Tese de doutorado: O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida

GIS LENE EDW IGES DE LACERDA

Rio de Janeiro 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida

Gislene Edwiges de Lacerda

Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de História da UFRJ como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de doutor em História Social. Linha de pesquisa: Sociedade e Política

Orientadora: Profa. Dra. Maria Paula Nascimento Araujo

Rio de Janeiro 2015

Gislene Edwiges de Lacerda O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida Orientadora: Profa. Dra. Maria Paula Nascimento Araujo

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutora em História Social.

Examinada por:

_________________________________________________ Orientadora: Profa. Dra. Maria Paula Nascimento Araujo Universidade Federal do Rio de Janeiro

_________________________________________________ Profa Dra Andrea Casa Nova Maia Universidade Federal do Rio de Janeiro

_________________________________________________ Profa Dra Angélica Müller Universidade Salgado de Oliveira / Paris 1

_________________________________________________ Profa Dra Claudia Cristina de Mesquita Garcia Dias Museu da Imagem de do Som – RJ

_________________________________________________ Prof. Dr. João Roberto Martins Filho Universidade Federal de São Carlos

Rio de Janeiro 2015

Aos militantes do Movimento Estudantil de ontem, de hoje e de amanhã, sujeitos e continuadores desta história.

AGRADECIMENTOS

O caminho de escrita acadêmica, por mais que pareça ser um andar solitário, não se trilha só. Nestes quatro anos pude contar com passos que caminharam comigo e fizeram da minha estrada mais leve, do caminhar mais confiante e do desejo de chegar cada vez mais vivo. Faço aqui meus agradecimentos aos que caminharam comigo neste percurso, com os quais divido a alegria da conclusão desta tese de doutorado. Primeiramente, à professora Dra Maria Paula Nascimento Araujo, que me orientou neste caminho com intervenções precisas, incentivando e apostando em mim e neste trabalho mesmo quando achava que não conseguiria conclui-lo. Maria Paula, obrigada por todo aprendizado humano, acadêmico e docente durante estes anos. Ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a sua coordenação, professores e funcionários. Em especial, ao professor Dr. Carlos Fico, pelas importantes contribuições ao meu projeto durante a disciplina cursada no inicio do doutorado; À professora Dra Andrea Casa Nova pelo incentivo e pela importante contribuição dada a este trabalho na banca de qualificação; À Sandra, funcionária do PPGHIS que sempre me recebeu com alegria e dedicação em tudo que precisei junto à secretaria. A todos da UFRJ que me acolheram nesta instituição e contribuíram com este trabalho. À CAPES (Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), pela bolsa concedida que subsidiou o desenvolvimento desta tese. A professora Dra Angélica Müller, pelas importantes contribuições realizadas a este trabalho em minha banca de qualificação e pela importante interlocução que se manteve em torno dos estudos sobre o movimento estudantil. Ao Carlos Menegozzo pela importante contribuição a este trabalho compartilhando de suas pesquisas e escritos que dialogaram diretamente com o tema desta tese. Agradeço também pela disponibilidade em me receber na Fundação Perseu Abramo para pesquisa no acervo do Centro de Documentação Sérgio Buarque de Holanda. Ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) e ao Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ) pela oportunidade de consultar os documentos aí arquivados. A Fernanda Abreu, Taiz Rodrigues e Isadora Gomes que contribuíram com a pesquisa das fontes nestes acervos. Aos entrevistados desta pesquisa, meu sincero agradecimento por compartilharem de suas memórias de um período tão significativo de suas trajetórias pessoais, sem as quais este

trabalho não seria possível! A Clarissa Mainardi pela dedicação na transcrição destas entrevistas. Aos amigos Lívia Monteiro e Denilson Castro, pessoas fundamentais neste caminho! Obrigada pela sempre generosa acolhida alegrando meus dias no Rio de Janeiro! A Lívia, pela escuta amiga; pela pareceria acadêmica, especialmente nos caminhos da história oral; e pela leitura atenta deste trabalho, meu sincero agradecimento! A amiga Gianne Chagastelles, pelo companheirismo, motivação e importantes contribuições nestes anos de doutorado. Ao amigo Juliano Sobrinho, por toda história compartilhada neste caminho! Sua trajetória inspira a minha! Aos amigos da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Sistema Degraus de Ensino que motivaram e compartilharam comigo do inicio desta trajetória! Aos amigos do Colégio São Domingos e do Curso de História da Universidade Nove de Julho que de perto acompanharam os últimos anos deste caminho. Obrigada por compartilharem comigo este momento com escuta atenta, conversa acolhedora e motivação constante. Ao meu marido, Fred Assunção, obrigada pelas sugestões, paciência, dedicação e motivação ao longo destes anos, sempre me mostrando que eu podia ir além. Obrigada pelo amor e companheirismo que me sustentou neste caminho! Aos meus pais, Maria José e Antônio Lacerda, obrigada pela dedicação de uma vida e pelo amor, sem os quais não seria possível trilhar este caminho! Aos meus avós Joaquim e Maria das Dores, pelo carinho e constantes orações! Aos meus irmãos Gisele e Washington, cunhados José Augusto e Mônica, pelo apoio! Ao querido sobrinho Lucas, por alegrar e dar sentido aos meus dias! Aos meus eternos amigos, pelo carinho constante que me fez caminhar e chegar até aqui! A Deus, pelo sonho que vai sempre além! Obrigada!

No país da desmemória, todo mundo se esquece, ninguém lembra. E vão-se perdendo as referências das coisas importantes. No país da desmemoria, o importante é o descaso, o resto é desimportante mas, de quando em vez, aparece alguém sensível com coragem para arriscar seu tempo e outras coisas, para reavivar os mortos-vivos, legar memória aos que virão e lembrar que sempre existirá resistência e bravura para lutar pela liberdade. [...] Luiz Humberto – 19791 1

Manuscrito encontrado na abertura de GURAN, Milton. O Encontro na Bahia: XXXI Congresso da UNE. Brasília: Galilei, 1979. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – AMORJ. (Coleções Institucionais: Movimento Estudantil).

RESUMO

LACERDA, Gislene Edwiges de. O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida. 2015. 216f. Tese (Doutorado em História Social). Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015. Esta tese aborda a trajetória do movimento estudantil durante a ditadura militar brasileira, no período entre 1973 e 1985, analisando o papel deste grupo no processo de transição democrática a partir das memórias de seus ex-militantes. A reorganização do movimento estudantil e a nova tática na luta política nos anos 1970, designou a ele o pioneirismo no retorno às manifestações de ruas pós-1968, sendo o ano de 1977 o momento auge deste processo. As mobilizações do movimento estudantil envolveram os demais movimentos sociais que, unidos pela bandeira das liberdades democráticas, foram responsáveis por alargar os limites impostos pelo projeto de abertura “lenta, gradual e segura” proposto pelos militares. No entanto, o período da transição democrática ainda se constitui como um campo em disputa na memória sobre a Ditadura. As narrativas estudantis da geração da transição demandam pelo seu reconhecimento no tempo presente, demonstrando um ofuscamento da importância política dos estudantes neste contexto. O esquecimento desta geração é reflexo do modelo de transição pactuada vivenciado no Brasil e do processo de construção da memória sobre a Ditadura, marcado pelas políticas de memória do Estado, por ações de memória do próprio movimento e por produções memorialísticas sobre o movimento estudantil da transição em curso desde os anos 1970. Palavras-chave: Movimento estudantil, transição democrática, ditadura, memória, União Nacional dos Estudantes (UNE), geração da transição democrática.

ABSTRACT

LACERDA, Gislene Edwiges de O movimento estudantil e a transição democrática brasileira: memórias de uma geração esquecida. 2015. 216p. Thesis (Ph.D. in Social History). Graduate Program in Social History, History Institute, Federal University of Rio de Janeiro, 2015. This paper talks about the trajectory of the student movement in the military dictatorship, in the period between 1973 and 1985, analyzing the role of this group in the Brazilian democratic transition based on the memories of its former militants. The reorganization of the student movement and the new tactics employed in the political struggle in 1970’s appointed it as the pioneering reemergence of the post-1968 street protests, having in 1977, the peak moment of this process. The mobilization of the student movement involved other social movements, that, united under the flag of democratic freedoms, were responsible for extending the limits imposed by the "slow, gradual and safe" opening project proposed by the military forces. However, the period of democratic transition is still a field in dispute in the memory of the dictatorship. The students’ narratives indicate a blurring of the political importance of the students in this context expressed in the demand of the transition generation for their recognition in this present time. Forgetting this generation reflects the agreed model of transition experienced in Brazil and the dictatorship’s memory construction process, marked by the State’s memory policies and the movement itself and by productions of memory about the transition’s student movement. Keywords: Student movement, democratic transition, dictatorship, memory, National Union of Students (UNE), generation of democratic transition.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABI AESI AI-5 ALN AMORJ AP APERJ APML ARENA CACO CAOC CCA CDPP CEB CeUPES CNV CO COLINA CONEB COPASA CSBH CRUSP CS CUCA DA DCE DEE DEOPS DI-GB DGIE DNE DOI-CODI DS ECA EEE ENE EUA FAU FGV FPA IFRJ JOC JUC LIBELU MDB ME MEC

Associação Brasileira de Imprensa Assessoria Especial de Segurança e Informação Ato Institucional nº 5 Aliança Libertadora Nacional Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro Ação Popular Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro Ação Popular Marxista Leninista Aliança Renovadora Nacional Centro Acadêmico Cândido de Oliveira Centro Acadêmico Oswaldo Cruz Conselho de Centros Acadêmicos Comissão de Defesa dos Presos Políticos Comunidade Eclesial de Base Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais Comissão Nacional da Verdade Conselho Universitário Comando de Libertação Nacional Conselho Nacional das Entidades de Base Companhia de Saneamento de Minas Gerais Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e História Política Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo Convergência Socialista Circuito Universitário de Cultura e Arte Diretório Acadêmico Diretório Central dos Estudantes Diretório Estadual dos Estudantes Departamento de Ordem Política e Social Dissidência da Guanabara Departamento Geral de Investigações Especiais Diretório Nacional dos Estudantes Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna Democracia Socialista Escola de Comunicação e Artes Encontro Estadual de Estudantes Encontro Nacional de Estudantes Estados Unidos da América Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Fundação Getúlio Vargas Fundação Perseu Abramo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro Juventude Operária Católica Juventude Universitária Católica Liberdade e Luta Movimento Democrático Brasileiro Movimento Estudantil Ministério da Educação e Cultura

MEP Movimento de Emancipação do Proletariado MPB Música Popular Brasileira MR-8 Movimento Revolucionário Oito de outubro OAB Ordem dos Advogados do Brasil OIT Organização Internacional do Trabalho ORM-DS Organização Revolucionária Marxista - Democracia Socialista OSI Organização Socialista Internacionalista PCB Partido Comunista Brasileiro PCdoB Partido Comunista do Brasil PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro POC Partido Operário Comunista POLOP Política Operária PT Partido dos Trabalhadores. PUC-Minas Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais PUC-Rio Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SDH Semana de Direitos Humanos TCC Trabalho de Conclusão de Curso TL Teologia da Libertação UBES União Brasileira dos Estudantes Secundaristas UNE União Nacional dos Estudantes UEE União Estadual dos Estudantes UEL Universidade Estadual de Londrina UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro UFBA Universidade Federal da Bahia UFJF Universidade Federal de Juiz de Fora UFMG Universidade Federal de Minas Gerais UFPA Universidade Federal do Pará UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFSCar Universidade Federal de São Carlos UFF Universidade Federal Fluminense UME União Metropolitana dos Estudantes UMES União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas UNICAMP Universidade Estadual de Campinas URSS União das Repúblicas Socialistas Soviéticas USP Universidade de São Paulo VAR-Palmares Vanguarda Armada Revolucionária Palmares

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................................................14

PARTE

I

– HISTÓRIA E MEMÓRIA: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL

NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA NARRADA POR SEUS MILITANTES

CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA POLÍTICA.............................................................22 CAPÍTULO 2 – AS “NOVAS

TENDÊNCIAS”

NA

REORGANIZAÇÃO

DO

MOVIMENTO

ESTUDANTIL: O DEBATE EM TORNO DA LUTA PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS..............

32

CAPÍTULO 3 – O MOVIMENTO ESTUDANTIL NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA BRASILEIRA......66 3.1 A reorganização do movimento estudantil nas universidades......................................72 3.2 O retorno dos estudantes às ruas em 1977 e as lutas políticas de 1977 1980.....................................................................................................................................91 3.3 O III ENE em Belo Horizonte........................................................................................103 3.4 A invasão da PUC-SP.....................................................................................................109 3.5 O Congresso da UNE em Salvador – 1979 ...................................................................112 3.6 A polícia política e o Movimento Estudantil: a “repressão” na transição................117

PARTE

II

– MEMÓRIAS

EM CONFLITO, POLÍTICAS DE MEMÓRIA E EVENTOS DE

MEMORIALIZAÇÃO

CAPÍTULO 4 – MEMÓRIA EM CONSTRUÇÃO, MEMÓRIAS EM DISPUTA..................................125 4.1 O lugar da transição democrática nas memórias estudantis sobre a ditadura militar...............................................................................................................................132 4.2 Memória e reconhecimento............................................................................................138 CAPÍTULO 5 – O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DA TRANSIÇÃO..............................................................................................................................143

5.1 As produções memorialísticas sobre o movimento estudantil e a memória da transição...........................................................................................................................143 5.2 Os eventos de memorialização sobre o movimento estudantil da transição..............149 5.2.1 O Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos......................149 5.2.2 A Exposição 30 Anos III ENE em Belo Horizonte.................................................153

CAPÍTULO 6 – JUSTIÇA

DE TRANSIÇÃO E AS POLÍTICAS DE MEMÓRIA NO

BRASIL

PÓS-

DITADURA................................................................................................................................157

6.1 Os caminhos da justiça de transição no Brasil.............................................................157 6.2 As políticas de memória para o movimento estudantil e os usos do passado............169 6.3 Anistia para a geração da transição: o caso Jânio Oliveira Bragança.......................181 6.4 O Memorial da Resistência de São Paulo e a construção de uma memória sobre a ditadura militar.....................................................................................................................183 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................................190 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................193 ANEXOS................................................................................................................................201

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INTRODUÇÃO Este trabalho nasceu de um processo anterior de envolvimento com o tema. O movimento estudantil tornou-se objeto de interesse, em primeiro lugar, no campo da experiência militante, enquanto estudante de graduação em História e militante da gestão do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) 2. Desta experiência nasceram as dúvidas que me conduziram à pesquisa histórica, pautada no desejo de aprofundar o conhecimento sobre o movimento que me iniciava na consciência política e, ao mesmo tempo, entender o que levava nossos colegas militantes a sempre mencionarem o passado do movimento estudantil no período ditatorial como um tempo que deveria ser referência para a mobilização estudantil no presente. Instigava-nos um saudosismo de um tempo não vivido, mas alimentado na memória coletiva como um tempo auge na luta e mobilização política por parte do movimento estudantil. Embora a militância estudantil pessoal tenha sido por um curto período de tempo, o movimento estudantil não deixou de ser foco de interesse, a partir de então, no campo acadêmico. O movimento estudantil foi objeto de pesquisa já em nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de graduação no curso de História da UFJF, intitulado O Movimento Estudantil em Juiz de Fora e sua atuação do governo Geisel à anistia (1974 a 1979). O tema foi ampliado para a pesquisa de mestrado desenvolvida no Programa de PósGraduação em História da UFJF, onde apresentamos a dissertação “As esquerdas entre os estudantes: memória dos militantes estudantis juizforanos durante a transição democrática brasileira (1974-1985)”, posteriormente publicada em livro3. A partir de questões suscitadas no desenvolvimento da pesquisa de mestrado, chegamos à temática deste trabalho de doutoramento, lapidado ao longo dos anos de seu desenvolvimento. A amplitude do tema levou-nos à necessidade de estabelecer, desde o início, um recorte temporal para a abordagem do movimento no período ditatorial. Destacava-se nosso interesse pela compreensão da atuação do Movimento Estudantil (ME) no processo de transição brasileira justificado, especialmente, pelo silêncio historiográfico sobre o período transicional percebido pelas poucas produções acadêmicas dedicadas a este estudo e a nossa hipótese inicial sobre a importância do movimento estudantil na luta política pelas liberdades

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Faço referencia à gestão DCE Até o Fim, do DCE da Universidade Federal de Juiz de Fora, entre 2005-2006. LACERDA, Gislene Edwiges de. Memórias de Esquerda: o movimento estudantil em Juiz de Fora de 1974 a 1985. Juiz de Fora: Editora Funalfa, 2011. 3

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democráticas empreendida por movimentos da sociedade civil entre 1974 e 1985, responsáveis pelo alargamento dos limites da abertura “lenta, gradual e segura” proposta pelos militares. À análise histórica de seu papel político neste período pouco estudado pela historiografia somou-se o interesse pelo estudo da memória compartilhada pelos militantes estudantis do contexto transicional sobre o significado da luta estudantil desenvolvida naquele momento histórico e a memória sobre a geração estudantil da transição democrática. Entre os trabalhos acadêmicos mais recentes, que estabelecem diálogo com nossa abordagem nesta tese, destacamos os trabalhos de Renato Cancian (2010) 4 e de Angélica Müller (2010) 5. Renato Cancian, em sua tese de doutorado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), posteriormente publicada em livro, aborda a história do movimento estudantil durante a década de 1970, com ênfase ao Ato Público ocorrido na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e marcado pela repressão policial em 1977. O foco deste autor foi averiguar a trajetória de vida de um grupo de ex-militantes estudantis daquele período, compreender como esses ex-estudantes se vincularam ao movimento estudantil e qual a influência daquela militância na vida de cada um pós-universidade. Desta forma, o trabalho de Cancian procurou recuperar a trajetória do movimento estudantil na década de 1970 a partir da compreensão de sua dinâmica interna, pautada nas tendências estudantis, valorizando uma narrativa das lutas empreendidas pelo movimento, especialmente entre 1973 e 1977. Por sua vez, a tese de doutorado de Angélica Müller, intitulada A resistência do Movimento Estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena pública (19691979), a trajetória política do movimento estudantil entre 1969, após o Congresso de Ibiúna, e 1979, com a reconstrução da UNE. Em sua tese, a autora apresenta o movimento estudantil ativo no referido período, que resistiu dentro dos limites de uma época de intenso fechamento político. A autora também realiza um importante estudo historiográfico das tendências estudantis e da retomada do movimento a partir de meados dos anos 1970, destacando suas principais lutas e seu protagonismo político. Ademais, Angélica Müller,

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CANCIAN, Renato. Movimento Estudantil e repressão política: o ato público na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977) e o destino de uma geração de estudantes. São Carlos: Editora UFSCAR, 2010. 5 MÜLLER, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena pública (1969-1979). 2010. 266f. Tese (Doutorado em História Social). – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne. São Paulo / Paris, 2010.

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analisa a instrumentalização política do passado pelo movimento estudantil, em especial percebendo os usos políticos do passado durante a reconstrução da UNE. Nesta tese, buscamos avançar na análise realizada nestes trabalhos, voltando nossa atenção a todo o período de transição democrática, que vai de meados dos anos 1970 a meados dos anos 1980. Nosso trabalho também se dispôs a ultrapassar a abordagem historiográfica do período a partir exclusivamente de fontes documentais do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) e do próprio movimento estudantil, conforme seguiram estes trabalhos. Buscamos avançar em uma abordagem da memória também como objeto de pesquisa, tanto por basear nossa narrativa a partir do olhar militante, quanto por entender esta memória como reveladora de um conflito no tempo presente. Tal ponto não foi colocado como objetivo nas pesquisas de Angélica Müller e de Renato Cancian, apesar da utilização de fontes orais e da percepção do movimento estudantil em sua complexidade como um movimento social que produziu, por vezes, um discurso sobre si mesmo. As teses de Angélica Müller e de Renato Cancian possuem um importante diferencial, se comparada a outras produções acadêmicas produzidas, até aquele momento, sobre o tema, esquivando do enfoque na geração de 19686 e expandindo a abordagem da geração da luta pelas liberdades democráticas e, portanto, tornaram-se referencial neste trabalho. Anterior aos trabalhos de Cancian e de Müller, vale destacar a dissertação de mestrado de Mirza Maria Baffi Pellicciotta 7 , defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 1997. A autora, precursora na abordagem das movimentações estudantis nos anos 1970, refutava as explicações existentes no meio acadêmico, que se referiam a um completo desmantelamento do movimento estudantil após 1968 8 . Pellicciotta realizou um grande balanço bibliográfico e também examinou uma vasta documentação produzida pelo movimento estudantil nos anos 1970. Como resultado, seu estudo apontava para um novo cenário político nos anos 1970 e para as novas táticas e estratégias empreendidas pelo

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Sobre o Movimento Estudantil nos anos 1960 destacam-se os estudos de João Roberto Martins Filho, entre eles: MARTINS FILHO, J.R.. Movimento estudantil e ditadura militar, 1964-68. Campinas: Papirus, 1987; MARTINS FILHO, J.R.. O movimento estudantil dos anos 1960. In: FERREIRA, Jorge e REIS, Daniel Aarão (Org.). As esquerdas no Brasil - Revolução e democracia. 1964(...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, v. 3, p. 183-198. 7 PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Uma aventura política: as movimentações estudantis dos anos 70. 1997. 262f. Dissertação (Mestrado em História) − Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997. 8 Mirza Pellicciotta refere-se aos trabalhos POERNER, Arthur. O poder jovem, (publicado pela primeira vez em 1968, e reeditado em 1977, 1979 e 1995) e ALBUQUERQUE, José Augusto Guilhon de (Coord.). Classes médias e política no Brasil (publicado em 1977) que, segundo a autora, afirmariam a “interrupção da estrutura política tradicional do Movimento Estudantil em 1968 e põe fim à trajetória histórica desenvolvida até então”. Assim, para a autora, tais trabalhos contribuíram para um olhar de derrota e de desmantelamento do ME, desmotivando, assim, as pesquisas históricas sobre o período (PELLICCIOTTA, 1997, p. 7).

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movimento estudantil naquele contexto. No entanto, como ocorre com outros trabalhos precursores, apresenta limites em sua abordagem, em especial por não contemplar a dinâmica interna do movimento marcada pela pluralidade de tendências e orientações políticas. Para além disto, a autora nos aponta aspectos importantes para a compreensão do papel político do ME na transição brasileira, neste ponto, estabelecendo importante diálogo com este trabalho. Por outro lado, no estudo da pesquisadora ficaram de fora as reflexões sobre as características das memórias do movimento estudantil, conforme nos propomos neste trabalho. Entre outras produções acadêmicas que possuem um importante diálogo com este trabalho, destaco A UNE e o mito do poder jovem, de Alberto Saldanha. Nesta obra, o autor aborda a construção do mito do poder jovem a partir do livro de Arthur Poerner, O poder jovem. Seu objetivo não foi o de reconstruir a história da UNE, mas analisar as múltiplas interpretações construídas pelo movimento estudantil sobre episódios que marcaram sua história, e que, a despeito do maior ou menor grau de eficácia política, são fundamentais para entender a sua identidade. Para esta pesquisa, esse estudo de Saldanha é importante por interpretar a trajetória do movimento estudantil a partir da percepção dos momentos de maior mobilização de história e memória, bem como apreende como esses momentos são formadores de uma identidade em torno de um mito sobre a participação estudantil e seu papel na história, capaz de gerar uma memória compartilhada por gerações de militantes. Outro importante diálogo é estabelecido com as produções historiográficas da historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Maria Paula Nascimento Araujo9. Diversos pontos deste trabalho se aproximam de observações de Araujo, como o processo de transição democrática brasileira e o papel dos movimentos de oposição nesta luta política; a história da União Nacional dos Estudantes e do movimento estudantil brasileiro; as novas esquerdas nos anos 1970 e as tendências estudantis; o uso da história oral e da memória como fonte e objetivo de análise histórica; e, por fim, no campo da compreensão da constituição da memória da geração da transição e dos conflitos de memória 9

Entre as publicações da autora utilizadas como referencial neste trabalho, destacamos: ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: As novas esquerdas no Brasil e no mundo da década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000; _____. Memórias estudantis – Da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2007; _____. Estratégias de resistência e memória da luta contra o regime militar no Brasil (1964 – 1985). In.: MARTINS FILHO, João Roberto. O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas. São Carlos: EdUFSCar, 2006; _____. A luta democrática contra o regime militar na década de 1970. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Orgs.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração (EDUSC), 2004; _____. Lutas democráticas contra a ditadura. In.: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (Orgs). Revolução e democracia (1964...). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007; _____. ; SEPÚLVEDA, Myrian. História, memória e esquecimento: implicações políticas. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, 2007; _____. História, memória e esquecimento: implicações políticas. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, 2007.

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que a envolvem. Deste modo, esta autora torna-se uma de nossas principais interlocutoras, constituindo-se como um importante referencial em diferentes capítulos deste trabalho. A metodologia que orientou o recolhimento dos 20 depoimentos de ex-militantes estudantis foi a história oral. Os entrevistados foram definidos a partir do grau de participação nessa esfera, da representatividade entre as tendências de esquerda do movimento estudantil e a instituição de ensino a qual pertencia, bem como ao período de participação dentro do recorte cronológico definido. Foram entrevistados 10 Alon Feuerwerker; Amâncio Paulino Carvalho; Beatriz Bicudo Tibiriçá; Clara Maria de Oliveira Araújo; Eladir de Fátima dos Santos; Ignacio José Godinho Delgado; Jânio Oliveira Bragança; José Pimenta; Júlio Turra Filho; Laís Wendel Abramo; Laura Camargo Macruz Feuerwerker; Lígia Bahia; Luiz Mariano Paes de Carvalho Filho; Marcelo Ayres Camurça Lima; Márcio Antonio Marques Gomes; Markus Sokol; Paulo Andrade Lotufo; Pedro Cláudio Cunca Bocaiúva Cunha; Ricardo Lêdo Chaves e Vera Silvia Facciolla Paiva. As entrevistas totalizaram aproximadamente 30 horas de depoimentos orais, transcritos na íntegra e, posteriormente, disponibilizados no Laboratório de Estudos do Tempo Presente, no Instituto de História, da UFRJ, para consulta pública. Para além das fontes orais, valemo-nos dos documentos produzidos pelas Polícias Políticas do Estado do Rio de Janeiro sobre o movimento estudantil, consultadas no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Ainda nesta instituição foram consultados os documentos produzidos por organizações de esquerda, disponbilizados nas coleções de Daniel Aarão Reis, Jair Ferreira de Sá e Jean Marc Von Der Weid. No Arquivo Nacional, tivemos acesso ao Fundo da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em que consultamos a documentação relativa ao III Encontro Nacional dos Estudantes (III ENE), realizado em 04 de junho de 1977, na cidade de Belo Horizonte. Outra importante documentação utilizada neste trabalho está disponível na Coleção Movimento Estudantil, do acervo do Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ). A documentação, composta de documentos internos do movimento estudantil, abrange as experiências político-culturais do movimento e as formas de participação dos estudantes na história política do país nas décadas de 1970 e 198011.

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Cf. Anexo 01: tabela de apresentação dos entrevistados e Cf. Anexo 06: roteiro de realização de entrevistas. Cf. definição da coleção e descrição dos documentos consultados no acervo do Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ), disponível em: . Acesso em: 05 jul. 2014. 11

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No Centro Sérgio Buarque de Holanda de Documentação e História Política (CSBH), da Fundação Perseu Abramo (FPA), consultamos os áudios e fotografias do Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos, realizado na PUC-SP em 1997. Também no CSBH consultamos algumas edições da revista Teoria e Debate. Outros documentos foram disponibilizados pelos ex-militantes entrevistados a partir de seus arquivos pessoais, como Jânio Bragança que nos forneceu, entre outros, documentos sobre a Exposição 30 anos III ENE, realizada na Faculdade de Medicina da UFMG em 2007, e Vera Paiva, que nos disponibilizou documentos de tendências estudantis dos anos 1970 na Universidade de São Paulo (USP). Optamos por todo este conjunto documental por sua relevância enquanto fonte histórica para a abordagem do tema e também por se tratar de documentação inédita entre as pesquisas sobre o movimento estudantil na transição democrática, ainda não explorada em sua totalidade em outros trabalhos sobre o tema. Este trabalho é composto por duas partes. A parte I, denominada “História e memória: a trajetória histórica do Movimento Estudantil na transição democrática narrada por seus militantes” abrange os capítulos voltados para a apresentação da narrativa sobre a atuação histórica do movimento estudantil como sujeito político, sendo composta por três capítulos. No capítulo 1, apresentamos uma abordagem sobre a história oral enquanto metodologia norteadora deste trabalho, bem como uma analise sobre as questões da memória como fonte e objeto da pesquisa histórica. Além disto, debruçamo-nos sobre as relações entre história e memória política, definindo alguns pressupostos necessários ao desenvolvimento desta tese. No capítulo 2, desenvolvemos a análise da dinâmica interna do movimento estudantil através das “novas tendências”, reflexo da revisão das esquerdas pós-1974, que atuaram ativamente no período transicional em torno da luta pelas liberdades democráticas. Neste capítulo apresentamos as principais tendências no ME brasileiro atuantes entre 1973 e 1985, buscando suas origens e bases ideológicas no contexto a partir das memórias de seus exmilitantes. No capítulo 3, dedicamo-nos a abordar a trajetória de atuação política do movimento estudantil ao longo do período da transição democrática brasileira destacando seu processo de reorganização nas universidades brasileiras em meados dos anos 1970 e seu retorno à cena política através das manifestações de 1977, que garantiu a ele a retomada das ruas como espaço de mobilização política e social. O III ENE em Belo Horizonte e a invasão da PUC – SP em 1977, bem como o Congresso UNE em Salvador – 1979, foram eventos destacados na

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construção desta narrativa baseada na memória dos ex-militantes estudantis. Também apreciamos o olhar militar sobre a atuação do ME no período transicional, percebendo as relações entre a polícia política e a “repressão” na transição. A parte II, igualmente composta por três capítulos e denominada “Memórias em conflito, políticas de memória e eventos de memorialização”, problematizamos o processo de construção da memória sobre a militância estudantil nos anos da transição democrática. No capítulo 4, dedicamo-nos a compreender o lugar da transição democrática nas memórias estudantis sobre a ditadura militar e as disputas de memória empregadas pela geração da transição e sua demanda pelo reconhecimento. No capítulo 5, ocupamo-nos da análise da construção de memória sobre o movimento estudantil e a geração da transição democrática a partir das produções memorialísticas realizadas pelo próprio ME e da historiografia – que evidenciaram uma memória estudantil sobre a ditadura referenciada na atuação da geração de 1968 – e dos eventos de memorialização, realizados a posteriori, como forma de rememoração de marcos do ME da transição. Por fim, no capítulo 6, averiguamos a justiça de transição e as políticas de memória no Brasil pós-ditadura a partir do Estado e do próprio movimento estudantil. Quanto ao Estado, o objetivo foi compreender as políticas de memória empregadas no Brasil e o papel das mesmas na formação de uma memória sobre o passado ditatorial. Como exemplos, optamos apreciar as políticas de reparação, especialmente aquelas empregadas pela Comissão da Anistia, vinculada pelo Ministério da Justiça; e a criação – por iniciativa estatal – do Memorial da Resistência de São Paulo, como um lugar de memória que constrói uma memória sobre a resistência onde a geração da transição é apresentada em segundo plano frente ao heroísmo da geração de 1968. Sobre o movimento estudantil, nos atemos às políticas de reparação concedidas a ele pelo Estado dentro do processo de justiça de transição. Também avaliamos os usos políticos que o atual ME faz de seu passado. Acreditamos que o estudo de ambos os elementos contribui de forma efetiva para a compreensão da memória concebida sobre a ditadura militar, a transição democrática e o movimento estudantil no presente como parte de um processo iniciado no período ditatorial e ainda inacabado, constituindo, por conseguinte, um campo em disputa.

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PARTE I

HISTÓRIA E MEMÓRIA: A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA NARRADA POR SEUS MILITANTES

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CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA ORAL E MEMÓRIA POLÍTICA A memória tem artimanhas. Elaborada no presente, projetada para o futuro, quando solicitada, baseia-se na seleção. Reveladora, pode também silenciar fatos e intencionalidades. Logo, tem limites. A “vivacidade” que dá ao passado não é capaz de reconstituí-lo tal como foi. As memórias revelam “pedaços do passado” a partir de seleções provocadas pelo tempo de produção e de evocação das mesmas. A memória é uma forma de conhecimento como experiência, caminho possível para que sujeitos percorram a temporalidade. Para Henri Bergson (1999), a memória tem função unificadora entre o eu profundo e o eu da ação, ou seja, ela se subdivide em memória hábito e memória pura. A memória é viva, presente, total, virtual e é atualizada na vida ativa em função da ação. Ainda de acordo com Bergson, o verdadeiro problema relativo à memória não é o da conservação de lembranças, mas o do esquecimento daquilo que se conserva por inteiro. Segundo o autor, justamente por ser um órgão vinculado à atenção e à vida, o cérebro seleciona as lembranças, recalcando aquelas que são desnecessárias à ação presente. Órgão de integração do indivíduo à vida, o cérebro é, assim, também, órgão de esquecimento. Quando a atenção à vida se afrouxa, o inconsciente pode aflorar, propiciando a atualização de memórias mais próximas do sonho, a memória pura. Um dos pioneiros em analisar a constituição da memória, Maurice Halbwachs defendia a tese de que a memória humana é tecida a partir de interações que o homem possui com outros indivíduos. Desta forma, reconhecendo que o homem está inserido em diferentes lugares e em diferentes grupos, as suas lembranças são permeadas pelas suas variadas relações sociais e constituem a especificidade das memórias individuais. Halbwachs afirmava que a memória se constrói a partir das vivências de grupos sociais concretos. Neste sentido, a memória individual constitui-se como ponto de vista da memória coletiva. Na memória há um infinito, em que se entrecruzam tempos múltiplos. Dessa infinidade, só é possível registrar um fragmento. No processar da memória estão presentes as dimensões do tempo individual e do tempo coletivo. Os acontecimentos e processos, os sinais exteriores são referências para o afloramento de lembranças e reminiscências individuais. O tempo da memória ultrapassa o tempo de vida individual: histórias de família, tradições, histórias de amigos, enfim, histórias de experiências coletivas que conformam as identidades.

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Sob esta perspectiva, Maria Paula Nascimento Araujo e Myrian Sepúlveda dos Santos afirmam que, como os indivíduos não pertencem apenas a um grupo e se inserem em múltiplas relações sociais, as diferenças individuais de cada memória expressam o resultado da trajetória de cada um ao logo de sua vida. A memória individual revela apenas a complexidade das interações sociais vivenciadas por cada um. [...] A memória individual por mais que seja vivida isoladamente, não é ele, o indivíduo, quem determina o controle do resgate da memória. Os sujeitos que estão constantemente em interação social têm sua memória individual permeada por este processo, ela se torna coletiva pelo fato de que o sujeito, por mais que esteja só, é o resultado das interações sociais (ARAUJO; SANTOS, 2007, p.96-97).

Neste mesmo sentido, Elizabeth Jelin (s.d., p.12) afirma que “A experiência humana incorpora vivências próprias, porem também as de outros que lhes são transmitidas. O passado, então, pode condensar-se ou expandir-se, de acordo com a forma como estes experiências passadas são incorporadas”. Assim, a forma de olhar para esse passado pode ser modificada e diferenciada de acordo com cada sujeito, a partir de suas experiências individuais. Segundo a autora, vivencias personales directas, com todas las mediaciones y mecanismos de los lazos sociales de lo manifesto y lo latente o invisible, de lo consciente y lo inconsciente. Y también saberes, creencias, padrones de comportamiento, sentimientos y emociones que son transmitidos y recibidos em la interacción social, em los procesos de socialización, em las práticas culturales de um grupo. [...] El ejercicio de las capacidades de recordar y olvidar es singular. Cada persona tiene “sus propios recuerdos”, que no pueden ser transferidos a otros. Es esta singularidad de los recuerdos, y la posibilidaded de activar el pasado em el presente – la memoria como presente del pasado, em palabras de Ricoeur – lo que define la identidad personal y la continuidade del si mismo em el tiempo. [...] Quienes tienen memória y recuerdan son seres humanos, individuos, siempre ubicados em contextos grupales y sociales específicos. (JELIN, s.d., p 18-19).

Elizabeth Jelin, Maurice Halbwachs Maria Paulo Nascimento Araujo e Myrian Sepúlveda, portanto, compartilham de conclusões afins acerca da memória individual. Esta é sempre permeada pelo contexto social, sendo a religião, a família, a formação e a classe social marcos que dão sentido às rememorações individuais. Marilena Chauí, por sua vez, entende que o modo de lembrar é individual tanto quanto social. Para a autora, Descrevendo a substância social da memória – a matéria-prima lembrada [...] nos mostra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique. O tempo da memória é social não só porque é o calendário do trabalho [...] mas também porque repercute no modo de lembrar (CHAUÍ. In. BOSI, 1994, p. 31).

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Dessa forma, para a utilização da memória como fonte histórica, faz-se necessário compreender quais fatores sociais estão interpenetrados na narração do sujeito entrevistado para a pesquisa. Por isso, dedicamos especial atenção, durante a realização das entrevistas, à compreensão desse cabedal de influências em cada entrevistado, abordando sua história de vida com ênfase no tema e no período estudado. A partir de Maurice Halbwachs, definimos os critérios de escolha dos entrevistados para esta pesquisa, em que buscamos sujeitos pertencentes a uma “comunidade afetiva”. Como define este autor, a construção da memória é um processo social e coletivo, que envolve pessoas pertencentes a um determinado grupo, a que denominou como comunidade afetiva. Esse grupo pode ser a família, um grupo de estudantes ligados a uma entidade estudantil, estudantes de uma mesma turma, militantes de um mesmo partido/tendência, ou seja, um grupo de referência no qual foram vividas determinadas experiências em comum e no interior do qual foram construídas determinadas memórias. Neste sentido, o pertencimento a uma comunidade – mesmo que difusa – permite o processo social de construção da memória. No caso desta pesquisa, definimos para a seleção de entrevistados, em primeira instância, ex-militantes do Movimento Estudantil (ME) atuantes entre 1974 e 1985, pertencentes a uma mesma geração12 – que chamamos como geração da transição democrática – e que formavam uma “comunidade afetiva”, dada à atuação na política estudantil mesmo em diferentes localidades e em diferentes grupos ideológicos. Contudo, para além da compreensão da geração estudantil como parte de uma “comunidade afetiva”, por compartilhar de elementos comuns no campo da cultura política e da memória que foi constituída, compreendo as especificidades da relação que se dava no interior do movimento em diferentes localidades e organizações políticas. Segundo Henry Rousso, a memória é, em seu sentido essencial, a presença do passado e uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, “um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2006, p.94). Para o autor, o atributo imediato da memória é garantir a continuidade do tempo permitindo resistir à alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o destino de toda a vida humana, constituindo-se assim um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros (Idem, 95).

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Cf. no capítulo 4 as análises sobre conceito de geração e geração da transição democrática.

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Para Halbwachs, o processo de construção da memória é coletivo. Em grupo, num processo coletivo de seleção, é que se dão as escolhas entre o que lembrar e o que esquecer. Tendo em conta estas definições, selecionamos os depoentes desta pesquisa a partir de grupos e de referências mais específicos. Assim, entrevistamos pessoas que tinham suas “comunidades de pertencimento” classificadas em diferentes tendências internas do movimento estudantil, bem como optamos pela abordagem de diferentes localidades, em especial, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Bahia, por possuírem ex-militantes formadores de uma “comunidade afetiva”. Procuramos, em cada uma dessas “comunidades”, realizar entrevistas em que se pudesse ter elementos para perceber o processo social de construção de memória do grupo em questão. Uma questão importante neste debate passa pela compreensão da relação de complementaridade existente entre memória e história. Para Paul Ricoeur (2008), a memória é, em primeiro lugar, matriz da história enquanto escritura, e, em segundo lugar, está na base da reapropriação do passado histórico enquanto memória instituída pela história transmitida e lida. A história se configura na experiência que traz à tona uma multiplicidade de percursos possíveis revelados pelas memórias. Esta memória pluralizada é a maior ferramenta de elo social, da identidade coletiva e individual. Ela pode ser envolvida numa perspectiva interpretativa aberta para o futuro, fonte de reapropriação coletiva, e não simplesmente ilustração do passado recortada a partir do presente. Assim, a história pode ser vista como alimento da memória e vice-versa. A história enriquece as representações possíveis da memória coletiva, fornecendo símbolos, conceitos, instrumentos rigorosos para que a sociedade pense a si mesma em sua relação com o passado. A história fertiliza a memória, reativando intelectualmente as lembranças. Entretanto, a história pode ser vista como destruidora da memória. A tradição histórica é um exercício regulador da memória. A história transforma a paisagem da memória espontânea, destruindoa em história. O peso disciplinar da história volta-se contra a memória social espontânea, enquadrando-a. A fundação da história científica ocorreu como forma de contraposição ao espontaneísmo e à subjetividade da memória. Para Beatriz Sarlo, o retorno do passado não é um momento livre da lembrança, mas uma captura feita a partir do presente. O passado para ser dito se faz presente. A autora analisa a transformação do testemunho em um símbolo da verdade ou no recurso mais importante para a reconstrução do passado. Segundo Sarlo (2007, p. 26), “é mais importante entender do que recordar, ainda que para entender seja preciso, também, recordar.”

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Já Paul Ricoeur (2008) ressalta que o historiador não se pode limitar ao estabelecimento dos fatos, e fazer história consiste em construir, fabricar, “criar”. Assim, a verdade histórica é sempre passível de revisão, em função dos novos arquivos, de novas questões; portanto, a ressurreição do passado é impossível e só podemos conhecê-lo por relatos, no qual a memória se apresenta como um tipo, que contribui com a formação de uma narrativa histórica. Ela é uma fonte, um dos indícios a serem utilizados na escrita da história. O retorno ao passado é impossível; assim Ricoeur afirma que não se pode ter conhecimento do passado a não ser mediante um relato (oral, escrito e visual). Ricoeur afirma que história e memória são narrativas; o autor aponta que a narrativa é a mediação indispensável para se criar uma obra histórica. A configuração do tempo passa pela narrativa do historiador. A história se torna uma prática discursiva, que se distingue da ficção, ou mesmo da memória, pelo recurso do documento. O enredamento impõe-se, portanto, a todo historiador. Assim, espaço de experiência e horizonte de espera fazem mais do que se oporem numa polarização, eles se condicionam mutuamente. Ainda segundo o filósofo Paul Ricoeur, a memória demonstra como o passado é reapropriado no presente a partir de uma história oficial transmitida. Uma mesma sociedade em diferentes épocas também utiliza da memória de um acontecimento específico de diferentes formas com fins políticos, articulando os valores que se deseja agregar à sua identidade. No esforço de escrever uma narrativa histórica, a história oral possibilita ao historiador usar entrevistas como fonte para sua escrita, buscando reconstruir o passado conforme foi vivido. O que temos são fragmentos do passado, narrados por aquele que viveu. Disto decorre um ponto central: não existe apenas uma memória ou uma história que dê conta do passado, mas sim várias. É impossível reconstruir o passado tal como aconteceu. No que diz respeito à relação entre verdade e ficção na prática historiadora, Ricoeur (2008) considerava que a construção dessa hermenêutica do tempo histórico oferece um horizonte que não é mais tecido pela única finalidade científica, mas voltado para um fazer humano, um diálogo a se instituir entre gerações, um agir sobre o presente. É com essa perspectiva que convém reabrir o passado, revisitar suas potencialidades. Assim, o presente reinveste o passado a partir de um horizonte histórico separado dele. Transforma a distância temporal morta em transmissão geradora de sentido. A compreensão da memória como narrativa pode ser aplicada à história. A narrativa é a mediação indispensável para se criar uma obra histórica. A configuração do tempo passa pela narrativa do historiador. A história se torna uma prática discursiva que se distingue da

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ficção, ou mesmo da memória, pelo recurso do documento; é ele que torna a história uma narrativa diferenciada e mostra que, mesmo no trabalho com a memória, ela não apenas incorporada relatos, a fonte oral, no confronto com outras fontes, mas contribui com a escrita da história. Ao falar da relação entre verdade e ficção na prática historiadora, Paul Ricoeur (2008) aproximava-se das teses dos narrativistas, destacando dois pontos desta: Em primeiro lugar, os narrativistas fazem a demonstração de que “contar já é explicar [...]”. Em segundo lugar, à diversificação e hierarquização dos modelos explicativos, os narrativistas opuseram a riqueza dos recursos explicativos interiores ao relato. Entretanto, e apesar desses dois avanços na compreensão do que é um discurso histórico, Ricoeur não compartilhava das teses mais radicais dos narrativistas, cujo postulado previa a indistinção entre história e ficção. Embora haja uma proximidade, subsiste um corte epistemológico baseado no regime de veracidade próprio ao contrato do historiador em relação ao passado. Segundo Ricoeur, O recurso dos documentos determina uma linha divisória entre história e ficção: diversamente do romance, as construções do historiador almejam ser reconstruções do passado. Por meio do documento e da prova documentária, o historiador está submetido ao que, um dia, foi. (RICOEUR, 2008, p.58)

A dimensão veritativa da história é um fio condutor importante do pensamento de Paul Ricoeur, constituindo-se no ponto que diferencia a história das outras formas de escrita, como a da ficção. Segundo o autor, o historiador deve buscar atingir o nível da veracidade por meio da escrita. Assim, a história como narrativa, passando pela compreensão da memória como fonte, pode atingir o nível da veracidade pela sua escrita. Beatriz Sarlo, por sua vez, conclui que “não há verdade senão uma máscara que diz dizer sua verdade”. No entanto, como afirma a autora, “a história tem muito a fazer com a verdade” (2007, p. 73). Michel de Certeau definiu uma estrutura triádica da operação historiográfica. Como primeira etapa, estabeleceu a história que rompe com a memória quando objetiva os testemunhos para transformá-los em documentos, passando-os pelo crivo da comprovação de sua autenticidade, discriminando o verdadeiro do falso. É a fase arquivista. A prova documentária permanece em tensão entre a força da atestação e o uso adequado da contestação, do olhar crítico. A segunda etapa baseou-se na tentativa de explicação e compreensão. O historiador aprofunda a autonomia de seus passos em relação à memória, perguntando-se por quê? Ele desconstrói a massa documentária para dispô-la em séries coerentes significantes (fenômenos

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econômicos, políticos etc.). Ele modaliza, na medida do possível, para testar seus instrumentos interpretativos. A terceira etapa pautou-se na representação histórica, com a escrita sendo o principal nível. Para o autor, é exatamente no plano da escrita que se situa a história em suas três fases. Ricoeur faz questão de distinguir duas ambições de naturezas diversas: verificativa para a história, de fidelidade para a memória. A intervenção de Ricoeur nesse terreno pode ser de fato analisada como uma tentativa de articular ambas as dimensões, sabendo-se que elas são simultaneamente diferentes, e que Ricoeur concebe “a memória como matriz da história”. Existe, porém, grande ruptura entre o nível memorial e o do discurso histórico, e ela se efetua com a escrita. Os fatos não são revelados senão a partir de seus indícios, discursivos ou não. O historiador se interroga a respeito das diversas modalidades da fabricação e da percepção do fato a partir de sua trama textual. Esse movimento de revisitação do passado pela escrita historiadora acompanha a exumação da memória nacional e confronta ainda o momento memorial atual. Através da renovação historiográfica e memorial, os historiadores assumem o trabalho de luto de um passado em si e dão sua contribuição ao esforço reflexivo e interpretativo atual nas Ciências Humanas. Essa inflexão recente se une à depreciação/retomada de toda a tradição histórica objetivada por Pierre Nora (1993), e abre caminho para outra história, enriquecida pela reflexão necessária sobre os indícios do passado no presente. Neste sentido, os historiadores não devem se esquecer de que são os cidadãos que realmente fazem a história – os historiadores apenas relatam; mas eles também são cidadãos responsáveis pelo que dizem, sobretudo quando seu trabalho toca em memórias feridas (RICOEUR, 2008). Michael Pollak afirma que a memória é uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc.” (POLLAK, 1989, p. 9). Assim, a memória tem por função construir uma referência do passado que “serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis.” (POLLAK, 1989, p. 9). Neste sentido, a memória também interfere na formação da identidade de um grupo, identificando elementos que geram relações de pertencimento, agregando em torno de um

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passado comum os elementos definidores de um grupo, e – como no caso deste trabalho – também de uma geração. Sob esta perspectiva, para a historiadora Maria Paula Nascimento Araujo, ao realizar uma entrevista é importante que o pesquisador esteja atento para como o entrevistado narra suas lembranças em seu depoimento, buscando identificar a intencionalidade desta narração. Mas o depoimento não nos traz apenas a questão da memória, e sim também a da retórica. Não é importante apenas o que se lembra – mas como se lembra e, principalmente, como se narra o que se lembra. Quem faz um relato de vida geralmente o faz de forma intencional. Projeto para o historiador – que ouve e registra o seu depoimento – alguma intenção, algum propósito. Ninguém fala de si à toa. Cabe ao historiador perceber e analisar esse propósito, descobrir essa intenção. (ARAUJO, 2006, p. 94).

Desta forma, como afirma Verena Alberti, “as entrevistas têm valor de documento, e sua interpretação tem a função de descobrir o que documentam” (ALBERTI, 2004, p.19). Para a autora, “a grande riqueza da história oral está em ser um terreno propício para o estudo da subjetividade e das representações do passado tomados como dados objetivos, capazes de incidir sobre o nosso entendimento do passado” (Idem, p. 42). Contudo, não se pode perder de vista o caráter de fonte histórica das entrevistas, que se constituem com pistas do passado construídas a posteriori. Para o historiador essas narrativas individuais sobre o passado ganham caráter de documento quando vão além do caso particular, fornecendo uma chave para a compreensão da realidade do passado. Para tal, as entrevistas são fontes históricas que contêm em si a possibilidade de intervenção direta do historiador em sua constituição e que necessita de todo o rigor historiográfico para ser analisada. Neste trabalho, a história oral é uma ferramenta que nos possibilita acessar a memória coletiva. Nas últimas décadas, as pesquisas historiográficas têm produzido estudos a partir da história oral sobre o trauma político provocado por regimes ditatoriais. Produzindo testemunhos sobre o passado autoritário, contribuem, muitas vezes, para os rumos da justiça de transição, que lança mão de procedimentos de memória e de justiça em países que procuram superar contextos de violência política. Como recurso metodológico, optamos pela história oral, por utilizar a memória como fonte histórica com procedimentos específicos. O historiador que opta pelo uso de memórias como fonte histórica se depara com o fato de que todas elas são produzidas no presente, sendo que estas estão contidas em um limite muito contemporâneo, o que leva o historiador a perceber os limites temporais em que as mesmas se inserem. Para definir conceitualmente a metodologia da história oral, recorro à definição de Verena Alberti, que pontua:

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[...] um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Como consequência, o método da história oral produz fontes de consulta (as entrevistas) para outros estudos, podendo ser reunidas em um acervo aberto a pesquisadores. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, conjunturas etc. à luz de depoimentos de pessoas que deles participaram ou os testemunharam (ALBERTI, 2004, p. 18).

Neste trabalho, entrevistamos ex-militantes estudantis que participaram do movimento estudantil brasileiro durante os anos da transição democrática. Logo, a opção pela história oral traduz nossa opção por estudar o ME à luz dos depoimentos de pessoas que viveram aquele momento político. Apesar de utilizarmos como fontes outros documentos históricos como documentos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS) e aqueles produzidos pelo próprio movimento no contexto da transição, optamos por narrar a história da retomada do movimento estudantil, importante sujeito político no passado e no tempo presente, a partir das memórias de seus militantes e de suas lideranças. Neste sentido, a narrativa historiográfica construída neste trabalho baseou-se na busca de apresentar como os movimentos sociais veem a transição democrática brasileira. No entanto, estamos conscientes da complexidade deste tema, principalmente pela existência de um limite tênue entre memória e ideologia nesta abordagem histórica. Os depoimentos, mesmo distanciados no tempo da experiência vivida, possuem forte carga ideológica e um discurso militante. Conforme indica Elizabeth Jelin, a memória política traz em si uma propensão maior para realizar juízos de valores, em que o sujeito não se satisfaz em narrar fatos, mas necessita julgar os mesmos, demarcando sua posição e apresentando formas de um discurso valorativo. Assim, ao examinar as entrevistas, partimos do pressuposto da característica de memória política e da necessidade de uma abordagem historiográfica capaz de abarcar as especificidades dessas memórias marcadas por forte carga ideológica e política. A memória dos sujeitos históricos que aturam no processo de transição democrática brasileira é marcada por suas posições políticas de ontem e de hoje, por suas reelaborações do passado que viveram e, em especial, da luta pelo sentido do passado, ou seja, trata-se da busca de dar ao passado vivido por eles um sentido para si próprios, para o grupo a qual participaram e, em especial, para a sociedade que hoje ainda traz as marcas daquele tempo. Não apenas as memórias possuem marcas militantes e políticas nesta abordagem. Também os documentos, especialmente os textos produzidos pelo próprio movimento

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estudantil no contexto ou por seus militantes a posteriori, usados como fontes, possuem uma carga ideológica. A historiografia sobre o tema, todavia, notadamente também é militante. Parte significativa dos pesquisadores que produziram trabalhos acadêmicos sobre a atuação dos movimentos sociais na luta pelas liberdades democráticas e que, portanto, são citados como referências bibliográficas, foram ex-militantes, e, por conseguinte, mesmo com todo o rigor da pesquisa historiográfica, não se desassociam do caráter de uma narrativa militante, ou seja, também marcada pela memória. Desta forma, nossa intenção na construção da narrativa historiográfica da retomada do movimento estudantil entre 1974 e 1985 foi pautada na memória militante. Optamos por apresentar, destacadamente, a visão dos ex-militantes estudantis sobre o processo de transição democrática brasileira, analisando o contexto entre história e memória.

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CAPÍTULO 2 – AS “NOVAS TENDÊNCIAS” NA REORGANIZAÇÃO DO MOVIMENTO ESTUDANTIL:

O

DEBATE

EM

TORNO

DA

LUTA

PELAS

LIBERDADES

DEMOCRÁTICAS

Este capítulo é dedicado a refletir sobre a forma de organização interna do movimento estudantil da transição democrática. Até este contexto, predominava a atuação direta de grupos e organizações de esquerda na dinâmica interna do movimento. Em meados dos anos 1970, surge uma novidade no campo da forma de expressão desses grupos de esquerda dentro do movimento estudantil, as chamadas “tendências”, que se utilizavam de nomes específicos para o meio universitário e possuíam suas especificidades de atuação política no interior das universidades. Na definição de Maria Paula Nascimento Araujo, a partir de meados dos anos 1970, no interior do Movimento Estudantil (ME) confrontavam-se “tendências que eram, na verdade, as expressões universitárias e legais de organizações de esquerda clandestinas” (ARAUJO, 2000, p. 119). Assim, o ME foi palco dos principais debates em torno das concepções de luta democrática que existiam entre as esquerdas no contexto da transição democrática. “Nas assembleias estudantis, as diferentes posições políticas, representadas nos centros acadêmicos, travavam acirradas polêmicas em torno de palavras de ordem e de propostas de ação” (Idem, 2007, p. 334). O debate em torno da transição democrática também atingiu o movimento estudantil. Algumas organizações de esquerda “viam no projeto de distensão e abertura política, uma articulação de transição ‘por cima’ para um regime democrático”. Nesta perspectiva, cabia aos movimentos de oposição ao regime “alargar” os contornos dessa distensão, mudando o projeto de uma transição de cima pra baixo, e introduzindo a participação das classes populares e dos trabalhadores (Idem, 2000, p. 117). De acordo com a historiadora Maria Paula Nascimento Araujo, entre 1974 e 1978, havia uma polarização da esquerda brasileira. De um lado, uma divisão no campo da estratégia que opunha uma “esquerda revolucionária” ao “reformismo” (do ponto de vista dos dissidentes); de outro, uma polaridade que quase anulava a divisão anterior, dada pela adesão ou não das organizações à luta pelas liberdades democráticas. Essas duas polaridades determinavam o jogo de alianças e organizações de esquerda durante a década de 1970, especialmente no período compreendido entre 1974 e 1979/80. Esse período representou para a vida política brasileira um momento extremamente rico, de avanços e recuos, ora por parte do regime, ora pela oposição (ARAUJO, p. 2007, p.213).

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Nessa polarização, havia pois dois “blocos” de organizações que se posicionaram diante da luta política. Um grupo defendia a luta pelas “liberdades democráticas”, o outro grupo condenava a proposta de luta “reformista” por não explicitar o projeto de uma revolução socialista. O grupo definido como o das “liberdades democráticas” era constituído pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pelo Movimento Revolucionário Oito de outubro (MR-8), pela Ação Popular Marxista Leninista (APML), e por algumas organizações trotskistas como a Convergência Socialista (CS) e Liberdade e Luta (Libelu) (ARAUJO, 2000, p. 124). Este grupo atuava em campanhas pelos direitos democráticos como liberdade de imprensa; anistia ampla, geral e irrestrita; liberdade de organização e expressão, denunciando torturas; bem como valorizava a disputa política eleitoral, através de “candidaturas populares” pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Segundo Maria Paula Nascimento Araujo, o bloco “pelas liberdades democráticas” optava por essa palavra de ordem como sintetizadora de uma nova tática para a luta política que rompia com a opção do enfrentamento dos grupos armados e pautava sua luta nos princípios da democracia e da liberdade. Essa luta não seria uma luta de enfrentamento, não seria uma campanha essencialmente militar. Ao contrário, seria uma luta de “resistência”, com bandeiras que atendessem aos anseios da sociedade. A nova tática se expressava numa “plataforma de lutas pelas liberdades democráticas”: pela liberdade de organização, expressão e manifestação política, contra a tortura, contra prisões arbitrárias, contra a censura, pelo restabelecimento do habeas corpus, contra a lei de segurança nacional e toda a legislação de exceção, pela anistia, por eleições diretas, pela garantia dos direitos humanos (ARAUJO, 2007, p. 214).

O segundo grupo era composto pela Política Operária (POLOP) e pelo Movimento de Emancipação do Proletariado (MEP), que eram contra a luta democrática, por compreendê-la como reformista. Para este grupo, levantar bandeiras de luta de caráter econômico evitava a “diluição reformista”. De acordo com Maria Paula Nascimento Araújo, para esse grupo, Manter-se nos limites da luta econômica evitaria a diluição das bandeiras democráticas, enfrentaria a questão crucial do ‘arrocho’ salarial da classe trabalhadora e, dado o traço autoritário do governo brasileiro, toda luta econômica – pelo enfrentamento de um governo que não admitia diálogo – se transformaria, necessariamente, em luta política (ARAUJO, 2000, p. 125).

Dentro do movimento estudantil, mesmo com suas peculiaridades, espelhava-se o debate central das esquerdas naquele período. O debate das “tendências políticas” do ME era uma caixa de ressonância dos debates travados entre partidos e organizações de esquerda clandestinas.

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No meio universitário, a postura da POLOP e do MEP foi adaptada: “o movimento estudantil deveria ser chamado a lutar contra a Política Educacional do Governo, a ‘PEG’ – sendo, por esse motivo, chamados de ‘peguistas’ ” (ARAUJO, 2007, p. 216), traduzindo, assim, a divergência política das esquerdas dentro do movimento estudantil como uma oposição entre “peguistas” e “liberdades democráticas”. Apesar da existência de diferentes visões sobre democracia por parte de cada força política, a luta pelas liberdades democráticas foi endossada por grande parte das organizações da esquerda brasileira, mesmo aquelas que inicialmente tinham críticas a tal perspectiva. As esquerdas, em especial PCB, PCdoB, APML, MR-8 e organizações trotskistas, uniram-se a outros setores da sociedade que lutavam contra o regime procurando alargar os limites da abertura “lenta e gradual”. Neste debate sobre esquerdas e democracia, podemos identificar mais claramente duas matrizes teóricas: o PCB e o MR-8. A matriz do PCB foi marcada principalmente pelo referencial presente no texto “Democracia como valor universal”, de Carlos Nelson Coutinho. Não creio que nenhuma formação popular responsável ponha hoje em dúvida a importância dessa unidade em torno da luta pelas liberdades democráticas tais como são definidas, entre outros, no atual programa do MDB. Todavia, há correntes e personalidades que revelam ter da democracia uma visão estreita, instrumental, puramente tática; segundo tal visão, a democracia política – embora útil às lutas das massas populares por sua organização e em defesa de seus interesses econômicocorporativos – não seria mais, em última instância e por sua própria natureza, do que uma nova forma de dominação da burguesia, ou, mais concretamente, no caso brasileiro, dos monopólios nacionais e internacionais (COUTINHO, 1984, p. 34).

Carlos Nelson Coutinho introduz a visão de “democracia como valor universal” no Brasil. Nesta perspectiva, o PCB compreendia a democracia como uma “etapa” necessária para a concretização da revolução democrática nacional e buscava se ancorar em uma interpretação possível da teoria leninista. Amâncio Carvalho, ex-líder estudantil do PCB, estudante de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) nos anos 1970 e atualmente professor deste curso na mesma instituição, em seu depoimento resgata aquela perspectiva do PCB: Para o PCB significava, em primeiro lugar, a recuperação de uma tradição, que era do movimento comunista, muito antiga. Tem um texto do Lênin que fala da questão das liberdades democráticas que ele diz uma frase muito contundente: “qualquer caminho para o socialismo, que não passe pelas liberdades democráticas é absurdo”. Mas, é o tal negócio, é que nem o “Evangelho”: quando uma coisa de determinada dimensão cada um interpreta de um jeito. [...] Então, o PCB seguia essa tradição, quer dizer, qualquer caminho para o socialismo que não passa pela democracia é

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absurdo, é uma contradição em termos. Isso tinha para nós um valor muito significativo13.

