TESE_CONSTRUCAO_DEMOCRATICA_POLITICA_PUBLICA

May 28, 2017 | Autor: A. Nascimento | Categoria: Participación Social, Public Policy
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA

ANDERSON RAFAEL BARROS DO NASCIMENTO

Disputas e Resistências na Construção Democrática da Política Pública Federal para a Criança e o Adolescente: o Conselho dos Direitos entre a participação social e a Comunidade de Políticas

Disputes and Resistances in the Democratic Construction of the Federal Public Policy for Children and Adolescents: the Council for the Rights between social participation and Community Policies

CAMPINAS 2016

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ANDERSON RAFAEL BARROS DO NASCIMENTO Disputas e Resistências na Construção Democrática da Política Pública Federal para a Criança e o Adolescente: o Conselho dos Direitos entre a participação social e a Comunidade de Políticas

Disputes and Resistances in the Democratic Construction of the Federal Public Policy for Children and Adolescents: the Council for the Rights between social participation and Community Policies Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Ciência Política na Área de Política Contemporânea. Thesis submitted to the Institute of Philosophy and Humanities of the Universidade Estadual de Campinas as part of the requirements for obtaining a Doctor of Political Science in the Area of Contemporary Politics.

Orientadora: Dra. Evelina Dagnino Este exemplar corresponde à versão final da tese defendida pelo aluno Anderson Rafael Barros do Nascimento, e orientada pela Profa. Dra. Evelina Dagnino _______________ Asssinatura da Orientadora CAMPINAS 2016

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Ficha Catalográfica Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Nome da bibliotecária e número

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Disputes and Resistances in the Democratic Construction of the Federal Public Policy for Children and Adolescents: the Council for the Rights of social participation and Community Policies Palavras-chave em inglês: Área de Concentração: Ciência Política Contemporânea Titulação: Doutor em Ciência Política Banca Examinadora:

Data de Defesa: Programa de Pós-graduação: Ciência Política

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ANDERSON RAFAEL BARROS DO NASCIMENTO

Disputas e Resistências na Construção Democrática da Política Pública Federal para a Criança e o Adolescente: o Conselho dos Direitos entre a participação social e a Comunidade de Políticas Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Doutor em Ciência Política na Área de Política Contemporânea.

Comissão Julgadora:

Profa. Dra. Evelina Dagnino IFCH/UNICAMP (Presidente) Profa. Dra. Rebecca Abers Universidade de Brasília (UnB) Profa. Dra. Rosângela Dias Oliveira da Paz Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Prof. Dra. Luciana de Oliveira Tatagiba IFCH/UNICAMP Prof. Dr. Valeriano Costa IFCH/UNICAMP

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Para Rosa e Bento

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Agradecimentos retalhos Pedaços passaram e ficaram .... Aquilo que foi.... permaneceu. Não volta mais... fica guardado em cada parte. ... Nos compõem e dá forma. Colcha de retalhos... é o que somos... O que nos passou... ... forma, reforma, transforma amigos, situações, pessoas, complicações, amores, soluções, coisas, explosões. Somos pequenos. Somos pedaços. Somos tudo que passou por nós... A escrita não é um ato solitário, apesar de ser individual. Pelo contrário, a tese em diferentes dimensões é um empreendimento coletivo. Procuro pensar sobre meus últimos anos nessa perspectiva. É coletivo, pois demanda uma dedicação e paciência das pessoas que nos cercam para entender nossos momentos, principalmente, nossas ausências. É coletivo

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também, pois se alimenta dos diferentes momentos de troca de ideias e conversas sobre os assuntos relacionados à tese. Às vezes, aquelas conversas mais despropositadas contribuem com visões sobre o objeto que estamos desenvolvendo. Minha gratidão inicial se dá exatamente nessa dimensão coletiva e por reconhecer que foram cinco anos de dedicação, mas que foi um tempo cercado de pessoas muito especiais. Sou um retalho de tudo e de todos que passaram por mim. Cinco anos é um universo de tempo bastante grande e suficiente para mudar os rumos de nossas vidas. Essa grande mudança se deu pela chegada de Rosamaria e Bento. Serei eternamente grato por todo apoio que vocês me deram. Vocês me fazem pleno e me sustentam em amor. Gratidão à minha família representada pela minha mãe (Naida Beatriz) que com sua força e seu exemplo me mostram diariamente o poder do apreço e do cuidado. Obrigado mãe. Obrigado família. Por fim, agradeço imensamente a minha orientadora Evelina Dagnino. Ao longo de todo tempo fiz questão de chamá-la por “professora”, pois nenhuma palavra poderia trazer adjetivos que essa palavra pode carregar. Paciência e ensinamentos que levarei para sempre comigo.

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Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. Neste momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música. Mesmo não sabendo que era amor, sentiam que era bom. (Capitães da Areia, Jorge Amado)

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RESUMO Essa tese, por meio de metodologia qualitativa, analisa a efetividade da atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) no processo de formulação de políticas públicas, sob o marco do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Discute-se, nesse contexto, como são mantidas as instituições que garantiram conquistas sociais no Brasil pós-1988. A Construção Democrática da Política Pública conceitua disputas e resistências sobre as visões que incidem sobre o embate entre espaços da sociedade civil e do Estado na formulação da política pública. Usa-se o conceito de Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente para nomear o espaço da sociedade civil e sua organização baseada na autonomia e na pressão social sobre o Estado. A Comunidade de Política nomeia a forma como a atuação pública se organiza, passando por instâncias estatais, mas com participação de atores e organizações da sociedade civil, na decisão e na implementação da política pública. Como estudos de caso foram selecionados o Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase) e o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), resoluções assinadas pelo Conanda em 2006 e que influenciaram leis aprovadas posteriormente (Lei 12.594/12 e Lei 12.010/10). Ambas normatizam os dois tipos de medidas de intervenção propostas pelo ECA, medidas socioeducativas e medidas de proteção, que em suas versões mais drásticas lidam com o enclausuramento de crianças e adolescentes, que foi a base de funcionamento das políticas anteriores ao ECA e objeto de questionamento dos movimentos sociais que reivindicavam direitos de crianças e adolescentes, durante a década de 1980, e que influenciaram a redação do ECA. Passada cerca de uma década de existência do ECA e do Conanda, essas políticas voltaram a ser pauta de debates, principalmente como reação aos ataques sofridos pelos direitos garantidos no ECA, com as tentativas de redução da idade penal e da flexibilização da adoção. Convivem, assim, o ontem e o hoje no contexto dessas políticas e assim evidencia-se que o processo de produção de políticas está, antes ou mais, associado ao processo de argumentação dos atores políticos do que com as técnicas formais de solução de problemas. Nos momentos de formulação de políticas, a Comunidade negocia a forma como a política será implementada e o Conselho faz parte desse espaço. Todavia, a manutenção das institucionalidades passa pela forma como o Conselho consegue se projetar para o Campo. Nos casos estudados, essa projeção do Conselho junto ao Campo foi diferenciada e determinante, pois as políticas de enclausuramento são significativas como temas de mobilização do Campo e, por isso, o Conselho conseguiu ser reconhecido como espaço de formulação das políticas públicas no interior da Comunidade de Política. Essa atuação do Conselho torna as temáticas do enclausuramento, portanto, da proteção de direitos, em pilares da área de política públicas para a criança e o adolescente que, para atingir aos objetivos do ECA, demanda um maior direcionamento para as políticas de promoção de direitos. Palavras-Chave: Participação Social; Formulação de Políticas Públicas; Construção Democrática; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); Sistema Nacional Socioeducativo; Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.

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ABSTRACT This thesis, through qualitative methodology, analyzes the effectiveness of the activities of the National Council for the Rights of Children and Adolescents (Conanda) in the process of policy formulation, under the framework of the Child and Adolescent (ECA). It is argued in this context as they are maintained those institutions that ensured social achievements in the post-1988 Brazil. The Democratic Construction of Public Policy conceptualizes disputes and resistance on the views that focus on the clash between spaces of civil society and the state in public policy formulation. It uses the concept of Defense Field of Children and Adolescent Rights to name the space of civil society and its organization based on the autonomy and social pressure on the state. The Politics of Community names the way the public action is organized, through state agencies, but with the participation of stakeholders and civil society in the decision and implementation of public policy. As case studies were selected to the National Socio-Educational System (Sinase) and the National Plan for Family Living and Community (PNCFC), resolutions signed by Conanda in 2006 and influenced subsequent legislation adopted (Law 12,594 / 12 and Law 12,010 / 10). Both standardize the two types of intervention measures proposed by the ECA, social and educational measures and protective measures, which in its most drastic versions deal with the entrapment of children and adolescents, which was the base of operation of previous policies to ECA and questioning object social movements claiming rights of children and adolescents during the 1980s, and influenced the drafting of the ECA. After about a decade of existence of the ECA and Conanda, these policies back to the agenda of discussions, mainly in reaction to the attacks suffered by the rights guaranteed in the ECA, with attempts to reduce the penal age and easing adoption. Live, so yesterday and today in the context of these policies and so it is clear that the policy-making process is, sooner or associated with the process of argumentation of political actors than with formal technical troubleshooting. In policy-making moments, the Community negotiates how the policy will be implemented and the Council is part of this space. However, the maintenance of institutionalities goes through how the Council can be projected to the field. In the cases studied, this projection of the Council with the field was different and determining, for entrapment policies are significant as the field mobilization issues and, therefore, the Council could be recognized as formulation space of public policies within the Community Policy. This action of the Council makes the themes of entrapment, therefore, the protection of rights, in pillars of public policy area for children and adolescents, to achieve the objectives of ACE, demand greater guidance for rights promotion policies . Keywords: Social Participation; Formulating Public Policy; Democratic Construction; National Council for the Rights of Children and Adolescents (Conanda); National SocioEducational System; National Plan of Family and Community Living.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Ano de Criação dos Conselhos Nacionais

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LISTA DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Distribuição das resoluções nos períodos dos governos

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LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Avaliação da primeira década de implementação do ECA

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Quadro 2 – Marcos legais do período de predomínio assistencialista

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Quadro 3 - Marcos legais do período de predomínio técnico

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Quadro 4 - Marcos legais do período de predomínio educador

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Quadro 5 – Consolidação das informações dos três períodos

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SUMÁRIO Introdução Um retrato de dois discursos heterogêneos e uma área de atuação Preâmbulo da pesquisa: controle social e políticas públicas para a criança e o adolescente Das questões de pesquisa, objetivos e caminhos metodológicos Do ambiente, caixa de ferramentas conceituais e objetivos maiores da pesquisa O Controle Social na formulação das políticas públicas e suas dimensões A organização da tese Capítulo 1 – Contextualização das políticas públicas para as crianças e os adolescentes e a participação social: representações sociais, matrizes históricas e os Conselhos 1.1. O enclausuramento de crianças e adolescente e as matrizes históricas na constituição da área de políticas públicas para criança e adolescente no Brasil 1.1.1. Caridade, atuação privada e ação contra a pobreza no trato da infância 1.1.2. Autoritarismo, centralização da questão da infância no Estado e ação contra a delinquência 1.1.3. Educatividade social, atuação pública, políticas sociais e medidas de proteção e socioeducação 1.1.4. Sistematização dos Projetos de Políticas Públicas para a criança e o adolescente 1.2. Os Conselhos Nacionais e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes (Conanda): a institucionalização da participação social no interior do Estado 1.2.1. As instâncias participativas, as políticas públicas e a participação social 1.2.2. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) 1.3. O Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA): a tentativa de institucionalização da sociedade civil 1.3.1. Uma breve análise da organização do Fórum DCA Capítulo 2 – Campo e Comunidade na Construção Democrática da Política Pública para a Criança e o Adolescente 2.1. Delineando o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes: a pressão social sobre as instâncias decisórias do Estado 2.1.1. Formação e fragmentação do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente: do antagonismo da sociedade contra o Estado aos dilemas neoliberais 2.1.2. A retomada conjuntural do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes na formulação da política pública 2.2 Delineando a Comunidade de Política Públicas: o processo decisório e a negociação para a formulação da política pública 2.2.1. A formulação de políticas públicas, as interações socio-estatais, os Conselhos e a Comunidade de Política Pública para a Criança e o Adolescente 2.2.2. As institucionalidades estatais para a política para a criança e o adolescente e a Comunidade de Política Capítulo 3 – Metodologia, modelo de análise e dados da pesquisa: múltiplos fluxos e a análise das formulações das políticas públicas 3.1. O Modelo dos Múltiplos Fluxos e a formulação das políticas públicas 3.2. As fontes e a coleta de dados

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Capítulo 4 – O processo decisório sobre as políticas de enclausuramento: pressão social e negociação para a tomada de decisão 4.1. As medidas socioeducativas no processo decisório inter-organizacional 4.1.1. A decisão de enfrentar a questão 4.1.2. A mudança de governo e a janela de oportunidades 4.1.3. A formulação da política 4.2. O Plano de Convivência Familiar e Comunitária 4.2.1. A evolução das discussões sobre as violações de direitos de crianças e adolescentes 4.2.2. A formulação da política Capítulo 5 – O Controle Social na formulação da política pública: disputas e resistências na construção democrática da Política Pública 5.1. Elementos demarcadores dos casos analisados: as ideias sobre o enclausuramento e o papel do Estado 5.1.1. As ideias relacionadas à política pública de enclausuramento e o Controle Social 5.1.2. O Controle Social e as disputas em torno do papel do Estado e das organizações da sociedade civil 5.2. O Controle Social e a percepção sobre os problemas da política na agenda pública 5.2.1. Elementos para a delimitação das questões públicas na política para a criança e o adolescente 5.2.2. O Conselho entre o Campo e a Comunidade na definição das questões públicas 5.3. As oportunidades de mudança na política e o Controle Social na agenda pública 5.3.1. Poder Executivo, Legislativo e o Conselho na condução da política 5.3.2. Campo, Comunidade e Conselho no trâmite dos Projetos de Leis que ameaçavam direitos de crianças e adolescentes 5.4. O Controle Social e a construção das soluções para a política pública 5.4.1. O Conselho e os outros espaços decisórios no trâmite de proposição de alternativas para as políticas de enclausuramento 5.4.2. Campo, Comunidade e a construção dos subsídios para a formulação da política pública Conclusões O Conselho e as Resistências na Construção Democrática da Política Pública O Conselho e as Disputas na Construção Democrática da Política Pública Promoção de direitos, controle social e a transformação de uma área de atuação Referências Anexo 1 – Entrevistados

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INTRODUÇÃO Um retrato de dois discursos heterogêneos e uma área de atuação Eram cinco horas da tarde do dia onze de julho de 2012. O auditório do Centro de Convenções Ulisses Guimarães, em Brasília, recebia os participantes, convidados, observadores e delegados da IX Conferência Nacional do Direito da Criança e do Adolescente.1 As Conferências são eventos conectados com o Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, e juntos fazem o controle social das políticas públicas. Cerca de duas mil pessoas participavam daquele momento, das quais uma grande parte tinha passado pelo processo de conferências nos seus municípios e estados. Dentre essas estavam cerca de oitocentos delegados adolescentes, um número maior do que nas edições anteriores. A mesa oficial de abertura foi composta por diversos ministros de Estado, autoridades públicas nacionais e internacionais. Estavam também dois representantes adolescentes. Eles eram componentes de um grupo formado por representantes estaduais, denominado G27, que acompanhou o processo de elaboração da Conferência Nacional junto ao Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente. A IX Conferência foi inovadora, pois ampliou o número de delegados adolescentes, e possibilitou o acompanhamento de seus representantes na organização da Conferência. Os dois adolescentes fizeram uso da palavra2 como parte da mesa de abertura. O primeiro adolescente vestia traje esporte fino e era representante do estado do Paraná. No alto dos seus dezessete anos, iniciou seu discurso agradecendo à Ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, à Secretária Nacional da Secretaria de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Carmem de Oliveira, e à Presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, Miriam Maria José dos Santos. Leu um texto no qual demonstrava a importância do espaço cedido para o protagonismo infantojuvenil, tanto no G27 quanto na própria Conferência. Agradecimentos às autoridades voltaram inúmeras vezes, quase como uma gratidão pelo espaço proporcionado a ele e para os que ele

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O pesquisador participou da Conferência na qualidade de convidado do Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente – Conanda. 2 A versão integral dos discursos está disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=m_fhI4P72Yc&list=UU2DLeKTIFUukA6q91712etg&index=10&feature=pl pp_video.

