobilité, rayonnement, domination (du VIe au XIe siècle), Turnhout: Brepols, 2007, p. 361-398. 210

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

FRONTEIRAS, SOCIEDADES DE FRONTEIRA E IDENTIDADES NA EUROPA DA ALTA IDADE MÉDIA

MONNET, J. Le territoire réticulaire. Anthropos, n. 227, p. 91-104, 2010. NORDMAN, D. Conclusion. CALANCA, P. (Èd.) Desseins de frontières, Saint-Denis: Presses Universitaires de Vincennes, 2006, p. 5-16, p. 199-212. NORDMAN, D. Frontières de France: de l’espace au territoire (XVIe-XIXe siècle). Paris: Gallimard, 1998. PATZOLD, S. L’archidiocèse de Magdebourg. Perception de l’espace et identité. In: MAZEL, F. (Dir.) L’espace du diocèse. Genèse d’un territoire dans l’Occident médiéval (Ve-XIIIe s.), Rennes: Presses Universitaires Rennes, 2008, p. 167-194. POHL, W. Le frontiere longobarde. Controllo e percezioni. In: MOATTI, C. (Dir.) La mobilité des personnes en Méditerranée de l’Antiquité à l’époque moderne. Rome: École Française de Rome, 2004, p. 225-238. POLIGNAC, F. La naissance de la cité grecque: cultes, espace et société. VIIIe-VIIe s. Paris: La Decouverte, 1995. REIMITZ, H.  Conversion and control: the establishment of liturgical frontiers in Carolingian Pannonia. In: POHL, W. (Ed.) The transformation of frontiers from Late Antiquity to the Carolingians. Leiden/Boston: Köln, p. 189-208. RENARD, J. P. Le géographe et les frontières. Paris: L’Harmattan 1997. RIPOLL, F.; VESCHAMBRE, V. Le territoire des géographes. Quelques points de repères sur ses usages contemporains. In: CURSENTE, B. C.; MOUSNIER, M. (Dir.) Les Territoires du médiéviste. Rennes: Presses Universitaires Rennes, 2005. SANDER, G. Mittelauropa als Kulturlandschaft. In: STEGER, H. A.; MOREL, R. (Dir). Ein Gespenst geht um..: Mitteleuropa, Munich, 1987, p. 127-152. THÉBER, Y. Nature des frontières de l’Empire Romain: le cas germain. In: ROUSSELLE, A. Frontières terrestres, frontières célestes dans l’Antiquité. Paris: De Boccard, 1995, p. 221-235. THIERRY-BÜHRER, G. Aux marges de la Bavière et de la Bohême: Gunther l’Ermite. In: LAURIOUX, B; MOULINIER-BROGI, L (Éd.), Scrivere il Medioevo: lo spazio, la santità, il cibo. Un libro dedicato ad Odile Redon. Roma: Viella, 2001, p. 263-276. THIERRY-BÜHRER, G. Des évêques sur la frontière: christianisation et sociétés de frontière sur les marches du monde germanique aux Xe-XIe siècle”. Quaestiones Medii Aevi Novae 16, 2011. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

211

GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY

THOMPSON, J. W. Profitable fields of investigation in Medieval History. American Historical Review 28, 1913, p. 490-504. TOUBERT, P. L’historien, sur la frontière. In: L’Histoire grande ouverte, Hommages à Emmanuel Leroy-Ladurie, Paris: Fayard, 1997, p. 221-232. TRILLMICH, W. Thietmar von Merseburg. Chronicon (Ausgewählte Quellen zur deutschen Geschichte des Mittelalters 9). Darmstadt, 1974. TURNER, F. J. The Frontier in American History, New-York 1920. WHITE, R. The middle ground: Indians, empires and republics in the Great Lakes Region (1650-1815). Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

212

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA1, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA2 Fréderic Moret

A construção das Fortificações de Paris, começada durante a Monarquia de Julho graças a um período de tensões diplomáticas, condicionou e ainda condiciona em grande medida o desenvolvimento da aglomeração parisiense. O traçado das “Fortifs” – que corresponde grosseiramente à atual avenida de contorno – marca de forma ao mesmo tempo material e simbólica a fronteira entre Paris e sua periferia3, em particular desde a decisão de anexar o espaço compreendido entre os limites antigos de Paris e as fortificações4, tomada na época de Napoleão III. A limitação exercida por essa dominação no coração da metrópole parisiense foi particularmente objeto de numerosos debates no fim do século XIX, quando a eventualidade e, depois, a necessidade do desmantelamento da muralha entram para a ordem do dia (CHARVET, 2005); ela continua central no momento em que a cidade de Paris iniciou novas relações com os municípios que a rodeiam e nos quais o poder central coloca a questão da “Grande Paris”.5 A decisão de fortificar Paris constitui o acabamento de uma reflexão presente desde o fim do Antigo Regime e durante o primeiro Império, marcada posteriormente pela reflexão conduzida pela comissão Gouvion Saint-Cyr durante a Restauração. A primeira tentativa, em 1833, terminou em fracasso e foi em 1841 que Adolphe Thiers conseguiu aprovar o seu projeto, no final de um debate acalorado que contou com a

1



Nota da tradutora: Zona non aedificandi é a designação dada aos territórios que foram cingidos pela construção das fortificações e onde as construções definitivas são proibidas. A tradução para o português do presente texto foi realizada por Fabíola Martins Bastos, com revisão técnica de Sandro Deccotignies.

2



Este texto retoma, essencialmente, a discussão já levantada em um artigo publicado recentemente (MORET, 2009).

3



Ler a respeito COHEN (1991); O’BRIEN (1975); CAPIZZI (2003); MORET (2008); bem como o trabalho pioneiro de ROULEAU (1985).

4



Sobre esse período conferir MONTEL (2000-2001) e BOURILLON (2006).

5



O seminário organizado conjuntamente pela Cidade de Paris e Annie Fourcaut (Centro de História Social do Século XX, Universidade Paris I) em 2003-2005 sobre « Paris/banlieue, histoire croisée », trata a respeito dessas preocupações; Ver o site da Prefeitura de Paris (http://www.paris.fr/portail/accueil/ Portal.lut?page_id=95).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

213

FRÉDÉRIC MORET

participação de muitos atores: militares, deputados, jornalistas, arquitetos, intelectuais socialistas... A perspectiva da transformação de Paris em praça de guerra está no centro das intervenções públicas e permite uma análise do lugar e do papel que os diferentes atores atribuem à Capital. Se Paris, no entanto, esteve no centro do debate político, os trabalhos das fortificações afetam, antes de tudo, nas primeiras décadas, um espaço extra-parisiense. Os grandes ausentes na discussão do projeto, apesar de algumas tentativas, são evidentemente aqueles que eram mais afetados pela sua implementação. Autoridades e moradores dos territórios destinados a abrigar as construções não tiveram, de fato, a oportunidade de discutir o assunto. Apenas os interesses parisienses foram (parcialmente) considerados pela oposição republicana, mas é impressionante notar a fraqueza da argumentação relativa às consequências desse empreendimento sobre a aglomeração. Indagar a respeito dos efeitos da construção das fortificações sobre os territórios de Paris e dos municípios periféricos constitui, assim, em grande parte, um anacronismo e leva a perseguir, na virada de um desenvolvimento partidário, os traços das concepções e representações do devir do espaço parisiense. Em particular, a construção de fortificações levanta a questão das fronteiras internas à aglomeração, fronteiras físicas, fiscais, mas também mentais. A gestão dos “interesses da periferia” a propósito das desapropriações, da questão dos impostos dos municípios6 ou do futuro da Zona assiste, dessa forma, à intervenção de múltiplos atores, ligados a poderes civis e militares, estatais ou locais, mas, também, provenientes das populações diretamente afetadas, proprietários ou usuários do espaço marcado pelas fortificações.

Paris, cidade fortificada? O projeto inicial, que tinha o apoio do governo e da maioria dos especialistas militares, previa construir a uma distância de alguns quilômetros

6



214

No original: l’octroi constitui a contribuição indireta que algumas municipalidades foram autorizadas a receber sobre certas mercadorias de consumo local.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

da Capital uma série de fortes destacados que permitiriam defender Paris contra uma agressão externa. Esse projeto foi vigorosamente combatido por uma minoria de militares e por uma grande parte da oposição, que suspeitava que o governo procurava, sobretudo, controlar a Capital e seu povo turbulento. Os republicanos mais moderados se fizeram os advogados de outra solução e defenderam a construção de uma muralha contínua em torno de Paris. Os partidários dos fortes destacados fizeram do exército de linha o principal defensor da Capital, enquanto os advogados da muralha contínua utilizavam a tradição da autonomia da defesa e da manutenção da ordem corporificada na Guarda Nacional, a quem se atribuía uma capacidade militar que recentes trabalhos levam a relativizar (LARRÈRE, 2000). O projeto de lei finalmente adotado em abril de 1841 é o resultado de uma série de transações e concessões. Durante a discussão na Câmara sobre as petições enviadas em 1844, um deputado (Lherbette) expressa a opinião segundo a qual “o sistema da muralha contínua tinha alguns partidários e o sistema das fortificações tinha outros; e teria havido, na época da apresentação do projeto de lei, uma transação que Lherbette tem dificuldade para explicar”.7 Apesar das negativas, parece realmente que a lei resulta de barganhas entre diferentes tendências; desse ponto de vista, ela leva a reconsiderar a alegada submissão das Câmaras frente ao poder executivo na época da Monarquia Censitária. Para aprovar o projeto, o governo teve de se comprometer a uma estrita limitação de despesas, ao mesmo tempo em que devia combinar as duas opções de partida. O projeto foi adotado, não sem dificuldade, como provam os ecos satíricos do Charivari que ironiza os convites para o jantar no Palácio que eram enviados aos deputados reticentes, intitulando um artigo no dia 22 de janeiro de 1841 “Quem acreditaria que a cozinha do castelo pudesse ser fortificante?”8

7



Câmara dos Deputados, « Discussion sur les pétitions contre les fortifications de Paris », Le Moniteur universel, seções de 27 de fevereiro a 2 de março de 1844.

8



«Qui croirait jamais que la cuisine du château puisse être fortifiante?», Le Charivari, quarta-feira, 22 de janeiro de 1841, p. 2.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

215

FRÉDÉRIC MORET

Figura 1: as Fortificações e a linha de ferro na metade do Segundo Império

As consequências puramente econômicas da construção das fortificações são frequentemente elencadas pelos opositores ao projeto. Observa-se o comunista Étienne Cabet se postar como defensor da propriedade privada. Mobilizando mão de obra e materiais em grande contingente, os trabalhos levariam ao aumento dos custos da construção e a uma crise desse setor em Paris. As indústrias instaladas nos subúrbios se arriscam, de acordo com esses autores, a fugir da proximidade de uma praça forte para se estabelecerem próximas a cidades menos expostas. O arquiteto César Daly, Diretor da Revista Geral da Arquitetura e das Obras Públicas, influenciado pelo saint-simonismo e pelo fourierismo, se desespera. Para ele “A França parece se preparar, com grandes despesas, para comprimir e aniquilar esse impulso industrial de que ela começava a colher os frutos”. De fato, a situação na França a predispõe ao comércio de trânsito, mas o país ficou para trás nos investimentos ferroviários, em particular. Ele se indigna com a prioridade dada às fortificações em detrimento de outras obras públicas, produtoras de riqueza. Especialmente, ele argumenta em prol de uma defesa moderna, não mais baseada nas fortificações, 216

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

mas na velocidade do deslocamento que seria proporcionada por uma rede de canais e ferrovias modernas. “Buscar um sistema de defesa que possa se tornar produtivo em tempos de paz” parece-lhe uma solução muito melhor9. Tanto do ponto de vista da economia parisiense quanto da organização do comércio, as fortificações estão levando a França a perder tempo.

Os interesses da periferia Se a questão do estatuto e do papel de Paris está no centro do debate político, é impressionante identificar a quase total ausência de reflexão sobre as consequências das fortificações no desenvolvimento futuro da aglomeração. O anacronismo dessa medida como silêncio total de questionamentos sobre o projeto constitui um paradoxo (RONCAYOLO, 1980), na época em que a “cidade aberta” encarna a modernidade10, quando se difunde a ideia de que a aglomeração parisiense é levada, sob o modelo londrino, a se expandir consideravelmente. As circulares eleitorais conservadas no BNF11 a respeito das eleições legislativas de 1842 são, desse ponto de vista, bastante elucidativas. Nem os candidatos parisienses nem aqueles dos distritos de Saint-Denis e Sceaux destacam em seus programas da campanha eleitoral a questão das fortificações, à exceção de um, Augé de Fleury, que voltaremos a mencionar e que não será eleito. De fato, se podemos falar, desde os anos 1830, de fortificações de Paris, é preciso constatar que as obras acontecem fora de Paris e afetam municípios periféricos e espaços ainda em grande parte rurais. Uma área importante (que foi anexada em 1860 e que corresponde aproximadamente aos distritos 12 a 20) se encontra duplamente fechada, em direção a Paris pela linha dos impostos municipais, em direção à periferia pelas fortificações, que formam um anel duplo ao redor da Capital. Alguns municípios, como Bercy, La Villette e Belleville estão quase totalmente integrados à linha das fortificações, mas outros, como Ivry, Montrouge ou Le Pré Saint-Gervais são atravessados pelas fortificações. A situação jurídica desses municípios é particularmente César Daly, « Des Fortifications de Paris », Revista Geral de Arquitetura e de obras públicas, janeiro de 1841, p. 26-29. Ele argumenta a favor da instalação de um campo entrincheirado próximo a Paris, associado a uma rede de linhas de ferro e de canais. 10 Para o contexto geral dessa reflexão consultar LEPETIT (1988). 11 Essas circulares estão reunidas em volumes na BnF sob a identificação Le54 1597 à 1646. 9



PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

217

FRÉDÉRIC MORET

complexa, como evidenciado pelo exemplo preciso do município Pré SaintGervais (veja imagem adiante), a nordeste de Paris. A área municipal, pouco extensa (menos de 140 hectares), se encontra recortada pelas fortificações, que ocupam 20% do território e separam fisicamente uma parte do município, localizada no interior da muralha. Na parte externa da muralha, define-se um espaço sobrecarregado de servidões militares. Tendo em vista a especificidade da aglomeração, uma infração ao sistema normal das fortificações reduz a 250m a Zona non aedificandi, onde as construções definitivas são proibidas. Em Pré Saint-Gervais, a “Zona” – como ela passará rapidamente a ser chamada – ocupa quase um terço da superfície. O território do município é, então, dividido em quatro áreas de status e situação diferentes, que, com o território da cidade de Paris, somam cinco tipos de espaços sociais e jurídicos que se sucedem e definem uma série de fronteiras internas à aglomeração, no momento em que o crescimento da população dá origem a uma verdadeira aglomeração metropolitana, uma vez que a aglomeração parisiense passa, entre 1836 e 1866, de um para dois milhões de habitantes. De modo muito paradoxal, a urbanização das áreas rurais e semi-rurais localizadas entre Paris e as cidades periféricas é impedida de constituir uma ocupação homogênea. Cada um dos limites jurídicos assim constituídos influenciam o desenvolvimento urbano, mas também as vivências e as representações das populações. Figura 2: Os territórios de Pré-Saint-Gervais

218

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

A questão do imposto municipal: os limites de Paris O Documento em apoio às observações apresentadas pelos municípios dos subúrbios de Paris sobre o projeto de lei relativo às Fortificações da Capital é assinado pelos “proprietários e moradores dos subúrbios”, provavelmente representantes dos notáveis do subúrbio. Redigido pelo advogado Vatimesnil, o manifesto inclui a assinatura de seis membros do Conselho Geral do Sena, um notário de La Chapelle e um proprietário de Ivry. Em princípio favoráveis ao projeto, a intervenção deles é motivada pela defesa dos interesses econômicos. A preocupação se situa em três níveis: o imposto municipal, as servidões e a questão da indenização. Os autores rejeitam veementemente a hipótese de um alargamento dos limites do imposto municipal, por meio das fortificações. Segundo eles, a cidade de Paris é rica o suficiente em seus limites atuais; além disso, “o efeito natural do imposto municipal é criar em torno das grandes cidades estabelecimentos que não seriam formados se esse tributo não existisse”12. Esses estabelecimentos industriais mas, sobretudo, de recreação (o trabalhador parisiense vai dançar e beber nas tabernas dos limites da aduana municipal, onde o vinho, não tributado, é mais barato) seriam condenados à morte por uma extensão das fronteiras. O Conselho Municipal de Bercy, sem deixar de manifestar sua lealdade para com o Ministro do Interior, se preocupa com as mesmas questões. Assim, desde novembro de 1840, ele vota e manda imprimir uma demanda ao governo que expõe claramente as possíveis consequências das fortificações. Para além das perdas financeiras relacionadas à presença das fortificações13, o receio expresso pelos edis suburbanos é que “a cidade de Paris venha um dia a tomar as fortificações por seus limites, a fim de atingir com o direito de tributar o consumo que se faria nessas muralhas de proteção”14. A anexação do espaço circunscrito no interior das fortificações por Paris e, assim, o deslocamento dos limites fiscais são vistos como uma

12

Mémoire à l’appui des observations présentées par les communes de la Banlieue de Paris, sur le projet de loi relatif aux Fortifications de la Capitale. Vaugirard: Imprimerie Delacour, 1841, 24 p.

13



14

Ibidem, p. 2.