Na fala de Amâncio fica evidenciado o caráter de interpretação dos textos de Lênin pelo PCB, ao se afirmar a importância da democracia no caminho para a revolução. No entanto, havia uma disputa pela interpretação dos textos de Lênin entre os grupos de esquerda que buscavam no teórico russo as bases para a afirmação das liberdades democráticas como tática política a partir de meados dos anos 1970. Dentro dessa disputa, encontramos os militantes do MR-8, que também mobilizavam os textos e as posições leninistas para defender seus pontos de vista. A matriz do MR-8 tinha como principal expoente Claudio Campos, que sob pseudônimo de Daniel Terra publicou clandestinamente o texto “Socialismo e liberdades democráticas”, em que afirmava que a luta pelo socialismo era inseparável da questão da democracia, defendendo a impossibilidade de existência de qualquer luta pelo socialismo sem passar pelas “liberdades democráticas”. Diferentemente do PCB, que compreendia a luta pelas “liberdades democráticas” como estratégica, o MR-8 a compreendia como uma luta tática. Desta forma, realizar a revolução socialista era questão central para o MR-8. Contudo, a linha definida por Daniel Terra considerava que, naquele momento, a opção pela aproximação entre socialismo e democracia era teoricamente justificável, afirmando a necessidade da democracia como passo anterior ao socialismo, pois nela seria formada a consciência da classe operária e popular para que houvesse a possibilidade de consolidação do socialismo. A possibilidade de luta armada, no entanto, não foi descartada, e tanto a aproximação e como a referência na experiência cubana da guerrilha permanecia presente entre os integrantes desse grupo, conforme aponta Luiz Mariano Carvalho, estudante de Engenharia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), militante do MR-8 na ocasião, em seu depoimento: Tanto que tinha um famoso documento do Daniel Terra, que era o tal Campos: “Socialismo e liberdade democrática”. Faziam essa discussão: [...] como é que a democracia e o socialismo se ligam? [Para o MR-8 a luta deveria ser] anticapitalista, pró-socialista, revolução. Ainda revolução armada, ainda ditadura do proletariado. Tinha a questão da passagem democrática ser uma possibilidade, mas não se

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CARVALHO, Amâncio Paulino de. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013.

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descartava a possibilidade da luta armada. Você estava na luta, o que ia acontecer não se sabia14.

O depoimento de Luiz Mariano evidencia a interpretação do MR-8, que considerava a luta pelas “liberdades democráticas” como uma opção tática naquele momento. No entanto, o grupo vislumbrava, como fim último, a concretização da revolução socialista compreendida em seu bojo, via luta armada, para a construção de uma ditadura do proletariado. Apesar das diferenças apontadas, esse bloco colocava a centralidade na luta pelas “liberdades democráticas”. Essa centralidade se dá, em partes, pela revisão feita sobre a luta armada como tática política. A derrota da experiência armada e o processo de autocrítica vivido por algumas organizações de esquerda levaram-nas a colocar novamente em perspectiva o horizonte das lutas de massa e o empenho na reorganização das entidades de representação dos trabalhadores, profissionais liberais, estudantes, entre outros. A questão democrática tornou-se prioritária, isto é, a luta por direitos e garantias que haviam sido sufocados e reprimidos pelos militares voltou a ocupar o lugar central da prática de grande parte dos militantes e ativistas políticos e sociais. Organizar a resistência em torno da bandeira das liberdades democráticas transformou-se no debate central daquele momento, e o desdobramento desse processo desempenhou papel decisivo nos anos que se seguiram. De uma forma geral, a experiência de luta política em meados dos anos 1970 foi organizada em torno de três eixos fundamentais:  A crítica ao marxismo oficial – e a seus “desvios” (representado no cenário internacional pela URSS e, internamente, pelos partidos comunista – PCB e PCdoB);  A incorporação de novas ideias e novas práticas sugeridas pela experiência política internacional de esquerda a partir de 1968;  Pela conjugação desse esforço de renovação aplicado à luta armada (ARAUJO, 2000, p. 17).

Diferentemente do que aconteceu nos Estados Unidos da América (EUA) e na Europa ao longo dos anos 1970, o rompimento político e teórico com o marxismo não foi a questão mais importante na reformulação dos grupos de esquerda e movimentos sociais. Pelo contrário, “procurava-se alargar o campo das teses marxistas para abrir espaço, em seu interior, às novas concepções políticas relativas às identidades especificas, à diferença, à alteridade, à valorização da subjetividade e do cotidiano” (ARAUJO, 2000, p. 19). Desta forma, segundo Maria Paula Nascimento Araujo, os novos tipos de movimentos não enfatizaram o rompimento com a tradição marxista nem com a esquerda mais tradicional, 14

CARVALHO FILHO, Luiz Mariano Paes de. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 05 de julho de 2013.

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embora tenha havido uma tensão constante entre eles. “Essa tensão – que se traduzia por um processo contínuo de aproximação/afastamento, diálogo/conflito – foi uma das marcas fortes da política brasileira nas décadas de 1970–80” (ARAUJO, 2000, p. 19). Assim, o afastamento da questão da violência e a opção pela democracia tornaram-se os pontos mais marcantes do movimento a partir de meados dos anos 1970, e a busca pela definição de uma nova tática política implicou um debate de crítica e autocrítica sobre a luta armada. Para além de tal questão, o desejo, no entanto, de restabelecer os direitos democráticos, não vividos por essa geração que cresceu sob as ameaças do autoritarismo, mobilizava e aglutinava um novo contingente de forças, expressados mais fortemente na segunda metade dos anos 1970, unindo-se aos grupos de esquerda que optaram pelas liberdades democráticas dentro da universidade e também a pessoas independentes que desejavam militar nas entidades estudantis desvinculadas de organizações clandestinas. Laís Wendel Abramo, estudante de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP) na ocasião, ex-militante da tendência Refazendo, atualmente presidente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, em seu depoimento indica que a crítica realizada pela geração da transição à geração do movimento estudantil de 1968 era acompanhada de grande reconhecimento e admiração, mas vislumbrando outro horizonte de luta política: Os militantes do movimento estudantil de 68 eram nossos irmãos mais velhos. Era uma referência. Evidentemente a Passeata dos Cem Mil, o Zé Dirceu, Travassos, o Vladimir Palmeira, eram nossos heróis, evidentemente. Mas, ao mesmo tempo, havia uma crítica, não tanto ao movimento de massas, mas à esquerda armada. Havia uma crítica porque a gente via que a esquerda armada estava sendo dizimada. Eram outras coisas constantes, prisões, torturas, as notícias que saíam fraudulentas das pessoas que tinham morrido em tiroteios, tinham sido atropeladas. E, claro que eu sabia disso, tinha toda essa bagagem e uma conversa permanente em casa com meu pai, minha mãe, meus tios. Essa coisa foi importante, esse entorno. A gente tinha, claro, medo, mas também não era só medo, não era um medo paralisante. Era uma crítica. Nós temos que reconstruir o movimento de outra forma, a partir da base, com a maioria dos estudantes15.

O depoimento de Laís Abramo nos permite perceber que aqueles que faziam parte da geração da transição cultivavam uma admiração crítica à geração anterior e dela se sentiam herdeiros não apenas da luta política, mas também do medo. Contudo, viam-se como continuadores que atuavam a partir de uma nova motivação, que, a cada nova conquista política e na construção do movimento sobre a base da luta de massas, impulsionava-os a transpor o medo herdado em uma nova iniciativa de luta. 15

ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015.

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Apesar da revisão sobre a luta armada (considerada como um erro pela geração da transição), adotar as liberdades democráticas como palavra de ordem não foi algo rapidamente assimilado por todas as correntes que vieram a defendê-la como norteadora da luta política ao longo dos anos 1970. Para o jornalista Alon Feuerwerker estudante de Medicina na USP e militante do PCdoB nos anos da transição, no caso da USP, as tendências universitárias ligadas ao PCdoB e ao PCB já haviam adotado a luta pelas liberdades democráticas como opção em meados dos anos 1970. Contudo, grupos como a tendência Refazendo, a qual adquiriu um importante papel na luta política nesse período, não assumiram tal termo como palavra de ordem do movimento tão rapidamente: Lá na faculdade de Medicina, como os dois grupos que tinham hegemonia eram o PCdoB e o PCB, a ideia de lutar pelas liberdades democráticas era amplamente hegemônica. Agora, tinham vários lugares na USP em que não era, porque tinham alguns grupos como a AP, Refazendo, dirigidos pelo Mercadante e pela Vera Paiva [...]. Eles levaram muito tempo até passarem a defender as bandeiras de liberdades democráticas e a Constituinte. Porque eram bandeiras burguesas. Só em 1977, quando o movimento apareceu e cresceu e a gente conseguiu mobilizar os estudantes para irem pra rua, é que as pessoas perceberam que alguma coisa tinha mudado e que aquela memória de 68 já não resolvia mais os problemas 16.

A Refazendo, importante força política do ME uspiano, assumiu abertamente “liberdades democráticas” como palavra de ordem durante Ato à noite na PUC-SP, no dia 22 de setembro de 1977, em comemoração à realização do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) 17, conforme relembra Beatriz Bicudo Tibiriçá, estudante de Ciências Sociais na USP, ex-militante da tendência Refazendo nos anos 1970, em seu depoimento: Aí, no ato da noite, os que não tinham sido presos da diretoria do DCE é que foram coordenar o ato público, e é nesse Ato Público que a Refazendo finalmente assume as palavras de ordem pelas liberdades democráticas e abaixo a ditadura. Foi uma grande comemoração junto com a Libelu, que nem acreditava que a gente tinha assumido essa palavra de ordem18.

O caso da Refazendo exemplifica como alguns grupos consideraram inicialmente a luta pelas liberdades democráticas como uma expressão de ordem burguesa e reformista. Devido a isto, antes de 1977, a Refazendo adotava como palavra de ordem a luta anticapitalista na universidade19.

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FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014. O III ENE será analisado no subitem 3.3 do capítulo 3 desta tese. 18 TIBIRIÇÁ, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014. 19 ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. 17

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Beatriz Tibiriçá em seu depoimento relembra também que essas divergências levavam as tendências a travarem intensos debates em torno das palavras de ordem dentro do movimento estudantil, transformando as assembleias em intensos espaços de disputas entre as diferentes orientações políticas: A Libelu sempre defendeu liberdades democráticas, abaixo a ditadura. A gente defendia pela luta democrática, governo dos trabalhadores; para assumir a Constituinte a gente demorou muito tempo. Agora, isso era debatido abertamente em assembleia. Fazia parte do debate em assembleia 20.

Pedro Cláudio Cunca Bocaiúva Cunha, ex-militante estudantil carioca da tendência Viração21, destaca em seu depoimento o panorama das tendências na segunda metade dos anos 1970, oferecendo-nos uma ideia do cenário dos grupos estudantis e suas principais divergências daquele contexto. [...] quem vai pro dogmatismo nesse período vai pro MR-8; quem vai pro doutrinarismo vai pro MEP; quem fica na AP é movimentista. [...] Assim como no trotskismo você tinha uns três tipos de trotskismos, digamos, você tinha de um lado Convergência, Libelu e DS. Então você tinha três organizações. Quando você era mais doidão, alternativo, você ia pra Libelu, quando você era “vou constituir um partido, nós somos o partido”, você era mais doutrinarista, você era Convergência, quando você era mais dogmático, marxista, internacionalista, trotskista, cultura, você ia pra DS, para 4ª Internacional, os mandelistas. Para o Em Tempo, que vai ser o jornal que nós vamos fazer juntos. [...] O MEP era uma organização mais doutrinarista de um marxismo mais sofisticado de base alemã, que vinha da fração bolchevique, vinha do POC, PO, POLOP, que era mais economicista, mais doutrinarista, então tinha que dizer assim “trabalhadores, estudantes unidos na luta contra a opressão!”, não era povo unido. Isso é doutrinarismo. “Povo unido jamais será vencido” eu podia gritar, o MR-8 podia gritar. [...] Então essas coisas, sutilezas, “nós somos pelas liberdades democráticas, não somos pela democracia”. Então tinha um pessoal, o PC era pela democracia, então era tudo pela aliançona! Nós éramos pelas liberdades democráticas, radicais conquistas democráticas para ir para o socialismo. E os outros eram a favor das liberdades não burguesas, liberdades para os estudantes, trabalhadores e oprimidos. Os trotskistas nisso eram mais próximos de nós. Em outras coisas nós éramos mais próximos do PC. Em outras coisas mais próximos do MEP22.

Todo esse panorama nos mostra a pluralidade de orientações políticas que existiam entre as organizações de esquerda. Essa pluralidade afetava diretamente o movimento estudantil, cuja organização interna era fortemente marcada pela presença desses grupos que, no interior do movimento, assumindo o mesmo nome ou buscando denominações específicas para o meio estudantil, expressavam suas orientações políticas, polarizando o debate no interior do ME. 20

TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014. Esta tendência possuía nomes distintos conforme o estado: Refazendo, em São Paulo; Viração, no Rio de Janeiro; Novação, na Bahia; Liberdade, em Minas Gerais. 22 CUNHA, Pedro Cláudio Cunca Bocaiúva. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014. 21

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Tal diversidade foi responsável pelos rumos tomados pelo movimento estudantil, que atuou expressivamente na luta pelo fim da ditadura no Brasil e pela democracia. Sendo assim, compreender as bases dessas tendências e diferentes grupos de organização estudantil, buscando seus fundamentos, torna-se importante para compreender a luta pelas “liberdades democráticas” no Brasil. As diferenças entre as tendências surgiram a partir da forma como cada uma interpretava a revolução e a leitura que faziam da conjuntura. Grande parte desses grupos que se formaram para atuar no movimento estudantil durante a transição eram herdeiros de organizações clandestinas, partidos e tendências estudantis da década anterior. Contudo, apesar das influências recebidas e da caracterização que, por vezes, associava-os diretamente a essas organizações, os grupos que atuaram no interior do ME passaram por um processo de revisão e diferenciavam-se de si mesmos na década anterior, em especial pela opção tática pela luta democrática em oposição à luta armada. Doravante suas diferenças deram-se no campo das possibilidades distintas de se concretizar o processo revolucionário no Brasil e da análise da conjuntura brasileira realizada por cada tendência. Vale destacar que entre 1973 e 1977 parte dessas organizações de esquerda, como PCB, PCdoB, MR-8 e AP, buscavam reconstruir suas bases, que haviam sido fortemente abaladas pela repressão nos anos anteriores. Esses grupos tiveram seus quadros dizimados, pois muitos de seus militantes foram presos, exilados, ou mesmo mortos pelos militares. O movimento estudantil foi o espaço no qual poucos remanescentes dessas organizações puderam atuar, através das tendências, com certa “liberdade” nas entidades. A partir de 1978, essas organizações, já reformuladas e restabelecidas, mudaram a lógica mais autônoma das tendências para uma lógica de maior enquadramento político23. A compreensão das tendências como elementos que iam além da extensão das esquerdas clandestinas para dentro das universidades, defendida por parte dos militantes daquela geração, leva-nos a compreender o papel desses grupos na dinâmica do movimento. As tendências eram vistas como parte da entidade estudantil e do movimento estudantil, como expressões de uma experiência singular de luta democrática de massa. Assim, eram essas tendências que davam a dinâmica interna do movimento, fazendo dele um espaço democrático em que se disputavam palavras de ordem e encaminhamentos na luta política,

Baseado no pronunciamento de Helena Abramo durante debate após a mesa “Identidade juvenil e vivência universitária nos anos 70”. 25/09/1997. PUC-SP. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos. Fita cassete, RME, fita 08/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo - Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. Obs.: O áudio do seminário foi consultado no Centro de Documentação e posteriormente transcrito pela autora. 23

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pautados nas bases teóricas do grupo de esquerda ao qual pertenciam, mas com um caráter de autonomia na atuação dentro das entidades estudantis. Apesar da vitória de apenas uma das tendências nas eleições para a direção das entidades estudantis, na prática, cada gestão recebia influências da diversidade de grupos que nela atuavam no dia a dia do movimento, e era essa diversidade que marcava o ritmo e o rumo da ação estudantil. A definição do caráter de “independência” das tendências estudantis salientada por exmilitantes relaciona-se com a fase inicial do processo transicional, quando as esquerdas clandestinas estavam enfraquecidas, e os estudantes ligados a essas organizações clandestinas conseguiam atuar mais livremente dentro do ME, ao mesmo tempo em que contribuíam para reformulação dessas organizações. Durante seminário realizado na PUC-SP, em 1997, dedicado a relembrar os 20 anos da reorganização do ME 24 , Laís Abramo, ex-militante da tendência Refazendo, recordou a importante atuação dos estudantes “autônomos” dentro do ME, vinculados apenas às novas tendências estudantis, reunidos em torno do desejo de se transformarem em vanguarda social: Nos organizávamos em tendências porque não havia liberdade partidária. Em tendências, a Refazendo, a Libelu, a Caminhando, a Organizar a Luta, etc. Porque as organizações de esquerda, clandestinizadas pela ditadura militar, encontravam-se muito enfraquecidas. Mas, também, porque buscávamos novas formas de organização do movimento. As tendências eram espaços onde contingentes significativos dos estudantes, muitos deles não identificados com nenhuma dessas organizações, mas preocupados com a direção do movimento, podiam refletir, discutir, consolidar experiência coletiva, formar-se individualmente como vanguarda social25.

O espaço estudantil era livre para a expressão política independente ou partidária e, portanto, constituía-se como um espaço plural, formado por muitas forças distintas que construíam o movimento em seu cotidiano entre embates e debates. É importante ressaltar que não pretendemos realizar um mapeamento das esquerdas26 nem uma análise detalhada de todas as tendências estudantis que atuaram entre 1973 e 1985. 24

Este evento será analisado no capítulo 5, item 5.2.2, desta tese. ABRAMO, Laís. Mesa de debates “Identidade juvenil e vivência universitária nos anos 70”. 25/09/1997. PUC-SP. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos. Fita cassete, RME, fita 07/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 26 Cf. trabalhos sobre as esquerdas brasileiras nos anos 1960: GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1990; RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 1993; SILVA, Antonio Ozaí da. História das tendências no Brasil (Origens, cisões e propostas). 2. ed. São Paulo: Proposta Editorial, [198-?] (este inclui em sua abordagem também os anos 1970). Sobre as esquerdas nos anos 1970, ARAUJO, Maria Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. Mais especificamente sobre as tendências estudantis na USP nos anos 1970: SANTOS, Jordana de Souza. A atuação das tendências políticas no movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) no contexto 25

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A opção foi apresentar as tendências27 com maior expressão na luta política pelas “liberdades democráticas” em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e na Bahia. A partir de documentação disponível sobre as mesmas, procuramos realizar um debate teórico cuja análise privilegiou as memórias de ex-militantes e suas visões sobre as tendências estudantis. Assim, apresento na sequência a trajetória de algumas dessas tendências que faziam do movimento estudantil um espaço plural, as quais, com sua atuação, contribuíram para a definição dos rumos do movimento, bem como para a busca pelas “liberdades democráticas” no Brasil. Desta forma, examinamos as tendências Refazendo, de São Paulo; Viração, do Rio de Janeiro; Liberdade, de Minas Gerais; e Novação, da Bahia, todas elas expressões da APML; Caminhando, tendência estudantil do PCdoB; Unidade, tendência do PCB; Liberdade e Luta (Libelu), tendência da Organização Socialista Internacionalista (OSI); Centelha, tendência da Organização Revolucionária Marxista – Democracia Socialista (ORMDS); e Mãos à Obra, tendência do MR-828. A Ação Popular foi a organização de maior expressão dentro da tendência Refazendo, que, diferentemente de outras tendências, possuía um caráter de maior liberdade entre as organizações de esquerda e possuía em suas bases grande número de militantes “independentes”. Com origens também na APML, havia os grupos Liberdade, em Minas Gerais; Viração, no Rio de Janeiro; e Novação, na Bahia. A Ação Popular reunia em sua origem setores progressistas da Igreja Católica, destacadamente, a Juventude Universitária Católica (JUC) e a Juventude Operária Católica (JOC). Sua gênese data de 1962, dois anos antes do Golpe Civil Militar, surgindo como uma organização autônoma, vinculada principalmente ao movimento estudantil, chegando a dirigir a União Nacional dos Estudantes. Segundo Marcelo Ridenti, cientista social e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 1964, a AP “defendia a criação de uma

da ditadura militar dos anos 1970. 2010. 112f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual Paulista, Marília; 2010; CANCIAN, Renato. Movimento estudantil e repressão política: o ato público na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977) e o destino de uma geração de estudantes. 2008. 295f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) − Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008; MULLER, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da UNE à cena pública (1969-1979). 2010. 266f. Tese (Doutorado em História Social). – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo Université Paris 1 – Panthéon Sorbonne. São Paulo / Paris, 2010. 27 Como parte dos grupos que tinham atuação dentro do ME, apesar de pouco expressiva, temos o MEP e a POLOP, não analisados nesta tese. Conforme afirmado acima, foi dada prioridade ao recolhimento de fontes escritas e orais sobre os grupos que assumiram a luta pelas “liberdades democráticas”. MEP e POLOP eram denominados PEGuistas, conforme já citado neste capítulo. 28 Vale salientar que coloquei como identificação o nome mais comum da tendência estudantil e sua vinculação com a referida organização. Contudo, os nomes modificam-se dependendo da localidade e, por vezes, utilizamse os mesmos nomes para grupos diferentes.

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alternativa política que não fosse capitalista nem comunista, inspirada num humanismo cristão mesclado com influências da Revolução Cubana” (RIDENTI, 1993, p. 26). A organização, com clara inspiração católica, inicialmente procurou se autodefinir como um movimento político independente defensor das ideias humanistas. Contudo, sua criação esteve intimamente ligada às mudanças ocorridas no interior da Igreja Católica, no pontificado de João XXIII, através do Concílio Vaticano II e, ao mesmo tempo, do aprofundamento da luta de classes no Brasil. De acordo com a professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Rio de Janeiro (IFRJ), doutora em História Social pela UFRJ e pesquisadora da Ação Popular, Alessandra Ciambarella, “seus fundadores viram nela a possibilidade de desenvolver uma entidade de ação política de esquerda mais autônoma e desvinculada das diretrizes do clero católico.” (2010, p. 106). Para Maria Paula Nascimento Araujo, a “AP se alinhava às organizações que preconizavam uma revolução socialista no Brasil”, mas fazia a ressalva de que não se tratava da “possibilidade de uma revolução imediata”, mas sim de “ordenar o trabalho e as conquistas atuais a uma preparação ativa desse processo.” (ARAUJO, 2000, p. 81). A partir de 1968, prevalecia, na organização da AP, uma ala de dirigentes vinculada com os princípios maoistas e da Revolução Cultural Chinesa, que estava gerando impactos sobre marxistas por todo o mundo. Segundo Alessandra Ciambarella, tal cenário resultou no “abandono definitivo do foquismo 29 e sua substituição pelo maoismo e pela estratégia da ‘guerra prolongada’, rejeitando o imediatismo da luta armada.” (2010, p.119). Após essa aproximação, em 1969, seguiram-se muitas mudanças no campo da organização da AP, entre as quais, a formalização de sua “marxização”, ao alterar seus estatutos, propondo ao PCdoB e a outras organizações de inspiração marxista-leninista unir forças para formar um partido proletário em novos moldes (CIAMBARELLA, 2010, p. 123). Desta forma, em 1971, o grupo foi renomeado como Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Duramente abalada pelo regime, a AP iniciou um processo de revisão política. O grupo só foi reconstruído em 1975, ainda revelando algumas dificuldades de recobrar sua identidade política e ideológica. Segundo Alessandra Ciambarella, a principal atuação da AP 29

A teoria foquista era vinculada principalmente a Régis Debray, filosofo francês que acompanhou Che Guevara nas matas da Bolívia. Debray defendia que a revolução deveria ser feita através de focos guerrilheiros em constante mobilização no campo, com deslocamentos simultâneos e o apoio das forças revolucionárias, que derrubariam o capitalismo e alcançariam a libertação das massas populares. Pela teoria de Debray, os focos guerrilheiros, ao lançarem-se à luta, serviriam como exemplos a todos trabalhadores, que formariam focos, até a formação de um exército regular (SILVA, Antonio Ozai. s. d. p. 98 99).

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se deu dentro do movimento estudantil que, no fim de 1970, reaparecia atuando na luta pelas liberdades democráticas (2007, p. 123). Uma expressão desta atuação da APML no meio universitário foi a tendência Refazendo, grupo uspiano que se constituiu como uma tendência a partir de 1976, quando se organizou para disputar as primeiras eleições diretas para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) Livre da USP, em reconstrução naquele momento. Contudo, a Refazendo tinha raízes que remontavam a 1973 30 e à formação de um grupo que uniu pessoas independentes e remanescentes de algumas organizações de esquerda que haviam sido abaladas nos anos anteriores pela repressão, mas que buscavam manter sua atuação e ampliar seus quadros dentro da USP, como a APML e o MR-8. Beatriz Bicudo Tibiriçá, ex-militante da Refazendo e integrante da primeira diretoria do DCE Livre da USP, em 1976, enfatiza em seu depoimento o caráter “independente” da Refazendo em sua origem: Na Refazendo, muito pouca gente era da organização. A maior parte era da tendência estudantil. Não estava organizada em torno de uma organização, a Refazendo era na verdade uma aliança entre o MR-8 e a APML, que era a Ação Popular Marxista-Leninista. Mas a Refazendo, enquanto Refazendo, tinha muita gente que estava nesse entorno e que atuava na tendência e atuava ativamente 31.

A organização inicial da Refazendo, enquanto tendência na USP, se deu em torno de um grupo de estudos entre alunos que se reuniam periodicamente, denominado na época como Grupão. Este era um grupo clandestino com intenções para além das organizações políticas, que se uniu na busca de formação política, como um grupo de estudos de grandes referenciais teóricos, mas também como espaço para discussão e avaliação da conjuntura política e dos rumos do movimento estudantil. Restrito, o grupo era composto por uma seleção de dois representantes de cada escola da USP, que formaram um núcleo que originou a Refazendo. Em seu depoimento, Laís Abramo declara sua interpretação sobre a organização e atuação do Grupão: O Grupão era um grupo clandestino. Eram duas pessoas por escola. [...] E a gente se reunia todo domingo à noite – olha a maluquice – na minha casa ou na casa [...] do Carlos Eduardo Massafera, estudante de Engenharia, porque ele morava sozinho. Então, eram os únicos lugares, na minha casa porque tinha família, tinha uma garagem lá que não era usada, e a gente se reunia na garagem. Meus pais sabiam evidentemente e a gente tomava os cuidados para não sermos seguidos. E se reunia todo domingo à noite e discutia os rumos do movimento, a conjuntura e a

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Cf. mais informações sobre a formação da Refazendo, suas primeiras ações políticas e os caminhos trilhados por seus ex-militantes em COSTA, Caio Túlio. Cale-se... São Paulo: Girafa Editora, 2003. 31 TIBIRIÇÁ, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014.

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reorganização do movimento. E criamos depois o que chamamos de ramificações nas escolas32.

As produções historiográficas33 e as memórias de militantes de outras organizações que atuaram durante o mesmo período identificam a Refazendo como uma tendência estudantil vinculada diretamente à Ação Popular. Entretanto, entre os ex-militantes da Refazendo há uma significativa reafirmação do caráter independente do grupo. Na memória da Refazendo, representada por suas ex-militantes entrevistadas nesta pesquisa, a tendência recebia maior influência da APML e, por alguns momentos, também do MR-8 e ALN, por possuir em seus quadros alguns militantes destas organizações. Contudo, nessas memórias 34 , a Refazendo como tendência estudantil é definida como um grupo independente das organizações clandestinas, e é dado destaque ao fato de muitos de seus militantes nunca terem se vinculado às organizações de esquerda, militando somente no meio estudantil. Representantes desse grupo de independentes que compunha a Refazendo teciam críticas às organizações de esquerda consideradas “tradicionais”, pautadas no centralismo democrático, e, por conseguinte, valorizam o caráter “independente” e “livre” da Refazendo enquanto organização, bem como a busca da revolução democrática como princípio. A professora de psicologia do Instituto de Psicologia da USP Vera Paiva, ex-líder estudantil da Refazendo na USP, enfatiza em seu depoimento que o caráter “independente” da tendência foi o fator responsável pela unidade do grupo estudantil: A gente fazia muita leitura, [...] a gente lia todos os caras do CEBRAP 35 , por exemplo, Chico de Oliveira, fazia análise de conjuntura autônoma, independente. A gente era supersolidário com os presos políticos, com a questão da anistia. Eu mesma representei o comitê da USP na Comissão Brasileira de Anistia. Mas sempre com uma certa distância da tradição. A gente não tinha nenhum compromisso com nenhum partido comunista, com nenhuma revolução que não fosse democrática. [...] Nós não queríamos nunca ser uma correia de transmissão de partido político para dentro do movimento. Essa foi a questão central que unificou esse conjunto de estudantes de correntes muito diversas e que pegava gente de todas as faculdades praticamente36.

A Refazendo foi uma das tendências de maior expressão no movimento estudantil paulista e, como veremos mais adiante, ganhou as primeiras eleições para o DCE Livre da 32

ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. Cf. exemplos desta definição por parte da historiografia em MÜLLER, Angélica e CANCIAN, Renato, citados de forma completa nas referências bibliográficas. 34 As pessoas entrevistadas pertencentes à Refazendo foram Laís Abramo, Beatriz Tibiriçá e Vera Paiva. 35 O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) é um centro de estudos e pesquisa fundado em 1969 por um grupo de professores, em sua maioria afastados das universidades pelo regime militar, com o intuito de ser um centro de resistência intelectual. Destacou-se na cena nacional com seminários, publicações e pesquisas marcados por um caráter de resistência política e produção de conhecimento crítico independente. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2015. 36 PAIVA, Vera. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014. 33

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USP Alexandre Vannucchi Leme, em 1976, e se reelegeu no ano seguinte para a direção da entidade. Na USP, a tendência tinha maior força nos cursos de Geologia, Física, Geografia, Psicologia, Engenharia, Ciências Sociais e Economia37. Os militantes da Refazendo que eram oriundos da Ação Popular tinham perdido contato com a organização em decorrência das prisões de muitos líderes, em 1971, e, portanto, atuavam “isolados” no meio universitário. Estes militantes remanescentes da AP, unidos a outros universitários que não estavam vinculados a organizações de esquerda – identificados como autônomos –, que desejavam atuar dentro do ME, se aglutinaram no Grupão, já citado anteriormente. Em 1976, esses militantes se reaproximaram da AP, que, progressivamente, absorveu seus principais quadros, no mesmo momento em que o Grupão se organizava como tendência Refazendo para disputar as eleições para o DCE da USP. Refazendo era o nome dado à tendência em São Paulo. No Rio de Janeiro, recebia o nome de Viração, e sua vinculação como tendência estudantil da AP, após sua reconstrução, era mais claramente colocada por seus militantes, indicando inclusive uma aproximação, em um curto período, com o MR-8, fato que também aconteceu com a tendência Refazendo de SP, que se distanciou quando o MR-8 passou por mudanças de orientações teóricas. A Viração considerava-se um grupo situado ao centro, contra o radicalismo da esquerda no sentido de esquerdismos ou direitismos. Assim, consideravam-se um grupo de equilíbrio entre as forças de esquerda atuantes na universidade, com posicionamentos que valorizavam as manifestações de rua e o apoio aos candidatos socialistas do MDB. A tendência carioca obteve grande expressão na PUC-RJ, chegando a dirigir o DCE desta instituição por vários anos. Cunca Boacaiúva, ex-militante da Viração, evidencia em seu depoimento esse posicionamento da tendência como um caminho intermediário entre os extremos das organizações: Olha, em 76-77 era a formação de uma frente de ação popular, apoiar a anticandidatura do MDB. Tentar uma frente única de mobilização popular pra ser diferente de uma frente popular. Pra não se submeter ao MDBismo, tentando ser esquerda. Era uma coisa que você poderia chamar na esquerda de centrismo. Você tinha o esquerdismo, o direitismo da esquerda e nós ficávamos no meio. Sempre fomos o pêndulo, sempre ficamos no meio. “Vamos sair na rua?” “Não!”. O reformismo sempre dizia não e os outros dizendo sempre: “vamos sair na rua”, e nós dizíamos: “vamos fazer o pessoal escolher!”. “Querem sair na rua? Não querem?”. Nós apoiávamos sair na rua, mas acatávamos quando a massa na assembleia decidia não sair na rua. Mas nós estimulávamos ir na rua, mas não íamos na rua a qualquer 37

AZEVEDO, Ricardo. Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, n. 35. set. 1997. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2015.

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preço e nem tínhamos a posição de não ir pra rua com radicalismo equivocado. Nós sempre ficamos nesse meio “nós vamos entrar no MDB, mas não vamos votar no senador tal, deputado tal, só nos caras socialistas do MDB.” 38.

Em Minas Gerais, a tendência recebia o nome de Liberdade. O empresário Jânio Oliveira Bragança, ex-líder estudantil mineiro da tendência Liberdade, presidente do DCE da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1977, em seu depoimento relembra a formação da tendência mineira: A APML é uma sequência interrompida e modificada da antiga AP, fundada em Minas Gerais na década de 60 essencialmente pelos cristãos, a JUC, JEC e JOC. Ela nasce aqui, depois tem uma vertente que ela vai se aproximando do maoismo, a maioria dela se funde com a questão do PCdoB na luta armada, a minoria funde-se ao grupo chamado APML. [...] A gente começa a ter muito acesso à revista Brasil Socialista e nós nos aproximamos muito do pessoal da APML [...]. Então, a Liberdade vira uma tendência estudantil ligada a uma facção estudantil da AP 39.

Conforme depoimento de Jânio Bragança, a tendência mineira começou a se articular em 1976 a partir da leitura da revista Brasil Socialista e da aproximação com a APML. Em 1977, a Liberdade se constituiu oficialmente como a expressão estudantil para disputar as primeiras eleições diretas do DCE da UFMG, que desde 1968 eram realizadas de forma indiretas e controladas pelos órgãos de repressão dentro da UFMG. A Liberdade também foi eleita para a primeira gestão de liderança da União Estadual dos Estudantes (UEE) de Minas Gerais, em 1978, e teve grande expressão em todo o estado. Na Bahia, essa tendência ligada a AP recebia o nome de Novação. No entanto, teve pouca expressão no movimento estudantil no estado. Para a historiadora Angélica Müller, em sua tese de doutorado pela USP sobre o ME entre 1968 e 1979, “é certo que, em fins de 1980, a APML ainda era a força majoritária dentro da ‘Refazendo’ ” (2010, p. 115), assim como continuava como principal base da Caminhando, da Liberdade e da Novação. Mas foi nesse mesmo momento que a APML optou, em seu último congresso, pelo fim definitivo da organização e, portanto, das tendências, através de uma integração ao Partido dos Trabalhadores (PT), partido que reconheceram como partido de massas, ao qual passaram a se vincular (CIAMBARELLA, 2007, p. 124). Outra tendência importante no contexto da transição é a Liberdade e Luta (Libelu), setor estudantil da OSI filiado à IV Internacional40. A Libelu surgiu a partir de uma fusão da

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CUNHA, Pedro Cláudio Cunca Bocaiúva. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014. 39 BRAGANÇA, Jânio Oliveira. Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015. 40 A IV Internacional foi criada em 1938 por Leon Trotski em oposição à III Internacional de Stalin. A IV Internacional agrupa partidos e movimentos de tendência trotskista no mundo todo.

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Frente Estudantil Socialista, vinculada à organização Primeiro de Maio e à Tendência pela Aliança Operária Estudantil (TAOE), expressão estudantil ligada a grupos trotskistas, como a Organização Marxista Brasileira (OMB). A Libelu a partir dessa fusão originou-se como tendência em 1976, como grupo para disputar as primeiras eleições diretas para o DCE Livre da USP. A historiadora Angélica Müller, em sua tese de doutorado, afirma que o conteúdo político da tendência ligava a luta do ME à luta dos trabalhadores – “sustentáculos de toda a riqueza material da nação”. Para a “Libelu”, a aliança com os trabalhadores começava dentro da própria universidade, ao unir os estudantes aos professores e funcionários. As lutas empreendidas por esses setores em conjunto deveriam englobar desde as necessidades mais “elementares”, como moradia e alimentação, a luta contra o arrocho salarial, até as mais amplas, centradas na luta pelas liberdades democráticas. (MULLER, 2010, p. 116).

Partindo do pressuposto da necessidade de aproximação entre a luta dos trabalhadores e a universidade, a Libelu tinha como pauta central a formação de uma “aliança operárioestudantil”. De acordo com Angélica Müller (2010, p. 117), a Libelu, por entender a universidade formada como espaço de preparação de mão de obra especializada para o capitalismo, defendia maior democratização da universidade em todos os seus âmbitos. Também se tornou uma das primeiras tendências a defender a luta pelas “liberdades democráticas” como palavra de ordem dentro do ME. A tendência obteve grande expressividade nacional, sendo uma das únicas a manter o mesmo nome em todos os estados e cidades. Foi eleita como diretoria do DCE Livre da USP em 1978 e, no ano seguinte, concorreu como chapa nas primeiras eleições diretas da UNE, obtendo 25 mil votos, que não suficientes para que fosse eleita. Na USP, a Libelu tinha maior expressão nos cursos de Arquitetura, Comunicação, Filosofia, Economia e Ciências Sociais, e era a segunda força do ME na USP 41 . Em 1980, a Libelu se vinculou ao PT como uma tendência de expressão interna. Esta corrente posteriormente passou a ser denominada como O Trabalho. A tendência Caminhando, ou Ação e Unidade, era uma expressão do PCdoB42. No período após a derrota do Araguaia, em 1974, o debate dentro do PCdoB, de acordo com Antônio Ozai da Silva (s. d., p. 160), girava em torno de duas posições: uma através do documento “Gloriosa Jornada de Luta”, defendida por Ângelo Arroyo e João Amazonas; e 41

AZEVEDO, Ricardo. Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, n. 35. set. 1997. Disponível em: http://csbh.fpabramo.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes-anteriores/memoria-medo-e-liberdade Acesso em: 15 fev. 2015. 42 Por não ser o foco deste trabalho, não irei desenvolver uma análise de toda a história do PCdoB, mas sim contextualizar o partido em meados dos anos 1970, após a derrota da experiência de luta armada no Araguaia.

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outra defendida por Pedro Pomar, que apresentava a derrota da guerrilha como consequência dos erros e da má avaliação das forças dos inimigos e que, apesar da bravura dos guerrilheiros, nenhum dos objetivos foram alcançados devido a erros táticos e estratégicos. A repressão intensificou-se na busca de caçar todos os dirigentes do PCdoB desde a derrota da Guerrilha do Araguaia. E, no momento em que a direção do partido encontrava-se reunida travando esse debate, a casa que servia de base ao partido foi invadida pela repressão, que executou Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. A ação que ficou conhecida como Chacina da Lapa ainda prendeu os demais militantes que estavam no local. Diante do crime, o partido precisou se reformular e restabelecer suas bases para seguir um processo de reflexão sobre sua atuação na luta política no contexto pós-luta armada. Para Alon Feuerwerker, estudante de Medicina da USP e ex-militante da Caminhando na época, esse debate tomou corpo dentro do PCdoB quando a tendência atuante no movimento estudantil posicionou-se a favor da luta de massas como caminho político que conduziria às “liberdades democráticas”. Era um debate que já vinha desde o fim da guerrilha, “qual que era o caminho?”. O próprio PCdoB, depois que acabou a guerrilha do Araguaia, estava fazendo essa discussão. E nós entramos no PCdoB no momento em que o PCdoB estava fazendo essa discussão. E essa foi a base da divisão do PCdoB [...] que se dividiu entre os caras que achavam que a guerrilha do Araguaia tinha sido um equívoco e os caras que achavam que a guerrilha do Araguaia tinha sido uma gloriosa jornada de luta pelo povo brasileiro, e não tinha sido um equívoco, que ela tinha acumulado força pra outras coisas. E a gente fez parte de um grupo que achava que não, que a guerrilha do Araguaia era o caminho errado, e o caminho certo era organizar os sindicatos nas universidades, nos bairros, participar dos partidos políticos e disputar eleições. 43.

A divisão do PCdoB não incidia apenas na avaliação e na autocrítica à Guerrilha do Araguaia mas também incidia sobre os usos propostos de luta política que a organização formulava. Para a professora do departamento de Medicina da USP Laura Camargo Macruz Feuerwerker, aluna do curso de Medicina da USP nos anos 1970, ex-militante da Caminhando, o PCdoB foi uma das últimas organizações a superar a questão da luta armada, mas, após os debates internos no partido, optaram pela democracia como valor absoluto, adotando um posicionamento que o aproximava da interpretação do PCB. A gente queria a democracia. Mas a maioria dessas tendências achava que a gente ia fazer a revolução no Brasil. A gente achava que era uma revolução democrática. Democracia como valor absoluto. Precisa ter debates, espaço de orientação, manifestação. [...] A questão da luta armada estava fora de cogitação dessas organizações a essa altura do campeonato. O PCdoB foi um dos últimos a abandonar isso. [...] Mas, com certeza, tinha uma perspectiva de mudar o país. Liberdade e 43

FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014.

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democracia para mudar o país. E produzir movimentos de diferentes tipos para conquistar coisas. Por isso que esses movimentos se articularam fortemente com os movimentos sociais por vários direitos que aconteceram nos anos 1980. Mas existia muita discussão ainda. [...] Porque a prática concreta era um movimento mais de coletivos, movimentos mais amplos que envolviam muitas pessoas. Construir um país diferente, e aí tinha que trazer mais pessoas para fazer isso, e tinha toda uma discussão de como tudo pode ser mais democrático: a universidade; o sindicato; as profissões. 44.

A fala de Laura Macruz indica a opção da Caminhando pela democracia como princípio, parte necessária para a concretização de uma revolução democrática, que foi a marca dos grupos que optaram pela luta das liberdades democráticas. O processo de definição de uma nova tática política iniciou-se com uma revisão sobre a atuação política no passado, seguida pela crítica à geração anterior como base da reformulação das tendências estudantis dentro do ME a partir de 1973. A Chacina da Lapa, em 1975, foi marcante na história do PCdoB, gerando efeitos na dinâmica interna do partido – que caminhava para um processo de rearticulação e revisão após a sua derrota no Araguaia – e na atuação da sua tendência estudantil. Mas a chacina não resultou na dizimação da legenda, conforme era o desejo da repressão. Apesar do abalo, o crime não foi capaz de promover a queda total do partido devido a uma organização interna da direção. O professor do departamento de Medicina da USP Paulo Andrade Lotufo, estudante de Medicina da USP durante o período da transição, ex-militante da Caminhando, em seu depoimento afirma que o caráter interno de organização do partido garantiu sua sobrevivência mesmo após o abalo gerado pela Chacina da Lapa. Em 1977, logo depois da queda da Lapa, foi uma coisa interessante, eu comecei a ouvir mais a Rádio Tirana e teve uma das coisas que me marcou muito, que foi um editorial falando assim: “um militante tem que entender que ele próprio é o partido, que ele faz o partido o tempo inteiro na luta por... E quando houver normalização, ele traz, junta e incorpora ao coletivo tudo aquilo que ele fez sozinho”. Porque ninguém sabia qual seria o reflexo da Lapa no partido. Porque um ano antes, dois caras do PCB caíram e devastou o partido porque eles abriram todo o sistema. O PCdoB não caiu, não caiu ninguém. O Comitê Central soube segurar, e também tinham uns esquemas, o PCdoB tinha duas estruturas regionais que não se falavam e nem se conheciam. Foi uma ideia interessante que eles tiveram em um determinado momento e eles tinham um comitê central que não se reunia por inteiro, tanto que na Lapa não caiu todo mundo, se reuniam dois terços. E aí, cada estado tinham dois comitês regionais, que é estrutura 1 e estrutura 2, que depois é a base para o racha, que tem significado até agora, por incrível que pareça. Então eu era da estrutura 1, nós éramos da estrutura 1 da USP, o pessoal da PUC era da estrutura 2. Então tinha essa diferença e tinha alguém do Comitê Central que chegou um dia lá e falou:

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FEUERWERKER, Laura Camargo Macruz. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 07 de dezembro de 2012.

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“olha, estrutura 1, você fica só na USP, não vai para a PUC! PUC você só vai ficar aqui.” 45.

O Movimento Estudantil desempenhou um importante papel na rearticulação do PCdoB e tornou-se sua principal expressão política após a Chacina da Lapa, quando parte da sua liderança foi morta ou presa. Esse grupo logo endossou a luta pela democracia, defendendo a Constituinte, a anistia e o fim da censura, prezando pela política de massas. Paulo Lotufo, em seu depoimento, afirma a visão da Caminhando sobre as lutas que eram pautas do contexto de transição. Lutar pela democracia, uma constituinte, anistia, fim da censura. E aí, a ação do PCdoB nas universidades passou a ser uma política de massas [...]. E a questão política bastante forte em termos de contra a ditadura, liberdades democráticas, todo esse posicionamento. [...] E a Caminhando já era uma marca, e muita gente já passava a se identificar com a Caminhando. Então, Caminhando era o codinome, o braço no movimento estudantil do PCdoB46.

A Caminhando manteve-se como braço de atuação do PCdoB dentro do movimento estudantil. Na USP, tinha maior presença na Medicina, na Politécnica e nas Ciências Sociais. Porém, em nível nacional, dada a maior organização do PCdoB, despontou como principal força 47. Em 1979, a Caminhando ganhou as primeiras eleições diretas para a diretoria da UNE, em uma chapa que envolvia outras forças políticas, como a Refazendo. De acordo com Angélica Müller, a tendência participou da gestão da UEE-SP, e “controlava o DCE da UFBA, da UEL e da UFPA e estava próxima das tendências ‘Debate e Ação’ em Brasília e ‘Unidade’ no Rio Grande do Sul. A tendência na Bahia se chamava ‘Viração’ e foi a mais forte do período, naquele Estado.” (2010, p. 123). A tendência do PCB no meio estudantil recebia o nome de Unidade, ou mesmo Debate, nome este com o qual concorreu nas eleições para o DCE da UFRJ em 1978. O partido sofreu muitas críticas por parte da própria esquerda desde o Golpe de 1964, e assumiu, nos anos 1970, a luta pelas liberdades democráticas como bandeira, pautado na ideia da busca de acúmulo de forças para promover um avanço da democracia dentro do capitalismo, defendendo as reformas no âmbito da democracia burguesa. Por conta desse posicionamento, foram denominados de Reformistas por organizações como o MR-8, APML, MEP e organizações trotskistas.

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LOTUFO, Paulo Andrade. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 21 de outubro de 2014. Idem. 47 AZEVEDO, Ricardo. Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, n. 35, set. 1997. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2015. 46

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Os outros grupos criticavam a proposta do PCB de se fazer uma aliança com a burguesia como passo para a concretização da revolução no Brasil. Considerado um erro por aqueles, o PCB, no entanto, acreditava na formação de uma frente democrática que fizesse alianças com a esquerda e setores da burguesia. O professor do departamento de Medicina da UFRJ Amâncio Paulino Carvalho, estudante de Medicina da UFRJ no período da transição, ex-militante da Unidade/PCB, em seu depoimento apresenta a visão do PCB sobre a luta pelas “liberdades democráticas”. E aí tinha um programa democrático, constituinte, liberdade partidária, avanço no sentido de reduzir as desigualdades econômicas. Um programa político para essa transição, e a gente tinha ideia de formar o que chamavam na época de frente democrática. Então, a gente achava que tinha que fazer uma aliança com setores que a gente chamava de burguesia, e que tinha contradições importantes com a ditadura, a gente via assim [...]. Então, a tática era da frente democrática e a gente disputava espaço com a esquerda na universidade exatamente com as forças que não tinham essa concepção. Achavam, por exemplo, que o trabalho da luta tinha que ser imediatamente pela revolução 48.

Entre 1976 e 1980, o PCB obteve grande expressão no meio estudantil, chegando a ter presença nas maiores universidades do país, como podemos percebemos no depoimento de Amâncio Carvalho, que considera que o partido teve pouco reconhecimento de sua expressão nacional. Embora isso não seja reconhecido, o PCB chegou a dirigir nesse período entre 76 e 80 praticamente todas – num ano e no outro, não o tempo todo em todos os lugares – mas praticamente todas as grandes universidades do país. Posso te citar Federal do Rio Grande do Sul, PUC do Rio Grande do Sul, Federal de Santa Catarina, Federal do Paraná, USP, alguns na UNESP, em Campinas, aqui no Rio PUC, Federal do Rio de Janeiro, Unirio, UFF, aí vai, Federal do Espírito Santo, Federal de Minas Gerais, no Nordeste a mesma coisa. Então, em um momento ou outro, a gente teve posição significativa sempre com essa posição frente democrática, aliança política, atuação dentro do MDB49.

O PCB manteve o Movimento Estudantil como um espaço importante para a atuação através da tendência estudantil e com expressão pelo país, atuando no ME das principais universidades. Outra tendência de expressão naquele contexto foi a Centelha, grupo com maior expressão em Minas Gerais. O grupo nasceu como tendência estudantil trotskista, vinculada à “Organização” Mineira conhecida apenas pela abreviatura “O” – dada a concepção de clandestinidade que ainda cercava a militância de esquerda (ANGELO, 2008, p. 5) – em 1977, para disputar as eleições do DCE da UFMG. O autor Vitor Amorim de Ângelo, em sua

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CARVALHO, Amâncio Paulino de. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. Idem.

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pesquisa de doutorado na qual analisa a história da Democracia Socialista, descendente da Centelha, que recebeu este nome devido ao grupo, em 1979, afirma que A O. mineira foi criada na primeira metade dos anos 1970 por estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e de Juiz de Fora (UFJF) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Seus integrantes eram contrários à atuação do PCdoB e da APML no movimento estudantil e críticos da luta armada. [...] De um lado, as divergências com o Partido Comunista do Brasil permitiram uma aproximação com as outras organizações que participavam do Movimento e que também discordavam da linha adotada pelo partido. De outro, a reorientação política de vários grupos de esquerda que tinham aderido às ações armadas também contribuiu para reforçar essa aproximação. Para aumentar sua influência no movimento estudantil, a O. lançou a tendência Centelha, em abril de 1977. A criação da Centelha ocorreu logo depois de encerrada a eleição para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG, quando a chapa lançada pelo grupo mineiro – também chamado de Centelha – foi derrotada pelos candidatos apoiados pela APML (ANGELO, 2008, p. 04).

Fundada em 1977, a Centelha nasceu como uma oposição definida aos grupos, até então atuantes, em especial ao PCB, ao qual tecia críticas. Sua atuação já era expressiva no ME de Belo Horizonte, em especial na UFMG e PUC-MG, desde 1971, a partir da “Organização”, ainda sem se constituir como uma tendência estudantil. Posteriormente à formação como tendência, a Centelha aproximou-se de outro significativo grupo mineiro – a Estratégia – compondo juntos esta força política mineira. Para o professor do departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Ignacio Godinho Delgado, estudante de História desta instituição no contexto da transição e ex-militante estudantil da tendência Estratégia de Juiz de Fora/MG, a aproximação ideológica entre os dois grupos fez com que se fundisse: A gente foi ficando meio trotskista assim, e no documento que publicamos antes da Centelha, [...], a análise era muito essa, a gente não discutia os problemas estudantis, a gente discutia a revolução brasileira, era muito do diagnóstico de onde o PCB errou, como foi o início do populismo, que não sei o que... E aí a gente foi ficando meio trotskista, aí a Centelha veio e faturou, e nos pegou, e fomos de bom grado, foi um casamento feito com muita satisfação, teve muito pouca resistência a essa aproximação com a Centelha, nós ficávamos tentando descobrir assim o que somos nós... “Ah! Nós somos aqueles lá...” E fomos então pra Centelha50.

Através do depoimento de Ignacio Delgado, percebemos que a aproximação entre os grupos se dava com motivações que extrapolavam a identificação ideológica. Elas também passavam pela simpatia e por laços de amizade e afinidade e que, por conseguinte, se refletiam no campo político. Havia também a Organização – “O” – Gaúcha, envolvida posteriormente na criação da Democracia Socialista (DS) juntamente com os mineiros. Ela contou com o envolvimento de 50

DELGADO, Ignacio José Godinho. Entrevista concedida a autora. Juiz de Fora, 10 de junho de 2009.

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ex-militantes do Partido Operário Comunista (POC) e de militantes estudantis. O grupo gaúcho Nova Proposta manteve-se organizado politicamente dentro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e dentro do MDB, preocupados com a formação de uma organização revolucionária. O grupo adotou como base ideológica o trotskismo, advindo principalmente de seus militantes ex-membros do POC. O Nova Proposta foi organizado na mesma época em que, em Minas Gerais, era criada a Centelha. Contudo, naquele ano, segundo Vitor Ângelo, por conta das divergências em torno das formas de enfrentamento do regime militar e do conteúdo ideológico a ser dado à luta pela redemocratização, a Nova Proposta dividiu-se em dois outros agrupamentos. Do racha, surgiram o Manifesto, que defendia a permanência no MDB mesmo depois da reforma partidária, e a Peleia, favorável à utilização da estrutura “emedebista” para construir um partido socialista (2008, p. 08). Os laços pessoais entre alguns membros do grupo de Minas e do Rio Grande do Sul, que haviam estudado juntos na Unicamp, somados à base teórica comum entre as duas organizações e aos contatos estabelecidos na militância estudantil, levaram a Centelha – que aderira aos dissidentes do jornal Movimento, em 1977 – a convidar os integrantes da Peleia para participarem da construção do jornal Em Tempo. Parte dos militantes gaúchos permaneceu no Rio Grande do Sul, atuando como representantes do novo jornal, enquanto outros se deslocaram para São Paulo, onde começaram a trabalhar junto com alguns dirigentes da organização mineira, que já haviam se transferido de Minas Gerais para a capital paulista (LACERDA, 2011, p. 55). Sobre a organização nacional que uniu a Centelha ao grupo gaúcho e a presença da mesma em São Paulo, Ignacio Delgado, ex-militante do grupo Estratégia / Centelha, relata que a Centelha [...] no ano de 78, virou uma organização nacional, agrupando uma tendência que existia no Sul, que era a Peleia, a Centelha, em BH, a Estratégia, em JF, e uns gatos pingados que foram surgindo em São Paulo, porque a turma da Centelha em BH foi uma organização que dirigia a tendência mandou pra São Paulo uma turma pra criar um trabalho lá, então foi pra lá o Flavio Andrade, o João Machado, mais tarde foi o Carlos Henrique Árabe, o próprio Duda que era o grande nome nacional da Centelha51.

Contudo, a partir de março de 1979, o jornal Em Tempo esteve oficialmente engajado na organização do PT. Além do domínio conquistado sobre o jornal, os trotskistas também se convenceram de que, naquele momento, o projeto socialista não passava mais pela militância

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DELGADO, Ignacio José Godinho. Entrevista concedida a autora. Juiz de Fora, 10 de junho de 2009.

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no MDB, na qual estavam as lideranças político-sindicais tidas como conservadoras pelos grupos mineiro e gaúcho. Segundo Vitor Ângelo, em seu doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), prova disso foi a decisão da Tendência Socialista – sobre a qual a O. do Rio Grande do Sul tinha um controle considerável – de sair em bloco do MDB para apoiar o Movimento pró-PT. De acordo com seus integrantes, o desdobramento das articulações político-partidárias exigia dos socialistas “apostar e assumir concretamente a organização do PT”. Acreditando que apenas o partido teria condições de organizar os trabalhadores de forma independente e que pela sua condição de “projeto frentista de massas” a legenda poderia abrigar os diversos agrupamentos de esquerda isolados individualmente em seus trabalhos políticos, a Tendência Socialista buscou contactar organizações regionais que tivessem o “mesmo tipo de interpretação do Movimento pró-PT” para articular, nacionalmente, uma atuação conjunta. Esse, portanto, foi outro ponto de convergência entre os grupos do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Ao se encontrarem no Em Tempo, as duas organizações iniciaram um processo de discussão política que culminaria no congresso de dezembro de 1979 (2008, p. 9).

Desta forma, esse grupo formado por Minas Gerais e Rio Grande do Sul, do qual se originou a DS, foi se envolvendo paulatinamente no movimento pró-PT, vendo neste partido a alternativa viável para unir diversos grupos de esquerda isolados politicamente, tornando-se um verdadeiro partido de massas, capaz de organizar os trabalhadores. Eles não acreditavam que a organização dos trabalhadores em classe pudesse ocorrer de maneira espontânea, “o que explica o fato de a DS apoiar, desde o início, a criação de um partido de vanguarda, baseado num programa revolucionário, em que atuassem quadros formados nesse programa com larga experiência na luta política” (ANGELO, 2008: 9). A Centelha se identificou com a luta pelas liberdades democráticas e avaliava, no contexto do fim dos anos 1970, que a ditadura estava enfraquecida e abria espaço para a atuação social nos alargamentos do seu projeto de transição. Portanto, para esse grupo, era necessário radicalizar a luta democrática e unir forças ao movimento operário. O grupo, apesar de possuir um quadro de importantes intelectuais, não dispunha de uma base social sólida. O número de militantes da DS era limitado ao movimento estudantil e a alguns contatos com as oposições metalúrgicas de São Paulo e de Belo Horizonte, com as quais os militantes vindos do POC e da O. mineira mantinham relações. A DS vinculou-se ao PT e passou a atuar no partido como tendência interna. A Centelha teve grande expressão como tendência estudantil, chegando a dirigir, em 1979, o DCE da UFMG, da PUC e da UFJF, mas era um grupo com raio de atuação limitado a Minas Gerais. Contudo, após sua união com o grupo do Rio grande do Sul, ganhou maior expressividade nacional, chegando a lançar a chapa Novação para concorrer nas primeiras

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eleições diretas para a UNE em 1979, que foi uma união entre Centelha, Estratégia, Peleia e a Convergência Socialista52. Outro grupo que teve relevância dentro do movimento estudantil no contexto da transição foi o MR-8, como tendência estudantil que, por vezes, recebia o nome de Mãos à Obra. A gênese do MR-8 foi fruto da crise do PCB, associada às divergências internas que se desenvolviam entre a juventude universitária comunista, no então estado da Guanabara, em período que precedeu o Golpe Civil Militar. Com a instauração da ditadura, as discordâncias internas foram se ampliando e se consolidando. No mesmo ano do golpe, uma fração de militantes universitários comunistas da UFRJ passou a se reunir, definindo rumos próprios. Para eles, era possível transformar por dentro o PCB, através de uma luta interna, tendendo para uma linha mais revolucionária. Dessa dissidência do PCB, surgiu a Dissidência Universitária da Guanabara (DI-GB). O professor do departamento de Ciência da Religião da UFJF Marcelo Ayres Camurça Lima, estudante de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) no contexto da transição e ex-militante do MR-8, em seu depoimento relembra a origem e os objetivos do MR-8: O MR-8 foi assumindo e foi se delineando, a partir do primeiro e do segundo congresso, a Dissidência Universitária da Guanabara, enquanto um movimento revolucionário de feição de Partido Comunista. O MR-8 queria ser um Partido Comunista Brasileiro e adotou uma postura do partido comunista dos anos 50. Não queria ser o Partido Comunista Brasileiro dos anos 60, 70 porque ele achava que era um partido comunista que pouco a pouco vinha perdendo a sua combatividade 53.

O MR-8 formou-se aos poucos a partir da DI-GB, baseado nos debates em seus dois primeiros congressos. Considerava-se um movimento revolucionário, tendo como referência o PCB dos anos 1950, considerado mais revolucionário e combativo que nos anos seguintes. A DI-GB foi envolvida pelos debates políticos que haviam se radicalizado e pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), que intensificou a repressão e iniciou ações armadas. Abraçando a luta armada, a ação de maior expressão da DI-GB foi o sequestro do embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, em ação conjunta com a ALN. Foi nessa 52

A tendência Convergência Socialista (CS) se originou de um grupo de militantes que estavam exilados no Chile. Dentre eles, estavam Mario Pedrosa e o trotskista peruano Hugo Blanco, que entraram em contato com IV Internacional e formaram o grupo Ponto de Partida, em 1972 (MARQUES, 2007, p. 157). Em 1973, após o golpe militar chileno, um dos militantes do Ponto de Partida e ex-militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) foi executado no Estádio Nacional, e o Ponto de Partida se dispersou. Alguns que fugiram para a Argentina fundaram a Liga Operária (LO). Ao retornar para o Brasil em 1974, logo a LO se vinculou ao movimento estudantil. No início de 1978, a LO lançou o Movimento Convergência Socialista, “conclamando os setores socialistas para a formação de um partido socialista”. A CS apoiou a fundação do PT (LACERDA, 2011, p. 95). 53 LIMA, Marcelo Ayres Camurça. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 08 de janeiro de 2014.

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ocasião em manifesto que expressava as razões de sua ação e suas exigências, que a DI-GB autodenominou-se Movimento Revolucionário Oito de Outubro, MR-8, nome inspirado na data de morte de Ernesto Che Guevara. Após o sucesso da operação de setembro de 1969, o MR-8 sofreu com a repressão policial, tendo muitos de seus militantes presos, torturados e exilados. Porém, no período de abertura política, retornou com força a esse cenário, atuando destacadamente na reconstrução da UNE e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Naquele novo contexto, o MR-8 via o movimento estudantil como uma força auxiliar ao movimento operário na luta contra a ditadura e para a concretização da revolução socialista no Brasil, que teria na democracia seu elemento anterior necessário para viabilizar o socialismo. A advogada Eladir de Fátima dos Santos, estudante de Direito da UFRJ nos anos 1970, membro da Diretoria do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) em 1978, exmilitante do MR-8, em seu depoimento rememora a relação entre movimento estudantil e operário na visão do MR-8: Quem derrubaria a ditadura seria a classe trabalhadora organizada. O movimento estudantil auxilia nessa organização. [...] O protagonista real da revolução era a classe trabalhadora. [...] Em termos práticos, eu achava interessantíssimo, para mim, era muito bonito aquilo, tanto que o nome da chapa era “mãos à obra”! [...] Ah, era uma luta concomitante que, pelo o MR-8, passava essa linha política: uma luta pela liberdade democrática e pela construção da sociedade socialista. Porque você lutando por liberdade democrática você está acumulando forças para a luta maior, que é a implantação do socialismo. Era essa a minha política, do meu partido MR-8 e também do PCdoB, do PC. A luta por liberdade democrática não inviabiliza a luta pela construção da sociedade socialista, pelo contrário, dentro da democracia é mais fácil você lutar pelo socialismo do que dentro de uma ditadura. Dentro da ditadura, se implantar o socialismo, é mais difícil, então era uma luta concomitante. Acúmulo de forças 54.

Para o MR-8, a base política era a defesa da revolução nacional e democrática e da luta anti-imperialista. A adesão à luta pelas liberdades democráticas, na perspectiva da organização, visava o acúmulo de forças necessário para a luta pela implantação do socialismo. Entre 1978 e 1982, houve um crescimento significativo do MR-8. De uma organização mais restrita ao Rio de Janeiro tornou-se um partido clandestino com expressão nacional, estendendo-se do Rio Grande do Sul ao Pará (CAMURÇA; REIS, 2007, p. 141). Nesse

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SANTOS, Eladir Fátima Nascimento dos. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2012.

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mesmo sentido, outras organizações comunistas de menor porte se incorporaram ao MR-8. Segundo Marcelo Camurça e Daniel Aarão Reis, Ao lado de seu crescimento interno, o MR-8 teve participação ativa na reconstrução das entidades de massa representativas dos diversos setores da sociedade brasileira. Participou das direções da UNE e da UBES, em aliança com o PC do B; da criação da Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam), [...], e também da Confederação das Classes Trabalhadoras (Conclat), organismo que buscava conciliar as forças emergentes do sindicalismo da região do ABC paulista com as forças tradicionais do sindicalismo trabalhista e de seus aliados comunistas, entre os quais o MR-8 (2007, p. 141).