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“representava”. Foi um discurso preparado e correto a partir dos parâmetros necessários para a sua aceitação pelos representantes governamentais e outras instituições ali presentes. A segunda adolescente, uma menina, trajava roupas menos formais: uma camiseta branca com estampa de campanha “não bata, eduque”. Ela era representante do Pará e natural de uma comunidade ribeirinha. A menina fez um discurso mais livre e, em certos momentos, inflamado. Em seu discurso abordou fatos delicados para o governos brasileiro como: a violação de direitos humanos, a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, a expulsão de moradores do bairro Pinheirinho em São José dos Campos/SP e a Nova Luz – projeto de reestruturação urbana no centro de São Paulo. Apontou, assim, como fez o primeiro adolescente, a necessidade da abertura e da manutenção de espaços participativos para crianças e adolescentes. Entretanto, o tom de sua fala não era com viés de gratidão, mas ressaltava que aquele espaço cedido foi uma conquista dos movimentos da sociedade civil. Era um discurso menos ensaiado, com certo treinamento na maneira de se portar em eventos públicos e na utilização de palavras adequadas. Ambos tinham discursos articulados e se expressavam em um português bem verbalizado. Nos discursos estava presente uma linguagem fundamentada nos direitos humanos, possibilitada a partir da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.3 Estavam contidos nos dois discursos, por exemplo, a ideia da participação de crianças e adolescentes na sociedade civil, a existência dos direitos fundamentais e a necessidade da proteção integral para as crianças e os adolescentes do Brasil. A modificação de comportamentos sociais, a partir da institucionalização de uma determinada lei, é um dos objetos clássicos de estudo da Ciência Política. A hegemonia de um discurso fundamentado nos direitos é um efeito iniciado pela normatização do Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto ainda se convive com antigas formas de lidar com a infância. Os adolescentes que discursaram estavam ligados às organizações tradicionais na política para a infância. Eram atuantes em organizações religiosas e nelas passaram por processos de preparação para a participação. De certa forma, esse fato direciona suas abordagens e condiciona os seus comportamentos. Apesar da similaridade, os dois discursos tinham uma diferença fundamental. O primeiro era um discurso comprometido e programado para evitar interpretações incorretas. Visava consolidar uma boa relação com todos os representantes da sociedade civil, mas,

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Lei 8.069/90, a qual será abordada em detalhes mais adiante.

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principalmente, com os governantes. Nele, as políticas públicas eram tratadas como uma ação de todos (governo e sociedade), e não se responsabilizava o Estado com relação aos problemas sociais existentes. A segunda tinha maior grau de autonomia, pois abordou pontos considerados polêmicos, principalmente para os representantes governamentais presentes. Trouxe em alguns momentos os pontos de conflito de interesses entre a sociedade civil e o governo, e responsabilizava o Estado pelos problemas existentes. Esses discursos são aqui tratados como representações da maneira como a política pública para a infância e adolescência se institucionalizou no Brasil no pós-Constituinte de 1988, e do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. São retratos de conteúdos para se compreender o controle social das políticas públicas, pois formam o ambiente no qual se estabelecem as disputas sobre o entendimento do papel da política pública e da participação da sociedade. Ambos são dependentes do contexto discursivo e dos comportamentos trazidos pela institucionalidade do ECA, principalmente em seus valores fundamentais associados aos direitos e à cidadania. Os conflitos tendem a ser abafados na dinâmica das rotinas administrativas e na manutenção do status quo do Estado. O próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente atua dessa forma, quando não consegue repercutir as denúncias e problemas públicos e transformá-los em mudanças nas políticas públicas. Falta visibilidade e capacidade por parte do Conselho para expressar as violações de direitos que ainda existentes. Entretanto, poucas vezes o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente conseguiu sair da inércia e formular políticas públicas a partir dos problemas públicos constantes. Essa pesquisa analisa dois casos em que isso ocorreu e busca compreender as dimensões assumidas pelo Controle Social nesses momentos de formulação de política. Preâmbulo da pesquisa: controle social e políticas públicas para a criança e o adolescente A tese discute as dimensões assumidas pelo Controle Social na formulação de políticas públicas para a criança e o adolescente com foco em um Conselho Nacional de Políticas Públicas. Assim, promove uma investigação sobre os efeitos da instância de participação social e sua incidência nas políticas públicas, com base no debate contemporâneo sobre a efetividade das instâncias de participação social (PIRES et al., 2011).

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A política pública para a criança e o adolescente é a área de estudo, com especial atenção ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, o qual foi normatizado em 1991 e deu início às suas atividades em 1993, como o segundo Conselho de Políticas Públicas criado no contexto pós-Constituinte de 1988. O Estatuto da Criança e Adolescentes (Lei 8.069/90), por sua vez, foi a primeira normatização específica de uma área de políticas públicas aprovada após a Constituição Federal de 1988. Portanto, uma das áreas pioneiras na participação da discussão sobre as políticas públicas e com uma longa atuação do Conanda no Controle Social. O Controle Social nas políticas públicas tem grande parte de suas atribuições voltadas para o acompanhamento e o monitoramento das ações governamentais. Cabe também a ele, ainda que como atividade pontual, direcionar seus esforços para a produção de mudanças nas políticas públicas existentes. Dessa forma, compreende-se o Controle Social como a constante interação entre atores da sociedade civil e governamentais, no espaço dos Conselhos de Políticas Públicas, voltados para a fiscalização das ações governamentais e para a discussão sobre os rumos da política pública, que por meio de deliberações resultarão em formulação de políticas. As mudanças nas políticas públicas estudadas estão relacionadas com o que se denomina de políticas de enclausuramento. Elas são as consequências mais drásticas das intervenções das políticas públicas na vida de crianças e em seu desenvolvimento, pois as direcionam para um ambiente institucional e as deixam sob tutela do aparato organizacional. Essas situações, diante do novo marco legal, aparecem ou em relação às violações de direitos de crianças e adolescentes,4 ou como ato educativo, em resposta a uma determinada atitude de infração contra a lei cometida por um adolescente.5 Essa forma de estruturação das políticas, fundamentada no enclausuramento, foi a maneira como as políticas para a criança e o adolescente no Brasil eram realizadas até a Constituição Federal de 1988. A base para isso era formada pela existência de grandes organizações que mantinham crianças e adolescentes sob sua guarda. Porém, a lógica do ECA pautou-se na promoção de direitos fundamentais, ao invés do atendimento fundamentado no caso problema, conforme era feito anteriormente e, para isso, está apoiada na existência e na integração de políticas públicas e de políticas sociais. Com isso, o ECA direciona as políticas públicas para priorizar a criança e o 4

De acordo com o ECA, criança é o período de 0 a 12 anos, enquanto adolescência é a faixa etária dos 12 anos até o momento de completar 18 anos. 5 A responsabilização pelo ato infracional é atribuída somente ao adolescente.

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adolescente em um sistema de políticas, com critérios normatizados e padrões universalizados. Situações excepcionais de violações dos direitos fundamentais, como, por exemplo, abuso, maus-tratos, negligência são tratadas por políticas de proteção e as políticas de enclausuramento são usadas até a resolução dessas situações, deixando as crianças e os adolescentes sempre acompanhados de um aparato multi-organizacional para que continue garantindo os direitos fundamentais. Nessas situações de proteção, o ECA estipulou dois tipos de medidas extraordinárias de atuação pública para a garantia de direitos de crianças e adolescentes, são elas: “medidas de proteção”6 e “medidas socioeducativas”.7 As primeiras funcionam como intervenção institucional na vida de crianças e adolescente e na esfera familiar/comunitária, e como forma de atuar de maneira preventiva e protetiva para a garantia de direitos que tenham sido violados. As outras aparecem como medidas aplicadas ao adolescente que tenha cometido ato contra a lei. O objeto desse estudo tem relação direta com essas duas medidas, pois analisa duas formulações feitas pelo Conanda relacionadas a elas. O Sistema Nacional Socioeducativo (Sinase), primeira formulação estudada, concretizou-se em resolução do Conanda em julho de 2006. O reconhecimento das problemáticas relacionadas com essas medidas foi uma realidade desde as primeiras reuniões do Conselho, em 1993, que já tinha denúncias apontando a situação de adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas. A face mais perversa desses problemas se dava na precariedade do atendimento ao adolescente infrator e nas constantes rebeliões no sistema FEBEM. Essas situações se arrastaram ao longo da década de 1990 e pressionavam respostas de formuladores de políticas públicas. Outra demanda por respostas em relação ao Sinase vinha da existência e fortalecimento de projetos de leis que buscavam a redução da maioridade penal. Esses projetos se alimentavam da própria ineficiência das políticas, que não eram alternativas 6

De acordo com o artigo 101 do ECA são medidas de proteção: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII colocação em família substituta. 7 As medidas socioeducativas são divididas entre aquelas de “meio fechado” e as de “meio aberto”. As denominadas medidas de meio aberto são divididas em “Prestação de Serviços à Comunidade – PSC” e “Liberdade Assistida – LA” (listadas na Seção II à Seção V do ECA). As medidas de meio fechado são divididas em “Semiliberdade” e “Internação” (Seção VI e VII).

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adequadas para o problema da delinquência de adolescentes. A discussão do Sinase foi fortalecida à sombra desses acontecimentos. Em 2003, com o acúmulo de práticas e subsídios anteriores, vindos tanto de organizações e atores sociais, quanto estatais, e a partir do encontro com um governo mais cuidadoso com as instâncias participativas, foi criado um Grupo de Trabalho (formado por organizações da sociedade civil, agentes da burocracia estatal, atores políticos e conselheiros não-governamentais) para propor diretrizes para essas políticas públicas. Esse processo passou por momentos participativos, como conferências, audiências públicas, seminários regionais e outras instâncias. Foram obtidas duas conquistas: a primeira, uma resolução do Conanda que determinou as formas de funcionamento das medidas socioeducativas (Resolução n˚ 119/06), a segunda foi a Lei 12.594/12 que instituiu o Sistema Nacional Socioeducativo. Obteve-se também o denominado “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária”, aqui tratado de Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária – PNCFC. O fato gerador para o debate sobre essa agenda foi uma Caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que visitou os abrigos em 2001, e verificou a situação de abandono das crianças em abrigos.8 Como resultado dessa Caravana, uma Frente de Deputados propôs o Projeto de Lei Nacional de Adoção – PLNA (PL n˚ 1.756/03) que previa a facilitação dos procedimentos para adoção como uma alternativa ao abrigo. Algumas organizações da sociedade civil, que defendiam os direitos das crianças, ao tomar conhecimento sobre o teor do PLNA, viram que se tratava de uma ameaça às crianças, por destituir o poder familiar e ferir o direito fundamental à convivência familiar e comunitária,9 conforme normatizado pelo ECA. A partir disso, essas organizações passaram a se mobilizar contra o PLNA e pressionar contra a aprovação PL n˚ 1.756/03. O Conselho e o Poder Executivo receberam esses subsídios e uma Comissão foi criada (Decreto de 19 de outubro de 2004) para construir uma proposta alternativa ao PL em tramitação. Após as primeiras análises da Comissão, a proposta foi articulada em três frentes: 1) família e políticas de apoio socio-familiar, 2) abrigos e alternativas à institucionalização e 8

Os principais pontos demonstrados pela Caravana foram que o abrigo era realizado como prevenção a uma situação de pobreza comunitária-familiar e com o esquecimento e o desconhecimento da real situação de cada criança ou adolescente abrigada. 9 De acordo com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) são direitos fundamentais: Do Direito à Vida e a Saúde (Arts. 7° a 14), Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade (Arts. 15 a 18), Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária (Arts. 19 a 52), Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer (Arts. 53 a 59) e Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho (Arts. 60 a 69).

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3) adoção. A Comissão entregou os seus resultados ao Conanda e ao Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Então, outras instâncias participativas (especialmente as Conferências das duas áreas) foram acionadas e o documento foi levado à consulta pública e seminários. Resultaram desse processo uma resolução, assinada por dois conselhos nacionais, o Conanda e o CNAS (Resolução Conjunta n˚ 01/06) e uma alteração do Projeto de Lei da Adoção citado, que foi transformado na Lei 12.010/10 que alterou artigos do ECA. A investigação desses casos é desenvolvida em torno do processo de argumentação, de deliberação, da pluralidade organizacional articulada para essas políticas, dos atores envolvidos, bem como dos conteúdos que essas políticas tentaram enfrentar. Das questões de pesquisa, objetivos e caminhos metodológicos As questões centrais dessa pesquisa buscam responder duas questões: como são mantidas as instituições que garantiram conquistas sociais no Brasil pós-1988? Já em caráter específico, a pesquisa investiga o papel do Conselho como lócus institucional de encontro entre a “lógica da pressão” e a “lógica da negociação”, e os seus efeitos no contexto do desenvolvimento das políticas públicas para a criança e o adolescente na esfera federal. Sobre os processos decisórios da questão do enclausuramento, a pesquisa objetiva compreender a questão pública relacionada ao enclausuramento de crianças e adolescentes no contexto da política social no Estado contemporâneo brasileiro, e investigar as relações estabelecidas entre participação social e políticas públicas no desenvolvimento das políticas públicas para crianças e adolescentes no plano federal. Os objetivos específicos são pesquisar o processo de formulação das políticas públicas para a criança e o adolescente a partir da path dependency10 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/90); investigar os efeitos do controle social no contexto da política pública para a criança e o adolescente na Administração Pública Federal; estudar as relações entre instância participativa (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda), sociedade civil e sociedade política na construção das políticas públicas; analisar as configurações do campo de defesa sobre a criança e o adolescente na relação com o Estado, no desenvolvimento das políticas públicas e nas discussões sobre a questão do enclausuramento de criança e adolescente; e, compreender os formatos assumidos pela comunidade de política nos processos decisórios analisados. 10

Optou-se por deixar o termo na sua língua original, pois a tradução “trajetória dependente” ou “dependência de trajetória” não expressa adequadamente o termo original.

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As hipóteses iniciais de trabalho, para analisar tais objetivos, são que: •

O Estatuto da Criança e do Adolescente traçou uma path dependency para as políticas públicas da criança no Brasil pós-90.



Os conteúdos dos debates sobre a questão do enclausuramento de crianças e adolescentes tiveram na instância participativa da área (Conanda) um espaço central.



Os processos decisórios sobre as políticas públicas relacionadas com a questão do enclausuramento de crianças e adolescente tiveram como norte uma noção de setorização das políticas públicas, em contradição com as perspectivas inter-setoriais de uma política como a da infância.



O movimento social por políticas públicas fundamentadas em direitos humanos que resultou no ECA foi progressivamente se limitando em algumas temáticas específicas e que não são abarcadoras de todas as crianças e adolescentes.

O caminho metodológico da pesquisa adotou estratégias qualitativas, com o objetivo de realizar uma análise aprofundada sobre os casos das formulações das resoluções do Sinase e do PNCFC. Utilizou-se o rastreamento do processo (process tracing) como forma de descrever os mecanismos causais e sequenciais para compreender a produção do fenômeno (COLLIER, 2011) relacionado com as dimensões assumidas pelo Controle Social na formulação de políticas. A coleta de dados para a pesquisa se valeu de múltiplas estratégias como, por exemplo, entrevistas com atores-chave nos processos de formulação e análise documental dos documentos oficiais produzidos no período e nas atas do Conselho. Para analisar essas formulações foi realizado o espelhamento segundo o “Modelo de Múltiplos Fluxos” de Kingdon (2006). Esse espelhamento surge, principalmente, como forma de sistematizar os dados rastreados e permite uma compreensão sobre as dimensões assumidas pelo controle social. Esse modelo, em sua versão original, possibilita desenhar uma descrição do processo de “produção da agenda” (agenda setting), quando uma temática é assumida como assunto a ser enfrentado (questão pública), até a “produção da política”, que resulta nas formas de atuação dos agentes implementadores. De acordo com o Modelo, são três fluxos que, quando convergem (coupling), permitem essa passagem. São eles: fluxo dos problemas (percepção pública dos problemas),

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fluxo das políticas (compromisso político para enfrentar a situação) e fluxo das soluções (consenso entre especialistas e tecnologia disponível para atuar com a política). Esse alinhamento gera uma janela de oportunidade que pode ser aproveitada pelos agentes tomadores de decisão para a formulação da política. Esse modelo, mesmo que sirva como um espelho para refletir sobre os dados da pesquisa, não é aplicado na sua integralidade, pois críticas demonstram seus limites, principalmente em realidades como a política pública brasileira (FREY, 2000), pois estas não poderiam ser pensadas, por exemplo, sem certo caráter conflituoso entre agências estatais, os movimentos da sociedade civil, o passado histórico das institucionalidades existentes e a busca por consolidação de estruturas para operacionalização dessas políticas. Nesse jogo encontram-se limites e possibilidades para compreender o avanço da política e as respostas às ameaças de retrocesso em direitos já garantidos, mais do que se for pensado como um movimento racional e incremental de proposição de soluções, implementação dessas propostas e avaliação dos seus resultados. Nas decisões sobre as políticas públicas estudadas, o espaço do Conanda conseguiu exercer um papel de recepção e diálogo com as pressões que vinham de atores da sociedade civil, ou do que se denomina como Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Conseguiu ainda ser espaço de articulação e formulação entre as múltiplas organizações que compõe o Estado e o Sistema de Garantia de Direitos, ou a Comunidade de Políticas. Do ambiente, caixa de ferramentas conceituais e objetivos maiores da pesquisa No contexto de cada área de políticas públicas alguns temas afloram de maneira mais emblemática, bem como a partir deles percebe-se a coexistência de distintas visões sobre as políticas públicas. O tema do enclausuramento nas políticas públicas para a criança e o adolescente, um dos focos desta tese, por exemplo, é representativo da constante tensão entre ideias e argumentos novos e antigos. Convivem assim o ontem e o hoje que, como parte desse processo, sofre adaptações para torná-lo mais efetivo nas respostas às demandas existentes. Com isso, evidencia-se que o processo de produção de políticas está, antes ou mais, associado ao processo de argumentação dos atores sociais em cena do que com as técnicas formais de solução de problemas (CAPELLA, 2016). As representações sociais sobre a criança influenciaram momentos e desenhos históricos das políticas públicas para a criança e o adolescente (PINHEIRO, 2003) e