Conselho municipal de Bercy, Délibération du Conseil du 3 novembre à propos des Fortifications de Paris. Slnd, 4 p.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

219

FRÉDÉRIC MORET

catástrofe econômica e demográfica, dada a importância econômica dos estabelecimentos de bebidas localizados às muralhas de Paris: “Uma medida tão exorbitante não pode ser tomada levianamente e a cidade de Paris estaria errada se pensasse tirar disso alguma vantagem, porque os municípios mais populosos, tais como Belleville, La Villette, Bercy, Vaugirard, Montrouge, só devem sua prosperidade ao comércio de fluidos: mas esse comércio, uma vez impossibilitado, se deslocaria rapidamente e esses municípios, hoje florescentes, logo não seriam mais que um deserto a ser agrupado aos terrenos ainda sob cultivo agrícola localizados no interior da muralha atual”15. Em consequência, para dar garantias aos municípios suburbanos, a lei de abril 1841 sobre as fortificações especifica que os limites municipais só poderão ser alterados por meio de uma nova lei (e não em virtude de uma simples decisão administrativa). Apesar de todas as negações, antecipa-se em grande parte a decisão, que será tomada sob Haussmann, de anexar essa área. Os desejos das municipalidades, pela sua repetição, destacam o baixo peso dessa opinião suburbana. Por quase vinte anos, o espaço no interior das fortificações permanece independente em relação a Paris e continua a se desenvolver, beneficiando-se da vantagem fiscal. Esses municípios adquirem um aspecto francamente urbano e conhecem um crescimento demográfico sensivelmente superior àquele de Paris intramuros16. Os municípios cortados pela linha das fortificações se desenvolvem em ambos os lados dessa barreira física, que modifica consideravelmente a paisagem: a muralha continua a se impor por seu caráter maciço; ela se compõe de uma estrada militar interior, de um parapeito com 6m de largura, de uma parede escarpada com 3,5m de espessura e 10m de altura, de um fosso de 40m e de uma contraescarpa levemente inclinada, sem esquecer a Zona non aedificandi, da qual voltaremos a falar posteriormente. Fato novo, a muralha é uma área sob comando militar que escapa, em grande parte, às autoridades civis, sejam elas administrativas (a Prefeitura do departamento de Sena) ou políticas (os municípios e seus conselhos municipais). A história das fortificações é feita de múltiplas reclamações originadas das autoridades civis e das

15

Ibid.

16

Referimo-nos, naturalmente, à obra clássica de Gérard Jacquemet, Belleville au XIXe siècle, du faubourg à la ville, Paris, Editions de l’EHESS, 1984.

220

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

populações contra as decisões, as invasões das autoridades militares. As decisões militares, por vezes, conduzem à reformulação dos usos do espaço. O conselho municipal de Pré Saint-Gervais insurge-se, assim, em 184617, contra “a surpresa e o desagrado que sentiu ao ver fechar dois bueiros”, o que torna o bairro insalubre. O efeito mais visível de fragmentação e de diferenciação dos espaços está ligado ao próprio traçado da muralha e às escolhas feitas a fim de abrir as portas. Repetidamente, o traçado das fortificações corta estradas existentes e interrompe fluxos de comércio estabelecidos. O município de Pré Saint-Gervais, já mencionado, encontra-se quase inteiramente isolado, pois as novas estradas que levam a Paris evitam seu território; os edis se queixam de ver suas lojas desertas e as atividades econômicas em declínio... O crescimento da população em ambos os lados das fortificações na segunda metade do século XIX torna essas questões cada vez mais sensíveis. Marie Charvet (2005, p. 64), em sua tese sobre os debates em torno da demolição das fortificações, destaca a multiplicação, a partir dos anos 1880, dos pedidos de abertura de novas portas ou de alargamento das portas existentes, emanados dos municípios da periferia discriminados em suas relações com o centro da aglomeração.

As expropriações: interrogar o direito de propriedade sob a Monarquia Censitária A questão das desapropriações é crucial na medida em que questiona um dos princípios do sistema econômico e social da Monarquia de Julho. Marcada pela Revolução Francesa e moldada por um código civil que dedica a metade de seus artigos às questões da propriedade, a Monarquia censitária faz da propriedade um pilar central do sistema social. A santificação da propriedade, condição de acesso à cidadania ativa, entra em oposição violenta ao princípio da desapropriação: o poder público se arroga o direito e o poder de tomar o bem de um proprietário sem pedir sua opinião. Projetada para

17



Arquivos municipais de Pré Saint-Gervais (doravante AMPSG), Conselho municipal de Pré Saint-Gervais, Délibérations du Conseil du 9 août 1846.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

221

FRÉDÉRIC MORET

favorecer o desenvolvimento das ferrovias, a lei de 30 de março de 1831 sobre a desapropriação encontra nas fortificações sua primeira grande aplicação em escala urbana, ou melhor, periurbana. De fato, os terrenos desapropriados têm, essencialmente, uma vocação agrícola, muito mais raramente industrial ou residencial. Com exceção, no sul da aglomeração, das explorações de pedreiras (ligadas à indústria de construção parisiense), desapropriam-se, antes de tudo, agricultores e proprietários de residências de férias. As leis de 1831 e de 1841 definem as modalidades de desapropriação cuja aplicação fornece um exemplo interessante das relações entre o poder público e o indivíduo (proprietário ou usuário). A primeira fase é a da estimação contraditória; acompanhados pelo prefeito e pelas pessoas envolvidas, dois peritos se dirigem ao local: um é nomeado pelo Prefeito de Sena e representa os interesses do Estado; o outro, pelo Tribunal de Justiça do Distrito e é, supostamente, independente. A realidade é totalmente outra, dado que as conclusões dos dois peritos concordam sistematicamente até nos centavos18, sendo que o perito do Tribunal se contenta frequentemente em adicionar uma frase do tipo “Nós, peritos judiciais, recordando as razões e bases supramencionadas pelo perito do Prefeito, os motivos como tinham sido contraditoriamente discutidos entre nós e as bases, tal como foi acordado, portanto, estimamos como ele...”19. No caso do forte de Issy, o perito judicial não se preocupou sequer em preencher a coluna destinada às suas considerações no formulário e o documento foi assinado apenas com as alegações fundamentadas nas propostas do perito do prefeito. Essas avaliações são conduzidas por advogados, arquitetos... exigidos pela autoridade pública. Claramente, o trabalho deles é preparado e acompanhado de perto pelos agentes dos domínios, que, em particular, solicitam que lhes sejam enviados extratos das minutas notariais para as propriedades do setor, remontando frequentemente a 10 ou 20 anos atrás. O objetivo dos agentes dos Domínios, então, é obter o mais rapidamente o “de acordo” dos proprietários. Em caso de recusa dos proprietários, um procedimento de júri de desapropriação é implementado. O tempo entre

18



Nenhum contra-exemplo foi encontrado, em todo caso, nas caixas da série DQ11 dedicadas às fortificações nos Arquivos de Paris (AD75).

19



AD75, DQ11 4, Extrato da Ata de Perícia das propriedades localizadas no Município de Vaugirard dentro do perímetro da muralha contínua, quarta-feira, 13 de outubro 1841.

222

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

a perícia e o júri, durante o qual o proprietário não desfruta mais do seu bem, sem receber um centavo, é utilizado pela administração dos domínios para convencer os recalcitrantes, e isso até a véspera do júri. O perímetro do forte de Vanves, assim, é avaliado em outubro de 1842; uma decisão do Tribunal de primeira instância do Sena de 26 de novembro de 1843 autoriza a tomada de posse das terras em 31 de maio de 1844, e a decisão do júri de desapropriação intervém somente em 7 de julho de 184720. Estimulados pelas autoridades militares, os agentes dos domínios podem jogar com esse atraso para tentar convencer os recalcitrantes, persegui-los até a entrada do júri. Em particular, uma medida de intimidação é utilizada, muitas vezes com sucesso: no momento do júri, a oferta do Estado é sistematicamente inferior a 20% em relação à estimativa dos peritos. Faz-se, portanto, pairar alguma dúvida, o que leva um número significativo de proprietários a ceder e aceitar a estimativa. Esse quadro de relações entre o poder público e o proprietário poderia parecer muito desequilibrado, sobretudo aos olhos da documentação, da memória mobilizada pela administração para defender seus documentos. Parece, no entanto, que a perspectiva é muito mais sutil, menos brutal. Dois elementos podem ser destacados nesse sentido. Primeiramente, se os proprietários aceitam massivamente as estimativas, é provavelmente e muito classicamente porque os preços estão supervalorizados. No interesse da eficiência e da paz social, o governo prefere pagar um valor maior pelos terrenos. Em segundo lugar, quase todos os proprietários que vão ao júri não perdem e a maioria sai vencedora do júri de desapropriação. Desse ponto de vista, o sistema judicial beneficia os proprietários. Os jurados são nomeados pelo Conselho Geral entre os notáveis. A lista de júri para 1846-1847 conta com 600 nomes e é nesse ponto é bastante esclarecedora21. Majoritariamente parisienses pelo domicílio informado (541 vivem nos primeiros 12 distritos e 72, nos 13 e 14, Saint-Denis e Sceaux) – o que não os proíbe de possuir terras na periferia (exemplos assim são encontrados frequentemente nos processos) – os jurados potenciais são representantes da burguesia parisiense. Foram localizados 171 comerciantes ou banqueiros, 166 proprietários,

20

AD75, DQ11 11.

21



AD75, DQ11 4, Lista de 600 jurados escolhidos pelo Conselho Geral de Sena na seção do mês de novembro de 1846, Lithotypographie de Paul Dupont, Paris, sd.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

223

FRÉDÉRIC MORET

101 profissionais liberais, 67 industriais e somente 65 funcionários e 13 políticos. Não é de admirar, pois, que os júris recompensem a obstinação dos proprietários, muitas vezes através da implementação de procedimentos sistemáticos de reavaliação, como demonstra o 18º Júri que estatuou em 9 de abril de 1847 sobre 24 propriedades de Belleville e Saint-Mandé. O gráfico a seguir mostra que na audiência a oferta do Estado inferior a 20%, como vimos, sofre duas exceções, em que a oferta é ainda mais baixa, com o pretexto de que um dos proprietários já recebeu a indenização pela desinstalação da indústria em 1844 e que o outro não tinha ingressado com a demanda no prazo (ele enviou sua avaliação somente em 26 de março de 1847). A decisão do júri é, com uma única exceção, favorável a todos os proprietários desapropriados. Somente o Sr. Richer, residente em Paris, que não tinha enviado o pedido de avaliação, sai perdedor do processo, porque o júri segue a oferta do Estado: ele perde, então, 20% do valor que lhe fora proposto pelos peritos. Todos os outros ganham entre 35 e 145% em relação à avaliação dos terrenos22. 18e Jury Belleville Saint-Mand

22

AD75, DQ11 1, 18o Júri dos Municípios de Belleville e Saint-Mandé, 7-9 abril de 1847.

224

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

Uma análise global com base em 17 dos 22 júris que foram realizados23, o que representa 128 dos 190 hectares (aproximadamente) que foram objeto de litígio e 355 propriedades, confirma essa tendência. Mais de dois terços (70,1%) dos proprietários de imóveis são vencedores perante o júri; em um caso a cada 6, fica-se na estimativa dos peritos. 12% dos proprietários saem perdendo, na maioria das vezes por razões processuais (ausência no julgamento ou falta de demanda). Décisions du Jury par rapport l’Expertise

Na maioria dos casos, tratam-se de pequenas propriedades: a área média é de 16 ares, contra 27 para a média das propriedades que o júri decide pagar o preço fixado pelos peritos, e 41 para os terrenos cujos proprietários saem ganhadores. A área média das duas últimas categorias corresponde ao conjunto de propriedades (12 ares), ao passo que a das propriedades que recebem pagamento menor que a avaliação é de somente 3 ares. A desapropriação, portanto, não é um mau negócio financeiro e as notas dos representantes dos Domínios são, nessa perspectiva, esclarecedoras; eles produzem na audiência pilhas de contratos de venda ou de arrendamento para os bens situados nas proximidades e de mesma natureza, sem conseguir

23

Não foi possível encontrar os outros 5 júris. A análise global se fundamenta em um relatório datado de maio de 1847 (AD75, DQ11 1) que dá conta dos 17 primeiros júris, aos quais nós adicionamos os dados dos júris seguintes.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

225

FRÉDÉRIC MORET

influenciar os júris. O 21º júri em outubro de 1847 estuda, assim, o caso da propriedade de Gentilly d’Angélique Chevalier; produz-se na audiência uma pilha de 14 contratos (estabelecidos de 1839 a 1846) e que conduzem a um preço médio de 101 francos por are (F/a). A estimativa dos especialistas propunha 200 F/a, ela recusa e pede 300 F/a, no que é atendida24. Os júris até incentivam a especulação: em Saint-Denis, Georges Hainguerlot adquiriu em 1842 o terreno por adjudicação ao preço de 81 F/a; o preço base para a estimativa é fixado em 120; uma pilha de 18 contratos de venda de 1836 a 1844 resultou em uma média de 71 F/a; uma pilha de 21 arrendamentos estabelece uma média de 2,26 F/a, sendo 3% de 75 F/a. Os agentes dos domínios produzem como último argumento o resultado do 2º júri de desapropriação das ferrovias do Norte (em 24 de abril de 1845) que definiu em 143 F/a o valor dos terrenos adjacentes. O Sr. Hainguerlot obteve, entretanto, 1.640 francos, ou seja, 200 F/a.25 Apesar das denúncias veementes, das brochuras publicadas pelos proprietários que se sentiram lesados, parece que as desapropriações manifestam a preocupação do poder público em acomodar os interesses da propriedade privada. É particularmente notável que uma das questões envolvidas na construção das fortificações seja não ultrapassar o orçamento inicial de 140 milhões, votado com dificuldade pelos deputados. Uma queixa sobre os trabalhos: utiliza-se mão de obra militar (no fim das contas, afinal, não tão econômica), mas não se toma o risco de dar a imagem de um regime que ataca a propriedade, fundamento da ordem social.

A “Zona”, margem e fronteira da urbanidade parisiense Essa bondade para com os proprietários, mesmo que ninguém a reconheça, tem grande peso na frustração daqueles que não foram desapropriados, mas devem sofrer as consequências da construção. Obra militar, as fortificações são afetadas por um glacis (declive livre de construções) e por uma área de servidão militar. A Zona de servidão, também conhecida por Zona non aedificandi, coloca um problema jurídico

24

AD75, DQ11 19, 21o Júri Nanterre, Suresnes, Gentilly, Saint-Denis, Ivry, 25-27 outubro de 1847.

25

Ibidem.

226

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

e urbanístico inédito. Dada a especificidade parisiense e a impossibilidade de aplicar com todo o rigor a legislação dos espaços fortificados, a decisão tomada é para limitar a 250m a Zona non aedificandi onde as construções e as atividades permanentes são proibidas. Quando da construção das fortificações, esse espaço já estava amplamente ocupado, ainda que, em essência, se tratem de terras agrícolas ou de pedreiras. Certo número de estabelecimentos de recreação disponibilizava aos citadinos um refúgio verde e bucólico. O destino da Zona é asperamente disputado desde o início do projeto. Baseando-se no princípio da propriedade, os proprietários da Zona – que passaremos a chamar de zoniers – reclamam desde 1841 por indenização pelos danos que sofrem em seus bens26. A lei que institui as fortificações, ao desobedecer às práticas usuais dos espaços de guerra, estabelece que a transformação de Paris em espaço de guerra só será possível pelo voto de uma lei específica. Esta decisão abre a porta a uma interpretação que tem consequências importantes: uma vez que Paris não é classificada como uma praça forte, muitos proprietários da Zona se consideram dispensados das restrições militares. Do mesmo modo, a construção das fortificações condiciona decisivamente o desenvolvimento da aglomeração; a Zona de servidão torna-se um espaço à parte, cujo estatuto suscita o debate. A Zona de servidão – que corresponde a mais de um terço do território municipal de Pré Saint-Gervais, por exemplo – constitui um declive, onde a urbanização planejada é impossível. O crescimento urbano ocorre em ambos os lados dessa Zona, que duplica, então, a linha das fortificações, impedindo os municípios suburbanos de se integrarem na continuidade da aglomeração parisiense. A lei de 1841 previa que uma lei específica fixaria os termos dessas servidões, que desobedeciam à lei municipal; esse não foi jamais o caso. Muitos ocupantes e proprietários violaram a brecha e, muito rapidamente, a Zona, em certos setores, foi ocupada por construções cada vez mais definitivas. Os conflitos com a administração e a engenharia militar são numerosos. Durante uma sessão do conselho municipal de Pré Saint-Gervais em 6 de fevereiro de 1848, os políticos eleitos exigem uma indenização pelos sacrifícios impostos aos proprietários27. Nessa ocasião, 26

Ver, por exemplo, as publicações de Vatimesnil, Mémoire…, op. cit. ou de FLEURY (1846).