Tal crescimento a partir de 1978 deu ao MR-8 maior visibilidade nacional, dentro e fora do movimento estudantil. Nesse momento, a perspectiva revolucionária ganhou corpo na expectativa pela concretização da revolução. O professor do departamento de Matemática da UERJ Luiz Mariano Paes de Carvalho Filho, ex-militante do MR-8, estudante de Engenharia da PUC-Rio durante a transição democrática, relata em seu depoimento que em 1980 havia uma crença real na concretização da revolução socialista: Em 1980, aparece a tal da revolução à vista, o MR-8 convoca o povo a fazer uma ação por causa do confronto que teve em São Bernardo com a tomada do sindicato, foi fechado o sindicato, resistência, barricada, botaram lá uns pneus na rua. Quando chega “revolução à vista! Povo nas ruas fazendo barricada!”. Aí saímos para fazer a revolução, revolução esse ano, revolução! Não tem conversa, esse ano é revolução. A gente discutia com os caras do PCdoB em 1981, eu era líder da UNE, aí o Aldo falou: “vocês estão malucos?” É revolução! Sabe o que é revolução, cara? Você não quer fazer?!”. Aí defendemos a greve geral dos estudantes. [...] Então a gente estava nessa coisa de revolução à vista de fazer e isso aí, sim, levou a uma loucura, porque como é a revolução que vamos fazer, 1981-82 vamos fazer o seguinte, vamos vender tudo, os militantes vão vender apartamento, dinheiro para a revolução agora. Teve gente que se deu mal com isso, mas algumas pessoas os pais não deixaram. Eu dei um bom dinheiro para isso55.

Essa crença na revolução envolveu os militantes do MR-8 de tal forma que houve um grande empenho no levantamento de fundos para viabilizar o projeto revolucionário. Neste sentido, muitos doaram parte de seus bens para que fosse arrecadado dinheiro em prol da revolução que não aconteceu, mas que gerou grande debate por parte dos militantes do MR-8 com outros grupos e, consequentemente, contribuiu para o seu enfraquecimento dentro do movimento. Em 1982, durante seu III Congresso, o MR-8 viveu um racha que afetou significativamente sua organização interna. Logo esta data tornou-se um novo marco para o MR-8, que naquela ocasião perdeu parte de suas bases, inclusive dentro do movimento 55

CARVALHO FILHO, Luiz Mariano Paes de. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 05 de julho de 2013.

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estudantil. A partir de 1984 o “MR-8 vai estabelecer a autoimagem de uma entidade nacional e popular, inclusive desenhando sua bandeira nas cores verde e amarela, com uma estrela vermelha e uma pomba branca. Entretanto, não se constituíra como um partido político, pois continuará acreditando que o PMDB, Partido do Movimento Democrático Brasileiro, permanecia como a via político-institucional para a realização da revolução nacional antiimperialista”. (CAMURÇA; REIS, 2007, p. 143). Assim, o MR-8 se vinculou ao PMDB passando a atuar dentro deste. Desta forma, o MR-8 se manteve como organização clandestina durante a transição democrática e teve expressão no meio estudantil, vinculando-se em alguns momentos a outros grupos, como a AP, mas também com tendências próprias, denominadas como Mãos à Obra; Bola pra Frente; e Arrebentar a Boca do Balão. O MR-8 teve expressão nacional, chegando a dirigir vários diretórios pelo Brasil e a compor chapa na disputa das eleições para a UNE. Na tentativa de sintetizar e definir melhor esse campo da pluralidade de tendências estudantis, destaco aqui alguns desses grupos mais expressivos: a Refazendo, ligada à APML, que dirigiu o DCE da USP. A Viração, do DCE da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ligada ao PCdoB. No Rio de Janeiro, uma tendência com o mesmo nome possuía ligação com a APML e dirigiu vários diretórios da PUC. Outra tendência se fazia presente na PUC-RJ e era da direção do DCE; chamava-se Alternativa e representava a POLOP e o MEP. A tendência Unidade congregava estudantes militantes do PCB em quase todo o país. A Liberdade era uma tendência ligada à APML e a grupos independentes da UFMG. Havia também a Caminhando, ligada ao PCdoB, bem como a tendência Novação, ligada à APML na Bahia, além da Liberdade e Luta, a Libelu, uma das correntes mais radicais da época, que representava posições trotskistas (ARAUJO, 2007, p. 337). Ainda, a Mãos à Obra, ligada ao MR-8, que dirigiu o DCE da UFRJ, entre muitas outras. Toda essa pluralidade trazia consigo muitos pontos de divergências, mas também de unidade. Para a Refazendo, o foco das divergências com outras tendências estava centrado na superação do reformismo do PCB e do vanguardismo trotskista. Na reportagem “Memória: medo e liberdade”, de Ricardo Azevedo, publicada em 1997 na revista Teoria e Debate56, a Refazendo se interpretava como uma posição política mais correta, que superava os problemas apresentados pelo PCB e pela Libelu a partir do caso da USP.

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AZEVEDO, Ricardo. Teoria e Debate. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, n. 35, set. 1997. Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2015.

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O PCB vinha perdendo espaço na USP. Nós éramos uma alternativa ao reformismo, mas não aceitávamos o trotskismo pelo seu vanguardismo, pela sua total incapacidade de dialogar com a massa. Eles sempre atuavam na vanguarda social e com uma postura vanguardista." E Geraldinho complementa: "A Refazendo estava mais correta. A Libelu foi importante para empurrar o movimento quando a gente segurava um pouco, mas eles tinham uma análise errada. Eles achavam sempre que a ditadura estava para cair, que não tinha mais sustentação social. E a nossa análise era de que o que provavelmente ia acontecer era a abertura do Geisel, lenta, gradual e segura."

Assim, a Refazendo se definia com base na mobilização e aproximação das massas, a partir de uma avaliação da conjuntura que via a transição com a marca do controle dos militares e longe ainda de seu fim. Por isto, considerava-se detentora das posições mais acertadas na condução do movimento estudantil na luta política. No entanto, essa questão da memória é reflexo de um momento de intensa atuação destas tendências, que, juntas, nas definições tiradas após longos debates nas assembleias em que apresentavam suas divergências e, em meio a debates e embates, definiam os rumos do movimento. Ricardo Azevedo, que foi militante da tendência Refazendo, em artigo na revista Teoria e Debate, no qual recuperou vários depoimentos de militantes no contexto da transição, afirma que Os companheiros da Caminhando tinham uma dimensão do nacional, do democrático e popular, que nós [Refazendo] desprezávamos. Por outro lado, o vanguardismo do trotskismo empurrava o movimento para a frente, questionava a direção. E nós tínhamos uma visão correta do acúmulo de forças, da relação do movimento estudantil com o restante da sociedade. Quer dizer, a síntese era melhor que as partes. E Alon corrobora: "Cada tendência teve um papel fundamental. Sem o ímpeto e o voluntarismo da Liberdade e Luta nada teria acontecido. Sem a capacidade organizativa e o enraizamento na massa em alguns lugares que a Caminhando tinha também nada haveria. E também não aconteceria sem o caráter flexível da Refazendo, que era um instrumento para que as pessoas que não estavam a fim de militar num partido comunista ou trotskista pudessem participar do movimento. Foi uma combinação muito interessante porque cada um cumpriu seu papel 57.

Neste sentido, entendemos que a síntese das ações encaminhadas dentro do ME pela pluralidade das tendências deu dinâmica ao movimento, sendo responsável pelo funcionamento que o ME assumiu na luta política na transição. Cada tendência, com seu perfil, interferiu no curso das ações estudantis e alterou seu ritmo e forma, tendo como objetivo comum as liberdades democráticas. Mesmo que para a maior parte daqueles grupos essa democracia não se constituísse como fim último, ela era a pauta unificadora para aquele momento, para a qual todos esses grupos convergiam. Para essas frentes militantes que se envolveram na luta pelas “liberdades democráticas” era necessário começar democratizando o movimento estudantil e a

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Idem.

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universidade para depois se alcançar a democracia no país. A partir disto, a democracia interna também se constituiu como um tema do movimento estudantil, como afirma Alon Feuerwerker, ex-militante da Caminhando no curso de Medicina da USP, em seu depoimento: Havia um sentimento muito grande de que era necessário respeitar a democracia do movimento. O que era a democracia do movimento? Tem uma instância o movimento? Votou? Está decidido? Todo mundo segue. [...] Mas, assim, tanto em uma reunião de direção de centros acadêmicos como numa reunião, numa assembleia, as posições políticas colocavam suas propostas e eram votadas e todo mundo seguia. Você tinha as discussões político partidárias, por debaixo do pano, na clandestinidade. A gente passava o fim de semana inteiro discutindo textos de marxismo, discutindo táticas, discutindo estratégias58.

Sendo as assembleias espaços de intensa disputa, as tendências recorriam à leitura prévia de teorias clássicas antes do debate, como forma de preparação. A partir da base política contidas nesses textos as tendências debatiam entre seus pares qual era o melhor e mais coerente posicionamento a se assumir na assembleia pelo grupo. Muitos dividiam entre si intervenções e quem as realizaria durante a assembleia, de forma a marcar posição da tendência e encaminhar sua linha política nas questões práticas da luta estudantil. Beatriz Bicudo Tibiriçá, conhecida na época como Beá, ex-militante da Refazendo, em sua fala afirma o caráter de defesa da democracia interna do movimento estudantil: Mas a estrutura básica dentro do movimento estudantil era muito coletiva. Acho que isso talvez seja muito mais forte na Refazendo, mas era comum a todas as tendências: Caminhando, Libelu, Convergência. O próprio Organizar a Luta, Resistência, Vento Forte, enfim, todo mundo tinha um funcionamento, por exemplo, a Refazendo tinha uma plenária para decidir palavras de ordem, o que ia para a assembleia, como se ia para a rua com 200, 300 pessoas para decidir o que fariam... Não era uma coisa de microcosmos. Era uma coisa realmente bem ampla dentro do movimento. E os erros também eram amplos e os acertos também eram amplos por conta disso. Então, em geral, essas tendências são reflexos das várias organizações políticas, mas se tinha um espaço muito grande de decisão e atuação para quem atuava somente na tendência estudantil. [...] As palavras de ordem e aquilo que eram princípios, vamos dizer, para cada uma dessas tendências, era discutido publicamente em assembleias, por exemplo, a Libelu sempre defendeu liberdades democráticas, abaixo a ditadura. A gente defendia pela luta democrática, governo dos trabalhadores, para assumir a Constituinte, a gente demorou muito tempo. [...] Então, isso, no meu entendimento, você tinha um processo de formação política que era muito amplificado dentro do movimento. Então, por exemplo, quando a gente ia para rua, cada palavra de ordem que ia ser usada em manifestação de rua era discutido classe por classe dentro das universidades. Então, as grandes tendências se dividiam, iam para as classes defender suas posições e depois na assembleia essas posições eram ratificadas. Quem entrava em uma manifestação sabia exatamente quais eram as palavras de ordem59.

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FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014. TIBIRIÇÁ, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014.

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Valorizando essa democracia no movimento, as tendências buscavam apresentar suas propostas e discutir mais amplamente suas posições com os estudantes. Para viabilizar a aproximação, os grupos se organizavam para passar pelas salas de aula apresentando suas posições antes das assembleias em que os posicionamentos seriam encaminhados. Desta forma, procurava-se fazer com que o maior número do contingente universitário tivesse conhecimento das pautas estudantis e as apoiasse, em especial nos movimentos de massa. Era uma conquista coletiva. Ninguém se sentia de fora, mesmo que não tivesse sido eleito para a diretoria do DCE. A Refazendo ganhou a diretoria, mas toda a atuação da Refazendo enquanto diretoria do DCE na reconstrução da UEE e na reconstrução da UNE foi em conjunto com todas as tendências do movimento estudantil. Ela não passou a ter um papel diferente porque era diretoria do DCE. Os grandes momentos eram de decisões conjuntas. Unificadas, às vezes, com muita briga. [...] Então, as decisões eram construídas... chamava-se consenso progressivo na época. Acho que isso influenciou muito. Durante muito tempo, o que era decisão do movimento era construído em conjunto com as tendências, ou disputando e votando ou chegando a uma opinião comum, a uma posição comum60.

Na visão da Refazendo, que venceu as primeiras eleições diretas para o DCE Livre da USP, em 1976, mesmo com um grupo político à frente das entidades representativas, as ações do ME eram influenciadas pela diversidade de tendências, o que fazia com que o movimento estudantil construísse coletivamente suas lutas, não a partir de uma espontaneidade das tendências em uma formulação coletiva, mas sim a partir das disputas internas entre as tendências. Nas assembleias, todas as posições eram apresentadas e discutidas. Quando o consenso não acontecia, as tendências disputavam defendendo suas análises e palavras de ordem, que eram votadas em assembleia. Após a votação, encaminhava-se a proposição vencedora. A questão do respeito à posição vencedora e a garantia de seu encaminhamento por parte das lideranças estudantis era um valor prezado e defendido por todos. As assembleias eram instâncias máximas do movimento estudantil. Mesmo em situações em que havia grande discordância da proposta aprovada em assembleia, a decisão era respeitada e encaminhada. Um exemplo interessante dessa questão, de um fato ocorrido na Bahia, foi apresentado por Beatriz Tibiriçá em seu depoimento. Na Bahia tem uma assembleia, vai todo mundo para assembleia, a direção estudantil das entidades com tudo combinado como tinha que ser a manifestação, a passeata. Aí no meio do debate um calouro propõe, estava discutindo qual seria o esquema de segurança da passeata, aí um calouro levantou e propôs que saíssem com o bozó. O bozó é um sapo, um dos ícones do candomblé. Então, um sapão verde e, segundo o moleque que defendeu a proposta, esse sapo ia espantar a polícia. Foi aprovado por maioria, a direção perplexa: “como é que vamos sair com o bozó, que isso?”. E aí 60

Idem.

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fizeram um bozó enorme e saíram com um sapão, e realmente a primeira reação da polícia foi se afastar. A passeata andou muito mais que a média das passeatas porque tinha o bozó na frente. Era uma coisa que você não tinha controle. Se alguém da massa de estudantes que estava na assembleia tivesse coragem, pique e vontade de fazer uma proposta e ganhava, era encaminhado. Não tinha discussão. Votou, encaminha. Mesmo a gente que perdia em assembleia, o DCE encaminhava o que estava aprovado em assembleia, e vamos que vamos! Por isso que a palavra de ordem era tão disputada61.

Nos discursos e na memória dos militantes, a democracia em destaque. Podemos afirmar que a geração dos anos 1970 e da luta contra o regime militar, que cresceu dentro deste período, valorizam tanto a democracia e as “liberdades democráticas” como princípios por conta da vivência política que tiveram durante a ditadura. Neste sentido, um elemento se destacou em quase todas as entrevistas realizadas para esta pesquisa: a questão da ausência de lideranças estudantis identificadas nominalmente dentro do movimento naquele período, por conta do desejo de deixá-lo mais horizontal em sua organização interna. A professora do departamento de Medicina da UFRJ Lígia Bahia, estudante de Medicina da mesma universidade no período da transição, ex-militante do MR-8, em seu depoimento ratifica sua interpretação sobre a horizontalização do ME da transição como uma característica específica daquele tempo: O movimento estudantil de 68 tinha grandes lideranças! Tem o Wladimir Palmeira. O nosso não tinha grandes lideranças! Afinal quem é a grande liderança do movimento estudantil? Só que ele já era diferente. [...] Ele era um movimento prémoderno, não tem de verdade uma grande liderança, mas muitas lideranças. Ele gerou um monte de gente que hoje tem papéis intermediários importantes. Era isso! Ele era um movimento intermediário. Ele estava no seu lugar. Exatamente no seu lugar! Porque não podia ser outro! [...] Não é “A Liderança”. Existia um conjunto de pessoas que juntas conseguiram produzir um movimento 62.

Laís Abramo em seu depoimento também pontua sobre a horizontalização do movimento no momento da reorganização do ME: [Na primeira eleição para o DCE da USP], a chapa [da Refazendo] não tinha presidente, era um colegiado. Aliás, os centros acadêmicos também não tinham! E, por um lado, a gente achava que era medida de segurança para não botar em evidência ninguém, mas era uma concepção também. A gente achava que isso era uma coisa mais democrática. Foi assim. E eu acho que várias outras tendências faziam, seguiram essa linha. Quando a UNE é reconstruída em 79, aí acho que tem presidente e as UEE’s também passam a ter presidente, mas os DCE’s não tinham, era coletivo63.

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TIBIRIÇÁ, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014. BAHIA, Lígia. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014. 63 ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. 62

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A afirmação de uma não personalização das lideranças torna-se elemento chave na compreensão da valorização, pela geração da transição, do caráter democrático do movimento. Não ter “lideranças” conferia à organização do movimento maior horizontalidade e maior representatividade de todos os estudantes. Contudo, por mais que não haja poucos e únicos nomes que personifiquem o movimento, não podemos negar a existência de sujeitos que ganharam notoriedade na articulação política de cada tendência e que eram “eleitos” por seus contemporâneos como figuras de destaque naquele contexto. No entanto, essas lideranças foram construídas naturalmente a partir de uma atuação mais expressiva de alguns personagens políticos da época, que se destacavam em meio ao coletivo. Comparada à geração anterior, a geração entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 1980 não teve poucos nomes que sintetizavam o movimento, mas apresentou uma pluralidade maior também na formação de lideranças que são reconhecidas por seus pares. As diferenças políticas entre as tendências também se refletiam no campo cultural e comportamental. Cada grupo era caracterizado pelo gosto musical, de vestimenta ou mesmo pelo uso ou não de drogas, sempre relacionado com as escolhas da base teórica e da base de orientação política. Os militantes da Libelu eram internacionalistas e, por isto, diferentemente de outras organizações de esquerda, não cultuavam a Música Popular Brasileira (MPB). A Libelu definia-se culturalmente como roqueira, moderna, mais anárquica e mais radical do que outras tendências. A Refazendo tanto estava aberta ao campo internacional, “amava os Beatles e os Rolling Stones”, quanto ao nacional. Já o PCdoB era nacionalista e defendia a MPB. Sobre as diferenças no campo cultural, Laís Abramo em seu depoimento salienta sua visão sobre as especificidades de cada grupo: A gente achava que a Libelu era vanguardista, eles achavam que a Refazendo era basista. A gente sempre achava que a Libelu estava querendo esquerdizar demais. [...] a Refazendo tinha essa coisa de movimento de massas e, em termos mais políticos, de concepção, a gente “amava os Beatles e os Rolling Stones”! Entendeu? [Risos] Era uma coisa cultural. O pessoal da Caminhando, que era PCdoB, era MPB, uma coisa muito mais nacionalista, a gente achava careta. A gente era mais aberto no plano cultural, gostava de Woodstock, tudo isso e era pelo socialismo 64. A Refazendo era mais aberta. Acho que a gente fazia política, mas gostava do Woodstock, gostava dos Beatles, dos Rolling Stones e até gostava de samba também, às vezes, de Gil, Caetano, etc. [...] Tinha uma coisa comportamental forte. A gente até brincava, o que era um, o que era outro. Nossas brincadeiras, disputas,

64

Idem.

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etc. A história da vigília do roubo das urnas, podia ter bebida? Não podia ter bebida? Podia ter fumo? Não podia ter fumo? Era uma discussão 65.

Como destacado acima, a disputa política se expressava no campo comportamental, e questões como o uso de drogas, estilos musicais ou opções sexuais se tornavam motivos de disputas entre as tendências, que tinham marcadamente na postura comportamental as expressões de seu posicionamento político. No âmbito do desenvolvimento do movimento cultural, o ME sempre se mostrou muito envolvido na aproximação da cultura como artefato político. Durante participação numa das mesas de debate do Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 anos, na PUC-SP, em 1997, em que se discutiu a questão cultural, Eugênio Bucci, estudante de jornalismo na USP e ex-militante estudantil nos anos da transição, afirmou em sua fala a relação existente entre cultura e política: No limite, e, na verdade, era sempre uma discussão oportunista de como trazer cultura para ajudar na estratégia política. Como aproveitar a demanda cultural para, por meio dela, ganhar mais adeptos, angariar simpatia e ganhar até militante para promover sambão depois. A relação de instrumentalização da cultura e as transformações da cultura em uma espécie de cabo eleitoral, as questões partidárias eram muito forte. E eu não via muita distinção nos anos 60 entre um sambão e a literatura de cordel ou mesmo um teatro mais avançado. Realmente eu não via muita distinção, porque a relação instrumental do trato entre política e cultura era permanente e estava dado. A relação instrumental do trato entre política e cultura era permanente e estava dado. A cultura estava enquadrada dentro de um paradigma que a política ditava66.

A cultura utilizada como instrumento político é evidenciada na memória por seu caráter de enquadramento pelo paradigma político. Apesar de se considerarem culturalmente mais abertos do que fazendo política67, essa cultura era permeada pela política e se refletia no campo do comportamento, enrijecendo posturas frente a questões da vida juvenil. A diversidade interna do movimento estudantil, definida pela diversidade das tendências e seus reflexos no campo cultural, marcou o movimento no período da transição impondo-o um ritmo e fluxo próprios, gerados no confronto e nas aproximações entre aqueles grupos.

ABRAMO, Laís Wendel. Mesa de debates: “Identidade juvenil e vivência universitária nos anos 70”. 25/09/1997. PUC-SP. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Fita cassete, RME, fita 08/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 66 BUCCI, Eugênio. Mesa de debates: “Identidade juvenil e vivência universitária nos anos 70”. 25/09/1997. PUC-SP. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Fita cassete, RME, fita 07/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 67 ALLI, Sérgio. Mesa de debates: “Identidade juvenil e vivência universitária nos anos 70”. 25/09/1997. PUCSP. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Fita cassete, RME, fita 08/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 65

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CAPÍTULO 3 - O

MOVIMENTO ESTUDANTIL NA TRANSIÇÃO DEMOCRÁTICA

BRASILEIRA

A abertura política iniciada em 1974, com o general Ernesto Geisel, propunha realizar uma transição “lenta, gradual e segura”. Idealizado pelo recém-eleito presidente e seu chefe da Casa Civil Golbery do Couto e Silva, Tratava-se de um de um programa de medidas de liberalização, cuidadosamente controladas, que reconduzisse o país ao Estado de direito. A distensão seria obtida em estágios bem definidos, a começar pela suspensão parcial da censura, pelas negociações com a oposição para o estabelecimento de parâmetros para os direitos humanos, seguidas de reformas eleitorais, e pela revogação de medidas mais explicitamente coercitivas (ALVES, 1984, p. 186). Forças conservadoras que sustentavam a ditadura, em especial os aparelhos de segurança, não viam com bons olhos a distensão proposta por Geisel. Os militares da chamada linha dura se opunham ao projeto, demonstrando a existência de uma divergência interna tanto ao regime quanto ao projeto de abertura. Alguns intelectuais do período interpretaram o projeto de abertura como resultado das divisões internas do próprio regime militar e “como uma estratégia para ampliar a institucionalidade da ditadura, criando uma democracia fechada” (ARAÚJO, 2007, p. 209). Ademais, indicavam a fluidez do projeto e as possibilidades que a sociedade possuía de interferir em seu curso (Idem). Para além do projeto militar, a ação da oposição foi fundamental para o processo transicional, indicando a diferenciação entre projeto e processo, distinção esta apontada no meio acadêmico desde os anos 1980 a partir das publicações de Luiz Werneck Vianna68. Segundo Renato Boschi, a atuação dos movimentos sociais, a partir de 1974, tornou-se responsável por alargar os limites do projeto de abertura proposto pelos militares, influenciando seu ritmo. A intensificação das práticas associativas de natureza politizada certamente não estava incluída nos planos governamentais. Quando muito o projeto de abertura tinha por objetivo uma sociedade domesticada, com grupos de interesses atuando dentro de estreitos limites. Contudo, o chamado modelo “panela de pressão” possibilitou exatamente o contrario, na medida em que a sua implementação requeria a manutenção desses controles. Ainda que a politização de segmentos organizados da sociedade não tenha ameaçado o projeto de transição gradual para a democracia, ela certamente afetou seu ritmo (BOSCHI, 1987, p. 138).

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Cf. trabalhos do autor sobre essa temática: VIANNA, Luiz Werneck. O problema da cidadania na hora da transição democrática. Dados, Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), n. 26 (3), 1983; id., Identidade Política e Transição. Presença, São Paulo: Caetés, n. 06. out. 1985.

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Para Maria Helena Moreira Alves, em 1973, a oposição estava, de modo geral, desmobilizada e fraca. Contudo, entre 1974 e 1979, a situação inverteu-se, embora permanecesse ainda incerta e contraditória. Para a Alves, as classes médias e setores da elite agiram como reativadoras da sociedade civil. Amplos setores de elite passaram à oposição, empenhando-se em táticas de pressão para obrigar o Estado à liberalização, [...] as classes médias e superiores predominavam na organização e fortalecimento da sociedade civil e nas negociações com o Estado pela adoção de medidas concretas no processo de liberalização (ALVES, 1984, p. 220).

Segundo Eder Sader, nesse contexto, a ação dos movimentos sociais intensificaram a situação de crise, apontando para a necessidade de uma transformação política e social no país. Eles (os movimentos sociais) expressaram tendências profundas na sociedade que assinalavam a perda de sustentação do sistema político instituído. Expressavam a enorme distância entre os mecanismos políticos instituídos e as formas de vida social. Mas foram mais do que isto: foram fatores que aceleraram essa crise e que apontaram um sentido para a transformação social. Havia neles a promessa de uma radical renovação da vida política. Apontaram no sentido de uma política constituída a partir das questões da vida cotidiana. Apontaram para uma nova concepção da política, a partir da intervenção direta dos interessados. Colocaram a reivindicação da democracia referida às esferas da vida social (SADER, 1987, p. 313).

Novos sujeitos ganharam destaque a partir de 1974 durante o processo de abertura, outros se reformularam e adquiriram novas forças, entre eles, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que obteve significativas vitórias eleitorais em 1974 e 1978; organizações profissionais como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); o novo sindicalismo; a Igreja Católica, em especial através da Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s) e pastorais; o movimento feminista, o movimento de bairro e favelas, com donas de casa, negros, mães e mulheres contra a carestia (por creches, moradia) comissões de saúde; e o Movimento Estudantil (ME), um dos primeiros movimentos sociais a se rearticular no processo de transição. Era uma nova conjuntura que se formava, com novos movimentos e novas táticas; era o momento da luta pelas liberdades democráticas, capaz de envolver grande parte das esquerdas e dos movimentos sociais em torno de sua bandeira. As universidades permaneceram como um “campo de batalha” durante o período da transição democrática (MOTTA, 2014, p. 61). De acordo com Rodrigo Patto Motta, os espaços universitários se constituíram como laboratórios da experiência da luta democrática e estiveram como vanguarda de algumas mudanças políticas durante a distensão, antecedendo o movimento operário com as greves do ABC (Idem).

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Eder Sader considera o movimento operário como o sujeito central do processo de transição, em especial a partir dos anos de 1978 e 1979, quando protagonizaram as greves do ABC paulista. Tal afirmação encontra-se registrada em Quando novos personagens entraram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, livro considerado pelos estudiosos obra de referência sobre esse período da história. Para Sader, a atuação dos movimentos sociais é crucial para o alargamento dos limites do processo de transição, mas teria o movimento operário como foco da força social. Ao se discutir a transição brasileira é de vital importância abordar sua característica de pactuação, que, por vezes, levou à subestimação do papel dos movimentos sociais, tomados como fracos politicamente por não conquistarem algumas das demandas planejadas. De acordo com Alexandra Barahona de Brito, uma questão central a se pensar na análise das transições é a relação de forças e poder que se estabelece entre os agentes favoráveis e contrários à implementação de medidas transicionais. Para Brito, as transições por ruptura oferecem maior âmbito de ação, particularmente quando há derrotas em guerras, tanto por forças nacionais como estrangeiras. Já as transições negociadas ou “pactuadas” (conforme a autora identifica no caso do Brasil) normalmente oferecem menor margem de ação, pelo fato das forças dos regimes autoritários ainda vigorarem, de modo que a elite democratizadora tenha que se esforçar habilmente para reverter a balança de poder a seu favor. Mas, ainda segundo a pesquisadora, “é importante ter em mente que raramente transições seguem modelos teóricos, e que haverá um espectro muito variado de situações transicionais entre os dois extremos, que podem incluir elementos de ambos.” (BARAHONA, 2009, p. 64). Desta forma, a transição brasileira, mesmo definida em seu caráter pactuado, pode ser compreendida entre projeto e processo, pois o projeto de abertura militar foi afetado diretamente pela ação da oposição, que ampliou os limites definidos pelos militares para a transição democrática brasileira. A definição temporal de transição democrática é variável entre alguns historiadores. Daniel Aarão Reis entende como transição o “período que se inicia com a revogação das leis de exceção, os Atos Institucionais, em 1979, e termina com a aprovação de uma nova Constituição em 1988.” (REIS, 2014, p. 125). O autor, apesar de considerar todo o processo de mudança no país após 1974, entende que no período de 1979 a 1988 houve a passagem de um Estado de direito autoritário para um Estado de direito democrático, constituindo o eixo central do que seria uma transição. Para o professor, “no período da transição já não havia ditadura, mas ainda não existia uma democracia.” (Idem). Ele também crítica o marco

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temporal colocado como consenso na memória social e na historiografia para o fim da ditadura e, por conseguinte, da transição, ocorrida em 1985 com a posse de José Sarney, considerando que a ruptura com o Estado de direito autoritário só se concluiu com a promulgação de uma nova constituição em 1988. Outros historiadores, como Maria Helena Moreira Alves, definem o ano de 1974, com o governo Geisel e o projeto militar de distensão, como o início do processo de transição, e 1985, a partir da eleição do primeiro presidente civil, o marco final da ditadura. Contudo, toda marcação cronológica na pesquisa histórica é fruto de uma escolha do historiador e, portanto, precisa ser problematizada de acordo com o objeto de pesquisa. Se 1974 é o marco histórico da transição brasileira a partir da ótica militar, há de se considerar, em contraponto, a ótica da oposição, em especial a do movimento estudantil – através de seus militantes da transição –, que considera 1973 como marco inicial de uma luta que culminou na transição e na democracia. Naquele ano, Alexandre Vannucchi Leme, estudante de Geologia na Universidade de São Paulo (USP) e membro da Aliança Nacional Libertadora (ALN), foi preso e morto pelo Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS/SP). A reação estudantil, organizada pelo Conselho de Centros Acadêmicos (CCA) da USP69, deu-se sob a forma de uma missa de sétimo dia celebrada por dom Paulo Evaristo Arns, na Catedral da Sé, setenta dias após o assassinato de Vannucchi. O jornalista e ex-militante estudantil daquela geração Caio Túlio Costa (e autor de Cale-se, livro que procura recuperar os dias que antecederam o crime) afirma que a missa foi o primeiro protesto contra o regime militar ocorrido nos anos 1970, sendo seguida por um show com participação de Gilberto Gil. Com a presença de cerca de 1000 pessoas, o evento cultural simbolizava a ideia de um movimento político contra o regime mas também contra a ideia de oposição armada (COSTA, 2003, p. 293). Entre os ex-líderes estudantis entrevistados no presente trabalho, há unanimidade em relação ao ano de 1973 como início da luta que se seguiria. Em suas memórias, a missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme foi o marco inicial de um processo de luta que se seguiu dando o tom para o processo de retomada do ME como agente político. Naquele ano ocorreu uma revisão do movimento estudantil, assinalado por novas tendências que se formariam a partir da reflexão sobre a tática política que nasceu da crítica à luta armada e do desmantelamento da União Nacional dos Estudantes (UNE) com a prisão de sua diretoria e de seu presidente Honestino Guimarães, posteriormente morto e desaparecido 69

Surgido em 1972, o Conselho de Centros Acadêmicos (CCA) tornou-se a instituição estudantil de maior influência na USP, visto a “ausência” do Diretório Central dos Estudantes (DCE).

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nas mãos da ditadura. A nova situação política impunha ao movimento um reexame, bem como a elaboração de novas táticas, de novas organizações e de novos líderes que marcariam o processo de transição democrática brasileira a partir daquele momento. No entanto, advirtamos que a escolha de 1973 como marco cronológico para esta pesquisa baseia-se nesse significado de reorganização do ME e no significado da data na memória dos militantes. Assim, esta pesquisa não parte da negação da existência e da expressão política do movimento estudantil entre 1968 e 1973, conforme indicado por uma parcela da historiografia que analisa a opção pela luta armada como a única luta possível e desempenhada pelos estudantes naquele período. Em sua tese de doutorado pela USP, a historiadora Angélica Müller aponta para uma ruptura com a tendência de se afirmar uma ausência da atuação estudantil entre 1968 (com a repressão ao Congresso de Ibiúna e ao novo momento do ME após 1973) e as mobilizações que se seguiram após a morte de Alexandre Vannucchi Leme: […] defendo a ideia de que o recuo da atuação da entidade no plano nacional, em decorrência das condições impostas pela repressão, não resultou na desarticulação do movimento como um todo: seus representantes encontraram novas maneiras para se fazer representar no quadro de resistências contra o regime. Nesse cenário, o movimento estudantil universitário organizou pequenas ações, buscando diferentes formas de atuação e porque não dizer de “sobrevivência” –, que variaram de acordo com a realidade local. (MULLER, 2010, p. 30).

Müller analisou as diferentes formas de atuação do ME entre 1968 e 1973 em sua busca de sobrevivência, demonstrando a maneira encontrada pelos estudantes para atuar frente ao novo panorama político imposto pelo Ato Institucional n° 5 (AI-5) e pela repressão ao Congresso da UNE de Ibiúna, que levou grande parte de sua direção a ser presa, exilada ou ainda optar pela ilegalidade. A organização e a resistência do movimento estudantil seguiram com diferentes visões sobre como realizá-las. A luta armada, como forma de enfrentamento ao regime, foi a opção de grande parte da liderança estudantil a partir de 1968, sem ser, no entanto, a única possibilidade de atuação política contra o regime. O Partido Comunista Brasileiro (PCB) em seu VI Congresso, em dezembro de 1967, reforçou a tática de luta através de uma Frente Democrática contra a ditadura. Mas, antes da realização do Congresso, o PCB afastou os militantes mais radicais como Carlos Marighella e Jacob Gorender. Essa proposta de Frente reforçava o caminho pacífico da luta contra a ditadura, o que incentivou rachas e dissidências de militantes que saíram do PCB criticando essa postura como imobilista e partiram para o enfrentamento da luta armada.

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Em vez de “enfrentamento”, o PCB se propunha a atuar no sentido de “acumulação de forças”. Nessa tática de “acúmulo de forças”, o PCB voltou-se para tarefas de organização, conscientização e denúncia. Sua atuação, por exemplo, no movimento visava à “ocupação de espaços”. O partido conclamava os comunistas a participar das eleições sindicais, das reuniões e das convenções, procurando impedir a colaboração dos sindicalistas com a ditadura militar. Tal estratégia do PCB privilegiava atividades que não representassem confronto imediato, como manifestos pela democracia assinados por intelectuais conhecidos; atos públicos em locais como o auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) cultos ecumênicos etc. Sendo assim, o que motiva a definição de 1973 / 1974 como limite cronológico deste trabalho é seu significado como marco de uma nova ebulição e reconfiguração do ME em seus quadros, táticas, organizações e atuações políticas. Apesar de concordar com Daniel Aarão Reis sobre 1988 ser, a partir da promulgação da Constituição, o ano de consolidação da democracia brasileira, assumo como marco final da delimitação temporal desta pesquisa o ano de 1985 por conta de dois importantes elementos. É nesse ano que ocorreu a eleição do primeiro presidente civil após 21 anos de governo militar; além disso, considero-o um marco significativo para o movimento estudantil, que teve importante papel político no cenário que se seguiu até 1985, participando ativamente de ações conjuntas com outros movimentos como a Campanha pela Anistia, a formação dos novos partidos políticos após 1979 e a campanha Diretas Já, permanecendo na ativa após esse momento, mas marcado por novos elementos que mudam uma trajetória que caminhava até então em uma mesma perspectiva. Neste capítulo, procuramos desenvolver uma discussão sobre o contexto histórico do ME brasileiro, em especial a partir das realidades das capitais dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia, onde o movimento obteve maior expressão. Os dois primeiros estados por terem sido o eixo irradiador de uma nova luta política estudantil para outros lugares do país, os dois últimos por constituírem os dois estados fora do eixo RJSP na luta do movimento estudantil a conquistar importante significado, principalmente por terem sediado eventos de envolvimento nacional dos estudantes Belo Horizonte, em que ocorreu a tentativa reprimida do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) em 1977, e Salvador, cidade que sediou o Congresso de Reconstrução da UNE em 1979. Sem dúvida, as realidades de outras localidades guardam especificidades e contribuições para a luta geral do movimento, irradiando e sendo irradiados por iniciativas em todo o país. Trabalhos que mostram as particularidades de diferentes localidades têm sido

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desenvolvidos por programas de pós-graduação em história Brasil afora, contribuindo de forma muito significativa com a historiografia sobre os estudantes e sua atuação durante a ditadura70. No entanto, para esta tese, optei por uma compreensão mais ampla do movimento brasileiro ao relacionar as especificidades das localidades citadas acima e por considerá-las elementos-chave para a interpretação histórica do papel do ME na transição em âmbito nacional. Logo, neste capítulo procuraremos apresentar uma análise histórica da rearticulação do ME a partir das lutas pela reconstrução dos DCE’s, das União Estadual dos Estudantes (UEE’S) e da UNE, bem como das lutas empreendidas pelo movimento no campo específico – voltado para a realidade universitária e geral , na luta pelas liberdades democráticas envolvendo a Campanha pela Anistia e pelas Diretas Já. Pretendemos, portanto, por meio da memória de ex-militantes, de documentos militantes e de documentos da polícia política, examinar a história do Movimento Estudantil durante os anos da transição democrática.

3.1 A reorganização do movimento estudantil nas universidades

O processo de reorganização das entidades de representação estudantil está diretamente relacionado ao processo de repressão pelo qual estas passaram nos anos anteriores, desde 1964 com a Lei Suplicy Lacerda e seus desdobramentos dentro de cada universidade. Em 11 de novembro de 1964, a Lei nº 4.464, conhecida como Lei Suplicy Lacerda, tornou o movimento estudantil ilegal, estabelecendo que todas as representações estudantis 70

Cf. trabalhos acadêmicos voltados ao exame da atuação do ME no âmbito mais específico de cidades ou de estados durante a transição brasileira que têm fornecido grande contribuição para a historiografia: LACERDA, Gislene Edwiges. Memórias de esquerda: o movimento estudantil em Juiz de Fora de 1974 a 1985. Juiz de Fora: Funalfa Editora, 2011; OLIVEIRA, José Alberto Saldanha de. A mitologia estudantil: uma abordagem do movimento estudantil alagoano. Maceió: SERGASA, 1994; PEREIRA, Mateus Camargo. Tecendo a manhã: história do Diretório Central dos Estudantes da UNICAMP (1974/1982). 2006. 235f. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006; HAYASHI, Maria Cristina P. Innocentini. Política e Universidade: a consciência estudantil – 1964/1979. 1986. Dissertação (Mestrado em Educação) Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1986; FARIA, Juliana Medeiros Cordeiro de. O movimento estudantil na PUC-Rio (1977 – 1981): entre memórias e representações. Monografia (bacharelado em História), Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janeiro, 2011; SANTOS, Jordana de Souza. A atuação das tendências políticas no movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP) no contexto da ditadura militar dos anos 70. 2010. 112f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Marília; 2010; VECHIA, Renato da Silva Della. O ressurgimento do movimento estudantil universitário gaúcho no período da redemocratização: as tendências estudantis e seu papel (1977/1985). 2011. 411f. Tese (Doutorado em Ciência Política) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011; SOARES, Thiago Nunes. Campanhas políticas e repressão policial: as pichações na cidade do Recife (1979-1985). 2012. 212f. Dissertação (Mestrado em História) Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

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estariam submetidas ao Ministério da Educação (MEC) (MARTINS FILHO, 2007, p. 193). Tal lei também extinguia a UNE e as UEE’s, criando em seu lugar Diretório Nacional dos Estudantes (DNE) e o Diretório Estadual dos Estudantes (DEE). A Lei impunha o voto obrigatório aos alunos regularmente matriculados nas eleições das entidades – além do DNE e DEE’s, também nos Diretórios Acadêmicos (DA’s) e Diretório Central dos Estudantes (DCE’s) – sendo que aqueles estudantes que não comprovassem sua participação no referido pleito ficariam impedidos de prestar exames logo após as eleições. A Suplicy Lacerda dava poderes ao MEC ou ao Conselho Federal de Educação (CNE) de convocação para suas reuniões e proibia manifestações de greve ou propaganda político-partidária. Em síntese, a lei buscava acabar com a autonomia das entidades estudantis. Os Diretórios criados pelo governo para controlar o ME não deram certo na maioria das universidades brasileiras. Muitas resistiram à criação da estrutura ou continuaram realizando eleições paralelas às entidades criadas pelo MEC, mantendo a representatividade estudantil separada da ditadura. Até mesmo a UNE permaneceu realizando seus congressos de forma clandestina e elegendo sua diretoria nos anos seguintes. Com o AI-5, a repressão foi intensificada, a ponto de ir para dentro das universidades públicas e privadas com a criação de novo do Decreto-lei nº 477, em fevereiro de 1969. Constituído como regime legal usado pelo regime, o “decreto proibia a existência de qualquer tipo de associação de estudantes ou professores, e estabelecia punições sumárias como a imediata expulsão do estabelecimento para quem o infringisse.” (ARAÚJO, 2007, p. 191). Nesse contexto, a repressão tornou-se ainda mais intensa sobre o movimento estudantil e suas entidades tentaram resistir de forma clandestina mesmo sob o decreto 477. Entre 1968 e 1973, o ME viveu um processo de refluxo. Muitos de seus líderes foram exilados, presos, torturados, mortos ou desapareceram sob as mãos da ditadura. As entidades estudantis que, como a UNE, tentaram permanecer na clandestinidade, encontravam dificuldade para articular o movimento, fosse no âmbito nacional, estadual ou local. Alguns diretórios funcionaram nos moldes desejados pelos militares, sendo ocupados por grupos de estudantes de direita e apoiadores do regime. Em outros lugares, os DCE’s foram extintos. Os DA’s e CA’s sobreviventes tentavam organizar o momento, sob total repressão. Em contrapartida, ações organizadas do movimento estudantil garantiriam sua sobrevivência nesse contexto de intensa repressão71. 71

Sobre o contexto do movimento estudantil entre 1969 e 1979, em especial sobre sua atuação entre 1969 e 1974, cf. MÜLLER, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o

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Diante desse panorama, a partir de 1973 o movimento estudantil brasileiro se reorganizou, primeiro na USP, depois por todo o país. Em tempo, reafirmamos que a escolha pelo ano de 1973 como marco faz parte da compreensão do ME dentro de um processo dinâmico, com altos e baixos, e que passou entre 1968 e 1973 um período de refluxo. Conforme apontado por Angélica Müller (2010), era um contexto onde o movimento, sob intensa repressão, organizou lutas e ações de forma a garantir sua sobrevivência. Assim, 1973 não representava um despertar da inércia, mas o início de um processo de retomada que deu ao movimento um novo impulso. Como descrito acima, sem dúvida, o movimento começou a reorganizar na USP 72. Os militantes ligados à universidade na época consideram o espaço um reduto de resistência. Em dado momento, os estudantes traçaram uma comparação entre aquele espaço e a aldeia de Asterix. Na história de Albert Uderzo e René Goscinny, um pequeno grupo de gauleses tinha liberdade para agir, pois o Império Romano não sabia de sua existência. Quem primeiro associou o reduto dos estudantes ao fictício povo bárbaro foi Geraldo Siqueira, ex-militante da tendência Refazendo, registrada pelo jornalista e também ex-militante na época Caio Túlio Costa, em Cala-se, livro já citado na introdução deste capítulo Na obra, estabelece-se uma definição da USP como aldeia gaulesa. Paulo Lotufo, ex-militante da tendência Caminhando, em seu depoimento, recorda a associação feita na época entre a USP e a aldeia gaulesa: Geraldo Siqueira inventava uma história que a Cidade Universitária era a aldeia do Asterix. Eram os romanos e nós éramos os gauleses. Só que Roma, o Império Romano não sabia que a gente existia. (Risos). E a gente podia fazer o que quisesse aqui. Nós éramos Asterix. Mas fora daqui a influência era bem menor73.

Apesar de resistir tal como a aldeia gaulesa, a USP havia sido diretamente afetada pelo controle e pela repressão militar. Seus centros acadêmicos foram fechados para serem transformados em diretórios acadêmicos. O DCE também fora fechado pela repressão que se instaurava na cidade universitária desde 1968. Os remanescentes das esquerdas que ainda resistiam dentro da universidade negligenciaram os diretórios durante um longo tempo, por estes estarem vinculados ao Conselho Universitário (CO) e totalmente sob o controle da reitoria.

retorno da UNE à cena pública (1969-1979). 2010. 267f. Dissertação (Dourado em História Social) Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo / Universite de Paris I Pantheon Sorbonne, São Paulo, 2010. 72 Cf. Sobre o processo de reorganização do ME na USP, cf. COSTA, Caio Túlio. Cale-se. São Paulo: A Girafa Editora, 2003; tese de doutorado, atualmente publicada em livro, de Renato Cancian e a tese de doutorado de Angélica Müller (citada acima). 73 LOTUFO, Paulo Andrade. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 21 de outubro de 2014.

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Ex-militante da Refazendo e atuante no contexto de rearticulação do ME na USP, Beatriz Tibiriçá, em seu depoimento, expressa sua compreensão acerca daquele momento: De 72 até 73 o que nós tínhamos na USP? A gente tinha tido toda a repressão sobre o ano de 68, esse movimento começava a se reconstruir, mas as lideranças que vinham de 68 quase todas atuavam na clandestinidade, as entidades, inclusive, a União Nacional dos Estudantes, a União Estadual dos Estudantes. A gente chamava, inclusive de A Entidade! “A Entidade está na escola...”, a gente sabia que tinha chegado alguém da UNE, mas a gente não sabia nome, não sabia nada. Porque as ditaduras tinham fechado as universidades – que a gente chamava de entidades livres – e passou a funcionar com diretórios acadêmicos. As tendências que atuavam no movimento estudantil no ano anterior recusavam-se a participar porque eram diretórios controlados, muito vinculados aos conselhos universitários que também eram controlados. Então, como a gente fazia a atuação? Primeiro, foram recriados os centros acadêmicos, se ignorava, praticamente em todas as escolas – acho que talvez Medicina e Engenharia ainda atuavam nos diretórios acadêmicos – mas, quase toda faculdade ignorava os diretórios acadêmicos e tinham os seus centros acadêmicos e fora isso tinham os cineclubes que também era um movimento muito forte nessa época74.

Uma alternativa adotada pelas esquerdas foi a criação das entidades livres, a começar pelos centros acadêmicos, entidades criadas fora da estrutura do regime de representação dos estudantes em cada curso. Assim, em 1973, a força política estudantil na USP eram os Centro Acadêmico Livre (CA’s) que, por vezes, recorriam a nomes fantasia para disfarçar sua função oficial, como foi o caso do Centro Acadêmico de Ciências Sociais, conforme relata Júlio Turra, aluno de Ciências Sociais na época: Na USP, quando eu entrei em 1973, havia uma particularidade, porque a ditadura tinha transformado os centros acadêmicos em diretórios acadêmicos, que eram controlados pelas reitorias ou pelas direções [...], e na USP se mantiveram os centros acadêmicos, como entidades livres que não eram subordinadas à Reitoria da USP. Então, logo que eu entrei, e meu centro acadêmico era o CEUPES, todo centro acadêmico tinha um nome fantasia: centro de estudos e pesquisas e tal. No caso, o CEUPES era das Ciências Sociais, era Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais – CEUPES75.

Com o DCE fechado nos últimos meses de 1971 76 e os centros acadêmicos livres buscando resistir ao controle militar, foi criado o Conselho dos Centros Acadêmicos (CCA) que reunia representantes de todos os CA’s livres da USP, passando a funcionar como instância máxima do movimento estudantil da USP. A ex-militante Beatriz Tibiriçá, que também foi diretoria do Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais (CeUPES), em seu depoimento declara sua visão sobre o papel do CCA no início do processo de reorganização do ME:

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TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014. TURRA, Júlio. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 02 de abril de 2013. 76 Há pequenas divergências quanto à data exata do fechamento do DCE USP. Cancian (2010, p, 38) afirma que foi no início de 1972; Angélica Müller (2010, p. 129) afirma que foi no fim de 1971. 75

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Foi criado o Conselho dos Centros Acadêmicos que era a alternativa livre, que a gente chamava, ao Conselho Universitário. Então, esse conselho dos centros acadêmicos reunia representantes de todos os centros acadêmicos e era quem decidia, tocava e levava adiante o movimento na Universidade de São Paulo. Era a instância maior. O DCE estava fechado, a UNE fechada, a UEE fechada. O que existia era o que tinha sobrado e tinha uma atuação clandestina basicamente e a gente calouro mal conhecia. [...] O conselho dos centros acadêmicos foi adquirindo uma força muito grande77.

A primeira ação do CCA que marcou o início da reorganização foi a realização de um plebiscito para os estudantes se posicionaram sobre a proposta do governo de implementar o ensino pago nas universidades públicas. Cerca de dez mil estudantes participaram da consulta, com 95% dos votos contra a proposta em estudo no MEC (CANCIAN, 2010, p. 39). A repercussão do plebiscito e das manifestações estudantis contra o ensino pago levou a um pronunciamento do então ministro da Educação Jarbas Passarinho, que declarou ser o resultado fruto uma aliança entre “ricos e comunistas” 78. Esse era um primeiro passo em um longo caminho para a transição. Logo no início de 1973 um fato marcou o movimento estudantil: a morte de Alexandre Vannucchi Leme. Como apontado na introdução deste capítulo, além de estudante de Geologia, Alexandre militava na ALN e fora perseguido pelo regime que, naquele momento, procurava aniquilar os remanescentes da ALN assim como havia feito com várias outras organizações. Sobre a morte de Vannucchi, Laís recorda: O Bombom disse assim: “o Minhoca caiu e tenho certeza que não vai mais abrir.” Essa frase jamais me saiu da cabeça. [...] No dia que a gente teve a notícia que o Alexandre morreu, todo mundo ficou muito aflito, [...] a gente fazendo uma avaliação da Semana dos Calouros. Estava todo o pessoal lá do CeUPES [...]. Aí chegam o Rui e o Bombom desesperados, aflitíssimos, dizendo que acabava de sair no rádio a notícia que o Minhoca tinha morrido com a história de ter sido atropelado, o que todo mundo sabia que era mentira. E aí naquele momento se produz uma discussão “o que a gente faz?” E aí tinha duas tendências entre a gente lá, aquele grupinho de meninos, a gente não tinha nem 19 anos. Então, uma das tendências, as opiniões eram “não podemos fazer nada! A repressão era muito forte, tinham acabado de matar várias pessoas na rua naquele dia, se a gente fizer alguma coisa a repressão vai cair como uma...”, uma sensação de medo, impotência muito grande. A outra tendência, o Bino, o Claúdio e o Armando defenderam isso muito fortemente, disseram “Não, não dá! A gente tem que fazer alguma coisa, tem que dar um basta! Temos que fazer alguma coisa!” 79.

A decisão do ME naquele momento foi pedir apoio a dom Paulo Evaristo Arns, convidando o arcebispo de São Paulo para realização de uma missa de sétimo dia na Catedral da Sé. O ato litúrgico ocorreu de forma silenciosa. Não havia palavras de ordem. Apenas a 77

TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014. ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. 79 Idem. 78

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presença de aproximadamente cinco mil pessoas. Ao final da celebração, religiosos e os outros participantes saíram cantando Pra não dizer que não falei de flores 80 , de Geraldo Vandré, canção esta que se havia se tornado um hino da militância estudantil desde 1968. À música seguiu-se uma procissão que tinha como objetivo marcar um posicionamento político, sem provocação à repressão, que acompanhava de perto o evento. Laís Abramo recorda em seu depoimento esse momento da missa por Alexandre Vannucchi Leme: A família do Alexandre destroçada, nós todos e os caras da OBAN filmavam um a um ostensivamente. Para ter o registro, para intimidar mesmo. O texto da missa é fantástico, porque é um texto que reivindica, fala do Paulo Vannucci que estava preso naquele momento, primo do Alexandre, reivindica, questiona, defendem, claro não diretamente, são acusados de terrorismo, mas defendem. E a saída fantástica de sair cantando Caminhando, para evitar palavra de ordem, provocação. [...] Saíram da missa cantando. Isso dentro da igreja já puxaram: “Caminhando...”, isso foi uma coisa combinada, os padres, [...] os religiosos, saíram cantando. A gente saiu de lá de dentro cantando e no final da missa disseram “vão para casa sem provocações, sem palavras de ordem”. Teve essa orientação. E aí o pessoal dispersou. Era uma noite de março, fria, chuvosa, no centro, na Praça da Sé. Todo mundo foi embora 81.

Júlio Turra também recorda o episódio: As aulas começaram por volta de 08 de março, e lá pelo dia 20 de março já estava correndo a notícia que um estudante da Geologia, o “Minhoca”, esse Alexandre Vannucchi Leme, tinha aparecido morto. E a repressão dizia que ele tinha sido morto atropelado ao tentar fugir. Isso provocou uma mobilização dos centros acadêmicos e, em acordo com dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, foi feito uma missa na Sé, que lotou a Praça da Sé, mas foi uma manifestação absolutamente silenciosa, nenhuma palavra de ordem nem nada, simplesmente a presença da estudantada, professores, alguns setores do mundo artístico, Sérgio Ricardo, por exemplo, que cantou a música Caminhando durante a cerimônia e que foi uma maneira da Igreja apoiar o movimento estudantil e colocar publicamente que tinha havido ali um assassinato político e não um rapaz que tinha sido atropelado. Isso foi no ano de 197382.

Uma vez mais, reforçamos que a missa de Alexandre Vannucchi foi um grande marco para aquela geração que militava no ME em 1973. Esse episódio determinou cronológica e simbolicamente o “retorno” do movimento estudantil para suas lideranças, para suas memórias e para a historiografia. A missa tornou-se um símbolo de ousadia do movimento estudantil e da Igreja ao desafiar os militares no auge de repressão. Desde 1968 não se 80

Pra não dizer que não falei de flores, de autoria e interpretação de Geraldo Vandré, ficou conhecida também como Caminhando. Vice-campeã do Festival Internacional da Canção de 1968, organizado pela Rede Globo de Televisão, o público queria que a canção ficasse com o primeiro lugar. A música se tornou um hino da luta de oposição à ditadura, sendo entoada pelo movimento estudantil a partir de 1968 como um motivador para a luta política, instigando ao movimento de massas e à luta armada. Sobre o assunto, cf. RIDENTI, Marcelo. A época de 1968: cultura e política. In.: FICO, Carlos e ARAÚJO, Maria Paula (Orgs.). 1968, 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. 81 ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. 82 TURRA, Júlio. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 02 de abril de 2013.

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conseguia mobilizar um número tão expressivo de pessoas contra a ditadura. Era uma primeira vitória no campo da mobilização. Não houve confronto, tudo ocorreu de forma silenciosa. Essa vitória, no entanto, não foi capaz de impedir novas prisões e torturas a militantes estudantis. Markus Sokol, estudante de Economia da USP, militante trotskista da Liberdade e Luta nos anos 1970, foi preso em novembro de 1973, meses após a morte de Vannucchi. Ao saberem da prisão, seus colegas da Faculdade de Economia deflagram uma greve em sua defesa e pedindo sua soltura. Os militares fizeram uma busca na casa de Sokol, apreenderam sua biblioteca, mas não encontraram nenhum documento capaz de incriminá-lo. Preso, foi acusado de atividades clandestinas. Ele estava sendo perseguido desde 1971, quando militava na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares). Markus Sokol foi torturado no Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e liberado após sete dias, em partes devido às pressões realizadas pela greve da Faculdade de Economia e também pela ausência de provas contra ele. Sokol relata sua experiência:

Graças a Deus eu fui preso já em 1973 e não em 1971, porque você tinha já uma reabertura [...]. Já tinha tido a missa do Alexandre Vanucchi, que a gente acabou agora de fazer os 40 anos, você já tinha sinais de resistência registrados publicamente. E foi assim que, em novembro de 1973, teve uma greve na faculdade que eu estudava, na Faculdade de Economia, no caso dessa escola foi a primeira não sei se foi a primeira do campus, acho que já tinha tido uma uns dois anos antes noutra faculdade, de Ciências Sociais – mas na minha faculdade foi a primeira vez que teve uma greve por causa de um estudante detido. Com isso, eu não cheguei a completar sete dias no DOI-CODI, em parte por causa da greve e por outra parte porque o meu dispositivo de proteção e defesa era bem organizado. Eles chegaram na minha casa 48 horas ou 32 horas depois de eu ter sido detido e a casa já tinha sido limpa, não encontraram documentos. Confiscaram pela segunda vez minha biblioteca, a qual eu nunca mais recebi, mas não encontraram nenhum documento que pudesse ser prova da minha atividade clandestina. [...] Somado ao fato que eles não encontraram nenhuma prova material, [...] não tinham provas da minha atividade clandestina e mais o fato da greve, apesar de eu ter sido preso e torturado com tudo o que se tem direito, durou relativamente pouco. Eu fui preso, fui torturado, maquininha, choque elétrico, não tenho boas lembranças 83.

Além de Vannucchi e Sokol, outros estudantes foram vítimas da repressão. Na primeira semana de 1974, ocorreu uma série de novas prisões na USP. Por conta da grande repercussão no meio universitário, convocou-se uma Assembleia nos Barracos 84 , com a participação de 2000 universitários. Na reunião foi aprovada a criação da Comissão de Defesa

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SOKOL, Markus. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 09 de abril de 2013. Barracos era o apelido dado à Faculdade de Ciências Socais da USP devido às características físicas das instalações do prédio. 84

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dos Presos Políticos (CDPP) cuja função era discutir e encaminhar soluções para os casos dos militantes estudantis presos, bem como denunciar esses casos de arbitrariedades do regime. Como parte desse processo que passa pelo plebiscito, pela missa de Alexandre Vannucchi Leme, pela greve da Faculdade de Economia e pela criação do CDPP, outro importante elemento foi a greve da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP. A greve da ECA, em abril 1975, representou um novo momento de pico nas ações estudantis da USP. Com duração de 73 dias, recebeu inicialmente amplo apoio dos estudantes daquela escola e, com o seu prolongamento, ganhou a adesão de estudantes de outras unidades da USP. O motivo disparador da greve foi a insatisfação dos alunos com o diretor da unidade Nunes Dias, que era membro da Assessoria Especial de Segurança e Informação (AESI), um braço da repressão dentro da escola. O professor contava com a colaboração direta de um agente do DEOPS na gestão da faculdade, o que gerava da parte de Dias inúmeras ações restritivas e repressivas junto a docentes e discentes. A greve da ECA terminou sem alcançar o objetivo de retirar o diretor Nunes Dias, contudo, despertou uma mobilização estudantil que extrapolou os muros da ECA e envolveu toda a USP, fortalecendo assim o movimento que estava em processo de reorganização. A morte de Vladimir Herzog, ex-professor da ECA em 1975, gerou novas mobilizações. A celebração ecumênica do sétimo dia de Herzog, celebrada na Catedral da Sé, reuniu cerca de oito mil pessoas e contou com ampla participação de estudantes. Esse fato foi interpretado por vezes como o marco de reorganização estudantil, no entanto, aquela celebração representou um novo impulso ao processo que se intensificava paulatinamente até culminar, no caso da USP, na reconstrução do DCE. Para Renato Cancian (2010, p. 49), as ações do movimento estudantil uspiano seriam ações momentâneas distribuídas ao longo de 1972 e 1976, com momentos de pico em meio a longos períodos de inércia. A meu ver as ações fizeram parte de um processo histórico com continuidade permanente. Esses momentos foram os de maior expressão e mobilização, definindo um movimento estudantil que permanecia ativo nas atividades cotidianas e, em especial, nas formulações teóricas e táticas, bem como na mobilização que fora fundamental para a sua reorganização plena a partir de 1979, com a reconstrução da UNE. Nessas ações cotidianas estavam incluídas as atividades dos CA’s com suas eleições, o Cine Clube, o jornal Mural, os grupos de estudo, as reuniões das tendências, as rádios clandestinas como a Rádio Barraco85 e demais ações culturais. Desta forma, presumo que o De acordo com Beatriz Tibiriçá, em entrevista à autora: “a rádio foi idealizada por Dagomir Marquese e, no momento do Golpe no Chile, entre outros, foi um elemento importante para a circulação de informações. “Ele 85

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movimento não era feito apenas de grandes eventos, mas formado no cotidiano a partir de ações que envolviam a formação e a informação política, nas ações culturais como forma de resistência, entre outras questões. Eram todos esses elementos em conjunto que faziam a vida dinâmica interna ao movimento. A partir delas que surgiam ações políticas de maior expressão. Todo esse processo, no caso da USP, contribuiu para a reorganização do DCE, propagando-se em seguida para outros espaços. A necessidade de um órgão central de representação estudantil capaz de organizar, ampliar, direcionar e viabilizar as lutas estudantis era cada vez mais nítida para as diferentes tendências. A reconstrução do DCE representava a unidade do movimento estudantil e uma vitória sobre a ditadura. Assim, após vários debates entre as tendências, no dia 26 de março, no anfiteatro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) – ocorreu uma assembleia que deliberou pela formação do DCE Livre, com agendamento das primeiras eleições diretas na USP nos dias 11 e 12 de maio (CANCIAN, 2010, p. 68), em que concorreram as chapas Refazendo, Liberdade e Luta, Caminhando, Alternativa e Organizar a Luta. As eleições tiveram ampla participação estudantil, chegando a atingir quase oito mil votos (Idem, p. 70). Ao final da eleição, visando à apuração no dia seguinte, as urnas foram guardadas no prédio da FAU. Contudo, durante a noite, agentes do DOPS invadiram o prédio e roubaram as urnas. Em seu depoimento, Vera Paiva, aluna de psicologia na USP na época, ex-militante da Refazendo, relata suas lembranças sobre o episódio do roubo das urnas: Aí as urnas foram guardadas na FAU que era um lugar que tinha segurança dia e noite. Não era aberto. Para você ir ao Centro Acadêmico tinha que passar pela segurança do prédio. E guardamos as urnas lá. À noite eu vou embora e no dia seguinte não tinha mais urnas. [...] Chamou o roubo das urnas! O DOPS roubou as urnas todas e fez a contagem. Disse até quem tinha ganho a eleição. O Erasmão. E aí nós refizemos essa eleição. E aí como teve o roubo das urnas teve uma super repercussão “roubaram as urnas, a repressão está impedindo...” nós triplicamos a quantidade de pessoas que votaram na eleição. Foi muito interessante esse processo. E aí dormimos junto com as urnas dessa vez. Ninguém roubou e a gente ganhou bastante bem e foi a primeira chapa do DCE da USP que era essa do Refazendo. E aí a gente manteve o conselho dos centros acadêmicos como instância, digamos assim, mas tinha uma diretoria do DCE que coordenava a movimentação 86.