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resultaram, ao longo do tempo, em leis específicas para essa área. 11 Esses momentos históricos seguem atuando e as representações sobre a criança permanecem como fonte de influência para os conteúdos das políticas públicas. A partir disso, o interessa, de um ponto de vista amplo, a compreensão de parte do processo de “construção democrática da política pública”. Essa construção, inicialmente, assimila diferentes visões de mundo presentes na sociedade. Dagnino et al. (1996, p. 38) denominam essas visões como Projetos Políticos, pois “designa os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos”. Propõe-se que, no âmbito das políticas públicas específicas e setoriais, visões específicas e ideias relacionadas às temáticas das políticas projetam propostas para a atuação do Estado e da sociedade frente às políticas públicas. Criam-se, dessa forma, o que aqui denominamos de “Projetos de Políticas Públicas” que serve como conteúdos para compreender as disputas sociais em torno da formulação das políticas. Os projetos de políticas públicas hegemônicos em momentos históricos anteriores ainda continuam influenciando conteúdos para essas políticas públicas. Nesse sentido, o que aqui denomina-se de “visão assistencial-caritativa”, por exemplo, embasou a formação das políticas para crianças e adolescentes e influenciou o primeiro Código de Menores, datado de 1927. Nessa concepção, o atendimento à criança é visto como uma ação resultante do espírito benevolente da sociedade, que deve dar conta dos seus problemas. Tradicionalmente, a figura do “menor carente” aparece como o tipo infantil representativo daquele momento. O enclausuramento desses menores12 era delegado para as iniciativas de caridade, muitas vezes religiosas, que buscavam proteger a infância moralmente abandonada. Essa visão é um contraponto à ideia de direito, fonte de estruturação do ECA a partir dos anos 1990, e ganha roupagens contemporâneas a partir do fortalecimento do “Projeto Político Neoliberal”, conforme caracterizado por Dagnino et al. (2006). Outro projeto historicamente constituído fundamenta-se na “visão repressiva”, que busca usar as políticas de coação estatal como mecanismo para sanar a sociedade. O “menor delinquente” passa a ser o foco de atenção das políticas e o Estado é o responsável

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Anteriormente ao ECA, as principais leis que normatizaram o tema das políticas para a criança e o adolescente foram: Código de Menores de 1927 e o Código de Menores de 1979. 12 Propositadamente, ao tratar dos Projetos de Políticas Públicas Caritativo e Autoritário, abordado mais adiante, usa-se o termo “menor” em substituição à ideia de criança e adolescente. O ECA muda essa nomenclatura e assume que, ao invés de uma menoridade em relação ao aparato jurídico institucional do Estado, crianças e adolescente são sujeitos de direitos.

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por cuidar desse problema social. Nesse contexto, o enclausuramento é visto como exercício de repressão e correção contra os males provocados pelos menores.13 O “Projeto Político Autoritário”, na visão de Dagnino et al. (2006), também tem sobrevida nas políticas públicas para a criança e o adolescente, quando propostas passam a ser conduzidas sob esse marco. O Sistema FUNABEM/FEBEM, predominante a partir de meados da década de 1940 no Brasil, foi a concretização da existência desses dois projetos de políticas públicas anteriores. Essas organizações passaram a congregar os “menores carentes” e os “menores delinquentes” em seus ambientes e lidavam com a problemática infantil por meio do enclausuramento.14 O terceiro projeto de política pública, aqui denominado “educativo”, nasceu nas primeiras discussões para a formulação do ECA. Nesses momentos, como prova da coexistência entre o ontem e o hoje, havia um discurso novo fundamentado nas práticas sociais da década de 1980 e na ideia do direito a ter direitos, mas com as estruturas organizacionais dos serviços públicos pré-existentes, que ainda limitavam a concretização desse discurso. O ECA buscou romper com as visões autoritárias e caritativas e, consequentemente, com o sistema FEBEM, e colocar a promoção de políticas sociais como meio para a garantia de direitos. Nesse contexto, a criança passa a ter prioridade nas ações das políticas que orbitam em um Sistema de Garantia de Direitos (SGD),15 como forma de complementar as ações interinstitucionais. Assim, o conjunto das políticas sociais passaram a tramitar, preventivamente e protetivamente, pari passu com as políticas de proteção de crianças e contra as situações de vulnerabilidade. No contexto das políticas atuais o enclausuramento de crianças ocorre como ação esporádica, pois a promoção de políticas sociais deve ser garantida como meio para o exercício dos direitos fundamentais. Com isso, o foco prioritário do Estado deve deixar de estar nas instituições que prestam atendimento para a criança e o adolescente, centralizando-

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O uso da palavra “menor” foi proposital, pois diante do marco legal do Código de Menores crianças e adolescentes eram tratados com minoridade frente ao aparato legal e nas relações sociais. Além disso, o uso da palavra menor também é muito associado à delinquência e diariamente aparece nas manchetes de jornais. Ao longo da tese, a palavra “menor” será propositadamente usada remetendo a esse significado um tanto pejorativo. De outra forma, os sujeitos da política serão tratados por crianças e adolescentes. 14 O documentário “FEBEM – O começo do fim” (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=cH7Kpu8V_50) relata o início do processo de extinção da FEBEM. 15 De acordo com o artigo 1˚ da resolução n˚ 113/2006 do Conanda: “O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das instâncias públicas governamentais e da sociedade civil, na aplicação de instrumentos normativos e no funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos humanos da criança e do adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal”.

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se nesses sujeitos de direitos e nas ações necessárias para o seu desenvolvimento. Contudo, no contexto dessas políticas essa inversão é um desafio em razão da maneira como estão estruturadas e por estarem formadas em torno dessas organizações, ao invés de centrar-se no público-alvo. Os Conselhos dos Direitos de Crianças e Adolescentes nasceram como espaços para buscar romper com essas práticas, passar a deliberar sobre políticas públicas e, principalmente, elevar os interesses de crianças e adolescentes ao primeiro plano. Eles se alimentam da relação público-privado, pois criam um espaço de decisão compartilhada entre organizações representativas da sociedade civil, os movimentos sociais que atuam na defesa dos direitos de crianças e atores que assumem a representação do Estado. No contexto dessa pesquisa os Conselhos são compreendidos como “espaço entre”, marcado pelo exercício da política e, principalmente, como representação da mediação entre Estado e sociedade. De um lado, eles têm a capacidade de dar voz às pressões de atores da sociedade em prol do fortalecimento das capacidades estatais (ABERS; KECK, 2009) e, de outro, buscam a cooperação entre diferentes organizações para a formulação de políticas públicas. A “construção democrática da política pública”, efetivada nesse contexto e o Controle Social, via democracia participativa, foi um dos instrumentos consagrados na Constituição Federal de 1988 para permitir essa construção. O Controle Social não é o único meio para isso, já que outros instrumentos de participação, tanto pelo voto (eleições), quanto pela participação direta (plebiscito e referendo),16 também proporcionam essa construção democrática.17 Todavia, a forma perene do Controle Social, por meio dos Conselhos de Políticas Públicas, o diferencia das demais formas de participação, já que funcionam como espaços de discussão com atores de organizações da sociedade civil e do governo no âmbito da gestão das políticas públicas. Espera-se que as instâncias de Controle Social sejam dedicadas à formulação de políticas públicas, para além de suas ações de fiscalização da ação governamental. Na medida em que as institucionalidades relacionadas com as políticas públicas avançam, a ocorrência de momentos de formulação tendem a ser diminuídos e os Conselhos voltam a ter maior parte do seu tempo e energia para o acompanhamento da implementação das ações públicas.

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Esses ainda praticamente inexistentes nas políticas públicas brasileiras. Os orçamentos participativos, não estipulados na Constituição Federal de 1988, também foram mecanismos criados para permitir essa construção democrática.

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A criação e/ou a modificação de institucionalidades18 para as políticas públicas não significa o fim das disputas relacionadas aos conteúdos das políticas. Em alguns casos e com o passar do tempo, essas institucionalidades criadas precisam ser revistas, pois, como resultante do próprio movimento histórico-social, podem não mais atender às questões da política pública, ou novas questões públicas podem emergir. Estabelece-se assim uma tensão entre disputas e resistências no âmbito da construção democrática das políticas públicas, pois surgem disputas entre os distintos conteúdos dos projetos de políticas públicas e as resistências, enquanto pontos a serem mantidos nos processos de mudanças institucionais. Cabe aos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente conseguir ser espaço representativo como instância entre a sociedade civil e a sociedade política, ao ponto de transitar entre os espaços relacionados com a participação social e relacionados com a política pública. Dessa forma, o Conselho pode funcionar como um espaço institucional para responder aos movimentos de disputas e de resistências no processo de construção democrática da política pública. Entretanto, a literatura sobre a atuação dos Conselhos tem demonstrado que esses espaços teriam deixado de ser locais para o conflito e a deliberação (ALMEIDA, 2010; TEIXEIRA, 2013) e, com isso, perderam parte da capacidade de exercer a representação da sociedade civil na estrutura do Estado (ALMEIDA, TATAGIBA, 2012). Assim, uma tarefa para as investigações sobre as Instâncias de Participação Social se volta para conferir centralidade ao exercício político nos Conselhos e as formulações de políticas públicas são bons ambientes para isso. Para estabelecer essa centralidade, propõ-se o uso dos conceitos de “Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes” e “Comunidade de Política”. Esses conceitos segmentam espaços formativos e relacionados ao exercício do Controle Social. O ponto de partida é uma perspectiva que compreende que a ação societal altera as conformações do Estado e, ao mesmo tempo, as configurações estatais também impactam nos repertórios sociais. Estabelece-se assim uma retroalimentação entre cada um desses polos. Além disso, ao segmentar esses espaços, busca-se compreender o processo participativo e a interação entre representante e representado, e para melhor compreender os processos interativos dos atores no Conselho com espaços organizativos mais amplos, relacionados com a sociedade civil e o Estado. 18

Esse conceito tem uma grande variedade de sentidos na Ciência Política. Ele pode designar desde regras formais (políticas nacionais, normas, regras oficiais, etc.) até os laços informais estabelecidos entre atores (códigos linguísticos, canais de comunicação, ideias, valores), bem como níveis intermediários entre essas dimensões, além de designar também organizações ou um conjunto delas. (THELEN; STEIMO, 1992; SKOCPOL, 1995; IMMERGUT, 1998; MAHONEY; THELEN, 2010).

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O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, remetendo à dimensão societal, é um espaço heterogêneo e permanente de debate sobre a política e promove subsídios para a pressão da sociedade sobre o Estado na formulação das políticas públicas. Apesar de todos se reconhecerem como parte da discussão dos direitos de criança e do adolescente, os atores componentes do Campo distinguem-se com relação às organizações sociais a que estão vinculados. Assim, embora plurais, os atores do Campo partem do reconhecimento de alguns valores fundamentais, ou princípios éticos comuns, e em função deles constroem suas bandeiras e formas de ação (ALVAREZ; DAGNINO, 1995). Portanto, a ideia de “Campo” tem proximidade com a perspectiva que lida com os movimentos sociais como espaços e redes (DIANI, 1992). A autonomia dos movimentos sociais foi um princípio nos debates dos primeiros momentos de formação do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Foi a base política para auxiliar nos discursos de um conjunto de organizações e movimentos sociais para lutar contra o modelo repressivo e autoritário de Estado. Portanto, esse Campo, nas políticas públicas para a criança e o adolescente, se formou durante a década de 1980, com base nos discursos contra o Sistema FEBEM e contra o autoritarismo estatal da ditadura militar. Usando a nomenclatura de movimentos sociais da época, a ideia que os pautava era a intervenção na realidade por meio de uma “ação alternativa” (PEREIRA, 1998). Nessa visão, essas práticas acontecem diante da necessidade de influenciar o Estado para o reconhecimento de direitos, ao invés de fazer pelo Estado ou para substituí-lo. Além disso, a alteração não se dava somente no Estado, mas as próprias organizações da sociedade passavam a ser mudadas. No centro dessa mobilização estava a percepção da necessidade de romper com a centralidade da política enclausuradora, hegemônica até aquele momento. No início dos anos 1990, esse Campo organizado em rede das organizações da sociedade civil que atuavam com o tema da criança e do adolescente foi transformado no Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA), o qual terá um capítulo dedicado a ele neste estudo. Em seu princípio, o Fórum teve apoio de organizações financiadoras como, por exemplo, o Fundo das Nações Unidas para a Criança – Unicef e, com isso, conseguiu se viabilizar como espaço de mobilização da sociedade em prol dos direitos das crianças, bem como para a aprovação do ECA. No entanto, com o passar do tempo, esse Fórum deixou de ser a representação da heterogeneidade da sociedade civil e passou a concentrar grande parte de sua atuação nas organizações que o compõem.

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A chegada das Instâncias Participativas representou outro momento sobre a autonomia dos movimentos sociais, que passou a incorporar a interdependência política entre organizações da sociedade e o Estado (AVRITZER, 2012; TATAGIBA, 2002, 2004; ABERS; KECK, 2006), tanto na interação nos conselhos quanto na implementação de políticas públicas. O Fórum Nacional DCA também nasceu associado a essa atuação, pois buscou fazer-se incluído no ECA como instância oficial de mobilização da sociedade normatizada pela lei. Contudo, no momento da aprovação do ECA foram apresentados vetos em relação a essa oficialização e, com isso, o Fórum passou a ser um espaço tácito de representação da sociedade, mas não explicitado em lei, prática que acontece até os dias atuais. A ideia de autonomia também foi tomada por outro viés, mais associado à independência econômica e administrativa das organizações não-governamentais. Essa perspectiva se alimentou de outras semânticas da noção de participação, incorporando o discurso da moderna gerência, eficiente e eficaz (TATAGIBA, 2003; 2006), e deixou de lado as noções associadas ao exercício político do conflito. Essa foi a base para o surgimento da ideia de terceiro setor (ALMEIDA, 2006; BARBOSA, 2006; MONTAÑO, 2010). Esse aspecto foi sentido de maneira ainda mais presente na área da infância e adolescência, e a partir de sua visão assistencial-caritativa. Com a ameaça de retrocesso no que tange aos princípios conquistados na época de discussão do ECA, atores sociais do Campo voltaram a se mobilizar e pressionar o Estado contra as mudanças que se anunciavam com os Projetos de Lei pela redução da maioridade penal e o Projeto de Lei Nacional da Adoção. Os casos analisados do Sinase e do PNCFC ocorrem nesse contexto de interação sócio-estatal. Busca-se compreender as formatações assumidas pelo Campo de Defesa dos Direitos no Controle Social e na formulação das políticas públicas. O Conselho passou a estabelecer conexões com esse espaço do Campo, que se organizava independentemente do Conselho e dos Conselheiros não-governamentais que lá estavam. Isso demonstra a multiplicação da sociedade civil que passava, sobretudo, pelos limites da forma consolidada no funcionamento do espaço do Conselho e do Fórum Nacional DCA. Nesse contexto, a ideia de participação extrapolou esses espaços formais e seus ocupantes. Aqui se estabeleceu uma tensão de disputas entre aqueles que pressionavam (os representados) e aqueles que ocupavam os assentos estatais (os representantes) e que podiam preferir métodos de decisão mais insulados. Os repertórios utilizados pelo Campo de Defesa para acessar o Estado são dependentes do contexto em que se inserem e da rede de instâncias

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estatais disponíveis para desenvolver esse contato e, sendo assim, o Conselho é mais um espaço para pressão, entre outros. Essa tensão entre representante e representados possibilita margem para tomar a ideia de autonomia pela chave de análise que valoriza a qualidade da relação entre sociedade civil e o Estado (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006). Utiliza-se aqui a ideia de Comunidade de Política para caracterizar os movimentos organizacionais no interior do Estado e no processo de formulação de políticas públicas. A Comunidade é relativa ao Estado, mas nem por isso é tratada como um bloco homogêneo. Ela ganha maior amplitude diante das novas configurações das políticas públicas pós-ECA, pois envolve organizações estatais e não-governamentais que implementam políticas públicas e, principalmente, aquelas que decidem sobre a política. A Comunidade é caracterizada como espaço fundamentado na lógica da negociação entre os diferentes atores e organizações que formulam as políticas públicas. Para essa formulação é necessário algum nível de cooperação, que não elimina todo o conflito, mas permite negociar a partir de pontos de consenso entre os formuladores. A diferença fundamental desse conceito quanto ao de Campo de Defesa dos Direitos tem relação com o status diferenciado que atores sociais passam a ter quando ocupam a estrutura estatal. Assim, a entrada no Estado e a ocupação de postos estatais na tomada de decisão tornam esses atores sociais distintos daqueles que estão mobilizados por fora do Estado. Ambos, os atores sociais que entraram e aqueles que permaneceram fora, estão conectados, mas a natureza do Estado e o processo de tomada de decisão permitem aproximação aos recursos estatais e condiciona a atuação dos atores. A Comunidade envolve também as estruturas estatais com sua burocracia e seus agentes políticos. A disposição governamental para articular os aparatos do Estado para respeitar as opiniões do Conselho (AVRITZER, 2007b; LÜCHMANN, 2002; 2012) é um primeiro passo para a mobilização da Comunidade de Política. Esse aspecto levou ao destaque da categoria “vontade política” como determinante da ação estatal para com a participação social (WAMPLER; AVRITZER, 2004; AVRITZER, 2008; SOUZA, 2013). Mas essa categoria é vaga para compreender o espraiamento do processo de participação no contexto do Estado (SOUZA, 2013). O conceito de Comunidade de Política destaca a convivência entre a burocracia estatal e a linguagem da participação no processo de formulação da política pública. Ele entende esse processo como uma ação que não está restrita aos dirigentes governamentais, muito menos aos atores sociais que participam da Comunidade, mas enxerga outros técnicos e servidores estatais nessas interfaces para a formulação da política pública.