27

AMPSG, Conselho municipal de Pré Saint-Gervais, Deliberações de 6 de fevereiro de 1846.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

227

FRÉDÉRIC MORET

foram evocados os métodos utilizados pelos agentes de domínio para convencer os proprietários: “Os senhores agentes do domínio não deixaram de afirmar aos proprietários desapropriados a imensa vantagem que eles obteriam de todos esses caminhos que abririam comunicações fáceis e que seriam, na maioria, preferíveis àquelas que seriam suprimidas”28. O conselho municipal explica que a mesma promessa lhe havia sido feita, de encontrar uma “compensação para a supressão das propriedades demolidas pela muralha por aquelas que não deixariam de ser construídas às margens das novas estradas” criadas pela engenharia29. No entanto, “a engenharia militar se opõe à construção de casas ao longo dessas estradas”30. A Zona é palco, assim, de numerosos conflitos de autoridade, opondo poder municipal e hierarquia militar, defensores do direito de propriedade e promotores do poder público. A repetição dos protestos provenientes da municipalidade é um sinal de sua impotência face às decisões da engenharia militar, que bloqueia estradas, fecha bueiros, sem preocupação com a qualidade de vida dos habitantes. A estrutura administrativa e política do departamento do Sena sob a Monarquia de Julho deixa pouco espaço para as autoridades locais expressarem suas opiniões. Na ausência de um prefeito (maire) de Paris, o Prefeito (Préfet) do Sena tem, frequentemente, tendência a se considerar como o representante dos interesses parisienses, em detrimento dos municípios suburbanos. Incapazes de constituir um contra-poder ou mesmo um lobby eficiente, os municípios da periferia se apresentam desunidos frente ao poder central e a Paris. O rígido controle exercido pela prefeitura sobre os conselhos municipais constitui um freio a uma mobilização comum; em particular, o poder central proíbe formalmente qualquer movimento coletivo. Augé de Fleury, ex-prefeito de Passy, publica várias brochuras ou petições para defender os proprietários da Zona. Em uma delas31 (por ocasião das eleições legislativas), ele reproduz – para sustentar sua crítica – uma carta do subprefeito de Sceaux (que vários jornais tinham publicado em janeiro de 1841). Essa carta, datada de 23 de dezembro de 1840, é dirigida aos

30 31 28 29

228

Ibidem. Ibidem. Ibidem. Candidatura de M. Augé de Fleury, sl, 1842, se, 4 p.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

prefeitos do distrito32. Notificado de uma reunião proposta pelos prefeitos para “deliberar sobre um projeto de petição a ser assinado com os seus eleitores”, o subprefeito os lembra que nada lhes permite tal abordagem. Somente os conselhos municipais podem se mobilizar sobre essas questões, mas o subprefeito lembra que a pauta deve ser autorizada pela prefeitura... Os desejos do Conselho Geral do Sena surpreendem na mesma época por sua grande moderação. Em consequência disso, a resistência e as reações se situam, principalmente, no nível individual, pelas pequenas invasões diárias, por pequenos avanços, pela extensão de uma construção, pela transformação progressiva de um galpão em um pequeno barraco... A questão dos limites da Zona, previstos pela lei de 1841, ilustra bem esse conflito de interesses e de poder. Iniciada em 1847 e interrompida pela Revolução de 1848, a demarcação das fronteiras é relançada em 1849. Através da correspondência enviada pela administração da Engenharia, desenhase uma oposição dos habitantes a essas operações. O Tenente-Coronel da Engenharia, responsável pela operação, escreve, assim, ao prefeito de Pré Saint-Gervais em 5 de novembro de 1849: “Tenho a honra de lhe pedir para informar oficialmente aos moradores de seu município para não arrancarem as estacas de alinhamento que seriam colocadas em suas propriedades.” A própria definição de espaço da Zona e as obrigações inerentes constituem uma questão real de poder 33. Relativamente tolerantes de início, as autoridades militares e administrativas, a partir da década de 1850, se fazem

32





Ibidem, p. 3-4. «Monsieur le Maire, Je suis informé que plusieurs Maires des Communes situées dans l’enceinte continue des fortifications projetées autour de Paris, doivent se réunir pour délibérer sur un projet de Pétition à faire signer à leurs administrés, et contenant différentes réclamations relatives aux dites fortifications. Ce serait un fait grave qu’une réunion de Maires, convoqués sans autorisation de l’administration supérieure. Rien dans nos lois ne donne aux Maires le droit de se concerter ainsi, de s’associer, dans le but de s’occuper d’un intérêt purement politique; MM. les Maires ne doivent jamais oublier que dans le cas où ils croient qu’une mesure générale affecte les intérêts de leurs Communes, c’est aux Conseils municipaux qu’il appartient d’en délibérer dans les formes, et avec les autorisations préalables nécessaires. Il suffit, M. le Maire, d’appeler votre attention sur l’irrégularité de la réunion projetée, pour vous engager à vous en abstenir. En tout cas, je vous invite formellement à ne prendre part à aucun acte semblable. Vous écrivant en vertu des instructions de M. le Préfet et de M. le Ministre.

33

Agréez, etc. Signé G. Maison»

AMPSG, Carta do Tenente Coronel da Engenharia-Chefe, 5 de novembro de 1849.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

229

FRÉDÉRIC MORET

mais intervencionistas, proibindo os trabalhos de desenvolvimento ou de construção na Zona e procurando impor mais estritamente as servidões militares. Na maioria dos municípios da Zona, as tensões se multiplicam. O conselho municipal de Pré se queixa, pois, ao prefeito do Sena da rigidez dos empregados de Ponts-et-Chaussées e da lentidão na instrução dos pedidos de construções ou de reparos34. A história da Zona é feita desse conflito permanente entre as tentativas dos habitantes de se se apropriar do espaço e de organizá-lo e a resistência das autoridades preocupadas em impedir ou limitar as invasões. As deliberações dos conselhos municipais tomam regularmente a defesa dos zoniers, em nome do interesse geral: “Essa severidade excessiva prejudica não apenas os proprietários, mas toda a região, que vê partir seus inquilinos que davam vida ao pequeno comércio do lugar.”35 Por outro lado, coloca-se o foco nas ações e nos incrementos propostos ao território; quando da conclusão das obras das fortificações, a Zona começa (ou recomeça) a oferecer um espaço de recreação e de lazer nos arredores de Paris. O argumento do pitoresco e do campestre é assim invocado para reforçar os argumentos econômicos: o conselho “solicita ao prefeito a gentileza de comprometer a administração de Ponts-et-Chaussées a convidar seus funcionários a terem mais tolerância e justiça, mesmo quando se trata desses pequenos trabalhos de apropriação que fazem a beleza e a atratividade da região.”36 Desde então, a Zona começa a adquirir um lugar específico no espaço parisiense. A pressão urbana, a falta de autoridades públicas e de intervenções urbanísticas têm feito do que se tornou “a Zona” um espaço de não-direito, ilegalmente ocupado por estabelecimentos industriais ou de recreação, que nutre o imaginário da delinquência parisiense, os “Apaches”, essas gangues de jovens com o mítico “Capacete de Ouro”, imortalizada por Simone Signoret. A Zona só entrará no direito comum quando as fortificações deixam de ser patrimônio histórico, em 1919.

34

AMPSG, Conselho municipal de Pré Saint-Gervais, Deliberações de 10 de fevereiro de 1853.

35

Ibidem.

36

Ibidem.

230

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

Figura 3: Os distritos parisienses e os bairros atuais

Fonte: PINOL & GARDEN (2009)

Chegamos, assim, ao final do século XIX a uma situação em que a aglomeração parisiense está dividida em três áreas concêntricas: duas áreas de alta densidade urbana, urbanizadas e geridas por poderes públicos cada vez mais intervencionistas, envolvem uma porção do território totalmente – ou quase – abandonada, que serve de refúgio a toda uma parte da população que não pôde encontrar o seu lugar nos desenvolvimentos urbanos de Paris e das cidades da periferia, respectivamente. Entre Paris e sua periferia, a Zona, espaço de desclassificação social e asilo de atividades menos reluzentes (em primeiro plano a dos catadores)37, constitui um tampão,

37

Ver a esse respeito GERVAISE (1987; 1991).

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

231

FRÉDÉRIC MORET

permeável, mas fundamentalmente outro, que proíbe por um longo tempo qualquer organização e até mesmo qualquer reflexão a respeito de Paris e da periferia como um conjunto. Uma vez tomada a decisão de retirar o status de patrimônio histórico das fortificações e de demoli-las, a questão do estatuto e da função do espaço ocupado até então pelas fortificações e a Zona, estudada por Marie Charvet (2005), não resolve em nada esse corte urbanístico no coração da aglomeração. Em nome do higienismo, organizouse uma série de espaços de recreação ou de área verde; como paliativo para uma crise imobiliária, multiplica-se naquele espaço, especialmente na parte oriental (a mais popular), a construção de imóveis para habitação de baixo custo (HBM). Enfim, último avatar, o espaço da Zona foi finalmente (a partir dos anos 1940-1950) dedicado à instalação, em torno da Capital, da avenida de contorno que marca ainda hoje uma fronteira dificilmente transponível entre Paris e sua periferia. Assim, uma decisão de natureza política e militar, desprovida de qualquer preocupação urbanística e tomada no meio do século XIX, está na origem, sob a pressão do crescimento urbano e do peso das regulamentações jurídicas, de uma cisão duradoura no interior da aglomeração parisiense entre a Capital e sua periferia, que constitui uma fonte de múltiplos conflitos e disfunções até hoje38.

Referências BOURILLON, F. Marché immobilier et impôt foncier: l’annexion de la petite banlieue ‘s’impose’. In: BOURILLON, F.; BOUTRY, P.; ENCREVÉ, A.; TOUCHELAY, B. Des économies et des hommes: mélanges offerts à Albert Broder. Bordeaux, Bière, 2006, p. 157-165. CAPIZZI, V. Pour une autre histoire des fortifications de Paris et de l’annexion de la petite banlieue. Mémoires Paris Ile-de-France, Fédération des Sociétés Historiques et Archéologiques de Paris et de l’Ile-de-France, Tome 54, Paris, p. 233-338, 2003.

38

Sintomático da acuidade desta questão é a nomeação pelo prefeito de Paris de um adjunto especialmente encarregado das relações com o “além do periférico”.

232

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A ZONA, ENTRE PARIS E SUA PERIFERIA

CHARVET, M. Les fortifications de Paris: de l’hygiénisme à l’urbanisme, 1880-1919. Rennes, PUR, 2005. COHEN, A. L. Des fortifs au périf: Paris, les seuils de la ville. Paris: Picard, 1991. DALY, C. Des fortifications de Paris. Revista Geral de Arquitetura e de obras públicas, janeiro de 1841, p. 26-29. FLEURY, A. Banlieue de Paris. Servitudes militaires. Etat actuel (en novembre 1846) de la question sur les servitudes militaires dans la banlieue de Paris. Paris: Imp. Fain et Thunot, 1846. GERVAISE, P. Les passages à Levallois-Perret, ruelles pauvres en banlieue. In: FAURE, A. (Dir.) Les premiers banlieusards: aux origines des banlieues de Paris 1860-1940. Grâne: Créaphis, 1991, p. 121-166. GERVAISE, P. Les passages à Levallois-Perret, quartier populaire, quartier de la « Zone » (1826-1972). Tese de Doutorado sob a orientação de Michelle Perrot, Universidade Paris 7, 1987, 2 vol. JACQUEMET, G. Belleville au XIXe siècle, du faubourg à la ville. Paris, Editions de l’EHESS, 1984. LARRÈRE, M. La Garde Nationale sous la Monarchie de Juillet. Tese de doutorado. Paris 1, 2000. LEPETIT, B. Les villes dans la France moderne (1740-1840). Paris, Albin Michel, 1988. MONTEL, N. Chronique d’une mort annoncée: l’annexion par Paris de sa banlieue en 1860. Recherches contemporaines, Universidade Paris 10, n° 6, p. 217-254, 2000-2001. MORET, F. Territories of Paris’ fortifications: fragmentation and hierarchy of the Parisian spaces. In: KLUSAKOVA, L. (Ed.), Frontiers and identities: cities in regions and nations. Pisa: Edizioni Plus; Pisa University Press, 2008. MORET, F. Définir la ville par ses marges: la construction des fortifications de Paris. Histoire Urbaine, n° 24, 2009. O’BRIEN, P. L’Embastillement de Paris: the fortification of Paris during the July Monarchy. French Historical studies, vol. IX, 1975. PINOL, J. L.; GARDEN, M. Atlas des Parisiens de la Révolution à nos jours: population, territoire et habitat, production et services, religion, culture, loisirs. Paris: Parigramme, 2009. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

233

FRÉDÉRIC MORET

RONCAYOLO, M. Le mura dopo le mura. Realtà e rappresentazione della cinta muraria fra Otto e Novecento: Marsiglia e Parigi. In: DE SETA, C.; LE GOFF, J. (Org.). La città e le mura. Roma-Bari: Laterza, 1989, p. 418-435. ROULEAU, B. Villages et faubourgs de l’ancien Paris: histoire d’un espace urbain. Paris: Seuil, 1985.

234

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA Antonio Carlos Amador Gil

Ao contrário de outros países, que no processo de modernização econômica capitalista introduziram grande quantidade de imigrantes europeus e discriminaram e exploraram os indígenas como uma categoria étnica separada da população (NAVARRETE, 2004, p.99), o processo de mestiçagem no México partiu de uma perspectiva em que os indígenas deviam participar e ser incorporados à comunidade nacional mexicana desde que abandonassem a sua cultura e sua identidade. Para que isto ocorresse foi instaurado pelo Estado o indigenismo, uma política sistemática para tentar resolver a questão indígena e incorporá-los definitivamente através da mestiçagem. As políticas indigenistas foram essenciais para o processo de construção do México. Neste processo, a adoção do espanhol como idioma principal e a assimilação dos valores ocidentais derivados da influência espanhola foram elementos fundamentais. A mestiçagem, ou a aculturação, seria, portanto, essencial para fazer tábua rasa da cultura indígena, e integrá-la à cultura mestiça. Os indigenistas, após a Revolução Mexicana, tiveram um papel de destaque ao frisar a existência de populações indígenas, legítimas herdeiras das culturas indígenas antigas e ao tratar de terminar com as teorias de desaparição, de degeneração e com o esquecimento destas populações e comunidades imersas na mestiçagem. Esta abordagem da questão étnico-nacional foi defendida pelos nacionalistas integracionistas que possuíam um enfoque evolucionista. Apesar da preocupação em encarar o problema indígena, consideravam as características socioculturais dos povos indígenas como tradicionalistas e opostas ao progresso e à civilização que representava o México mestiço (SÁNCHEZ, 1999, p.29) e que a heterogeneidade étnica era um obstáculo para a conformação plena da nação. Dentre os expoentes intelectuais deste período, podemos destacar Andrés Molina Enríquez, Manuel Gamio, José Vasconcelos e Moisés Sáenz. Eles colocaram as bases do pensamento que considerava a PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

235

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

heterogeneidade étnica da população mexicana como um obstáculo para a consolidação plena da nação (SÁNCHEZ, 1999, p.29). Eles viram na categoria do mestiço a fórmula para levar adiante o processo de reconstrução nacional (BASAVE BENÍTEZ, 1992, p.121-124). A política indigenista no decorrer do século XX teve várias nuances. A partir dos anos 20, os seus teóricos, egressos da Escola Mexicana de Antropologia, eram acadêmicos e administradores que tinham altos cargos burocráticos e, muitos deles, eram discípulos de Malinowski, Boas e Dewey. Após a Revolução Mexicana elaboraram uma estratégia definida de integração através das Secretarias de Governo e Direção de Antropologia. Defendiam que a multietnicidade era o fator central que impedia o progresso, e, portanto, a mestiçagem era essencial para criar uma nação “integrada” e “homogênea”, fazendo a tão almejada “mexicanização” do indígena e sua integração à comunidade mestiça. Estamos falando aqui do nacionalismo integracionista – para os intelectuais a serviço das camadas dominantes no processo revolucionário, os povos indígenas obstaculizavam a realização do projeto modernizador (SÁNCHEZ, 1999, p.28). Manuel Gamio (1883-1960) foi um dos intelectuais mais proeminentes na formulação da política indigenista mexicana e chegou a afirmar que a construção da Nação era mais importante que a preservação de uma coleção de culturas anacrônicas. Manuel Gamio foi um precursor no combate aos setores que não queriam reconhecer a existência do problema indígena. Para muitos, Gamio foi considerado o pai da antropologia social no México. Logo iniciado o movimento social de 1910, lançou, em 1916, o livro “Forjando Patria”. Justino Fernández, no prólogo feito à edição de 1959, ressalta que o livro faz parte do ideário da Revolução Mexicana, tendo como propósito utilizar os conhecimentos de toda índole para fins práticos, como meio de alcançar um maior bem estar social e é um desmentido aos que pensam a Revolução somente como um movimento caótico e destruidor (GAMIO, 1982, p. x-xi). Neste livro, Gamio proclamou a si mesmo como o promotor de uma nova antropologia, meditando sobre os problemas que devia resolver a administração revolucionária, particularmente o de “integrar na vida nacional a um grupo ainda muito numeroso que era a população indígena”. Ao definir as características que configurariam a nação, as ações requeridas para sua constituição ou fortalecimento seriam as seguintes: a mestiçagem dos grupos étnicos heterogêneos; a melhoria das comunicações e dos acessos 236