A vigília das urnas também se tornou um espaço em que as divergências culturais entre as tendências apareciam com maior vigorem torno da disputa. O clima de rivalidade

teve a ideia, o Cineclube apoiou, montou-se uma Rádio-Barraco que funcionava com radioamador e que virou um ponto porque por radioamador se fazia contato direto com o Chile que não tinha comunicação com o resto da América Latina, então, as pessoas que estavam aqui e que tinham familiares usavam inclusive a rádio para contatar, para saber o que estava acontecendo de verdade, o que estava rolando, enfim. A Rádio-Barraco então teve uma importância muito grande” (TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014). 86 PAIVA, Vera. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014.

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esteve presente até mesmo nas escolhas das músicas que se deveria ouvir e das bebidas alcoólicas que se deveria consumir. Uma programação cultural transcorreu durante toda aquela noite, com apresentações musicais, teatrais e exibição de filmes, além de debate sobre as políticas de cada chapa concorrente. Apurados os votos (que totalizaram 12253), a Refazendo venceu a Libelu por 1407 votos. Em homenagear ao militante estudantil da USP morto pela ditadura em 1973, nomeouse o Diretório (que era livre, pois estava desvinculado das instituições criadas pelo MEC) como DCE Livre da USP Alexandre Vannucchi Leme. A primeira ação da Refazendo após vencer a eleição foi a ocupar o Conjunto Residencial da USP (CRUSP), moradia estudantil da Cidade Universitária, e o Restaurante, popularmente chamado de Bandejão. Vera Paiva, em seu depoimento, relata suas lembranças sobre o fato: A primeira grande luta foi a luta pelo CRUSP. A gente ocupou o CRUSP. Tentaram aumentar o CRUSP, então, a gente invadiu o CRUSP. Tirou fotografia da sujeira, das várias coisas que a reitoria armazenava ali e fizemos uma luta bastante vitoriosa. A gente conseguiu com que o preço da refeição não fosse aumentado. Foi a primeira vitória importante. Nós ocupamos e saímos. [...]. Ficamos do lado de fora e foi uma vitória importante87.

Beatriz Tibiriçá também recorda o episódio da invasão do CRUSP: Então, por exemplo, a reconstrução do DCE da USP passa pela ocupação do CRUSP, quando os estudantes assumem, e aí são todas as tendências juntas de novo, assumem a gestão, o funcionamento do CRUSP durante um período que não foi um período longo. A gente continuou cobrando o preço que a gente achava justo e esse dinheiro foi entregue para quem tocava o CRUSP e os estudantes faziam comida, serviam no caixa, tudo era feito de comum acordo com esses coletivos que juntavam diversas tendências88.

A partir daquele momento muitas outras lutas foram direcionadas pelo DCE dentro da USP, com grande repercussão fora dos muros da Universidade de São Paulo. Assumindo um papel precursor, o movimento estudantil uspiano tornou-se um centro irradiador para os de outros estados. Também em São Paulo, a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) criou seu DCE Livre, inspirado pela mesma perspectiva da USP, o que tornou a realidade paulistana como precursora da reorganização do ME nacional. Amâncio Carvalho, militante carioca da Caminhando, em seu depoimento, compara o movimento iniciado na USP com a realidade do Rio de Janeiro:

87 88

Idem. TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014.

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A USP é a USP. A USP teve uma participação muito intensa principalmente no primeiro período dessa fase. A USP foi quem saiu na frente! Isso é indiscutível e começou a se organizar primeiro [...]. Mas, indiscutivelmente, ela saiu na frente, inclusive no processo de organização. Nós fomos a partir de 1977, e eles começaram até em 1975! Em 1975-1976. Mas, a partir daí, houve um certo deslocamento da intensidade do movimento estudantil para o Rio de Janeiro, por exemplo, a questão da UNE, do prédio da UNE, as prisões de 77. Claro, houve em São Paulo também, que foi da Libelu, mas aqui depois do MEP, enfim, mas acho que, se a gente enxergar como um todo, São Paulo foi precursor, eu acho que teve esse papel, começou a se organizar mais cedo89.

O documento interno da tendência carioca ligada à Ação Popular Marxista-Leninista (APML) permite uma análise que valorizava o papel deste grupo no início da reorganização nacional do ME, visto o papel de liderança desempenhado pela tendência em SP. Nessa chave de interpretação, o papel pioneiro do ME da USP fez com que o seu DCE acumulasse funções90 e assumisse um significado de referência nacional. Sob essa perspectiva, o DCE Livre da USP desempenhou o papel de UEE-SP, antes da refundação desta em agosto de 1977, sendo responsável pela reorganização estudantil em várias instituições de ensino superior paulistas, além de protagonizar a luta de massa e a retomada das ruas no estado de São Paulo. Também assumiu a função da UNE, organizando a luta estudantil nacionalmente, antes da reconstrução da entidade. O DCE da USP, por ser a primeira entidade a se rearticular, acabou tornando-se referência nacional, sendo o responsável por marcar os Dias Nacionais de Lutas, em 19 de abril de 1977 e 23 de agosto de 1977, com o objetivo de expandir para o restante do país as lutas estudantis que ganhavam força em São Paulo. O movimento estudantil carioca, no contexto da transição, atingiu maior expressão a partir de 1977 quando, também motivadas pelo caráter vanguardista do ME paulista, as entidades estudantis cariocas começaram a se reorganizar e a realizar grandes mobilizações de massa que tomaram grande proporção na cidade do Rio de Janeiro naquele momento. Entre 1973 e 1976, apesar de algumas iniciativas do ME carioca e de sua constante atuação através dos diretórios acadêmicos, foi a USP que desempenhou papel percussor na reorganização do movimento de forma a “contagiar” e motivar, em outros lugares do país, experiências como as em via de curso em São Paulo. No depoimento de Amâncio Paulino Carvalho citado acima, o ex-militante afirma que a partir de 1977 “houve certo deslocamento da intensidade do movimento estudantil para o Rio de Janeiro”, valorizando o papel de protagonismo do Rio pós-1977, visto que 89

Amâncio Carvalho. Entrevista. Ver dados sobre entrevista e entrevistado no anexo 01. A expressão “acúmulo de funções por parte do DCE da USP” está presente em documento da APML, de fevereiro/1979: “Proposta para o Movimento Estudantil”. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Coleções particulares. Jair Ferreira de Sá. JFS, APSC, APME III, 1. Folha 9. 90

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anteriormente esse papel caberia ao ME de São Paulo. Por nossa vez, entendamos esse processo não como deslocamento, mas sim como um fortalecimento do eixo RJ-SP nas lutas estudantis, em que as duas cidades passaram a expressar intensamente as demandas do ME. A partir de 1977, o Rio de Janeiro entrou com mais vigor no cenário nacional do ME, passando a ser um importante centro urbano na luta estudantil na transição. O processo de reorganização do Movimento estudantil carioca se desenvolveu com características distintas das de São Paulo. Enquanto na capital paulista a USP era o principal reduto de afluxo estudantil, (a PUC-SP após 1977 também ganhou expressão no cenário paulista, sem, contudo, se sobrepor à proeminência uspiana), no Rio de Janeiro havia quatro polos aglutinadores da ação estudantil: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Federal Fluminense (UFF), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Os quatro centros universitários viveram processos paralelos de reorganização interna de seus diretórios e também compartilharam de um processo unificado de atuação na região da Grande Rio. Como uma das primeiras ações estudantis, temos a realização da Semana de Direitos Humanos (SDH) em 1976, organizada pelo DCE da UFF (que era o principal DCE aberto na Grande Rio ao lado do DCE da PUC-RJ). O objetivo oficial da SDH foi denunciar a violência da ditadura; logo, era um primeiro “grito” de socorro após uma série de prisões de professores e alunos da UFF. Muitas das atividades programadas para a semana não chegaram a acontecer devido à ação repressiva do regime militar, mas a iniciativa deixou importantes legados. Entre eles, a criação do Conselho de Representantes da Grande Rio em 1976, a partir da necessidade de aproximar e unir o movimento estudantil carioca. Esse Conselho deveria centralizar a ação estudantil e cuidar da reconstrução de suas entidades representativas no estado. Entre suas ações, o Conselho publicou o jornal Boca no trombone, que se tornou um dos núcleos de reorganização do ME estadual, no qual o DCE da UFF respondia como principal aglutinador, visto ser uma das poucas entidades que conseguiu se manter ativa naquele contexto91. Apesar de estar submetido à mesma lógica da legislação militar, o DCE da UFF conseguiu burlar a ditadura a partir da utilização de chapas frias nas eleições do diretório, compostas por pessoas que se encaixavam dentro das determinações militares. Para vencer a lógica dos DCE controlados pelo regime e buscar ocupar o espaço da representação estudantil, o DCE da UFF permanecia realizando eleições diretas clandestinamente. Eram lançadas chapas que disputavam as eleições e contavam com o voto

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CARVALHO FILHO, Luiz Mariano Paes. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 05 de julho de 2013.

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amplo dos estudantes para a direção do DCE. Se levados para aprovação da reitoria, os membros das chapas seriam barrados, devido às exigências estabelecidas pelo MEC. Diante de tal cenário, a solução encontrada foi a formação de uma “chapa fria” para concorrer à entidade. Ela era apresentada ao Conselho para a eleição indireta e validada pela direção da universidade; mas, na prática, quem dirigia o DCE era a “chapa quente” eleita pela maioria dos estudantes da UFF. Com isto, apesar do controle militar nas eleições, o DCE da UFF conseguiu contar com uma direção vinculada às esquerdas e, por conseguinte, desempenhar importantes lutas como representante estudantil. De acordo com os relatórios da polícia política, em 05 de abril de 1976, o DCE da UFF promoveu uma discussão em torno da reorganização do movimento estudantil e apresentou a convocação para participação no Encontro Nacional de Estudantes que ocorreria naquela semana na USP. Os estudantes cariocas fizeram-se presentes como representação da UFF e apoiaram a proposta para realização de uma semana pelas liberdades democráticas, bem como a organização para a reconstrução da UNE92. De acordo com a interpretação da Polícia Política do Rio de Janeiro, o panorama do movimento estudantil carioca em meados de 1976 contava com o DCE da UFF e o DCE de algumas faculdades privadas, como a PUC-Rio, em contínuo fluxo de atividade. Já a UFRJ e a UERJ estavam com seus DCE fechados, mas se reorganizavam enquanto movimento e tinham como espaço representativo o Conselho de Representante. O relatório da Polícia Política deixa claro a preocupação militar com a ação de oposição do Movimento Estudantil: O ME/RJ neste trimestre de 1976, situa-se dentro do campo político estadual, como autêntico opositor ao regime vigente. Embora alijados da tutela dos DA’s e DCE’s, os corpos discentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, ex-UEG), passaram a ser representados junto ao Conselho Universitário, Congregação ou Conselho Departamental dessas universidades, por uma nova organização de representação estudantil, denominada Conselho de Representantes. As demais universidades particulares e federal isolada, bem como a Universidade Federal Fluminense, mantiveram em funcionamento, sem que houvesse interrupção de continuidade, nas suas faculdades os DA’s e DCE com suas respectivas diretorias, renovadas a cada período mediante eleições. Na situação atual, as lideranças formaram uma coligação, integrada pela PUC/RJ, UFRJ, UERJ e UFF, autodenominada de "Comissão dos Estudantes do Grande Rio", que vem se manifestando de múltiplas formas, tendo por finalidade a organização da massa estudantil, ao nível de um trabalho prático de

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ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Informe da Polícia Política. Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 43; caixa 536; maço 2; folhas 355 e 356. 14 de maio de 1976.

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agitação e propaganda, em oposição sistemática à política econômico-financeira do governo93.

No relatório, uma intensa crítica à atuação da Comissão dos Estudantes da Grande Rio, responsabilizada pela polícia política pela promoção de agitação e propaganda através de ações culturais de grande aceitação no meio estudantil, sempre vinculadas a críticas políticas ao regime. De acordo com o relatório da Polícia Política, Sem deixar de lado as reivindicações específicas da universidade, a Comissão dos Estudantes do Grande Rio, vem sensibilizando a massa estudantil através de um trabalho prático de agitação e propaganda. Este trabalho é orientado pelas lideranças, nas associações atléticas, departamentos culturais, cooperativas de livros, cineclubes, shows de MPB, cuja aceitação por parte dos universitários é total, em razão de descontentamentos pela forma de ensino ministrado nas universidades. Durante assembleias e palestras, ou mesmo shows e filmes, a tônica recai sempre contra a política educacional do governo, levando o jovem a criticar e repudiar as autoridades constituídas. [...] Dispõe ainda, o ME/RJ, para complementação de sua tática, de um setor de imprensa, para divulgação entre os estudantes, de suas palavras de ordem. Esse setor, encontra-se instalado na ala dos diretórios da PUC-RJ, onde mantém em funcionamento, máquinas offset, máquinas elétricas e mimeógrafos, para editar jornais, livretos, notas oficiais, que são distribuídos nas universidades. [...] O ME/RJ visa conduzir os universitários à luta sistemática contra o regime vigente. O método utilizado, não é o terror e, sim a mobilização da massa estudantil para uma imensa cadeia de greves e passeatas94.

Esse documento da Polícia Política evidencia a compreensão policial da nova tática adotada pelo movimento estudantil naquele contexto, tática que tinha por base a mobilização da massa estudantil que se dá a partir da conscientização política via ações de divulgação direta e via movimento cultural. Ações estas em processo crescente no Rio de Janeiro em 1976. Contudo, a reorganização do DCE da UFRJ só ocorreria em 1978, dois anos após o DCE da USP e um ano após o grande afluxo do ME carioca ocorrido em 1977 com as assembleias da PUC-Rio e as manifestações de rua após a prisão dos militantes do MEP95. Luiz Mariano Carvalho Filho, estudante de Engenharia da PUC-Rio na época, em seu depoimento relata o processo de reorganização do ME nas universidades cariocas: Fazer um movimento de afluxo, organizado e abrir os centros acadêmicos e os diretórios. E isso foi feito. Então, a UFRJ criou o DCE, o centro acadêmico da medicina, fundado em 77. Foi uma explosão. Ou seja, a organização do movimento estudantil se fez quando tudo isso tinha sido fechado pela repressão do final dos anos 60 e início dos anos 7096. 93

Relatório da Polícia Política sobre a Atuação do Movimento Estudantil no primeiro trimestre de 1976. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 43; caixa 536; maço 2; folhas 400 a 403. 19 de abril de 1976. 94 Idem. 95 As características das mobilizações do ME/RJ em 1977 será desenvolvida no próximo item deste capitulo. 96 CARVALHO FILHO, Luiz Mariano Paes. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 05 de julho de 2013.

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No caso da UFRJ, os Centros Acadêmicos foram fechados assim como o DCE. O processo de reorganização estudantil precisou começar pela articulação de representatividade dos cursos, com a refundação dos centros acadêmicos livres ao longo de 1978. Da união dos CA’s criou-se Conselho de Centros Acadêmicos, que deu as bases para a reorganização do DCE. A decisão para a refundação do DCE da UFRJ foi aprovada em 1978 em assembleia geral realizada no campus da Praia Vermelha. A entidade foi batizada com o nome DCE Mário Prata, em homenagem ao estudante de Engenharia Mário de Souza Prata, assassinado pelo regime militar em 02 de abril de 1971. A eleição foi apurada no dia 18 de outubro de 1978, e a chapa vitoriosa para a primeira gestão do DCE da UFRJ Mário Prata desde 1968, quando foi fechado, foi a chapa Mãos à Obra 97 , vinculada ao Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), que recebeu 4876 votos98. No ano seguinte, em 1979, concorreram nas eleições para a direção do DCE Mário Prata as chapas Andança, Bola pra Frente, Debate, Liberdade e Luta e Semeando. A ampliação do número de votantes fez com que a eleição atingisse um total de 11835 votos. A chapa vencedora, que contou com 45% dos votos, foi a chapa Debate, vinculada ao PCB. Em 1980, a tendência Mãos à Obra retomou a direção do DCE da UFRJ. Amâncio Carvalho, militante da tendência do PCB na UFRJ, relembra em seu depoimento o panorama do ME da UFRJ no contexto de refundação de seu DCE: As tendências mais importantes ao par do PCB era o MR-8, que ganhou as primeiras eleições do DCE em 1978, uma chapa chamada Mãos à Obra. A nossa chapa era Debate. Então, eles gozavam a gente porque falavam que a gente era muito atrasado, não tinha iniciativa política, diziam “Ah, o negócio de vocês é ficar no debate!”. Eles ganharam em 1978 e a gente ganhou em 1979. Mas eu vi o MEP que tinha uma posição razoavelmente importante, AP era menos. AP era mais importante na PUC embora perdessem as eleições pra nós. Na PUC a gente tinha hegemonia99.

O ex-militante do MR-8 e estudante de História da UFF na época, Marcelo Camurça também relata em seu depoimento o contexto de reorganização do ME carioca: E 77-78 você tem a construção dos DCE’s [...]. Eu me lembro que criou o DCE da Universidade Santa Úrsula, e o MR-8 tinha essa coisa de homenagear os antigos 96

Idem. A chapa era composta por Aglaéa Fernandes Meireles; Antônio Augusto Bezerra; Cristiane Schuch Pinto; Enio Lucíola Lopes Gonçalves; José Francisco Pedra Martins; Luiz Carlos Alves Venâncio; Marco do Couto Bezerra Cavalcanti; Marluce Barbosa de Carvalho; Maria da Glória Bonelli Santos; Moysés Chernichiarro Corrêa; Paulo Fernando de Miranda Carvalho; Ricardo Mendes Callado; Roberto José Bitencourt; Rosa Kazuê Tobinaga; Sorelle Mendonça Pinto. 98 Informe da Seção de Buscas Especiais do Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE). ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 64; Caixa 553; Maço 2; folhas 646-651. 18/10/1978. 99 CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. 97

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militantes mortos. [...] O DCE da UFRJ se chamou Mário Prata, que foi um militante do MR-8 que [...] foi morto pela ditadura. O pessoal do PCB ficou muito pê da vida de ter batizado, eram contra e, no final, o MR-8 ainda quis batizar a UEE, UEE qualquer coisa. Mas aí perdeu! Acho que o pessoal deu um tranco, “chega!”. Mas aí eu me lembro do DCE da UFF virou DCE Fernando Santa Cruz, que era um militante da APML, então a moda pegou um pouco. [...] Então, criou-se o DCE da UERJ, criou-se o DCE da Santa Úrsula, Marilena Vilas Bôas, o DCE Mário Prata da UFRJ, que o primeiro presidente foi o Roberto Bittencourt com uma chapa com o MR-8, contra o PCB, porque tinha momentos em que havia uma tensão mesmo e depois o segundo presidente foi o Sérgio Lippman, que era do PCB e depois o MR-8 ganhou a terceira eleição também100.

Nesse contexto de reorganização do ME carioca com a refundação de suas entidades representativas, fica evidenciado nas falas de Amâncio Carvalho e Marcelo Camurça a disputa pela proeminência política no passado e na memória no presente entre PCB e MR-8 no Rio de Janeiro. No caso da PUC-RJ, em 1978, disputavam as eleições para o DCE a chapa Novação, resultante da fusão entre as tendências Alternativa (Organização Revolucionária Marxista – Política Operária - POLOP e Movimento pela Emancipação do Proletariado - MEP) e a chapa Viração (Ação Popular - AP), que visavam quebrar a hegemonia da tendência Unidade (PCB) no DCE da PUC-Rio 101 , compondo o panorama das três principais forças políticas da universidade. Como parte de todo esse processo, ocorreu a criação da União Estadual dos Estudantes (UEE-RJ) em 1978. Diferentemente dos demais estados, a UEE carioca foi criada e não refundada. A entidade fora a União Metropolitana dos Estudantes (UME), relacionada à cidade do Rio de Janeiro. Após 1975, o Estado da Guanabara se torna Estado do Rio de Janeiro e no novo contexto funda-se A UEE-RJ, conforme lembra Amâncio Carvalho em seu depoimento. Porque na verdade o que existia antes, como era Guanabara, era a União Metropolitana dos Estudantes. Nome que vinha lá da cidade do Rio de Janeiro e que virou Estado da Guanabara e continuou. O Estado do Rio de Janeiro só foi criado em 75. Então, quando recriamos, nós não fizemos a UME de novo, nós fizemos a UEE que era mais ou menos o que acontecia em outros estados. Então, ela foi fundada e não refundada em 1978102.

No congresso de criação da UEE-RJ, a divergência entre as tendências se fez perceptível no debate sobre o caráter da eleição. Havia impasse sobre como realizá-la: se de forma direta no Congresso; por eleição de uma diretoria composta por diferentes grupos ou mesmo se a eleição deveria ser por cabeça ou por entidade. O PCB acabou por vencer as duas 100

LIMA, Marcelo Ayres Camurça. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 08 de janeiro de 2014. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Informe da Seção de Buscas Especiais do DGIE. Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 64; Caixa 553; Maço 2; folhas 646-651. 19/10/1978. 102 CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. 101

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divergências com o MR-8. A eleição foi direta e a chapa vitoriosa pertencia àquele mesmo grupo político. No caso da capital mineira, a universidade com maior representatividade política era a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O DCE dessa instituição não foi fechado, como ocorrera com o da UFRJ e mesmo com o da USP. Na UFMG, o DCE permaneceu atuante durante todo o período ditatorial, mas sob regimento legal do regime, realizando suas eleições de forma indireta no Conselho dos Centros Acadêmicos, que era composto por um representante de cada diretório acadêmico com direito a voto. O ano de 1976 tornou-se um marco para o DCE da UFMG pelo sentido político da realização das primeiras eleições diretas para a direção da entidade desde 1968. Para tanto, o ME utilizou-se de um artifício para burlar a lei. Eles realizaram uma eleição direta, e o resultado da mesma foi referendado pelo conselho de DA’s. A pauta dessa primeira eleição direta aglutinava as diferentes tendências que desejavam a reconstrução das entidades representativas estudantis e a participação das disputas para a direção da entidade. A primeira gestão do DCE UFMG com eleições livres e diretas foi da tendência Liberdade, grupo ligado à APML que a partir de então liderou um importante momento da vida política estudantil da UFMG, conduzindo lutas específicas, como a do Bandejão. O hoje empresário Jânio Oliveira Bragança, estudante de Engenharia Metalúrgica na época, ex-militante da tendência Liberdade e presidente do DCE da UFMG na primeira gestão livre 1976-1977, em seu depoimento aponta as primeiras ações da gestão Liberdade relacionadas à questão do Bandejão: Uma coisa que tinha muito era o Bandejão, questão assistencial na Federal. Como tinham muitos estudantes do interior que vinham para cá e a gente comia nos restaurantes estudantis, morava em repúblicas. E a comida do restaurante era subsidiada. Então, tínhamos duas brigas pelo restaurante, uma pela qualidade da comida, outro pelo preço da comida. [...] Isso aí era uma coisa que acontecia muito, tinha invasão no Bandejão, protesto pela qualidade de comida no Bandejão. O ponto de maior articulação eram os Bandejões 103.

A luta pela qualidade e pelo preço do Bandejão demonstrava a luta específica do meio estudantil, relacionada a questões que afetavam diretamente seu cotidiano. Mas o DCE UFMG estava envolvido na campanha nacional de reconstrução da UNE, como entidade representativa estudantil em nível nacional, sediando, em 1977, o III ENE, bem como esteve envolvido em diversas outras lutas relacionadas à bandeira das liberdades democráticas. A dinâmica de reconstrução do ME na capital mineira teve influência direta da realidade do de

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BRAGANÇA, Jânio Oliveira. Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015.

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São Paulo, com a diferença de iniciar sua trajetória quase que paralelamente àquela realidade, compondo parte importante da luta política nacional. A reorganização estudantil estava em curso por todo o estado de Minas Gerais. Além de Belo Horizonte, universidades em cidades como Juiz de Fora, Viçosa, Governador Valadares, Montes Claros, Uberlândia, Ouro Preto e Lavras, entre outras, reorganizavam seus Diretórios e envolveram-se na luta em campo estadual e nacional. Em 05 de junho de 1978 ocorreu o I Encontro Estadual de Estudantes (I-EEE) em Juiz de Fora, reunindo universitários de diversas cidades de Minas Gerais. Ao tomar conhecimento do fato, Sebastião de Almeida Paiva, então reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), divulgou nota oficial, no intuito de lembrar que a União Estadual dos Estudantes havia sido extinta em 1968, e que qualquer iniciativa que objetivasse reestruturá-la seria vetada pela Lei de Segurança Nacional. Assim, declarava que não permitiria a realização do referido encontro na UFJF, além de tentar intimidar os estudantes, para que não participassem do I EEE-MG104. Os estudantes juiz-foranos, em resposta, pediram à população, através da imprensa local, apoio para a realização do encontro que tinha significado importantíssimo para os universitários do estado e declararam que este aconteceria conforme planejado, independentemente das declarações da Reitoria105. E assim aconteceu. Contudo, diante das ameaças da UFJF de decretar recesso de 48 horas de suas atividades, e da PM de buscar na Lei n° 228 e na Lei de Segurança Nacional subsídios para repreender o evento, as lideranças estudantis decidiram antecipar o encontro, reduzindo sua duração para um dia (04 de junho) e com participação apenas dos representantes das delegações (LACERDA, 2011, p. 180) 106. Desta forma, em torno de 150 delegados participaram do encontro. Representavam as delegações de Juiz de Fora, Belo Horizonte, Ouro Preto, Viçosa, Uberlândia, Uberaba, Ituiutaba, Santa Rita do Sapucaí e Itajubá, totalizando 54 escolas superiores além da União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES) de BH107. Como resolução do I EEE, foi composta uma Comissão Pró-UEE e sua Executiva, responsáveis a partir daquele momento por centralizar e encaminhar a luta em torno de seu 104

Jornal Diário Mercantil. 02 de junho de 1978. p. 08. Idem, 04 e 05 de junho de 1978. p. 04. 106 Estes trechos foram baseados em minhas pesquisas anteriores que originaram minha dissertação de mestrado, posteriormente publicada em livro, onde o caso do Movimento Estudantil da cidade mineira de Juiz de Fora foi o centro de análise. Os documentos aqui citados (Diário Mercantil e documentos do arquivo pessoal de Gabriel dos Santos Rocha) foram consultados para analise do caso da reconstrução da UEE mineira, a partir de minha pesquisa de mestrado, por isto não foram apresentados na introdução deste trabalho, onde foi priorizada a apresentação das fontes de maior relevância por constituir a base da maior parte da pesquisa. 107 Nota oficial do DCE. 05 de junho de 1978. Arquivo pessoal de Gabriel dos Santos Rocha. Juiz de Fora/MG. 105

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objetivo central, a criação da UEE-MG. A comissão ainda recebeu a atribuição de preparar, para o mês de setembro, o II Encontro Estadual de Estudantes de Minas Gerais (LACERDA, 2011, p. 180). A partir do encontro realizado em Juiz de Fora, a Comissão Pró-UEE iniciou seus trabalhos de organização do congresso de reconstrução da UEE-MG, ocorrido em setembro de 1978, na cidade de Ouro Preto. Nesse congresso, a UEE-MG foi reconstruída e sua primeira gestão foi liderada pela chapa Liberdade, tendência estudantil de maior expressão na capital mineira. Mas os grupos do interior também disputavam espaço na representação estudantil estadual. José Pimenta, na ocasião vinculado à APML, presidente do DCE da UFJF na gestão Ponto de Partida em 1977-1978, em seu depoimento registra sua lembrança sobre o processo de reorganização da UEE-MG envolvendo as relações entre capital e interior mineiro: Eu fui da comissão de organização da União Estadual dos Estudantes, eu fui candidato a presidente. [...] A gente viaja muito organizando os centros acadêmicos, criando DCE, Centros Acadêmicos, fazendo mobilizações, fazendo greve. E aí a gente tinha um conhecimento muito grande do interior. Era mais assim, um espírito de luta, a unidade não se dava em torno de uma ideia política clara, mas em cima de uma combatividade, um compromisso com a luta, com a organização do movimento estudantil, o compromisso do movimento estudantil com as lutas populares. Aí a AP, que tinha maior influência em Belo Horizonte, e, consequentemente, tinha maior influência no interior [...]. Aí a gente ia, o pessoal de Viçosa, Ouro Preto, sul de Minas, Triângulo Mineiro, todos, em Montes Claros, era mais ou menos uma unidade. Aí a divergência que surgiu, que era uma coisa muito despolitizada, mas era uma realidade daquelas circunstâncias ali, era que tinha que ter um cara da capital e uma cara do interior. O interior se organizou, exigindo um representante do interior, coisa que não tem muito sentido, porque o problema da representação política não era por umas pessoas ser necessariamente do interior ou de Belo Horizonte, era posição. Mas como interessava naquele tempo pra AP para questionar o interior de Minas Gerais, que era muita quantidade de delegado, eles aceitaram e apresentaram na chapa essa proposta108.

Essa organização do interior e a relação com o ME da capital indiciam qual era a dinâmica do ME mineiro, um estado extenso, com a presença de muitas universidades, em especial federais, onde a atuação do ME obtinha maior representação a partir, principalmente, da militância das tendências estudantis Liberdade, Centelha e Libelu. Tendências que por sua vez viviam disputas internas, por vezes despolitizadas, como apresentado na visão de José Sales Pimenta no depoimento citado acima, em busca de equilibrar a representação do interior e da capital, mostrando uma disputa específica da realidade mineira.

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PIMENTA, José Sales. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 20 de outubro de 2009.

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3.2 O retorno dos estudantes às ruas em 1977 e as lutas políticas de 1977 a 1980 Dentro do contexto da atuação do Movimento Estudantil durante a transição democrática, o ano de 1977 adquire um importante significado. Ele simboliza o momento auge da ebulição estudantil em nível nacional e coloca o ME em evidência na luta política pela transição democrática que vai tomar, a partir de então, maiores proporções na sociedade brasileira. Expressão iniciada com as movimentações na USP e que se propagam para as principais cidades brasileiras, influenciando outros movimentos sociais que posteriormente passaram a compor a luta política junto ao ME pelas “liberdades democráticas”. O primeiro momento desse movimento (intensificado ao longo de 1977) foi a realização de uma passeata no dia 30 de março, com a participação de cerca de cinco mil estudantes que saíram de dentro dos muros da universidade e seguiram da USP até o Largo de Pinheiros. Tratava-se de um primeiro ensaio do movimento que se desdobraria daquela ação. Curta em distância (o trajeto que separa os dois locais tem em torno de 2 km), a passeata era extensa em seu significado, afinal, era a primeira vez, desde 1968, que o movimento estudantil tomava novamente as ruas mesmo sob vigilância de forte aparato policial. Representava aproximar o ME da população e potencializar a luta contra a ditadura. As memórias de ex-militantes desse período destacam a importância da passeata do ME da USP até o Largo de Pinheiros pelo seu significado como uma primeira vitória dos estudantes rompendo com o silêncio de anos em que as ruas ficaram vazias da mobilização social. Paulo Lotufo, estudante de Medicina e membro do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) na época, em seu depoimento expõe suas lembranças sobre a passeata: Em 1977, a gente faz uma passeata, a primeira passeata pós-1968. A passeata sai da reitoria e vai até o Largo de Pinheiros, o que na época foi uma coisa fantástica. Nós saímos daqui, atravessamos a ponte, o Butantã, paramos no Largo de Pinheiros e depois se dissipou. Aquela passeata foi uma sensação, uma levitação. Tínhamos feito alguma coisa [...] Uma grande conquista! [...] A repercussão na imprensa não foi fantástica, mas houve uma repercussão! Quem mais deu repercussão foi a própria polícia, cercaram daqui, cercaram de lá, causaram congestionamento na cidade inteira. [...] Foi início de março, mais ou menos, deu um ânimo, uma coisa, estava todo mundo109.

Um dos principais resultados desse primeiro ato, na memória de seus militantes, foi a motivação gerada por ele entre os estudantes, que passaram a sentir-se frente a uma primeira vitória nas ruas desde 1968. As motivações para a realização da passeata foram apresentadas por Laís Abramo, ex-militante do grupo Refazendo, em seu depoimento, bem como sua visão 109

LOTUFO, Paulo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 21 de outubro de 2014.

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sobre os significados dessa primeira ação do ME de São Paulo em 1977, já sob a direção da Refazendo no DCE Livre da USP: A gente tinha programado uma manifestação na frente da Secretaria de Educação que ficava no Largo do Arouche em São Paulo. A gente ia fazer a manifestação lá. Aí nosso “querido” coronel Erasmo Dias, da Segurança Pública, fecha a USP para os estudantes não saírem. As saídas de carro. Aí o pessoal resolve fazer uma passeata até o Largo dos Pinheiros. Então, foi a primeira vez que a gente sai da USP com exceção das duas missas, que eram fora da USP, mas eram dentro da Catedral. Então, era a primeira vez de uma passeata desde 1968. Vai até o Largo de Pinheiros, chega lá e foi totalmente improvisada, não tinha megafone, não tinha nada. Mas a gente inaugura uma coisa muito legal que é a leitura conjunta [...]. A gente estava lá, no Largo de Pinheiros, aí já tinha o DCE [...]. Aí o Vinicião – todo mundo tinha apelido naquela época, ele não tinha megafone, então ele faz um discurso, o pessoal senta e repete. Aí volta para universidade, mas foi superimportante, primeira vez que a gente sai às ruas110.

O motivo inicial que levou a essa mobilização era uma causa estritamente interna ao movimento estudantil da USP: o aumento do preço do Bandejão. O DCE da USP havia programado uma manifestação no Largo do Arouche, na região central da capital paulista, em frente à Secretaria de Educação para o dia 30 de março. Contudo, a vigilância policial, sob comando do coronel Erasmo Dias, então secretário estadual de Segurança Pública, ao saber da articulação estudantil, decidiu fechar as saídas de carro da USP, numa tentativa de impedir o deslocamento dos estudantes até o Centro. Os estudantes logo se reuniram em assembleia para discutir suas ações frente à investida policial de repressão ao movimento. Júlio Turra, ex-militante da Libelu na USP na época, em seu depoimento aponta as divergências existentes entre as tendências frente à possibilidade de sair em passeata fora dos limites da USP: 1977, outro ano marcante porque pela primeira vez nós resolvemos fazer uma passeata fora da USP. Teve uma assembleia no COSEAS que era um centro de convivência onde tinha o CRUSP que era a residência universitária, onde tinha o Bandejão, o clube lá da USP com piscina. A polêmica era a seguinte: “vamos sair da USP, sim ou não?”. Para variar, a Refazendo era contra: “não, isso é provocação!”, Caminhando era contra e nós defendemos e ganhamos. [...] Nós saímos da USP, do portão principal, e fomos até o Largo de Pinheiros que é do lado praticamente, talvez não chegue a seis quilômetros, mas foi uma saída da universidade [...]. Tem um significado simbólico. Agora a luta é fora dos muros da universidade. Você imagina a discussão política e ideológica que foi feita sobre isso! Romper os muros da universidade, o contato com a população, potencializar a luta contra a ditadura. E isso era por causa do problema do aumento de preço do Bandejão!111

Essa divergência relatada por Júlio Turra expressa a diferença que existia entre as tendências no campo da avaliação de conjuntura política. Alguns grupos como a Refazendo e a Caminhando temiam o uso da violência por parte dos militares na repressão ao movimento. 110 111

ABRAMO, Laís. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. TURRA, Júlio. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 02 de abril de 2013.

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Outros grupos como a Liberdade e Luta insistiram na interpretação de que era hora de extrapolar os muros da universidade, pois um novo período político instalava-se naquele momento, em que não mais era necessário temer a dura repressão. Mesmo não sendo o encaminhamento defendido pelo grupo que liderava o DCE Livre da USP, ficou decidido em assembleia, os estudantes saíram em passeata. Vera Paiva, membro da Refazendo e da diretoria do DCE na ocasião, relata em seu depoimento seu sentimento de medo e de responsabilidade frente àquele episódio, enquanto líder do ME: Desde 1968 não tinha nenhuma passeata. E a gente decidiu que ia sair em passeata até o Largo de Pinheiros. [...] E eu me lembro bem forte que me deu paúra na hora de sair, porque era muita gente. Tinham cinco mil pessoas na passeata. Para época, era uma coisa assustadoramente imensa. Tinham entre três e cinco mil pessoas. A polícia militar disse que eram três mil e a gente disse que eram cinco mil. [...] A gente saiu da USP pela Alvarenga, pegou a Vital Brasil para atravessar a ponte e ir ao largo de Pinheiros. Foi esse o roteiro e depois voltamos. E, nesse momento, na hora que saiu, eu disse: “gente, pelo amor de Deus! É muita responsabilidade! Estou com medo...” de que os estudantes apanhassem, a gente criasse uma situação, eu me sentia, como todos ali, responsável pela segurança daquele monte de gente, eu era da diretoria. Lembro de duas pessoas, do Marcelo e do Massafera, que era diretor do DCE dizendo: “calma, Veroca! Vai dar tudo certo!”. Então, tinham várias regras, respeitar a diretoria, não aceitar provocação, porque eles infiltravam [...]. E a nossa pauta era uma manifestação pacífica. Nós não queremos confronto com a polícia. Se a polícia atacar, a gente resiste pacificamente. Essa é a diferença desse movimento, na minha opinião, para o movimento anterior. A gente não queria confronto. A gente queria conquistar o apoio da massa e do mundo, defendendo a democracia e o direito a se manifestar e as liberdades democráticas. [...] Então, nós fomos até o Largo de Pinheiros. Helicóptero, trânsito, todo mundo colocando a culpa nos baderneiros, mas a baderna não aconteceu. Fomos até o Largo de Pinheiros, e no Largo de Pinheiros foi juntando mais gente. Quer dizer, nós saímos com três mil, mas foi claramente juntando mais gente, e aí no Largo de Pinheiros a gente fez um comício. Eu me lembro como se fosse hoje. O Vinição, o Geraldinho, subindo em cima de um palanquinho, gritando para aquela massa, lotado de gente. Mas com medo. Era uma coisa tensa. Até então, estávamos testando a tal da abertura 112.

Assim começava 1977, sob o legado de um ensaio marcado pelo medo, mas regido pela motivação juvenil de desafiar os limites da abertura. Na memória dos entrevistados, o gesto de sair dos limites do campus trazia em si um sentido simbólico de que os objetivos da luta estudantil se expandiam para fora da universidade e se aproximavam da população, motivando a sociedade para uma luta que era comum a todos e não apenas dos estudantes. O que estava em jogo inicialmente era a questão do Bandejão, porém, ao sair do campus a luta que se seguiu passou a ser composta por uma pauta comum: derrotar a ditadura. Era possível avançar. E aquela passeata representava um passo que desencadearia muitos outros em direção a esse objetivo.

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PAIVA, Vera Sílvia Facciolla. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014.

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No mês de abril, dias após a passeata até o Largo de Pinheiros, uma ação do governo intensificou a oposição social ao regime. Tratava-se do Pacote de Abril, uma das medidas utilizadas para manter o controle do governo sobre a política brasileira, em resposta às constantes derrotas da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) nas eleições e do avanço da mobilização social. Geisel implementou esse pacote utilizando como pretexto a Reforma Judiciária que havia sido rejeitada pelo (MDB). Por meio do Pacote, Geisel fechou o Congresso Nacional em 1º de abril de 1977, convocou o Conselho de Segurança Nacional (CSN) e assinou a Emenda Constitucional nº 7, que instituía a Reforma do Judiciário. Por meio de tais medidas, o presidente também cassou o mandato de líderes moderados, instituiu a figura do senador biônico, declarando que 1/3 dos senadores da República seriam eleitos de forma indireta. Além disso, redimensionou os coeficientes eleitorais, favorecendo os estados em que a ARENA conservava maioria e garantiu condições para que a sua sucessão fosse tranquila. Esse cenário foi um dos motivos que levou às manifestações que se seguiram a ultrapassar mais ainda os limites das demandas estudantis e se aproximar amplamente de outros setores da população. Em maio surgiu um movimento mais amplo em São Paulo e que irradiou para outros espaços. As jornadas de maio e junho explodiram após a prisão de quatro estudantes, na região do ABC paulista, que panfletavam por ocasião do 1o de maio. No dia 03 de maio, os estudantes paulistas se reuniram em uma assembleia geral na PUC-SP, com participação de cerca de cinco mil estudantes. Nessa assembleia foi criado o Comitê de Anistia Primeiro de Maio e marcada uma concentração no Largo São Francisco, no centro de São Paulo, para o dia 05 de maio. O evento teve a presença de aproximadamente dez mil pessoas113·. Do largo a passeata seguiu pelo Viaduto do Chá, e tinha por meta chegar à Praça da República. Vera Paiva em seu depoimento rememora as lembranças desse episódio: Fomos e aí tem aquela coisa do Erasmo Dias fechar a gente, que foi uma incompetência logística absoluta. Se a gente tivesse orientado pelo povo da luta armada, a gente jamais teria feito isso, porque você não bota cinco mil pessoas em cima de um viaduto onde você fecha aqui e ali. Militarmente, tudo errado. Mas a gente não era militarista. A gente só queria ir até a Praça da República, não conseguimos chegar lá. A Praça da República era nosso alvo. Fomos parados na frente do teatro, quando a gente estava chegando no Teatro Municipal, vem o Erasmo e fecha tudo e joga bomba. Dois ou três colegas desses grupos mais radicais chegaram a pegar a bomba para jogar de volta. [...] E a gente gritando: “senta, senta!”. Sentou todo mundo, aí se viu a cena. Lemos a carta em voz alta. O povo em 113

Cf. dados do número de participantes da manifestação em TIBIRIÇA, Beatriz. Cronologia do Movimento Estudantil da USP. Teoria e Debate. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2015.

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volta aplaudindo e lendo junto, porque a gente distribuiu. Então, as pessoas que paravam ali tinha a carta na mão. [...] A gente escreveu para distribuir na rua. Isso foi maio, 05 de maio, e, no dia seguinte, o Estadão publica a carta e os censores deixam passar. A carta foi publicada na capa do Estadão. Então, gente obteve o que a gente queria114.

O relato de Vera Paiva sinaliza as divergências internas ao movimento que se mantinham no campo da forma de realização da manifestação. A Refazendo, como direção do DCE Livre, apresentava-se como uma tendência defensora do caráter pacífico das ações estudantis na busca das “liberdades democráticas”. Além disso, essa memória evidencia uma demarcação das diferenças estratégias utilizadas por aquela nova liderança estudantil nos tempos da transição, que não pensavam “militarmente”, mas buscavam a realização pacífica de uma passeata pelas ruas da cidade. A certa altura da passeata, que ficou conhecida como Passeata do Viaduto do Chá, como resposta pacífica, os estudantes sentaram no chão do Viaduto e passaram a ler Hoje consente quem cala115. A carta aberta à população fora redigida por membros da Refazendo, e era uma síntese dos objetivos daquele movimento, que também gritava as palavras de ordem estampadas nas faixas empunhadas (com dizeres sobre a anistia e pedindo a libertação dos presos).

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PAIVA, Vera Silvia Facciolla. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014. Publicada na Folha de São Paulo, em 06 de maio 1977, p. 21, a carta aberta à população declarava: Hoje, consente quem cala: basta às prisões; basta de violência. Não mais aceitamos mortes como as de Wladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Alexandre Vannucchi Leme. Não aceitamos que as autoridades maltratem e mutilem nossos companheiros. Não queremos aleijados heróis como Manuel da Conceição. Hoje, viemos às ruas para exigir a imediata libertação dos nossos companheiros operários – Celso Brambilla, Márcia Basseto Paes, José Maria de Almeida e Ademir Marini – e os estudantes – Fernando Antonio de Oliveira Lopes, Anita Maria Fabri, Fortuna Dwek, Cláudio Júlio Gravina – presos sob a alegação de subversão. Hoje, neste país, são considerados subversivos todos aqueles que reivindicam os seus direitos, todos aqueles que não aceitam a exploração econômica, o arrocho salarial, o alto custo de vida, as péssimas condições de vida e trabalho. Todos aqueles que protestam contra as contínuas violências policiais. Subversivos enfim, são considerados os que infringem a Lei de Segurança Nacional, instrumento jurídico que justifica a repressão contra os mais legítimos movimentos da população. Hoje, não mais suportamos as correntes. Exigimos das autoridades o respeito às liberdades de manifestação, expressão e organização de todos os setores oprimidos da população. Queremos falar com os que nos oprimem. E entendemos que a melhor maneira de falarmos e de lutarmos contra os que nos oprimem, por meio da exploração econômica, da violência política e da violência policial, é através dos sindicatos e entidades livres de nossas organizações independentes. Na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo os estudantes criaram as suas entidades livres (DCEs Livres). Livres, porque não nos submetemos às leis impostas pelas autoridades que não querem aceitar eleições livres e diretas, que impedem a nossa liberdade de manifestação e organização. Porque não mais aceitamos as mordaças é que hoje exigimos a imediata libertação de nossos companheiros presos não pelas alegadas razões de subversão, mas porque lutam pelos interesses da maioria da população explorada: contra a carestia, fim do arrocho salarial, liberdade de organização e expressão para reivindicar os seus direitos. É por isso que conclamamos todos, neste momento, a aderirem a esta manifestação pública sob as mesmas e únicas bandeiras: Fim às torturas, prisões e perseguições políticas; libertação imediata dos companheiros presos; anistia ampla e irrestrita a todos os presos, banidos e exilados; pelas liberdades democráticas”. 115

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Laís Abramo também comenta o episódio em seu depoimento, enfatizando o conteúdo e a leitura coletiva da carta como forma de protesto e resistência pacífica aos ataques do coronel Erasmo Dias: Basta de prisões, basta de torturas, não mais aceitaremos! É muito boa a carta, e a gente faz a manifestação no Largo São Francisco, cinco, seis mil pessoas e aí a gente sai em passeata, com a inexperiência que a gente tinha, a gente sai em passeata, entra pelo Viaduto do Chá e, quando chega do outro lado, está o Erasmão com os cachorros. Esse foi outro momento de muito risco. Se o cara atacasse, a gente podia cair do Viaduto do Chá. Aí na frente da passeata estava Vinicião, Bundão, Frutão, Marcelo Garcia e o Massa. E aí os caras tiveram a ideia brilhante – brilhante porque deu certo – de mandar todo mundo sentar no Viaduto do Chá, fazer novamente a leitura da cara aberta116.

A memória sobre o momento da leitura em coro da carta marca a narração dos exmilitantes sobre o episódio. Em resposta à ação estudantil, as tropas do coronel Erasmo Dias lançaram bombas de gás lacrimogêneo, com o objetivo de dispersar a manifestação. A passeata no Viaduto do Chá está registrada em O apito da panela de pressão 117 , documentário que circulou por todo o país sendo exibido em sessões pelas universidades, e que se tornou um meio de propagar a luta de rua, impulsionando estudantes de outras localidades a romper com os limites da transição imposta pelos militares. Mas os estudantes não recuaram em sua mobilização, de modo que escolheram o dia 19 de maio como Dia Nacional de Lutas, que concentrou cerca de oito mil pessoas na Faculdade de Medicina, e outras duas mil no Largo São Francisco. Organizaram ainda uma passeata que saiu da Praça do Correio até a Avenida Consolação e manifestações relâmpago responsáveis por iniciar a Jornada Nacional de Luta pela Anistia118. Deste modo, as ações da USP se generalizaram. No Rio de Janeiro, em março de 1977, já havia na PUC-Rio uma ebulição da organização estudantil com manifestações contra o aumento das mensalidades. Segundo a historiadora Angélica Müller, em sua tese de doutorado, “em 29 de março, cerca de oito mil alunos da PUC-Rio entraram em greve pela revogação da suspensão de quatro alunos, contra o aumento das anuidades e pela retirada da multa de 5% sobre as mensalidades pagas com atraso” (MÜLLER, 2010, p. 140).

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ABRAMO, Laís. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015. O documentário está disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=DuGZABQ0L5c>. Acesso em: 05 fev. 2015 118 Cf. dados do número de participantes da manifestação presentes em de TIBIRIÇA, Beatriz. Cronologia do Movimento Estudantil da USP. Teoria e Debate. Disponível em: . Acesso em: 02 fev. 2015. 117

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Em maio de 1977, uma série de atos públicos, passeatas e assembleias ocorreram na capital carioca. No dia 04 deste mês, na PUC-Rio foi realizada uma assembleia organizada pelo DCE da PUC para discutir ações em solidariedade aos estudantes presos em São Paulo. Amâncio Carvalho recorda o papel da PUC-Rio no início dessa articulação no Rio de Janeiro em 1977: Como toda organização institucional dos centros acadêmicos tinha sido desfeita nas universidades públicas, na PUC ela foi preservada, porque os padres jesuítas jamais deixaram que a repressão da ditadura chegasse à PUC. Então, a estrutura física e material e os próprios diretórios funcionavam na PUC. O primeiro espaço que a gente ocupou foi na PUC. Depois, isso na medida que o processo avançou, isso se deslocou pra UFRJ119.

O pediatra Ricardo Lêdo Chaves, estudante de Medicina na UERJ no período da transição, ex-militante do MR-8, recorda o início da articulação estudantil na PUC-Rio: Aqui no Rio, inicialmente, ele foi para dentro da faculdade, no campus da PUC. [...] A gente aqui no Rio fez algumas assembleias estudantis no campus da PUC, no pilotis da PUC [...]. Ali que a gente começou, não a ir para a rua, mas a reunir três, quatro mil pessoas no pilotis da PUC em 1977. [...] E ali a gente já foi cercado, passava helicóptero. Ali em 1977 dentro do campus da PUC. Primeiro a gente foi para lá, depois a gente foi para a rua120.

Desde as primeiras assembleias em maio dentro do campus da PUC-RJ, a ação da polícia foi intensa numa tentativa de intimidar, vigiar e reprimir as ações estudantis cariocas. A chamada Operação Águia, realizada pela Polícia Política do Rio de Janeiro, desenvolveu um grande dossiê em que se indicava o acompanhamento passo a passo das ações do movimento estudantil carioca ao longo do mês de maio de 1977, em especial a partir do Ato Público do dia 10121. Nessas assembleias havia grande debate entre as tendências que, assim como em São Paulo, divergiam na análise conjuntural que permitia ou não sair para as ruas. Muitos grupos estudantis, como aqueles ligados à AP e ao MR-8, acreditavam que o movimento estudantil precisava primeiro acumular forças para só depois ocupar as ruas com o movimento de massas e enfrentar a ditadura. Essas disputas eram encaminhadas nas assembleias, e, assim como em São Paulo, a assembleia votou favorável ao Ato Público que atravessou os muros da PUC e aglutinou todas as tendências e estudantes de várias universidades cariocas, além de aproximar o ME de outros setores da população. No dia 10 de maio 1977 ocorreu o primeiro grande Ato Público no Rio e Janeiro, cujo sentido simbólico era extrapolar os limites das 119

CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. CHAVES, Ricardo Lêdo. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013. 121 Cf. análise da Operação Águia no item 3.6 “A Polícia Política e o movimento estudantil: a “repressão” na transição”. 120

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universidades e defender uma luta que ia ultrapassava os limites de questões estritamente estudantis. Marcelo Camurça, estudante de História da UFF na época, ex-militante do MR-8, recorda em seu depoimento as primeiras manifestações de rua no Rio de Janeiro em 1977: Eu me lembro do Azedo dizendo: “nós quando tivermos força pra sair na porrada com a ditadura nós vamos pra rua, mas agora a gente não tem força”. [...] E nós vencemos, não ficamos... Mesmo no momento de espraiar depois, de saída depois do ato, houve um enfrentamento. Alguma vez a gente vinha descendo, mas um grupo que não dava pra sair. A saída já era uma espécie de minipasseata e a polícia cercou a gente. E o mesmo Azedo que defendeu que não devíamos sair foi o cara mais destemido, apesar de ser do PCB, ele foi pra frente da polícia e peitou e os caras chegaram a dar uma porrada e dispersaram com gás, acho que é normal essas manifestações e cacetadas e gás lacrimogêneo, mas pra gente, eu fiquei com muito medo, me lembro que nessa hora da dispersão eu me refugiei em uma autoescola, com minha namorada que, coitada, morreu de medo, tremia, porque a polícia começou a dar porrada e o pessoal se dispersou e nós entramos em uma autoescola e aí o cara da autoescola acolheu de novo esse sentimento pela democracia e fingiu... “Então, vocês fiquem aqui e vamos fingir que estou dando uma aula de direção defensiva”, começou a projetar umas coisas, a gente deu um tempo lá e viu que a situação se acalmou e saiu122.

A repressão ao Ato Público do dia 10 foi intensa, mas não intimidou a ação estudantil, que a partir da concretização daquele ato sentia-se mais potente para avançar na luta política contra a ditadura e pelas liberdades democráticas. Conforme referido anteriormente, outra assembleia seguida de Ato Público foi realizada no dia 19 de maio, denominada Dia Nacional de Lutas. A direção do movimento distribuiu entre os estudantes uma carta de convocação para a assembleia que fazia referência aos presos do ME de São Paulo no 1o de maio. O texto procurava motivar reflexões sobre o caráter dos “crimes” que essas pessoas teriam cometido, criticar o autoritarismo que levou à morte de Alexandre Vannucchi Leme, Wladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, justificar a manifestação como forma de garantir a integridade dos presos de SP e defender o caráter pacífico das manifestações e a integração das lutas estudantis com várias cidades brasileiras123. Segundo Marcos Napolitano, a memória de 1968 era muito presente naquele contexto, sendo usada especialmente por alguns órgãos da impressa como forma de desqualificar a emergência de uma nova percepção política. No entanto, as “lideranças estudantis, através de seus jornais e boletins, procuravam demarcar as diferenças e valorizar a emergência de novos valores” (NAPOLITANO, 2006, p. 42), demarcando uma nova cultura política emergente, a

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LIMA, Marcelo Ayres Camurça. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 08 de janeiro de 2014. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – AMORJ. Coleções Institucionais: Movimento Estudantil. Carta de Convocação de 18 de maio de 1977. 123

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partir da crise da categoria política anterior baseada na ideia de revolução, mas buscando nas liberdades democráticas sua base política. Em carta aberta à população distribuída durante o ato do dia 19 de maio, o movimento estudantil carioca declarava os objetivos que levavam os estudantes a saírem do isolamento e a unirem-se a outros setores da população: Hoje, são objetivos bem claros do conjunto dos estudantes a luta por melhores condições de ensino e pesquisa, por mais verbas para educação, pelo ensino público e gratuito. Como bem claro demonstramos as mobilizações e greves da USP e da PUC/Rio. Também temos claro que para atingir nossos objetivos precisamos poder nos expressar e nos organizar livremente. E é por isso que hoje aqui nos reunimos para repudiar as prisões, torturas, assassinatos e todas as formas de repressão. Não podemos aceitar as provocações e intimidações que sobre nós vem se abatendo (mais de 10 colegas de diversas escolas do Rio foram chamados para depor no DOPS). Neste sentido repudiamos as provocações e as manobras que nos são lançadas. A demonstração disso é a nossa força e coesão nesse Ato Público, que não é do Rio nem de São Paulo, mas é de todos os brasileiros que não consentem nem se calam, na luta por liberdades democráticas124.

A ênfase do documento baseava-se no fomento às pautas estudantis na defesa do ensino público e gratuito e na valorização da unidade nacional do movimento que eclodia em maio de 1977 como forma de repúdio às ações repressivas do regime. O dia 19 de maio sintetizava as aspirações do ME nacional em torno de sua proposta de um Dia Nacional de Lutas que unisse o movimento estudantil de todo o país, a partir da iniciativa da USP, dando um passo rumo à consolidação da luta pelas “liberdades democráticas”, aproximando-se da sociedade, além de ter a intenção de motivar outros setores sociais a se disporem à luta estudantil. O movimento estudantil da USP irradiou pelo país novas ações estudantis, inicialmente em solidariedade à sua comunidade, seguida logo adiante pela ampla luta na busca da redemocratização brasileira em 1977. O contexto mineiro também não foi diferente. O economista Márcio Antônio Marques Gomes, estudante de Economia na UFMG na época da transição, ex-militante da tendência Estratégia, relata em seu depoimento os efeitos da repercussão das ações estudantis na USP no contexto mineiro: Nós também podemos fazer igual! O sentimento era esse, de ir para rua mesmo [...]. Mas o sentimento era esse e isso corroborava a tese que a gente tinha de que a ditadura estava enfraquecendo rapidamente, progressivamente, que, quanto mais enfrentamento existisse a ela com massa, não era massa armada, era enfrentamento político, que a gente conseguiria. Então, a leitura aqui como a gente fazia era um pouco isso. Olha, a nossa tese está certa. É possível radicalizar, e a Libelu influenciou muito. No segundo, quando ganhamos a eleição aqui, a Libelu chegou a 124

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro – AMORJ. Coleções Institucionais: Movimento Estudantil. Carta de Convocação de 18 de maio de 1977.

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disputar também. Ela montou uma chapa. Existiu um processo prático que se refletiu num reforço de uma concepção que a gente tinha dos rumos que o movimento ia tomar. Então, influenciou na gente nesse sentido. Vamos radicalizar, vamos para a rua, vamos nos movimentar125.

As primeiras mobilizações organizadas pela USP repercutiram pelo país potencializando a força do movimento na ampla luta estudantil pelas liberdades democráticas. O movimento radicalizou e foi para as ruas. Era o “apito da panela de pressão” que anunciava um processo amplo de mobilização de massa que se seguiu nos anos seguintes. Segundo a diretoria da UNE de 1980, na introdução de um livro com depoimentos de ex-dirigentes da entidade: Em 1977 as ruas foram palco do primeiro grande marco da nova fase. A luta de verbas na USP repercutiu em todo o país, e com a prisão de estudantes e operários em maio deste ano, o clamor pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, pela primeira vez colocado em praça pública, tomou conta do país. E, apesar dos jatos d’água, cassetetes, cães e bombas, as manifestações nas principais capitais dissiparam qualquer dúvida: a UNE jamais morreria e os estudantes brasileiros preparavam o melhor momento de sua reconstrução. (1980, p. 9).

Deste movimento, inicialmente específico da questão universitária, ampliou-se uma demanda pela anistia, que ganhou as ruas e resistiu às tentativas de repressão por parte dos militares. O ano de 1977 se tornaria um marco para o movimento estudantil e para a oposição ao regime militar. Em comum nas memórias dos antigos militantes sobre o legado das ações estudantis em 1977 a certeza de que uma das consequências daquelas ações foi sua interferência no processo político. O “Balanço do processo de luta em 1978” 126, documento da tendência Viração no Rio de Janeiro, apresenta uma avaliação sobre as lutas estudantis do ano anterior. Ademais, afirma que, entre maio e julho de 1977, o “ME se levantou de forma massiva e explosiva [...] surpreendendo lideranças, levando 7000 pessoas para a PUC-Rio”. Sob essa perspectiva, essas ações abriram espaço favorável para o desenvolvimento do trabalho nas universidades, e sua força contribuiu para a criação da Comissão Pró-UNE. Assim, a articulação nacional, aliada à “capacidade embrionária de tomar iniciavas próprias para além dos fatos dados’, marcaria um estágio superior na reorganização do movimento estudantil” 127. Dentro do ME avaliava-se 1977 como uma época em que houve “incapacidade de resposta por parte da oposição liberal, particularmente do MDB,” à aprovação do Pacote de Abril, desta forma, o movimento estudantil foi a primeira resposta em nível nacional a se 125

GOMES, Márcio Antônio Marques. Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Coleções particulares. Fundo Jair Ferreira de Sá. JFS; APSC; APME II; doc 33, folha 01. 127 Idem. Folha 02. 126

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colocar frente àquelas medidas autoritárias, constituindo-se uma força de mobilização nova no momento128. Por outro lado, essa tendência também avaliava que nos primeiros momentos de 1978 existia pouca disposição para lutas da massa estudantil. Assim, a Viração apontava para erros na condução do processo da luta de massas em 1977, de forma a não conseguir direcionar a massa na luta política devido à incorporação de lutas de ordem econômica. Para este grupo, 1978 herdava uma questão não direcionada em 1977, que se pautara em descobrir como seguir a luta e qual projeto encaminhar na polarização entre projeto reformista e projeto socialista. A necessidade de formular avaliações de conjuntura que analisassem os rumos tomados pelo ME, em especial marcado pelas formas de mobilizações ocorridas em 1977, levou a AP, em fevereiro de 1979, a lançar a “Proposta para o Movimento Estudantil”, em que indagava a trajetória do ME na década de 1970. O documento reafirmava a ideia do ano de 1977 como marco no avanço do ME após um longo tempo de refluxo desde o ano de 1969 e analisava o movimento de 1977 a partir de três importantes aspectos importantes de caracterização: a massividade das mobilizações; o caráter eminentemente político e a dimensão nacional129. As manifestações de 1977, iniciadas em São Paulo e seguidas no Rio de Janeiro e em todo o país, foram interpretadas como fruto de um grande descontentamento da massa com a conjuntura política, intensificada após o Pacote de Abril, e que foi canalizada pelo movimento estudantil por meio de mobilizações que tinham como pauta denúncias ao regime, como o pedido de libertação dos militantes presos no 1o de maio. Naquele momento, na agenda de discussão estavam os motivos que conduziram à grande adesão das massas, número que surpreendeu as lideranças estudantis. Já o documento da APML apresenta duas posições definidas na análise sobre 1977: uma que via o movimento como fruto do acúmulo gradual de forças sociais, e outra que entendia o fator espontâneo das massas como essencial para a compreensão das ações de 1977. Na primeira, o papel das forças políticas de esquerda, atuantes de forma expressiva desde 1973, teria sido responsável por despertar lentamente as massas para que naquele momento, frente à conjuntura brasileira, assumissem a pauta política como centralizadora da luta contra a ditadura e pelas “liberdades democráticas”. Na segunda, as forças de esquerda são minimizadas e a espontaneidade das massas seria avaliada como fator determinante. Essas

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ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Coleções particulares. Fundo Jair Ferreira de Sá. JFS; APSC; APME II; doc 33, folha 02. 129 Idem. doc 01, folha 2.