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Os conceitos de Campo de Defesa e de Comunidade de Política nos auxiliam a visualizar as dimensões assumidas pelo Controle Social na formulação da política. Assim, eles se inter-relacionam e também funcionam como espaços configurados sob suas próprias lógicas, uma vez que o Campo se forma para pressionar o Estado por mudanças e a Comunidade pela negociação necessária à produção efetiva das políticas. O Controle Social na formulação das políticas públicas e suas dimensões O Controle Social assume algumas dimensões na formulação da política pública e principalmente na interface entre Campo e Comunidade. Evidencia-se com isso os encontros entre atores da participação social, os efeitos das instâncias criadas para esse fim e a política pública para a criança e o adolescente produzida. De uma forma geral, os Conselhos têm um papel fundamental relacionado com as denúncias sobre as políticas públicas. Ao trazer os atores sociais para dentro do Estado houve também a abertura de mais um canal no interior da Comunidade de Política para a demonstração sobre a realidade, nem sempre positiva, dos movimentos da política pública. No entanto, alguns Conselhos podem ainda não ser capazes de conseguir gerar diagnósticos sobre a realidade e encaminhar esses dados para a consequente formulação de políticas públicas. Ou seja, a informação sobre os limites das políticas públicas passa pelo Conselho, mas falta a este a capacidade para produzir conhecimento e, principalmente, tornar aquela agenda uma questão pública a ser enfrentada. Nos casos analisados, em termos de diagnósticos sobre a situação das políticas, as organizações do Estado foram mais efetivas e foi importante a aproximação e apropriação dos espaços dos Conselhos dessas pesquisas elaboradas. Os diagnósticos surgiram da organização de pesquisas sobre as políticas sociais, especificamente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, e das Caravanas realizadas pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Os resultados dos diagnósticos demonstravam que as organizações que deveriam ser garantidoras de direitos, eram as que violavam os direitos de crianças e adolescentes. São muitas as organizações do Estado que podem se articular para pesquisar um problema, levantar o tema e elaborar diagnósticos. O Estado, diante dessa configuração, não é pensado de maneira homogênea, pautado pela ação única e coordenada de procurar soluções e resolver problemas de suas políticas. É mais adequado pensá-lo a partir de um conjunto de múltiplas agências ocupadas por uma rede de interesses distintos, e algumas delas podem ser

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as fontes de questões públicas, enquanto outras podem estar acomodadas em seus modos de operacionalização. A natureza insulada de certas agências estatais no Brasil, tanto do Poder Executivo como do Legislativo, proporciona a produção de conhecimento sobre as falhas e as violações das políticas públicas produzidas contra o próprio Estado. Nos casos analisados, as situações problemáticas em relação às políticas públicas de enclausuramento já eram conhecidas pelo Conselho, mas o surgimento de diagnóstico sobre a política pública elevou aquele problema a um tema que passou a ser enfrentado. Esses foram momentos importantes, pois demonstraram que aquelas denúncias pontuais e técnicas que passavam pelo Conselho, trazidas por atores sociais e organizações da sociedade civil e pelos órgãos de decisão, eram encontradas na realidade das políticas públicas. Mas há o risco do processo de diagnóstico das políticas públicas de abrir brechas para ataques com a intenção de diminuir direitos conquistados como lei, ou retroceder para lógicas autoritárias e caridosas. Ou seja, a demonstração de que a lei formulada não deu conta de resolver um determinado problema, trouxe também a questão sobre os limites daqueles princípios observados no momento de formulação da lei. Nesses casos, as formulações de novas políticas e as modificações legais encontram limites, pois existe uma ameaça de retroceder sobre parâmetros legais conquistados. O aspecto principal desse processo relacionado com o problema das políticas foi a mudança de um debate em torno de questões técnicas em relação às políticas que pairavam no Conselho para processos de resistência em torno das argumentações sobre os direitos de crianças. A ameaça em termos dos direitos conquistados gerou uma mobilização por parte do Campo de Defesa dos Direitos em momentos específicos e em torno de pautas agregadoras para evitar retrocessos em termos de conquistas de direitos. O Campo de Defesa enviou ao Conselho, bem como para outras organizações estatais, manifestos de atores mobilizados que apontavam os riscos de retrocesso nas políticas tal como vinham sendo discutidas e que afetavam diretamente os direitos conquistados. Por exemplo, no caso do Sinase os atores se mobilizaram contra as propostas de redução da maioridade penal e no PNCFC voltavam-se contra o Projeto de Lei Nacional da Adoção (PLNA), que atingia diretamente o Direito à Convivência Familiar e Comunitária, garantido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse processo o Conselho foi um espaço de interlocução junto aos atores sociais e mobilizados da sociedade civil e repercutiu demandas na Comunidade de Política. A pressão social por si é um instrumento necessário no jogo democrático, mas é frágil, se não encontrar agentes governamentais, políticos e burocratas que facilitem a entrada

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dessas pautas no interior do Estado. A chegada do governo Lula foi um momento fértil para esse exercício, pois permitiu conciliar o clima político de mudança, vindo do momento eleitoral, com compromissos assumidos pelo candidato eleito. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, apoiado no clima de mudança governamental, fez um diálogo junto ao Campo de Defesa, pois se valeu de medidas como audiências, consultas públicas e encontros regionais. Com isso, capitaneou aqueles subsídios gerados pelo Campo de Defesa e os trouxe para o momento da formulação da política. A construção das alternativas de soluções para a produção da política pública é um momento de grande interação e negociação com a participação de agentes do Campo de Defesa na Comunidade de Política, bem como com os atores que compõem a Comunidade. A abertura do Estado para a participação social cria espaços para essa interação, mas para um maior aproveitamento é necessário a existência de governos abertos para esse tipo de intercâmbio. O próprio Conselho é um reflexo dessa relação, mas isso também se dá em outras instâncias estatais no momento da formulação, como comissões, grupos de trabalho e comitês. Portanto, o conhecimento que tramita entre Campo e a Comunidade de Política auxilia na construção de soluções para a formulação de política, por meio da negociação e no arranjo organizacional para a tomada de decisão. Nos casos analisados, as propostas de solução nasciam de diferentes fontes. Primeiramente, organizações da sociedade civil colaboravam com subsídios e modelos de políticas para cada temática. Outra fonte de subsídio vinha de atores da academia que procuravam oferecer alternativas para as políticas públicas. Por fim, os agentes governamentais também traziam contribuições em relação à forma de se tratar o problema. No espaço de debate para a construção de alternativas ocorreu a negociação para a definição das soluções mais adequadas para a política pública, e o Conselho foi o espaço responsável por discutir os aspectos que geravam mais disputa entre as diferentes visões sobre a política. A partir da convergência entre os três fluxos, relacionados com o levantamento da problemática, a proposição política e a criação de soluções, foi possível chegar ao momento para a formulação da política que passou pelo Conselho como um canal institucional que permitiu persuadir (e convencer) os atores políticos relevantes de modo a obter uma cooperação (GURZA LAVALLE, 2012).

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A organização da tese A tese, além dessa introdução, está organizada em cinco capítulos e a conclusão. No primeiro busca-se contextualizar as políticas públicas para a criança e o adolescente. Esse capítulo está dividido em três seções que discorrem respectivamente sobre o tema do enclausuramento no contexto das políticas públicas para a criança, sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e sobre o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. O segundo capítulo discute os conceitos de Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente e de Comunidade de Políticas. Esses conceitos, conforme inicialmente delineados nessa introdução, auxiliam na compreensão das configurações dos espaços da sociedade civil e do Estado e como estes incidem no momento da formulação de políticas. O capítulo três discorre sobre a metodologia do estudo e o modelo utilizado para sistematizar os dados de pesquisa. O quarto capítulo rastreia os dois processos de formulação das políticas públicas a partir da sequência cronológica e de fatos relevantes. O capítulo cinco sistematiza os dados coletados na pesquisa e as dimensões assumidas pelo Controle Social no contexto da formulação das políticas. Por fim, apresentam-se as conclusões relacionadas com as disputas e resistências na Construção Democrática da Política Pública.

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Capítulo 1 Contextualização das políticas públicas para as crianças e os adolescentes e a participação social: representações sociais, matrizes históricas e os Conselhos

As políticas públicas para as crianças e os adolescentes se inscrevem em uma área recortada por disputas, alicerçadas nas representações sociais sobre crianças e adolescentes presentes na sociedade e nas formas de entendimento dos diferentes atores políticos sobre de quem é a responsabilidade pela execução das atividades voltadas para esse público – Estado, sociedade ou mercado. Essas questões alimentam referências diversas sobre políticas de institucionalização e os modos de operacionalização das ações e serviços públicos para a criança e o adolescente. Essas disputas entre modelos são aprofundadas por desafios contemporâneos associados a como instituir como uma política social sob responsabilidade estatal e, principalmente, e vencer características históricas dessa policy area que a demarcavam como um terreno de atuação privada ou sob uma lógica coercitiva-repressiva. Primeiramente, essas políticas buscam a substituição da concepção anterior, fundamentada no “caso problema”, segundo a qual o predominante na prestação dos serviços não era a identificação de necessidades sociais e a garantia de direitos, mas a avaliação “caso a caso” da situação dos indivíduos necessitados. Ficava estabelecida, assim, uma responsabilidade para o Juiz de Menor encaminhar para entidades que prestavam serviços para o menor e, de certa forma, desobrigava o Estado de manter instituições voltadas para a garantia universal de direitos. Eram relações de clientela e favor, ao invés de uma lógica universal e baseada em direitos. O modelo oposto ao “caso problema”, e que pautou o ECA, buscou priorizar os direitos fundamentais19 de crianças e adolescentes, ou seja, ações públicas a partir de critérios normatizados e padrões universalizados. A ideia de um Sistema de Garantia de Direitos nasce

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De acordo com o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) são direitos fundamentais: Do Direito à Vida e a Saúde (Arts. 7° a 14); Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade (Arts. 15 a 18); Do Direito à Convivência Familiar e Comunitária (Arts. 19 a 52); Do Direito à Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer (Arts. 53 a 59) e Do Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho (Arts. 60 a 69).

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com base nessa concepção do ECA,20 pois somente por meio de uma ação integrada seria possível alcançar os direitos de crianças e protegê-las. Indo ao encontro desses elementos históricos, outro preceito do ECA busca substituir o modelo de atuação fundamentado na benesse e no assistencialismo, passando para outro no qual passe a ser exigência que o Estado crie mecanismos para atuar e controlar essa área. Para dar conta dessas tarefas, a própria ideia de Controle Social se insere a partir de significados distintos, pois a sociedade assume posição de destaque nessa ação. Fortes (1996, p. 22), no primeiro estudo sobre os Conselhos dos Direitos no Brasil, ressalta os pilares do ECA: [...] a concepção de política pública presente no ECA não é apenas integral, no sentido de pensar a defesa de direitos de crianças e adolescentes a partir do conjunto de suas necessidades e sem discriminações de qualquer ordem. Ela é também participativa, ao conceber a criação de uma estrutura cogestionária envolvendo representação paritária do governo e da sociedade civil como condição necessária para sua viabilização. Nesse sentido, o ECA é provavelmente o caso mais expressivo de uma política setorial específica que busca explorar o potencial das brechas conquistadas na Constituição de 1988 para a introdução de mecanismos de participação popular no funcionamento institucional do país.

Nessa concepção de participação não haveria o controle vertical da sociedade pelo Estado, mas inverte-se essa ordem, em uma tentativa de fazer com que a sociedade tenha posição protagonista. Nasce daqui a ideia de Controle Social, que busca promover o encontro entre a constante fiscalização das ações estatais e o monitoramento das situações de violação de direitos para fomentar e subsidiar a deliberação sobre a melhor política pública para crianças e adolescentes. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), bem como seus congêneres nos outros níveis federativos, assume uma importante função na formulação das políticas públicas federais de direitos humanos, e essa pesquisa busca conhecer as dimensões assumidas por esse espaço institucional no controle social. Para cumprir esse objetivo, esta investigação inicialmente reconhece como as diferentes concepções sobre as políticas de direitos humanos presentes na sociedade incidem no momento da formulação de política pública. A pesquisa busca também, em outro polo de investigação, compreender a complexidade da formulação da política pública na estrutura do

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De acordo Veras (2012, p. 195): “A ideia de estruturação de um sistema de garantia de direitos, na área das crianças e dos adolescentes, foi evocada pela primeira vez por Wanderlino Nogueira no III Encontro Nacional da Rede de Centros de Defesa, realizado em Recife em outubro de 1992”.

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Estado, mas, nesse contexto, olha principalmente para os efeitos possibilitados pela existência dos espaços participativos no sistema decisório estatal. Conforme apontado, as políticas públicas para a criança e o adolescente são influenciadas a partir de diferentes visões sobre a representação da criança e do adolescente na sociedade (PINHEIRO, 2003) e, principalmente, por discursos de grupos que detêm maior poder para modificar os aparatos estatais. Essas visões formam ideias e, em determinados momentos da história, essas políticas subsidiaram os marcos legais que demarcavam as formas de intervenção no trato de crianças e adolescentes. Essas ideias permanecem na estrutura social e são aspectos que pressionam os atores e o espaço de debate para o processo decisório. É, sobretudo, uma afirmação de valores de grupos e podem oferecer formas de soluções para os problemas públicos, baseados em políticas de institucionalização e modos de operacionalização. Existe, dessa forma, um constante processo de disputa entre o marco legal vigente, o discurso que o fundamentou e as outras visões sobre como deveriam ser os serviços de intervenção na política pública. Isso permite uma chave de compreensão dos argumentos em torno das tensões na formulação de políticas públicas. O período atual tem seu marco legal influenciado por uma representação da criança como sujeito de direito, ser em desenvolvimento e com base na ideia de um ambiente socialmente educativo, que responsabiliza a sociedade por parte do cuidado com a criança e o adolescente. Esse discurso nasce resultante de um grande movimento internacional de respeito às peculiaridades infantis, principalmente, a partir do ano internacional da Criança, em 1979, proclamado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esse processo resultou na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CDC), assinado em 1989. Esse documento internacional colaborou com o debate e os movimentos sociais brasileiros, durante a década de 1980, para reivindicar o reconhecimento dos direitos da criança neste território. Também influenciou a redação do artigo 227 21 incluído na Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, a aprovação da Lei 8.069/1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A visão socioeducativa desses documentos atribui, dentre outros avanços em relação às leis anteriores, a responsabilidade pelo cuidado de crianças e adolescentes à família, à sociedade e ao Estado. Ou seja, existe um princípio de complementariedade nas ações dessas três instâncias para, alcançar a “proteção integral”, base

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Texto promulgado na Constituição Federal. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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e princípio lógico do ECA e para a formação da ideia de um Sistema de Garantia de Direitos. 22 Essa forma de análise tira a responsabilidade corretiva das situações que vulnerabilizam crianças e adolescentes como sendo unicamente do Estado e de suas instituições, com base no princípio da participação e compartilhamento. Os casos analisados nessa pesquisa ocorreram no marco dos dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já que se deram nos idos dos anos 2000, e já contavam com uma trajetória de atuação do Conselho Nacional. Portanto, esses casos demonstram elementos contextuais do exercício do Controle Social na formulação das políticas públicas para a criança e o adolescente no Brasil. Organizações da sociedade civil (CECRIA; AMENCAR, 2000) realizaram uma avaliação da primeira década de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse documento trouxe leituras próximas às ideias de disputa na formulação de políticas que se sustenta nesse estudo. Para os autores, existiam três institucionalizações23 em conflito que podiam ser traduzidas da seguinte forma: Quadro 1 – Avaliação da primeira década de implementação do ECA Institucionalização Democrática e Cidadã do ECA Institucionalização da descentralização dentro do federalismo cooperativo Institucionalização da gestão participativa e compartilhada de interesses – conselhos - controle social Institucionalização do direito a ter direitos e de suas garantias – cidadania Institucionalização do respeito e da equidade – redistribuição