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA

a regiões isoladas; a “castellanización”, ou seja, a universalização da língua espanhola; a evolução cultural na ciência, arte, religião; e a diminuição da distância, através do consumo e da renda, entre a elite e a massa despossuída, segundo Giraudo (2008, p.15) Gamio se preocupava com a diminuição da distância evolutiva que os separava da época contemporânea. Para Gamio, apesar dos indígenas terem aptidões intelectuais comparáveis a qualquer “raça”, eles não despertariam espontaneamente, sendo necessário que “corações amigos” trabalhassem por sua redenção (GAMIO, 1982, p.2122). Gamio teve um papel muito importante, naquele momento, uma vez que defendia que os índios, mais da metade da população mexicana, não podiam continuar a ser ignorados. Esta ideia perpassou todos os seus escritos. Gamio se perguntava: Como um país, no qual os dois grandes elementos que compõem a sua população diferem fundamentalmente em todos os aspectos e se desconhecem totalmente, poderia ser considerado como nação? Entre os anos 20 e o final dos anos 30, a imagem do indígena construída pelo indigenismo pós-revolucionário foi matizada por visões divergentes e que competiam entre si. Durante o período de Vasconcelos, as tendências de incorporação social dominaram a arena política, como podemos constatar no projeto das “Missões Culturais”. Moisés Sáenz foi o criador do projeto das escolas rurais implementado no decorrer dos anos de 1920 no México, auge da política incorporacionista. Já nos anos 30, ele passou a criticar as políticas de incorporação, considerando-as ineficazes e defendeu a “integração sociocultural” dos indígenas. Os defensores do integracionismo pregavam uma política planejada de integração que levasse em conta os elementos culturais de cada comunidade ou região. Ou seja, o processo de homogeneização deveria ser realizado levando em conta, a partir de dados antropológicos, a realidade vivida por cada região. As comunidades envolvidas deveriam ser integradas levando em consideração suas características étnicas específicas. Se nos anos 20 os objetivos assimilacionistas predominavam, nos anos 30, surgiu um interessante pluralismo com a valorização das culturas indígenas e dos próprios atores políticos índios. Ao lado da imagem de negação do índio, havia outra imagem que exaltava o indígena como modelo para o futuro da nação. Esta imagem idealizada do indígena, geralmente limitada aos indígenas cujas culturas podiam ser relacionadas com as culturas pré-colombianas valorizadas pela história PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

237

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

mexicana, tornou-se um modelo de política igualitária, de consciência social e de virtude para o Estado moderno e revolucionário que se estruturava naquele momento. Os indígenas incluídos neste grupo eram pensados como membros integrais e ativos da comunidade nacional. (DAWSON, 1998, p.283-284). Encontramos, portanto, em alguns textos, a imagem de índios como atores poderosos e capazes. Os indígenas estariam não somente aceitando a modernidade, mas demandando os avanços da modernidade (DAWSON, 1998, p.298). Se nos anos de 1910 e 1920 predominava ainda a visão do indígena como indiferente e isolado, como na obra “Forjando Patria” de Manuel Gamio de 1916, encontramos nos anos 30, descrições de indígenas ativamente lutando contra a opressão e as péssimas condições de vida. Neste período (anos de 1920 e 1930), houve toda uma expectativa de mudança a partir das políticas públicas que passaram a destacar, a partir da Revolução mexicana, a transformação social que seria alcançada. Foi criada uma visão otimista da nação e os intelectuais tiveram um papel muito importante. Incorporando em suas agendas o discurso de construção da nação, diversos artistas se engajaram no processo. Um exemplo emblemático é o muralismo mexicano. Nos anos de 1930 houve a conjugação de duas forças políticas importantes, o integracionismo e o nacionalismo. Como já destacamos, o integracionismo criticou o discurso de incorporação dominante nos anos de 1920 e encontrou apoio no governo de Lázaro Cárdenas. O nacionalismo cardenista incentivou o integracionismo e apoiou a criação do Departamento Autônomo de Assuntos Indígenas sob a batuta de Moisés Sáenz. A imagem do indígena como um ser político ativo alcançou o seu apogeu nos Congressos Indígenas organizados pelo “Departamento Autónomo de Assuntos Indígenas” – DAAI entre 1936 e 1940 (DAWSON, 1998, p.303). As vozes registradas nestes congressos que se tornaram oficiais foram as dos indígenas que entenderam as condições de sua opressão e que demandavam (como membros da nação mexicana e indígenas) os benefícios da Revolução. Para o governo, estes eram os “autênticos” indígenas (DAWSON, 1998, p.303). O governo Cárdenas via com maus olhos qualquer estímulo à consciência étnica dos indígenas e, mais ainda, qualquer ligação que pudesse ser feita com o direito internacional das nacionalidades (nacionalidades oprimidas). O nacionalismo cardenista estava profundamente conectado com a corrente 238

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA

dominante do indigenismo, permitindo somente uma mobilização indígena dentro dos quadros da comunidade corporativa nacional. O Departamento Autônomo de Assuntos Indígenas (DAAI) dividia a população indígena mexicana em dois grupos, os indígenas que tinham os direitos de cidadania assegurados e os que não tinham esses direitos. Neste grupo entravam todos os grupos que discordavam e resistiam às políticas de integração do Estado mexicano. Estes grupos eram considerados como prépolíticos ou primitivos (DAWSON, 1998, p.305-307). A noção de cidadania elaborada era inclusiva, pois poderia incluir indígenas de variadas culturas, mas também era restritiva, pois a inclusão só poderia ser feita a partir da aceitação dos valores modernos ocidentais. Ao criar um indígena ideal, cooperativo, o indigenismo oficial dos anos 30 também desqualificava todas as formas de resistência que eram interpretadas como atos irracionais e primitivos. Em 1940, no final do mandato do governo de Lázaro Cárdenas (19341940), foi realizado o I Congresso Indigenista Interamericano em Pátzcuaro (Michoacán). Este congresso estabeleceu as linhas gerais da política indigenista que serviria de orientação aos Estados latino-americanos que possuíam população indígena. A delegação mexicana, mesmo com distintas posições em relação à problemática indígena, rechaçou o enfoque “racial” da problemática indígena e defendeu a adoção de uma política “integracionista” sustentada nos princípios da igualdade individual e justiça social (SÁNCHEZ, 1999, p.40-41). Em termos gerais, pode-se dizer que a política indigenista definida no congresso foi um sincretismo do agrarismo cardenista e do nacionalismo integracionista desenvolvido por Manuel Gamio e Moisés Sáenz, entre outros. Com o tempo, a vertente puramente integracionista se fortaleceu e se tornou a base das políticas indigenistas estatais. No congresso também foi criado o Instituto Indigenista Interamericano (I.I.I.) e houve a recomendação de que os países com população indígena criassem seu próprio Instituto Nacional Indigenista. Moisés Sáenz foi nomeado como diretor do I.I.I. em 1940, porém não assumiu o cargo, pois morreu em 1941. Manuel Gamio assumiu a direção em 1942 e ficou no cargo até 1960. Em 1948, durante a gestão presidencial de Miguel Alemán, o México aprovou a lei que criava o Instituto Nacional Indigenista – I.N.I., hoje Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas do PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

239

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

México1, e Alfonso Caso tornou-se seu diretor, permanecendo no cargo até 1970. Foi ele quem definiu as características e objetivos do I.N.I.: fazer uma aculturação planificada pelo Governo Mexicano com o propósito de colocar o indígena no caminho do progresso e de sua integração, que implicava a transformação cultural e econômica das comunidades indígenas. O propósito da política indigenista formulada continuava a ser, apesar da nova roupagem discursiva, a integração paulatina dos indígenas. Se no período de 1910-1940 a figura relevante do processo de mediação social foi o “professor”, no período posterior aos anos quarenta, a figura preferencial foi a do “antropólogo” (CASAS MENDONZA, 2005, p.196). Paralelamente, a partir de 1940, após o governo de Cárdenas, iniciou-se um processo de asfixia da agricultura camponesa, com uma estratégia de modernização rural que se caracterizou por uma diminuição da reforma agrária e a reversão das conquistas e compromissos firmados pela legislação agrária de 19172. A partir de 1940, com o desenvolvimentismo do pós-guerra e, principalmente, a institucionalização da antropologia, ganha destaque a figura de Gonzálo Aguirre Beltrán. Médico e antropólogo, estudou temas relacionados aos indígenas que vão da educação, política, economia, à medicina e magia. Neste período, o I.N.I. implementou com força total a política de integração, com grande participação dos antropólogos ligados à antropologia aplicada, corrente profundamente ligada ao desenvolvimentismo da época e à difusão do desenvolvimento comunitário, que assumiram cargos administrativos importantes. Em 1951, Alfonso Caso indicou Gonzálo Aguirre Beltrán para coordenar o projeto de desenvolvimento integral em Chiapas com a fundação do primeiro Centro Coordenador Indigenista que se instalou em San Cristóbal de Las Casas. Este foi, segundo Aguirre Beltrán, o primeiro projeto de desenvolvimento regional-integral. A aplicação deste programa de desenvolvimento pressupunha que era impossível considerar



Em 21 de maio de 2003, foi publicado, no Diário Oficial da Federação¸ o decreto que expediu a Lei de criação da Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas do México e que anulou a lei de criação do Instituto Nacional Indigenista. O decreto entrou em vigor em cinco de julho de 2003.



Uma das conquistas do processo revolucionário foi a promulgação da constituição de 1917. Seu artigo 27 regulamentava a posse das terras coletivas dos ejidos e a proibição de alienação das mesmas, ou seja, garantia aos indígenas o direito de posse de suas propriedades comunais e sua proteção legal.

1

2

240

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA

a comunidade separadamente e, portanto, era necessário levar em conta o sistema intercultural do qual fazia parte. O desenvolvimento regional priorizou não somente o indígena, mas também o mestiço, ou seja, o sujeito da ação indigenista era toda a população que habitava uma região intercultural. No caso, então, a modernização ou ocidentalização da cidade mestiça era um fator primordial para o “melhoramento” da situação indígena. A obra de Aguirre Beltrán foi profícua e influenciou, enormemente, o indigenismo mexicano e a história mexicana. Seu papel na historiografia pode ser aquilatado pela inclusão de seu nome na obra “Historiadores de México en el siglo XX”, organizado por Enrique Florescano y Ricardo Pérez Monfort, publicado pela editora Fundo de Cultura Econômica em 1995. Nesta obra também há um capítulo para a contribuição de Manuel Gamio. Guillermo de la Peña, autor do artigo “Gonzalo Aguirre Beltrán: historia y mestizaje” afirma que em contraste com historiografia liberal mexicana que não considerou o índio tanto do passado quanto do presente como sujeito histórico, Aguirre Beltrán, ao contrário, os considerou como sujeitos e agentes da história. Além disso, defende que a história dos povos indígenas americanos é parte fundamental da história mundial moderna e não pode ser vista, simplesmente, como uma trajetória de opressão e destruição, mas sim como um complexo processo de mestiçagem biológica e cultural. (PEÑA, 1995, p.190). A partir de suas pesquisas, realizou estudos de pós-graduação em antropologia na Northwestern University – Illinois, durante os anos de 1945 e 1946, sob a orientação de Melville J. Herskovits que tinha sido orientando de Franz Boas e realizava um grande trabalho de pesquisa sobre o mundo negro nas Américas. (PEÑA, 1995, p.193). Aguirre Beltrán trabalhou por bastante tempo no Instituto Nacional Indigenista e seu papel foi protagônico e indissociável do processo de construção das políticas indigenistas de aculturação e integração dos indígenas nos anos de 1950 e 1960. Como afirma Guillermo de La Peña (1995), Aguirre Beltrán, de uma maneira geral, se preocupou com a questão da pluralidade cultural mexicana. Vemos em seus trabalhos de pesquisa histórica a procura dos fatores que marcaram a desigualdade social no México. Ao pesquisar a história de uma etnia em particular e as relações interétnicas daquele grupo na contemporaneidade, Aguirre Beltrán sempre se preocupou em entender os PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

241

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

processos constitutivos daquela situação em sua totalidade, analisando suas causas desde o período colonial. Seus trabalhos também dão destaque ao processo de aculturação da população indígena e ao processo de mestiçagem. Para Aguirre Beltrán, desde meados do século XIX, os grupos étnicos europeus e africanos perderam vitalidade como entidades diferenciadas e se subordinaram ao grupo étnico mestiço que é o grupo protagonista do processo de construção da história e cultura nacionais (PEÑA, 1995, p.196). Neste processo, assumia papel privilegiado a política indigenista, pois sem ela, os grupos indígenas estariam fadados a experimentar um processo de mudança sociocultural profundamente desorganizado, sem que houvesse a sua integração produtiva (PEÑA, 1995, p.197). Isto porque sem a ação do Estado o processo de aculturação seria prejudicado por um contexto de relações interétnicas assimétricas. Aguirre Beltrán ficou muito atento aos processos regionais. Para ele, a subordinação do índio não podia ser compreendida a partir de uma perspectiva individual ou comunitária, mas sim a partir de uma perspectiva regional. Como resultado da colonização espanhola, desde os tempos coloniais, os grupos dominantes mestiços, a partir de cidades coloniais exerciam um sistema de exploração sobre as comunidades indígenas existentes ao seu redor. Aguirre Beltrán analisou profundamente este processo que designou como mecanismos dominiais (mecanismos dominicales) que eram baseados na segregação racial, na dependência econômica, no tratamento discriminatório, manutenção da distância social e ação evangélica impositiva (PEÑA, 1995, p.198). A partir destas considerações, Aguirre Beltrán criticava a todos que viam o indígena como isolado do mundo mestiço. Para ele só seria possível atuar no processo de transformação destas comunidades se houvesse uma política de transformação das relações de poder e nas relações econômicas existentes na região em que estavam inseridas estas comunidades. Para descrever tal situação, Aguirre Beltrán formula o conceito de “regiões de refúgio”, uma de suas contribuições à teoria antropológica. Ao adotar o conceito de regiões de refúgio, Aguirre Beltrán procura entender o processo de dominação das comunidades indígenas no México. Para ele a história dos povos indígenas no México é uma história de exclusão mas não de isolamento. Mesmo nas comunidades mais distantes, o dia a dia da comunidade é marcado pela ação de agentes não indígenas envolvidos em algum tipo de ação de aculturação. Para Díaz-Polanco, Aguirre Beltrán 242

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA

desenvolveu uma perspectiva teórica e prática que foi adotada como “versão oficial e como programa de ação por parte do Estado mexicano” (DÍAZPOLANCO3 apud SÁNCHEZ, 1999, p.44-49). Podemos perceber, claramente, o discurso desenvolvimentista da época. Aguirre Beltrán se posiciona contrariamente ao relativismo cultural quando se torna inibidor da ação indigenista desenvolvimentista, cujo propósito é intervir nas formas de vida das comunidades indígenas subdesenvolvidas, adotando medidas que possibilitem a superação das condições de atraso e permitam a integração regional e nacional. A política indigenista defendida por Aguirre Beltrán se opõe aos resquícios coloniais de exclusão e dominação. As instituições responsáveis deviam promover diversas pesquisas etno-históricas visando à estruturação dos mais eficazes mecanismos de aculturação. Sua retórica não é a da supressão e eliminação das culturas indígenas e tampouco a defesa da heterogeneidade cultural. Dentre os objetivos principais podemos destacar o desenvolvimento econômico e social das diversas regiões que reforçaria a cultura mestiça. A mestiçagem, como elemento da nacionalidade, forçou um processo intensivo de integração. As diversas políticas do Estado mexicano só poderiam privilegiar ações que valorizassem o sentimento de pertencimento à nação, a identidade nacional mexicana. Qualquer valorização de identidades locais ou sentimentos de pertencimento às comunidades locais eram vistos com muitas reservas. Isto gerou muitas críticas e questionamentos, uma vez que a política indigenista oficial não via com bons olhos qualquer iniciativa que pregasse a autonomia das culturas indígenas. Para o indigenismo oficial, qualquer política de valorização das identidades étnicas indígenas poderia reproduzir a exclusão e as relações de assimetria. A partir do final dos anos 60, a política indigenista passa a ser crescentemente contestada por uma crescente conscientização indígena, estimulada por diversos fatores, como, por exemplo, a teologia da libertação e a corrente crítica à antropologia aplicada surgida em alguns departamentos acadêmicos, como os da Universidade Iberoamericana e da Universidade Nacional Autônoma do México. Roger Bartra, antropólogo crítico, chegou

3



DÍAZ-POLANCO, Héctor. Etnia, nación y política. México: Juan Pablos Editor, 1987. p.50.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

243

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

a afirmar, em seu trabalho El problema indígena y la ideologia indigenista, publicado na Revista Mexicana de Sociologia em 1974, que a política indigenista do Estado contribuiu para o assassinato do indígena, que o Estado necessitava do cadáver cultural do índio, para alimentar o mito da unidade nacional e que as instituições indigenistas oficiais não eram mais do que agências permanentes das pompas fúnebres do indígena, velas perpétuas do cadáver do índio (BARTRA, 1974, p.459-482). A crise do indigenismo se tornou mais evidente após a crise política de 1968. Neste momento ganham força as vozes que fazem a reavaliação crítica de seu projeto, questionando o papel das ciências sociais, da história e da antropologia e há, também, o surgimento concomitante de novas formas de mobilização indígena. Muitos defensores do indigenismo não refletiram sobre o desenvolvimento de condições, tais como, a mobilidade, a comunicação de massa, a educação e a divisão do trabalho, que permitiram, aos diversos grupos étnicos, reproduzir suas etnicidades num novo patamar. Com isso, o projeto nacionalista de integração não pôde se completar com a expansão contínua da industrialização, ao contrário, a tecnologia e as comunicações, desenvolvidas por este mundo industrial, geraram e continuam gerando novas expressões de renascimento étnico com grande potencial. A representação hegemônica da nação no México, até meados dos anos 70, como dissemos, foi marcada pelo papel protagônico da política estatal indigenista (NAVARRETE, 2004, p.108). Esta política passou a ser, a partir daquele momento, fortemente contestada e questionada pelos cientistas sociais críticos, pelos grupos religiosos engajados na teologia da libertação e pelos novos movimentos indígenas. Diversos grupos étnicos mexicanos mantêm, atualmente, formas renovadas de identidade étnica rechaçando a ideia de nação imposta pelas elites mexicanas através das políticas indigenistas. Seu objetivo primordial, que era a integração total das comunidades indígenas, não foi alcançado. Contestam os mecanismos de modernização que impõem a adoção de uma cultura plenamente ocidental e adotam formas alternativas de modernidade em que valorizam a manutenção ou a criação de identidades étnicas centradas nos valores éticos de solidariedade, de autonomia e vida comunal. Temos hoje um novo discurso étnico elaborado nos anos 90. Podemos dizer que há 244