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interpretações indicam um processo de revisão crítica de si mesmos, na busca de compreender as especificidades de 1977 como um fenômeno que não se manteve nos anos seguintes com igual intensidade. Procurando atinar os motivos da singularidade de 1977 de forma crítica dentro do ME, alguns grupos acusavam o erro das tendências estudantis que, com a forte influência das organizações de esquerda, levaram a uma “sectarização entre as diversas posições políticas” e, consequentemente, teria causado uma divisão da vanguarda social do movimento, despolitizando as entidades e abandonado as massas, o que tornou as assembleias e as ações estudantis uma espécie de “parlamento das tendências” devido ao radicalismo de algumas das tendências130. Para parte do movimento que tecia críticas à linha seguida pelo ME após 1977, o sectarismo teria gerado um declínio do apoio das massas, mas não sinalizava um refluxo do ME. Podemos perceber, por meio desse documento interno do ME, que aquela era uma visão interna crítica que sinalizava a necessidade de se unir a massa estudantil em torno das lutas políticas, deixando de lado as pautas econômicas incorporadas à luta estudantil em 1978, voltada para as questões específicas da universidade. Assim, a partir de uma revisão interna, o ME em 1979 se interpretava como uma das forças auxiliares do movimento operário e popular, que desde 1978, com as greves do ABC, havia despertado para a cena política, também inspirado pelas ações estudantis do ano anterior que levavam trabalhadores e outros segmentos sociais a acreditar na potencialidade da mobilização social. A análise do ME como força auxiliar na nova conjuntura pós-1978 leva-o a adotar como principais pautas a anistia, as eleições diretas, o direito de greve, as “liberdades democráticas”, o fim da ditadura e a Constituinte 131 . Para desempenhar tal papel, o ME deveria realizar tarefas como encaminhar uma luta política contra a ditadura; denunciar a ditadura e seus atos; desenvolver a luta econômica; desenvolver a luta pela educação; desenvolver questões sobre as profissões; tornar a universidade palco de difusão cultural; reconstruir suas entidades representativas e fortalecer as já existentes132. Nesta perspectiva, a partir da análise do documento da tendência Viração da APML, nos é perdido apreender que os significados do ano de 1977 estavam em pauta desde o seu contexto imediato, contendo formulações teóricas feitas internamente pelas tendências estudantis. Frente ao debate que se seguiu posteriormente na avaliação do que aconteceu em 130

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Coleções particulares. Fundo Jair Ferreira de Sá. JFS; APSC; APME III; doc 01, folha 03. 131 Idem, folha 09. 132 Ibidem, idem.

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1977, entendemos que esse ano foi um ponto culminante de uma atuação do ME iniciado com a mobilização em torno da missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme, em São Paulo, em 1973; e que paulatinamente ganhou expressão no meio universitário, irradiando-se para os demais segmentos sociais. Assim, o ano de 1977 constituiu-se como um momento marcado pela mobilização de massa em todo o país e, apesar de não manter o mesmo nível de mobilização de massa nos anos seguintes, o ME não vivia um novo refluxo, pelo contrário, ele se manteve organizado e desempenhando suas principais lutas gerais e específicas, e que culminaram com a reconstrução da UNE em 1979. O papel do ME em 1977 também foi afetar os demais movimentos sociais e despertá-los para a luta política. Tal desempenho levou-o a assumir as posições de vanguarda social (epíteto que o ME usava para caracterizar a si mesmo), força auxiliar na luta contra a ditadura e pelas “liberdades democráticas”.

3.3 O III ENE em Belo Horizonte

No contexto da abertura política, com o intuito de reorganizar o movimento estudantil nacional, retomar sua autonomia e restabelecer a UNE, foram realizados vários Encontros Nacionais de Estudantes (ENE’s). O I ENE aconteceu em Campinas/SP, em janeiro de 1976. No entanto, a presença de entidades representativas foi mínima e sua realização foi bastante tumultuada, devido às divergências entre as diferentes tendências quanto aos critérios de participação. Mesmo diante dos problemas enfrentados, o II ENE foi marcado para o segundo semestre ainda daquele ano. Em 16 de outubro de 1976, ocorreu na USP o II ENE, com a presença de 281 delegados, representando 40 escolas de São Paulo, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Brasília, Bahia e Minas Gerais. Com o objetivo de reconstruir a UNE, os estudantes, em 1977, realizaram três versões do III ENE: uma em Belo Horizonte e duas em São Paulo, na USP e na PUC. Em 04 de junho de 1977, os universitários tentaram realizar a primeira versão do III ENE, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Havia estudantes de todo o país seguindo em direção à capital mineira. O governador Aureliano Chaves mandou bloquear o acesso a todas as escolas superiores de Belo Horizonte; o reitor da UFMG, além de proibir o evento, decretou recesso letivo e administrativo nos dias 03 e 04 de junho. As tropas policiais impediram o acesso à cidade das caravanas que vinham de outros estados. O Exército cercou o Diretório Acadêmico de Medicina, local em que ocorreria o encontro. Assim, quem estava dentro não podia sair. Os que conseguiram chegar ao local não puderam entrar, e se aglomeraram em frente ao DA. Em

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determinado momento, a polícia investiu contra eles. Como resultado, o encontro não foi realizado e mais de 400 pessoas foram presas. Ignacio Delgado, estudante de História da UFJF na época, ex-militante da tendência Estratégia, em seu depoimento recupera as lembranças sobre o episódio dentro do contexto de abertura política. Eu me lembro do III ENE em BH, (Encontro Nacional de Estudantes), que eles pegaram a gente, cercaram a cidade com tropa, sabe, e, como o clima já era outro, não era mais o Médici, foi se evidenciando que não dava pra continuar daquele jeito. Tudo isto ajudou a criar um ambiente de não retorno, de ampliação do espaço. [...] Ficava evidente a dificuldade que tinha a ditadura de lidar com o movimento que não era um pequeno grupo de bando de guerrilheiros aqui e ali, mas sim muita gente na rua no país inteiro133.

José Pimenta, estudante de Engenharia da UFJF na ocasião, em seu depoimento também rememora o episódio: O Aureliano era governador, fazia declaração na televisão. Porque aí o movimento tava acendendo, e eles fazendo declaração na televisão, quem fosse a Belo Horizonte ia ser preso. Eu lembro até hoje do papai, fui sair, despedir do papai, ele olhou pra mim e falou assim: “nós já sabemos o que vai acontecer”. Eu falei: “que isso, pai, não vai dar tanto problema assim não”. Ele falou: “sabemos ou não sabemos?”. Eu falei: “ah, sabemos”, ele falou “então pode ir, você vai ser preso, vai se estrumbicar lá, mas tá sabendo”. Aí eu falei que tava, e ele deu o apoio. Aí a gente foi, lá em Belo Horizonte, e eu fui preso [...]. Aí o Romão, organizou um grupo de professores, pegou o apoio do reitor, mesmo contra a vontade dele e foi pra Belo Horizonte pra soltar a gente, assim como os professores da UFMG, os professores todos. Em muitos lugares tiveram uma pressão enorme pra soltar a gente, que fomos fazer o encontro na faculdade de Medicina em Belo Horizonte e foi todo mundo preso134.

O contexto gerava a convicção de que a abertura política era concreta e que era possível avançar cada vez mais. Contudo, a ação do regime dava sinais de retrocesso em vários momentos ao longo de toda a transição. Medidas liberalizantes eram mescladas com ações repressivas, fato que gerava medo entre os estudantes e suas famílias, que tinham consciência dos riscos ainda existentes. No caso do III ENE, as medidas repressivas foram organizadas em todos os âmbitos para impossibilitar a chegada dos estudantes. Eladir de Fátima dos Santos, então aluna de Direito da UFRJ, em seu depoimento aborda as ações repressivas do regime que buscava impedir a chegada dos estudantes a Belo Horizonte, bem com impedir a realização do evento: Quando nós chegamos, a cidade cercada. Já na estrada, nós fomos de carro, tiveram muitos impedimentos. Porque eles viam a gente com cara de estudante, todos novos, não tinham como passar [risos] motorista novo e não tinha pai, não tinha mãe no 133 134

DELGADO, Ignácio José Godinho. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 10 de junho de 2009. PIMENTA, José Sales. Entrevista concedida à autora. Juiz de Fora, 20 de outubro de 2009.

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carro, não tinha nada! [risos]. Aí a gente era interceptado toda hora e jurávamos de pés juntos que não éramos estudantes e que a gente estava indo [...] puseram um monte de barreira, a gente passou, até que a gente chegou em Belo Horizonte. A cidade estava cercada [...]. Cavalaria, aqueles cavalos imensos cercando a faculdade135.

O cerco aconteceu no entorno de toda a capital mineira, e muitos estudantes foram presos antes de entrar na cidade. Outro cerco foi realizado na Faculdade de Medicina da UFMG (sede do evento) e os que chegaram até lá também não conseguiram concretizar o III ENE. Grande parte da liderança e militância nacional do ME foi presa. Contudo, houve grande envolvimento de professores, familiares e outros grupos pela rápida libertação dos estudantes presos em Minas Gerais. Em São Paulo, o movimento estudantil solicitou ao governador do estado que intervisse junto ao governador de Minas, para garantir a integridade e liberação dos estudantes presos. Vera Paiva, ex-militante da Refazendo, membro da primeira diretoria do DCE Livre da USP, recorda o fato em seu depoimento: Porque o governador, quando recebeu a gente em março [...], garantiu que nenhum estudante seria preso, que ele era diferente, que ele tinha feito movimento estudantil, que ele conhecia a democracia, que era um democrata e se comprometia com a gente de que a gente podia fazer um movimento pacífico e não ser preso. Bom, se ele falou vamos lá cobrar. [...]. Nós paramos na porta do Clube Paineiras do Morumbi, chegamos para o guarda que ficou super sem saber o que fazer e mandamos um bilhete escrito em um papelzinho para o governador. “Prezado governador, estamos aqui na porta do Paineiras do Morumbi, vários estudantes foram presos e como o senhor nos prometeu – escrito à mão – que ninguém seria preso, gostaríamos de conversar com o senhor”. Foi assim. Ele que mandou. Aí o cara ficou na dúvida. Só sei que ficamos esperando uma meia hora. Daqui a pouco sai o cara e diz assim: “sigam aquele carro, ele vai recebê-los na casa dele”. Aí a gente seguiu o carro, chegamos na casa do governador, que era no Morumbi, na casa dele, não era no Palácio. Abriu, sentamos, a mulher do governador nos serve na bandeja de prata chá, biscoitinho e nós nos atracamos com os biscoitinhos, e daqui a pouco vem o governador e passou horas conversando com a gente e ligando na nossa frente para o governador Aureliano: “Governador! Estou aqui com um grupo de estudantes e estão querendo saber como é que...”, e o governador de lá dizia “serão todos soltos, não haverá problema, ninguém vai se machucar...”, “está vendo! Ele está dizendo isso!”. Só sei que foi exatamente isso o que aconteceu. É uma coisa que mostra que a gente negociava com o governador, ninguém abriu mão de nada, mas a gente tomava a palavra por aquilo que era dito. Não era o pior inimigo e nos interessava proteger os estudantes. Outra cena superengraçada e atípica, que você pensa retrospectivamente e não para acreditar como foi possível a gente ter essa ideia. [...] E, de fato, foi todo mundo solto, ninguém se machucou, voltou todo mundo para casa e a UNE não foi fundada, teve que adiar136.

A busca pela intervenção do governador de São Paulo por parte da direção do DCE da USP indicia a “ousadia” do ME frente ao momento de abertura vivido dentro da ditadura. Não

135 136

SANTOS, Eladir de Fátima dos. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 15 de dezembro de 2012. PAIVA, Vera Silvia Facciolla. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014.

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se desejava o embate e enfrentamento pela violência. O movimento buscava negociar, denunciar e proteger os estudantes. Em alguns casos, houve quem conseguisse escapar da prisão no caminho e mesmo dentro da cidade, apesar da ação intensa da polícia para reprimir o movimento e impedir a realização do III ENE, em consonância com as memórias descritas por Laís Abramo em seu depoimento: Fomos de carro durante o dia. Aí chegou lá e decidimos, “quem é que vai para Medicina?”. Medicina a gente sabia que era meio para o sacrifício, porque estava toda a liderança lá e tinha ameaça de ser cercada e todo mundo preso, como efetivamente foi. “Vai o Falcon!”. Aí o Paulo Sérgio “não, porque ele já foi preso...”. E o Paulo sei lá por que já tinha sido preso antes. “Vai o Falcon!”. Aí o Falcon foi e foi preso. Aí ficamos eu e Aloísio e, no dia seguinte, a gente saiu catando o movimento das lideranças todas dispersas, os delegados chegando, repressão, lideranças de Minas todas presas. Acabamos em uma igreja. Igreja cercada, “bom, daqui a gente não escapa”. Principalmente o Aloísio e um outro rapaz que a gente chamava de Horroroso, conseguiram negociar e conseguimos sair e não ser presos. Então, sorte! Tinha santo forte que me protegeu nisso 137.

Outros casos, porém, tiveram tristes desfechos. O depoimento de Clara Araújo, estudante de Ciências Sociais na UFBA e ligada ao PC do B no contexto da transição, sobre sua participação no III ENE traduz a ação de repressão militar aos militantes estudantis, demonstrando o quanto a reconstrução da UNE e a ação do ME eram vistas como ameaças à ditadura e que, portanto, deviam ser combatidas: E eu viajei sem que meus pais soubessem, porque eles não moravam em Salvador. E éramos todos clandestinos e supostamente não nos conhecíamos no ônibus. [...] O nosso ônibus foi interceptado antes de Belo horizonte, e aí eu lembro muito disso, porque, quando parou, tinha uma barreira, e a polícia já estava esperando [...]. Então botaram todo mundo dentro dos camburões [...]. Todo mundo foi no camburão, e eu fui colocada sozinha em um fusca verde, então isso foi a primeira coisa que me deu muito medo, porque eu sabia das histórias. E aí comecei achar que eles iam me levar para algum lugar, iam me torturar, iam me matar. [...] Rodaram duas horas comigo [...] aquilo foi um momento de terror para mim. Eu tinha 18 anos e tinha dois meses de universidade, dois meses e pouco. Aí depois de duas horas me levaram para o DOPS de Belo Horizonte, e aí foi um outro momento, interrogatório, e eles insistiam muito, achavam que eu tinha algum vínculo partidário, e eu não tinha nenhum vínculo partidário naquele momento. [...] Ao mesmo tempo era um misto de medo, mas era como se fosse, assim, muita raiva. E eu tinha uma coisa de “não vou abrir a boca”. Nós fomos, se eu não me engano, o primeiro grupo a ser preso. Foi o grupo que vinha da Bahia, e depois foi o pessoal do Rio Grande do Sul. E eu me lembro que colocaram a gente em uma cela, mulheres separadas de homens, uma cela muito fria, era inverno e fazia muito frio. [...] Ficamos dois dias presos e eles iam botando gente [...] e chegou em um ponto que na cela não tinha mais como a gente sentar. [...] Dois dias depois nós saímos [...]. Eu voltei para Salvador muito estimulada, porque tinha toda a repercussão e o retorno com base no fato de que o Congresso formal, oficial não tinha sido realizado por causa da prisão [...]. O segundo

137

ABRAMO, Laís Wendel. Entrevista concedida à autora. Brasília, 09 de janeiro de 2015.

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desenvolvimento disso foi que depois eles enquadraram noventa e poucas pessoas na Lei de Segurança Nacional e eu fui uma das enquadradas 138.

Presa, Clara Araújo foi encaminhada ao DEOPS, onde prestou depoimento no dia 03 de junho. Na documentação produzida pela Polícia Política sobre o caso de Clara no III ENE percebemos que, ao ser interrogada sobre quem a teria convidado para participar do evento, a universitária declarou estar com a amiga Rita Rapold, indo para Brasília, e que Belo Horizonte era apenas uma escala da viagem. A moça declarou que o motivo da viagem era obter um emprego no Ministério da Agricultura, instituição no qual trabalhava o tio da amiga Rita. À insistência do interrogatório sobre as motivações de Clara para participar do III ENE, ela reafirmou a versão sobre a viagem com destino final em Brasília; assegurou que sabia da ilegalidade do encontro pela imprensa e que não se envolveria em tal ação. A polícia prosseguiu insistindo no interrogatório, questionando-a quanto aos objetivos do encontro. Em resposta, Clara afirma que “segundo comentários na faculdade onde estuda, o III Encontro visa pleitear melhorias nas escolas, em todos os aspectos de natureza material” 139. Pressionada pelo interrogatório, nos registros do AESI aparece a declaração de que Clara teria mudado de ideia e resolvido declarar a verdade dos fatos que consistia em que sua viagem objetivava-se a participar do III ENE, e que a mesma havia sido eleita em assembleia para representar seu curso. Nesses registros, Clara teria declarado que mentiu no início do interrogatório, por medo, pois, durante a viagem, ela teria tomado conhecimento da ilegalidade de tal evento; mas, mesmo assim, decidiu participar do evento por considerar as reivindicações justas. No depoimento do DEOPS, Clara insistia no argumento de ser seu objetivo chegar a Brasília, mas que teria se programado para antes passar por Belo Horizonte para participar do ENE, sem possuir, no entanto, nenhuma vinculação com as entidades estudantis ou “organizações subversivas” 140. A declaração de Clara Araújo ao DEOPS indicia uma dialética entre medo e coragem que acompanhavam aquela geração. O medo levou Clara à total negação no início de seu depoimento, característica recorrente nos demais depoimentos dos estudantes presos na mesma ocasião. A negação, justificada pelo medo da repressão, seguida da coragem de declarar, mesmo que em partes, seu posicionamento reivindicatório e contrário à ditadura, assumindo um posicionamento de oposição, fruto do contexto de abertura. O medo vivido e a coragem de quem “enfrentou” a repressão (que insistia, em tempos de abertura, em se mostrar 138

ARAÚJO, Clara Maria de Oliveira. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013. ARQUIVO NACIONAL. Fundo AESI UFMG. “III Encontro Nacional dos Estudantes - Realização não permitida/Outros”. BR_DFANBSB_AT4_0019_0031_d. Termo de declaração de Clara Maria de Oliveira Araújo. 140 Idem. 139

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forte e dominante) tornaram-se motivadores e impulsionares de uma luta pelas liberdades democráticas que continuou a ser encaminhada pela geração de 1977. De fato, o III ENE foi um marco importante para o processo vivido pelo ME nacional. Para o ME mineiro teve um significado ainda mais intenso, por sintetizar o momento auge da organização e da mobilização estudantil na capital mineira e impulsionar ainda mais a luta política. Jânio Oliveira Bragança, presidente do DCE da UFMG na ocasião do III ENE, relata em seu depoimento as lembranças do evento e os impactos deixados pelo mesmo no ME da capital mineira: Esse encontro é marcante no movimento estudantil e na luta democrática no Brasil e é pouco relatado. Caravanas de ônibus e eles fecham Minas Gerais. O Exército fecha Belo Horizonte. [...]. Um dos atos mais marcantes da luta política foi esse. Por exemplo, tinha uma caravana de geólogos estrangeiros, estavam vindo de Ouro Preto, eles prendem os caras. [...] Eles prendem turistas, todo mundo que vai entrar em Belo Horizonte que tem 18 a 30 anos é preso. [...] E vem pessoas do Brasil inteiro para cá em caravanas de ônibus. E muitas pessoas que vem sem estar articulada, vem solta e muita gente é presa. Aí uma turma vai para dentro da escola de Medicina para não deixar a polícia invadir. Eu sou dessa turma. É claro que a polícia cerca e prende todos nós lá dentro, e somos inclusos na Lei de Segurança Nacional. E a turma que estava do lado de fora, mais de 10 mil pessoas, tem passeatas pela cidade inteira, eles invadem igrejas, um monte de coisas aqui. [...] Bom, mas esse encontro de estudantes, ele é fundamental. Foi um processo, a cidade foi fechada e foi um rebu na cidade. Aí eles soltam a gente, e a cidade vira passeata todos os dias. Belo Horizonte em 77 é manifestação de cinco mil, dez mil na escola de Direito, para todo lado. Então, virou uma efervescência democrática fortíssima. [...] Mas, se não fosse o que dizia o professor Edgar da Mata Machado, o movimento estudantil era a caixa de ressonância da ditadura. A ditadura batia e ele era quem batia na ditadura. Um ressoava o outro141.

“O movimento estudantil era a caixa de ressonância da ditadura”. A repressão ao III ENE surtiu efeito oposto ao esperado pelos militares. Ela não impulsionou o medo, pelo contrário, ativou o desejo de seguir em frente à luta política e ecoou junto a outros movimentos da sociedade que até aquele momento estavam emudecidos. O movimento estudantil soou como o “apito da panela de pressão” que anunciava e convocava os demais setores da sociedade, anunciando e denunciado as arbitrariedades da ditadura, além de motivar a ampliação de uma oposição efetiva à ditadura baseado na busca das liberdades democráticas.

141

BRAGANÇA, Jânio Oliveira. Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015.

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3.4 A invasão da PUC-SP

Um dos eventos mais recorrentes nas memórias dos ex-militantes que viveram o ano de 1977 é a invasão da PUC São Paulo 142 . A instituição sediou o III ENE, após duas remarcações de datas explicadas a seguir. A primeira tentativa de realização do Encontro Nacional de Estudantes, que visava preparar a reconstrução da UNE, em Belo Horizonte, foi duramente abalada pela repressão militar. Como solução, os estudantes encaminharam uma segunda tentativa do III ENE, mas em São Paulo, três meses depois, no dia 21 de setembro. O III ENE seria realizado na USP, contudo, o coronel Erasmo Dias montou um cerco policial ao campus, impedindo a realização do encontro. A polícia também cercou o campus da PUC-SP e da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a fim de impedir a reunião dos estudantes. Uma notícia divulgada entre os estudantes informava que o encontro havia sido transferido para a Faculdade de Medicina da USP, localizada fora da Cidade Universitária. Paulo Lotufo, ex-militante do movimento estudantil da tendência Caminhando, estudante de Medicina na USP no contexto, em seu depoimento relata a segunda tentativa de realização do III ENE na Faculdade de Medicina: Eu era, junto com outras tendências, uma das pessoas que fariam a segurança do prédio da Faculdade de Medicina se houvesse alguma coisa. E eu tinha a informação mais do que certa que o encontro não seria na Faculdade de Medicina. [...] Quando eu estou descendo ao Centro Acadêmico e chego lá, maior zum-zum-zum “o pessoal está achando que o encontro vai ser aqui!”. Eu olhei, um monte de gente dos outros estados. “O encontro vai ser aqui?”, “gente, o encontro não vai ser aqui, vão embora”. [...] aí a polícia descobre e fecha a frente da faculdade, na Doutor Arnaldo. [...]. A PM pula o muro lá da Faculdade, vai lá e manda todo mundo sair. Vai lá coloca o camburão e leva. [...] Não consegui ser preso! Porque, como eu estava comboiando as pessoas para sair, na hora que eu voltei estava fechado. Eles fecharam. Eu usava avental. Nós arranjávamos avental para os outros, eles pegavam, me davam o avental para mais três, eu pegava o avental, entrava de novo, colocava e saía. Porque quem estivesse olhando dava a impressão de que era movimento só, o avental branco servia de um bom disfarce 143.

Desta forma, alguns participantes do encontro conseguiram escapar com a ajuda da “comissão de segurança”, que os conduziram por até um túnel que ligava os fundos da faculdade ao outro lado da rua. No entanto, muitos estudantes foram presos e qualquer tentativa de realização do encontro na Faculdade de Medicina ou na USP foi abafada.

142

Cf. tese de doutorado de Renato Cancian, em que o autor analisou o episódio da invasão da PUC. CANCIAN, Renato. Movimento estudantil e repressão política: o ato público na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1977) e o destino de uma geração de estudantes. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) − Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, 2008. 143 LOTUFO, Paulo Andrade. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 21 de outubro de 2014.

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Apesar de novo ataque da repressão, a iniciativa frustrada não colocava fim ao objetivo de reconstruir a UNE. No dia seguinte, as tropas de Erasmo Dias já não mais realizavam o cerco às universidades paulistanas. Os estudantes seguiram para a PUC-SP onde a direção do ME organizou duas ações paralelas, conforme narra Beatriz Tibiriçá, membro da Refazendo e da diretoria do DCE Livre a USP em 1977, em seu depoimento: De manhã acontece uma grande assembleia, que, na verdade, a assembleia não sabia disso, mas era uma assembleia fake, vamos dizer assim, a parte da diretoria do DCE que não tinha sido presa estava nessa assembleia, os delegados do encontro nacional estavam reunidos na PUC, e a assembleia era na PUC também. Então, era a forma que todas as tendências tinham decidido de chamar atenção da repressão. [...] E na assembleia que era, entre aspas, fake, a Libelu consegue aprovar um ato público que a gente Refazendo era contra. Porque o nosso objetivo principal era salvar que acontecesse o terceiro Encontro Nacional, acontecido o Encontro Nacional, a ideia inicial era que a gente ia dispersar e depois comemorar a recriação da União Nacional dos Estudantes. Mas a Libelu conseguiu, por amplíssima maioria, aprovar um ato público e, logo em seguida, chega a notícia que o Encontro tinha terminado, porque aí foi anunciado para a assembleia: “nós estamos aqui, porque estava ocorrendo um encontro nacional ...”, os delegados já tinham todos se esparramado no mundo, a recomendação, inclusive, foi tirada que nenhum delegado de fora de São Paulo ficasse na PUC, mas aí foi aprovado o ato da noite. [...] Foi um ato massivo que a polícia reprimiu massivamente também. [...] Não sobrou pedra sobre pedra, parecia praça de guerra144.

Eram duas reuniões paralelas: uma menor, em que se concretizava o III ENE dentro de uma sala de aula da PUC, e uma assembleia com maior participação estudantil no salão BETA da PUC, cujo principal objetivo era escamotear o encontro da repressão. Nessa assembleia, por conta do Encontro Nacional ter sido bem-sucedido, aprovou-se a realização de um Ato Público naquele mesmo 22 de setembro, durante a noite, em frente à PUC. O ato celebraria a vitória do movimento estudantil sobre a repressão, pois o III ENE aconteceu em total sigilo dentro de uma sala de aula da PUC-SP. Laís Abramo, estudante de Ciências Sociais da USP e ex-militante da Refazendo naquele contexto, era uma das pessoas presentes na sala de aula da PUC. Seu relato sobre as lembranças do e episódio encontra-se publicado no site da Fundação Perseu Abramo: Enquanto alguns dos diretores organizavam uma reunião aberta com os estudantes no Salão Beta da PUC, nós, os que não estávamos alocados a outras tarefas, por exemplo, os sistemas de comunicação e informação, nos reunimos disfarçadamente em uma das salas de aula […]. Sentados como alunos em uma das salas de aula do segundo andar do Prédio Novo, com um companheiro da Universidade Federal do Rio Grande do Sul à nossa frente, fingindo-se de professor (para que quem passasse pelos corredores – e eles estavam cheios de “tiras” – pensasse que se tratava simplesmente de uma aula qualquer), rapidamente chegamos a um consenso e rapidamente concretizamos nossas esperanças de avançar na reorganização do nosso movimento, criando a Comissão Pró-UNE. Depois disso – o III ENE em si, realizado nessas circunstâncias, não durou mais de uma hora – saímos 144

TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014.

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apressadamente dali. Havíamos conseguido driblar as forças policiais que nos perseguiam desde junho em Belo Horizonte, a sanha feroz do coronel Erasmo Dias, que, em várias ocasiões, havia esbravejado, declarado, prometido, jurado e reiterado, impedir a realização do III ENE145.

Poucas horas depois, o rádio noticiava o sucesso dos estudantes na realização do III ENE na PUC, em que fora aprovada a criação de uma comissão que se responsabilizaria pela organização da reconstrução da UNE, contando com representatividade de vários lugares do país. A direção do movimento determinava que alguns de seus alguns integrantes garantissem o retorno em segurança de delegados de outros estados. Um grande número de estudantes retornou para a PUC naquele dia à noite para o Ato Público, conforme aprovado na assembleia da manhã, marcada por muitos debates e divergências entre as tendências. Vera Paiva, a Veroca, ex-militante da Refazendo e membro da diretoria do DCE Livre da USP em 1977, evidencia em seu depoimento a divergência existente entre as tendências quanto à realização do Ato Público em comemoração à realização do III ENE: Foi um erro, de novo uma proposta que nós perdemos, porque a gente não queria fazer o Ato Público de comemoração de refundação da UNE, porque achou que era uma provocação. Mas perdemos isso em uma assembleia. Então, foram para frente da PUC. Na PUC, ali no palanque, não tinha nenhuma liderança. As lideranças que eu digo eleitas. Não tinha ninguém da diretoria do DCE, ninguém de diretoria de centro acadêmico estava ali, uma massa enorme de estudantes, da própria PUC e outros que souberam, estavam ali e que foram lá para comemorar.

Tanto a Refazendo (liderança do DCE da USP) quanto a tendência Caminhando tinham receio quanto à realização do Ato Público, pois este poderia ser interpretado como uma afronta pelo regime. Já a Liberdade e Luta defendeu a proposta de realização do Ato, aprovado em assembleia. A tendência visava maior radicalidade; e defendia, inclusive, palavras de ordem como “abaixo a ditadura” para além de “pelas liberdades democráticas”. Júlio Turra, estudante de Ciências Sociais da USP, ex-militante da Libelu, em seu depoimento, narra suas lembranças do episódio: O pessoal do PC do B e PC [...] dizia que isso era provocação, que ia atrair a repressão contra os estudantes, irresponsabilidade dos trotskistas, onde já se viu! No máximo, eles chegaram às liberdades democráticas. Abaixo a ditadura não podia falar. [...] A concentração era em frente ao Tuca. O pessoal descia pela rampa, tudo em desabalada carreira, mas nós já estávamos lá na frente correndo. E nós saímos por trás, naquela rua - não lembro o nome - da PUC, entramos na avenida que tem ali, pulamos o muro, subimos no telhado e ficamos escondidos atrás da caixa d'água’ Enquanto isso, o pessoal que descia em desabalada carreira ia entrando na sala de aula para se esconder. Para quê? A repressão levou todo mundo, chegou abrir armário e tirar gente de dentro do armário e levaram todos para o quartel na Praça Tiradentes. [...] Todo mundo foi preso e fichado 146. 145

Cf. ABRAMO, Laís Wendel. O III ENE e a invasão da PUC. Disponível em: . Acesso em: 04 mar. de 2015. 146 TURRA FILHO, Júlio. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 02 de abril de 2013.

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O Ato Público aconteceu (conforme aprovado em assembleia) e foi duramente reprimido. O coronel Erasmo Dias, ao saber da realização do III ENE, mandou invadir a PUC. Além de depredar todo o prédio, os policiais reprimiram duramente a ação dos estudantes. Vera Paiva, em seu depoimento, recupera suas lembranças sobre a fúria com a qual Erasmo Dias comandou a invasão da PUC: Eu estava cuidando da segurança dos delegados que estavam saindo daqui, porque, para chegar, nós fizemos um esquema de segurança gigantesco. [...] Eu nem sabia que o ato da PUC estava rolando. Eu estava isolada porque, justamente, eu era uma pessoa que não podia estar envolvida. [...] Então, eu subi até a Paulista, [...] e eu e meu marido sentados num boteco, [comemorando], porque tinha dado tudo certo. E uma pessoa vem correndo, ele passou no ônibus e me viu, desceu do ônibus e veio me avisar: “mataram todo mundo! Prenderam todo mundo! O Erasmão entrou lá gritando o seu nome, você tem que fugir!”. [...] E aí tomamos um susto, pagamos a conta e tentamos ir descobrindo - era quase madrugada – de um por um quem não estava, quem estava e acabamos nos reunindo [...], a madrugada inteira, mobilizamos os advogados de presos políticos, porque a gente viu que a coisa tinha sido pesada. A descrição do menino: “morreu um monte de gente! Um monte de gente ficou machucada...!” [...] De fato, não morreu ninguém, mas teve muita gente machucada porque eles tacaram bomba. [...] No fim, a gente mobilizou os advogados, de presos políticos. E ficamos aguardando. No fim, acabou todo mundo solto e não teve maiores consequências, a não ser para as pessoas que se machucaram. Mas essa é a minha versão sobre a invasão da PUC, porque eu estava fora, não estava lá. E aí todo mundo conta que o Erasmão entrou gritando o meu nome: “cadê a Veroca? Cadê a Veroca?!” 147.

A invasão da PUC-SP era um ataque direto ao movimento estudantil, pelo temor de que as ações do ME contagiassem outros setores da sociedade civil. O ataque também era uma forma de atingir a Igreja Católica, em especial dom Paulo Evaristo Arns, que era representante de um dos setores mais progressista da Igreja. O religioso incomodava o regime por denunciar crimes da ditadura e por sua defesa aos direitos humanos. No entanto, a reprimenda não foi capaz de impedir o avanço da mobilização de massas que se seguiu a partir desse episódio, particularmente a partir do ano seguinte, com as greves do ABC, nem impossibilitar a refundação da UNE em seu congresso em 1979. 3.5 O Congresso da UNE em Salvador - 1979

Após a realização do III ENE, em que foi criada a Comissão Nacional Pró-UNE, o passo seguinte do movimento estudantil consistiu em organizar um congresso para efetivamente reconstruir a entidade nacional representativa dos estudantes. O Congresso de Reconstrução ocorreu em maio de 1979, em Salvador, na Bahia. 147

PAIVA, Vera Silvia Facciolla. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 06 de novembro de 2014.

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O DCE da UFBA foi responsável por toda a logística do Congresso. Obteve autorização do então governador Antônio Carlos Magalhães para uso do Centro de Convenções da Bahia. Parte da direção do movimento estudantil reprovou a atitude, pois não queria negociar com um governante nomeado pela ditadura militar. As cinco mil pessoas esperadas para o congresso foram hospedadas em casas de famílias que se inscreveram para receber os estudantes. Clara Araújo, estudante de Ciências Sociais na UFBA e membro do DCE da UFBA em 1979, portanto, envolvida na organização do Congresso da UNE, em seu depoimento relembra o episódio: Primeiro foi uma grande vitória ter realizado o Congresso, depois de toda a repressão que houve para que a União fosse reconstruída. Segundo, acho que o fato inclusive de ter conseguido fazer o Congresso, independências públicas, sociais... [...] A mobilização que se criou para viabilizar o congresso da UNE foi uma mobilização muito grande. Em Salvador, particularmente, foi enorme. Se criou uma rede imensa de apoiadores, de pessoas, de voluntários, de se buscar pessoas em casa, aquilo tudo. E, quando ocorre o Congresso, ocorrem as independências governamentais, apesar de toda a tentativa da ditadura de [...] houve ameaças e tudo isso, em alguns momentos que a luz foi apagada e aquilo foi... E a gente ter conseguido chegar ao final do Congresso, daquela forma não me lembro exatamente, mas o pátio do centro de convenções era uma coisa monstruosa e estava lotado. Acho que aquele Congresso foi um grande momento, grande vitória para o movimento estudantil e também uma referência para os outros movimentos 148.

Amâncio Paulino, estudante de Medicina da UFRJ, ex-militante do PCB, também recorda suas lembranças sobre o evento: O governador cedeu um lugar para se fazer que era um centro de convenções que existe lá, então, a gente ficou em um lugar muito improvisado, mas era enorme, tinha dez mil pessoas, foi uma festa! Foi uma festa e a gente convocou eleições diretas pra UNE em 79, quando foi eleito exatamente o presidente do Congresso na Bahia, que era o Ruy César [...] Então, foram convocadas eleições diretas, o que é uma maluquice completa149.

A convocação de eleições diretas para a UNE naquele ano, aliás, foi um tema muito debatido durante o congresso, conforme lembra Alon Feuerwerker, ex-militante da Caminhando na USP, eleito vice-presidente na primeira eleição direta da UNE: O congresso de Salvador tinha um grande tema: se elegia ou não elegia a diretoria naquele congresso. E teve uma votação estranha, porque a primeira votação foi se elegia ou não elegia uma diretoria. [...] Só que, na segunda votação, tinha uma parte do pessoal, eu acho que era do MR-8, que defendia eleger uma diretoria ali, mas tinha que ser uma diretoria provisória, até a realização de eleições. Então, teve uma maioria pra eleger a diretoria, mas, quando foi pra votação se era uma diretoria provisória ou definitiva, um pedaço que tinha votado pra diretoria votou pro outro 148 149

ARAUJO, Clara Maria de Oliveira. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013. CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013.

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lado e ganhou a diretoria provisória. [...] E aí, quando decidiu que a diretoria ia ser provisória, “pô se essa diretoria é provisória, então, vamos logo fazer uma eleição direta pra definir a diretoria definitiva!”. Então, a proposta que foi derrotada na primeira votação, acabou vitoriosa no fim da terceira votação! [...] Aí marcaram eleição pra outubro150.

Em 29 de maio de 1979, via votação formal durante o Congresso de Salvador, a UNE foi reconstruída. Decidiu-se também a opção pela realização de eleições diretas para a diretoria da entidade. Uma diretoria provisória foi eleita, com o objetivo de organizar a nova votação. Em outubro, ocorreram eleições por voto direto em todo o país. Ruy César, candidato à presidência da entidade pela coligação que envolveu o MR-8, a APML e o PCdoB, foi o vitorioso e se tornou o primeiro presidente da UNE após a sua reconstrução. Por meio de texto elaborado pelos dirigentes da UNE de 1980 (e publicado depois com o depoimento de ex-militantes), inferimos que, para os estudantes de 1979, o congresso representou um grande marco para a construção da democracia. Eles tomam aquele ano como o da resistência à ditadura e de agregação estudantil com a sociedade. O Congresso de Reconstrução em maio de 1979 – Salvador, Bahia – foi classificado na sua abertura como continuidade do 31º Congresso, feito na clandestinidade em 1971. Homenagem a Honestino Guimarães, último presidente, “desaparecido” pela Ditadura Militar, foi o exemplo maior de bravura, do suor e sangue empregados para manter a bandeira da UNE de pé. O grande apoio dado pela população de várias cidades e a presença marcante de entidades representativas de diversos segmentos sociais comprovaram que a UNE, uma conquista dos estudantes, mora também no coração do nosso povo (UNE: 1980, p. 9).

A homenagem a Honestino Guimarães representava uma questão de identidade da UNE que se reconstruía naquele momento e se via vinculada a uma trajetória de luta e resistência à repressão, forçadamente interrompida em 1973 com a morte de seu presidente. Relembrar Honestino significava buscar o elo rompido na história da UNE e restabelecê-lo naquele momento de reconstrução da UNE. O XXXI Congresso era a continuidade de uma história da entidade de representação estudantil, que foi alvo da repressão militar ao longo de sua história dentro da ditadura brasileira, mas que se colocava como um sujeito importante no processo de rearticulação das forças sociais e na defesa da democracia151. Ainda durante o XXXI Congresso da UNE em Salvador aprovou-se a Carta de Princípios da UNE, que estabelecia suas bases de atuação a partir daquele novo momento, a partir dos seguintes itens: 1. A UNE é a entidade máxima e representativa dos estudantes brasileiros na defesa de seus interesses e direitos

150 151

FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014. Cf. fotografias do XXXI Congresso da UNE em Salvador, 1979, no anexo 04.

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2. A UNE é uma entidade livre e independente subordinada unicamente ao conjunto dos estudantes. 3. A UNE deve pugnar em defesa dos interesses e direitos dos estudantes, sem qualquer distinção de raça, cor, nacionalidade, sexo ou convicção religiosa, política ou social. 4. A UNE deve prestar solidariedade à luta de todos os estudantes e entidades estudantis de todo mundo. 5. A UNE deve incentivar e preservar a cultura nacional e popular. 6. A UNE deve lutar pelo ensino voltado para os interesses da população brasileira gratuito em todos os níveis. 7. A UNE deve lutar contra todas as formas de opressão e exploração e prestar irrestrita solidariedade à luta dos trabalhadores do mundo inteiro 152.

A Carta de Princípios definia as bases da entidade de representação estudantil recémreconstruída e orientava seus princípios básicos que deveriam ser seguidos por todos, independentemente da tendência. Milton Guran, fotógrafo freelancer que cobriu todo evento, publicou suas fotos dois meses depois no livro Encontro na Bahia 79, pela Editora Galilei153. Na conclusão da obra, o fotógrafo registrou sua interpretação sobre a importância daquele acontecimento: Tão importante quanto as teses ali discutidas e as decisões tomadas foi o fato mesmo de se reunirem dez mil jovens de todo país, com formas próprias de trabalho, em sessões que chegaram a durar mais de 12 horas consecutivas – acontecimento inédito nos últimos 10 anos para nós. É também notícia quem são estes jovens que estão reconstruindo a entidade máxima do estudante brasileiro, tradicionalmente um instrumento de luta popular neste país, e por isso mesmo maldita há 15 anos. É evidente que se vestem, se comportam, e discutem de forma diferente de 10 mil corretores de seguros, por exemplo, e suas plenárias não são por tudo semelhantes às do Congresso Nacional. Mostrar o que foi realmente o XXXI Congresso é o objetivo deste trabalho, resultado de uma cobertura normal de free-lancer. (GURAN, 1979, p. 62).

Guran também destacou as especificidades do movimento estudantil e o significado da realização do XXXI Congresso da UNE, com a presença de dez mil jovens que participaram de longas reuniões de discussões de teses para os caminhos do movimento estudantil e da democracia brasileira, representando um marco político na história do país não repetido há 10 anos. Outra novidade foi a realização de uma eleição direta para a primeira diretoria da UNE após sua reconstrução em 1979, momento em que se desejava ampliar essa prática para a política nacional. A eleição direta para a primeira diretoria da UNE, que seria também a primeira da história da entidade (MULLER, 2010, p. 187), ocorreu entre os dias 03 e 04 de outubro de 152

Cf. documento apresentado na abertura de GURAN, Milton. O Encontro na Bahia: XXXI Congresso da UNE. Brasília: Galilei, 1979. 153 Cf. artigo sobre a cobertura do Congresso da UNE em Salvador pelo fotógrafo Milton Guran MAUAD, Ana Maria. A UNE somos nós, nossa força e nossa voz... Experiência fotográfica e os sentidos da história no século XX. Discursos fotográficos: Londrina, v.6, n.8, p.169-193, jan./jun. 2010.

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1979. Concorreram cinco chapas que reuniam diferentes tendências do ME: Mutirão, que unia APML e PC do B em suas tendências Caminhando, Viração e Refazendo e contou com Rui César como candidato à presidência; Unidade, que unia PCB e MR-8 e tinha como candidato à presidência Paulo Massoca, estudante de Engenharia Civil da USP São Carlos; a chapa Novação, que unia os trotskistas da Convergência Socialista e da Centelha, tendo à frente Eduardo Albuquerque, do DCE da UFMG; Liberdade e Luta, que tinha como candidato à presidência o estudante de Arquitetura da USP Josimar Moreira de Melo Filho; e, por fim, a chapa Maioria, que representava um grupo de direita dentro do ME, presidida pelo estudante Marcos Paulino Martins, aluno de Direito da USP (MÜLLER, 2010, p. 187). Na edição de 10 de outubro de 1979, a Revista Veja noticiava a eleição de Rui César como novo presidente da UNE: dos 275000 votos apurados, a chapa Mutirão de Rui César obteve 111.000 votos, 30 mil a mais do que a Unidade, a segunda colocada. Segundo a matéria, “tanto os vitoriosos da Mutirão como os derrotados das outras correntes esquerdistas pareciam certos de que juntos haviam acabado de atropelar o governo, sobretudo o Ministério da Educação, com a ressurreição da UNE” 154. Laura Macruz Feuerwerker, ex-militante da Caminhando, estudante de Medicina da USP no contexto, em seu depoimento descreve a primeira eleição da UNE de forma direta como uma grande conquista do Movimento Estudantil sobre a ditadura: A primeira eleição da UNE foi uma eleição direta. A primeira diretoria da UNE reconstruída foi eleita por uma eleição direta que o movimento estudantil organizou eleições diretas nacionais, em todos os estados do Brasil, nas universidades, as chapas, urna, contagem de votos. Fez uma eleição nacional direta! O Movimento Estudantil fez isso!155

Apesar das eleições diretas não terem durado muito na história da UNE, que passou a eleger sua diretoria de forma indireta em seus congressos a partir de delegados eleitos como representantes dos cursos de cada universidade, a realização da primeira eleição da UNE após sua reconstrução de forma direta em 1979 representava um passo na construção da democracia no movimento e no país, bem como uma vitória frente às inúmeras tentativas do regime de impedir sua reconstrução.

154

Revista Veja. São Paulo: 10 de outubro de 1979. p. 20- 21. FEUERWERKER, Laura Camargo Macruz. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 07 de dezembro de 2012. 155

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3.6 A polícia política e o movimento estudantil: a “repressão” na transição

Com frequência, nos deparamos com a associação entre a repressão e a geração que atuou na luta política em 1968. Uma repressão marcada por torturas, mortes, desaparecimentos e pela dura violência do Estado. Todos estes atos causaram traumas em uma geração que sofreu fisicamente os efeitos da ação da ditadura. Por outro lado, entendemos ser necessário pensar a relação da geração estudantil da transição democrática com as ações da repressão no intuito de compreender como a ditadura marcou essa geração que viveu um momento distinto da geração de 1968, mas que ainda vivia uma ditadura. Segundo o historiador e professor da UFMG Rodrigo Patto Motta, “é imprescindível perceber que o regime militar, para perdurar, adotou outras armas além da violência”. Assim, o “Estado combinou a violência com estratégias de negociação e acomodação, para aplacar as oposições e reduzir a resistência ao seu poder” (MOTTA, 2014, p. 55). As universidades por seu caráter de formação intelectual tornaram-se um espaço privilegiado para “perceber as ambiguidades do regime militar, bem como suas estratégias para aplacar os descontentes e seduzir as elites intelectuais” (Idem). As universidades foram um dos alvos principais do projeto modernizador da ditadura, pelo papel que elas têm na preparação de elites administrativas, de tecnólogos e cientistas, mas também por sua importância política, como formadoras de lideranças intelectuais (MOTTA, 2014, p.56).

A apropriação por parte do regime militar de uma demanda da atuação da esquerda pré-1964 fez com que, depois de ensaiada entre 1965 e 1967, a reforma universitária fosse lançada efetivamente em 1968, contudo, como não poderia deixar de ser, retirando os traços esquerdistas das demandas da reforma (MOTTA, 2014, p.56). De acordo ainda com Rodrigo Patto, “o objetivo era conectar as universidades aos trilhos do projeto desenvolvimentista autoritário, mas a motivação política de desmobilizar o radicalismo estudantil e seduzir os intelectuais foi fundamental” (Idem). A reforma adotava um caráter de “modernização conservadora autoritária”, nos termos usados por Motta. Para o autor, a reforma universitária implicava em seu eixo modernizante às seguintes propostas: Racionalização de recursos; busca de eficiência; expansão de vagas na graduação; mudanças nos exames vestibulares, aumento da participação da iniciativa privada no ensino superior; reorganização da carreira docente federal, com melhores salários e dedicação exclusiva; criação de departamentos em substituição ao sistema de cátedras; fomento à pesquisa, com aumento nas verbas e financiamentos; criação de cursos de pós-graduação; incremento nas bolsas de estudos para formação de

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docentes no exterior; e criação de novas universidades federais e estaduais, com um projeto milionário de construção de novos campi (MOTTA, 2014, p. 56-57) 156.

No eixo conservador das políticas universitárias, a ditadura sofreu o impulso de forças que buscaram impor uma agenda conservadora mais ampla, que não se contentava apenas em expurgar da universidade a esquerda revolucionária, mas desejava adotar medidas de valores tradicionais, como a pátria e a religião, bem como censurar todo comportamento considerado desviante do ponto de vista moral (MOTTA, 2014: 57). Assim, o regime militar reprimiu qualquer expressão que fosse considerada subversiva e buscava controlar todas as expressões culturais e políticas nas universidades. O movimento estudantil foi um de seus principais alvos dentro dos campi. Além disto, criou as Assessorias de Segurança e Informações (ASI’s) órgãos que tinham por funções vigiar e controlar a comunidade universitária, censurar publicações, livros e pesquisas, criar disciplinas voltadas para a formação moral e civismo e desenvolver iniciativas como o Projeto Rondon (Idem). No Relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado no fim de 2014, consta a identificação da criação de vários órgãos de informação ao longo de 1973. No que tange ao movimento estudantil, foi criado, junto ao MEC, as ASI que ganharam maior amplitude a partir de 1975 e foram importantes instrumentos no controle e na investigação das ações estudantis. A portaria interna do Ministério que criou a Comunidade apontou para a necessidade de reformulação dos regulamentos dos órgãos para incorporação em seus regimentos das estruturas de informação (Assessorias de Informação). Ao longo de 1973, o MEC efetivou a implantação da Comunidade Setorial de Informações, com a criação das Assessorias de Segurança e Informações (ASI) – conforme o Ofício do Diretor da Divisão de Segurança e Informações do MEC ao Assessor Especial da Universidade Federal de Minas Gerais, datado de 25 de junho de 1973 –, mesmo que algumas dessas assessorias já mantivessem funcionamento em anos anteriores. Em junho de 1975, o Ministério já contava mais de 40 elementos de informações organizados em assessorias de segurança e informações. O crescimento das Comunidades Setoriais de Informações e a necessidade de controle dos dados coletados impulsionaram a reorganização e a redefinição do papel das Divisões de Segurança e Informações. Em 1975, as DSI foram formalmente definidas como órgãos centrais dos Sistemas Setoriais de Informações e Contra informações dos Ministérios Civis e suas sedes deveriam, obrigatoriamente, estar localizadas em Brasília (Relatório da CNV, vol. II, p. 273) 157.

156

Segundo dados do autor, em 1964 havia 23 cursos de pós-graduação no Brasil, ao passo que em 1974 ultrapassavam a marca de 400; o número de estudantes universitários subiu de 140 mil em 1964 para 1 milhão e 300 mil em 1979; as bolsas de pós-graduação financiadas pelas agências federais (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ) passaram de aproximadamente 1000 em 1964 para cerca de 10 mil em 1976 (MOTTA, 2014, p.57). 157 Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2015.

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No espaço da universidade foi possível perceber com clareza as contradições do regime através de políticas ambíguas, pois simultaneamente procurava modernizar e reprimir, reformar e censurar (MOTTA, 2014, p. 58). “Se o radicalismo acadêmico não transpusesse os muros das faculdades, maiores as chances de ser tolerado e de não atrair medidas repressivas” (Idem). Ao analisar a documentação da Polícia Política do Rio de Janeiro a partir de 1974, encontramos constantes relatórios sobre o movimento estudantil e seus militantes, textos estes redigidos por policiais infiltrados. O objetivo era vigiar todas as manifestações, reuniões e atuações públicas. Com bastante frequência, falas e intervenções nas assembleias foram transcritas praticamente na íntegra. Muitas vezes, os relatórios mostram a organização policial para planejamento antecipando um cerco ao Movimento Estudantil por prever manifestações, mesmo já nos anos 1980, como foi o caso envolvendo Javier Alfaya em 1982. Javier foi eleito presidente da UNE durante o XXXIII Congresso, em 1981.

O

Ministério da Justiça tentou expulsar o estudante do país ao constatar que o rapaz era natural da Espanha. Em reação, jovens lançaram a campanha nacional “Javier é brasileiro”

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. O

episódio revela todo o aparato de vigilância e informação articulado pela repressão e o quanto ele permaneceu ativo mesmo em momentos em que a transição já se encontrava em estágio bem avançado em seu curso político. Grande parte dos estudantes que participaram das manifestações que se seguiram àquela pauta foram fichados, e todas as assembleias foram descritas detalhadamente em relatório da polícia política. Inúmeros foram os relatórios produzidos sobre o caso, com descrições dos atos, das manifestações, dos panfletos distribuídos, dos cartazes colados, entre outros. Por vezes eram organizadas operações especiais de investigação, informação e controle da repressão, como foi o caso da Operação Águia, organizada pela Polícia Política do Estado do Rio de Janeiro para controle das ações estudantis cariocas durante o mês de maio de 1977. O foco inicial fora nos participantes do Ato Público ocorrido no dia 10 de maio de 1977, após Assembleia na PUC convocada em apoio às manifestações em São Paulo pela libertação dos estudantes presos no 1o de maio no ABC. No dossiê elaborado pela Polícia Política, relatórios de policiais infiltrados nas assembleias e nas manifestações, fotografias do passo a passo do movimento estudantil carioca no mês de maio, documentos produzidos pelo ME como cartas distribuídas à

158

Disponível em: . Acesso em: 28 fev. 2015.

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população, convites para participação nas assembleias, entre outros. Além disto, compõe o dossiê os Termos de Declaração de 21 estudantes que foram intimados a depor no DOPS após participarem das ações estudantis. Com o intuito de apresentar uma síntese desses 21 casos, elaboramos uma tabela159 com dados dos depoentes, sua identificação com curso/universidade, data em que compareceram ao DEOPS, bem como um resumo dos depoimentos de cada estudante. Esses depoimentos de estudantes de diferentes instituições de ensino superior do Rio de Janeiro aconteceram entre os dias 17 de maio e 1o de junho, período em que tiveram que responder sobre sua trajetória estudantil e os motivos de sua participação no Ato Público do dia 10 de maio de 1977. Os interrogatórios foram uma tentativa militar de intimidar o movimento estudantil que ganhava grande impulso na mobilização política de massas naquele momento. Os estudantes declarantes, em sua maioria, afirmavam ser a favor das liberdades democráticas. Outros afirmavam não saber exatamente do que se tratava as manifestações ou Atos Públicos, pois estavam por acaso nas ações estudantis, retirando-se destas ao entender do que se tratava. Muitos reconheciam nas declarações que estiveram presentes nas ações estudantis, mas afirmavam desconhecer várias expressões questionadas pelos militares, relacionadas a nomes e grupos políticos como trotskista, peguistas, moderados e reformistas. Nos interrogatórios eram apresentados panfletos apreendidos durante as assembleias aos estudantes, que em geral afirmavam não ter conhecimento sobre o mesmo. Em outros casos, os estudantes afirmavam sua participação no ato investigado e defendiam seus objetivos abertamente em seus depoimentos. Tal dinâmica é muito representativo do momento político vivido, regido pela dialética entre medo e coragem definido na abertura que paradoxalmente avançava dando passos de retrocesso. Contudo, as intimações para o depoimento causaram uma reação dentro do movimento estudantil, que buscava denunciar essa medida repressiva. O DCE da PUC-Rio e o Comitê 1o de maio lançaram a nota Estudantes da PUC chamados ‘a depor’, em que informavam que três estudantes da PUC (Paulo Roberto de Araújo Abrantes – o Bebeto – aluno de Filosofia e membro do DCE); Carlos Wagner (Carlinhos – aluno de Engenharia); e James Lewis Gorman (aluno de História) haviam recebido intimação para depor. Também denunciavam a ditadura que mantinha a repressão de diversas formas, “desde intimações até prisões, tortura e tropas de choque nas ruas”, com o objetivo de “desmobilizar e intimidar aqueles que hoje lutam para defender os interesses dos estudantes e dos outros setores oprimidos da população”. Desta

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Cf. tabela do Anexo 2.

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forma, convocavam os estudantes a tomar algumas providências a fim de garantir a segurança daqueles rapazes intimados a depor, acompanhados pelos advogados, pelos pais ou mesmo pelo reitor da PUC. Amplamente distribuído, o impresso convidava todos a se manterem mobilizados e esperarem juntos pelo retorno dos alunos depoentes, o que deixava subentendido que, caso os três não voltassem até o tempo estipulado, o movimento deveria realizar uma Assembleia Geral e Greve Geral até o retorno de todos160. Dentre os documentos anexados ao dossiê Operação Águia, há também um panfleto assinado pelo “Movimento Democrático Estudantil”. Tal denominação representava uma nítida expressão direitista estudantil que tecia críticas à presença de alguns grupos de esquerda nas assembleias, chamando-os de “máfia ideológica”. Além disto, criticavam a presença da mãe de Cid e César Benjamin 161 na assembleia da PUC, acusando-a de, após lançar seus filhos “no terrorismo e na desgraça”, tentar “obter novos discípulos” 162. Esse grupo, mascarado pela ideia de democracia contida em seu nome, objetivava ser um braço de apoio militar dentro do movimento estudantil, buscando desmoralizar e desmotivar a luta política do ME. Nos documentos confidenciais da polícia política identificamos, como uma das estratégias adotadas pelo Centro de Coordenação de Operações de Segurança, a montagem de uma operação de emergência estudantil em maio de 1977. A partir da hipótese policial que previa a realização de um dia de luta estudantil no dia 19 de maio em vários campi da cidade do Rio de Janeiro, estabeleceram como missão “limitar a manifestação à concentração no interior dos campi”. E como manobra “impedir a exteriorização da manifestação (passeatas e depredações) através de ações repressivas da Força de Choque” 163. Para além das operações especiais, ao analisar os documentos da polícia política, encontramos resenhas diárias da Seção de Buscas Especiais sobre o Movimento Estudantil e seus membros. Vários são os pedidos de busca solicitados pelo Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE) para a identificação dos estudantes de um estado em atividade de militância em outro, entre outras ações. Nas ações mais cotidianas, entre meados dos anos 1970 e meados dos anos 1980, os órgãos de repressão tinham por intento vigiar e intimidar. Todos os passos dos principais 160

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Estudantes da PUC chamados a depor. Dossiê da Operação Águia. Fundo Polícia Política, Setor Estudantil, Pasta 61, caixa 550, maço 1. 161 Membros do MR-8 que militaram na luta armada e foram presos pela repressão. 162 Idem, Panfleto do Movimento Democrático Estudantil. Dossiê da Operação Águia; Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 61. Caixa 550. Maço 1. 163 Idem, Documento confidencial do Centro de Coordenação de Operações de Segurança. Dossiê da Operação Águia; Fundo Polícia Política. Setor Estudantil. Pasta 61. Caixa 550. Maço 1.

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líderes estudantis estavam registrados; e todas as suas ações, totalmente mapeadas e registradas. Uma vez mais, vale ressaltar o fato de toda essa ação ter se prolongado por todo o período militar, mesmo em momentos em que a transição já tomava forma concreta. De forma geral, agências como o SNI permaneceram ativas até 1990, o que indicia a demora no desmonte do caráter repressivo, fruto das características do processo de transição democrática brasileiro (MOTTA, 2014, p. 64). A confiança no novo momento vivido, principalmente a partir de 1977, dava aos militantes maior coragem de avançar na luta política, pois avaliavam que não havia mais espaço para a tortura. Contudo, ações de prisões, torturas e mortes continuavam acontecendo mesmo durante o período da transição. Entre os militantes havia a estratégia combinada de sempre se declararem defendendo os princípios democráticos, buscando o que seria legal, e esquivando-se de relacionar-se a qualquer organização clandestina. A diferença entre as formas de repressão em 1968 e posteriormente no período da transição é clara. Sem dúvida, os duros anos entre 1968 e 1973, vividos pela geração deste contexto, jamais poderão ser compreendidos complemente pelos seus impactos sobre uma geração que foi duramente abalada, de uma forma mais ampla, pela tortura. Nos anos 1970, a repressão deu-se mais amplamente pela vigilância, pelo controle e pela tortura psicológica através do medo e intimidação. Era um novo contexto, mas, que mesmo assim, não deixou livre seus membros da tortura e violências físicas. As medidas repressivas se mesclavam e alternavam àquelas que sinalizavam o avanço da abertura. Contudo, devido a esta diferença há uma tendência a relativizar a realidade vivida a partir de meados dos anos 1970, do qual muitos chegam a afirmar que neste período não houve repressão comparada à realidade de 1968. Pensamos ser necessário compreender a realidade de cada contexto e perceber as especificidades de cada momento da ditadura, não compreendendo-o para além de generalizações, mas sim suas especificidades. Medir níveis de violência estatal, para se definir um momento ou mesmo uma geração mais heroica do que outra, é desconsiderar as especificidades de cada período dentro da ditadura e desconhecer as características de um tempo em que, apesar da contemplação das possibilidades de se avançar na luta política, ainda vivia sob o julgo da mesma ditadura que matou e torturou nos anos 1960 e que ainda mantinha seus mesmos objetivos de aniquilar a oposição. Lígia Bahia, ex-militante do MR-8, estudante de Medicina na UFRJ no período da transição, em seu depoimento registra sua interpretação quanto ao caráter de repressão vivido a partir de meados dos anos 1970:

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Eu acho que eles roubaram da gente um monte de possibilidades. Sem dúvida! Nós somos uma geração da ditadura... Então, o medo que era uma coisa horrível, nós tínhamos muito, muito medo! Não era pouco não! Era muito medo! [...] Nós não conseguíamos analisar aquele medo! Que é o pior dos mundos! O que estava se passando naquele momento? [...] Porque se a gente conseguisse ter elementos pra analisar, pra compreender, pra conversar, não! Nós não tínhamos! Então, eu penso que não é “infância roubada!”, não é isso! Mas, talvez, assim, um sequestro analítico! Eles impediram que a gente fosse capaz de compreender esse momento da vida que é um momento importante! Historicamente importante! E talvez a gente tenha assim, de tanto medo. Esse vazio em relação ao movimento, né? Como a gente se inscreve na história? Talvez a gente não tenha se inscrito tão protagonicamente na história por medo também. Por medo! “Tá bom! Então nosso papel é assim! Não queremos ir muito longe!”. Por querer viver! Por querer não morrer! 164

Na fala de Lígia Bahia há uma valorização da questão do medo herdado da geração anterior com a opção da geração da transição pelo não enfrentamento, em que se priorizava a defesa da vida. Desta forma, Lígia relaciona a esta questão o fato de sua geração não receber um reconhecimento de protagonista na luta política contra a ditadura, pela ausência das marcas físicas da repressão que poderiam heroificá-la. A juventude que atuou no movimento estudantil a partir de 1973 é uma geração que cresceu e se formou sob uma ditadura que nela embutiu o medo e também uma releitura de seu próprio papel. Essa geração não desejava viver o que viu acontecer com seus irmãos mais velhos; ela prezava pela vida e não queria morrer. Como bandeira, levou a denúncia das arbitrariedades militares que “intimidavam” aqueles que se envolviam na oposição à ditadura. Um novo contexto impunha dificuldades para que essa ação de violência estatal se mantivesse com os mesmos níveis dos anos anteriores. Contudo, a ambiguidade característica da ditadura se expressa, nesse momento de abertura, ampliando o número de mortos e desaparecidos pelo regime. Muitas prisões duraram anos, outras duraram horas ou poucos dias. Alguns chegam hoje com marcas do medo e traumas da perseguição e vigilância política, outros com marcas no corpo, traumas profundos da violência física vivida. Todas são tristes marcas de uma mesma ditadura. Todos são heróis da resistência, responsáveis pelo fim de um regime de exceção e pela construção da democracia brasileira.

164

BAHIA, Lígia. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014.