Institucionalização RepressivoClientelista-Excludente Tradição centralizadora

Institucionalização transparência orçamentária

Ocultação e conchavo

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da

Autoritarismo, mandonismo e cultura da impunidade Desigualdade, exclusão e baixa resolutividade Repressão, exclusão

discriminação

e

Institucionalização do Mercado Predomínio da estratégia piramidal da eficácia e da eficiência Divisão operacional e gerencial baseada na competitividade Programas de reestruturação produtiva e de qualidade em função do lucro Ação executiva em função da expansão dos negócios no contexto da desregulamentação ou da regulamentação de alguns direitos, por exemplo, os do consumidor. Manutenção do controle da informação

Veras (2012, p. 188) dá concretude para essa complementariedade: “O argumento é que a ação objetivando a garantia de direitos – dada a incompletude do âmbito das instituições para enfrentamento da complexidade das questões a serem enfrentadas – demanda uma intervenção concorrente de diferentes setores, nas diversas instâncias da sociedade e do poder estatal”. 23 Para os autores do Estudo, a institucionalização tinha o seguinte conceito: “Estas relações se realizam numa determinada estruturação do poder, da economia e da sociedade que distribui os atores e articula dispositivos permanentes para manter a ordem estabelecida e que condiciona as estratégias dos atores, seus fluxos de ações e as expectativas dessas mesmas ações na rede social”. (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 23)

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Institucionalização Democrática e Cidadã do ECA Construção do espaço público – visibilidade do conflito Estado de direito

Institucionalização RepressivoClientelista-Excludente Clientelismo e favores Estado de favores

Institucionalização do Mercado Articulação de blocos de poder e econômicos Estado gerencial e mínimo

Fonte: CECRIA/Amencar (2000, p. 25)

Portanto, é possível perceber que o conflito existente entre a implementação do novo, demarcado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e do velho, marcado pelas práticas culturais e sociais no trato da infância, definem a própria constituição da área das políticas públicas para a criança. Junto com esse debate aparece também a “lógica de mercado”, que influencia os serviços públicos durante a década de 1990, e recondiciona em novos moldes o debate assistencialista. Essa lógica é uma base teórica para compreender os anos 1990 no Brasil, pois os governos daquela década tinham esse elemento como princípio de atuação e pautavam as escolhas das políticas públicas com base no mercado. Foi o momento de consolidação do Projeto Neoliberal que condicionou a atuação de sociedade civil e do Estado sob princípios de competição. A temática do enclausuramento de crianças e adolescente é a representação mais cabal das tensões entre essas visões, ou institucionalizações, como denominaram Cecria /Amencar (2000), pois esse tema tramita em uma fronteira tênue entre uma realidade da intervenção, por vezes, necessária para a proteção de crianças e adolescentes, mas pode representar também uma continuidade das lógicas existentes anteriormente. Essas lógicas eram demarcadas pela higienização social, como punição e, nesse contexto, a proteção se desdobrava em violação de direitos fundamentais. Essa visão, com base nos conflitos entre o novo e o velho, incorpora matrizes históricas, que serão aqui trabalhadas, e as tensões demarcam disputas na Construção Democrática da Política Pública. Essas visões auxiliam, sobretudo, na percepção de que, ainda hoje, elementos temáticos de discursos anteriores permanecem no horizonte da sociedade civil e do Estado. Por fim, alimentam ideias sobre como deveriam ser as políticas para crianças e adolescentes. A incorporação dessas matrizes alimenta representações que se transformam em diferentes “Projetos de Políticas Públicas”. Esses projetos, com suas maneiras de compreender o trato da criança e do adolescente, estão em disputa e os atores políticos buscam incidir sobre as institucionalidades para influenciá-las com base nessas ideias. Essa incidência retrata o desafio da Construção Democrática da Política Pública como um processo

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de constante tensão entre as diferentes visões de mundo, que também se traduz nas propostas para as políticas públicas. Para entender essas formações é importante lançar mão de uma “arqueologia do Estado para compreender o modo como as instituições estatais se formam em diferentes ciclos ou períodos políticos” (DAGNINO et al., 2006, p. 19) e essa história é o arcabouço cultural e organizacional que a política pública enfrenta em suas mudanças. O peso do passado ainda reflete nas deliberações sobre a política contemporânea, mas é importante compreender como isso pode ser recondicionado. Para tanto, lançamos mão da ideia de “Democraticidade do Estado” para analisar o grau em que os componentes do Estado (aparato burocrático, sistema legal e discurso e práticas de construção de identidade coletiva) promovem a cidadania (DAGNINO et al. 2006). A aproximação entre elementos históricos e discursos na contemporaneidade, que são alicerces dos Projetos de Políticas Públicas, parte de implicações relacionadas com a cultura e a política. Primeiramente, como citam Dagnino et al. (2006, p. 38), essa forma de compreender tem como base o “esforço para enfatizar a intencionalidade como componente da ação política, afirmando, portanto, o papel do sujeito e da agência humana como dimensões fundamentais da política”. O discurso é parte constituinte da agência humana e, consequentemente, direciona a intencionalidade nas ações políticas, as quais estarão qualificadas/condicionadas por contextos concretos. Outra implicação do encontro entre discurso e elementos históricos diz respeito à unidade entre ação e representação, como salientado por Dagnino et al. (2006), criando um vínculo indissolúvel entre a cultura e a política que ela expressa, e produzindo significados que integram matrizes culturais mais amplas. A última implicação trata essa noção como recobrindo “uma ampla gama de formatos nos quais representações, crenças e interesses se expressam em ações políticas, com distintos graus de explicitação e coerência” (DAGNINO et al., 2006, p. 40). Os Projetos de Políticas Públicas são aqui tratados como conteúdos influenciadores nas disputas na Construção Democrática da Política Pública. Eles são espelhados por exemplos históricos nas quais suas categorias centrais já foram vivenciadas. O estágio atual da política para a criança e o adolescente se dá sob o contexto hegemônico de grupos que defendem direitos humanos de crianças e adolescentes, a partir de uma perspectiva integrada e indivisível, mas ainda há tentativas de pautar a política a partir de lógicas punitivas, sob responsabilidade prioritariamente realizada pelas instituições estatais, ou pelas organizações caritativas, por meio da atuação de organizações privadas, ao invés da

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perspectiva socioeducativa e sob a responsabilidade pública. Portanto, o contexto da política pública é um cenário de disputas, no qual a função hegemônica atual passa a ser exercida pelo discurso do ECA. Mas, por vezes, esta forma de lidar com a questão da infância precisa fazer exercícios para assimilar e dar respostas aos anseios de grupos que defendem políticas com caráter tecnicista/autoritário e assistencialista. 1.1. O enclausuramento de crianças e adolescente e as matrizes históricas na constituição da área de políticas públicas para criança e adolescente no Brasil24 Em muitos grupos que atuam com as políticas públicas há um relativo senso comum que indica o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como uma lei bem redigida e pronta para pautar de forma integrada e sistêmica a estruturação das políticas setoriais e dos poderes da República. Nessa concepção não haveria o que fazer ou como avançar a partir dessa lei. As distorções que ainda existem, segundo esse senso comum, são interpretadas como equívocos técnicos, má aplicação ou a implementação limitada da lei. Por outro lado, ao analisá-la com esse viés, deixa-se de compreender aspectos históricos e culturais que ainda incidem sobre a temática da criança e do adolescente, delimitados por estigmas e préconceitos sobre esse público. Deixa-se de analisar também a própria forma limitada de atuação das instituições existentes para lidar com o tema, que apresentam limitações na forma de operacionalizar suas ações e, com isso, representam em si uma fronteira para a política pública. Não se busca, nesta seção, “decifrar” ou interpretar, muito menos determinar o valor expressivo das disputas presentes nas políticas públicas para a criança e adolescente. Procura-se, por sua vez, distinguir sequências e descrever relações que ocorreram nas transições entre as diferentes matrizes históricas e constituem a formação discursiva para a área das políticas públicas para infância e adolescência. A partir dessas relações, é possível compreender os elementos que continuam a demarcar os “Projetos de Políticas Públicas”, e que permanecem no contexto da formulação da política pública. Nessa abordagem, é fundamental entender que o que dá sentido particular a uma categoria é o discurso do qual faz parte, e cada categoria está imersa em relações de distinção, oposição e subordinação à outras categorias. Todavia, a rede de categorias, a partir da qual a matriz discursiva de uma política pública é construída, é retirada, de um grupo de linguagem 24

Uma primeira versão desse texto foi apresentada em coautoria com a Dra. Judith Zuquim, no XXXIV Encontro Nacional da Pós-Graduação de Administração – ENANPAD, 2010, no Grupo de Trabalho sobre a História da Administração Pública.

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muito mais amplo. Para tornar esse grupo visível, é necessário proceder a um resgate histórico que revele as formações discursivas que o constituíram, suas permanências e rupturas, suas continuidades e descontinuidades, entre formas atuais e formas anteriores, entre as diferentes camadas de discurso que construíram historicamente as políticas públicas para a criança e o adolescente. Analisar a construção histórica das políticas públicas para a infância e adolescência leva ao desvelamento dos modos de produção e disseminação de visões que são sustentadas como verdades e hegemonias no discurso social, já que a análise de práticas discursivas pode operar como uma espécie de tradução dos conflitos conjunturais e sociais. Nessa concepção se assenta o contexto cultural que, como citado, não pode ser desassociado da política e, portanto, tampouco descolado das decisões públicas. O estágio atual da política pública não se realiza somente como geração espontânea de novos conhecimentos, mas recondicionando os antigos temas ou buscando romper com um passado que ainda permanece. Esse é um dos principais desafios para a incorporação de novos elementos na política pública. Assim, as matrizes históricas ajudam a compreender elementos de permanência e de ruptura e isso compõe a área de políticas para a criança e o adolescente. Mais do que isso, auxiliam na compreensão das ideias que estão em disputa na formação dessa policy area. No contexto dessa área e relacionado com essas ideias, podemos compreender melhor as atuações dos diferentes atores políticos e elementos em disputa para a formulação das políticas públicas. 1.1.1. Caridade, atuação privada e ação contra a pobreza no trato da infância O debate sobre a infância não é um tema iniciado no século XX. Alvim e Valladares (1988, p. 3), em estudo sobre a infância e sociedade no Brasil, apontam que “o debate sobre a ‘conservação das crianças’” (DONZELOT, 1980) já se fazia presente desde os meados do século XVIII quando, junto aos asilos para menores abandonados (organizações de enclausuramento à época), instituiu-se o “sistema de rodas” que perdurou por quase um século. Esse sistema (também chamado de roda dos expostos ou roda dos enjeitados) era um mecanismo nas paredes dos asilos infantis, instituições de enclausuramento à época, no qual as crianças eram postas em um buraco de um lado da roda que era girada para que ela fosse retirada do outro lado do muro. Isso era uma forma de possibilitar o anonimato no abandono das crianças. Era uma forma de solidariedade, visto que os asilos passavam a cuidar da

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criança e, com isso, garantiam menos uma criança em um espaço de vulnerabilidade ou com pessoas que não estavam dispostas para o seu cuidado. Sobre essas vulnerabilidades Francischini (2006), apoiada em Kuhlmann Jr. (2002), discorre acerca da imagem da criança pobre, delinquente, oriunda de lares sem alimentação adequada e com casos de alcoolismo, como determinante para as práticas de institucionalização e enclausuramento como medida de protegê-la daquele ambiente, evitando dessa forma que aquela criança se tornasse uma futura “criminosa”. Essa forma de ação era uma base de prevenção para a sociedade sanar seus problemas, e a caridade religiosa era o meio que impulsionava essa ação. Esse é o início da história do enclausuramento de crianças e adolescentes, já que o caso brasileiro teve como pano de fundo a necessidade de reservar ao “menor” espaços que pudessem curá-lo para uma vida adequada à sociedade. O núcleo constituidor dessa ideia estava na visão de uma "infância moralmente abandonada", da qual partiam "tipos infantis" que tentavam apreender aquilo que a ordem pública chamava de "infância em perigo" ou em situação irregular. Na base destas conceituações houve uma redefinição da relação entre criança, família e Estado, demarcandose novas fronteiras para o território da "ineducabilidade social" (ZUQUIM, 2001). Ou seja, já que a família não tinha condições de ser um ambiente saudável para a educação da criança, restava às instituições sociais atuar com essa função e receber as responsabilidades dessas famílias vulneráveis. O objeto "infância irregular" não era unívoco ao ser delineado em sentenças jurídicas, classificações de saúde mental ou projetos pedagógicos racialistas. Isso demonstra que essa dispersão de sentidos foi radicalmente atravessada por práticas políticas que passaram a incluir esse numeroso grupo de crianças e adolescentes em políticas públicas que tinham como foco, simultaneamente, sua exclusão da escola e da família. Assim, a falta de precisão na delimitação do que era denominado como “irregularidade”, base da doutrina da “situação irregular”, fez com que a rede de atendimento assistencial e enclausuradora desse período assumisse diferentes funções como, por exemplo, casa, escola, hospital e prisão (RIZZINI, 1997). Assim, a proteção de crianças estava desassociada de outras políticas de promoção de serviços públicos. Esse primeiro período teve como característica central a atuação previdente em relação à infância para sanar futuros problemas sociais. Nesse contexto, a sociedade aparece como o ente a ser cuidado e a criança é um meio para manutenção/transformação da sociedade saudável. Esse primeiro momento teve sua consolidação no Código de Menores de 1927.

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A ideia de saneamento social encontrava ressonância na perspectiva da constituição de uma classe trabalhadora e a intenção de fortalecer a industrialização no país. Na esteira desses processos nasceram as legislações relacionadas ao trabalho, inclusive aquelas normatizando o trabalho de crianças. A

relação

basilar

nesse

período,

principalmente

relacionada

com

o

enclausuramento, estava fundamentada na filantropia no atendimento à criança. Essa questão tem associação com a visão patrimonialista e simbiótica da relação público/privado. A época de realização dessas referências remete aos primeiros ensaios de construção de um país, denominado pela historiografia como “república velha”. O Estado precedeu a formação da nação, fato que demonstra o fortalecimento de uma classe hegemônica controladora dos aparatos institucionais e estatais, portanto, públicos. Essa centralidade institucionalizada por esse tipo de domínio esteve fundada no tradicionalismo (FAORO, 1975). A urbanização começava a ser um aspecto questionador das práticas elitizadas do período e, com isso, foi necessário incorporar atitudes de caridade em favor dos mais pobres e do pacto social. O resultado mais aparente dessa demanda foi a criação da Legião Brasileira de Assistência, em 1942, sob o regime do Estado Novo. Nesse sentido, conforme salientado por Mestriner (2011, p. 17), “a assistência social pública se voltou historicamente para a introdução de mecanismos de apoio às organizações, e não diretamente à população”. Não havia um claro delineamento do que era público e privado na área das políticas de assistência social e no enclausuramento de crianças. Além disso, essa forma de sustentação organizacional demarcava a própria constituição da área das políticas sociais, fundamentada na estrutura organizacional ao invés de centralizar seu repasse nos sujeitos. Esse debate era pautado por procedimentos organizacionais fundamentados na caridade e na benesse, e a Igreja Católica passava a ser a grande provedora de serviços sociais. Estas palavras remetem a uma ideia teológica associada “ao amor ao próximo”. Castel (1998, p. 65) aponta uma relação que nasce com base nessas noções, já que “estabelece-se um comércio entre o rico e o pobre, com vantagens para as duas partes: o primeiro ganha sua salvação graças à sua ação caridosa, mas o segundo é igualmente salvo desde que aceite sua condição”. Segundo Faleiros (2009, p. 43) “o Estado combina, na sua intervenção na área da infância, a legitimação das figuras que aparecem como doadores graças à assistência com a repressão à desordem”. O contexto do surgimento do discurso desse primeiro momento se deu em associação com a discussão sobre o controle sobre os efeitos da pobreza na vida das pessoas.

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Sua referência na formação discursiva foi a medicalização da pobreza, o abandono moral e o “perigo social” que podiam ser ali gerados. Os grupos sociais envolvidos na intervenção em relação à infância eram marcadamente médicos sanitaristas, assistencialistas e vinculados às organizações religiosas, particularmente de tradição católica. Naquele momento, os grupos que participavam da disputa política por definir os rumos da sociedade eram principalmente os liberais, os católicos e a elite oligárquica exportadora. Em contraponto ao discurso formado nessa corrente hegemônica, aparecia o interdiscurso dos socialistas e dos defensores da intervenção gradativa do Estado na questão social. Conforme foi apontado, a capacidade do grupo refletir sobre determinada temática pode convergir para a criação de normatizações. Apresenta-se uma síntese dessa primeira matriz histórica com as principais normas criadas no período, demonstrando também algumas categorias que começaram a aparecer do ponto de vista legal, no Quadro 2.