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

TERRITÓRIO E IDENTIDADES NO MÉXICO. O CONFRONTO ENTRE AS IDENTIDADES ÉTNICAS E A POLÍTICA ESTATAL INDIGENISTA

uma “reinvenção” da questão indígena por parte dos próprios dirigentes indígenas. Estamos falando hoje de uma realidade complexa de relações urbanas e rurais em que há uma permanente confrontação entre tradição e modernidade. Os novos movimentos indígenas fazem uma severa crítica ao indigenismo. Do ponto de vista índio, o indigenismo era uma política incompetente que não podia oferecer opções viáveis para o progresso das culturas índias. O reconhecimento das demandas índias de multietnicidade pelo Estado, contudo, tem sido variável e gradual. Como resposta ao indigenismo, diversos movimentos surgem reivindicando o pluralismo, ou seja, a pluralidade de culturas. No caso do México, a noção de pluralidade está associada à ideia de reconhecimento e aceitação do fato de que o Estado mexicano é um país “mais índio que mestiço” e ao reconhecimento de que as políticas nacionalistas anteriores tinham “negado a existência da civilização mesoamericana”. Os novos movimentos sociais, que se desenvolvem nos últimos anos, consideram e reivindicam o papel dos índios como fator de civilização, exigindo a reformulação plena de todos os aspectos da vida nacional, como a legislação, a educação e os meios de comunicação. Neste processo de desenvolvimento das ideias pluralistas, a partir dos anos 70, houve, também, o florescimento de um pensamento indígena independente. No México, a partir das políticas educacionais associadas à política indigenista, houve o surgimento do intelectual índio. Surgiram, também, no decorrer das últimas três décadas, diversas organizações indígenas. É neste contexto, por exemplo, que surge o neozapatismo. Diversos movimentos indígenas contemporâneos polemizam contra o indigenismo uma vez que, estes movimentos, privilegiam a pluralidade étnica na formação da cultura nacional. Contudo, as práticas cotidianas, a forte permanência da ideologia da mestiçagem na consciência nacional mexicana, a atuação de milícias paramilitares na região de Chiapas, o racismo profundamente arraigado em relação aos povos indígenas que defendem formas alternativas de estar no mundo contemporâneo demonstram o quanto ainda é preciso ser feito e transformado. Como podemos constatar, há, ainda, um longo caminho para que o efetivo reconhecimento do direito coletivo dos pueblos índios se torne efetivamente uma realidade. Como lidar então com as demandas pelo reconhecimento da pluralidade étnica e do PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

245

ANTONIO CARLOS AMADOR GIL

direito coletivo dos pueblos índios, direitos que estão sendo paulatinamente conquistados? As mudanças mais significativas têm estado relacionadas às lutas pela autonomia e livre determinação, visto que, a nosso ver, têm sido os caminhos mais importantes e eficazes para transformar os complexos problemas estruturais vividos pelos povos indígenas. Nós historiadores temos um papel importante na discussão dos caminhos para este convívio e reconhecimento.

Referências BARTRA, Roger. El problema indígena y la ideología indigenista. Revista Mexicana de Sociología, México, Vol. 36, No. 3, Jul. – Set., 1974. BASAVE BENÍTEZ, Agustín F. México Mestizo: Análisis del Nacionalismo Mexicano en torno a la Mestizofilia de Andrés Molina Enríquez. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. CASAS MENDOZA, C. A. Nos olhos do outro: nacionalismo, agências indigenistas, educação e desenvolvimento, Brasil-México (1940-1970). Campinas, 2005.Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. DAWSON, A. S. From models for the nation to model citizens: indigenismo and the “revindication” of the Mexican Indian, 1920-40. Journal of Latin American Studies, v. 30, n. 2, p. 279–308, 1998. GAMIO, Manuel. Forjando Patria. 3ª. ed. México: Editorial Porrúa, 1982. (Primeira edição – 1916) GIRAUDO, Laura. Anular las distancias: los gobiernos posrevolucionarios en México y la transformación cultural de indios y campesinos. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. (Historia de la Sociedad Política). NAVARRETE, F. Las relaciones interétnicas en México. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2004. PEÑA, Guillermo de la. Gonzalo Aguirre Beltrán: historia y mestizaje. In: FLORESCANO, Enrique e PÉREZ MONFORT (comps.). Historiadores de México en el siglo XX. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. SÁNCHEZ, Consuelo. Los Pueblos Indígenas: del Indigenismo a la Autonomía. México, D.F: Siglo Veintiuno Editores, 1999. 246

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA Maria Beatriz Nader

A violência contra a mulher1 em todo o mundo tornou-se visível estatisticamente na década de 1980, como uma das consequências do Movimento Feminista que tomou corpo nas décadas anteriores. Um sem número de trabalhos acadêmicos e profissionais, desde então, tratam de classificar os diversos tipos de violência empregados nas investidas contra as mulheres, sejam crianças, jovens, adultas ou idosas, além de relatarem fatos conhecidos mediante pesquisas que vão diretamente às fontes, investigando mulheres vítimas de agressões dentro e fora do ambiente doméstico. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 19482 e a Declaração de Direitos Humanos de Viena3, em 1993, juntamente com ações dos movimentos feministas e de ONGs que trabalham a questão de gênero, dão visibilidade à violência contra a mulher e os caminhos para fomentar uma consciência crítica na comunidade internacional. Além do que, são instituições que ajudam na tomadas de posição e recomendação aos governos e políticos sobre a necessidade de se eliminar todas as formas de discriminação contra as mulheres. Considerando-se as diversas modalidades de violência, a agressão doméstica contra a mulher é um padrão específico de violência fundada na hierarquia e desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam a mulher. Esse tipo de violência pode ser maior com as meninas e com as mulheres idosas, por causa de sua vulnerabilidade, e por etnia e classe social, independentemente se como vítimas ou como agentes. Em todo o mundo, no ano 2000, a Organização Mundial de Saúde (OMS), organismo intergovernamental da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgava

Para o presente artigo, os termos violência contra a mulher, violência de gênero e violência doméstica e intrafamiliar, são termos utilizados para denominar o grave problema que degrada a integridade da mulher.

2



Ensaio 3º – “Todo indivíduo tem direito a vida, a liberdade e a segurança pessoal”.

3



Ensaio 18º – “Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais”.

1

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

247

MARIA BEATRIZ NADER

que, pelo menos, uma a cada três mulheres sofre alguma forma de abuso durante suas vidas e que a prevalência dessa violência é perpetrada por parceiros íntimos. Lançado em Bruxelas, em 2002, o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde denuncia que 70% das mulheres são vítimas de violência doméstica, 20% das mulheres são vítimas de abuso sexual na infância e que 30% das primeiras experiências sexuais femininas são forçadas. A violência contra a mulher que ocorre no âmbito da família, contudo, não é só perpetrada por parceiro íntimo, mas também pelos pais, pelos padrastos, pelos conviventes e outros parentes4. Além disso, a ampla divulgação sobre a generalização do conhecimento da violência mostra que o fenômeno não se restringe apenas ao ambiente doméstico, mas ocorre também no âmbito da comunidade e do trabalho, e que não existem grupos sociais protegidos, ainda que alguns tenham mais condições de buscar proteção institucional e individual. A violência contra a mulher permeia a sociedade e entranha-se em todas as camadas sociais, atingindo os mais diversos segmentos, não mais se restringindo a um determinado nicho social, racial, econômico e/ou geográfico. Nas últimas décadas do século XX, pelo fato de as comunicações estarem cada vez mais rápidas e próximas de cada um, o acesso às informações sobre a violência tomaram rumos nunca antes visto na História. Jornal, televisão, internet, se tornaram meios de comunicação que mostram diariamente atos bárbaros cometidos contra mulheres idosas, adultas, adolescentes e crianças, e que as causas são inúmeras e podem ser exaustivamente relacionadas, assim como suas consequências. Na busca de soluções para o problema, desde os anos de 1970, em várias partes do mundo, as mulheres envolvidas no Movimento Feminista enfrentam um árduo trabalho no processo de construção e visibilidade dos conflitos da violência contra a mulher, principalmente a violência baseada em gênero, não apenas o revelando e o denunciando, mas construindo um panorama da questão que atinge mulheres de todos os segmentos sociais. Tiveram de consolidar ideias cujo objetivo era mostrar que o fenômeno existia e que ocorria em proporções alarmantes, além de provar que ele circunscreve 4



248

Ensaio 18º – “Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais”.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

certo conjunto de ações e atitudes que envolvem um leque determinado de relações. A violência contra a mulher, diante da nova compreensão ficou caracterizada como um problema social e não de indivíduos isoladamente. A par dessas considerações, cada vez mais, os governos, a sociedade civil organizada e outras instituições, nacionais e internacionais, passaram a se envolver com atividades que buscam o fim da violência contra a mulher. Políticas públicas foram elaboradas, buscando proteger e apoiar a vítima de agressão conjugal ou pública, por meio da criação de legislação específica, delegacias de apoio e alojamentos que acolhem e protegem a vítima e seus filhos, dentre outros mecanismos de proteção. Especificamente no Brasil, dentre as políticas públicas criadas após os anos de 1980, a Delegacia Especial em Atendimento à Mulher (DEAM), tornouse, sem dúvida, a instituição mais importante no combate à violência contra a mulher. Em 1985, com o objetivo de ser uma política social direcionada à mulher vítima de violência, seja doméstica, pública, de gênero ou não, e à punibilidade do agressor, a criação da primeira DEAM passou a representar e garantir mecanismos oficiais de defesa da mulher contra a violência. Contudo, naquela época, por força de uma tradição cultural e uma legislação que não criminalizava a violência física à mulher que não a levasse ao óbito, principalmente quando a agressão ocorresse por questões de gênero e dentro do ambiente doméstico, inúmeros foram os casos não registrados nas DEAMs. Até hoje, muitas mulheres por medo ou vergonha que sentem de conviver com homens que as maltratam e as humilham, ocultam as investidas agressivas e não os denunciam às autoridades. Por outro lado, milhares de outras mulheres tiveram a coragem de denunciar seus agressores nas DEAMs de todo o país. Só na DEAM da cidade de Vitória, objeto do presente artigo, do período de sua criação, em outubro de 1985, até o ano de 1990, foram registrados 4.300 casos de agressão, sendo alguns deles eles descritos como ameaças, calúnia, difamação e injúria, estupro, maus tratos, sedução, agressão moral, agressão física, injúria, calúnia, expulsão do lar, rapto, roubo, constrangimento ilegal e abandono do lar5.

5

Tais registros confirmaram o Espírito Santo como o segundo estado mais violento do país, perdendo somente para Pernambuco. Sobre o assunto ver Revista Presença da Mulher, São Paulo, v 4, número 20, 1991.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

249

MARIA BEATRIZ NADER

Assim como em todo o Brasil, a história da violência contra a mulher capixaba é incipiente e, apesar do diminuto número de pesquisas sobre o tema na cidade, os arquivos da DEAM – Vitória contém um material muito rico sobre o tratamento espacial e socioeconômico do estudo da violência contra a mulher, cuja principal fonte de pesquisa é o Boletim de Ocorrência6. Desta forma, o estudo ora desenvolvido incide sobre a violência contra a mulher, a violência de gênero e a violência doméstica e intrafamiliar, diferenciando-se das abordagens feitas até então em Vitória, por deslocar a análise dos crimes propriamente ditos para explorar o contexto no qual a violência ocorreu e, a partir dai identificar e associar as agressões aos padrões espaciais e sociais. A mudança de tratamento dos dados possibilita agregar aquelas características com os locais da ocorrência dos fatos (bairro, horário e local, se público ou privado). As fontes para a realização da pesquisa são os Boletins de Ocorrência da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher, de Vitória, no período de 2003 a 2008, e o objetivo principal da pesquisa é o mapeamento dos diferenciais intraurbanos da violência contra a mulher segundo algumas particularidades em relação a sua distribuição por condições socioeconômicas e regiões geográficas da cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Neste artigo, em particular, o conteúdo incide sobre a violência contra a mulher, apoiando-se em parte dos estudos que ora são realizados no banco de dados coletados na DEAM de Vitória, à luz de dados históricos da cidade.

Debatendo a violência em Vitória Vitória, cidade portuária, até os anos de 1960 teve sua estrutura apoiada na economia agroexportadora da monocultura cafeeira. Com pouca integração ao mercado econômico nacional, a capital do estado do Espírito Santo era uma cidade periférica e subdesenvolvida. Suas ruas estreitas e tortuosas, com pouca iluminação, eram constantemente invadidas pelas marés altas e suas construções ainda mantinham um estilo colonial. 6



250

Termo utilizado para designar o documento oficial emitido por autoridade policial, descrevendo e confirmando a ocorrência de um fato, e é devidamente assinado pelo (a) denunciante, podendo ser a vítima ou não.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

A pequena e pacata população vitoriense que se mantinha entre a prosperidade sulista e a pobreza nordestina não conseguia alcançar o dinamismo socioeconômico da Região Sudeste. A partir de meados daqueles anos, contudo, essa situação se modificou graças à desagregação da economia primário-exportadora do estado do Espírito Santo e à implementação de grandes indústrias produtoras de bens de capital que abriram um enorme mercado de trabalho na cidade. E, a par dessa enorme mudança econômica, milhares de trabalhadores do campo que haviam ficado desempregados por causa da política de erradicação dos cafezais improdutivos, buscaram a capital, juntamente com pessoas de outros estados (principalmente da Bahia, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro) e de outros países (Japão, por exemplo) interessadas em trabalhar nas indústrias que se abriam. Estima-se que, respectivamente, no decorrer das décadas de 1970 e 1980 chegaram à Vitória 175.632 e 458.309 pessoas. Logo centenas delas se fixaram ao redor da cidade, na região metropolitana conhecida como Grande Vitória. Especificamente, o número absoluto de pessoas que habitava Vitória nos anos de 1960 era de 83.351, saltando para 133.019, em 1970. Desses, 33,82% eram migrantes e a maioria era do sexo feminino (Tabela 1). Tabela 1 – População de Vitória, por sexo – 1970-2000. População total e por sexo – Vitória Ano

Total

1960

83.351

1970 1980

Mulheres Número

Homens %

Número

%

43.413

52.08

39.938

47,92

133.019

70.103

52.70

62.916

47.30

207.736

108.966

52.45

98.770

47.55

1991

258.243

136.399

52.82

121.844

47.18

2000

292.304

154.366

52.81

137.938

47.19

Fonte: CARVALHO, 1920; MORAES, 1994; FIBGE. Censos Demográficos do Espírito Santo (1970, 1980, 1991, 2000).