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PARTE II MEMÓRIAS EM CONFLITO, POLÍTICAS DE MEMÓRIA E EVENTOS DE MEMORIALIZAÇÃO

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CAPÍTULO 4 – MEMÓRIA EM CONSTRUÇÃO, MEMÓRIAS EM DISPUTA Neste capítulo propomos-nos a refletir sobre a construção da memória do movimento estudantil durante a ditadura militar no Brasil, destacando elementos que incidem diretamente sobre esse processo. Buscamos assim analisar o lugar da transição democrática nas memórias estudantis sobre a ditadura militar e as relações entre memória e reconhecimento no caso da geração da transição. Identificamos duas gerações no movimento estudantil durante a ditadura militar: a geração de 1968, que culmina na luta armada, e a geração da transição que participa da abertura e da redemocratização. São gerações com propostas diferentes, expressas em um ethos diferente e também com memórias diferentes. Essas duas gerações, de certa forma, disputam o protagonismo da luta contra a ditadura militar, a memória de liderança no movimento estudantil e também a identidade do movimento. Tendo em conta a possibilidade de a memória ser, para o historiador, ao mesmo tempo, fonte e objeto de estudo, busquemos na memória a centralidade da análise e os recursos de fonte para a escrita da história. A temporalidade deste trabalho também é dupla, sendo que uma se define pelo contexto histórico analisado e a outra no tempo da construção da memória. Neste trabalho, as memórias da geração estudantil que atuou durante a transição democrática são objeto de estudo. Desta forma, torna-se importante indicar a compreensão de alguns conceitos como geração, imaginário e memória. Para definir o conceito de geração, recorro a Jean-François Sirinelli: No meio intelectual, os processos de transmissão cultural são essenciais; um intelectual se define sempre por referência a uma herança, como legatário ou como filho pródigo: quer haja um fenômeno de intermediação ou, ao contrario, ocorra uma ruptura e uma tentação de fazer tábua rasa, o patrimônio dos mais velhos é, portanto elemento de referência explícita ou implícita. [...] os efeitos da idade são às vezes suficientemente poderosos para desembocar em verdadeiros fenômenos de geração, compreendida no sentido de estrato demográfico unido por um acontecimento fundador que por isso mesmo adquiriu uma existência autônoma. (SIRINELLI, 2006, p. 136).

A interpretação de geração que Sirinelli utiliza para estudar os intelectuais se aplica à nossa análise das gerações estudantis. Segundo o autor, há um processo de transmissão cultural entre as gerações na definição de sua identidade, seja como seguidor ou como forma de ruptura com uma tendência. Desta forma, Sirinelli afirma que uma geração possui,

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portanto, uma identidade ao reconhecer sua origem ligada a um mesmo elemento fundador que concede uma experiência singular a um estrato da sociedade. A definição de geração também se baseia na mudança e ruptura trazida por um grupo que vai além da compreensão de sua idade. Segundo Karl Mannheim, “o que forma uma geração não é uma data de nascimento comum”, mas sim quando “jovens que experienciam os mesmos problemas históricos concretos, pode-se dizer, fazem parte da mesma geração” (MANNHEIM apud FEIXA; LECCARDI, 2010, p.187). Segundo Carles Feixa e Carmem Leccardi, o sociólogo inglês Philip Abrams ampliou a perspectiva lançada por Mannheim em circunstâncias diferentes. A intenção de Abrams foi lançar luz sobre a íntima relação entre o tempo individual e o tempo social, enfatizando sua filiação com registros históricos. O ponto de partida de Abrams foi sua convicção de que a individualidade e a sociedade são construções históricas. É, portanto, necessário analisar suas interconexões e, simultaneamente, suas mudanças ao longo do tempo. Identidades considerado o elo entre as duas dimensões individual e social - devem, por seu turno, ser investigadas dentro de um modelo de referência histórico-social (FEIXA; LECCARDI, 2010, p. 190).

Desta forma, de acordo com Carles Feixa e Carmem Leccardi, para Abrams, “uma geração, no sentido sociológico, é o período de tempo durante o qual a identidade é construída a partir de recursos e significados que estão socialmente e historicamente disponíveis.” (FEIXA; LECCARDI, 2010, p.191). Sociologicamente, portanto, as gerações não surgem do ritmo temporal estabelecido por uma sucessão de gerações biológicas. Elas cessam quando novos e grandes eventos históricos ou, mais frequentemente, quando lentos e não catastróficos processos econômicos, políticos e de natureza cultural, tornam o sistema anterior e as experiências sociais a ela relacionadas sem significado (Idem). Consequentemente, para Abrams ou para Mannheim, o início de uma geração é marcado por descontinuidades importantes, até então dominantes, em determinada época histórica e institucional. Novamente, o tempo histórico-social e seus ritmos é visto como central para a definição das novas gerações e identidades sociais. Mais precisamente, é o processo de mudança que produz o anterior e o posterior. Segundo Carles Feixa e Carmem Leccardi, “geração é o lugar em que dois tempos diferentes - o do curso da vida, e o da experiência histórica - são sincronizados. O tempo biográfico e o tempo histórico fundem-se e transformam-se criando desse modo uma geração social” (Ibidem). Desta forma, quando nos referimos à geração de 1968 e à geração que participou da transição democrática, estamos nos baseando na interpretação descrita acima, na qual mais do

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que limites de idade, as gerações são definidas por características do tempo histórico-social em que estão colocadas e se identificam pela realidade na qual estão inseridas. Assim, percebemos que a geração militante até 1968 possuía uma identidade criada no contexto do início dos anos 1960, marcado pelo Golpe de 1964. Essa geração de 1968, devido à intensa repressão, aguçada pela promulgação do Ato Institucional nº5 (AI-5), sofreu uma ruptura no seu percurso histórico-social, ao ser “abafada” pelo fechamento do regime militar. Assim, parte dela optou pela luta armada como nova tática frente à realidade política colocada, ao passo que outra parte foi afastada do contexto brasileiro via exílio, e uma terceira parte permaneceu na luta de resistência, mas marcada por um novo panorama político que afetava diretamente suas formas de organização e de militância. Assim, a nova geração que surgiu após 1974 e atuou até 1985, denominada no presente trabalho como geração da transição democrática, é fruto de uma descontinuidade no processo, em que há o começo de outro contexto histórico marcado pelo início do processo de transição e, portanto, se identifica com uma nova identidade social dentro do processo de abertura política. Neste sentido, somos levados a pensar sobre a existência de um imaginário social que se funda no processo histórico e define também uma geração. Uma das contribuições do conceito de imaginário neste trabalho está no fato de através dele haver a possibilidade de alcançar aspectos referentes à forma de pensar, de agir e de sentir um lado da militância estudantil novo na abordagem historiografia sobre as esquerdas e as atuações delas dentro do Movimento Estudantil (ME). Contudo, tendo também em conta o debate em torno do sentido de utilização do termo, optamos pela perspectiva de Bronislaw Baczko que propõe haver uma relação estreita entre imaginário e simbólico. Para o filósofo e historiador polonês, o imaginário social se assenta e opera através dos sistemas simbólicos, os quais são construídos a partir da experiência dos agentes sociais, dos seus desejos, aspirações e motivações. Ele é elaborado e consolidado por uma coletividade, como uma resposta que esta dá a seus conflitos, divisões e violências reais ou potenciais. Logo, se torna uma das forças reguladoras da vida coletiva, designando identidades, elaborando determinadas representações de si, estabelecendo e distribuindo papéis e posições sociais, exprimindo e impondo crenças comuns, construindo modelos de comportamento ideal. Desta forma, o imaginário interpreta a realidade, suscita a adesão e é alvo de disputas. Ainda de acordo com o autor, é a partir do social que os homens interagem entre si e constroem suas identidades. Com esta definição se torna possível perceber não somente como os militantes estudantis percebiam a realidade, mas também como atuavam nela em

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decorrência de tal percepção e como essa percepção pode ser diferente de acordo com a crença política de cada grupo de esquerda. De acordo com a historiadora Sandra Pesavento, O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos onde o verdadeiro e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da historia? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção? (PESAVENTO, 1995, p. 24)

Todos os grupos sociais utilizavam símbolos que eram reconhecidos pelo grupo. Estes eram utilizados em várias instâncias, por exemplo, na legitimação da ordem estabelecida, na identificação do grupo e na hierarquização. A abordagem através do imaginário nos sugere a possibilidade de esclarecer símbolos e metáforas eleitos por uma determinada coletividade que busca, em suas manifestações imaginárias e imaginadas, a superação da realidade indesejada e conflituosa. Bronislaw Baczko começou a utilizar tal conceito a partir dos acontecimentos de maio de 1968 como um fator identificatório de um movimento de massas. O autor, ao analisar os usos do conceito de imaginação e imaginário, destaca a concepção das ciências humanas que sempre viram o domínio do imaginário e do simbólico como estratégias de poder político. Ele destaca que o imaginário social é uma forma de resposta aos conflitos, problemas, dúvidas e violência de um grupo: O imaginário social é, deste modo, uma das forças reguladoras da vida coletiva. As referências simbólicas não se limitam a indicar os indivíduos que pertencem à mesma sociedade, mas definem também de forma mais ou menos precisa os meios inteligíveis das suas relações com ela, com as divisões internas e as instituições sociais, etc. [...] O imaginário social é, pois, uma pela efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder. Ao mesmo tempo, ele torna-se o lugar e o objeto dos conflitos sociais (BACZKO, 1985, p.310).

Neste mesmo sentido, Pierre Bourdieu (2004) afirma que o imaginário social constitui a teia de representações e identidades de uma determinada sociedade ou grupo, legitimando seu poder e seu controle através dos símbolos que inflam a noção de pertencimento. Desta forma, o imaginário coletivo, compartilhado pelos grupos estudantis analisados neste trabalho, nos revelam uma rede de significados e relações identitárias compartilhadas por cada tendência do movimento estudantil em suas especificidades e também em sua coletividade enquanto geração estudantil da transição democrática.

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Maria Paula Nascimento Araujo, no artigo Estratégias de resistência e memória da luta contra o regime militar no Brasil (1964 – 1985), publicado no livro O golpe de 1964 e o regime militar: novas perspectivas, organizado por João Roberto Martins Filho, identifica e analisa a existência de duas gerações diferentes que participaram da luta contra o regime militar: a geração de 1968 e a geração dos anos 1970. Segundo a autora, “a geração de 1968 é extremamente marcada pela questão da luta armada”, apesar de identificar em suas pesquisas que muitos depoentes valorizam em suas lembranças as manifestações de rua, é a luta armada a escolhida como marco central destas memórias, mesmo daqueles que não aderiram a ela. Já a geração da década de 1970 é marcada “pelo processo de redemocratização, pelas discussões em torno da democracia, pela aliança com os setores da oposição liberal, pela presença da Igreja e de entidades profissionais tipicamente de classe média [...], pela imprensa alternativa, por associações de bairros” (ARAUJO, 2006, p. 96). A presença forte de estudantes em ambas as gerações é destacada por Maria Paula Araujo (Idem). A participação de jovens estudantes nas duas gerações pode ser explicada, de acordo com Denise Rollemberg, pelo fato de que “a geração mais velha, que poderia ser considerada adulta, já havia sido politicamente neutralizada, por ocasião do golpe de 1964 ou pelo AI-5” e desta forma cediam seu posto aos estudantes (ARAUJO, 2006, p. 96 apud ROLLEMBERG, 1999). Além disso, Denise Rollemberg (1999) destaca que a importância da classe média, em especial, dos estudantes se explica pelo grande aparato de repressão e vigilância que se mantinha sobre o movimento operário e sindical. Assim, na falta destes, “o movimento estudantil ganhava dimensões políticas de ponta.” (Idem). São duas gerações distintas, definidas por posturas e táticas diferentes da utilizada na luta contra a ditadura. Sobre a diferença entre as gerações, Maria Paula Nascimento Araujo, afirma que a passagem de uma para a outra é marcada por um debate político e teórico no interior das organizações da esquerda brasileira, que cria um novo cenário de articulação política. Duas conjunturas diferentes que se referem a duas gerações diferentes, embora – é importante salientar – essas gerações não sejam opostas nem antagônicas; muito pelo contrario: estabelecem pontes importantes. Essas pontes ligam aqueles que estão no exílio ou nas prisões aos jovens militantes que, no Brasil, luta pelas liberdades democráticas. Entre estas pontes, as próprias organizações, seus dirigentes mais antigos clandestinos e algumas publicações, como a revista Brasil Socialista. A diferença entre as gerações não é dada, exatamente, por uma significativa diferença de idade. Algumas vezes apenas três ou quatro anos separam as pessoas de uma ou outra geração, mas os eixos que as constituem e as experiências vitais que as marcam são outras (ARAUJO, 2006, p. 99).

Além disto, a autora Maria Paula Nascimento Araujo destaca a diferença na forma de construção do depoimento por parte de cada geração. Para a autora “os depoimentos da

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primeira geração são organizados em torno de um ‘trauma’ (ou uma ‘situação-limite’), como prisões, a tortura, o exílio, a clandestinidade, o rompimento de laços familiares” (ARAUJO, 2006, p. 99). Já os depoimentos da segunda geração analisados pela autora se “constituem em torno de uma experiência vivida como ‘vitoriosa’ ” (ARAUJO, 2006, p.101), fato este que pude constatar também à medida que realizei as entrevistas para este trabalho. Em geral, os depoimentos dos ex-militantes estudantis indicam alguns marcos da luta estudantil durante a transição, em especial, fazem referência às lutas iniciadas na Universidade de São Paulo (USP) como a missa de sétimo dia de Alexandre Vannucchi Leme, a passeata até o Largo de Pinheiros, a passeata no Viaduto do Chá, o III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) em Belo Horizonte, a invasão da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e o Congresso de Salvador, episódios estes tratados no capítulo 3 desta tese. Para as lutas mais gerais, os entrevistados fazem referência à Campanha da Anistia como experiência política fundamental de sua geração. Conforme destacado por Maria Paula Araujo (2006, p. 101), a Campanha da Anistia tornou-se uma bandeira unificadora das correntes de esquerda e das demais forças sociais de oposição ao regime. Todas estas lutas foram vistas de forma positiva pela geração da transição e reforçavam a interpretação de uma geração vitoriosa luta política por parte de seus militantes. Ademais, Maria Paula Araujo sublinha outra importante diferença entre as duas gerações: a de ethos político. Para a autora, a primeira geração “tem um ethos de enfrentamento, de heroísmo, a marca de ter pego em armas”. A segunda geração “é mais marcada pela questão democrática, pela imagem da resistência” (Idem, p. 102). Assim, entendemos enfrentamento e resistência com sentidos simbólicos diferentes no campo do imaginário militante e popular. Enquanto a figura do enfrentamento liga-se à experiência do guerrilheiro da luta armada, valorizando a coragem e com foco no “martírio”, a simbologia da resistência da geração da transição destaca a bandeira dos direitos humanos e a busca do retorno das liberdades democráticas. Entendemos que a memória é uma forma de conhecimento como experiência, caminho possível para que sujeitos percorram a temporalidade. A análise das memórias permite ao historiador entender as relações existentes entre os projetos individuais e o horizonte histórico de concreta possibilidade de realização desses projetos. Michael Pollak introduz a ideia das disputas pelo enquadramento da memória do passado. O autor evidencia que, para além da dimensão coletiva da memória, a sua construção social é permeada de disputas e conflitos que geram “memórias dominantes” e “memórias

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subterrâneas”, estas que permanecem ocultas durante longo tempo, até que novas questões e demandas do presente permitam a sua emersão (POLLAK, 1989). Segundo o autor, Esse material pode sem dúvidas ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p. 10).

Logo, é nesta perspectiva de reinterpretar o passado em função dos combates do presente e do futuro que situo este trabalho. Conseguir compreender o enquadramento da memória nessa batalha de memórias e versões sobre o passado, que procura estabelecer um sentido para o mesmo, mas a partir do presente, e busca construir uma versão que permaneça para o futuro. A partir dos depoimentos coletados, mobilizamos outro elemento cuja aplicação nos permite uma compreensão acerca dos sujeitos históricos. Elizabeth Jelin lança o conceito de memória política sendo aquela que traz em si uma propensão maior para realizar juízos de valores, em que o sujeito não se satisfaz em narrar fatos, mas necessita julgar os mesmos, demarcando sua posição e apresentando formas de um discurso valorativo. Assim, ao examinar as entrevistas, partimos do pressuposto da característica de memória política contidas nelas e da necessidade de posicionamento do historiador para estabelecer uma análise sobre as especificidades da mesma. Elizabeth Jelin caracteriza o processo de abertura política vivida em processos de transição democrática como um cenário de luta pelo sentido do passado (JELIN, 2002, p. 4243). Segundo a autora, Esta abertura implica un escenario de luchas por el sentido del pasado, com una pluraridad de actores y agentes, con demandas y reivindicaciones múltiples. El escenario político es de cambio institucional en el Estado y en la relación Estadosociedad. La lucha se da, entonces, entre actores que reclaman el reconecimiento y la legitimidad de su palabra y de sus demandas. Las memorias de quienes fueron oprimidos y marginalizados [...] surgen con una doble pretensión, la de dar la version ‘verdadera’ de la historia a partir de su memoria y la de reclamar justicia. En esos momentos, memoria, verdad y justicia parecen confundirse y fusionarse, porque el sentido del pasado sobre el que se está luchando es, em realidad, parte de la demanda de justicia en el presente (JELIN, 2002, p. 42-43).

A partir das colocações de Jelin procuramos compreender os “trabalhos da memória” e a relação entre abertura política e disputa de memória. As memórias desses sujeitos que tiveram grande participação política surgem como forma de dar a sua “versão verdadeira da história” e de pedir justiça frente aos desafios enfrentados no contexto da transição democrática, hoje sem ter espaço numa memória “oficial” do período, marcada pela versão dos militares ou pela oposição que se tornou vítima do Estado.

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Segundo Daniel Aarão Reis, “em história, quando ainda se desenrolam os enfrentamentos nos terrenos de luta, ou mal se encerraram, o sangue ainda fresco dos feridos, e dos mortos sem sepultura, já se desencadeiam as batalhas de memória” (REIS, 2004. p, 30), Desta forma, Nelas (as batalhas da memória) os vitoriosos no terreno haverão de se desdobrar para garantir os troféus conquistados. E a vitória que fora sua, no campo de luta, poderão perdê-la na memória da sociedade que imaginavam subjugada. Porque o tempo dá voltas inesperadas. Os derrotados de ontem, na luta aberta, podem ser os vitoriosos de amanha, na memória coletiva. Nas batalhas da memória, o jogo nunca está definitivamente disputado, as areias são sempre movediças e os pontos considerados ganhos podem ser subitamente perdidos (2004, p. 30).

A ideia de batalha de memória dialoga com o esforço em compreender as disputas pela memória, na busca de atribuir um sentido ao passado que muda os derrotados de lugar, podendo colocá-los como vitoriosos de acordo com as voltas da história. A disputa da memória, na definição de quem são os vitoriosos e os derrotados na luta pela democracia, perpassa este trabalho, que tenta compreender a batalha da memória que marca o movimento estudantil na transição democrática brasileira.

4.1 O lugar da transição democrática nas memórias estudantis sobre a ditadura militar A “derrota” da luta armada, isto é, a derrota de um conjunto de organizações políticas de esquerda com pensamentos e visões, muitas vezes antagônicos, inclusive sobre a própria maneira de conduzir as ações militares, que divergiam em relação às analises estruturais e conjunturais do país, entre outras coisas, mas que estavam unidas pela adesão à luta armada, vai se refletir na maneira como as organizações sobreviventes e os novos militantes que chegam- a partir dos anos 1970 vão encarar o novo momento. A conjuntura a partir de 1974 os obrigou a novos comportamentos políticos, mas a forma pela qual se movimentaram nesse cenário não foi linear, ao contrário, fora marcada por permanente tensão e crítica. Viveu-se um processo de crítica e autocrítica na tentativa de definir teoricamente a melhor tática e o melhor programa, mas, acima de tudo, viveu-se o esforço de levar e cultivar na prática a tática e o programa e de verificar sua aplicabilidade no confronto com a realidade. Para Carlos Fico ainda no contexto da década de 1970, em meio ao processo de transição, é que se iniciou a formação de uma memória coletiva sobre o regime militar, em que nessa “batalha da imagem”, conforme denomina Fico (2013, p. 25), ou “batalha pela memória”, segundo conceito de Daniel Aarão Reis (2004, p.30), confrontaram-se dois sujeitos

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históricos que assumiram o protagonismo desse processo: os militantes de esquerda que se envolveram na luta armada, e os militares envolvidos com a repressão. De acordo com Daniel Aarão Reis, “em história, quando ainda se desenrolam os enfrentamentos nos terrenos de luta, ou mal se encerram, o sangue ainda fresco dos feridos, e dos mortos sem sepultura, já se desencadeiam as batalhas de memória” (REIS, 2004, p.30). De fato, o início da distensão política com Geisel, com o abrandamento da censura, possibilitou o tratamento da questão da repressão e da luta armada, algo que se ampliaria com a anistia em 1979 e o retorno dos exilados políticos ao Brasil (FICO, 2013, p.25). Com a publicação dos livros com depoimento de ex-militantes da “luta armada” de Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis, no fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980, de acordo com Carlos Fico, “prefiguraram um personagem que criaria grande polêmica entre aqueles que optaram por ‘pegar em armas’ contra a ditadura: o ex-militante de esquerda crítico de sua atuação pretérita e que via como ‘romântica’ e ‘ingênua’ a opção radical” (Idem). Paralelamente surgiram, aos poucos, narrativas pungentes sobre a tortura por parte de outros militantes que enfatizavam o caráter cruento de um período considerado como o mais duro do regime, sendo documentado pelo projeto Brasil: nunca mais (Ibidem). Carlos Fico infere que o “processo de cristalização de uma leitura binária sobre a ditadura, que entronizou a questão da violência como chave analítica, teve na Lei da Anistia de 1979 um momento singular” (Idem, 2012, p. 27). Para o historiador, foi no contexto de negociação parlamentar da anistia que se tornou necessário encontrar uma forma palatável de tratar das ações armadas, fato este que levou à consolidação da figura do ex-militante das esquerdas como a de um jovem herói romântico ao qual não restavam outras opções (Idem). Segundo Daniel Aarão Reis existem “versões emblemáticas” sobre os guerrilheiros. Em algumas delas, eles são representados como irresponsáveis e ingênuos; em outras, são caracterizados como heróis, combatentes da resistência à ditadura militar. Há momentos em que essas versões se cruzam; em outros, uma versão prevalece sobre a outra. Desta forma, relacionando com a obra de Carlos Fico, buscamos evidenciar o fato de uma série de circunstâncias terem conduzido à “constituição de uma memória relativamente dominante sobre a ditadura militar brasileira marcada pela perspectiva do confronto entre luta armada e repressão” (Ibidem, p. 28). Sendo assim, de acordo com Fico, é notável que a história do Brasil entre 1964 e 1985 não pode ser resumida à história da repressão e de suas vítimas, do embate entre a luta armada e repressão ditatorial. Essa memória que consagra o papel da luta armada tende a diminuir tanto o papel do movimento estudantil quanto de toda a oposição que integrou o processo político de transição

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democrática, reduzindo, portanto, a importância de seus sujeitos e do próprio processo transicional. Os depoimentos coletados neste trabalho mostram que essa questão se apresenta, mesmo que difusa, na geração de militantes estudantis do período de 1974 a 1985, a “geração da transição”, que, consciente da memória dominante que coloca a geração da luta armada com uma carga heroica, demanda seu lugar na memória na busca de ampliar o olhar sobre a ditadura e perceber que ela ultrapassa a luta armada e a repressão. A paulatina heroificação dos que sofreram a repressão, muito especialmente dos que participaram da luta armada e foram vítimas, sujeitos de uma história de equívocos e sofrimento, mas que estão muito longe do protagonismo que acabaram assumindo na memória romantizada que se construiu sobre eles (FICO, 2012, p. 29).

Na interpretação de Fico, a dicotomia entre repressão/vitimização levou a se considerar como traço marcante da história brasileira daquele período o aspecto da violência. O exame dos níveis de violência traz para o olhar de análise da ditadura brasileira o enfoque da dor em detrimento da luta democrática. Em contraposição à memória construída pautada na violência e na vitimização que heroifica a geração de 1968, a memória da geração da transição democrática que se sustenta na afirmação positiva sobre seu papel político mostra uma visão compartilhada, desde meados dos anos 1970, em que a consciência de seu significado histórico e vitorioso na luta democrática é evidenciada. Analisamos alguns fragmentos de memórias desta geração que nos remetem à revisão da visão sobre os resultados da luta política pela democracia. Questionado sobre sua lembrança sobre o processo político vivido, Ricardo Chaves, estudante de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e líder estudantil no fim dos anos 1970, falou do sentimento de frustração que se mesclava à emoção de uma leitura de vitória no campo da organização social. A ditadura caiu em 1985. E a queda da ditadura aqui foi uma transição, colégio eleitoral, teve as Diretas, aí Tancredo morre. E aí veio o Sarney. Muito ruim! Ver o Sarney ser presidente do Brasil depois disso tudo é lamentável! [...] As Diretas foram um baque. [...] Foi uma transição que não teve revolução. Não teve porrada a ponto de... Mas, ao mesmo tempo, um milhão de pessoas nas Diretas aqui no Rio, é fantástico!165

A fala de Ricardo Chaves é muito emblemática no que diz respeito à compreensão do sentimento do militante político daquele contexto. Os resultados da luta política nas Diretas Já, com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, seguida da morte de Tancredo Neves, de imediato geraram uma sensação de frustração mas que não se sobrepôs a outra sensação que 165

CHAVES, Ricardo Lêdo. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013.

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surgia concomitantemente: o desejo de contemplar vitórias e não desconsiderar toda a experiência militante adquirida. Ambiguidade esta que também está presente quando se pensa a aprovação da Lei da Anistia em 1979. Por um lado, o regime impôs à sociedade a anistia que convinha a ela; por outro, conforme afirma o presidente da Comissão da Anistia Paulo Abrão (2012, p. 179), “a sociedade civil obteve sua mais significativa vitória desde a decretação do AI-5, ao alterar a correlação de forças sociais que obrigou o governo militar a aprovar alguma lei de anistia”. Mesmo sendo parcial, através dessa lei, muitos direitos políticos foram recompostos, causando tal dualidade na análise daqueles que viveram aquele momento. Todo esse sentimento interfere na memória que se forma dessa geração sobre a ditadura, mas que busca ver nesse passado militante elementos de vitória. Alon Feuerwerker, estudante de Medicina na USP na época, ex-militante da tendência Caminhando e vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1979, representa o grupo que possui essa memória positiva sobre a luta pela anistia e seus resultados: Agora, o fato é que, naquela época, a anistia foi feita na ditadura! E a ditadura ainda levou mais cinco anos pra acabar. E a força que a gente tinha era aquela. Foi errado fazer? Claro que não foi! Porque voltaram os caras, os caras saíram da cadeia, isso engrossou o movimento pela volta da democracia, e a ditadura acabou tendo um fim166.

As memórias de Alon Feuerwerker sobre a transição fornecem elementos para entender outra perspectiva que se concentra na interpretação da transição como uma fase que encerra uma guerra, portanto, geradora de alívio social e pessoal entre aqueles que militaram pelas liberdades democráticas. Um resultado que gera memória de satisfação pela vitória do qual não há frustração com a derrota. Esta visão leva-nos a compreender que a sensação de vitória é um elemento presente na geração daqueles que militaram na transição, e que há um revisitar desse passado de forma positiva por essa geração que compartilha a consciência de uma longa luta efetiva que conseguiu colocar fim no regime militar. Amâncio Carvalho, ex-militante estudantil do Partido Comunista Brasileiro (PCB), aluno de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na ocasião, partilha da visão descrita acima. Acho que, do ponto de vista prático, as coisas se deram. Os caminhos nunca são diretos ou necessariamente não são diretos. Então, não fica nenhuma frustração, não, nem em uma coisa nem outra. Acho que todo mundo, aqueles que tinham participado do que o regime tinha chamado de ações sangrentas, puderam voltar pra política, exercer um papel, da mesma forma que depois a gente teve as eleições diretas pra presidente, fez a Constituinte, uma coisa complicada, uma Constituinte inteiramente dominada pelo PMDB, [...] muitas conquistas para os trabalhadores... 166

FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014.

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Algumas que eu acho que ficaram um pouco congeladas. Talvez pudesse haver uma evolução. Mas, de qualquer forma, acho que isso se completou. Não tenho nenhum sentimento de frustração, não. Acho que foi o possível e bastante razoável 167.

Na fala de Amâncio Carvalho, a afirmação da Anistia, das Diretas e da Constituinte como conquistas possíveis e coerentes com a busca dos movimentos que se organizaram na luta pela Anistia. Uma conquista possível, que, apesar de seu caráter negociado, não perde a dimensão de vitória. Cunca Bocaiúva, ex-militante da Viração, estudante de História da Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) no contexto da transição, também se refere a esse passado como uma experiência de vitória: Cada conquista dava um ânimo novo que cada dia teria mais esperança. Eu diria que até 1989 você só teve fortalecimento. Você só teve conquistas parciais. O que quer dizer isso? Não quer dizer que não foi sem contradições. Ao contrário. As contradições às vezes eram porque alguns queriam que fossem mais valorizadas as conquistas parciais. Por exemplo, jogar mais força nas Diretas. Foi difícil convencer todo mundo a jogar mais força nas Diretas. Jogar mais força na Constituinte. Quando perdemos as Diretas, dizer, “olha, mesmo perdendo as Diretas”, o fato dos caras terem feito do Tancredo, Sarney, é uma vitória também. Temos que comemorar o fim da ditadura também168.

Cunca enfatiza a presença da esperança pelo fim da ditadura que se ampliava a cada nova conquista fruto da mobilização social vitoriosa, sentimento este que fica como elemento no tempo presente, apesar das contradições desse período e dos resultados dessas conquistas. Na fala de Cunca, a percepção de um processo contínuo, de um acúmulo de vitórias parciais que se seguiram uma após a outra: a Lei de Anistia, as primeiras eleições civis – mesmo indiretas – e a Constituinte. Lígia Bahia, líder estudantil carioca no fim dos anos 1970, ex-militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), recupera em sua lembrança a visão positiva de vitória relativa como elemento central do processo de transição: Assim como a derrota no colégio eleitoral, das eleições diretas, não foi um sentimento de frustração! Não foi eu acho porque não poderia ser, né? Pra pessoas como nós que viveram aquele tempo, pra nós, isso era uma vitória, embora eu diria assim relativa. Era uma situação de ruptura, isso não acontecerá mais! Anistia significava isso! Pessoas não serão presas sem habeas corpus, serão torturadas, não sumirão. Isso era importante. Assim como a eleição existir é muito importante! Nós somos uma geração que fomos votar muito tarde. Nossa primeira eleição pra presidente é eleição do Collor, imagina!169

167

CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. CUNHA, Pedro Claudio Cunca Bocaiúva. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014. 169 BAHIA, Ligia. Entrevista concedia à autora. Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014. 168

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O depoimento acima nos oferece elementos indicativos da consciência daquela geração estudantil, que se envolveu na luta democrática e obteve vitórias parciais frente aos ideais almejados. Essa geração interpreta os limites como parte do contexto político, ao mesmo tempo em que concebe essas conquistas parciais como conquistas coletivas. Contudo, para a geração anterior e também para as posteriores que atuaram no movimento estudantil, o longo processo de transição possibilitou a abertura para a negociação entre diferentes segmentos políticos e sociais, com a predominância das elites políticas, apesar da interferência dos movimentos sociais, como o movimento estudantil. O processo de transição negociada é o oposto à ideia de confronto, luta e revolução, mais valorizadas em termos de imaginário político. A transição negociada remete a acordo, burocracia e corrupção. Por isso, os atores que participaram da transição são desvalorizados em relação aos atores do momento anterior, que se constituiu na memória como uma fase heroica. Para o historiador e professor da USP, Marcos Napolitano, a construção da memória pela via institucional diluiu a experiência dos protestos na dinâmica da transição democrática “pelo alto”, na medida em que os protestos de rua foram vistos unicamente, como direcionados para a conquista da democracia institucional. Com o fim negociado do regime militar e a transição “pelo alto” na implantação da democracia institucional, os sujeitos que eram portadores de outras experiências democráticas acabaram por memorizar a derrota, como dinâmica histórica inexorável. Nos dois processos de construção da memória, seja a partir do “consenso” canalizado pelas instituições liberais, seja o da “derrota” como categoria política, os eventos perdem sua significação histórica mais profunda e sua importância no jogo político que culminou com a crise do Estado de Segurança Nacional. Nesta crise, a temporalidade marcada pelo “consenso”, pelo “nãoconflito”, ficou superdimensionada na agenda da transição democrática brasileira (NAPOLITANO, 2006, p.29).

Na perspectiva de Marcos Napolitano, o modelo de transição para a democracia vivida no Brasil, com suas marcas de negociação, contribuiu para a construção da memória pelo olhar institucional, onde a experiência vivida pela geração da transição foi “memorizada” como consenso ou derrota, ficando, por conseguinte, minimizada na memória. Em outra instância, verifica-se que o Estado também contribuiu com a formação desta memória coletiva sobre a ditadura que privilegia a luta armada, a tortura e a dura repressão, e que omite a ação da sociedade civil no processo político a partir de 1974. Ao Estado cabem distintas iniciativas no sentido de garantir suas obrigações face à justiça de transição e de articular reconciliação nacional diante dos traumas do passado. Entre as iniciativas está a da memorialização – que será discutida adiante. A outra é a de reparação. A Comissão da Anistia repara moral e financeiramente as pessoas que foram perseguidas e sofreram violências. A Comissão coloca seu foco nas vítimas, visto que

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somente vítimas podem ser reparadas. Ora, uma vez que a “geração da transição” se enxergue como uma geração vitoriosa – mesmo que parcialmente –, ela não tem lugar nesta memória. Esta geração não representa vítimas, mas sim aqueles militantes que participaram da “transição negociada”, não são vítimas nem heróis, pois o caráter “negociado” também contribuiu para a não validação dessa memória.

4.2 Memória e reconhecimento

A longa transição política que o país viveu mobilizou diferentes grupos, partidos e organizações de esquerda, com diferentes propostas políticas, táticas e estratégicas. A memória acerca desse período evidência a diversidade entre esses diferentes grupos também dentro do movimento estudantil e demonstra a existência de uma memória ainda em disputa. No cerne dessas disputas de memória, apresentam-se as seguintes questões: a qual (ou quais) desses grupos coube o protagonismo do combate à ditadura civil militar? Qual era a tática mais correta? Qual posição política efetivamente derrotou a ditadura? Qual geração efetivamente venceu a ditadura? Em outras palavras, quem são os “heróis da resistência”? E as vítimas da ditadura, quem são? Daniel Aarão Reis (2014, p. 08), no que diz respeito à memória da ditadura, aponta as memórias formuladas por ex-guerrilheiros (em especial, aquelas presentes no O que é isso, Companheiro, de Fernando Gabeira) como o elemento que contribuiu para a formação de uma memória de admiração indulgente da geração de 1968. A saga guerrilheira ganhou aí uma versão simpática e bem humorada, suscitando uma atmosfera de indulgência e de compreensão. Os que haviam se levantado com armas nas mãos, bravos jovens, generosos, mas equivocados, teriam sido apenas, inconscientemente, uma “braço armado” da resistência democrática (REIS, 2014, p. 9).

Neste mesmo sentido, Daniel Aarão Reis acredita que no livro Brasil: nunca mais (publicado anos depois da obra de Gabeira) há uma visão na qual “os perseguidos pela mão pesada da ditadura não passavam de vítimas, torturadas, exiladas e assassinadas por um regime cruel e desumano” (REIS, 2014, p. 9). Na interpretação do autor, o livro teve predominância hegemônica na memória sobre o período, tornando-se uma “espécie de lugarcomum” em torno da tese “a sociedade brasileira viveu a ditadura como um pesadelo que é preciso exorcizar” (Idem, p. 11). Estas versões, saturadas de memória, não explicam nem conseguem compreender as raízes, as bases e os fundamentos históricos da ditadura, as complexas relações que

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se estabeleceram entre ela e a sociedade e, em contraponto, o papel desempenhado pelas esquerdas no período (REIS, 2014, p. 14).

A compreensão de Daniel Aarão Reis vai ao encontro de compreender que as memórias pautadas em uma “ingenuidade” da luta armada e em seu caráter de indulgência, colocando-a como parte da luta democrática marcada exclusivamente pela violência de estado, não contribuem para a compreensão mais ampla da ditadura e do papel desempenhado pelas esquerdas. A esta interpretação acrescento a de que elementos como os construídos pelos livros de memórias de guerrilheiros e mesmo o livro Brasil: nunca mais reforçaram um olhar único sobre a oposição à ditadura pautado na experiência dos anos de chumbo, o que deixa de sinalizar as especificidades dos anos seguintes, em que houve um rompimento com a luta armada e uma nova opção de luta política construída pela bandeira das liberdades democráticas. Identificamos que a memória em comum entre os entrevistados caracteriza a geração a que pertenceram como uma geração responsável por abrir espaço na luta política para os demais sujeitos sociais e essenciais na luta “pelas liberdades democráticas” e, por conseguinte, na construção da democracia brasileira e no fim da ditadura. Em paralelo, essa geração reforça a interpretação de que a geração de 1968, salvo todos os seus méritos, não obteve o êxito esperado na luta de resistência e foi abafada pela repressão. Contudo, na memória desses ex-militantes estudantis, a geração do movimento estudantil atuante durante a transição democrática contribuiu efetivamente para o retorno das liberdades democráticas no Brasil, tornando-se, assim, vitoriosa no campo político. Um dos pontos recorrente nas entrevistas analisadas é a questão do reconhecimento. Para muitos, a memória do movimento estudantil tende a destacar e a valorizar a atuação da geração de 1968 e da luta armada, deixando de pontuar a experiência da geração da transição. Em muitas falas está presente o desejo de reconhecimento pelo papel dessa geração na memória da ditadura. Amâncio Carvalho, ex-militante do PCB carioca, estudante de Medicina na UFRJ, vê a sua geração da transição como uma geração que ficou despercebida ao longo do tempo. A gente é uma geração que passou um pouco despercebida em um prazo maior. Agora é que começa haver uma recuperação, com o projeto UNE. [...]. Mas eu tenho a impressão que se fala mais hoje da sociedade do período da ditadura militar, quer dizer, do grupo que enfrentou o rojão da repressão mais violenta, grupo da época da luta armada ou se fala mais da geração Collor e tal. Mas, na sociedade como um todo, se fala pouco daquele período. Agora, o que me parece é que o interesse mais recente, principalmente de natureza acadêmica aumentou [...]. E por esse processo todo e ainda reconhecendo que nosso papel não foi primordial, acho que ele foi

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muito importante e acho que atualmente pouco reconhecido. O que eu ia concluir? Às vezes, as grandes revoluções são silenciosas [...] 170.

Uma geração que “passou despercebida” mas que compartilha de um elemento forte na sua memória coletiva: o papel vitorioso que desempenharam na luta democrática. As narrativas analisadas nos permite identificar a consciência de uma juventude que se considerava protagonista na história, porém anos depois não vê esse sentimento afirmado com um reconhecimento social. Percebe-se que, quando se fala de ditadura militar, a memória preponderante é a da violência de Estado que atingiu uma geração de militantes e se constituiu como marco expressivo da ditadura no Brasil entre 1968 e 1973. Após esse período, o regime militar começou a dar sinais de abertura e a modificar sua forma de ação. A repressão diminuiu, apesar de ter se mantido em proporções significativas e de seus agentes sociais terem mudado de tática, de forma e de conduta. Era o processo de transição. Alon Feuerwerker, ex-militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), aluno do curso de Medicina na USP no contexto da transição, aponta em seu depoimento as diferenças no campo do reconhecimento das duas gerações estudantis atuantes na ditadura: Não tem reconhecimento porque 68 é mais épico. A luta armada é mais épica. Mas, [...] do ponto de vista histórico [...] o fato é que a história não acontece aos saltos sobre buracos negros. Você não pode ignorar um período. Você precisa saber o que aconteceu naquele período. [...] Donde é que veio a anistia? Por que os exilados puderam voltar, sair da cadeia? [...] Teve um processo de luta pela democracia, pela anistia, liberdades democráticas, Constituinte, e teve uma luta e quem desencadeou essa luta foi o movimento estudantil171.

Na narrativa de Alon, o caráter épico da geração de 1968 dá a ela maior reconhecimento, ao passo que a geração da transição é “ignorada” como um salto na história, e, portanto, não é reconhecida pelo papel na luta política pelo fim da ditadura e pelo retorno da democracia, em que foram defendidas bandeiras como a anistia ampla, geral e irrestrita e as liberdades democráticas. No entanto, estas memórias da geração da transição não são marcadas pelo ressentimento, como identificamos no depoimento de Amâncio Paulino Carvalho. Mas eu não me recinto desse silêncio, porque eu acho que ele foi proporcional à nossa preocupação na época que não era de ser herói. Era de conduzir um processo político da forma que a gente achava mais correto. E até mesmo menos estridente. Eu tinha até um certo ressentimento, mas depois, principalmente, que a gente teve oportunidade de fazer os depoimentos pra UNE, eu fiquei mais tranquilo em relação a isso172.

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CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. FEUERWERKER, Alon. Entrevista concedida à autora. Brasília, 15 de janeiro de 2014. 172 CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. 171

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Amâncio refere-se ao projeto Memória do Movimento Estudantil, desenvolvido pela UNE, entidade de representação do ME nacional. O projeto visava reconstruir a história de lutas estudantis no Brasil a partir da história da UNE. Percebemos pelo depoimento de Amâncio que, para a geração da transição, o reconhecimento, através do registro de sua história, tem o sentido de reparação. Reparar, para este grupo, é reconhecer historicamente seu papel na luta política. Neste sentido, vale salientar que a atitude de se narrar essa história foi apontada em todas as entrevistas com ex-militantes estudantis como algo louvável. Sem exceção, todos destacaram a importância do desenvolvimento desse trabalho para o reconhecimento do papel vitorioso desta geração na história da ditadura. Beatriz Bicudo Tibiriçá, ex-militante da tendência Refazendo e estudante de Ciências Sociais na USP na ocasião, também pontua em seu depoimento sobre a questão do reconhecimento de sua geração: Você vê muito pouco do movimento estudantil, todo mundo pula de 68, passa pela gente. Mas eu diria que é até por uma qualidade que a gente teve. Essa qualidade de ser uma coisa ampla e misturada. Então, a gente se misturou muito com movimento de carestia, com comissão de justiça e paz, com o começo dos comitês de apoio para os grevistas do movimento operário. Então, a gente se diluiu nas histórias de vida coletivas. Então, acho que isso, de certa forma, pode ser uma das qualidades nossas que acabou que não tinha o líder, “fulaninho de tal era o grande líder que foi reprimido...!”. Era quase como uma serpente que ia incendiando. Talvez por isso a gente não seja citado quando se faz uma citação 173.

Beatriz Tibiriçá também faz referência à sensação de “salto” histórico, em que a geração da transição seria “ignorada”. Contudo, como evidenciado no depoimento de Beatriz, percebemos que tal “esquecimento” é compreendido por essa geração como um elemento positivo, pois seria fruto do caráter de sua atuação política. Sobre memórias que “reivindicam” seu espaço na história, a reflexão de Elizabeth Jelin é de grande valia. A autora caracteriza a abertura política vivida em processos de transição democrática como um cenário de luta pelo sentido do passado. Logo, ao mesmo tempo em que aceitaram colaborar com esta pesquisa partilhando sua memória, em busca de firmar sua identidade, os entrevistados também reclamam um espaço na memória oficial, pois o reconhecimento de sua atuação no período de mudança política brasileira se torna uma demanda do presente. Além disso, todos eles, no contexto do processo de luta democrática, já se reconheciam como sujeitos da história, com um importante papel na luta política; e é o

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TIBIRIÇA, Beatriz Bicudo. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 25 de novembro de 2014.

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reconhecimento deste papel que eles demandam no tempo presente como forma de reparação à sua geração. Percebemos assim que essas memórias indicam que a geração da transição democrática não fala para o passado ou mesmo para o presente. A intenção, sempre perceptível, é uma fala para o futuro, que visa consolidar a construção de uma versão legítima da história política brasileira, na qual os mesmos são protagonistas de uma luta vitoriosa pela democracia. A intenção de que uma história a partir de sua memória seja escrita, e assim legitimada, é um indicativo recorrente nas falas, sempre motivadas pela partilha da experiência vivida. Permeados de forte conteúdo político de posições ideológicas atuais, as entrevistas demonstram a necessidade de se pensar e de se fazer perguntas políticas sobre esse passado e sobre o presente no qual estão inseridos os sujeitos desta pesquisa, para que assim seja possível edificar uma história a partir de análises coerentes. A questão da disputa de memória existente no tempo presente sobre esse passado nos mostra também que a transição democrática no Brasil permanece incompleta. A Constituição de 1988 foi o marco político da concretização da democracia no país, mas a transição na memória não foi finalizada. As políticas de memória não acompanharam a consolidação da democracia política no país e, apesar de ter dado os primeiros passos na década de 1980, ainda hoje apresenta traços inacabados. Desta forma, a disputa de memória entre gerações de ex-militantes estudantis e a construção da memória sobre a transição democrática evidenciam a busca de um significado por parte dos grupos sociais envolvidos na luta pela transição de sua própria atuação e relevância política que crie uma memória sobre a resistência: seus atores, seu conteúdo, suas vítimas, seus heróis, seus símbolos e seus avanços. A memória de representantes da militância da década de 1970 e de 1980 é marcada pela consciência de participação política pelo fim da ditadura. Reflexos de uma realidade distinta entre os contextos e opções políticas de cada geração. A geração da transição democrática, ao narrar sua memória, busca construir uma nova história e gerar uma nova memória sobre os tempos de ditadura em que a ênfase não recaia tão somente no sofrimento da tortura, do exílio e das prisões, mas também nas manifestações de rua, nas ações culturais, nas lutas pela anistia e pela reconstrução de uma sociedade democrática. Portanto, o que se caracteriza aqui como disputa pela memória não é sintetizada em uma briga entre gerações, mas sim uma disputa por conteúdos, projetos e experiências políticas.

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CAPÍTULO 5 – O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DA TRANSIÇÃO

Este capítulo tem por objetivo discutir a construção de memória sobre o movimento estudantil e a geração da transição democrática a partir das produções memorialísticas e dos eventos de memorialização, analisando a memória como fruto de um processo sobre o qual incidem diferentes elementos. O Movimento Estudantil (ME), ao longo de sua história, fez usos políticos de seu passado com objetivos de construção de identidade. Produções memorialísticas evidenciaram uma memória estudantil sobre a ditadura referenciada na atuação da geração de 1968. A geração da transição só se tornou objeto de ações memorialísticas a partir do fim dos anos 1990; ao passo que nos anos 2000 houve a ampliação de sua abordagem no campo historiográfico e no campo de eventos produtores de memórias voltados para a geração de meados dos anos 1970 a meados dos anos 1980.

5.1 As produções memorialísticas sobre o movimento estudantil e a memória da transição Os usos políticos do passado pelo movimento estudantil não é uma questão colocada na batalha pela memória presente na atual fase da justiça de transição brasileira, tampouco exclusiva à realidade estudantil, visto que vários sujeitos sociais fazem uso político de seu passado. Segundo Angélica Müller, durante os anos de 1970, a memória do movimento estudantil foi reelaborada para ser utilizada como forma de resistência contra o regime servindo, ainda, como peça fundamental para identidade do próprio grupo, a partir de um uso político do passado (MÜLLER, 2011, p. 01). A história da União Nacional dos Estudantes (UNE) era pauta constante de suas publicações. Em sua edição de 1981, a Revista Movimento da UNE fez referência a vários eventos históricos do movimento estudantil, sempre valorizando seu passado de lutas. Nesta mesma publicação, a UNE lançou a Campanha Registrar Nossa História: Memória do ME. , em que pedia a doação de documentos. Os registros poderiam ser enviados para a UNE, e a diversas União Estadual dos Estudantes (UEE’s) e Diretório Central dos Estudantes (DCE’s)

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Brasil afora. Em nota, a entidade motivava os militantes a contribuírem com a criação de subsídios para se guardar a memória e a história da entidade recém-refundada174. Angélica Müller desenvolve, em sua tese de doutorado, a ideia de que o movimento estudantil durante seu processo de reorganização na década de 1970 fez usos constantes do passado como forma de legitimar seu retorno através da UNE. A autora cita o exemplo do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE), em 1977, em que “entre as discussões pautadas no Encontro, diferentes propostas convergiam para a necessidade de fazer ‘propaganda’ da UNE” (MÜLLER, 2011, p.02). Tornou-se, assim, imperativo para o movimento realizar “históricos” da entidade, a fim de recuperar a “sua própria trajetória”. Essa reconstituição do passado acabou servindo como eixo norteador para novas propostas que ora ressaltavam as qualidades do modelo no qual estava pautada aquela articulação, ora contestavam, apontando os erros cometidos no passado (Idem). Toda esta questão analisada por Müller influencia diretamente na memória que chega ao tempo presente sobre a participação estudantil nos anos 1970, e sobre as ações atuais do movimento no desejo de marcar sua posição e inserir sua memória na história oficial. A transmissão dessa história, por meio das rememorações dos congressos, das políticas internas do movimento na luta pela reconstrução da UNE e das publicações feitas pela UNE logo em seu retorno ao cenário político, tinha como intencionalidade resgatar a história da UNE na década de 1960 como um momento auge da utopia e mobilização estudantil. Esta visão contribuiu significativamente para definição de uma memória que privilegia o mito em torno da geração do 1968 frente àquela que ressurgia respaldada pela sua importância no passado. Da análise da produção bibliográfica sobre o movimento estudantil apreendemos que esta também contribuiu para a formação de uma memória coletiva sobre os anos 1970 e 1980 e colocou em oposição a militância estudantil dos anos 1960 com as das décadas posteriores. As publicações sobre o Movimento Estudantil durante os anos de dura repressão vividos em especial entre 1968 e 1974 declinaram significativamente sobre o controle ditatorial. A produção bibliográfica sobre as lutas estudantis é retomada concomitante ao processo de transição democrática e marca este processo formando um novo ciclo de estudos caracterizado pela diversificação das produções acadêmicas e suas linhas de orientação de estudos. Segundo Menegozzo, A retomada da produção acadêmica e editorial sobre as lutas estudantis em meados dos anos 1970, concomitante ao avanço da luta contra a ditadura, marca a 174

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ). Revista Movimento. Rio de Janeiro, nov./dez. 1981.

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emergência de um ciclo de estudos que se estenderá por toda a década de 1980. Marcada por um aumento da média de produção e por uma seminal diversificação da forma de apresentação dos trabalhos, mais especificamente os de caráter científico, este bloco apresenta uma dinâmica interna deveras mais complexa que os anteriores, atravessado por múltiplas tendências, muitas vezes conflitantes. Isto, num contexto tão complexo quanto as intrincadas tendências nas quais os vários estudos se entrecruzam (MENEGOZZO, 2013, p. 86).

Dentre as publicações durante a transição democrática, apesar de sua primeira edição ser de 1968, destaco o livro de Arthur Poerner intitulado: O Poder Jovem, que contou com reedições em 1973, uma publicação clandestina organizada pelo DCE da PUC de São Paulo, em 1979, publicado pela editora Civilização Brasileira, em 1995, pelo Centro de Memória da Juventude, de São Paulo e em 2004 pela editora Booklink. Esta obra foi lançada com o objetivo de reunir documentos e contar a história da instituição através do registro de fatos “relevantes”, projeto que até então não havia sido realizado. O historiador Alberto Saldanha ressalta que o livro O poder jovem foi responsável por fundar uma narrativa tradicional da história da UNE e articular a identidade do movimento que se reúne em torno dela, acionando as categorias “memória” e “mito político”. Desta forma, Poerner, lançando mão de uma vasta documentação, ainda que sem aprofundar muito os temas ou problematizá-los, articula uma auto-imagem para o movimento estudantil, em um primeiro momento, “nacionalista e progressista” e, posteriormente, “revolucionária e socialista” (SALDANHA: 2005, 15-16). No contexto do ciclo de produções que vai de 1974 até 1991, conforme definição de Carlos Menegozzo, destaco algumas produções como as de Hayashi (1986) e Cavalari (1987) 175 . Tais estudos de caráter acadêmico são alguns dos representantes deste ciclo e constituem sínteses importantes em termos de narrativa, acompanhando, de algum modo, o deslocamento em curso quanto aos temas para a pesquisa historiográfica, assim como destaca o autor Carlos Fico: foi nos anos 1980 que se presenciou a consolidação e ampliação do interesse pelo estudo do período Republicano brasileiro, acentuado desde a década de 1960 (FICO: 2004, 22-23). Analisando todas as publicações sobre o ME até 1991, Carlos Menegozzo afirma que o quadro da produção acadêmica e editorial dedicada ao movimento estudantil na segunda metade dos anos 1980 foi muito conturbado, marcado por tendências muitas vezes conflitantes. Tendências essas que incluíam o desejo de reaproximação com tradições interrompidas, refletida no esforço de registrar as lutas em curso nos 175

CAVALARI, Rosa Maria Feiteiro. Os limites do movimento estudantil, 1964-1980. 1987. 306f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1987; HAYASHI, Maria Cristina P. Innocentini. Política e Universidade: a consciência estudantil – 1964/1979. 1986. Dissertação (Mestrado em Educação) Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1986.

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anos 1970 como uma continuidade das ocorridas nos anos 1960; passando pelo esforço por conhecer mais e melhor a dimensão histórica das lutas dos anos 1960, menos que seu aspecto sociológico; até a tentativa, seminal e predominantemente ensaística, por entender a dinâmica particular da participação política estudantil nos anos 1970 e 1980. Pois a isto se soma a enorme pressão mitificadora suscitada pela comemoração dos 20 anos passados de 1968, materizalizada numa série de obras documentárias produzidas ao longo de 1988 (MENEGOZZO, 2013: 93).

Apesar de para fins deste trabalho o foco está em analisar mais detalhadamente apenas algumas produções que considero mais significativas deste período para dialogar com a pesquisa aqui desenvolvida, destaco estas analises de Menegozzo que fez um estudo de todas as produções bibliografias do período, visto que em sua síntese, o autor traz elementos importantes para este trabalho, em especial pensando como a produção bibliográfica também contribuiu para a formação de uma memória coletiva sobre os anos 1970 e 1980 e para a formação de uma oposição entre a militância estudantil dos anos 1960 com as das décadas posteriores. Citando Mirza Pellicciotta, Carlos Menegozzo em seu livro chama a atenção para o fato de os estudos produzidos em 1988 (rememorando os 20 anos do 1968), referenciados ou não nos anos 1960, terem contribuído em para consolidar os sentidos e as formas de engajamento predominantes naquele período, como uma espécie de paradigma. De acordo com o autor, um paradigma frente ao qual as mobilizações estudantis dos anos 1980 passam a ser interpretadas como deficitárias, enfraquecidas, fragmentadas, enfim, como manifestações problemáticas. Isso parece mais evidente em obras produzidas nesse período nas quais é mais evidente o esforço por se comparar as manifestações dos anos 1960 e 1980, tais como Reis Filho e Moraes (1988) 176 e Medina (1989) 177, por exemplo. O que se nota nestas obras, é a presença de depoimentos e reportagens nos quais os anos 1960 são valorizados como um tempo de luta e de “utopia”, enquanto os anos 1980 são caracterizados como uma época de desmobilização, de “falta de paciência” do jovem para a política 1988 (MENEGOZZO, 2013, p. 94).

A interpretação de Carlos Menegozzo aponta para a construção de um mito em torno da geração de 1968, demonstrando como a bibliografia produzida no período foi uma das responsáveis pela criação de uma memória que valoriza essa geração e a opõe àquelas que a sucede na luta política, a geração da transição democrática. Tal questão também está presente no trabalho de Abramo178, analisado por Menegozzo.

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REIS FILHO, Daniel Aarão; MORAES, Pedro de. 1968, a paixão de uma utopia. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988. 177 MEDINA, Cremilda Celeste de Araújo (Org.). 1968-1988: nos passos da rebeldia. São Paulo: CJEECA/USP, 1989. v. 1. 178 ABRAMO, Perseu; ABRAMO, Bia. (Org.). Um trabalhador da notícia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

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Segundo a autora, é sob “o enfraquecimento desses atores estudantis” ocorrido a partir da década de 1980 que as formas e sentidos de atuação característicos dos anos 1960 – e que na época eram apontados por parte da própria esquerda como sintomas de um radicalismo inconsequente – são alçados a “modelos ideais de atuação”. Modelos “frente aos quais todas as outras manifestações juvenis aparecem como desqualificadas para a política” (ABRAMO, 1997, p. 27 op. cit. MENEGOZZO, 2013, p. 94).

Ainda de acordo com Abramo, a imagem dos jovens dos anos 19[60] plasmou-se como a de uma geração idealista, generosa, criativa, que ousou sonhar e se comprometer com a mudança social. [...]. essa reelaboração positiva acabou [...] por fixar assim um modelo ideal de juventude: transformando a rebeldia, o idealismo, a inovação e a utopia como características essenciais dessa categoria etária (ABRAMO, 1997, p. 31).

Em oposição a esta imagem, de acordo com as análises de Abramo interpretadas por Carlos Menegozzo, considerando a produção bibliográfica sobre o tema no referido período, percebemos que a juventude dos anos [19]80 vai aparecer como patológica porque oposta à da geração dos anos [19]60: individualista, consumista, conservadora e indiferente aos assuntos públicos, apática”. Em suma, “uma geração que recusa-se a assumir o papel de inovação cultural que agora, depois da reelaboração feita sobre os anos [19]60, passava a ser atributo da juventude como categoria social”. Nesses termos, “o problema relativo à juventude passa então a ser a sua incapacidade de resistir ou oferecer alternativas às tendências inscritas no sistema social” (MENEGOZZO, 2013, p. 94).

Para Abramo e Menegozzo, a produção bibliográfica de caráter memorialístico do fim dos anos 1980 marca um campo que vai predominar na memória que se forma sobre a militância estudantil num momento de consolidação da democracia. Até mesmo as pesquisas produzidas como sínteses da atuação estudantil durante a ditadura não são capazes de romper com essa memória que se forma também influenciada pela produção bibliográfica, pois o foco de análise, mesmo na reconstrução narrativa, recai sobre o 1968 em detrimento aos anos de 1970 e de 1980, que passam a ser segundo plano e, na sequência, se tornam subestimados pelas produções que classificam esse tempo como uma desmobilização estudantil e analisam negativamente a influência dos partidos políticos que surgem após 1979 no interior do movimento. Por conta de tal cenário, a utopia narrada relativa à atuação da geração de 1968 aparece de forma destacada nestas produções e cria um mito em torno da geração estudantil de 1968, como as vítimas que se tornam heróis. Sendo assim, de acordo com Menegozzo, até meados de 1978, a memória de 1968 é meio controversa, havendo uma avaliação muito crítica sobre os desvios vanguardistas e

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militaristas. Em 1978 179 , a revista Cara a cara publicou um artigo contendo o debate realizado entre as tendências em 1977, onde se observava um consenso entre as correntes quanto ao caráter vanguardista das ações de 1968, cujo desfecho serviria de exemplo sobre o que deveria ser evitado, em termos de métodos, na conjuntura no fim dos anos 1970. Para Menegozzo, a essa visão contrapõe-se Poerner (1979), cujo viés essencialista se projeta também na interpretação da “volta dos estudantes às ruas” em 1977. Por outro lado, várias passagens da revista Desvios dão uma perspectiva na qual a referência positiva em 1968 era muito forte, refletindo-se nas músicas, nas palavras de ordem e nos métodos de mobilização. Havia uma ambiguidade no próprio movimento, mas na campanha pela memória vigorou a visão positiva. Uma significação inequivocamente positiva daquele período, e muito pouco crítica em relação aos desvios militaristas e vanguardistas, passa a ser fomentada ainda nos anos 1980 com a crise do movimento estudantil, numa equação que opõe a distopia do período às utopias do passado. Segundo Carlos Menegozzo, na metade da década, essa situação é muito clara e referências sobre isso aparecem em alguns artigos publicados entre 1986 e 1987, na revista Humanidades e também na dissertação de Helena Abramo, publicada em livro em 1994. Já a partir da metade dos anos 1990, de acordo com Menegozzo, há uma tendência na bibliografia a um processo crescente de reação a essa idealização dos anos 1960, em que existe um esforço para se entender as especificidades dos anos 1970 e 1980 a partir de uma chave bastante clara: a de que no período se inauguram novas formas e sentidos de participação política que não chegam a se consolidar numa proposta sistemática e coerente. Em síntese, podemos caracterizar três momentos: nos anos 1970, a significação de 1968 é ambígua, com referências críticas ao vanguardismo e ao militarismo e outras, como a de Poerner, muito positivas; nos anos 1980, a significação é muito positiva, em contraste com a "apatia”; e em meados dos anos 1990 ocorre um esforço de se perceber nessa apatia novas formas e sentidos de engajamento, o que relativiza a possibilidade e mesmo pertinência de uma "retomada" de 1968. Desta forma, percebemos como a valorização do 1968 e o ofuscamento da geração de 1970/80 são presentes. Mesmo no auge da retomada estudantil em 1977, as produções divergiam, ora avaliando positivamente, ora avaliando negativamente a participação estudantil; na sequência sucedeu-se uma tendência a produções que retomavam o 1968 com o olhar do mito do poder jovem, que buscavam reavivar o ideal de mobilização, no entanto, em CENTRO DE ESTUDOS EVERARDO DIAS. “Cara a Cara com o Movimento Estudantil”. Cara a Cara, Petrópolis, ano 1, n. 1, 1978. 179

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nenhum momento a geração de 1970/80 apareceu como centro das produções bibliográficas e, por conseguinte, sua presença não teve destaque na memória. A geração da transição democrática brasileira passou a ser tema central de análise de produções acadêmicas no fim dos anos 1990 com a dissertação de mestrado de Mirza Pellicciotta; nos anos 2000, recebeu novo impulso com os trabalhos de Maria Paula Araujo e a partir de 2010, propagou-se ainda mais com os trabalhos de Angélica Müller e Renato Cancian, já citados ao longo deste trabalho. 5.2 Os eventos de memorialização sobre o movimento estudantil da transição Para além da produção historiográfica e dos usos políticos do passado feitos pelo próprio movimento, inclusive no campo da criação de lugares de memória, existem outros elementos capazes de incidir sobre a memória, como a realização de eventos voltados para relembrar um determinado acontecimento. Este é o caso do Seminário 20 Anos da Reorganização do Movimento Estudantil ocorrido em 1997 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e também da Exposição 30 Anos III ENE promovida pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por ocasião dos 30 anos do III ENE, em Belo Horizonte em 2007. Escolhemos estes eventos selecionados por representarem uma iniciativa de criar uma memória sobre o ME da transição, colocando como foco central o ano de 1977, na busca de “incluir” a geração da transição na memória sobre o movimento estudantil durante a ditadura e romper com uma lógica de memorialização até então focada na geração da luta armada e sua vitimização heroificada. 5.2.1 O Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos Entre os dias 22 e 25 de setembro de 1997 foi realizado na PUC – SP o Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos 180. A data e o local escolhidos fizeram parte da iniciativa de memorialização do ano 1977 a partir do fato que ficou conhecido como “invasão da PUC”, no dia 22 de setembro daquele ano, em que, após a notícia da realização do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) pelo movimento estudantil, os estudantes reunidos na PUC sofreram duras ações da repressão, e o prédio da universidade foi totalmente depredado pelas tropas do coronel Erasmo Dias, conforme analisado no capítulo 3.