Quadro 2 – Marcos legais do período de predomínio assistencialista

Data 1927

Legislação Código de Menores [Decreto Lei 17.943-A]

O que a política diz - Fim do critério do discernimento - Regulação das relações entre Estado e família - Ensaios realizados nas ações de assistência e proteção de crianças e adolescentes

1940

Fixou a idade de 18 anos para imputabilidade penal [Decreto Lei 2.848]

- penalmente irresponsáveis

O que a política não diz - Medicalização da pobreza (higienismo) - Paternalismo filantrópico Infância moralmente abandonada - Recusa a aprendizagem social - Discurso moral - A questão social colocada como perigo - Critérios

Fonte: Nascimento; Zuquim (2009) Esse primeiro período tem como fato demarcador o discurso e a intervenção na temática infantil como remédio para os problemas da pobreza. Essa intervenção era delegada às instituições privadas de caridade, pois ainda não existia a responsabilidade estatal de intervenção. Conforme citado, a hegemonia constituída nesse período compreendia a pobreza como um mal e queria preservar as crianças como defesa da coesão social futura. Ou seja, a

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intervenção se dava como atuação para dirimir possibilidades de desenvolvimento de novos pobres, delinquentes ou vagabundos. Essa fase começou a ser questionada quando a violência infanto-juvenil passou a acontecer de maneira mais incisiva. A preocupação central nessa transição, como veremos, passou do “menor carente” para o “menor infrator”, mesmo mantendo atenções para os primeiros. 1.1.2. Autoritarismo, centralização da questão da infância no Estado e ação contra a delinquência A conceituação de “situação irregular” que foi presente e influenciadora das instituições e das técnicas usadas para a intervenção junto às crianças e aos adolescentes durante o período assistencialista se manteve no novo período tecnicista. Outra permanência da trajetória histórica foi a ausência de uma definição exata no âmbito da aplicação das leis sobre a chamada "situação irregular". Segundo Faleiros (2009, p. 172), para essa situação: [...] compreendia-se a privação das condições de subsistência, de saúde e de instrução, por omissão dos pais ou responsáveis, além da situação de maustratos e castigos, de perigo moral, de falta de assistência legal, de desvio de conduta por desadaptação familiar ou comunitária, e de autoria de infração penal. A pobreza era, assim, situação irregular, ou seja, uma exceção.

Na nova matriz, contudo, o discurso do “perigo social gerado pela pobreza” foi unificado com visões sobre o problema da “delinquência infanto-juvenil”. Essa preocupação deu bases para o discurso hegemônico desse período, que tinha uma visão autoritária como meio principal. As instituições de acautelamento do público infantil passaram a figurar nessa dupla interface, tanto em relação à pobreza quanto na questão da delinquência. No intervalo entre os Códigos de Menores de 1927 e 1979, a infância e a adolescência foram objetos de iniciativas de intervenção por parte do Estado. Dentre essas, o exemplo mais conhecido foi a criação do Serviço de Assistência a Menores (SAM), em 1941, cujas ações e internações eram justificadas com os argumentos de proteção da sociedade contra os perigos da pobreza e da delinquência infanto-juvenil. Em 1964 extinguiu-se o serviço do SAM, mas a política de proteção à criança nos moldes criados continuou. Nesse ano, criou-se a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), também vinculada inicialmente à Legião Brasileira de Assistência, junto com

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seus respectivos correspondentes nos estados, as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (Febem). A Funabem ficou com a formulação e implantação de programas e a centralização da política nacional do bem-estar do menor; aos correspondentes estaduais coube a execução dessas políticas (CASTRO; NASCIMENTO, 2009). Segundo Mestriner (2011, p. 49), essas instituições “[...] farão o elo entre assistência, filantropia e repressão. Cresce, assim, o aparato do Estado assistencial da ditadura, sob a égide da coerção e do enquadramento em instituições totais. Molda-se reformatórios da ordem como espaços de ação assistencial”. Com isso, percebe-se certa prática centralizadora na questão das políticas de enclausuramento, encarregando-se a União da responsabilidade pelas formulação de ações nessa área e aos estados e municípios cabia a implementação descentralizada dessas políticas. Uma discussão dessa situação começou a ser realizada em 1975, a partir dos pontos levantados pela CPI do Menor. A CPI reconheceu a incapacidade do modelo da Funabem em enfrentar nacionalmente as questões de criança e adolescentes devido ao crescimento demográfico elevado e a magnitude do problema. Em seu diagnóstico, a CPI apontava para [...] as excepcionais dimensões e periculosidade imanentes da realidade do menor desamparado, num país predominantemente jovem, em cuja população global de 110 milhões de habitantes compreende-se o impressionante segmento de 52,6% desse total na faixa etária de 0 a 19 anos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1976, p. 17).

Os dados da época demonstravam que um terço da população infanto-juvenil estava em estado real ou virtual de marginalização, com previsão de agravamento do quadro de miserabilidade concentrando-se principalmente nos centros urbanos, resultante do processo migratório. A partir da iniciativa federal, outras comissões especiais de inquéritos foram criadas nos diferentes estados brasileiros com o objetivo de avaliar a situação da infância pobre e abandonada em cada realidade. Denúncias sobre descasos e omissões do Estado passavam a ser comuns, fazendo com que os movimentos sociais e as organizações passassem a criar alternativas em oposição ao atendimento oficial, sendo estatais ou serviços filantrópicos (PEREIRA, 1998). Esse é um aspecto importante, pois na questão do recolhimento de crianças, diferentes iniciativas da sociedade civil passaram a criar estratégias alternativas e, com isso, questionavam a forma de atuação do Estado para o exercício desse atendimento.

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Em 1979 promulgou-se o segundo Código de Menores. Permaneciam, no entanto, a cisão criança/menor e a associação deste último à marginalidade, à delinquência e à mendicância. Porém, esses e outros denominativos associados à criança pobre foram substituídos por um único – criança em situação irregular –, e foi mantida a prevalência de um modelo correcional-repressivo (FRANCISCHINI, 2006; CASTRO, 2002). Em 1986 a Funabem realizou um debate sobre a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM). Discutiu-se então a necessidade de uma avaliação da política e de novas linhas de atuação. Elaborou-se o documento “Diagnóstico Integrado para uma Nova Política de Bem-Estar do Menor” (FUNABEM/MPAS, 1987), resultante de discussões em seminários estaduais internos e nas fundações estaduais (Febem), com a participação de órgãos públicos de assistência social, educação e de entidades sociais convidadas. Esse documento apresentava uma avaliação das políticas sociais e baseava-se em reflexão quanto à forma de atendimento oferecido; o foco principal da política (se estava na criança empobrecida ou em intervenção nos “casos-problema”); centralização ou descentralização na forma de gerenciamento (CASTRO; NASCIMENTO, 2009). Essas já eram demonstrações do descontentamento no interior da Comunidade de Política sobre como ocorria a atenção à criança e ao adolescente. A questão do enclausuramento excessivo e despropositado figurava como o grande desafio para a área da criança, mas dentro da doutrina da situação irregular esse desafio não contava com bases conceituais para promover uma ruptura, pois ainda não apareciam propostas para prevenir as políticas enclausuradoras, como as políticas sociais, por exemplo. O principal grupo influenciador desse período foram os técnicos das instituições estatais de intervenção, principalmente aqueles da Funabem, que passaram a ter uma relativa autonomia e competência para ditar normas para o funcionamento dessas instituições. Dado o caráter antidemocrático que marcou essa época, foi possível que esses técnicos exercessem a função hegemônica com pouca interferência de outros atores sociais. As instituições privadas de caridade ainda eram presentes nesse momento e queriam ficar com a questão da infância pobre e abandonada. Já a delinquência passava a ser, em grande parte, questão estatal. Havia uma relação público/privado, pois com as instituições privadas ficava a parcela fraca e oprimida, enquanto o Estado era o responsável pela “parcela que ninguém queria” (NASCIMENTO; ZUQUIM, 2010). As normas resultantes do período estão descritas no Quadro 3 abaixo.

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Quadro 3 - Marcos legais do período de predomínio técnico

Data 1943

1964

1979

Legislação Revisou o Código de 1927, instituindo a categoria do ‘infrator’ [Decreto Lei 6.026] Estabeleceu a Política Nacional de Bem Estar do Menor [Lei 4.513] Novo Código de Menores [Lei 6.697]

O que a política diz Menor infrator Menor carente

Centralização

Controle social da pobreza Objeto de medidas judiciais (prisão cautelar) Internamento cabível em caso de pobreza

O que a política não diz Violência urbana

Desqualificação pobres

das

famílias

Situação irregular (carência) Tutela Pobreza (perda do pátrio poder) Repressão via modelo correcional Menores pobres são portadores de déficits cognitivos Discurso fisiológico

Fonte: Nascimento; Zuquim (2009) Essa segunda matriz foi mais demarcada pela intervenção técnica, principalmente vinda das instituições estatais, na questão da delinquência infanto-juvenil. A situação irregular permaneceu como princípio de intervenção na mudança de uma matriz para outra. Mudou-se, por sua vez, o foco de intervenção, passando de uma situação de intervenção pela higiene social e proteção contra a pobreza, para outra que buscava punir a violência praticada por menores. Prova disso foi a mudança de foco das instituições, já que enquanto na fase anterior o foco estava nas instituições de abrigo, nesta nova matriz as instituições corretivas, ou reformatórios da ordem aparecem como principais (MESTRINER, 2011). Outro fato que marcou esse período foi a centralização da intervenção, e grande parte das ações ficou sob a tutela do Estado que delegava ações para outras instituições. 1.1.3. Educatividade social, atuação pública, políticas sociais e medidas de proteção e socioeducação Os encontros entre a pobreza e a delinquência que demarcaram a matriz anterior apareciam de maneira mais marcada e personificada, principalmente nas figuras dos “pivetes” e “trombadinhas”, que tomavam as ruas das grandes cidades no princípio dos anos 1980. Esse momento marcou um período privilegiado para o debate sobre o tema da infância no Brasil. As “operações cata-pivetes ou pente-fino” passaram a ser questionadas pelos movimentos sociais como solução dos problemas da infância e assumiu-se a necessidade de novas formas

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de atenção à criança, baseadas principalmente pelas concepções do “direito a ter direito”. (PEREIRA, 1998) As organizações existentes para atuar com a questão da infância já não davam conta da complexidade necessária para o enfrentamento dessa situação.25 O sistema Funabem (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor) passou a ser visto como herança do “entulho autoritário”, expressão de Costa (s/d) e, por isso, era necessário encontrar outras roupagens menos enclausuradoras. Esse foi um momento privilegiado para o debate sobre o tema da infância no Brasil, em termos acadêmicos e dos movimentos sociais, pois era a situação precária e de descaso com esse público era visível nas ruas das grandes cidades. Em termos acadêmicos, segundo Alvim e Valladares (1988), esse ocorreu uma proliferação de produção cientifica e estudos que buscavam desassociar pobreza e delinquência. “Delinquência Juvenil na Guanabara: uma introdução sociológica” (Tribunal de Justiça, 1973) foi a primeira pesquisa realizada sobre o assunto e abriu um campo de investigação que passou a ser amplamente explorado na Sociologia e em outras ciências.26 Assim, houve uma ampliação do conhecimento sobre a delinquência e a pobreza, como fenômenos distintos, e ambas que passaram ao status de “questões públicas”, com demandas e práticas diferentes de institucionalização e modos de operacionalização. A pauperização da classe trabalhadora foi um tema que agregou e mobilizou movimentos sociais e instituições. Todavia, surgiam outros temas com potencial ampliador27 e relação direta com a pauperização social, que funcionavam como novos fatores discursivos para a mobilização de articulações sociais. Resultado disso foi que surgiram demandas relacionadas com temáticas específicas e/ou transversais que perpassavam mais de um/a setor/área como, por exemplo, a questão da infância.28

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Um exemplo dessa situação pode ser vista na reportagem do Programa Vem Comigo, do jornalista Goulart de Andrade, transmitido pela TV Manchete em 1983, disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=EqKSG0aUyn0. 26 Misse (1993, p. 02), um dos organizadores da pesquisa de 1973, cita outras fontes bibliográficas produzidas no final da década de 1970: “um relatório de pesquisa de Edmundo Campos Coelho sobre a "ecologia do crime na Guanabara" (IUPERJ, Biblioteca), outro relatório de pesquisa de Josefina Figueira sobre "menores infratores da Guanabara:1964-1971” (IUPERJ) e um estudo, ao qual não tive acesso, de Tereza Miralles. Na área de Serviço Social, uma monografia mimeografada de Denise Galvão, Elia José de Mello e Helena Martins de Araújo, "Estudo sobre o problema do menor infrator na Guanabara", de 1968”. 27 Alguns exemplos dessas temáticas de caráter mais amplo podem ser a reforma urbana, a saúde, a educação, a assistência social, dentre outros. 28 O movimento feminista e ecológico podem ser outros exemplos que surgiram de perspectivas aproximadas à área da infância, pois associam direitos humanos e intervenção direta.

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Esse foi o início do reconhecimento de algumas temáticas que vinham diretamente associadas com um discurso universalizante. Ou seja, para que as ações do Estado chegassem às temáticas específicas era necessário trazê-las, inicialmente, a partir de roupagens universais. Assim, essa forma de discurso era um caminho para agregar diferentes atores, públicos e privados. O nível do discurso criava uma reivindicação pelo reconhecimento de direitos humanos. Essa reivindicação levava em conta, dentre outras dimensões, o direito a ter direitos, a garantia de condições básicas para a vida das pessoas (direitos civis) e o acesso de determinadas parcelas sociais aos aparatos estatais decisórios (direitos políticos). A questão da infância pobre e nas ruas, que potencialmente seriam vítimas do enclausuramento pelo Estado, foi um tema de articulação da sociedade civil para o enfrentamento de suas próprias mazelas.29 Hering (1992, p. 56) demonstra que a incorporação da ideia de direito, já muito forte na década de 1980, veio associada aos mesmos atores que atuavam com a questão da infância. [...] os movimentos sociais de luta pela defesa da criança e do adolescente começam a “ganhar corpo” na segunda metade da década de 80, definindose a partir daí mais pela sua identidade política do que vinha acontecendo até então. Isto porque, de início, aqueles atores que começaram a destacar-se na luta pelos direitos de crianças e adolescentes eram os mesmos que realizavam trabalho de atendimento direto a crianças e adolescentes privados de seus direitos básicos, combinando, portanto, a sua atuação como prestadores de serviços atuantes no vácuo deixado pelo Estado nesta área e, ao mesmo tempo, como sujeitos políticos desta discussão.

Essas iniciativas sociais eram subsídios para demonstrar que a maneira como o Estado lidava com a situação era inadequada e, por isso, resultavam em pressões por parte de diferentes atores políticos para subsidiar novas práticas de institucionalização e modos de operacionalização da política pública. Essa outra perspectiva foi criada por meio da ideia de intervenção na realidade, que ganhou corpo com a ideia de uma ação “alterativa”. Pereira (1998) recupera as discussões da década de 1980 para compreender o uso dessa palavra, ao invés de alternativa. Para a autora, a partir da CPI dos Menores em 1975 se estabeleceu uma tensão entre a prática das organizações de atendimento, estatais ou não, versus o discurso dos movimentos sociais. As práticas alterativas acontecem diante da necessidade de influenciar o Estado para o

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Por exemplo, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a Pastoral do Menor, que são abordados mais à frente.

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reconhecimento de direitos, ao invés de fazer pelo Estado ou para substituí-lo. Surgem dessa forma movimentos com “contornos de um movimento social nacional com propostas e capacidade alterativa no plano legal e no plano processual interventivo” (CARVALHO; PEREIRA, 1993, p. 7). Esses temas permitiam que grupos e organizações da sociedade passassem a atuar em questões que o Estado não alcançava, principalmente com viés interventivo.30 Essas ações tinham como consequência pressões por práticas estatais em torno de outras formas para se lidar com a situação que enfrentavam. Existia também o apoio de movimentos internacionais que passaram a pautar alterações na forma como as crianças eram tratadas no país. Alguns eventos demarcaram esse fortalecimento do debate em nível internacional sobre a infância. Em 1979, por exemplo, a ONU proclamou o Ano Internacional da Criança e essa ação se espraiou com iniciativas de sensibilização para o tema da criança em diferentes países. O Unicef era o braço operativo da ONU para o cuidado com o tema da infância e ganhou maior destaque nesse momento. Ele atuava no Brasil desde 1948 e no final da década de 1970 teve sua ação modificada e ampliada. Existem poucos relatos sobre a atuação do Unicef em sua chegada no Brasil (Unicef, 1980). Nesse princípio, ele tinha função de apoio às comunidades carentes por meio das organizações daquele local/comunidade, mas, além da ação direta, foi um ator de diálogo constante em prol da mobilização da sociedade para o tema da infância. Além disso, por meio desse elo, foi possível criar proximidades em questões e iniciativas voltadas para a infância por instituições muito diferentes entre si. Como parte do movimento iniciado com a proclamação do Ano Internacional da Criança e da atuação do Unicef no Brasil, foi realizada durante o ano de 1979 uma ampla divulgação sobre a questão da infância pobre, encampada pela Rede Globo de Televisão.31 Essa iniciativa apresentou a problemática da infância e isso possibilitou dar ainda maior amplitude às discussões promovidas no final daquela década. Assim, instituições como estas (mídia e agência internacional), bem como aqueles atores citados (movimentos sociais, organizações da sociedade civil, pesquisadores sobre o tema) eram sujeitos públicos e privados que buscavam por novas formas de intervenção para enfrentar a situação da infância no país. 30

A Alfabetização de Jovens e Adultos, por exemplo, foi uma dessas áreas de atuação em que existiam ações estatais sendo realizadas, mas com a atuação social diferenciada passou-se a incorporar novas práticas pelo Estado. O Programa MOVA-SP, criado em 1990, pela Gestão Paulo Freire à frente da Secretaria de Educação do Governo Erundina, foi um momento de convergência para essas incorporações estatais. 31 Para mais informações, disponível em Rede Globo de TV: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/musicais-e-shows/ano-internacional-da-crianca.htm acesso em: 19 ag. 2013.