É importante mencionar que o percentual de mulheres e de homens em relação ao total da população vitoriense manteve uma variação em torno de 52,57% e 47,42%, respectivamente. Isso demonstra a existência de uma grande diferença numérica entre os sexos, na cidade. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

251

MARIA BEATRIZ NADER

No entanto, a maioria desses homens e mulheres que chegavam a Vitória em busca de empregos se constituía de pessoas sem conhecimento das atividades desenvolvidas no setor formal de trabalho e com limitadas condições de acesso a alojamentos. A instalação dessa população no pequeno espaço físico da cidade e nos municípios circunvizinhos gerou a denominada desorganização social e promoveu um processo de inchação populacional, além de acarretar uma maior e desordenada ocupação do solo. Em 1970, a taxa de ocupação urbana era equivalente a 1.643,42 habitantes por quilômetro quadrado, enquanto em 1980 essa taxa se elevou para 2.562,47, aumentando em 1991 para 2.911,42. No ano 2000, a população chegou a 3.292,99 habitantes por quilômetro quadrado7. A ausência ou ineficácia de um projeto público anterior à mudança econômica que se estabeleceu no Estado, deixou Vitória vulnerável a inesperadas transformações físicas e sociais. Os governos estadual e municipal de Vitória não dispunham de recursos para prover as necessidades sociais e urbanas que haviam sido geradas, principalmente nas áreas de maior concentração de pobreza. Ainda na segunda metade da década de 1970, na área oposta ao Oceano Atlântico, nas margens do canal que circunda a Ilha, a população migrante invadiu o manguezal, local em que a Prefeitura Municipal de Vitória despejava o lixo da cidade. Essa invasão resultou na formação de várias favelas. Em consequência, numa extensão de aproximadamente cinco quilômetros, surgiu o Bairro de São Pedro, que ficou conhecido internacionalmente pelo documentário “Lugar de toda pobreza”. Ao longo de anos de constantes invasões, São Pedro transformou-se num centro de absorção de populações que buscavam novas oportunidades de emprego nas indústrias incipientes locais. Mas, milhares de pessoas sobreviveram ali da cata de lixo. Outras famílias inteiras buscaram se estabelecer nos morros da cidade, nas mesmas condições de miséria dos desassistidos, analfabetos e desempregados que invadiram os manguezais, dando origem a graves problemas sociais estigmatizados por doenças, promiscuidade e criminalidade. Em poucos

7



252

Informações obtidas no site da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Banco de Dados Agregados. SIDRA. Censos Demográficos do Espírito Santo: 1970, 1980, 1991 e 2000. Disponível em: < http:// www.ibge.gov.br > Acesso em: 23 jul. 2002.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

anos, a capital capixaba concentrou cerca de 35% do total da população do Estado, resultando na proliferação de inúmeros problemas sociais. Vitória sofreu uma enorme descaracterização, perdendo o tradicional perfil de cidade administrativa e comercial do Estado, com ares coloniais, para tornar-se um aglomerado urbano que absorvia pessoas com comportamentos diferentes dos desenvolvidos pela cultura vitoriense. Considerada anteriormente por seus habitantes como uma cidade bucólica e conhecida nacionalmente como Cidade Presépio do Brasil, em menos de dez anos Vitória mudou completamente não só seu aspecto físico, mas também sua convivência social. Em 1980, a Ilha de Vitória fora urbanizada totalmente, tornando-se um centro populacional altamente congestionado, onde vários bairros foram criados à revelia de uma estrutura organizada. Estima-se que, em 1983, 47% da população de Vitória estavam vivendo em favelas e que a cada dia eram construídos cerca de 20 novos barracos de madeira e alvenaria. (BANCK, 1998) Embora atraísse boa parte da população ativa desempregada do interior do Estado e de outras regiões do país, a indústria em Vitória ainda era uma atividade incipiente, incapaz de absorver toda a força de trabalho disponível. A construção das grandes indústrias criou muita expectativa em torno da geração de empregos, mas havia falta de estrutura para absorver tamanha disponibilidade de mão-de-obra. E, essas pessoas foram se aglomerando e criando novos bairros, buscando alternativas de sobrevivência. Entretanto, a mudança do sistema econômico que promoveu a desorganização social em Vitória, se por um lado contribuiu para aumentar o número de pessoas pobres e indigentes que chegavam à cidade todos os dias, por outro, aumentou o número de pessoas que conseguiram acumular uma parcela ainda maior da riqueza produzida. A expansão do comércio formal e a diversificação do setor de serviços incentivaram a concentração espacial de diversos ramos empresariais, estimulando desse modo uma série de atividades pertinentes ao transporte, à circulação de matérias-primas e de mercadorias, e de atividades ligadas diretamente ao seu processo operacional, como as de fornecedores de componentes e acessórios, e os cursos de especialização de pessoal, entre outras. Por seu turno, essa aglomeração empresarial ocasionou uma concentração de renda em Vitória, incentivando a ampliação dos setores de PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

253

MARIA BEATRIZ NADER

comércio e de serviços que abrangeram atividades produtivas de compra e venda, armazenagem, sistema bancário, telecomunicações, fornecimento de energia, além das ligadas à administração pública, intensificando, assim, a desigualdade entre as camadas sociais mais extremas. A instalação da população numa estrutura social desigual e injusta no pequeno espaço físico da cidade contribui enormemente para a promoção de um processo de violência até então desconhecido pelos moradores de Vitória. O caos que se estabeleceu após o início dos anos de 1970 tornouse expressivo, não apenas na aparência desordenada do crescimento metropolitano, mas também na reprodução incontrolável da pobreza e da violência. A intensificação de agressões físicas e mortes por causas violentas assumiram uma importância tão crescente que proporcionaram à Vitória o estigma de ser uma das cidades mais violenta do Brasil. (MELLO, GAWRYSZEWSKI e LATORRE, 2009) De acordo do Diniz (2005), as intensas correntes imigratórias e a aglomeração de grandes massas populacionais em centros urbanos favorecem, potencialmente, a incidência criminal que concentra agressões individuais que transcendem o nível social refletindo, sem dúvida, a dominação de um grupo e a subordinação do outro. Embora Soares (2000) advirta que não se deve atribuir violência e crime às necessidades econômicas, o fato é que pesquisas como as de Barata, Ribeiro e Moraes (2008), Drumond Junior (1999) e Freitas (2000) comprovam as evidências empíricas acumuladas que apontam os bairros populares e as favelas, locais que concentram baixas condições de vida, como espaços onde ocorrem as maiores taxas de violência. Por seu turno, Minayo (2008), afirma que a violência pode ser associada a fatores existentes em ambientes urbanos de elevada concentração populacional, desigualdades de riquezas, impessoalidades das relações, fácil acesso a armas de fogo, abuso de álcool e tráfico de drogas, além da baixa renda familiar e violência policial. Fatores esses encontrados facilmente nas periferias e favelas de Vitória, que são o resultado de um fluxo migratório alimentado por uma falsa imagem promissora das cidades pelo ideal de consumo, com ausência quase total de serviços básicos e direitos à cidadania, fazendo dos moradores dessas regiões vítimas preferenciais da violência. 254

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

Cumpre afirmar, contudo, que não se pode dizer que a violência esteja presente somente nos bolsões de pobreza. A pesquisa intitulada “Análise ecológica dos acidentes e da violência letal em Vitória”, realizada pela Prefeitura Municipal de Vitória, entre os anos de 2003 e 2004, aponta o norte da ilha de Vitória como o local de maior concentração de ocorrências de homicídios. Nessa região se encontram os bairros que concentram a população de maior renda do município, tais como Praia do Canto, Jardim da Penha, Mata da Praia e Jardim Camburi. Essa mesma violência que permeia a sociedade vitoriense como um todo, que entranha-se em todas as camadas sociais, também atinge seus mais diversos segmentos. Entretanto, alguns são mais suscetíveis, como por exemplo, a criança, as mulheres, os idosos e outros indefesos. Desse grupo, a mulher, seja criança, adulta ou idosa, é a que vive em situação de maior vulnerabilidade, que, na maioria dos casos, pela sua situação física, psíquica e de muitas vezes de dependência financeira, tem pouca ou nenhuma capacidade de defesa e de resistência, o que potencializa a violência contra si praticada. Além do que, a violência contra a mulher guarda estreita ligação com o poder que permeia as relações de gênero. A violência, de modo geral, é considerada como uma ação intencional, realizada por um indivíduo ou grupo, dirigida a outro, que resulta em óbito, danos físicos, psicológicos e/ou sociais, implicando a utilização da força física ou da coação psíquica ou moral. (MINAYO, 2008) E, pode ser tipificada como violência estrutural – representada pelas desigualdades sociais de acesso ao mercado de trabalho e ao consumo de bens essenciais à vida –, como violência deliquente – expressada por indivíduos ou grupos que promovem ações contra cidadãos ou patrimônio –, e, ainda, como violência cultural – que se expressa entre pares, a exemplo das agressões entre cônjuges. Na lógica desse raciocínio a violência se reduz ou não à criminalidade, além de envolver tanto homens quanto mulheres, que podem converter-se em vítima ou serem autores de atos violentos. Em suas tendências históricas, a problemática da violência é condizente com a natureza do social, e as culturas nas quais os homens se inseriram lhe ensinaram que a norma é dominar e obrigatoriamente não perder oportunidades e acreditar que sempre, ou quase sempre, devem ter seus desejos satisfeitos. Assim, os valores culturais que intervem e determinam PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

255

MARIA BEATRIZ NADER

os padrões morais de cada sexo, de certa forma fazem prevalecer o poder dos homens mais fortes sobre outros e entre eles esse fenômeno aparece nas rixas que geram cadeias insolúveis de vinganças, armada ou não. Logo, a violência que envolve os homens, perpassa pela lógica da violência estrutural, delinquente e cultural, conforme asseveram Minayo & Souza (1993). Quanto à violência praticada pela mulher ou contra ela, observa-se seu enquadramento mais bem representado na violência estrutural, propiciada pela desigualdade de direito, que pode ser protagonizado pelo membro de uma determinada sociedade, do mesmo sexo ou não, e pela violência tipificada como cultural que envolve as relações entre homens e mulheres e tem características de desigualdade de gênero. Muito embora haja o enquadramento da mulher como vítima ou como algoz nas tipificações das violências estrutural e cultural, a violência que se comete contra uma mulher ou contra um homem tem características diferentes. Para o entendimento da complexidade da violência contra a mulher é de fundamental importância o conhecimento do conceito de gênero e sua ligação direta com a percepção das diferenças entre os sexos como sendo importante demarcador de poder. Se o conceito de gênero é a distinção entre atributos culturais alocados a cada um dos sexos e a dimensão biológica de seres humanos, a violência contra a mulher se refere a qualquer ato de violência que tenha por base o gênero, ou seja, no fato de a vítima ser mulher. Nas sociedades baseadas nos preceitos do patriarcalismo8, a relação hierárquica e de autoridade se baseia no princípio da superioridade masculina que se constitui em um ingrediente fundamental dos mecanismos de dominação de gênero. Considerando a teoria de o dualismo hierarquizado ser a raiz da violência de gênero, logo, isso resulta em interesses de subordinação

8



256

Modelo familiar que se sustenta da incorporação de seus membros, preferencialmente parentes, aos clãs que asseguram a indivisibilidade do patrimônio e, consequentemente, do poder. Estrutura dominadora que se baseia não na obediência em um poder de finalidade impessoal e objetiva, mas na autoridade dominadora, centralizada na figura, normalmente masculina, de um chefe. Suas relações fortalecem a desigualdade entre seus membros, as estruturas de discriminação que sustentam e permeiam as desigualdades entre os sexos e são baseadas na estratificação sexual, na qual a mulher ocupa uma posição inferior e é tradicionalmente caracterizada pela violência nas relações de gênero. Sobre o assunto ver NADER, Maria Beatriz. Mulher: do destino biológico ao destino social. 2ª ed. Vitória: EDUFES, 2001; LIMA, Lana Lage da Gama. Penitentes e solicitantes: gênero, etnia e poder no Brasil Colonial. In. NADER, Maria Beatriz & FRANCO, Sebastião Pimentel & SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.) História, mulher e poder. Vitória: PPGHIS, 2006. p. 100-219.

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

da mulher, colocada como ser inferior. E, na medida em que buscam desconstruir os papéis sociais estabelecidos, uma vez que os papéis sociais se modificaram muito, mas a ideologia baseada naqueles preceitos não, ela encontra resistência dos que querem manter o status quo, e quase sempre com atos agressivos. Historicamente a sustentação da identidade masculina patriarcal foi pautada no ideal de virilidade e pela masculinidade que foi definida tanto em termos necessários como absolutos, a partir de suas presumidas propriedades de, dentre outras, racionalidade, ambição, individualismo, agressividade, como sua contraposição ao gênero feminino, sua antítese mais radical. Essas definições clássicas, universalistas, identificaram o gênero masculino como o gênero humano. Por outro lado, a essa definição acompanha a de feminilidade que dela se deriva, pois seu entendimento é a falta de masculinidade, segundo os exemplos da aristotélica ausência de alma racional, ou freudiana, da inveja do pênis. (CALVO, 2006) Assim, se impunha a ordem patriarcalista de que ser homem implicava em dominar mulheres e nunca se parecer com elas, seres inferiores. Dada a misoginia do pensamento patriarcal, as encarnações femininas da maldade monstruosa sobejam em toda a narrativa ocidental, desde a bíblica Eva que se identifica com a sedutora serpente da encarnação do maligno, precipitando a queda do homem e a perda do paraíso original. Institucionalizada pelo patriarcado, a dominação de um sexo sobre o outro se torna legítima e a condição de desigualdade dos papéis exercidos pelos membros e o excesso de poder nas mãos do patriarca dão à família o status de lócus privilegiado de violência contra a mulher. Por outro lado, a ampla divulgação sobre a generalização do conhecimento da violência mostra que o fenômeno não se restringe apenas ao ambiente doméstico, mas ocorre também no âmbito da comunidade e do trabalho, e que não existem grupos sociais protegidos, ainda que alguns tenham mais condições de buscar proteção institucional e individual. A violência contra a mulher permeia a sociedade e entranha-se em todas as camadas sociais, atingindo os mais diversos segmentos, não mais se restringindo a um determinado nicho social, racial, econômico e/ou geográfico. Assim como em todo o Brasil, em Vitória, a cultura de dominação masculina que prevaleceu em alguns redutos familiais, desde os tempos do PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

257

MARIA BEATRIZ NADER

Brasil Colonial, até hoje ainda se mantém. E, pela intensidade do machismo em que se pauta a cultura dos italianos, alemães e árabes, imigrantes que chegaram, em grande número, ao Espírito Santo, na virada do século XIX para o XX, na sociedade vitoriense ainda hoje se percebe nitidamente resquícios da representação social dos valores hierarquizados fundados na desigualdade de lugares sociais sexuados que subalternizam a mulher, descendente ou não daqueles povos. E mais, com a chegada dos migrantes nos anos de 1970, 1980 e 1990, a maioria vindo do interior trazendo sua cultura rural também hierarquizada sexualmente, a miscigenação exacerbou a violência contra a mulher. Desde os anos de 1970 a mídia capixaba destaca essa violência que se agravou em todos os segmentos da sociedade vitoriense naqueles anos. Os crimes contra mulheres de todas as etnias, classes sociais, profissões e idades, geraram enorme insegurança na cidade. Parece que de repente surgiram de todos os lados casos de violência contra a mulher e repercutiram até fora do Brasil. Em 1973, a menina Araceli Crespo, com nove anos incompletos, teve seu corpo barbaramente seviciado e desfigurado com ácido. Em meados dos anos de 1980, a dentista Ana Angélica Freitas Ferreira, de 22 anos, foi brutalmente assassinada em seu consultório. Em 1992, aos 31 anos de idade, Maria Cândida Teixeira, foi assassinada na porta de sua casa pelo marido Herbert. Uma ação que transgredisse as normas de comportamento social, tal como a mulher terminar um namoro ou casamento, poderia ser motivo de injuria e renderia um homicídio. No início dos anos de 1990, Gabriela Souza, uma jovem que quis terminar o namoro com um empresário, foi jogada da janela de um edifício no centro da cidade. Maria Antonia, ao dizer ao seu marido que queria a separação foi estrangulada nas dependências da escola municipal em que ele trabalhava e seu corpo esquartejado e jogado no lixo. A maioria desses casos continua até hoje insolúvel. Até os anos de 1960, os casos julgados pela justiça que envolviam vítimas mulheres, fossem estupros, espancamento ou homicídios, dentro ou fora do ambiente doméstico, demonstravam que, quanto mais o agressor se aproximava do comportamento esperado pela sociedade do modelo masculino de bom pai, trabalhador e honesto, maior era o afastamento do comportamento da vítima do modelo feminino prescrito de ser esposa fiel, mão delicada e zelosa com os filhos. A lógica que presidia essas decisões jurídicas era favorável ao agressor 258

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

pelo fato de apoiar-se na oposição dos papéis sociais entre vítimas e agressores ordenados pela sociedade, e a adequação dos envolvidos a eles. A partir da aplicação desse raciocínio na solução dos conflitos nas relações de gênero se verificava a extensão da valorização do comportamento dos envolvidos aos modelos de comportamentos socialmente elaborados. Era como se fosse mais valorado o comportamento dos envolvidos do que o próprio crime. (CORREA, 1983; ARDAILLON e DEBERT, 1987; IZUMINO, 1998) E isso ocorria em todo o país. Um exemplo típico dessa visão machista do delito fundada na hierarquia e na desigualdade de lugares sociais sexuados foi o assassinato de Ângela Diniz, em 1976, no Rio de Janeiro. A condição de mulher separada, vivendo história de amor com outro homem, e o seu comportamento de mulher de vanguarda, foram comportamentos tidos como fora dos padrões femininos e serviram de base para os promotores que queriam denegrir a imagem de Ângela Diniz perante a sociedade. A absolvição do criminoso Doca Street, sob alegação de que o crime foi uma reação à defesa de “honra” masculina, desencadeou revolta numa significativa parcela da sociedade que exerceu pressão para um novo julgamento em 1979, quando o assassino foi condenado. Esse caso tornou-se um marco histórico que deu visibilidade à questão da violência contra a mulher e a mídia documentou fartamente o processo judicial. Na mesma época ocorreram os assassinatos de Claudia Lessin Rodrigues, no Rio de Janeiro, em 1977, de Eloísa Balesteros, em Belo Horizonte, em 1980, e de Eliane de Grammont, em São Paulo, em 1981. Esse último crime cometido pelo ex-marido, o cantor Lindomar Castilho, motivou a campanha “Quem ama não mata”. A repercussão dessa campanha levou milhares de pessoas às ruas em todo o país, protestando contra a impunidade dos agressores. Eram políticos, professores, artistas, sindicatos, lideranças comunitárias e pessoas que sofreram agressões ou tiveram familiares agredidos. Em Vitória, os jornais da cidade diariamente traziam reportagens sobre a violência contra as mulheres que, indignadas, também protestavam contra a impunidade dos agressores. Em 1985, uma passeata articulada pelo Centro da Integração da Mulher (CIM) e pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Espírito Santo, protestava contra a violência que, nos dos anos anteriores, havia atingido algumas dezenas de mulheres. (BILICH e RODRIGUES, 2005) PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

259

MARIA BEATRIZ NADER

Em todo o pais, a partir dessa época se opera uma verdadeira batalha contra a violência sofrida pela mulher. Todos os meios de comunicação abundam de publicações que discutem o tema e propõem formas de combate a esse tipo de violência, que parece ter um conceito novo, pois, apesar de não se ignorar as práticas que existiram em todos os tempos, um novo sentimento em relação a elas tomou fôlego. As denúncias e reivindicações políticas e sociais passaram a ser o centro de entidades de cunho feministas que se formaram, em todo o Brasil, com o objetivo de combater a violência contra a mulher e a orientar as vítimas. Centenas de mulheres se engajaram na política de busca de mecanismos para coibir o uso costumeiro da violência de gênero. Os movimentos feministas que até então se dedicavam somente a denunciar atitudes agressivas contra a mulher, iniciaram um trabalho que objetivava mudanças legislativas e criação de serviços para atendimento às mulheres vítimas da violência de gênero. Dentre as mudanças destaca-se a criação da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (DEAMs), em 1985, cujo objetivo principal voltavase para uma política social direcionada à mulher vítima de violência, seja doméstica, pública, de gênero ou não, e à punibilidade do agressor, independente de conscientização feminista de planejar ou colocar em prática projetos que buscassem interferir nas condições estruturais das desigualdades entre o homem e a mulher9. Apesar das dificuldades encontradas para implementação das DEAMs e, depois, de sobrevivência em se manterem dentro de seu objetivo principal, o número de delegacias e postos de atendimento à mulher vítima de violência em todo o país cresceu10 e sua permanecia até os dias atuais clareia e dá visibilidade à violência contra a mulher, mostrando que realmente há um crime que acontece todos os dias e, que, de certa 9



Essa desigualdade, tradicionalmente é caracterizada pela violência nas relações de gênero, que é uma variação da violência cultural impregnada na história do Brasil, desde os tempos coloniais. Considerando ainda haver na sociedade brasileira comportamentos tipicamente patriarcais, nos quais os papeis feminino durante séculos estiveram simplesmente voltados a procriação e a obediência, era de se esperar que as estruturas de discriminação que sustentam e permeiam as desigualdades entre os sexos fosse baseada na estratificação onde a mulher ocupa uma posição inferior.