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Cf. no anexo 05 algumas fotografias do evento, consultadas no acervo da Fundação Perseu Abramo.

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Reservemos especial atenção ao nome escolhido para o evento: o seminário não se remetia aos 20 anos da invasão da PUC (conforme a data e o local escolhidos para a realização do mesmo), mas sim aos 20 anos da reorganização do ME, evidenciando a compreensão de que a realização bem-sucedida do III ENE foi o coroamento do processo vivido ao longo do ano de 1977 que passava pela reorganização do movimento estudantil brasileiro em torno da busca de reativar suas entidades representativas e das mobilizações de rua que aconteceram principalmente no mês de maio daquele ano.

Cartaz do Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Arquivo pessoal de Beatriz Tibiriçá.

O evento foi organizado pela Fundação Perseu Abramo (FPA), entidade vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT) que tem por objetivo desenvolver ações culturais e de formação política. O homenageado Perseu Abramo foi um importante jornalista atuante na resistência à ditadura e era pai de Laís Abramo e Helena Abramo, ex-militantes estudantis no contexto da transição. Dona Zilah Abramo, viúva de Perseu Abramo, vice-presidente da FPA em 1997, durante a mesa de encerramento do evento, no dia 25 de setembro de 1997, declarou quais eram os objetivos daqueles três dias de encontros: Nós não queríamos simplesmente uma sessão de hora das saudades e nem de obaoba: “como éramos heroicos e magníficos!” A gente queria realmente uma análise crítica e, enfim, que isso aqui servisse como ponto de partida para continuar investigando e é isso que a gente pretende fazer. Quero dizer que foi muito importante para nós ver que apesar de todas as divergências de cada pauta, houve um clima muito interessante de felicidade, congraçamento, a gente viu a felicidade das pessoas se encontrarem de novo depois de tanto tempo e eu acho que isso daí foi muito legal181.

Dona Zilah, uma das responsáveis pela organização do evento, em sua fala deixou claro os objetivos que motivaram a realização do seminário: promover uma análise do papel

ABRAMO, Zilah. Mesa de encerramento. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Fita cassete, RME, fita 09/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 181

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histórico do movimento estudantil na transição democrática. Neste sentido, o evento propunha rememorar 1977 não somente a partir do saudosismo interno da própria geração da transição, mas sim repensá-lo academicamente. A estrutura dos encontros remontava a este objetivo acadêmico. Foram organizadas mesas de debates com vários convidados e, ao final, ocorria a abertura para debate público. Os três dias de eventos apresentaram a seguinte organização das mesas:

Data

Nome da mesa de debates “A conjuntura de 1977 e a

22/09/1997

reorganização do Movimento Estudantil”

Composição da mesa Aloizio Mercadante Laís Abramo André Singer Lúcio Kowarick Celso Marcondes Alon Feuewerker

24/09/1997

“O movimento estudantil em

Kazumi Munakata

1977”

Paulo Moreira Leite Geraldo Siqueira Mauricio Bárbara

25/09/1997

“Identidade juvenil e

Eugênio Bucci

vivência universitária nos

Dagô Marquesi

anos 1970”

Marcos Galvão - Kalóy

A base da composição das mesas era de ex-militantes estudantis de São Paulo no contexto da transição democrática e baseada na representatividade das diferentes tendências atuantes dentro do movimento. As mesas, montadas a partir de uma estrutura acadêmica, foram fundamentadas no compartilhamento de memórias dos representantes das antigas tendências estudantis, que por alguns momentos chegaram a reviver, 20 anos depois, a intensidade dos debates das assembleias estudantis, em que as divergências ideológicas ficavam evidentes. Entre os temas escolhidos para serem abordados no seminário, estavam o contexto político brasileiro em 1977; o papel ousado do ME no alargamento dos limites da transição; as especificidades do movimento estudantil e sua organização em tendências; e os diferentes olhares sobre a questão cultural e comportamental que permeava a geração dos anos 1970. Nesses debates a divergência entre as antigas tendências estudantis foram evidenciadas,

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traduzidas naquele contexto em uma disputa pela memória, no qual os representantes dos diferentes grupos debatiam sobre quais táticas foram mais acertadas. Os debates que se seguiram a cada mesa também foram tecidos a partir de fios de diversas memórias compartilhadas pela plateia presente, em sua grande maioria composta de ex-militantes do ME naquele contexto. De uma forma geral, as falas não se constituíam em perguntas direcionadas aos membros da mesa a partir de cada exposição, mas sim narrativas de lembranças suscitadas naqueles que compartilhavam daquela memória coletiva e que também desejavam dar sua contribuição naquele momento de revisão de um passado que era pessoal e coletivo. “É inacreditável que a gente tenha levado 20 anos para discutir aquele ano de 77”, afirmava Alon Feuewerker durante a segunda mesa de debates do seminário. Esta referência à demora em se revisar o passado de militância estudantil foi evidenciando em muitas falas. De fato, até esse contexto, não há referências a outros eventos de memorizalização da transição, bem como as produções historiográficas ainda estavam muito focadas nos estudos sobre a luta armada e na geração de 1986. O seminário na PUC-SP representava o início da busca de uma revisão desse passado histórico, distante 20 anos de 1977 e 12 anos de 1985, ano do fim da ditadura. Laís Abramo, ex-militante da tendência Refazendo, em sua fala durante o debate que se seguiu ao final da terceira mesa de debates do evento, pontuou essa ausência de memória, em 1997, sobre a geração da transição: Hoje é o terceiro dia, terceira mesa e de repente me dá a sensação, pensando no que aconteceu esses três dias, que o objetivo desse seminário era um pouco fazer um elo, como se disse aqui ontem. O movimento estudantil de 77 era uma coisa meio invisibilizada na história. Você tinha 68, depois o Impeachment e não tinha 77. Então, o primeiro objetivo era um pouco esse de mostrar: isso aconteceu, foi assim, teve esse papel, significado e era um pouco fazer um elo com hoje. [...] Não era só para a gente naquela época se reencontrar aqui, como aconteceu, mas para a gente dialogar também com o pessoal que hoje está na universidade. E a outra coisa que também para mim ficou muito claro nessa mesa é como você pode tentar recuperar a memória. Como a memória é uma coisa heterogênea. [...] Não existe uma história a ser contada sobre 77. Existem múltiplas histórias 182.

Laís Abramo também indicou três objetivos realizados pelo seminário na PUC: 1) dar visibilidade à geração atuante no movimento estudantil durante a transição, evidenciando seu papel histórico; 2) criar um elo entre a geração do ME do contexto da realização do evento; e 3) compreender a memória da geração da transição de uma forma plural.

ABRAMO, Laís. Mesa de encerramento. Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos. Fita cassete, RME, fita 08/09. São Paulo: Fundação Perseu Abramo Centro Sérgio Buarque de Holanda, 2007. 182

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O desejo de visibilidade é expressado na busca, através desse evento, de se criar uma memória da geração da transição, que se coloque com importante significado político entre a geração da luta armada e do 1968 e a geração do impeachment em 1992, eliminando a lacuna sobre seu passado militante que ficou abafado entre as pactuações da transição e somente 12 anos após o fim da ditadura buscava rediscutir seu papel. A criação de um elo com a geração do contexto da realização do evento, em 1997, foi expressada na fala dos militantes e também no convite para a participação dos militantes estudantis na época do evento de rememoração de 1977. Percebemos nesse fato um desejo que haja a criação de uma memória no tempo presente e para o tempo presente, buscando valorizar os legados deixados pela geração da transição à nova geração. Já a pluralidade de memórias da geração da transição indicava para uma memória coletiva que estava em disputa no desejo de construir uma narrativa sobre seu passado militante. A diversidade entre as tendências se expressaram intensamente nos dias do evento e traziam à tona um debate muito anterior na busca de definir quem venceu a ditadura e quem teve a tática mais acertada que garantiu a vitória. Apesar do desejo expresso pelos ex-militantes presentes no evento e pela instituição organizadora em dar seguimento à analise histórica da geração estudantil da transição, as iniciativas que se seguiram foram pontuais: a criação de uma lista de e-mails no qual circulariam textos memorialísticos produzidos pelos ex-militantes do 1977 e a publicação do livro Cale-se, de Caio Túlio Costa, ex-militante da Libelu e que narrou a partir de suas próprias memórias e de outros contemporâneos o início da rearticulação do movimento estudantil na USP em 1973, mantendo o caráter memorialístico da produção. Desta forma, o Seminário Reorganização do Movimento Estudantil – 20 Anos contribuiu com os primeiros passos rumo à construção de uma memória coletiva sobre a geração da transição a partir de um olhar dela mesma sobre seu passado. Contudo, muito tempo se passou até a retomada desse debate, que, mesmo completando atualmente (2015) 38 anos do 1977 ou 30 anos do fim da ditadura, ainda é visto por essa mesma geração como uma memória silenciada.

5.2.2 A Exposição 30 Anos III ENE em Belo Horizonte Em 2007, a Universidade Federal de Minas Gerais realizou uma série de eventos para comemorar seus 80 anos. Como parte dessa comemoração, a Diretoria para Assuntos Estudantis (DAE) da UFMG, juntamente com o Projeto República, inaugurou, no dia 04 de

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junho de 2007, a Exposição 30 Anos III ENE, no saguão da Faculdade de Medicina da UFMG, na Avenida Alfredo Balena, nº 190, local em que há 30 anos os estudantes brasileiros foram duramente reprimidos após tentar realizar o III Encontro Nacional de Estudantes, na busca de reconstruir a UNE. O Projeto República, vinculado ao Departamento de História da UFMG, é coordenado pela professora Heloísa Starling, vice-reitora da UFMG em 2007 e ex-militante do movimento estudantil mineiro no contexto da transição. Heloísa foi uma das responsáveis pela organização da exposição que apresentou 138 peças entre fotografias, recortes de jornais e documentos183.

Foto da abertura da Exposição 30 Anos III ENE, 04 de junho de 1977. Disponível no site da Faculdade de Medicina da UFMG.

Documentos históricos referentes à tentativa de realização do III ENE em Belo Horizonte, como fotografias, produções internas do ME e jornais, foram plotados pelos corredores da exposição que contava com um texto de abertura escrito por Jânio Bragança, ex-militante da tendência Liberdade e presidente do DCE UFMG em 1977. O dia 04 de junho marca a virada do povo de Belo Horizonte em relação à pacificação pretendida pela ditadura militar no período pós-AI-5. A ditadura viera pra ficar, todo mundo já sabia. Desbaratara as oposições legalizadas, impusera o bipartidarismo, uma espécie de sistema de partido único para as oposições, suspendera eleições, esmagara os que enveredaram pela resistência armada. Em dezembro de 1968, com o AI-5, reagira com o fechamento ainda maior ao descontentamento emergente. Descera a paz dos cemitérios, diziam e era a mais espessa de todas as noites do Brasil. Mas o que começou a ser abalada pela vitória do MDB, em dezembro de 1974, um partido que circunstancialmente se tornara o canal de protesto do povo brasileiro à farsa institucional e tudo o mais que amargava e enojava imensas maiorias.

183

Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

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À derrota eleitoral de 1974 seguiu-se, entre os soluços do pacote de abril, o grande silêncio do poder. E aí veio o discurso do general Geisel em agosto de 1975, enterrando as ilusões de abertura. Quem ouviu – ou até também viu – não se esquece. Escorria ameaça de cada palavra. Pois vieram os estudantes ao início de 1977 aqui e ali manifestações pipocavam e cresciam pelo país. Dias nacionais de luta pelo fim da ditadura começaram a ser convocados e liderados por arrumações provisórias de entidades estudantis. O 04 de junho de 1977 deveria coroar tudo isso. E refundar a UNE, União Nacional dos Estudantes – a partir do III ENE – Terceiro Encontro Nacional de Estudantes, em Belo Horizonte, que fez reunir em nossa cidade estudantes de todo o país. Não pudemos. Fomos selvagemente atacados pela ditadura militar, que fez mais de 1100 prisões neste dia, do DA Medicina, onde nos concentrávamos para realizar o Encontro, às ruas do centro da cidade; do Palácio das Artes ao interior de igrejas. Mas no 04 de junho e nos dias que se seguiram sentimos o vinculo profundo que brilhava de novo, à luz do dia, unindo os estudantes e o povo da cidade em torno da luta pela democracia. Não pudemos refundar a UNE, o que só viria a acontecer dois anos depois, em 1979. Mas naquele dia estudantes de todo o Brasil e o povo de Belo Horizonte, em solidariedade ativa nas ruas do centro, mandaram um recado claro ao poder: já era o começo do fim da ditadura. Jânio Bragança Presidente do DCE UFMG em 1977

O texto de abertura da exposição evidencia o olhar para a realização do III ENE em Belo Horizonte como a possibilidade de coroamento das lutas empreendidas pelos estudantes ao longo do ano de 1977. Contudo, apesar da repressão vivida no dia 04 de junho de 1977 e, portanto, da derrota da iniciativa estudantil, Jânio Bragança indica no texto a compreensão sobre o significado desse evento como um importante passo no caminho que levará ao fim da ditadura militar. Nesta perspectiva, não há derrota, mas um passo para a vitória. No dia 04 de junho de 2007, após a abertura oficial da exposição, ex-militantes estudantis de 1977 inauguraram uma placa comemorativa no DA Medicina da UFMG, com os seguintes dizeres: Aqui, há 30 anos, quando o país vivia numa ditadura militar, 400 estudantes de todo o Brasil resistiram ao cerco policial, em vigília de 24 horas dentro do D.A. Medicina para garantir a realização do III ENE – Encontro Nacional de Estudantes – e a reorganização da UNE. Belo Horizonte, 04 de junho de 2007.

O desejo de manter viva a memória desse fato histórico, destacando sua importância para a história do movimento estudantil nacional e para o movimento mineiro, era parte dessa exposição. O objetivo de tornar conhecido e reconhecido seu papel histórico no contexto transicional brasileiro é o que estava colocado na narrativa construída e validada na exposição. A singularidade da experiência mineira também fora valorizada nessa narrativa ao evidenciar o protagonismo do ME da UFMG na organização do evento, na liderança da ação de resistência à repressão na Faculdade de Medicina e no apoio social da população de Belo Horizonte.

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Eventos de memorialização como a Exposição 30 Anos III ENE tornam-se uma forma de ampliar a visibilidade desse evento histórico e validá-lo junto à memória social. Outras marcas de memorialização do 1977 em Belo Horizonte já haviam ocorrido anteriormente por iniciativa dos ex-militantes estudantis. Uma delas, a que marcava os 20 anos do III ENE, foi noticiada no jornal Estado de Minas, com reportagem de Maria Lúcia Delgado, no dia 04 de junho de1997, cujo título era “Ex-estudantes reúnem-se hoje para lembrar os dias de luta e comemorar a vitória sobre a ditadura”. Segundo a reportagem, “O encontro não aconteceu, mas a luta deu resultados. ‘Eles passaram e nós ficamos’, resume Jânio Bragança. ‘Fomos vitoriosos. Conquistamos as liberdades políticas e fundamos a UNE em 1978’”. Neste sentido de comemoração, em 1997, os ex-militantes do ME da capital mineira, presentes na tentativa frustrada da realização do III ENE, se encontraram no DA de Medicina da UFMG para uma reunião de comemoração de sua marca como agentes vitoriosos na luta contra a ditadura. Da mesma forma, a abertura da exposição em 2007 contou com esse caráter de reunir exmilitantes e de comemorar sua vitória na luta política. A exposição, contudo, gerou maior visibilidade a essa comemoração, marcada pela construção de uma narrativa voltada ao público em geral, que valorizava a memória da geração da transição. As marcas da memorialização de 1977, mesmo que referenciadas em eventos como o III ENE em Belo Horizonte que sofreu diretamente com a ação militar, não se baseia na rememoração da vitimização, como comumente percebemos nas ações de memória sobre a ditadura e a resistência de 1968. A memorialização de 1977, por meio desses eventos – geralmente organizados com a participação e iniciativa de ex-militantes do contexto transicional – evidencia a busca de uma memória vitoriosa, em que o que se lembra é o resultado final dessa luta política. A busca é por associar a geração da transição à conquista da democracia e interpretar cada derrota nesse processo, como um passo para o fim da ditadura.

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CAPÍTULO 6 - JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E AS POLÍTICAS DE MEMÓRIA NO BRASIL PÓS-DITADURA

Este capítulo tem por objetivo discutir as políticas de memória a partir de dois sujeitos: o Estado e o Movimento Estudantil (ME). Sobre o primeiro, buscaremos compreender seus caminhos de justiça de transição aplicada a políticas de memória, resultando na criação de espaços de memória, como o Memorial da Resistência de São Paulo, por iniciativa estatal. Sobre o segundo, nos ateremos às políticas de reparação concedidas a ele pelo Estado dentro do processo de justiça de transição. Também avaliaremos os usos políticos que o atual ME faz de seu passado. Deste modo, por meio do exame das políticas propostas pela União Nacional dos Estudantes (UNE), procuraremos estabelecer uma narrativa sobre o período da ditadura no tempo presente. Acreditamos que a análise de ambos os elementos contribui de forma efetiva para a compreensão da memória concebida sobre a ditadura militar, a transição democrática e o movimento estudantil no presente como parte de um processo iniciado no período ditatorial e ainda inacabado, constituindo, por conseguinte, um campo em disputa.

6.1 Os caminhos da justiça de transição no Brasil

Em todas as experiências de transição para democracia, observa-se que os arranjos institucionais são um dos temas necessariamente abordados, para o enfretamento do legado de abusos contra os direitos humanos. A cultura autoritária também sempre está em pauta, por ter propiciado ou tolerado esse tipo de crime. (CIURLIZZA, 2009, p. 25). Em entrevista à Revista da Comissão da Anistia, Javier Ciurlizza 184 , advogado peruano do Centro Internacional para Justiça de Transição, acredita que O que mudou nos últimos trinta anos foi o fato de que as transições já não se resolvem somente por meio de um pacto político entre setores específicos ou de um mero acordo de paz, mas também pela via do enfrentamento – jurídico, político e ético – às consequências das ditaduras e dos conflitos armados. Em particular, adquirem maior relevância os direitos que as vítimas do passado autoritário têm de saber o que ocorreu e de obter as reparações correspondentes, além de que os responsáveis pelos referidos crimes sejam punidos de acordo com a lei. Entende-se hoje que, para garantir que o passado não se repita, é preciso enfrentar os desafios da justiça transicional de forma séria e responsável. (CIURLIZZA, 2009, p. 25). Javier Ciurlizza foi secretário executivo da Comissão de Verdade e Reconciliação e chefe de gabinete do Ministério da Justiça do Peru, departamento em que também atuou como oficial de chancelaria no processo de extradição do ex-presidente Alberto Fujimori. Já assessorou projetos de justiça transicional no Paraguai, no Quênia, na Indonésia e na Libéria, com ênfase nas Comissões da Verdade e no estabelecimento de processos judiciais por violação dos direitos humanos. 184

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Para melhor compreensão da justiça de transição brasileira, averiguemos seu conceito. De acordo com Paul Van Zyl, vice-presidente do International Center for Transitional Justice e professor da NewYork University School of Law, a justiça transicional pode ser entendida “como o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos”. Ainda segundo o autor, o objetivo da justiça transicional “implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação.” (ZYL, 2009, p. 32). Logo, Paul Van Zyl demonstra que, para implementar a justiça de transição, é necessário um conjunto inclusivo de estratégias formuladas para o enfrentamento do passado, assim como para olhar o futuro a fim de evitar o reaparecimento do conflito e das violações. Tendo em conta que, com frequência, as estratégias da justiça transicional são arquitetadas em contextos nos quais a paz é frágil ou os perpetradores conservam um poder real, deve-se equilibrar cuidadosamente as exigências da justiça e a realidade do que pode ser efetuado em curto, médio e longo prazo (Idem). No caso do Brasil, a justiça transicional que se seguiu em tempos democráticos levava marcas da transição política vivida no contexto ditatorial: não houve julgamento de perpetradores; ao passo que a reparação das vítimas, a busca pela revelação da verdade e a repactuação da sociedade só teve inicio muito posteriormente e ainda encontra-se em vias de consolidação. Desta forma, no que diz respeito a avanços nesse processo, em curto prazo, com o governo ainda controlado pela mesma elite dominante durante a ditadura, não houve avanços na justiça de transição; em médio prazo, alguns passos foram dados, verificando-se, portanto mudanças substanciais apenas em longo prazo. A ditadura no Brasil foi oficialmente extinta em 1985, com a eleição por colégio eleitoral de Tancredo Neves à presidência. Após 21 anos de governo militar, o político mineiro seria o primeiro civil a exercer o cargo máximo da República, entretanto, falece antes de tomar posse. A função, então, é transferida para seu vice José Sarney, político na época da Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Essa gestão representava uma continuidade política. De fato, a Constituição de 1988 tornou-se um marco político da concretização da democracia, porém, a transição no campo da memória não obteve o mesmo encaminhamento. As políticas de memória não acompanharam a consolidação da democracia política e, apesar de ter os primeiros passos dados na década de 1980, ainda hoje apresenta traços inacabados. Sarney não realizou nenhuma ação no sentido de apurar os crimes cometidos durante a ditadura nem empregou políticas de memória. O passado não fez parte do programa do

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governo federal brasileiro até 1998, com Fernando Henrique Cardoso. Durante todo esse intervalo, ocorreram pequenas ações governamentais, como por exemplo a devolução do terreno que pertenceu à UNE, na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, durante o governo Itamar Franco. A primeira iniciativa que representou um compromisso com a justiça de transição no Brasil não partiu do Estado, mas sim da sociedade civil. O empreendimento de colaboradores da Igreja era liderado por dom Paulo Evaristo Arns, da Arquidiocese de São Paulo, e do pastor presbiteriano Jaime Wright, que contou com o apoio do World Council for Churches (Conselho Mundial das Igrejas). Entre 1979 e 1985, uma equipe com aproximadamente 30 pessoas reproduziu secretamente milhares de páginas de documentos confidenciais relacionados ao julgamento do Superior Tribunal Militar de cerca de 707 casos “subversivos”. Os documentos foram organizados e publicados pela imprensa católica no relatório Brasil: Nunca Mais, que se tornou o único best-seller não ficcional de toda a história da literatura brasileira. Sendo assim, como afirmado acima, a iniciativa partiu da Igreja e não do Estado, que por muito tempo seguiu deixando a questão no silenciamento. Na análise de Alexandra Barahona de Brito (2002, p. 204), doutora em política e mestra em política latino-americana pela Universidade de Oxford, no Brasil, não houve uma coligação entre partidos políticos e grupos não governamentais em busca da verdade e da justiça de passadas violações de direitos. Por permaneceram isolados, movimentos como os da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Comissão de Justiça e Paz da Igreja Católica, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos (que formaram parte do Comitê pela Anistia) e do Grupo Tortura Nunca Mais não obtiveram êxito na sua busca por justiça, sendo essas lutas atos que pouco sensibilizaram e/ou mobilizaram a sociedade. A transição para o Estado de direito foi pautada pelo silenciamento que, segundo Edson Luis de Almeida Teles (2007, p. 20), limita ou elimina a superação frente ao drama vivido diante da violência estatal. O maior malefício do consenso foi silenciar os modos divergentes com que as subjetividades sociais rompem com o modelo racional, obscurecendo as interpretações da memória e mantendo um incessante embate entre dominação e resistência dentro da normalização do regime constitucional. A oposição entre razão política pacificadora e as memórias doloridas obstrui a expressão pública da dor e reduz a memória às emoções, acabando por construir um novo espaço social justamente sobre a negação do passado. O caráter elitista e excludente presente na transição brasileira fica explicito no processo de escolha de seu primeiro governo civil pós-ditadura. (TELES, 2007, p. 20).

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O primeiro governo civil deixou à margem a participação de toda a sociedade civil. O caráter sucessório indireto demonstrava os limites do Estado de direito, alicerçado na manutenção de uma elite interessada em manter-se no poder. Muito próximo dos militares, Sarney baseou-se no apoio desses para governar. De acordo com Barahona de Brito, diferentemente da Argentina, no Brasil houve um alto grau de continuidade política entre o regime militar que saía e o governo seguinte, com José Sarney, político tradicional ligado ao partido de apoio aos militares durante a ditadura. Na sequência, em 1991, durante o governo Fernando Collor de Mello, ocorreria a criação da Lei n° 8.159, de 08 de janeiro de 1991. Primeira legislação que buscava regulamentar uma política nacional de arquivos públicos e privados, trata-se de tema central para a justiça de transição, por dizer respeito à disposição de documentos públicos e privados de interesse social à consulta pública. Segundo Mariana Joffily (2011, p. 1060), tal lei “reforçava os direitos e restrições previstos na Constituição, estipulando um prazo de 30 anos para o acesso aos documentos confidenciais que dizem respeito à segurança nacional e de 100 anos para os papéis que pudessem atingir a intimidade, a honra e a vida privada dos indivíduos”; continuando, assim, a causar polêmica. Embora o acesso aos arquivos da ditadura seja defendido em termos do “direito à verdade”, a discussão se torna bastante ampla e complexa ao se considerar as informações de caráter pessoal presentes nesses documentos. A discussão legal também prossegue em seu curso. Em 18 de novembro de 2011, a Lei nº 12527 (que regula o acesso à informação) foi aprovada, o que representou passos significativos na abertura dos arquivos185. A lei garantiu acesso a documentos públicos de órgãos federais, estaduais, distritais e municipais, com exceção de casos de proteção da segurança do Estado e de informações pessoais. Essa norma também põe fim ao sigilo perpétuo de alguns tipos de informações, estabelecendo vários graus de segredo e de períodos de sigilo correspondentes. Outro grande ponto de destaque é a garantia de que documentos relacionados a violações dos direitos humanos não poderão ser classificados como ultrassecretos, logo, não poderão ter período de sigilo prolongado, pelo contrário, terão acesso imediato. Contudo, de 2012, ano em que a lei entrou em vigor, e até o momento [2015], o acesso aos arquivos é um tema em aberto. Ainda durante o governo Collor, foi descoberta a Vala de Perus. O local clandestino no Cemitério Dom Bosco era usado por militares no desaparecimento de ossadas. Alheio à 185

Cf. Lei na íntegra disponível em: . Acesso em: 15 de julho de 2014.

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pressão das famílias dos mortos e desaparecidos políticos, o governo Collor não se posicionou, deixando a cargo dos governos local e estadual a apuração dos fatos. Enquanto o governo federal não se envolveu na procura de restos mortais, a então prefeita Luiza Erundina criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) e uma comissão para a procura de desaparecidos políticos. Em 1995, o presidente Fernando Henrique Cardoso aprovou a Lei das Vítimas de Assassinato e Desaparecimento Político. A Lei no 9140, de 04 de dezembro de 1995, reconhecia a morte de 136 militantes políticos, ao mesmo tempo que impunha ao governo pagamento de indenização a familiares das vítimas. Ressaltemos que essa lei foi fruto do trabalho da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (vinculada ao Ministério da Justiça, criada naquele mesmo ano pelo governo federal). Como uma de suas ações, a Comissão publicou o Dossiê das Mortes e Desaparecimentos Políticos a partir de 1964. O documento contou com o apoio da Anistia Internacional. Vale destacar que, no Brasil, a luta dos familiares foi mais centrada na busca pela verdade do que nos esforços pelo castigo e pelo reconhecimento por parte do Estado da responsabilidade pelas mortes e desaparecimentos. Incipientes, as políticas desenvolvidas no país seguem ser dar passos significativos. Alguns poucos casos foram apurados e algumas indenizações foram liberadas; as políticas de memória, entretanto, não foram suficientes para concluir a transição da memória. Ainda sobre a Comissão, ela foi incumbida de pesquisar e identificar as pessoas mortas ou desaparecidas entre 1961 e 1979, período este abrangido pela Lei da Anistia, devido à sua participação em atividades políticas consideradas ilegais pelo regime ditatorial. Contudo, no resultado do trabalho obtido pela Comissão não havia argumentos capazes de responsabilizar as instituições militares sobre os desaparecimentos e mortes, e sim o governo brasileiro. Em agosto de 2007, a Comissão teve outro de seus resultados publicado em livro: Direito à memória e à verdade, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Segundo Maria Celina D’Araujo, esse livro foi o primeiro documento oficial do governo federal a “declarar publicamente que a ditadura foi responsável por atos como decapitações, esquartejamentos, estupro, tortura de modo geral, ocultação de cadáveres e execução, mas nenhuma ação judicial visando a punir os responsáveis teve sucesso” (D’ARAUJO, 2012, p. 42). Um passo importante para os encaminhamentos da justiça de transição no Brasil no âmbito da reparação foi a criação da Comissão de Anistia, pelo Ministério da Justiça em 2001

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através de Medida Provisória (MP) do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. Em 2002, no governo Lula, foi aprovada, por unanimidade no Congresso Nacional, a Lei n°10.559. Criada para regulamentar o art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (que prevê o direito à reparação), a Comissão surgiu com duas funções básicas: reconhecer a anistia política aos perseguidos e prover, quando atinente, reparação econômica186. Em 2008, durante segundo mandato do presidente Lula, as atribuições foram ampliadas. Agregaram-se à dimensão da reparação a promoção do direito à memória e à verdade e o fomento à educação para a cidadania e os direitos humanos. Desta forma, a Comissão passou a ter como função a análise dos pedidos de indenização formulados por pessoas impedidas de exercer atividades econômicas e profissionais por motivação política entre 1946 e 1988. A Comissão recebeu 57.637 requerimentos, a maioria já julgada, mas a estimativa é que o trabalho só seja finalizado em 2016187. Reconheçamos o ano de 2001 (com a criação da Comissão da Anistia para o andamento da justiça de transição no Brasil) como marco importante para o processo de justiça de transição que traz à tona um debate sobre a memória da ditadura militar; esta análise, aliás, dá maior ênfase à análise da justiça de transição brasileira após tal marco temporal. Tomemos a memória também como uma forma de “presentificação” do passado. Por meio dela, encontramos uma forma de perceber os sentidos que o passado assume nos dias atuais. E a partir das marcas que a sociedade hoje traz de sua história que este trabalho busca desenvolver a análise da memória, além de tentar perceber como, na procura pela definição dos sentidos do passado, a sociedade também pode configurar conflitos de memória. A Comissão da Anistia, por meio do Estado, trouxe para a pautal social a discussão sobre a ditadura militar. Até então, o período do regime militar estava silenciado na sociedade brasileira, permanecendo ainda em construção e avançando junto com os andamentos da justiça de transição. Para Paulo Abrão, presidente da Comissão Nacional da Anistia, enquanto alguns países da América Latina basearam parte de sua transição para a democracia por meio de Comissões da Verdade, o governo brasileiro criou por meio de lei a Comissão de Anistia, um órgão composto por membros da sociedade civil inserida na estrutura organizacional do Ministério da Justiça brasileiro, cujo

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Disponível em: . Acesso em: 22 nov. 2012. 187 BRASIL. Ministério da Justiça. Apresentação. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília: Comissão de Anistia, 1° semestre 2009. p. 5-8. Disponível em: .

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propósito precípuo é apreciar os requerimentos de reparação aos cidadãos que foram perseguidos por motivação exclusivamente política e atingidos por atos de exceção, na plena abrangência do termo, no período entre 18 de setembro de 1946 a 05 de outubro de 1988, a fim de reconhecer os atos de exceção cometidos pelo regime ditatorial e promover o direito a reparação. (ABRÃO et al., 2010, p. 64).

Segundo Abrão, para se compreender os rumos da justiça de transição brasileira, é necessário lembrar-se de dois fatores fundamentais. Em primeiro lugar, a questão da anistia percebida como reivindicação popular. A anistia no Brasil, diferentemente da de países vizinhos do Cone Sul (Argentina e Chile, por exemplo), foi amplamente reivindicada socialmente no final dos anos 1970. Naqueles países, ela foi uma imposição do regime contra a sociedade. No caso brasileiro, o papel da sociedade civil na resistência ao regime militar, incluindo a Campanha pela Anistia, influenciou as políticas de reparação. De acordo com Abrão, um dos problemas das ações de reparação é seu aspecto indenizatório e trabalhista. Tal aspecto ocorreria “em razão das demissões arbitrárias, restabelecendo direitos laborais e previdenciários lesados ao longo do tempo” (ABRÃO, 2010, p. 33). Não foram, porém, apenas os trabalhadores que participaram da luta política. Como definir a reparação, por meio de indenização, a alguém na condição de estudante? Mais do que isso: até que ponto, pelo viés financeiro, é possível reparar um mal vivido? Em nossa análise, no entanto, devemos ter em conta que foram a partir desses tipos de reparação que surgiram os primeiros passos para uma repactuação social através da busca da verdade e da justiça. A Comissão da Anistia ganhou um caráter moral com a criação das Caravanas da Anistia. Essas ações deslocam o local de apreciação dos requerimentos administrativos de anistia do Palácio da Justiça em Brasília para as localidades onde ocorreram os fatos ou, ainda, para grandes eventos de visibilidade pública. Segundo Paulo Abrão,

As caravanas da Anistia consistem na realização de sessões públicas itinerantes de apreciação dos requerimentos de anistia política pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, órgão responsável por promover o reconhecimento oficial do Estado brasileiro de sua responsabilidade pelo cometimento de uma série de atos de exceção, na plena abrangência do termo, contra brasileiros e estrangeiros, materializados em perseguições políticas que ensejam um direito a reparação constitucionalmente assegurado. (ABRÃO, 2010, p. 53).

As sessões públicas da Caravana da Anistia possuem um apelo simbólico. Elas começam com a exibição de vídeos editados especialmente para a ocasião. Neles, são apresentados sujeitos e grupos relacionados aos processos que serão julgados, seguido por uma homenagem aos que arriscaram sua vida pela causa da luta contra a ditadura. Dentro

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desse papel simbólico, a sessão também cumpre o papel de contar aquela história às gerações mais jovens. Após esse momento, iniciam-se os julgamentos, que seguem todo rigor jurídico. Há busca de provas e evidências e ampla discussão dos casos. As conclusões são repassadas publicamente através da leitura da deliberação pelo conselheiro relator. Na sequência, passase a palavra ao anistiado, para que se manifeste; e, em seguida, é feito publicamente o pedido de perdão oficial do Estado brasileiro pelos erros cometidos contra a pessoa. Sem dúvidas, esse momento possui grande aspecto simbólico de reparação moral individual e que ganha aspectos coletivos. Mesmo quando não são aprovadas indenizações, o pedido de perdão representa um repactuar da sociedade, um passo na construção da memória, ao serem reconhecidos seus feitos e seu papel de luta pela democracia do país. De acordo com Paulo Abrão, as caravanas da anistia acabaram por se constituir um mecanismo privilegiado do processo de justiça de transição brasileiro ao traduzir em espaço de consecução simultânea à efetividade ao direito constitucional à reparação, para a da preservação da memória e busca da verdade; para a democratização do acesso à justiça e melhoria na prestação jurisdicional administrativa; para a realização de uma justiça restaurativa; para a mobilização social em trono da necessidade de uma justiça de transição no Brasil e para a promoção de uma educação e cultura para os direitos humanos. (ABRÃO, 2010, p. 56).

Uma vez mais, podemos afirmar que a Comissão da Anistia, através de ações como as Caravanas da Anistia, contribuiu enormemente para o processo de justiça de transição brasileira ao promover o direto à reparação, à preservação da memória e à repactuação da sociedade. Contudo, apesar dos grandes benefícios propiciados pela Comissão da Anistia, ainda está colocado na pauta a busca pela verdade e pela justiça. Nesse campo, a ação militar tem sido a mesma desde a transição impedindo que os crimes contra os direitos humanos cometidos pelos agentes do Estado, durante a ditadura, sejam julgados, assim como a busca pela verdade que venha a questionar seu papel na história brasileira, agindo veemente contra qualquer iniciativa de revisão da Lei da Anistia. Ao examinar a atuação da Comissão da Anistia, Daniel Aarão Reis a vê como uma “esquizofrenia”, pois, de um lado, a Comissão da Anistia, órgão do Estado, pede, em nome do Estado, desculpas aos torturados pelos prejuízos e males, materiais e morais, provocados pelos torturas e pelos torturadores, indenizando-os de acordo com a lei. De outro, as Forças Armadas, instituição deste mesmo Estado onde se realizaram as torturas como política de Estado, negam ter sequer existido torturas, salvo cometidas por indivíduos isolados, exceções lastimáveis a regra geral. (REIS, 2013, p. 231).

Essa “esquizofrenia” é um indicativo do quanto os militares, mesmo sendo parte do Estado, continuam refletindo uma posição que nega a violação dos direitos humanos, na qual

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estiveram diretamente envolvidos durante a ditadura brasileira, sem receber do Estado nenhuma intervenção, mantendo uma liberdade de ação e formação frente ao passado ditatorial. Alexandra Barahona de Brito também classifica como “esquizofrênica” a política de violência estatal do passado no governo Lula. Por um lado, ocorreu a adoção dos maiores esforços até então realizados na justiça de transição no país; mas, por outro, restringiu-se o acesso aos arquivos, de tal modo que o governo resistiu a qualquer tentativa que buscasse questionar a Lei da Anistia de 1979 (2013, p. 244). Os militares seguem com poder de veto quando se trata de discutir o desrespeito aos direitos humanos durante a ditadura. Segundo Maria Celina D’Araujo, mesmo com a redemocratização do país, “nenhum governo ousou encarar com determinação o tema da subordinação dos militares ao poder civil e democrático.” (2013, p. 44). Muito expressiva durante o governo Sarney, a tutela militar existente diminuiu nos governos seguintes, mas sem que a autonomia fosse alterada. De fato, Fernando Collor ousou enfrentar os militares ao redefinir cargos e instituições, porém, conforme aponta Maria Celina D’Araújo, a instabilidade política impossibilitou grandes avanços nesse sentido. Nos anos seguintes, seguiu-se um acordo de não retornar a temas que “incomodassem” as Forças Armadas. Já no governo Lula, como destaca Maria Celina D’Araujo, alguns setores do Poder Executivo feriram tal pacto. Exemplo disto foi o debate promovido pelo então Ministro da Justiça Tarso Genro. Em 2004, ele declarou ser favorável à revisão da Lei da Anistia. O político gaúcho defendeu a abertura dos arquivos secretos da ditadura, além de afirmar que “anistia não era perdão ou esquecimento e que os torturadores teriam de ser julgados.” (D’ARAUJO, 2013, p. 45). Depois de vários desdobramentos gerados pela oposição dos militares às declarações do Ministro, o presidente Lula vetou o debate. Em 2009, o atrito entre as Forças Armadas e o governo ganhou novo elemento. De acordo com Maria Celina D’Araujo, em dezembro de 2009, quando Lula assinou o decreto que criava o Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos, o setor militar reagiu ao item do Plano que versava sobre a criação de uma Comissão Nacional da Verdade, cuja função era “promover esclarecimento público das violações de Direitos Humanos por agentes do Estado na repressão aos opositores.” (2013, p. 47). As lideranças do Exército, com apoio do ministro da Defesa, ameaçaram renunciar a seus cargos caso fosse criada a Comissão. Lula, por sua vez, aceitou novamente a demanda militar e postergou o assunto, que só seria retomado anos depois, no governo de Dilma Rousseff, ex-

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presa política torturada durante a ditadura. Em 18 de novembro de 2011, a presidente aprovou a Lei nº 12.528, que estabelecia a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Composta por sete membros 188 nomeados pela presidente da República, os integrantes da Comissão possuem mandato de dois anos, e tem como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 (fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional189. Para que o Brasil possa seguir em frente sem carregar o peso do esquecimento forçado, é necessário voltar ao passado e esclarecer os acontecimentos que ainda permanecem na penumbra. Neste sentido, a Comissão da Verdade assumiu um importante papel na repactuação social. Mas, sem dúvidas, esse passado a ser reavivado através do trabalho da Comissão está em disputa no tempo presente. Em História do tempo presente, Suellen Neto Pires Maciel evidência que o trabalho da Comissão precisa ser orientado pela “compreensão de que o espaço em que atua é marcado por disputas entre visões diferentes do passado brasileiro e por tensões inerentes a períodos marcados por violações aos direitos humanos.” (MACIEL, 2014, p.119). Evidenciando esta disputa de memória, as Forças Armadas lançaram notas criticando Dilma Rousseff, acusando-a de complacente com seu partido ao apoiar a punição daqueles que cometeram crimes de violação dos direitos humanos durante o período de ditadura. Assumindo postura diferente de seu sucessor, a presidente ordenou que o ministro da Defesa Celso Amorim censurasse a nota. Acusada de “despreparo” pelos militares, Rousseff pediu punições e ordenou que o ministro da Defesa solicitasse aos comandantes que administrassem internamente a aplicação da disciplina militar (D’ARAUJO, 2013, p. 47). Assim, 35 anos após a Lei da Anistia, foi criada a Comissão da Verdade no Brasil. Uma possibilidade para se compreender a Comissão da Verdade é a reflexão de Barbara Cassin sobre a natureza política da verdade. Sendo assim, a verdade da Comissão, a “verdade e reconciliação” não é uma verdade-original, é uma verdade-resultado. [...] Ela está ligada a uma ocasião e a um processo de construção190.

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Instalada oficialmente em 16 de maio de 2012 pela presidente Dilma Rousseff, a Comissão era composta por Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti Filho, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso Cunha. 189 Disponível em: . Acesso em: 08 jan. 2012. 190 Texto original: La vérité de la Commission ‘Vérité et Réconciliation’ n'est pas une vérité-origine, c'est une vérité-résultat. [...] elle est liée à une occasion et à une procédure de construction.

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A verdade da qual se fala na Comissão é uma verdade construída, que Cassin estabelece a partir de quatro definições sobre o conceito de verdade adotado no trabalho de comissões desse tipo: (1) a verdade factual; (2) a verdade pessoal e narrativa; (3) a verdade social, vinda como a verdade fruto do diálogo que relaciona vítimas e perpetradores; e, por fim, (4) a verdade que cura, base da justiça restaurativa. Para Barbara Cassin, esses são os passos ou planos para se construir uma verdade eficaz, que descarte a diferença simplista entra a verdade subjetiva, “falsa” e a verdade objetiva “verdadeira”. Esta verdade-resultado induz, de acordo com Cassin, uma verdade suficiente para produzir um consenso sobre o passado (CASSIN, 2004, p. 45). Ainda segundo Cassin, a verdade da Comissão da Verdade é uma verdade política, nem singular, puramente relativa, nem universal, válida para sempre, mas a verdade “particular”, consensual a dado momento, por uma comunidade que ela (a verdade) ajudou a fundar (Idem, p. 46). Desta forma, “A verdade é o mais fiel, o mais verdadeiro, é o melhor, ou seja, para o melhor, o mais útil e utilizável. Em suma, a ‘verdade’ da comissão é a ‘reconciliação” (Ibidem) 191. Logo, a autora nos mostra que a verdade, concebida de forma simplória, não se aplica à Comissão da Verdade. A verdade a qual se refere está naquela que gera consenso e, por sua vez, reconciliação da sociedade. Enquanto era criada entre 2012 e 2014, a Comissão Nacional da Verdade desenvolveu um relatório192 entregue, em dezembro de 2014, à presidenta da República Dilma Rousseff. O documento está disponibilizado na íntegra no site da CNV. O relatório da Comissão constrói uma narrativa histórica de sua criação e função, seguida de uma narrativa histórica do passado ditatorial, com apoio de pesquisadores para desenvolver os estudos ali apresentados. Estes foram baseados em documentações sigilosas, algumas abertas pela primeira vez para análise da comissão. Constam também o acesso à documentação dos órgãos de informação e repressão e os depoimentos realizados nas sessões da Comissão da Verdade, que buscou ouvir perpetradores e vítimas da violência estatal. Além das narrativas históricas, construindo uma versão oficial do Estado sobre este passado, o relatório apresentou 437 perfis de pessoas que foram mortas e/ou desaparecidas durante o período autoritário brasileiro. Ao encerrar um caso, como forma de síntese do relatório, a CNV indica conclusões e recomendações de medidas de esclarecimento, verdade, memória e justiça.

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Texto original: La vrai, c'est du plus vrai, et le plus vrai, c'est du meilleur, à savoir du meilleur pour, du plus utile, du plus utilisable. Bref, la ‘vérité’ de la Commission c'est la ‘réconciliation. 192 Disponível em:.

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O volume II desse relatório foi reservado ao exame de casos de violações de direitos humanos entre grupos/espaços como militares, trabalhadores, camponeses, igrejas cristãs, povos indígenas, universitários e homossexuais. No caso dos estudantes, o texto193 6 do volume II analisava-os dentro do contexto das universidades, concomitantemente com casos de professores universitários. A universidade, por sua vez, fora compreendida como um espaço múltiplo de atuação. O texto em questão valoriza: o caráter repressivo do regime para com a universidade; as leis que incidiram diretamente sobre ela; o sistema de informação e controle existente dentro desses espaços, bem como as experiências de violação dos direitos humanos ao longo de todo o período ditatorial. A narrativa histórica sobre as universidades, os estudantes e os professores tem início no começo dos anos 1960 e estende-se por todo o período ditatorial. Vale destacar que essa narrativa se construiu fora do discurso que tende a dar destaque aos casos de mortos e desaparecidos políticos e dos sistemas repressivos que atuaram até o início dos anos 1970 na universidade. O relatório ainda faz referência às lutas empreendidas pelo movimento estudantil após 1973, dando destaque para o ano de 1977, bem como para a violência e a vigilância estatal sobre o movimento estudantil até o final dos anos 1980, analisando, por exemplo, a atuação da Assessoria de Segurança e Informação (ASI), cuja estrutura era ligada ao Ministério da Educação (MEC) dentro das universidades no controle da ação estudantil, e que permaneceu ativa após o período de redemocratização. Ressaltemos, uma vez mais, que o presente estudo busca somente situar a Comissão da Verdade como parte de um processo de justiça de transição ainda inconcluso no país, mas que sinaliza maiores avanços, o que descarta, por conseguinte, uma análise mais aprofundada sobre o relatório produzido pela CNV. Ao observar as políticas de memória de uma forma mais ampla, é possível apreender que ela se ocupa do como uma sociedade interpreta seu passado e se apropria dele, com o intuito de moldar seu futuro e, como tal, constitui uma parte integrante de todo processo político, incluindo o progresso de uma democracia mais profunda. De acordo com Barahona de Brito (2002, p. 244), o que cada sociedade decide lembrar e esquecer determina em grande medida como vai projetar seu futuro. Ainda segundo Brito, a apropriação da história pelos atores sociais e políticos é especialmente intensa nesses momentos de transição de sistemas políticos. A história deixa de

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De autoria da pesquisadora da CNV Angélica Müller.

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ser domínio exclusivo dos historiadores, já que diferentes grupos sociais participam, em uma busca de significado; assim como na criação de mitos e memórias sobre o passado para justificar o presente e o futuro. Logo, o processo de recriação da memória forma parte integrante de um processo de construção de diversas identidades sociais, políticas ou culturais, que determinam como os distintos grupos sociais atuam na política nacional e os objetivos que desejam alcançar no futuro. Desta forma, a disputa pela memória traduz um processo inacabado na transição brasileira que faz parte da repactuação a ser promovida pelos andamentos da justiça de transição no Brasil, em vias de consolidação. Por fim, como pensa Dulce Pandolfi, “ao cidadão cabe o direito à memória e ao Estado o dever da memória” (PANDOLFI, 2009, p. 53). Portanto, o presente contexto da justiça de transição brasileira tem a clara marca de um passado que ainda está em aberto e, por isso, é definido por tantas disputas de memória entre vários setores da sociedade, sejam eles militares que atuaram como perpetradores, sejam pessoas que participaram da luta armada, seja a geração da Transição Democrática, sejam os parentes de presos e desaparecidos políticos, sejam aqueles que financiaram a ditadura, sejam aqueles que optaram por silenciar, entre tantas outras possibilidades. A busca pela verdade tem trazido consigo um incômodo na perspectiva de cada grupo, no sentido de serem múltiplos os olhares possíveis sobre aquele passado. Neste sentido, a disputa se dá na perspectiva de compreender os reflexos de trabalhos como o da Comissão da Verdade para o tempo presente e para o tempo futuro, bem como a influência desses na nossa identidade social. Como afirma Lucilia de Almeida Neves Delgado, “a memória é a base construtora de identidades e solidificadora de consciências individuais e coletivas.” (DELGADO, 2010, p. 38). Logo, por mais que a atualidade tenha uma aparência pacífica sobre o passado, ele pode não estar totalmente curado, sendo ainda capaz de deixar marcas profundas no tempo presente.

6.2 As políticas de memória para o movimento estudantil e os usos do passado

A fim de pensar os rumos da justiça de transição no Brasil, abordemos os aspectos relacionados ao movimento estudantil, destacando as políticas de memória desenvolvidas pelo governo que o afetou diretamente, e os usos políticos do passado realizado pelo ME no contexto da justiça de transição. A análise de tais elementos contribui na compreensão da

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memória que se forma no tempo presente sobre o movimento estudantil a partir das políticas de memória desenvolvidas no contexto pós-ditadura. Pensando o campo das políticas de Estado que envolve a reparação ao movimento estudantil, destaquemos inicialmente a assinatura de um protocolo, em 1994, em que o então presidente da República Itamar Franco devolve a posse do terreno da Praia do Flamengo194, 132, para a União Nacional dos Estudantes (UNE). O ato foi um primeiro passo oficial em torno da recuperação de um importante lugar de memória para o movimento estudantil. O local fora incendiado pelos militares em 1964, logo após o Golpe, e demolido em 1980, por ordem do general Figueiredo, como ação imediata em represália à iniciativa estudantil de tentar retomar o prédio para a recente recriada UNE após o Congresso de Salvador em 1979. O ex-militante estudantil e membro da União Estadual dos Estudantes (UEE) do Rio de Janeiro, em 1980, Amâncio Carvalho relata suas lembranças acerca do episódio: Houve uma reunião da diretoria da UNE, em fevereiro ou março, em Salvador e eu fui a essa reunião [...], que tinha como pauta essa questão do prédio. O que funcionava no prédio era o curso de teatro da Unirio. A ditadura tomou o prédio em 64 e depois deu uma utilização a ele. Criou essa escola lá. E os caras, PC do B e tal se reuniram e decidiram que iam tomar o prédio e a gente [PCB] era contra isso, porque sabia o que ia dar! [...] A União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro não ia concordar com isso porque na composição da chapa tinha o MR-8, nós tínhamos maioria de um. [...] Era maioria e eu era o presidente. Então, eu fui lá dizer que era contra e tal, mas não fui, não fiquei. Aí eles marcaram uma data para ocupar o prédio. Agora, você imagina que inteligência de fazer isso. Por mais que o setor moderado da ditadura estivesse no comando o “predão” era um símbolo! Eles jamais permitiriam! E foi o que eles fizeram, invadiram antes. Expulsaram os estudantes de lá de uma forma violenta, não batendo, mas invadiram e tocaram todo mundo de lá pra fora e começaram a demolir. [...] Isso foi em 1980. E eu estava no mandato de 79 pra 80 da UEE. E o que a gente fez? A gente começou a discutir como reagir àquilo, e surgiram pessoas que eram até da sociedade, não eram militantes estudantis. Tinha um cara lá, que era uma figura interessante, que propôs que eles entrassem com uma ação popular contra a derrubada. E na época ninguém nem sabia o que era ação popular. E a gente, imediatamente, apoiou a ideia, algumas forças eram contrárias, e a gente entrou e ganhamos a ação popular. Aí teve um juiz que, na verdade, era um cara, um juiz muito bom, e tinha um irmão que havia sido morto na época da ditadura, e esse juiz então concedeu a liminar da ação popular, mas os caras ignoraram e continuaram a derrubar. Ele foi lá de revólver em punho. Ele procurou o chefe da obra, de revólver em punho, e “você vai parar agora!”. Foi um escândalo nacional! Então, esse tipo de desgaste do regime militar a gente conseguia, era uma coisa concreta. E aí eles pararam a obra de demolição, mas conseguiram cassar a decisão do juiz. Mas a gente procurou e fez manifestações em frente ao prédio da UNE, até que teve uma grande manifestação e os caras baixaram

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Fundada em 1937, a União Nacional dos Estudantes (UNE) conquistou o espaço de sua sede em 1942. No local, anteriormente funcionava o Clube Germânia, fechado por conta da política de nacionalização de Vargas no contexto da Segunda Guerra Mundial. Após vários impasses, a construção foi entregue oficialmente à UNE, sendo ocupada pelo movimento estudantil. Entre 1942 e 1964, o prédio foi um importante centro político para os estudantes e para outras organizações que tinham na sede da UNE um ponto de referência tanto para a luta política como para atividades culturais, desenvolvidas especialmente pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE.

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o pau em cima da gente! Feriram deputados, vereadores, expulsaram a gente de lá, não tinha a menor condição! E demoliram o prédio inteiro195.

Como referido anteriormente, Itamar Franco devolvera, em 1994, a posse do terreno para a UNE, contudo, a posse do espaço só foi efetivamente reconquistada pelos estudantes em 2007, depois de uma série de ações organizadas pelo ME, quando o movimento ocupou o terreno que estava sendo utilizado ilegalmente como estacionamento. Somente após 14 anos, um novo passo foi dado quanto às políticas de memória que atingiriam diretamente o movimento de forma coletiva. Tratava-se do Projeto de Lei n° 3931/2008, que constava da reparação à União Nacional dos Estudantes 196. Contando com iniciativa do Poder Executivo, a Lei obteve votação favorável por todos os parlamentares de todos os partidos do Congresso Nacional, tornando, assim, a UNE foi a primeira entidade da sociedade civil a ser indenizada pelas perseguições sofridas durante a ditadura197. Em tal Projeto de Lei, de agosto de 2008 (transformado na Lei Ordinária 12260/2010)198, o governo reconheceu a responsabilidade do Estado pela destruição da sede da UNE e o envolvimento de agentes estatais no incêndio do prédio, na Praia do Flamengo, e na demolição do que restara do imóvel em 1980. Como forma de reparação ao ME, o Estado concedeu indenização ao ME, que viabilizou o início de um processo de reconstrução do prédio, já em posse novamente do movimento desde 1994, mas sem condições de ser reconstruído. Ainda a partir dessa Lei foi criada uma comissão que definiu o valor da indenização destinada à reconstrução da sede da UNE. A partir da análise da comissão e de acordo com o projeto, o valor não poderia ultrapassar o limite de seis vezes o valor de mercado do terreno, localizado em frente à Praia do Flamengo, na zona sul carioca. Em janeiro de 2008, a Caixa Econômica Federal avaliou o

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CARVALHO, Amâncio Paulino. Entrevista concedida à autora. Rio de Janeiro, 13 de dezembro de 2013. Apesar de ter o terreno de volta e de ter vencido o impasse judicial que envolvia as pessoas que ocuparam ilegalmente o espaço como estacionamento, a UNE vivia também o impasse de viabilizar a reconstrução de sua sede. Iniciativas como a campanha “Meu apoio é concreto” mobilizou ex-militantes, políticos, artistas e demais pessoas a ajudar financeiramente a obra, contudo, a quantia arrecadada foi insuficiente. Diante disto, a UNE, através de sua então presidente Lucia Stumpf e outros dirigentes da UNE, encaminharam ao governo federal, em 2008, um pedido de apoio para a obra (em que constava também o projeto de Niemeyer e várias assinaturas de congressistas) que foi recebido favoravelmente pelo presidente Lula. De seus desdobramentos, deu-se a Lei n° 12260/2010. 197 Disponível em: . Acesso em: 20 nov. 2014. 198 Tramitação do Projeto de Lei disponível em: . Acesso em: 20 nov.2014. 196

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terreno em R$ 5 milhões199. No entanto, a partir de novos cálculos, foi aprovado, em 2010, o valor de R$ 44,6 milhões para a reconstrução da sede da entidade, que a partir daquele momento iniciou o projeto para a reconstrução 200 . O projeto da nova sede da UNE foi executado por Oscar Niemeyer e, de acordo com a UNE, tem no momento [início de 2015] previsão de inauguração para fim de 2015, depois de vários adiamentos. Em declaração registrada na página 03 d’O Globo, de 12 de agosto de 2008, Lúcia Stumpf, presidente da UNE na ocasião da aprovação da Lei, declarou que a lei aprovada não era apenas uma vitória da geração atual, mas um momento de consolidação da democracia no Brasil. A representante dos estudantes brasileiros afirmava seu desejo de construir um discurso que demonstrasse a importância da UNE no passado e que desse à lei aprovada um caráter de avanço no reconhecimento do papel da UNE no passado em questão. Segundo Stumpf, “A impunidade daqueles torturadores gera consequências para a geração de hoje. Mas a devolução da sede é deslocada deste tema. É um momento de celebração.” A declaração da líder estudantil procurou ressaltar a significativa vitória dos estudantes do presente na concretização da devolução local da sede da UNE. Distanciando-se dos efeitos negativos herdados do período da ditadura, Lúcia Stumpf valoriza a visão da UNE vitoriosa, bem como a necessidade de se afirmar o lugar histórico da UNE ao reconstruir seu lugar físico. Para que a recuperação do espaço da sede da UNE fosse de fato efetivada, o movimento estudantil promoveu uma campanha, em busca de atingir os resultados da Lei que viria a ser aprovada em 2008. A campanha desenvolvida pelos estudantes em favor da construção do novo prédio da instituição ficou conhecida como “A UNE de volta pra casa”. Tal título tem a “forma de revelar os sentidos que aqueles militantes no presente buscavam dar àquela experiência; de retorno do espaço que lhes foi retirado violentamente; e àquele local, sua casa.” (PORTILHO, 2010, p. 124). A UNE de volta para casa seria uma forma de manter viva a identidade do ME no tempo presente. “A nova sede das entidades e o Centro Cultural do Movimento Estudantil terão a missão de resgatar e preservar a história da organização e das lutas empreendidas pelos estudantes brasileiros, contribuindo assim para a formação das novas gerações” (MULLER; REZENDE, 2011, p. 84).

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Disponível em: .Acesso em: 20 nov. 2014. 200 Sobre o projeto de reconstrução da UNE, cf. . Acesso em: 20 nov. 2014.

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Toda a campanha começou na comemoração dos 70 anos da entidade, em 2007, e seguiu sempre buscando relacionar o retomar da posse sobre o terreno e a reconstrução de sua sede na Praia do Flamengo com a história da entidade, de forma a afirmar, através do passado, a importância da UNE tanto na organização das lutas do movimento estudantil como para a história brasileira. Para a liderança estudantil, ter a sede de volta representava uma forma de reparação pela violação dos direitos sofridos de forma coletiva no passado. Acreditamos, aliás, que esse momento vai além, pois a campanha simbolizava uma disputa pela construção de uma memória no presente sobre o passado de luta do movimento. Em discurso da culturata de encerramento da 5ª Bienal da UNE, em 2007, Gustavo Petta, presidente da entidade na ocasião, falou ao público reunido através de um carro de som, em uma passeata que visava ocupar o terreno da antiga sede da UNE. Petta falava em nome dos estudantes, tomando para si a função de porta-voz, de cujo lugar simbólico discursava, e do qual destacamos o trecho abaixo. Em nome de todos aqueles que lutam pela democracia, em nome de todos que enfrentaram os porões da ditadura militar, nós voltamos para nossa casa, nós voltamos para a Praia do Flamengo, 132 [...] Esse é um momento histórico! Arthur Poerner, eu sei que você tá por aí e você já pode ir se preparando pra mais noites em claro, porque você vai ter que escrever mais um capítulo do Poder jovem. Mais um capítulo da história rica de lutas do movimento estudantil. Mais um capítulo. Um capítulo como aquele da luta do Petróleo é Nosso, da luta contra a ditadura, pela Anistia, pelo Fora Collor, da luta contra as privatizações, pela Reforma Universitária e, a partir de agora, a UNE volta pra sua casa. (Discurso de Gustavo Petta, apud PORTILHO, 2010, p. 124).

No discurso de Petta, a valorização da presença do movimento estudantil nas lutas políticas históricas do país. Mas há também o esforço de inserir a UNE na história política do Brasil, reforçando o papel dos estudantes como sujeitos dessa história ao recuperar um espaço que simboliza sua história. Para a entidade, a luta por sua reconstrução passava pela perspectiva do direito, tendo o Estado o dever de restituir aquilo que ele mesmo destruiu em tempos de ditadura, como uma grande “dívida histórica” com os estudantes. No entanto, antes de ser paga essa dívida, primeiro é precisa reconhecê-la e, assim, reconhecer a atuação dos estudantes na história do Brasil, concedendo a eles o protagonismo da luta política de uma época. Para Aline dos Santos Portilho,

A função que o Projeto de Lei 3931 cumpre é estabelecer a história, legitimá-la como verdadeira e, com base nela, localizar o Estado como culpado, o agressor, e a UNE, cujos serviços prestados à nação deveriam ser reconhecidos no presente –

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apesar de, no passado, terem sido o motivo da agressão – como vítima, a agredida. Isto é o que o instrumento, ao final, faz recuperando o relato oficial e articulando-o dentro da dinâmica de valores estabelecida no contexto político em que é gerado. Não significa afirmar que este foi um processo sem disputas; os votos dos relatores da Câmara dos Deputados e do Senado Federal indicam claramente que, se há uma leitura pactuada acerca do passado que heroiciza a atuação da instituição, no que diz respeito ao presente, há muitos questionamentos quanto aos seus modos de agir, especialmente ligados às posições que ocupa no campo político. (PORTILHO, 2010, p. 157).

Desta forma, percebemos que o projeto de lei aprovado converteu-se numa forma de legitimar a história da UNE. Além de afirmar sua veracidade, reconhece a entidade como vítima no passado, mas uma vitimização que heroifica. Entretanto, esse heroísmo não retira as criticas políticas aos seus posicionamentos atuais, tendo a aprovação do projeto gerado grande debate na Câmara e no Senado, apesar do aparente consenso na leitura do passado. Além disto, também vale a pena tomarmos o prédio da UNE a partir da perspectiva de “lugares de memória”, conceito que Pierre Nora (1993) utiliza para designar os indícios do passado no presente. Para o historiador francês, os lugares de memória são lugares que contém um tríplice significado: são lugares materiais, onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são lugares funcionais, porque têm ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas, e são lugares simbólicos, onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade - se expressa e se revela. Longe de ser um produto espontâneo e natural, os lugares de memória são uma construção histórica, e o interesse em seu estudo vem, exatamente, de seu valor como documentos e monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente ou não, os revestem com função de ícone. Sob esta ótica, podemos considerar que foi dado ao prédio da UNE, na Praia do Flamengo, 132, um papel de lugar de memória simbólico. Constituído historicamente, ganhou a atribuição de um centro de lutas políticas dos principais momentos da história brasileira, arbitrariamente destruído em 1964 com o objetivo de dispersar a luta política que encontrava ali um espaço de referência. À medida que foi sendo revisto, esse fato histórico hoje é entendido como um ataque, por meio de um incêndio, a um lugar de memória, um lugar de história, um símbolo de luta política. Assim, a luta por sua reconstrução, representa também a reparação da memória da entidade anterior ao incêndio, memória esta que foi diretamente atacada pelo regime ditatorial. Reconstruir o prédio é reaver toda a memória de um momento representativo da UNE; é reconstruir uma história do antes e do depois do fato que gerou novas marcas na memória, e, assim, afirmar uma memória única sobre uma UNE historicamente legitimada no presente por suas ações ao longo de todo seu passado.