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Essa intenção nascida das práticas da política delineava narrativas projetivas fundamentadas na ideia da infância como futuro da nação. Ao aproximar instituições tão díspares não simplifica-se a complexidade de cada um destes atores, mas considera-se que a urgência do reconhecimento da situação da infância pobre era um ponto de encontro para todos. Isso não significa dizer que as propostas para o enfrentamento dessas situações eram formuladas de maneira igual, e muito menos que as crenças, visões, valores sobre o que é a vida em sociedade era idêntica entre eles. De fato, existia uma sensível diferença na maneira como cada um entendia como devia ser feito o atendimento a essas crianças, pois visões baseadas na caridade e na repressão ainda estavam presentes. Entretanto, era premente o enfrentamento da situação e mais ainda o questionamento das instituições que recolhiam essa infância para a regulação, por via do enclausuramento. Os grupos que se envolveram nessa disputa foram os movimentos sociais, crianças e adolescentes mobilizados, técnicos e juristas inconformados com as políticas de defesa da infância, empresários e sindicatos das mais diversas categorias. Com a institucionalização do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), ocorrida a partir da influência de acordos internacionais e pela mobilização da sociedade brasileira ocorreu uma modificação na disputa. O ECA possibilitou a incorporação da temática da criança e adolescente em uma lógica de política pública, com estruturas permanentes voltadas para o atendimento desse público. O princípio era a forma pública sob a qual o interesse público passava a ser a grande mola propulsora sobre as decisões e as formas dos serviços. A sociedade, em movimento, reivindicava das instituições estatais o reconhecimento de demandas antes negadas ou ocultadas. Levantavam questões públicas e sociais. Buscavam novas formas para alteração da lei e, em seguida, para a formulação de políticas públicas sociais. Eram sujeitos e atores muito diferentes entre si, em forma e conteúdo, mas estavam unificados em torno de interesses comuns: a luta pelo reconhecimento de direitos e o discurso contra o Estado autoritário. Esse momento foi o início da conformação do que denominamos com o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que se voltava contra o excessivo enclausuramento de crianças e adolescentes. A autonomia desse movimento é um dos pilares desse Campo, pois inicialmente a ideia de autonomia aparecia com um viés de ações realizadas por meios próprios e, atualmente, pode ser dada mais ênfase para a qualidade da relação entre movimentos sociais e sociedade política. As políticas sociais com as medidas de intervenção do ECA (medidas de proteção e medidas socioeducativas) construíram o alicerce para a política pública sob o marco da nova legislação. Essas duas medidas atuam diretamente com as questões centrais das matrizes

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anteriores, já que as medidas de proteção buscam criar respaldo para a intervenção em determinadas situações de vulnerabilidade de crianças e adolescentes e as medidas socioeducativas atuam com a delinquência juvenil. Outro elemento que unificava alguns atores e organizações naquele momento era uma visão de novos direitos para as crianças e os adolescentes, associados à não tutela desses “menores” pelo Estado, mas principalmente colocando essas institucionalidades a serviço do desenvolvimento da criança. Essa ideia tem uma forte relação com a desinstitucionalização de crianças e as propostas relacionadas com isso. Esse é um princípio que auxilia na demarcação dos conteúdos dos casos analisados. Foi uma ruptura, em termos das “narrativas projetivas”, com a maneira de estruturação das políticas públicas anteriores, em que a criança devia ser controlada e institucionalizada para que a sociedade alcançasse um bom nível de desenvolvimento. A ideia de novos direitos trazia exigências de ação estatal como forma de criar mecanismos estáveis de proteção social, e buscava substituir os procedimentos fundamentados na caridade e na benesse. A criança em situação de rua foi o elo entre os diferentes sujeitos coletivos. Entre 1980 e 1984, como forma de enfrentar essa situação, a Pastoral do Menor, organização ligada às comunidades de base da Igreja Católica, iniciou o desenvolvimento de trabalhos com essas crianças e adolescentes na rua. Nesta nova forma de lidar com a situação, as ações de prestação de serviços que tradicionalmente eram realizadas pelas entidades da igreja, incorporaram dimensões políticas e participativas (PINHEIRO, 2004). Essa foi uma primeira iniciativa e deu bases para a formação do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), 32 formalizado em 1985. Esse movimento foi importante por conseguir congregar outros atores sociais que lutavam pelo enfrentamento dessa situação. No ano seguinte (1986) foi realizado o primeiro Encontro Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, que reuniu cerca de quinhentas crianças e adolescentes. Em março de 1988 foi formado o Fórum Nacional Permanente de Entidades Nãogovernamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA) a partir do encontro de vários segmentos organizados de defesa da criança e do adolescente, o qual será abordado com mais detalhes adiante. O resgate histórico da avaliação dos dez anos de ECA auxilia a visualização da relação entre o Fórum Nacional DCA e o MNMMR:

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Conforme Macedo e Brito (1998): “O MNMMR é uma entidade civil sem fins lucrativos, fundada em 1985, autônoma, composta por educadores, ativistas e colaboradores voluntários. Está estruturado em 24 estados brasileiros, e sua organização ocorre através de Conselhos e Comissões Locais, divididos em Conselho Nacional, Coordenação Nacional, Comissão Estadual, Conselho Fiscal, Comissão Local e Núcleos de Base”.

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Em 1988, a partir da atuação do MNMMR, é constituído o Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente – Fórum DCA, aglutinando diversas entidades e forças políticas, mobilizando outras forças nacionais e internacionais em defesa da criança e constituindo o elo articulador e mobilizador do movimento em defesa da criança e do adolescente. A atuação do MNMMR, com participação de uma rede de educadores, ativistas e colaboradores voluntários, em sua maioria, foi fundamental para a história e consolidação do movimento em defesa da criança e do adolescente, inserindo os meninos e meninas como protagonistas efetivos de sua própria história, através da organização dos mesmos. (CECRIA/AMENCAR, 2000, p. 40)

O MNMMR, nascido da Pastoral do Menor, foi um dos movimentos que compunham esse Fórum Nacional, e outras entidades representativas da questão da infância estavam no mesmo espaço de debate e, com isso, formou-se uma estrutura híbrida, com organizações formais e outros movimentos sociais, mas ainda sem uma institucionalidade formalizada. O Fórum Nacional DCA ganhou uma posição de destaque nas discussões sobre os direitos das crianças e dos adolescentes por ser representativo de organizações e movimentos da sociedade civil que lidavam com essa questão. Segundo Cecria e Amencar (2000), o Fórum era reconhecido como o principal articulador da ampla mobilização social pela inclusão na Constituição da emenda pelos direitos da criança e do adolescente como cidadãos. Portanto, é possível verificar a potencialidade da articulação ocorrida no Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes e com as organizações da sociedade civil que atuavam com o tema da infância e a influência dessa articulação deixando marcas na Constituição e na redação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA).33 Em sua gênese, o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) rompeu com a função hegemônica baseada no autoritarismo que, em vez de buscar ancoragem na experiência e nos sujeitos sociais, era fruto de uma produção com forte viés tecnicista e antidemocratizante (NASCIMENTO; ZUQUIM, 2009). O ECA instaurou um novo modo de construção das políticas para a área da infância e adolescência, pois surgiu a partir da realidade e especificidades de sujeitos em desenvolvimento. Refletiu, sobretudo, em seu texto a busca por uma visão integradora das ações públicas e institucionais (pedagógica, jurídica, psicológica,

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Um exemplo das mobilizações da época foi o evento “A criança e seus direito: Estatuto da Criança e Adolescente e o Código de Menores em debate” (Funabem, s/d), ocorrido em agosto de 1989. Nesse evento participaram importantes atores da discussão sobre o ECA, dentre eles o Juiz Antônio Fernando Amaral, que aparecerá novamente no princípio da discussão do Sinase, em meados dos anos 1990.

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do voluntariado, etc.). Essa representação dava o status de uma lei que iniciava um novo marco regulatório para a sociedade. A Lei quebrava o aparato sustentador da "situação irregular" e caminhava para um novo estado de direito, passando a ser dever da família, do Estado e da sociedade o cuidado da criança e do adolescente. Mas na prática institucional ainda estão demarcadas ações e intervenções estigmatizantes, ou como práticas higienistas (abrigamento, por exemplo), ou como ação de proteção social contra o delinquente (medida socioeducativa de restrição de liberdade). O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) determina em seu Art. 86 que a política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente deverá ser efetivada por meio de um conjunto articulado e controlado de ações, governamentais e não-governamentais, de todas as instâncias do Poder Público (União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios). A relação público/privado está fundamentada na lógica do compartilhamento, na qual Estado e sociedade tem atribuições e responsabilidades. Essa visão possibilitou para as organizações não-governamentais maior espaço de atuação que, a partir disso, passaram a se infiltrar nas instâncias decisórias para aproveitar essas lacunas e deliberar políticas para sua manutenção. Para atender ao Estatuto foram criadas instâncias operacionais e de garantia da cidadania das crianças e adolescentes, entre as quais os Conselhos de Direito, e no nível municipal, os Conselhos Tutelares. Esses Conselhos são instrumentos centrais para uma política de transformação e ruptura da Doutrina da Situação Irregular, vigente no período anterior. Também podem cumprir o papel de responsabilização por parte do Estado na formulação de políticas sociais voltadas para a criança e o adolescente, bem como no acompanhamento quanto à sua efetivação. A garantia da proteção integral, pilar fundamental do Estatuto, passa por duas linhas de atuação: pelas políticas públicas que possam diminuir a desigualdade social e pela mobilização da sociedade civil. Nesse sentido, é necessária a participação da sociedade civil no processo de elaboração das políticas públicas, seu acompanhamento e avaliação. Essas novas formas participativas de governo priorizaram o poder local, onde a população é convidada a exercer sua cidadania, o que implica a participação nas discussões da gestão das cidades e dos caminhos para solucionar as demandas do município. Essa era uma tendência nos debates do período constitucional, que via a descentralização diretamente proporcional à democratização.

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Cecria e Amencar auxiliam na interpretação do que eles chamam da “fase de implementação do ECA”, ou seja, a década de 1990. Nesse período o Fórum pautou suas atividades em dois eixos: o fortalecimento da sociedade civil no Conanda e o enfrentamento das novas questões colocadas pela extinção de órgãos e o remanejo das ações e estratégias governamentais e não-governamentais. Por outro lado, através de campanhas em nível nacional, conseguiu impedir as reformas propostas pelo Legislativo que feriam garantias previstas pelo ECA, especialmente, quanto à questão da inimputabilidade penal. (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 46)

Segundo os autores, essa foi uma fase de intensificação da presença de organizações não-governamentais na área da infância. Isso ampliou o número de atores no Fórum Nacional DCA. Contudo, para além da ampliação quantitativa da denominada sociedade civil, a partir das organizações não-governamentais, essa fase de implementação tem outra questão que incide de maneira significativa sobre ela. Essa está associada ao discurso de falência do Estado, e isso “implica um passo na direção de reformas orientadas para o mercado e coordenadas pelo Estado e pelo mercado” (BRESSER PEREIRA, 1996, p. 49). Dagnino et al. (2006) entendem que essa ideia constitui a base do projeto neoliberal, que não tem a democracia como eixo organizador, mas a necessidade de ajustar a economia e liberar o mercado dos obstáculos que o impedem de funcionar. Nesse contexto, [...] o resultado tem sido uma crescente identificação entre ‘sociedade civil’ e ONGs, onde o significado da expressão ‘sociedade civil’ se restringe cada vez mais a designar apenas essas organizações quando não mero sinônimo de ‘Terceiro Setor’. Os governos temem a politização da interlocução e com os movimentos sociais e com as organizações de trabalhadores, e buscam parceiros confiáveis, que possam responder efetivamente a suas exigências e minimizar os espaços de conflito. (DAGNINO et al., 2006, p.100)

Na área da infância, tradicionalmente marcada pela atuação privada e com o Estado voltado para o enclausuramento, esse projeto incide de maneira ainda mais presente. Com isso, cria-se uma associação entre a ideia de caridade e uma política de atendimento privatista que prega a substituição do Estado no processo de implementação da política pública. Assim, a discussão sobre a política pública para a criança e o adolescente incorporava a ideia do “atendimento alterativo”, que modificava o Estado e a própria sociedade civil ao longo dos anos 1980. Porém, na década de 1990 passou a ganhar força a

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ideia da substituição do Estado, algo que tinha sido evitado nos discursos da década anterior, e com isso houve um predomínio da ação privada. No Quadro 4 são apresentadas as principais características da legislação do ECA que alterou e demarcou o período fundamentado na educação social. Quadro 4 - Marcos legais do período de predomínio educador

Data 1990

Legislação ECA [Lei 8.069]

O que a política diz - Proteção integral (Estado, sociedade e família) - Prioridade absoluta - Criança e adolescente sujeitos de direito - Política pública

O que a política não diz - Situação irregular - Menor delinquente - Discernimento - Problema

Fonte: Nascimento; Zuquim ,2009.

O Estatuto da Criança e Adolescente foi construído com base em princípios que buscavam o rompimento com discursos anteriores, como a situação irregular e o menor delinquente. Os grupos de interesse que promoviam o debate para essa mudança eram formados a partir da sociedade civil como um movimento de contraponto à fase anterior estatal-centralizadora. 1.1.4. Sistematização dos Projetos de Políticas Públicas para a criança e o adolescente As matrizes históricas que foram apresentadas cronologicamente não poderiam ser incorporadas de maneira integral no cotidiano. Elas permitem verificar que algumas das palavras-chave daqueles discursos permanecem e ganham novos significados. Elas trazem elementos para alimentar, a partir de suas categorias, compreensões sobre os chamados Projetos de Políticas Públicas que passam a ser conteúdos na disputa pela formulação da política pública contemporânea. A temática do enclausuramento de crianças é um tema em que todos os projetos, cada um a sua maneira, encontram ressonância. Os meios e os fins para a realização do enclausuramento são temas de divergências entre eles e, com isso, a análise da Construção Democrática da Política Pública pode representar essas diferenciações. O Quadro 5 apresenta uma sistematização dos períodos apresentados com o objetivo de contribuir para um melhor entendimento das matrizes discursivas..