O Governo Federal afirma, em documento datado de 10/09/2010, que existem 475 Delegacias ou Postos Especializados de Atendimento à Mulher, nos Centros de Referência da Mulher e nos Juizados de Defesa da Mulher, em todo o Brasil. http://www.presidencia.gov.br/noticias/ultimas. Acesso em 11 de setembro de 2010

10

260

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

forma, é mantido pelas representações de gênero baseadas em caracteres patriarcais que determinados segmentos sociais insistem em preservar.

Vitória e a Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher No mesmo ano da criação da primeira Delegacia Especializada em Atendimento (DEAM) à mulher vítima de violência no Brasil, instalada na cidade de São Paulo, em 06 de agosto de 1985, no Espírito Santo, o Centro de Integração da Mulher (CIM) capixaba, encaminhou solicitação ao governador para que fosse criada também no Estado uma Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher. Pelo decreto nº 2.170, de 24 de outubro de 1985, o governador desse Estado, criou a DEAM-ES, incluindo-a a estrutura organizacional da Polícia Civil, órgão ligado diretamente à Secretaria de Estado da Segurança Pública, vinculando sua direção ao gabinete do Superintendente da Polícia Judiciária. No período de 1985 a 1990, várias DEAMs foram criadas no interior do Estado e a DEAM-ES passou a ser DEAM-Vitória. Até o ano de 2002, a DEAM-Vitória funcionava fisicamente em uma sala da Superintendência da Polícia Civil do Espírito Santo, não dispondo de espaço no mínimo razoável para seu funcionamento administrativo, além de inibir e dificultar o acesso das mulheres vítimas de agressão às dependências da DEAM-Vitória. Ainda nesse ano, o Governo do Estado adquiriu uma casa próxima àquela Superintendência e aí instalou a única DEAM da capital capixaba. Apesar de adquirir certa independência física, essa nova instalação não mantém espaço para arquivar toda sua documentação e, esta, desde a criação da DEAM-ES até o dia 31 de dezembro de 2002, teve de ser deixada aos cuidados do Arquivo Morto da Superintendência de Polícia Civil. Atualmente os registros de ocorrência anteriores aos anos de 2003 se encontram nesse arquivo que está indisponível para pesquisa sob a alegação de estar em uma “localização de difícil acesso”. Em decorrência desse fato o recorte temporal escolhido para a pesquisa foi o da instalação da DEAM-Vitória no novo endereço até o ano de 2008, período que marca o início de sua rápida expansão apesar de todo o crescimento demográfico PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

261

MARIA BEATRIZ NADER

e econômico da capital capixaba, pois a cidade hoje possui apenas uma Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher vítima de violência. Pioneira no Espírito Santo, a DEAM-Vitória, assim como outras delegacias do país, até hoje registra as denúncias de mulheres que sofrem violência, de gênero, doméstica ou não, em um documento emitido pela polícia, o Boletim de Ocorrência (BO) é produzido a partir de dados relatados pela vítima ou por outra (o) denunciante sobre um acontecimento público ou privado que exija intervenção policial. Nele fica registrado o relato das circunstâncias do fato, dados da vítima e do agressor, assim como das testemunhas. Apesar de, em todo o país ser reconhecida a forte subnotificação da violência contra a mulher nas delegacias policiais, pois esse tipo de violência, especialmente a gerada entre os muros domésticos, não é, em sua maioria, denunciada, a DEAM-Vitória, em seus primeiros cinco anos registrou denúncias descritas como ameaças (906), calúnia, difamação e injúria (229), estupro (35), maus tratos (162), sedução (07), agressão moral (39), agressão física (1.826), injúria, calúnia e expulsão do lar, rapto, roubo, constrangimento ilegal, abandono do lar (1.137). Contudo, naquela época, por força de uma tradição cultural e uma legislação que não criminalizava a violência física à mulher que não a levasse ao óbito, principalmente quando a agressão ocorresse por questões de gênero e dentro do ambiente doméstico, inúmeros foram os casos não registrados nas DEAMs de todo o Brasil. Até hoje, muitas mulheres por medo ou vergonha que sentem de conviver com homens que as maltratam e as humilham, ocultam as investidas agressivas e não os denunciam às autoridades. Por outro lado, milhares de outras mulheres tiveram a coragem de denunciar seus agressores nas DEAMs de todo o país. Somente no ano de 2003, mais de 1.400 mulheres procuraram a DEAM-Vitória e registraram denúncias sobre agressões sofridas. São mulheres de todos os segmentos sociais, níveis de escolaridade e idade. Dentre as ocorrências registradas após esse ano, encontram-se várias queixas feitas por mulheres contra seus maridos e companheiros, vizinhos e parentes, e também contra colegas de trabalho, sejam homens e mulheres. No período de 2003 a 2008, a DEAM–Vitória contabilizou 8.377 denúncias de violência contra a mulher, número que se vê distribuído no quadro (1), a seguir. 262

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

Quadro 1 – Denúncias registradas na DEAM/Vitória. Segundo mês e ano. 2003 a 2008 Mês Ano Janeiro Fevereiro Março Abril Maio Junho Julho Agosto Setembro Outubro Novembro Dezembro Total

2003

2004

2005

2006

2007

2008

147 143 116 112 93 121 105 104 131 125 203 71 1.471

124 85 167 125 153 119 115 125 131 111 128 128 1.511

163 74 123 119 118 117 74 156 114 118 105 104 1.385

128 89 113 104 90 108 120 119 91 93 94 68 1.173

109 113 113 88 112 86 129 164 122 109 111 90 1.345

131 98 91 119 97 112 131 147 136 139 144 147 1.492

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Deve-se levar em conta, contudo, que, as informações obtidas extraídas dos BOs apresentam o somatório de sua numeração o total 8.592, ou seja, uma diferença de 215 denúncias. Essa discrepância se dá pelo fato de o último registro no ano de 2003 ter o número 1.600, o último do ano de 2004 ter o número 1.525, o último do ano de 2005 ter o número 1.400, o último do ano de 2006 ter o número 1.218, o último do ano de 2007 ter o número 1.357 e o último do ano de 2008 ter o número 1.492. Tal grande diferença ocorre porque muitos BOs tem seu número repetido, assim como outros nem chegam a ter número de registro. Este fato dificulta a análise dos dados e, para se ter uma ideia do grau de dificuldade enfrentado, o Quadro 2 mostra como se apresenta tal discrepância: Quadro 2 – Número de denúncias e de Boletins de Ocorrência DEAM/ Vitória. 2003 a 2008 Ano

2003 2004 2005 2006 2007 2008

Número de BOs Último número constante nos registros Diferença anual

1.471 1.511 1.385 1.173 1.345 1.492 1.600 1.525 1.400 1.218 1.357 1.492 12

0

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

263

Fonte: Boletins de Ocorrência da DEAM/Vitória

129

14

15

45

MARIA BEATRIZ NADER

Considera-se ainda como elemento dificultoso, ainda, a qualidade do preenchimento dos BOs, pois em muitos há espaços onde não constam informações como idade, profissão, nível de escolaridade, estado civil e outros dados importantes, tanto do agressor quanto da vítima. Isso equivaleu também à redução da quantidade desses dados, o que dificulta quando do cruzamento dos mesmos. Contudo, a dimensão total quantitativa das informações obtidas permitiu que fossem feitos vários cruzamentos de dados cuja finalidade é mapear a violência contra a mulher em Vitória, assim como identificar o perfil da vítima e do agressor. Ainda sobre os registros dos BOs, observa-se que, no ano de 2006, a partir do mes de setembro, houve uma queda acentuada nos números de denúncias registrados na DEAM/Vitória. Esses registros coincidem com a data que passou a vigorar a Lei nº 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha. Por força dessa lei, as denúncias que forem feitas sobre qualquer tipo de violência contra a mulher, somente poderão ser retiradas com autorização do juiz, tornando mais rigorosa a punição dos crimes de violência contra a mulher. Assim, muitas mulheres, deixaram de denunciar seus agressores naquele final de ano. Observa-se, ainda, que, iniciado o ano seguinte, os números de denúncias se mantiveram proporcionalmente aos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro do ano de 2005. Quadro 3 – Número de denúncias na DEAM/Vitória. 2003 a 2008

Meses Setembro

Ano

2005

2006*

2007

114

91**

122

Outubro

118

93

109

Novembro

105

94

111

Dezembro

104

68

90

Fonte: Boletins de Ocorrência da DEAM/Vitória * Ano da institucionalização da Lei 11.340 / ** Mês da institucionalização da Lei 11.340

Para determinar a classificação científica das características do fato juntou-se todas as informações contidas nos BOs que pudessem revelar a natureza da ocorrência que levou a mulher a fazer a denúncia. Dentre os aproximadamente 80 tipos diferentes de referências encontradas somente no primeiro semestre de 2003, destacam-se a agressão com lesão corporal (249) 264

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

e a ameaça (197). Esta última, se acrescida de agressão, constrangimento, injúria e perseguição, aumenta para 241. O quadro 2, mostra o percentual das modalidades de violência contra a mulher que mais foram registradas nos BOs da DEAM/Vitória no período pesquisado. Quadro 4 – Resumo dos principais tipos de violência contra a mulher, registrados nas DEAM/Vitória 2003 a 2008 Tipo de violência *

Percentual

Abandono de lar ou material Agressão física e verbal com danos, injúria, lesão corporal e perturbação da tranquilidade. Ameaça, perseguição, invasão de domicílio, constrangimento, cárcere privado e pressão psicológica. Calúnia, difamação e ofensa moral

3,27 38,69 48,35 9,69

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória / *em ordem alfabética

Falta distinção entre tipos de violência, ou seja, as modalidades de violência que são registrados nos BOs são confundidas e misturadas desordenadamente. Isso impede a obtenção de clareza do entendimento do que realmente ocorreu. Mesmo assim, não é impossível confirmar a agressão física como o tipo de violência que mais aparece nas denúncias (gráfico 1) Gráfico 1 – Tipo de Violência

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Mesmo com todas as dificuldades apresentadas, a pesquisa não deixou de coletar e analisar os dados apresentados e, dentre eles o espaço onde ocorre o maior número de violência registrados na DEAM-Vitória. Para isso, PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

265

MARIA BEATRIZ NADER

além dos dados dos BOs, observou-se a divisão regional da cidade, como mostra o mapa a seguir. Mapa de Vitória

Fonte: Site oficial da Prefeitura Municipal de Vitória

A capital capixaba está dividida em regiões, e as mesmas foram tomadas como parâmetro, para este mapeamento, observando-se as unidades onde mais ocorreu agressão física contra mulheres, por exemplo. Do mapeamento realizado, observou-se que as mulheres que mais sofreram esse tipo de violência foram aquelas que residiam na unidade que compõem a Região IV da cidade, onde ficam os bairros de Andorinhas, Penha, Bonfim, Itararé, Joana D’Darc, Maruípe, Santa Cecília, Santa Marta, Santos Dumont, São Benedito, São Cristóvão e Tabuazeiro. Observando mais de perto essa unidade regional, tem-se no Quadro 5 o percentual de mulheres que sofreram agressão física por bairro da Região IV que compõe-se da Grande Maruípe.

266

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

Quadro 5 – Percentual de mulheres agredidas fisicamente na Região IV. 2003 a 2008 Região IV – Grande Maruípe Andorinhas Bairro da Penha Bonfim Itararé Joana D’Arc Maruípe Santa Cecília Santa Marta Santos Dumont São Cristóvão Tabuazeiro

% 54 14,2 8,0 14,1 12,1 8,8 1,3 10,1 2,0 6,0 12,1

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Seguindo de perto, estão os registros de mulheres agredidas que residiam nos bairros das Regiões V e VI, cuja população é a que possui o maior poder aquisitivo da cidade. Do número de mulheres que residiam nesses bairros, no primeiro semestre de 2003, dos BOs pesquisados, a respeito da ocorrência que trazem dados de escolaridade completo das vítimas, observou-se que 33,27% delas tinham curso superior completo, 0,27% tinha curso superior incompleto e somente uma era analfabeta. Por outro lado, no que diz respeito aos seus agressores, observou-se que 1,9% tinha curso superior completo, 1% tinha curso superior incompleto, e nenhum era analfabeto. Os bairros Jardim Camburi e Jardim da Penha são os locais da Região VI onde ocorreu o maior número de violência contra a mulher. Ali, as mulheres que sofreram agressão, e que as denunciaram na DEAM-Vitória, tinham entre 22 e 25 anos de idade, o que foge à média do resultado final da análise dos dados coletados, na qual a idade feminina de mulheres agredidas se localiza entre 26 e 30 anos de idade, conforme se vê no gráfico 2.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

267

MARIA BEATRIZ NADER

Gráfico 2 – Vítimas por idade

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Em se tratando dos bairros Jardim Camburi e Jardim da Penha pode-se inferir que os mesmos, por serem bairros muito novos, com aproximadamente 40 anos, tem uma população mais jovem. Muitos moradores eram alunos da Universidade Federal do Espírito Santo que, depois de formados se estabelecem no bairro. Além disso, os mesmos foram criados para atender a demanda de moradia para trabalhadores da então Companhia Vale do Rio Doce e da Companhia Siderúrgica do Tubarão, que nos anos de 1960, 1970 e 1980 iniciaram e ampliaram suas atividades de produção, contratando profissionais de outras localidades do Estado do Espírito Santo e do pais. Também residiam nesses bairros mulheres casadas que sofreram violência contra o seu patrimônio e denunciaram seus ex-maridos. Além dessas, outras mulheres também sofreram esse tipo de violência e eram moradoras dos bairros Bela Vista, Maruípe, São Pedro III, Jardim da Penha, Resistência e Santo Antônio. Todas foram classificadas como sendo de cor parda e a maioria de seus agressores, que moravam em São Pedro III e Santo Antônio, estava desempregada.

268

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

Quadro 6 – As dez profissões das vítimas e agressores que mais aparecem nos registros de BOs da DEAM/Vitória. 2003 a 2008 Profissões Vítima Do lar Doméstica Auxiliar de Serviços Gerais Estudante Comerciária Vendedora Professora Funcionária Pública Manicuri Aposentada

Agressor Desempregado Do lar Pedreiro Comerciante Vendedor Aposentado Pintor Ajudante de pedreiro Motorista Proprietário

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Em relação à profissão das vítimas, observou-se que nos Bairros Jardim Camburi e São Pedro, o maior número de mulheres se classificou como sendo ‘do lar’, ou seja, em um dos bairros de maior poder aquisitivo e em um daqueles onde se situa a população mais pobre da cidade, as mulheres ainda tinham em comum a dependência econômica de seus maridos, companheiros e agressores. Além disso, essas mulheres compõem os grupos de mulheres com maior e menor nível de escolaridade, ou seja, em Jardim Camburi a maioria das mulheres que sofreram violência tinha curso superior e a maioria das mulheres que sofreram violência no Bairro de São Pedro eram analfabetas. Mas, não foram somente essas mulheres classificadas como sendo ‘do lar’. Nos BOs, no campo em que se registra a profissão da vítima, a maioria das mulheres foi classificada como sendo ‘do lar’ e ‘doméstica’ (18,4%). Mas, o que mais chama atenção em relação a elas é o fato de sua maioria ser solteira e, dentre as que informaram escolaridade, a maior parte tinha curso superior completo. A sequência de gráficos mostra claramente os resultados discutidos acima.

PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

269

MARIA BEATRIZ NADER

Gráfico 3 – Estado Civil

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Gráfico 4 – Escolaridade

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Gráfico 5 – Etnia da Vítima

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

270

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

Tomando esses dados sob outro anglo, observa-se que 23,7% das mulheres que sofreram violência moravam ou namoravam seus algozes, estavam na faixa etária de 26 a 30 anos (19,9%), eram pardas (42,2%) (gráfico 5) e, acrescentando alguns dados obtidos nos BOs, nasceram na Região Metropolitana de Vitória (37,1%) e moravam na Região Grande Maruípe. Contudo, este último fato pode não comprovar a realidade, pois só o fato de a DEAM-Vitória se localizar na região V, a sua proximidade à região de Maruípe, já favorece à denúncia de agressões sofridas pelas mulheres. Por seu turno, os homens, agressores mais denunciados (79,9%), eram 18,1% casados, 1,9% tinham curso superior, 3,14% estavam desempregado na época em que ocorreu o fato e 42,2% eram de cor parda. Chama atenção o fato de, no quadro profissão, 2,4% dos agressores (quadro 4) serem classificados como “do lar”. Em se tratando de homens fica a interrogação se isso denota que eles cuidavam apenas dos afazeres de sua própria casa, ou simplesmente trabalhavam em casa de família que não seria a própria, desenvolvendo atividades de jardineiros, motoristas, cozinheiros, ou seja, como domésticos. Segundo Madeira e Singer (1975) as mulheres, quando tem profissão de domésticas, desempenham atividades femininas tradicionais, como a prestação de serviços pessoais aos membros de sua própria família ou aos da família de outra mulher. Para os autores, doméstica, nos anos de 1970, era considerada pela sociedade como membro inferior na escala de produção do país e tinha uma situação social duplamente falsa: primeiro, porque desenvolvia um trabalho que não promovia a emancipação da mulher, segundo, porque se situava à margem da divisão social do trabalho. Agora, em se tratando de homem, quando o trabalho doméstico passou a expressar a noção do processo de alienação feminina e de sujeição da mulher ao homem, esse quadro é modificado. Para Bruschini (1999), as atividades desenvolvidas por homens e mulheres no mercado de trabalho tem a marca do gênero e, como após os anos de 1990, o conceito de trabalho foi alargado, os homens passaram a ocupar os espaços tidos como femininos. Contudo, nesses espaços, principalmente no que se refere às atividades domésticas, há uma relativa expansão da presença masculina. Outros dados que foram coletados e podem ser amplamente analisados se referem ao dia e ao horário da agressão que foi denunciada no período pesquisado (gráficos 6 e 7). PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

271

MARIA BEATRIZ NADER

Gráfico 6 – Dia do Boletim

Fonte: Boletins de ocorrência de DEAM/Vitória

Gráfico 7 – Horário das Ocorrências

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória

Durante o final de semana, a DEAM-Vitória permanece com suas portas fechadas ao atendimento às mulheres vítimas de violência. Isso implica observar que 25% das denúncias de agressão que são feitas na segundafeira e que as agressões geralmente ocorrem nos finais de semana, quando vítimas e agressores estão mais próximos uns dos outros. E, que o horário de maior concentração de agressões é no período da noite. Nos finais de semana há um maior índice de consumo de álcool e droga e as noites são intensamente utilizadas para diversão. Observa-se, ainda, que nas segundasfeiras as denúncias feitas na DEAM-Vitória dizem respeito, também à noite de sexta-feira, considerada pelos capixabas como a noite em que mais deve ser aproveitada para diversão. Assim, dentre os resultados apresentados neste trabalho, a confecção de um mapa da violência contra a mulher em Vitória, com gráficos e tabelas que privilegie bairros, características das pessoas envolvidas no processo e um 272

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

estudo sócio-demográfico da vítima e do agressor, ainda tem muito a ser feito. Contudo, no quadro 5, já se pode observar alguns resultados do mapeamento da violência contra a mulher em Vitória que se pretende realizar. Quadro 7 – Mapeamento de violência contra a mulher. Vitória/ES. Primeiro semestre de 2003 Números de ocorrências

Bairro com mais denúncias

Janeiro

147

Fevereiro

143

Março

116

Abril

112

Maio

93

Junho

121

Total

732

Jardim Camburi Jardim Camburi Jardim da Penha Jardim Camburi São Pedro III e V Jardim Camburi Jardim da Penha São Pedro III Joana D’Arc, Resistência e São Pedro V

Meses

Tipo de ocorrência por bairro Abandono do Lar J. Camburi – Ameaça J. da Penha – Lesão Corporal J. Camburi e São Pedro V – Ameaça São Pedro III – Agressão Física J. Camburi – Ameaça J. da Penha – Lesão Corporal Lesão Corporal e Ameaça Joana D’Arc – Lesão Corporal Resistência – Ameaça São Pedro V – Ameaça

Fonte: Boletins de Ocorrência de DEAM/Vitória.

Os resultados do mapeamento e do estudo sócio-demográfico propostos como finalidade da pesquisa que ora é em parte apresentada, fornecerão novos dados sobre a violência contra a mulher capixaba, contribuindo para que essa violência torne-se cada vez mais visível, criando novas ações que possam fomentar uma consciência crítica na comunidade capixaba.

Referências ARDAILLON, Danielle; GRIN DEBERT, Guita. (1987), Quando a vítima é mulher. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)/CEDAC). Dez. 1987. ARENDT, Hannah. Da violência. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1985. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado et all. Quarenta anos de demografia Histórica. Revista Brasileira de Estudos Populacionais. São Paulo, 22 (2), p. 339350, Julho/Dezembro. 2005. BANCK, Geert. Dilemas e símbolos: estudos sobre a cultura política do Espírito Santo. Vitória: IHGES, 1998. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

273

MARIA BEATRIZ NADER

BARATA, Rita Barradas & RIBEIRO, Manoel Carlos Sampaio de Almeida & MORAES, José Cássio de. Tendência temporal da mortalidade por homicídios na cidade de São Paulo, Brasil, 1979-1994. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro. 15(4): Outubro/Dezembro de 1999. http://www.scielo.br. BARCELLOS, Gilsa Helena. Violência física/sexual contra a mulher na relação conjugal: análise de casos de violência conjugal denunciados às Delegacias da Mulher do Estado do Espírito Santo. (1998) 222 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia). Programa de Pós-Graduação em Fundamentos Evolutivos e Sociais do Comportamento, da Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 1998. BEATO, Cláudio. Determinantes da criminalidade em Minas Gerais. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 13 (37), jun. 1998. BESSE, Susan. Crimes passionais e campanha contra os assassinatos de mulheres no Brasil. 1910-1940. Revista Brasileira de História. São Paulo, número 18, p. 181197, agosto/setembro de 1989. BILICH, Jeanne e RODRIGUES, Márcia Barros Ferreira. Amylton de Almeida: o “guerreiro pelos ideais” pela liberdade, democracia e cidadania (1980-1989). Revista Agora. Vitória, número 2: p. 1-32, 2005. BOSELLI, Giane Cristini. Instituições, gênero e violência: um estudo da Delegacia da Mulher e do Juizado Criminal. (2003) 147 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Estadual Paulista, Campinas, 2003. BRUSCHINI, Cristina. Mudanças e persistência no trabalho feminino (Brasil, 1985 a 1995). In. SAMARA, Eni de Mesquita. (org.) Trabalho feminino e cidadania. São Paulo: Humanitas, 1999. p. 29-55. CALVO, Enrique Gil. Máscaras masculinas: héroes, patriarcas y monstruos. Barcelona: Editorial Anagrama, 2006. CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei. 1889-1930. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. COELHO, Carolina Marra Simões. Cidadania em políticas públicas voltadas para mulheres em situação de violência de gênero. 2005. 168 f. (Dissertação de Mestrado em Psicologia Social). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. CORREA, M. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal, 1983. COVOLAN, Nádia Terezinha Covolan et all. Mapeamento e Estabelecimento de Redes de Conscientização e Defesa dos Direitos das Mulheres no Combate à Violência Doméstica nos Municípios do Litoral do Paraná. Projeto da Universidade 274

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

A VIDA EM DESUNIÃO: VIOLÊNCIA, GÊNERO E DENÚNCIA

sem Fronteiras, Secretaria do Estado de Ciência e Tecnologia/Paraná (SETI), apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero 8, da Universidade de Santa Catarina, em agosto de 2008. D’AVILA NETO, Maria Inácia. O autoritarismo e a mulher: o jogo da dominação macho-fêmea no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. DANTAS-BERGER, Sônia Maria e GIFFIN, Karen. A violência nas relações de conjugalidade: invisibilidade e banalização da violência sexual? Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro 21(2), p. 417-425 Março./Abril. 2005. DELLASOPPA, Emílio & BERCOVICH, Alicia & ARRIAGA, Eduardo. Violência, direitos civis e demografia no Brasil na década de 80: o caso da área metropolitana do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, 14 (39), fevereiro/1999. DINIZ, Alexandre M. A. Migração, desorganização social e violência urbana em Minas Gerais. RA’E GA – O Espaço Geográfico em Análise. Editora da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, número 9: p. 9-23, 2005. DRUMOND JÚNIOR, M. Homicídios e desigualdades sociais na cidade de São Paulo: uma visão epidemiológica. Saúde e Sociedade. São Paulo, 8 (1): p. 63-81, Janeiro/fevereiro de 1999. FELIX, Sueli. A. Geografia do crime: interdisciplinaridade e relevâncias. Marília: Unesp Marília Publica, 2002. FREITAS, Eni Devay de & PAIM, Jairnilson Silva & COSTA, Maria da Conceição Nascimento & SILVA, Lígia Maria Vieira da. Evolução e distribuição espacial da mortalidade por causas externas em Salvador. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 16 (4), p. 1059-1040, outubro/dezembro. 2000. Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Banco de Dados Agregados. SIDRA. Censos Demográficos do Espírito Santo: 1970, 1980, 1991 e 2000. Disponível em: http:// www.ibge.gov.br IZUMINO, Wânia Pasinato. Justiça e violência contra a mulher: o papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. São Paulo: USP/ FAPESP, 1998. JARDIM PINTO, Céli Regina. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 2003. LANGLEY, Roger & LEVY, Richard. Mulheres espancadas: fenômeno invisível. São Paulo: HUCITEC, 1980. LIMA, Lana Lage da Gama. Penitentes e solicitantes: gênero, etnia e poder no Brasil Colonial. In. Nader, Maria Beatriz & FRANCO, Sebastião Pimentel & SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.) História, mulher e poder. Vitória: PPGHIS, 2006. p. 100-219. PARTE III – CONSTRUINDO FRONTEIRAS, FIXANDO IDENTIDADES

275

MARIA BEATRIZ NADER

LIMA, Renato. Conflitos sociais e criminalidade urbana: uma análise dos homicídios cometidos no município de São Paulo. São Paulo, 2000. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Sociologia, Universidade São Paulo, São Paulo, 2000. 112 p. MADEIRA, Felícia R.; SINGER, Paul I. Estrutura do emprego e trabalho feminino no Brasil: 1920-1970. Caderno CEBRAP, São Paulo, n. 13, 1975. MELLO JORGE, Maria Helena Prado de & GAWRYSZEWSKI, Vilma Pinheiro & LATORRE, Maria do Rosário D. Análise dos dados de mortalidade. Revista Saúde Pública. Número 31 (4º Suplemento): p. 5-25, 1997. http://www.scielo.br. Acesso em janeiro de 2009. MINAYO, Maria Cecília de Souza. A violência na adolescência: um problema de Saúde Pública. Cadernos de Saúde Publica. 6 (3): p. 278-292, 1990. Site http:// www.scielo.br. Acesso em dezembro de 2008. MINAYO, Maria Cecília de Souza & SOUZA Edinilsa R. Violência para todos. Cadernos de Saúde Púbica. Rio de Janeiro 9 (1): 65-78, janeiro/março, 1993. Site http://www.scielo.br. MIRANDA, Ana Paula de. & PINTO, Andréia Soares & LAGE, Lana. (orgs.) Dossiê Mulher – Atualizado. Série Estudos. Número 1. Rio de Janeiro: Instituto de Segurança Pública (ISP), 2006. MORRISON, Andrew R. & BIEHL, Maria Loreto. A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000. NADER, Maria Beatriz & FRANCO, Sebastião Pimentel & SILVA, Gilvan Ventura da. (orgs.) História, mulher e poder. Vitória: PPGHIS, 2006. ______. Mulher: do destino biológico ao destino social. 2ª ed. Vitória: EDUFES, 2001. ______. Violência sutil no ambiente doméstico: uma nova abordagem de um velho fenômeno. In. NADER, Maria Beatriz & FRANCO, Sebastião Pimentel & SILVA, Gilvan Ventura da (orgs). História, mulher e poder. Vitória: EDUFES, 2006. 235-252. NADER, Maria Beatriz & LIMA, Lana Lage da Gama (orgs.) Família, Mulher e Violência. Revista Rumos da História, Programa de Pós-Graduação em Mestrado em História Social das Relações Políticas, Vitória, Número 8, 2007. Revista Presença da Mulher, São Paulo, 4 (20), 1991. SOARES, Luis Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia de Letras, 2000. ZURUTUZA, Cristina. Maus-tratos à mulher nas relações de casal; estratégias utilizadas pelo Movimento de Mulheres Latino Americano. In. Seminário Regional sobre Normatividade penal e mulher na América latina e Caribe – Mulheres: Vigiadas e castigadas. São Paulo, 1995. p. 89-120. 276

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

REFERÊNCIAS DAS ILUSTRAÇÕES Identidade cultural e relações interétnicas grecoindígenas na Magna Grécia. O sentido da iconografia dos instrumentos musicais na cerâmica ápula (séculos V e IV a.C.) Mapa 1:

Adaptado de De Juliis (1996, p. 198, n. 191)

Figura 1: Cerqueira, 2001, cat. 387 Figura 2: Trendall, 1989, n. 154-55 Figura 3: Cerqueira, 2001, cat. 405 Figura 4: De Juliis, 1996, n. 247 Figura 5: Trendall, 1989, n. 147 Figura 6: Bundrick, 2000, cat. 75, fig. 9 Figura 7: Trendall, Combitoglou, 1982, pr. 205.5-6, n. 18.357 Figura 8: Trendall, Combitoglou, 1978, pr. 53.4-5, n. 7.8 Figura 9: Margot Schmidt, 1996, n. 214 Figura 10: Trendall, 1978, pr. 156.1-2, n. 16.57 Figura 11: Trendall, 1989, n. 189 Médicos, teorias raciais e campos de concentração alemães no sudoeste africano durante o Segundo Reich Figura 2: < http://en.wikipedia.org/wiki/Heinrich_Wilhelm_Gottfried_ von_Waldeyer-Hartz>. Acesso em 18 jan. 2012. Figura 3: http://www.ezakwantu.com/gallery%20Hereroand%20 Namaqua%Genocide.htm. Acesso em 18 jan. 2012. Figura 4: < http://de.wikipedia.org/wiki/Aufstand_der_Herero_und_ Nama>. Acesso em 18 jan. 2012 Figura 5: . Acesso em 18 jan. 2012

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

277

REFERÊNCIAS DAS ILUSTRAÇÕES

Figura 6: . Acesso em 18 jan. 2012 Figura 7: . Acesso em 18 jan. 2012 Figura 8: . Acesso em 18 jan. 2012 Figura 9: . Acesso em 18 jan. 2012 Figura 10: . Acesso em 18 jan. 2012 A Zona, entre Paris e sua periferia Figura 1: PINOL & GARDEN (2009) Figura 2: Mapa confeccionado por Frédéric Moret Figura 3: PINOL & GARDEN (2009)

278

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

SOBRE OS AUTORES ADRIANA PEREIRA CAMPOS é professora dos Programas de Pós-Graduação em História e em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em História pela mesma instituição, doutora em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora do Centro de Estudos do Oitocentos (Ceo) e bolsista produtividade do CNPq. ANTÔNIO CARLOS AMADOR GIL é professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor e pós-doutor em História pela Universidade de São Paulo e coordenador do Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias (LEHPI). FÁBIO VERGARA CERQUEIRA é professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas e doutor em Antropologia Social, com concentração em Arqueologia Clássica, pela Universidade de São Paulo. FRÉDERIC MORET é Maître de Conférence da Université Paris-Est, pesquisador do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição, mestre em História pela Universidade de Paris 10 e doutor em História pela Universidade de Paris 7. GABRIELLE FRIJA é Maître de Conférence em História Romana da Université Paris-Est, pesquisadora do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição e doutora em História pela École Pratique des Hautes Études (Paris). GENEVIÈVE BÜHRER-THIERRY é professora de História da Idade Média da Université Paris-Est, diretora do Laboratório de Análise Comparada dos Poderes da mesma instituição, mestra e doutora em História Medieval pela Université de Paris-IV (Sorbonne) e diretora da revista Médievales, da Presses Universitaires de Vincennes. GILVAN VENTURA DA SILVA é professor dos Programas de Pós-Graduação em História e em Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em História pela Universidade de São Paulo, pesquisador do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano (Leir) e bolsista produtividade do CNPq. TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

279

SOBRE OS AUTORES

JULIO BENTIVOGLIO é professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestre em História pela Universidade Estadual Paulista, doutor em História pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos do Oitocentos (Ceo) e do Laboratório de Estudos de História Política e das Ideias (LEHPI). LUCIA MARIA PASCHOAL GUIMARÃES é professora do Programa de PósGraduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestra em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo com pós-doutorado na mesma instituição, livre docente em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista produtividade do CNPq e pesquisadora do Pronex CNPq/Faperj. MARIA BEATRIZ NADER é professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, mestra em Educação e doutora em História pela Universidade de São Paulo, pós-doutora em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense e coordenadora do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência. MODESTO FLORENZANO é professor do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, doutor e livre docente em História pela mesma instituição. MANUELA MARTINS é professora catedrática em Arqueologia da Universidade do Minho, doutora em Arqueologia pela mesma instituição, responsável pela Unidade de Arqueologia da U. Minho e investigadora do CITCEM/FCT.

280

TERRITÓRIOS, PODERES, IDENTIDADES - A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ENTRE A POLÍTICA E A CULTURA

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.