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Juntamente com a recuperação do prédio da Praia do Flamengo, a UNE iniciou o projeto Memória do Movimento Estudantil. Na apresentação do projeto em seu site, a UNE declara: Eles lutaram contra a ditadura militar. Participaram da campanha O Petróleo É Nosso e das manifestações pelas Diretas Já. Foram às ruas com suas caras pintadas, pedindo o impeachment do presidente Fernando Collor. A história do Brasil não seria a mesma se não fosse a atuação dos estudantes. Agora é a vez de reunir informações sobre esses e outros momentos e destacar a importância da participação estudantil no país. Essa é a missão do projeto Memória do Movimento Estudantil, que vai organizar, preservar e divulgar essa história, além de resgatar uma parte importante da trajetória política do Brasil. O projeto vai coletar e dispor dados sobre a atuação do movimento estudantil, registrar depoimentos de suas principais personagens e realizar uma campanha nacional de incentivo à doação de documentos sobre o tema. Também vai criar condições para a organização do Centro de Memória do Movimento Estudantil, na futura sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro201.

Nesse projeto da UNE claramente há uma perspectiva colocada pelos militantes atuais na busca de reconhecimento pelo passado da entidade. O projeto tornou-se uma forma de construir uma história “não contada”, através da recuperação dos documentos que se traduzem numa recuperação da memória, na busca de legitimidade e na afirmação de sua identidade no presente. No campo individual, pensar a reparação ao movimento estudantil leva a refletir sobre a reparação a cada militante atingido pessoalmente pelo regime militar. São inúmeras as possibilidades pautadas pela diversidade de histórias pessoais que perpassaram a história da UNE. Por outro lado, é significativo destacar que a reparação individual não deixa de ser também uma reparação coletiva, isto é, seria ela reparação ou reconhecimento? Talvez não seja possível falar de reparação sem antes haver reconhecimento. A compreensão de que a memória dos grupos e pessoas que foram afetados diretamente pela ação violenta do Estado deve passar por uma ação de reparação que verse tanto pelo sofrimento com o qual foi atingida quanto pelo silêncio que se seguiu a ela. Desta forma, reparação e reconhecimento são ações que caminham juntas. Por conseguinte, políticas de reparação ao movimento estudantil ou a um de seus ex-militantes são, inicialmente, fruto de um reconhecimento que gera uma ação reparadora, seja financeira (pelos prejuízos ao Movimento Estudantil com a destruição da sua sede na Praia do Flamengo, por exemplo), seja uma reparação simbólica (como o pedido de perdão oficial do Estado pelos males sofridos por uma pessoa que teve seu passado marcado pela violência do Estado). 201

Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2012.

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Ainda sob a perspectiva de reconhecimento e reparação, a parceria que a Comissão da Anistia estabeleceu com a UNE ia ao encontro da busca pela reparação coletiva e que também perpassava pela busca da reparação individual. O relatório de 2007 da Comissão da Anistia evidencia a relação da entidade estudantil com o relato das ações desenvolvidas em conjunto: A parceria com a União Nacional dos Estudantes (UNE) rendeu diversos frutos em 2007, por constituir-se em representação nacional dos estudantes, com foco em ações para Juventude, segmento da sociedade fundamental na construção e preservação da memória políticas do país, merece especial destaque; inicialmente foram desenvolvidas, em parceria, as seguintes atividades: - Sessão real de julgamento durante o 50º Congresso da União Nacional dos estudantes, comemorativo aos 70 anos da entidade; - Troca de experiências e ajustes para realização de Caravanas da Anistia; - Troca de experiências para deflagração da campanha de coleta de documentos para o Memorial da Anistia;

Logo se percebe que a Comissão de Anistia estabelece, nesse documento, o início de um processo de reparação à entidade ao reconhecer o movimento estudantil como um movimento significativo para a trajetória política brasileira, além de assinalar a parceria que se consolidou na sessão de julgamento realizada durante o 50º congresso da entidade, o primeiro a ocorrer fora do espaço do Ministério da Justiça, e que também serviu de experiência para a implementação da Caravana da Anistia desenvolvida a partir do ano seguinte. A referida sessão realizada durante o 50º congresso da UNE julgou os casos de Aldo Arantes e de Jean Marck Von Der Weid, ambos ex-presidentes da UNE durante o período da ditadura civil militar. Incluída como parte da comemoração dos 70 anos da entidade, a sessão representou um avanço político na conquista do reconhecimento e da reparação almejados pela UNE. Os casos julgados, apesar de individuais, representavam uma reparação à entidade. O pedido de perdão oficial do Estado aos dois ex-militantes era pessoal mas ao mesmo tempo era um pedido de perdão à entidade afetada pelas arbitrariedades sofridas, bem como um reconhecimento da atuação da UNE na luta contra a ditadura militar, e da afirmação de seu passado. A 1º Caravana da Anistia ocorreu em abril de 2008 na cidade do Rio de Janeiro. Realizada em parceria com a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o lançamento da Caravana contou com a presença de diversas autoridades e representantes de diversos segmentos, dentre eles, a já citada presidente da UNE na época Lúcia Stumpf. De acordo com o relatório da Comissão da Anistia de 2008 “ainda nesta data, ocorreu o lançamento da Bandeira das Liberdades Democráticas, com a união dos primeiros retalhos doados pela UNE e ABI”. A referida bandeira visava consignar o compromisso de todos com a democracia e o

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respeito aos direitos humanos. Em cada atividade da Caravana da Anistia, as entidades parceiras são convidadas a contribuir com a construção da bandeira que se tornou o símbolo da caravana. Para o ME, a 1º Caravana tem valor simbólico. Ao compor um dos primeiros retalhos para o lançamento da Bandeira das Liberdades Democráticas, a UNE colocou-se como peçachave para a conquista dessa bandeira na história brasileira, sentindo-se, portanto, reconhecida por sua iniciativa histórica e por sua luta pela reparação, uma vez que foi em um congresso da UNE que ocorreu a experiência embrionária da Caravana da Anistia. A 3º Caravana da Anistia, por sua vez, também ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, em maio de 2008. Com parceria direta da UNE, tinha como objetivo homenagear os 40 anos do “maio de 1968”. Além do simbolismo da comemoração desse momento auge da mobilização estudantil e da repressão sofrida pelo movimento, o evento aconteceu no terreno da Praia do Flamengo, durante o ato político de reconstrução da sede do movimento estudantil. Esse simbolismo, marcadamente presente nessa Caravana, reforçava as campanhas pela memória do movimento estudantil e pelo “retorno da UNE pra casa”, tornando ainda mais fortes o discurso legitimador de um passado de luta e o reconhecimento no presente do passado da entidade. Durante encontro do Conselho Nacional das Entidades de Base (CONEB) realizado em janeiro de 2013, a UNE lançou sua própria Comissão da Verdade. Segundo a entidade, A UNE foi decisiva na luta contra a ditadura militar brasileira e reconquista da democracia. Porém, durante esse período, centenas de estudantes foram vítimas de tortura, prisões e assassinatos, sendo muitos casos ainda não esclarecidos. Pelo menos 46 ex-diretores da UNE estão listados como mortos pelo regime ou desaparecidos. Com a criação da Comissão da Verdade estudantil, a entidade pretende levantar informações sobre esses episódios, apurar detalhes junto a famílias, universidades e a partir do acesso a documentos oficiais e dos resultados da investigação da Comissão Nacional da Verdade, criada em maio de 2012 pelo governo federal202.

Seguindo a iniciativa da UNE, a UEE de São Paulo também criou a sua Comissão da Verdade. Tal empreendimento tem um sentido importante para a discussão que estabelecemos sobre a memória. De acordo com notícia disponível no site da UNE, o ex-ministro Paulo Vannuchi, presente na primeira reunião da Comissão da Verdade, declarou que a UNE tem que fazer valer sua força entre as Comissões da Verdade já existentes. Ela deve funcionar como uma rede nacional, bem como instruir comissões dentro das universidades e fazer a ponte entre o governo. Para Vannuchi, “Não esquecemos o futuro e por isso temos que 202

Disponível em: . Acesso em: 01 mar. 2013.

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lembrar do passado. Pela primeira vez o país faz uma reflexão formal sobre si mesmo. E quem conhece a sua história, a sua raiz, só pode ser para melhor.” 203. O ano de criação da Comissão da Verdade da UNE também foi o momento em que se rememorava os 40 anos do desaparecimento do presidente da UNE em 1973 Honestino Guimarães. O ex-líder da entidade foi o primeiro caso a ser investigado pela comissão, com resultados divulgados durante o 53o Congresso da UNE, por meio de dossiê criado pela Comissão. Realizado na cidade de Goiânia (GO), O Congresso realizou, dentre outras atividades de sua programação, uma passeata seguida de Ato Público em que apresentou o Dossiê e lançou a campanha “Onde está Honestino Guimarães?”. Para a ocasião, o Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE (CUCA) exibiu o documentário Arquivo Honestino. Como destaque, o discurso na abertura do curta de Daniel Iliesco, um dos atuais líderes estudantis: O Movimento Estudantil não é uma coisa qualquer. Nós somos herdeiros de uma luta que é de muito antes da gente nascer. É uma luta de quem foi perseguido, quem foi torturado, quem foi metralhado, pela ditadura militar, defendendo este país, defendendo a democracia, defendendo o nosso presente. (Discurso de Daniel Iliesco, militante do ME, Presidente da UNE em 2011) 204.

A fala do jovem reflete o quanto o atual movimento estudantil traz em seu discurso a presença de uma busca no passado de elementos que legitimem sua ação política no presente. O movimento faz uso político do passado ao reivindicar para si o papel de herdeiro direto de uma geração vítima da ditadura, sendo, desse modo, continuador de uma luta que não terminou e da qual é resultante. Nesse discurso, a valorização do atual movimento estudantil, com origem e lutando “muito antes da gente nascer”. Ademais, a geração dos “anos de chumbo” é heroificada e tomado como a matriz direta da geração atual. Logo, é possível inferir que a geração da transição democrática não é referenciada como parte do movimento que atuou durante a ditadura e da qual a democracia fundamenta-se como princípio. Destaquemos a grande valorização do atual Movimento a personagens estudantis como Honestino Guimarães, que os tornam como símbolo da luta estudantil do tempo presente. Fundamentando no passado a legitimação da atuação no presente, eles atribuem um significado de herança histórica e heroica.

203

Cf. ARQUIVO Honestino Guimarães. Direção: Paula Damasceno. 2007. (00:16:40), color. Disponível em: . Acesso em: 22 mar. 2013. 204 O documentário Arquivo Honestino Desaparecido foi exibido no 53o Congresso da UNE. Na mesma ocasião, ocorreu o lançamento do dossiê sobre o caso Honestino.

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Como referido anteriormente, a comissão da verdade da UNE produziu um dossiê sobre o caso de Honestino Guimarães, em que reuniu um levantamento da trajetória política, das vinculações partidárias e do contexto da atuação do desaparecido. Também analisou as circunstâncias do assassinato; a situação atual do caso; as outras comissões da verdade que possuem relações com o caso, como a Comissão da UnB (onde Honestino foi aluno); além das homenagens prestadas a ele postumamente. Como conclusão, a Comissão elaborou dez recomendações a serem encaminhadas sobre o caso na busca de verdade e justiça, dentre elas, destaco as homenagens a Honestino (como a designação de seu nome a uma praça no Campus da Universidade Federal de Goiás), a solicitação de audiência junto à CNV para analisar a situação do caso de Honestino e a incorporação do nome de sua mãe Maria Rosa Guimarães para a denominação da Comissão da Verdade da UNE205. A campanha “Onde está Honestino Guimarães?” e o Dossiê produzido pela Comissão da Verdade da UNE tinha por objetivo dar subsídios para o avanço nas investigações da CNV sobre o caso de Honestino. Um dos reflexos dessas ações, portanto, foi a reparação pública por parte do Estado, em 20 de setembro de 2013, por meio de cerimônia, conduzida em Brasília, pelo presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça Paulo Abrão. Durante a cerimônia que concedeu o título de anistiado político post mortem a Honestino Guimarães, Virginia Barros (conhecida como Vic Barros), presidente da UNE na ocasião, em seu discurso afirmava que

205

Na íntegra, as dez recomendações presentes no Dossiê Honestino da Comissão da Verdade da UNE: “1).Realizar, em colaboração com a equipe de apoio de Goiânia da Comissão da Verdade da UNE, um ato de homenagem a Honestino, para formal designação, com seu nome, de praça localizada no campus da Universidade Federal de Goiás; 2) Incorporar o nome da mãe de Honestino, batalhadora da verdade e da justiça falecida em setembro de 2012, à denominação deste comissão, que passaria à denominar-se Comissão da Verdade da UNE “Maria Rosa Guimarães”; 3) Consolidar levantamento bibliográfico sobre o movimento estudantil em Goiás e no Distrito Federal visando identificar pesquisadores que possam se somar às atividades da Comissão da Verdade da UNE no caso de Honestino; 4) Estabelecer um Grupo de Trabalho Conjunto entre as Comissões da Verdade da UNE, de Goiás e da UnB, procurando reunir esforços em torno do caso; 5) Solicitar audiência com representantes da CNV para verificação do estágio das investigações relativas a Honestino; 6) Solicitar entrevista com envolvidos em tentativas de elucidação do caso, passadas ou presentes, tais como o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), o ex-ministro José Luiz Clerot e o ex-preso político Ivan Seixas, visando à familiarização com os dados já disponíveis e a identificação e colaboração com possíveis linhas de aprofundamento das investigações; 7). Reivindicar junto à CNV a convocação de Paulo Malhães e José Brandt Teixeira, apontados pelo ex-agente do DOI-CODI/SP Marival Dias Chaves do Canto, como comandantes da operação em que Honestino foi detido, tendo em vista o esclarecimento das circunstâncias de seu assassinato e do paradeiro de seu corpo; 8). Reivindicar junto à CNV o acesso a documentos de órgãos pelos quais teria passado – Centro de Informações da Marinha (Cenimar), Pelotão de Investigações Criminais (PIC) em Brasília, e órgãos de repressão em Recife –, e que podem eventualmente lançar nova luz ao caso; 9). Reivindicar junto à CNV a constituição de um Grupo de Trabalho especificamente dedicado aos estudantes, considerando sua significativa participação na luta contra a ditadura, notadamente nas ações armadas; 10). Incorporar as recomendações deste relatório numa resolução sobre a Comissão Nacional da Verdade e o caso Honestino, a ser submetida ao plenário do 53º Congresso da UNE.”

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O dia de hoje é para a gente se orgulhar das lutas das gerações passadas que contribuíram para a gente ter um ambiente mais democrático atualmente. O exemplo do Honestino serve para a gente refletir sobre o aprofundamento da democracia no país e para repudiar os restos da ditadura que ainda se encontram, por exemplo, no Congresso206.

Vic Barros destacara o sentimento de orgulho do atual movimento estudantil de seu passado de atuação política, simbolizado na trajetória de Honestino Guimarães, que representa o heroísmo em nome da construção da democracia e do fim da ditadura militar, e que deve ser rememorado hoje como forma de dar sentido a lutas empreendidas pelo ME no presente. Para além da homenagem a Honestino, Vic Barros também fizera uma crítica ao Congresso Nacional e à política de transição no Brasil, destacando os resquícios da ditadura que ainda marcam nossa democracia. Além do caso de Honestino, a Comissão da Verdade da UNE produziu um dossiê sobre o caso de Helenira Rezende, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo, vicepresidente da UNE em 1968, militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), morta na Guerrilha do Araguaia em 1972. O caso de Helenira, pouco explorado até a elaboração do dossiê do UNE, ganhou maior investigação e divulgação. No entanto, tanto o caso de Helenira quanto o de Honestino (escolhidos para serem analisados por serem casos inconclusos até o momento) representam os estudantes que optaram pela luta armada e aqueles que tentaram resistir à dura repressão entre 1968 e 1973. No momento [início de 2015], após a produção dos dois dossiês, a Comissão segue avançando lentamente em suas produções referentes devido a interesses políticos da atual gestão. Interesses esses que não inclui a questão da memória e da verdade sobre o passado ditatorial como pauta. De toda a forma, a Comissão da Verdade da UNE aponta para um movimento, por parte da organização estudantil, de busca pelo sentido do passado e garantia da presença da UNE e dos estudantes na história oficial sobre a ditadura militar no Brasil. O discurso pode ser hegemônico, no sentido do reconhecimento da UNE desempenhando papel de sujeito central de lutas políticas, e na legitimação desta memória de um movimento estudantil. Contudo, a memória sobre o movimento estudantil durante a ditadura militar ainda é um campo em disputa.

206

NASCIMENTO, Luciano. Ex-companheiros de movimento estudantil lembram luta de Honestino pela democracia. Agência Brasil, Brasília, 20 set. 2013. Disponível em: . Acesso em: 01 dez.2014.

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6.3 Anistia para a geração da transição: o caso Jânio Oliveira Bragança

Os processos de reparação julgados pela Comissão da Anistia não têm contemplado a ação de resistência de todo o período ditatorial. A geração da transição (1974 – 1985) não está presente nesses processos principalmente por ter participado da abertura e da transição para a democracia, não sendo, portanto, afetada por prisões, torturas, exílios, mortes e desaparecimentos da mesma forma que a geração anterior. Casos como o de Vladmir Herzog, de Manuel Fiel Filho e da Chacina da Lapa ocorreram no período da transição, contudo, não foram tão numerosos, haja vista o processo de mudança de perfil de atuação da ditadura militar naquele contexto e das ações de denúncia realizadas por vários movimentos sociais, na busca de proteger os militantes. Além disto, casos de reparação para estudantes que atuaram durante a transição se tornam ainda mais distantes da Comissão da Anistia, uma vez que, além do momento político no qual atuaram, eles não estavam inseridos no mercado de trabalho, eram apenas estudantes, e, portanto, não teriam sido afetados materialmente de modo a justificar um pedido de reparação financeira e trabalhista, modelo no qual se baseia a reparação da Comissão da Anistia. Nesse cenário, um dos casos entre os entrevistados para esta pesquisa chama a atenção por sua peculiaridade. Trata-se de Jânio de Oliveira Bragança, militante estudantil mineiro, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1977. Ex-militante da tendência Liberdade, é anistiado político reconhecido por meio da Comissão da Anistia, na 110a Sessão de Julgamento da Comissão da Anistia, em 07 de agosto de 2008. Ao que tudo indica, Jânio é o único caso de anistia e reparação financeira concedida a um militante estudantil da geração da transição. Jânio Bragança decidiu entrar com processo junto à Comissão após um episódio ocorrido em 1991. Na ocasião, ele recebeu voz de prisão durante um evento de informática em Belo Horizonte. Em seu depoimento, Jânio fala sobre o episódio. No evento de informática tinham várias empresas e uma delas, a PRODENGE, que reúne os dados do Estado de Minas Gerais, disponibilizou o sistema de informações criminais lá para as pessoas verem, disponibilizar ficha corrida e tal. Estamos falando de 91 [...]. Eu fui lá nesse evento e estava lá um conhecido meu chamado Maurício Azeredo, primo do Eduardo Azeredo, que era governador de Minas! Aí o Maurício falou assim: “Vem cá, Jânio, ver sua ficha corrida!”, e eu respondi: “Que isso, Maurício?! Não tenho isso não!”. Eu fui lá, tirei minha ficha e estava com informações criminais em 1991. O policial me deu voz de prisão porque eu estava nos arquivos policiais como criminoso com processo em aberto. Ele queria me prender, o pessoal da PRODENGE não deixou ele me prender207. 207

BRAGANÇA, Jânio Oliveira. Entrevista concedida à autora. Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015.

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A esse episódio somou-se outro: Jânio tentou comprar uma arma em Itabira (sua cidade natal), mas não obteve autorização do Departamento Estadual de Operações Especiais, que alegou haver uma ação da União contra Jânio por atividades subversivas. A partir daquele momento, Jânio decidiu procurar seu advogado, Roberto Auad, a fim de exigir a remoção de seu nome dos registros policiais e pedir indenização à União208. Ao retirar o habeas data209, Jânio Bragança constatou que os relatos sobre ele nos registros da polícia tinham início em 1977, ano de maior expressão de sua atuação estudantil, quando esteve à frente da organização do III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE), em Belo Horizonte. Ademais, aqueles registros estendiam-se até 1989, ou seja, 10 anos após a promulgação da Lei da Anistia. Jânio Bragança relata que, desde o período próximo à sua formatura em 1983 até 1988, buscou emprego em várias empresas e instituições públicas, participando de seleções e de concursos, mas sempre era reprovado sem justificativas. A oportunidade de emprego viria apenas em 1988, quando foi contratado pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (COPASA). Durante o processo seletivo, solicitaram a Jânio um Atestado de Antecedentes junto à Polícia Civil. Ao dar entrada no pedido do comprovante, Jânio descobriu que em sua ficha constavam atos criminosos de subversão. A COPASA, por sua vez, dispensou a apresentação do Atestado, efetivando a contratação de Jânio, que passou a usar o documento como uma de suas principais provas no processo de anistia, por ser um registro capaz de comprovar que sofria perseguição política. De posse das provas, o advogado Roberto Auad entrou com processo junto à Comissão da Anistia, A ação tramitou de 2002 até 2008, quando foi julgada favoravelmente, concedendo a Jânio Bragança a declaração de anistiado político e reparação econômica referente ao período de 13/06/1977 a 17/12/1982, reconhecido pela Comissão como intervalo de tempo que fora perseguido. Em seu depoimento, Jânio Bragança analisa a importância de seu reconhecimento como anistiado político e a reparação financeira recebida que, para sua geração, possui valor simbólico, sendo o reconhecimento da importância de sua luta política e das marcas deixadas pela repressão em sua geração. Para além, representa o reconhecimento do Estado para com aquela geração, até então não contemplada nas políticas de reparação brasileira e que, mais uma vez, a deixava esquecida na memória da ditadura frente à geração anterior. Mesmo sendo 208

BARROSO, Carlos. A ditadura ainda não acabou. Estado de Minas, Belo Horizonte, 08 set. 2002. p. 15. Ação para garantir a uma pessoa o direito a acessar informações relacionadas a ela que façam parte de arquivos ou bancos de dados de entidades governamentais ou públicas, dando também o direito de pedir a correção de dados incorretos. 209

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um caso único, a experiência de Jânio Bragança é cheia de significados para a geração da transição, por ser o reconhecimento oficial por parte do Estado de seu papel político na luta pelo fim da ditadura e defesa dos valores democráticos.

6.4 O Memorial da Resistência de São Paulo e a construção de uma memória sobre a ditadura militar

Dentre as iniciativas da justiça transicional que cabem ao Estado, destaquemos a memorialização, como instrumento das políticas reparatórias que têm se consolidado no Brasil. Os lugares de memória são documentos e traços vivos que se constituem no cruzamento histórico-cultural e simbólico-intencional que lhes dá origem, coisa que os leva a resistir à aceleração da história, à marcha da coletividade em direção ao futuro [...], dotando-se, ao mesmo tempo, de uma surpreendente capacidade de adaptação e de atualização relativamente ao momento que passa, porque neles pulsa e se exprime, justamente, o balanço entre a História e a Memória. (ABREU, 2005, p. 216).

Esses espaços são criados pelo indivíduo contemporâneo diante da crise dos paradigmas modernos, identificando-se, pois, com esses espaços, ainda se unificando e se reconhecendo como agentes de seu tempo. O lugar de memória “obriga cada um a se relembrar e a reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade. Esse pertencimento, em troca, o engaja inteiramente." (NORA, 1993, p. 18). Neste sentido, Funes o memorioso, o personagem de Jorge Luis Borges, poderia, em um primeiro momento, passar a impressão de ser apto à função de historiador, dada à condição de inefabilidade de sua memória, mas, conforme o desenrolar da história, releva-se um incapacitado como ser pensante. Dono de uma memória que nada esquecia, era incapaz de produzir uma história por si próprio, a qual está inegavelmente ligada ao presente. Funes estava irremediavelmente preso ao passado, inapto a abstrair e refletir sobre o tempo e suas mudanças. Em suas leituras, a problematização do mundo não era possível, pois, como dito anteriormente, “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. Logo, o esquecimento é condição do pensamento (ARAÚJO et al., 2010, p. 231). Na sociedade contemporânea, as políticas de memória são influenciadas por novas memórias, em função do questionamento de antigas situações de dominação e das novas configurações sociais e culturais. As novas políticas precisam responder ao desafio de estabelecer o que deve ser preservado e o que deve ser esquecido, a partir do de onde e do

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desde quem. O esquecimento, como ato e fazer social, ganha espaço para delimitar a visibilidade e a invisibilidade da memória. No entanto, o embate entre memória e esquecimento não ocorre sem conflitos, sendo evidente a variedade de elementos e de interesses do presente, como no caso das memórias “subterrâneas” que se opõem à “memória oficial”, que se pretende nacional e coesa. Nessa disputa, diante da pluralidade dos discursos e dos atores sociais no cenário político do presente, os empreendedores de memória – que são agentes sociais que […] mobilizam suas energias em função de uma causa (JELIN, 2002, p. 48) –, atuam no sentido de empreender ações para promover suas demandas e memórias e fazem com que elas se tornem questões públicas. Essas ações se dão no debate público e em um cenário de conflito, no qual há uma luta entre “empreendedores da memória”, que almejam o reconhecimento social e a legitimidade política de uma (sua) versão ou narrativa do passado (ARAÚJO et al., 2010, p. 230). Nesse sentido, tomemos o Memorial da Resistência de São Paulo como objeto a ser analisado, por ser um espaço de memória de importância nacional. O Estado, através do Memorial, torna-se um empreendedor da memória, e contribui para a oficialização de uma narrativa sobre a ditadura pautada na violência. Da análise do Memorial, podemos compreender a dinâmica do processo de transformação de um antigo centro de tortura – o prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS/SP), em um museu de memórias. Esse memorial torna-se um material simbólico para o processo de ressignificação do passado na sociedade brasileira, dedicado à preservação das memórias da repressão. Entretanto, destaquemos que, paralelamente a o desejo de elaboração das experiências do passado, articulam-se também vontades políticas de consolidar novos horizontes de expectativas. De acordo com Marcelo Mattos Araújo (2010), esses espaços de memória inserem-se em atividades cujo propósito social é estabelecer um vínculo entre as experiências do passado e a vida cotidiana atual, bem como facilitar o conhecimento do que se sucedeu através da documentação histórica, levantada por pesquisas e atividades culturais, reivindicando a dignidade das vítimas e buscando contribuir, ao fim, para a construção de uma sociedade consciente de seu passado. O Memorial da Resistência de São Paulo é um lugar de testemunho e de história dedicado à preservação das memórias sobre a resistência e repressão políticas relativas à recente ditadura militar. Ele contribui para a criação de uma narrativa da ditadura pautada na tortura, na luta armada e na violência estatal. Com isto, a violência não tem deixado espaço

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para um momento distinto, marcado por outras formas de luta política, pelos diferentes agentes de oposição: a transição democrática. Sendo uma iniciativa do Governo do Estado de São Paulo por meio de sua Secretaria da Cultura, o Memorial é uma instituição dedicada à preservação de referências das memórias da resistência e da repressão políticas do Brasil republicano (1889 até a atualidade) por meio da musealização de parte do edifício que foi sede, durante 1940 e 1983, do já referido DEOPS/SP, uma das polícias políticas mais truculentas do país, principalmente durante o regime militar. Vinculado à Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Memorial da Resistência é um museu público e sem fins lucrativos. Desde 2005 e a partir da assinatura de contrato de gestão com a Secretaria de Estado da Cultura, a Pinacoteca é administrada pela Associação Pinacoteca Arte e Cultura, qualificada como Organização Social da Cultura. O programa museológico do Memorial da Resistência está estruturado em procedimentos de pesquisa, salvaguarda (documentação e conservação) e comunicação patrimoniais (exposição e ação educativo-cultural), orientados para os enfoques temáticos sobre resistência, controle e repressão política, por meio de seis linhas de ação que, atuando articuladamente, têm como objetivo fazer da instituição um espaço voltado à reflexão e para a promoção de ações que contribuam para o exercício da cidadania, do aprimoramento da democracia e da valorização de uma cultura em direitos humanos210. Frente à atuação de ex-presos políticos e de familiares de mortos e desaparecidos, algumas organizações de Direitos Humanos e instâncias governamentais, junto ao Poder Público, a administração do prédio foi transferida da Secretaria de Justiça para a Secretaria de Estado da Cultura, e, a partir daí, surgiram várias propostas, com vistas a novos usos e significações para o edifício. Depois de reiteradas tentativas de utilização do edifício, a Pinacoteca do Estado, atendendo às solicitações da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, desenvolveu um projeto com perspectivas museológicas para o Memorial da Liberdade – que mudou de nome a pedido dos ex-presos políticos que discordaram do uso do termo "liberdade" em associação às torturas e mortes ocorridas no interior do prédio, passando a chamar-se Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em 24 de janeiro de 2009. O projeto foi elaborado, em 2007, pela museóloga Maria Cristina Oliveira Bruno, pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro e pela educadora da Pinacoteca do Estado Gabriela

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Aidar, apresentando o conceito gerador da exposição de longa duração e, juntamente, o delineamento de seu programa museológico. Como dito anteriormente, o espaço está estruturado em ações de pesquisa, salvaguarda (documentação e conservação) e comunicação (exposição e ação educativa e cultural) patrimoniais. O Memorial é configurado a partir de (e por) seis linhas de ação: Centro de Referência, Coleta Regular de Testemunhos, Lugares da Memória, Exposição, Ação Educativa e Ação Cultural. Não era objetivo criar apenas uma exposição de longa duração, mas sim uma instituição voltada à pesquisa e à comunicação. No entanto, da observação da exposição de longa duração do Memorial, é possível inferir que ela é dedicada a perpetuar a memória da ditadura militar com foco na violência e no auge da repressão, sem valorização da transição democrática brasileira. A exposição possui quatro módulos: O edifício e suas memórias; Controle, repressão e resistência: tempo político e a memória; A construção da memória: o cotidiano nas celas do DEOPS/SP; da Carceragem ao Centro de referência, descritos como A: O edifício e suas memórias Neste espaço, duas informações estão articuladas: de um lado, há uma cronologia de ocupação do edifício desde a sua construção à atualidade e, de outro, um vídeo que apresenta a história e estrutura do Deops/SP em tópicos que evidenciam suas diversas ramificações com instâncias do poder para o controle e repressão dos cidadãos. Módulo B: Controle, repressão e resistência: o tempo político e a memória As noções, as estratégias e os fatos relativos ao controle, repressão e resistência configuram a abordagem desta sala e contextualizam este espaço prisional no âmbito do Brasil republicano, apresentados por meio de um equipamento multimídia e por uma cronologia, dentre outros recursos. Módulo C: A construção da memória: o cotidiano nas celas do Deops/SP O conjunto prisional é composto por quatro celas, um corredor principal e um corredor para banho de sol. Em cada um dos espaços, painéis e outros suportes audiovisuais apresentam desde o processo de implantação do Memorial da Resistência aos testemunhos sobre o cotidiano na prisão. Módulo D: Da carceragem ao Centro de Referência Este espaço oferece possibilidades de aprofundamento temático, por meio da consulta a banco de dados referenciais, além de uma amostragem de objetos e documentos provenientes do Fundo Deops/SP211.

A visitação à exposição permanente do Memorial da Resistência de São Paulo é marcada pelo envolvimento gerado pela experiência da violência política. Em especial, a curadoria do Módulo C leva o visitante a se envolver com a experiência da prisão e da repressão ao entrar em celas que combinam espaço, iluminação, objetivos e sonorização que podem gerar emoção.

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A opção por valorizar a vivência da ditadura é legitima e importante, no entanto, uma vez que o Estado fique só com o enfoque presente no Memorial, ele estará reduzindo a ditadura militar à violência estatal e a uma oposição que sofreu com esta violência. No que diz respeito ao movimento estudantil, ele é contemplado na exposição de forma significativa, porém, com foco na geração de 1968 e na luta armada, experiência esta aludida ao longo da exposição. Entretanto, não há ali referências à luta política da geração da transição democrática e às experiências de grande mobilização social que ocorreram no período da transição. O enfoque do Estado demonstra a memória que se construiu sobre a ditadura em que a experiência da luta democrática, devido ao seu caráter de negociação, ficou fora da memória e que, portanto, leva a um status de herói aqueles que durante a ditadura foram vítimas da violência estatal. No que tange aos caminhos para a efetividade da justiça de transição no Brasil, Marcelo Mattos Araújo acredita haver uma resistência em enfrentar a temática da responsabilização dos agentes que praticaram atos de lesa-humanidade durante a ditadura militar. O respeito às normas internacionais de direitos humanos foi considerado como obstáculo à reconciliação nacional durante o processo inicial de transição política, e, até o momento, poucos avanços ocorreram, quando comparados a outros casos latino-americanos (ARAÚJO, 2010, p. 236). A busca por esse passado traumático e de justiça frente às experiências de violação dos direitos humanos ofusca a experiência de luta democrática, deixando-a em segundo plano em um momento em que se busca o direito à Memória e à “Verdade e Justiça”. Nesse contexto, o Memorial da Resistência de São Paulo nasceu da vontade política do Governo do Estado de São Paulo, por meio de sua Secretaria da Cultura, da reivindicação de cidadãos, especialmente do Fórum Permanente de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, e do trabalho de profissionais de diferentes disciplinas e especialidades, como museologia, história, arquitetura, educação, comunicação visual e audiovisual, coordenados pela Pinacoteca do Estado de São Paulo (ARAÚJO et al, 2010, p. 231). Segundo Marcelo Araújo, As ações governamentais em torno deste espaço não apenas permitem que o Estado brasileiro cumpra algumas de suas obrigações perante a comunidade internacional mas também, principalmente, apresentam o Memorial da Resistência de São Paulo como uma via para o tratamento de temas ligados ao direito à memória e à verdade, assim como para o debate sobre proteção e valorização dos direitos humanos. Seu norte é o desenvolvimento de atividades de ordem institucional e programas educativos que promovam noções de democracia e cidadania. “O processo educativo em direitos humanos é entendido como interdisciplinar e orientado para a percepção

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crítica da realidade, visando à apropriação de valores como ética, tolerância e respeito à dignidade intrínseca ao ser humano.” (2010, p. 231).

Por meio dessa análise, podemos supor que o projeto do Memorial foi construído “invertendo a lógica do período da repressão”. No memorial, o protagonismo foi atribuído às memórias dos ex-presos políticos e, a partir delas, a concepção de cada espaço valorizou a resistência como elemento de ligação entre o trágico passado vivenciado e os novos tempos amparados por experiências democráticas. A partir deste princípio, o Memorial da Resistência faz da memória sobre o passado de repressão não um exercício unicamente individual, mas uma experiência coletiva, no sentido de construir, a partir de uma vivência ou demanda histórica, uma identidade. Todavia, a atribuição de novo sentido em testemunhar, ao transformar as testemunhas em agentes fundamentais para o exercício do dever de memória, passa a ser entendido não apenas em sua dimensão de culto aos mortos, de dever de lembrança e homenagem, mas também em termos de efeitos concretos nos domínios políticos e de justiça. Para Pierre Norra, a memória deixa de existir por ser apropriada pela história, restando apenas “os lugares da memória”: [...] os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações são naturais. É por isso que a defesa pelas minorias de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa as varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de constituí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que elas envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. (NORA, 1993, p. 13).

Desta forma, o Memorial da Resistência de São Paulo é trabalhado como recurso fundamental para a efetividade das políticas de reparação simbólicas destinadas à coletividade, como veículos para a elaboração das memórias – caminho para a ressignificação do passado violento –, bem como para a prevenção de práticas semelhantes no presente e no futuro. E, tal como afirma Marcelo Araújo, o Memorial “baseia-se no propósito da produção de conhecimento e da preservação dos ideais dos direitos humanos, da cidadania e democracia” (ARAÚJO, 2010, p. 232). O Memorial, assim, pode ser compreendido como uma iniciativa governamental, para a efetivação de políticas de reparação simbólica voltada para a sociedade, e que contribui para a formação de uma memória sobre a ditadura militar que não abre espaço para as memórias da

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transição democrática. Nele, destaca-se a sensibilização do visitante ao vivido naquele espaço quanto à experiência de tortura. Há uma tentativa de contemplar a experiência da transição na exposição permanente do Memorial, contudo, ela é ínfima e fugaz. Entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013, ocorreu a exposição temporária Transições: das Ditaduras às democracias na América Latina. A exposição era composta de textos sobre a ditadura e os principais elementos da ruptura de regimes democráticos na América Latina, além de algumas fotos. Esses materiais foram plotados ao longo das paredes do corredor de entrada do Memorial. Para o Brasil, foram escolhidos dois momentos como síntese da transição: a campanha da anistia e as Diretas Já. Em ambos os casos, os resultados pactuados da luta democrática foram omitidos, e o processo de transição foi apresentado de forma simplista, não contemplando o âmago da transição brasileira. Destaquemos a importância dessa iniciativa, mesmo que tenha se tratado de uma exposição de curta duração que abordou o tema em um espaço estatal de produção de memória, de visão simplista do processo de transição brasileiro. De toda a forma, o foco do Memorial é a resistência e a relação com a repressão e a tortura. O próprio Estado, em suas políticas de ações simbólicas, contribui com o ofuscamento da participação de uma militância na luta pela transição e valorização de uma sociedade mobilizada e agente social na luta contra a ditadura dentro do modelo brasileiro de transição pactuada. A geração da transição democrática traz à tona um conflito de memória entre gerações pelo sentido do passado que resulta das peculiaridades da transição brasileira, do enfoque dado pelo Estado às suas políticas de memórias e na construção de lugares de memória. Todo esse cenário nos leva a compreender que a memória sobre a transição não desfruta de lugar privilegiado na memória construída sobre a ditadura militar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A memória ao longo desta tese constituiu-se como ponto norteador na construção da narrativa histórica enquanto fonte e também objeto. À medida que abordamos a trajetória do movimento estudantil durante a transição democrática, identificamos marcos temporais e referenciais pelo olhar militante. A presença das diferentes tendências dentro do Movimento Estudantil (ME) é um marco na memória sobre o período. Tal diversidade interna representava a heterogeneidade das esquerdas brasileiras que viviam naquele contexto um processo de autocrítica e de revisão de tática e de estratégia política. As disputas internas entre esses grupos ditavam o ritmo da luta política empreendida pelo movimento ao longo dos anos da transição. A bandeira das liberdades democráticas aglutinou grande parte desses grupos que ampliaram os limites da abertura imposta pelo regime militar. Entre os marcos definidos pela memória militante, temos 1973, com as ações que se desdobraram após a morte do então estudante da Universidade de São Paulo (USP) Alexandre Vannucchi Leme. Este fato deu início à reorganização do ME, que, de forma pioneira, se rearticulava em meio à dura repressão. Na sequência, 1977 representa o auge da mobilização do movimento estudantil que ocupou as ruas com grandes protestos e manifestações, que desde 1968 não eram vistos na realidade brasileira. O ano de 1977 configura-se também o auge da repressão militar contra os estudantes da transição. Coação esta expressa principalmente no III Encontro Nacional dos Estudantes (ENE) em Belo Horizonte, no mês de junho, e no Ato Público na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), em setembro. Mais adiante, 1979 é, para a memória militante, outro marco nos avanços da mobilização social sobre a ditadura, sob os efeitos do Congresso de Salvador, ocasião em que a União Nacional dos Estudantes (UNE) foi reconstruída, bem como pela aprovação da Lei da Anistia, mesmo que pactuada. O último marco da memória militante é o ano de 1984, com a Campanha das Diretas Já e seus efeitos contraditórios entre avanços e frustrações, mas que também fica na memória como o golpe final a um regime que paulatinamente foi sendo “derrotado”. A historiografia tende a negligenciar estes marcos da memória da militância estudantil sobre o processo de transição. Nesta recebem maior espaço as greves do ABC paulista e as ações do movimento sindical entre 1978 e 1980, não sendo consideradas as lutas anteriores e posteriores do movimento estudantil como parte daquele processo. Entendemos que o processo de mobilização social foi parte de um acúmulo de forças iniciado em 1973, com o

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movimento estudantil, que influenciou o processo de ebulição social capaz de afetar o ritmo da transição e influenciar seus rumos, tornando-se, assim, um importante agente desta conquista política. Buscamos ainda examinar a memória militante sobre o ME da transição. Localizamos a existência de duas gerações distintas no tempo e nas táticas e posturas empreendidas durante a ditadura: a geração de 1968 e a geração da transição. A primeira marcada em sua memória pelo trauma e pelo heroísmo. A segunda com as marcas da resistência democrática e da vitória em sua memória. Contudo, conforme procuramos demonstrar neste trabalho, a memória vitoriosa compartilhada pelos ex-militantes da geração da transição não encontra espaço relevante na memória construída sobre a ditadura militar e sinaliza para a existência de uma disputa de memória por parte da geração da transição, que reivindica para si o reconhecimento de seu papel político para o fim da ditadura e a construção da democracia. A disputa pela memória evidencia uma mudança de lugar dos derrotados. O caráter negociado do modelo transicional brasileiro é oposto à ideia de confronto valorizada no imaginário político. Pacto remete a consenso e acordo, e distancia-se da ideia de enfrentamento e heroificação. Assim, o modelo de transição pactuada diluiu a experiência da luta democrática que ficou na memória como uma temporalidade do consenso e do não conflito. A memória coletiva definida pelo olhar institucional privilegia o enfrentamento e a luta armada. Também o Estado contribuiu com a afirmação de uma memória pautada na violência da repressão e do enfrentamento, através das políticas de reparação e de memorialização. A geração da transição desaparece da memória coletiva, por não ter conquistado nela o espaço nem de vítimas nem de heróis. Diante disto, a geração da transição, ao narrar sua história, traz à tona uma disputa pela memória, em que se coloca sua intenção de construir uma nova memória sobre o passado ditatorial brasileiro, cujas lutas do ME no período transicional sejam historicamente reconhecidas por seu papel político naquele contexto. A maior valorização da geração de 1968, e sua identificação com um mito político, tem sua origem no interior do próprio movimento estudantil e nos usos políticos do passado da história do ME empregados pelo próprio movimento desde os anos 1970. As produções memorialísticas do movimento estudantil – sejam livros, sejam revistas que se propunham a realizar uma reconstrução histórica do ME – buscavam evidenciar o ano de 1968 como o auge da militância estudantil na história brasileira, não havendo espaço para a narrativa da trajetória do movimento estudantil a partir de meados dos anos 1970.

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Se o discurso atual do movimento estudantil é homogêneo na busca da valorização da UNE e do ME como importante sujeito histórico durante a ditadura militar brasileira, em seu interior ainda estamos longo do consenso. A geração da transição busca incluir sua memória de militância na memória coletiva sobre o movimento estudantil na ditadura. Esta geração recusa a imagem da frustração pela pactuação e busca definir-se como uma geração vitoriosa na luta política, reivindicando para si sua parte dos méritos pelo restabelecimento da democracia no Brasil.

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200

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201

ANEXOS

202 ANEXO 01 – TABELA DE ENTREVISTADOS212 PERÍODO DE DATA /LOCAL ENTREVISTADO (A)

DE NASCIMENTO

TENDÊNCIA ESTUDANTIL

MILITÂNCIA E ATUAÇÃO NO MOVIMENTO ESTUDANTIL

CURSO / DATA DE INGRESSO E SAÍDA DA FACULDADE

PÓSMOVIMENTO ESTUDANTIL

LOCAL/DATA DA ENTREVISTA

1976 a 1982 Alon Feuerwerker 14 de setembro de 1955. Romênia. Mudou-se com a família para o Brasil ainda criança.

Caminhando (PCdoB)

Após 1981 PCB

Medicina / USP / 1974 1979

Vice- presidente da UNE – 1979 – 1980

1975 – 1981

Amâncio Paulino de Carvalho 13 de setembro de 1957. Rio de Janeiro. Filho de imigrantes portugueses.

212

Presidente do Centro Acadêmico de Medicina (CAOC)USP

Esta tabela foi elaborada a partir de dados fornecidos pelos depoentes.

PCB

Presidente do centro acadêmico de medicina, em 1978 e 1979 Presidente da UEE – RJ entre 1979 e 1980

Medicina / UFRJ / 1975 - 1982

Jornal Voz da Unidade do PCB anos 1980. Atua hoje como jornalista em Brasília.

Presidente da Associação Brasileira de Hospitais Universitários; Diretor do HU da UFRJ; Professor do curso de Medicina da UFRJ

Brasília, 15 de janeiro de 2014.

Rio de Janeiro, 13 de dezembro 2013.

203 Beatriz de Castro Bicudo Tibiriçá – Béa

1972 - 1978

1954

Refazendo / AP

CA de Ciências Sociais Diretoria do DCE Livre da USP 1976-77

Ciências Sociais / USP / 1972

1977 até 1983 CA de Ciências Sociais UFBA; DCE UFBA;

05/06/1958 Clara Maria de Oliveira Araújo Teofilândia – Bahia

PCdoB

Presidente da UNE 1982 1983; Fundação da UJS.

Eladir de Fátima dos Santos

Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1953

Ciências Sociais/ UFBA / 1977 – 1981 Ciências Sociais/ UFRJ / 1982 - 1985

1976 – 1980 MR-8

Diretoria do CACO – Direito UFRJ 1978

Direito / UFRJ / 1974 – 1980

ONG Coletivo Digital Consultora

Movimento de Mulheres; Atualmente é professora associada da UERJ.; Coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero (NUDERG)

Assessora jurídica da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ) Professora e advogada.

São Paulo, 25 de novembro de 2014.

Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013.

Rio de janeiro, 15 de dezembro de 2012.

204 Ignacio José Godinho Delgado 1958 Lima Duarte / MG

1977 – 1981 Estratégia / Centelha

DA do ICHL DCE da UFJF

1974 – 1979

Jânio Oliveira Bragança

28 de julho de 1953, Itabira / MG

Liberdade / AP

Presidente do DA do ICEX – UFMG; Presidente do DCE UFMG em 1976 – 77.

História / UFJF / 1977 - 1981

Engenharia Metalúrgi-ca / UFMG / 1974 – 1980 Administração/ UFMG/ 1980 - 1983

Candidato a vereador em Juiz de Fora pelo PT em 1982; Professor do curso de História da UFJF; Militante do PRC; Filiado ao PT; Atualmente é empresário; sem vinculação partidária

Juiz de Fora, 10 de junho de 2009.

Belo Horizonte, 8 de janeiro de 2015.

1977 – 1982

José Sales Pimenta 08 de janeiro de 1956, Juiz de Fora / MG

Ação e Unidade / AP MR-8 (a partir de 1979)

DA Engenharia UFJF; Presidente DCE UFJF em 1977 – 1978; Diretoria da UNE de 1979 a 1981

Engenharia / UFJF 1975 - 1982

Militância em ONG’s; Empresário.

Juiz de Fora, 20 de outubro de 2009.

205 1973 – 1978

Júlio Turra Filho

Gestão do CeUPES – USP; São Paulo, 04 de julho de 1953.

Liberdade e Luta

Laís Wendel Abramo

Participação nas primeiras eleições para o DCE Livre da USP.

Ciências Sociais / USP / 1973 – 1981.

1972 – 1978

03 de junho de 1954, São Paulo.

Gestão do CEUPS – USP; Refazendo Diretoria do DCE Livre da USPgestão 1977 – 1978.

Ciências Sociais / USP / 1972 – 1977.

Laura Camargo Macruz Feuerwerker

23 de abril de 1958. São Paulo

Caminhando (PC do B)

19761981 CAOC – Medicina USP.

Medicina / USP / 1976 – 1983.

Movimento sindical: bancários, APEOESP, CUT; Membro da corrente O Trabalho - PT

Militante da Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo / anos 1980; Diretora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil. Militância na área da saúde: SUS; direto à saúde; Professora do curso de Medicina da USP.

São Paulo, 02 de abril de 2013.

Brasília, 9 de janeiro de 2015.

São Paulo, 07 de dezembro de 2012.

206 1975 – 1980

Lígia Bahia 01 de junho de 1955. Rio de Janeiro/RJ.

MR-8 PCB (após 1982)

Luiz Mariano Paes de Carvalho Filho 05 de janeiro de 1957. Rio de Janeiro/RJ.

MR-8

Medicina / UFRJ / 1975 - 1980

19751981

Engenharia / PUC –RJ / 1975 – 1980; Engenharia / Santa Úrsula / 1982-1983; Matemática / UERJ / 19851988.

Vice-presidente da UEE-RJ 1979-1980; Vice-presidente da UNE 19801981. 19771983

Marcelo Ayres Camurça Lima

07 de outubro de 1958. Rio de Janeiro/RJ.

Márcio Antonio Marques Gomes

candidata a presidente do DCE da UFRJ em 1979

MR-8

02 de julho de 1955. Centelha / DS Belo Horizonte/MG.

Vice-presidente do DA de História da UFF de 19771979; Presidente do DA de História da UFC de 19811983.

19761981 DA da FACE UFMG; Diretoria do DCE UFMG em 1977.

História / UFF/ 1977 1982; História / UFC/ 1982 – 1983.

Economia/ UFMG /1976 – 1981.

Professora Dept de Medicina da UFRJ Atua na área de saúde coletiva

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014

Dirigente do MR-8; Candidato a deputado pelo PMDB no RJ; Professor do curso de Matemática da UERJ.

Rio de Janeiro, 05 de julho de 2013.

Dirigente estudantil do MR8 (19801987); Fundador da JR8 (1985); Atualmente é e professor do Depat de Ciência da Religião na UFJF;

Juiz de Fora, 08 de Janeiro de 2014.

Filou-se ao PT; DS até 1995; Economista; Atuou em governos do PT em BH.

Belo Horizonte, 08 de janeiro de 2015.

207 Markus Sokol 15 de abri de l954 Wroclaw/ Polônia No Brasil desde 11 janeiro de 1959.

1973 – 1976 VARPresidente do Palmares Centro Acadêmico (antes do Visconde de Cairu ME); (CAVC), da Viveu na Faculdade de clandestinidaEconomia e de entre 1970 Administração da e 1971; USP (gestão 1974Libelu 75)

Paulo Andrade Lotufo

Economia/ USP/ 1973 – 1978.

Movimento sindical metalúrgico, 1976; Fundação do PT, 1980; Tendência O Trabalho.

São Paulo, 09 de abril de 2013.

Professor do curso de Medicina da USP.

São Paulo, 21 de outubro de 2014.

1975 – 1981 1957. São Paulo/SP

Caminhando (PCdoB)

CAOC – DA de Medicina da USP,

Medicina/ USP/ 1975 – 1980.

Candidato em 1982 a deputado pelo PT;

Pedro Cláudio Cunca Bocaiúva Cunha 22 de dezembro de 1954. Rio de Janeiro/RJ.

AP / Viração

1975 - 1980 DCE da PUC-RJ 1977.

Economia / UFRJ / 1974; História / PUC RJ / 1975 – 1985.

Professor do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ.

Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 2014.

208 1977 – 1982

Ricardo Lêdo Chaves

DA de Medicina da UERJ; 1958

MR-8 Presidente da UEE-RJ em 1980-81 e 1981-1982.

Medicina/ UERJ/ 1977 – 1984.

Vera Silvia Facciolla Paiva

Professora do Instituto de Psicologia da USP;

1975 – 1979 11 de setembro de São Paulo/SP.

CA de Psicologia da USP 1975. Refazendo / AP

DCE Livre da USP em 1976 – 1977 e 19771978.

Médico pediatra.

Psicologia/ USP/ 1973 – 1979.

Pesquisadora do Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS) USP.

Rio de Janeiro, 18 de abril de 2013.

São Paulo, 06 de novembro de 2014.

209

ANEXO 2 Tabela dos Termos de Declaração da Operação Águia213 Nome do declarante

Augusto Sérvulo Cintra de Melo

Mario Olímpio de Menezes Athaíde Silva

Curso / Universidade

Economia / UFF

Pedagogia / UERJ

Data do depoimento

19/05/1977

19/05/1977

Luiz Antônio Correia de Carvalho

Filosofia / PUC RJ

19/05/1977

Elizabeth Felippe Carvalho

Ciências Sociais / UERJ

20/05/1977

Francisco Campos Braga Filho

Medicina / UFRJ

19/05/1977

Aloysio Henrique Castelo de Carvalho

História / PUC RJ

19/05/1977

Silvia Ramos de Souza

Psicologia / PUC RJ

18/05/1977 e 26/05/1977

213

Síntese do depoimento Declara que apenas participou do cine clube e que por ser único presente em reunião assumiu cargos no DA economia e no DCE UFF mas que pós 76 não mais militou e negou envolvimento em vários casos. Declarou que só tomou conhecimento dos acontecimentos do ME pela imprensa. Declara apoiar das liberdades democráticas no Brasil e da libertação dos presos políticos. Se refere aos estudantes presos em São Paulo como simples estudantes injustiçados e não estavam envolvidos em atos subversivos. Mas nega envolvimento em ações estudantis. Fundou grupo de teatro “Mundo não tem porteira” e defende a sua atuação no cultural e nega envolvimento nas ações estudantis. Se declara patriota, trabalhador e chefe de família. Editor da Revista Ágora - declara que em 1972 a presidente do DCE foi presa e houve grande concentração na PUC. Em 1973 foi estudar filosofia no Chile e lá foi detido por alguns dias por ocasião da deposição de Allende. Sendo liberado foi para França para continuar estudos. Ao regressar ao Brasil filiou-se a Associação de Pós-graduandos. Alunos da pós realizaram greve paralela em apoio a greve dos graduandos por conta de melhores bolsas. Fundadora do cine-clube RACIOCINE, declara ter conhecimento da distribuição do jornal “Resistência” e “Novo Curso” e que participou do Ato Publico na PUC a fim de exigir a liberdade de estudantes e operários presos em SP. Declara que participou de reuniões visando melhoria de ensino, passeatas por mais vagas em pronto-socorro, participou do abaixo-assinado enviado ao ministro Ney Braga a fim de solicitar termino das obras do Hospital Universitário do Fundão e declara que participou de ato publico na PUC RJ em solidariedade aos estudantes presos em SP. Declara que em 1974 houve plebiscito na PUC para saber a opinião dos alunos sobre o bandeijão e ocupação estudantil. Concorreu a presidência do DCE em 1975 e perdeu e em 1976 ganhou com as palavras de ordem contra a Politica educacional do governo. Foi suspenso por 15 dias por liderar reunião sobre o aumento das mensalidades e credito educativo. Presidiu as manifestações em solidariedade aos presos de sp. Fez contato com tio que era Brigadeiro da Aeronáutica . 1o depoimento: Declara participação nas manifestações feitas por conta do aumento das mensalidades, apoio a professores demitidos, melhoria no Restaurante e pela liberdade de presos políticos. 2o depoimento: Segundo relato da polícia, Silvia compareceu a Assembleia na PUC no dia seguinte a sua

Tabela foi elaborada a partir dos dados obtidos na documentação disponível em: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Operação Águia. Fundo Polícia Política, Setor Estudantil, Pasta 61, caixa 550, maço 1.

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Danilo Barata Werneck Genofre

Engenharia / PUC RJ

18/05/1977

Luiz Antônio Alt.

Serviço Social / UERJ

18/05/1977

Milena Piraccini Duchiade

Medicina / UFRJ

18/05/1977

Paulo Roberto de Araújo Abrantes

Psicologia / PUC

17/05/1977

Jorge Henrique Guimarães Pessoa

Engenharia / PUC RJ – após história / PUC RJ.

02/06/1977

Mario Gawryszewki

Medicina / PUC RJ

02/06/1977

Maria de Fátima Santos

Serviço Social / UERJ

01/06/1977

José Mendes Ribeiro

Medicina / UERJ

01/06/1977

Luiza Maria Santana Spineti

Medicina / UERJ

30/05/1977

Clovis Gentil de

Economia / UFRJ

27/05/1977

declaração na delegacia e teria dito que foi mal tratada no DPPS. Ela defende que nao participou de tal Assembleia pois viajou para SP naquela data. Declara que concorreu as eleições do DCE em 1976 com a chapa Viração e era a favor das liberdades democráticas e apoiava as candidaturas do MDB. Declara que participou da greve geral dos alunos devido ao aumento do valor das mensalidades mas declara não ter participado do Ato pela liberdade de presos políticos porque constatou a presença de elementos estranhos. Coordenador do jornal “Mundo sem porteira”, declara apoiar candidaturas do MDB. Declara ter atuado ativamente no ME no ano de 1976. Declara ter participado de assembleia na UERJ em solidariedade aos presos políticos, sido aprovado o apoio ao ato público na PUC no dia 19/05/77 Declara ter sido representante de turma e atuado no Jornal dos estudantes de medicina “Luz de Vela” e ter participado de encontros científicos de estudantes de medicina. Declara desconhecer panfletos apresentados e termos da esquerda estudantil - trotskista, peguistas, reformistas – bem como não ter se envolvido e outras atividades políticas. Declara acreditar que as mortes cometidas também pela esquerda como pela policia devam ser esquecidas em nome de uma reconciliação nacional. Comenta sobre uma concentração de estudantes na PUC que contou com a presença de muitos representantes de entidades e também mães de presos políticos (mãe de Cid e Cesar Beijamin) onde se decidiu pela criação de um Comitê pela anistia ampla. Se declarou defensor da liberdade de reunião dos estudantes. Participou da Assembleia da PUC em 1975 pelo preço do bandeijão. Em 1976 participou da chapa Alternativa, eleita para o DCE. Declarou ter participado de todos os atos em maio de 1977 na PUC e ser membro do comitê 1o de maio. Membro do DCE pela chapa Viração. Declara ter participado da greve na PUC contra aumento das mensalidades e ter apoiado os candidatos do MDB nas ultimas eleições. Declara não conhecer nenhum jornalista que cobriu o ME. Declara não pertencer a nenhuma organização de esquerda apesar de já ter lido Marx. Diz não ter ideia formada sobre a anistia e que seu pai era coronel do exercito da ativa. Aluno foi chamado para dar declaração após ser detido com seu irmão vendendo publicação do DCE da PUC. Declara não ter relação com o ME e ter votado no MDB sem ser orientado por ninguém. Declara nunca ter se envolvido com o ME e ter comparecido sozinha ao Ato Publico no dia 10 de maio por achar a reivindicação das liberdades democráticas justa. Declara nunca ter participado do ME e que foi ao ato publico sozinho no dia 10 de maio. Defende a anistia ampla desde que não tenha sido cometido atos criminosos. Declara não ter participado do ME e discorda do plano educacional do governo. Participou do projeto Rondon. Participou de encontro nacional dos estudantes em SP em 1976. Compareceu ao ato publico na PUC e declara desconhecer jornalistas envolvidos com o ME. Membro do Cine-clube que foi fechado após a Semana de Calouros em 1974 devido ao excesso de consumo de

211

Magalhães Costa Carlos Henrique Vianna Pereira

Não identificado

André Maurício Lima Barreto

PUC RJ / Curso não identificado

Maria Cristina Portella Ribeiro

Comunicação / UFF

23/05/1977

Maria Luiza de Lima Aguilar Fernandes

Medicina / UERJ

25/05/1977

29/05/1977

25/05/1977

cerveja no campus. Declarou ter participado dos atos na PUC no dia 10.05 e no dia 19.05. Participou do ME secundarista, foi preso em 1968 e liberado em seguida, associou-se a AMES – Associação metropolitana dos estudantes secundaristas. Filiou-se a VAR-Palmares (com a qual declara que rompeu ao grupo adotar a ação armada) e fugiu do país ao ser procurado pela polícia. Morou em Santiago até a queda de Allende. Voltou ao Brasil em 1974. Declara ser a favor da abertura do ME e do comitê 1 o de maio a todos que desejem participar. Declara que o comitê irá organizar uma Semana da Anistia. Declara que participou da criação do Diretório Acadêmico e que assistiu ao Ato Publico na PUC onde acompanhou a discussão sobre a anistia irrestrita e as liberdades democráticas. Defende que não há influencia externa dentro do ME e que seus irmãos não participam do ME. Declara desconhecer qualquer organização estudantil e a participação em encontros de medicina. Declara ter comparecido a reuniões na UERJ no dia 9 e 16 de maio para decidir se os alunos da UERJ iriam apoiar atos na PUC RJ. Disse participar de reunião no dia 23 de maio na UERJ onde os estudantes criticavam a polícia por considerarem as intimações como intimidações ao ME. Declara não ter participado da criação da UNE.

212

ANEXO 3 Operação Águia – Polícia Política Acervo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro

213

214

ANEXO 4 Fotos do Congresso de Salvador em 1979 Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ)

215

ANEXO 5 Fotos do Seminário Reorganização do Movimento Estudantil 20 anos Fundação Perseu Abramo Centro de documentação histórica Centro Sérgio Buarque de Holanda

216

ANEXO 6 Roteiro base para entrevista214

1. Nome completo, data e local de nascimento. 2. Trajetória anterior a entrada na universidade. 3. Porque você entrou para o Movimento Estudantil? Qual foi sua motivação? 4. A qual tendência estudantil pertencia? Em que acreditavam? O que almejavam? 5. Na época, qual era a sua visão de democracia? O que significava lutar pelas liberdades democráticas? 6. O que você se recorda da articulação estudantil na (nome da instituição de ensino) para a reconstrução do DCE e UEE? Qual a motivação de vocês para reconstruir o DCE e UEE? 7. Quais foram as principais ações do Movimento Estudantil durante sua militância? 8. Qual o significado do ano de 1977 para o movimento estudantil desta época? 9. Como foi a articulação estudantil para a reconstrução da UNE? Qual era a motivação? Porque reconstruir a UNE? 10. Como era a dinâmica interna da UNE após sua reconstrução? Quais suas principais ações? 11. Você chegou a participar de lutas pela Anistia e de outras lutas nacionais como as Diretas Já? Como avalia você a atuação dos estudantes nas lutas gerais e os resultados destas lutas? 12. Você considera que o Movimento Estudantil foi importante para o processo de transição democrática no Brasil? 13. Você acha que esta importância é reconhecida? 14. O que significava para você militar no ME? E hoje, o que esta experiência significa na sua vida? 15. Após sua participação na militância estudantil, onde mais você atuou politicamente?

214

Este roteiro foi utilizado como base para a realização das entrevistas de acordo com a metodologia de história oral. Contudo, a cada entrevista eram acrescentadas ou mesmo retiradas algumas perguntas, a partir da trajetória de cada entrevistado e seu período de militância estudantil.

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