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Quadro 5 – Consolidação das informações dos três períodos

Matriz 1

Matriz 2

Matriz 3

Categorias da Políticas Públicas para a Infância e a Adolescência Assistência e proteção Regulação família x estado “Defesa social” Centralização Situação irregular

Descentralização Situação de risco

Categorias da formação discursiva Medicalização pobreza Controle social pobreza Instituições abrigamento Instituições correcionais Menor infrator Menor carente Participação social Medidas de proteção Medidas socioeducativas

da

Palavrachave do discurso Filantropia/p revenção

Atores centrais discurso

Repressão/pu nição

Técnicos especializados

Cidadania/di alógico

Educadores e Movimentos e sociais

da

do

Juristas Médicos Assistencialistas

de

Fonte: Nascimento; Zuquim , 2009 (com adaptações para essa tese). A apresentação cronológica das matrizes histórica demonstra que as distintas visões sobre o enclausuramento diferenciam os projetos, mas principalmente constituem as políticas públicas para a criança e o adolescente de maneira diferenciada a partir de cada momento. Com o entendimento dessas características, busca-se sistematizar três projetos de políticas públicas que incidem sobre o momento da formulação da política. O primeiro Projeto de Política Pública, denominado Caritativo/Assistencialista, está assentado em uma perspectiva liberal que responsabiliza o indivíduo. A filantropia é o combustível para o seu funcionamento, já que se estabelece a partir de um mercado privado de doações e ações. O foco está na retirada das responsabilidades estatais em relação às políticas públicas. Em termos das políticas de enclausuramento, esse Projeto ganha relevância a partir da discussão de transferências e responsabilização dos serviços estatais para a iniciativa privada. Esse projeto de política pública ganha nova roupagem contemporânea a partir do fortalecimento do Projeto Político Neoliberal, exposto por Dagnino et al. (2006). O segundo Projeto Política Pública Tecnicista/Autoritário tem uma perspectiva pragmática e técnica. A existência desse projeto busca tecnificar o debate da intervenção em relação à criança. São os técnicos da área que centralizam e definem como a política será feita. A visão de mundo presente nesse projeto, por vezes, hierarquiza os técnicos e os

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atendidos em relações forte/fraco e isso condiciona o mundo da infância e adolescência a uma pré-definição adultocêntrica. Essa forma de atuação pode ter como consequência o tratamento punitivo ao adolescente, já que aparece como algo imposto e sem o respeito às peculiaridades daquele sujeito. Nesse Projeto de Política Pública existe o predomínio do Estado a partir de sua lógica operacional, que distancia os sujeitos políticos da decisão sobre como a ação será feita. Esse Projeto de Política Pública tem relações com o Projeto Autoritário (DAGNINO et al., 2006), principalmente pela tentativa de exclusão da sociedade civil da decisão sobre a política pública. Nesses dois primeiros projetos existe uma ação de despolitização na esfera da decisão pública. Em ambos o conflito é visto como algo a ser evitado e, consequentemente, a dimensão da política fica subjugada ao plano gerencial e técnico. Nessa concepção, os espaços participativos de deliberação sobre a política são vistos como arenas gerenciais (TATAGIBA, 2003). O Projeto de Política Pública Educativo nasce com a concepção da criança como sujeito ativo na construção de sua própria história e pauta as políticas públicas nessa perspectiva. As organizações e os movimentos da sociedade podem ser espaço para esse exercício na medida em que impulsionam o aprendizado e a experiência coletiva. Nessa forma de visão, a sociedade passa a ter responsabilidades relacionadas com a sociabilidade, assim como foi preconizado na Constituição Federal de 1988. Com isso, as instituições de enclausuramento são exceções, tratadas como ações temporárias e como assunto de interesse público. Pauta-se, dessa forma, a decisão sobre o serviço público a partir da forma pública, baseada em direitos e na cidadania, em que os sujeitos são diretamente envolvidos na decisão sobre como o serviço público será realizado. Esse projeto tem relação com a ideia do Projeto Democrático-participativo (DAGNINO et al., 2006). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nasce com base neste último projeto de política pública. Contudo, os outros Projetos de Políticas Públicas continuam sendo conteúdos nos momentos de incidência sobre a decisão das políticas públicas para a criança e adolescente. Para superar possíveis permanências desses projetos é necessário que nas instâncias participativas sejam aliadas competência técnica, para dar respostas aos direitos violados, e discussão política entre representantes de governo e da sociedade para incidir na concepção de políticas públicas de garantia de direito. A instância do Conselho Nacional dos Direitos pode ser um canal de diálogo e controle social para essa implementação. Essa demanda em relação aos espaços participativos não foi constantemente cumprida, mas em relação às políticas de enclausuramento, esse

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espaço conseguiu exercer esse papel. Não fez isso sozinho, mas contou com o apoio político dos movimentos da sociedade que reclamavam a atuação do Estado, bem como às organizações estatais que tem interface com o tema. Ou seja, verifica-se a necessidade de compreender um duplo movimento tanto do Conselho para com a sociedade civil que dialoga sobre o tema, bem como do Conselho para as organizações do Estado que atuam com a temática. 1.2. Os Conselhos Nacionais e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes (Conanda): a institucionalização da participação social no interior do Estado Esta pesquisa centraliza sua análise no Conselho como um “espaço entre”,34 marcado principalmente pela sua ação fundamentada na mediação entre Estado e sociedade, e não somente com sua predominância voltada para o controle dos aparatos administrativos e burocráticos do Estado.35 Valoriza, dessa maneira, o papel do Conselho, tanto com uma face voltada para vocalizar as pressões de atores da sociedade em prol do fortalecimento das capacidades estatais (ABERS; KECK, 2009), quanto com outra face voltada para a busca pela cooperação na formulação da política. Esse esforço faz parte de reconhecer o Conselho como parte de um sistema participativo (SÁ & SILVA; LOPES; PIRES, 2010), bem como canal de interlocução com os movimentos da sociedade civil. Portanto, essa pesquisa busca analisar como os processos participativos melhoram o funcionamento do Estado e, por isso, aproxima o debate sobre participação social com a área de estudos sobre políticas públicas.36 Os Conselhos Nacionais são instâncias presentes em boa parte das políticas sociais. No ano de 2010, ao final dos governos Lula, foram contabilizados 71 Conselhos Nacionais (POLIS, INESC, 2011), sendo que o seu primeiro mandato foi o período de maior crescimento desse número, apresentado na Figura 1.

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Avritzer e Pereira (2005) denominam os conselhos como instâncias no interior do sistema decisório com caráter híbrido e plural. 35 Muitos estudos sobre os resultados da atuação participativa têm uma ênfase maior na análise dos impactos da atuação dos Conselhos em relação à sua face voltada para o governo. Esse estudo também utiliza essa abordagem, mas faz isso a partir de uma simultaneidade de análise do impacto dessas instituições em relação à sociedade. 36 Essa foi uma demanda levantada pela comunidade científica da área da participação social e políticas públicas, apontada nos dois “Encontros Internacionais de Participação, Democracia e Políticas Públicas”, realizados em Araraquara (UNESP, 2013) e em Campinas (UNICAMP, 2015).

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Figura 2 - Ano de Criação dos Conselhos Nacionais

Fonte: POLIS, INESC, 2011.

Apesar de grande parte dos Conselhos terem sido criados recentemente, os Conselhos Nacionais mais antigos e criados logo após a Constituição Federal de 1988 são bons exemplos para o entendimento sobre a institucionalização desses espaços. Eles permitem uma análise comparativa entre as intenções iniciais desde a criação do espaço até a compreensão dos efeitos nas políticas públicas gerados por essas estruturas. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente é um desses casos criados sob o marco da nova Constituição, pois passou a funcionar no começo dos anos 1990 e exerceu o seu papel de espaço deliberativo a partir do marco legal do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto, este espaço possibilita uma análise das influências da participação social no contexto de uma área refundada sob conteúdos de um novo Projeto de Política Pública e o seu marco legal, conforme visto anteriormente. 1.2.1. As instâncias participativas, as políticas públicas e a participação social A forma de análise dos Conselhos aqui proposta busca acompanhar os deslocamentos da literatura sobre conselhos e participação social no Brasil. Na prática, os Conselhos de Políticas Públicas passaram a ser, ao longo do tempo, espaços dominados pela rotina burocrática (ALMEIDA, TATAGIBA, 2012) e isso, associado a outros pontos, provocou uma relativa diminuição do escopo dos sentidos da participação social associado a esses espaços. Essa noção vem sendo incorporada, no contexto da política federal, a partir de uma perspectiva reduzida denominada como “escuta social”, como apontado por gestores

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governamentais do período (ALMEIDA, 2010). Nessa perspectiva reduzida, os espaços dos Conselhos teriam deixado de ser locais para o conflito e a deliberação (TEIXEIRA, 2013), e, com isso, perderam capacidade de exercer representação da sociedade civil no interior da estrutura do Estado. Assim, uma tarefa para o pensamento sobre a participação social contemporânea é voltar a conferir centralidade ao exercício da política no contexto dos Conselhos. Como caminho para isso valorizamos os conteúdos das políticas públicas em debate de forma a destacar o teor dos conflitos e ressaltar o processo de formulação das políticas públicas como resultante dos diferentes interesses que estão em disputas. Até o início dos anos 2000, existiu um relativo consenso na literatura de que os Conselhos eram a expressão da participação social, responsáveis pelo controle e pela formulação das políticas públicas em um movimento de democratização e de novas relações entre governo e sociedade civil. Essa realidade, no entanto, não pôde ser constatada nas experiências da participação institucionalizada e, de acordo, com Gurza Lavalle (2011, p. 35), As expectativas quanto ao alcance dos conselhos, todavia, permaneceram vinculadas às suas origens radicais e, por conseguinte, não é de estranhar que a primeira geração de estudos sobre os conselhos tenha nutrido um tom de denúncia, elencando iniquidades e carências pelas quais as práticas de participação nos conselhos não mereciam, a rigor, ser chamadas de participação.

O autor propõe que uma segunda geração passou então a questionar essa “deficiência mediante a substituição da denúncia de ausência da participação pela descrição sistemática daquilo que efetivamente é realizado nos diferentes conselhos” (GURZA LAVALLE, 2011, p. 35). Nesse contexto, alguns autores passaram a reconhecer limites na interlocução dos ocupantes dos Conselhos, tanto na relação com a sociedade civil como para dentro do Estado. Deslocou-se, dessa forma, a compreensão de que eram legítimos portadores da participação social e passaram a ser considerados como outro tipo de representação política (GURZA LAVALLE; CASTELLO; HOUTZAGER, 2006; LÜCHMANN, 2007; AVRITZER, 2007; GURZA LAVALLE; ISUNZA VERA, 2011). Mais recentemente buscou-se inserir uma nova variável nos estudos sobre a participação social quando foi agregado o questionamento sobre a efetividade e o impacto das instâncias de participação nas políticas públicas (PIRES et al., 2011). Metodologicamente essa vertente de estudos tem uma preocupação em estar associada à segunda geração de

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estudos sobre os Conselhos, que descreve sistematicamente o que é feito por eles, bem como coloca em questionamento também o próprio conceito de participação, buscando superar os limites da representação no espaço dos Conselhos. Este estudo se alia a essa vertente na medida em que enfatiza os resultados de um Conselho Nacional descrevendo sistematicamente suas práticas, bem como analisa as relações sócio-estatais nesse espaço e proporcionadas, principalmente, pela existência dele. Contudo, procura avançar na análise da dimensão dos conteúdos da política pública, comparada à luz dos processos e dos atores envolvidos no jogo decisório. Esse ângulo de análise não poderia adotar unicamente a discussão sobre o que os Conselhos deliberam, pois em muitos casos essas decisões voltam-se muito mais para a discussão de estruturação do Conselho (ALMEIDA, TATAGIBA, 2012) do que para um debate sobre a política pública (como, por exemplo, diagnósticos, planos, diretrizes, etc.). Além disso, em muitos casos a decisão do Conselho pode não significar a adoção de políticas pelo Poder Executivo. Ainda paira sobre o universo dos Conselhos uma imprecisão institucional em relação à vinculação e amplitude das atribuições de suas deliberações e sobre o seu papel no controle social das políticas públicas (TEIXEIRA, TATAGIBA, 2008; ALMEIDA, TATAGIBA, 2012). Essa imprecisão não significa uma ineficiência por parte dos Conselhos no espaço de discussão política, pois em muitos casos consegue ser canal de diálogo entre Estado e sociedade civil, como será mostrado adiante. Esses aspectos ganham ainda mais intensidade nas pesquisas sobre os Conselhos nacionais de políticas públicas, quando se deparam com um Poder Executivo Federal vultoso, complexo e estruturado. Deparam-se também com formas muito diversas de organizações da sociedade civil que dificultam uma normatização sobre o modelo de representação dessa sociedade nos Conselhos. Os estudos sobre os Conselhos nacionais demonstram essas dificuldades. Lorenzo (2008), por exemplo, analisou o Conselho Nacional dos Esportes e concluiu que aquela instância tinha uma baixa capacidade de discussões aprofundadas e era muito dependente das iniciativas estatais. Com isso, a autora verificou uma baixa efetividade desse espaço em relação à sua área de políticas públicas. Bernhardt (2009) buscou relativizar a não implementação das deliberações do Conselho Nacional das Cidades – ConCidades alegando que isso ocorria pelo seu caráter consultivo. Entretanto, estudos sobre conselhos nacionais (LIMA, 2011) demonstram que o caráter normativo do Conselho, como deliberativo ou consultivo, não é tão determinante para o respeito destes espaços no interior do Estado, pois outros fatores influenciam na dinâmica

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dos Conselhos e a equação da eficiência destes é recortada por diferentes variáveis, com faces relacionadas à sociedade e ao Estado. Estudando o mesmo ConCidades, Serafim (2013) adotou como ângulo de análise a apropriação das demandas do Movimento Social de Reforma Urbana por parte do Executivo e demonstrou que existia uma relação entre as decisões do Conselho adotadas pelo Executivo e as demandas vindas daquele Movimento. O fato de o ConCidades ser consultivo e facilmente dissolvido por sua vinculação institucional à estrutura do MCidades não foi um problema durante a gestão Dutra segundo diversos entrevistados, devido à sua disposição em relação à participação, e à relação de confiança e diálogo aberto construída entre o Ministro e o ConCidades. Havia, naquele período, um acordo tácito de que o Ministro sempre acataria e homologaria as decisões do ConCidades.

O destaque dado à gestão do Ministro Olívio Dutra e sua disposição em dialogar, demonstra que esse compromisso se deu muito mais pela relação dos atores relevantes e seu compromisso com a participação social, do que por um aparato institucional e organizado para garantir o diálogo sócio-estatal. Outro fator primordial para o reconhecimento do espaço do Conselho é a existência da disposição do governo em articular os aparatos do Estado para respeitar as opiniões do Conselho (AVRITZER, 2007b; LÜCHMANN, 2002; 2012). Essa ação pode ocorrer pela mobilização de atores relevantes no Poder Executivo, como visto anteriormente, ou como parte de uma estruturação de um arranjo multi-organizacional para viabilizar a formulação de políticas públicas, ou o que se denomina por Comunidade de Política, a ser detalhado mais adiante. Nota-se também que esse Conselho teve mais influência quando dialogou com os movimentos sociais representativos da sua área de políticas, ou o que denominamos Campo de Defesa, por isso evidencia-se a importância dessa face societal nessa pesquisa. A existência desse fator é importante para a efetividade dos Conselhos, mas não é suficiente para o cumprimento de suas decisões. O mais comum ao longo do processo de maturação dessas instâncias participativas é que os Conselhos se voltem mais para suas funções administrativas e diminuam essa interlocução com a sociedade. Essa relação entre o governo e o Conselho pode ter um revés de análise quando a estruturação da política pública ganha maior evidência e, nesse sentido, o governo busca controlar o espaço participativo para evitar maiores conflitos quando da formulação. Para

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compreender esse propósito, Avelino (2012) analisa o Conselho Nacional da Assistência durante parte do período de estruturação do Sistema Único de Assistência, e conclui que nessa atuação do governo no Conselho é necessário considerar o momento histórico pelo qual passava a política. Portanto, a estruturação da política condiciona a atuação do Conselho e isso demonstra que as dinâmicas do Estado impactam na formação da sociedade civil e, consequentemente, alteram os repertórios futuros de incidência social sobre o Estado. Esses são alguns dos motivos institucionais e políticos/representativos para o baixo reconhecimento desses espaços na governabilidade do Estado. Essas dimensões somam-se às dificuldades para realizar o debate sobre a efetividade desses espaços enquanto decisores das políticas públicas. Teixeira e Tatagiba (2008, p. 3) trazem outras questões para o debate sobre essas instâncias: Afinal, se é verdade que os conselhos não deliberam, o que fazem? Para que estão servindo? Para além do que prevê a legislação, qual a função que estão realmente assumindo nas diversas fases de produção das políticas públicas? Indo além das expectativas e focando nas “experiências realmente existentes”, quais têm sido o lugar, o papel e a função dessas novas instâncias e o que isso diz acerca de sua identidade institucional? Até que ponto os conselhos incidem nas políticas públicas e de que forma incidem?

Tais questões ampliam os olhares sobre a efetividade dos Conselhos, e iluminam a relação dessas instâncias no contexto do Estado. Dessa forma, qual o efeito dos Conselhos, integrantes do Poder Executivo como espaço entre o Estado e a sociedade? Nessas interfaces, qual é a sociedade e qual é o Estado? Os Conselhos nacionais têm dificuldades institucionais e representativas para incluir novos temas na agenda estatal, de maneira a conseguir direcionar a atuação estatal e as mudanças nas políticas públicas. Portanto, os Conselhos podem não ser espaços para debater questões públicas relevantes em todos os momentos de sua existência. Entretanto, se os Conselhos não são impactantes em todos os momentos, existem certas temáticas e certos momentos em que essas instâncias podem ser o espaço institucional que consegue estabelecer comunicações com a sociedade e com o Estado. Quais são esses temas e como eles refletem a própria configuração da área de políticas públicas a que pertencem? O presente estudo busca respostas para essa questão, pois articula conteúdo das políticas e processo de discussão em dois casos emblemáticos da atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Assim, se o Conanda não foi

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determinante em todas as temáticas da política pública de direitos humanos de crianças e adolescentes, nessas resoluções cumpriu um papel primordial ao promover o encontro entre demandas vindas de parte da sociedade e a formulação da política feita no âmbito do Estado. Essas resoluções tratam do tema das políticas de enclausuramento de crianças e adolescentes, seja como medida de proteção contra vulnerabilidades, ou pelo cumprimento de ato infracional pelo adolescente. 1.2.2. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) A política pública para a criança e o adolescente foi uma área de importantes conquistas, fruto das relações sócio-estatais durante a década de 1980. Na área de políticas a demanda central pautava-se pela busca de meios para efetivar a convicção de que a ampliação do controle do Estado pela sociedade levaria a uma maior responsabilidade dos organismos oficiais quanto aos interesses sociais (GONZÁLES, 2000). Ou seja, buscava-se romper com as formas autoritárias do Estado que tinha na política pública para a criança e o adolescente uma de suas principais áreas de atuação. Como espaços para esses encontros, com base na Constituição Federal de 1988 e no ECA, nasceram os Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esses espaços surgiram com uma dupla intenção: criavam um canal de demandas da sociedade para o Estado e também um sistema de políticas públicas que abarcassem as ações privadas, principalmente as não-governamentais, e as estatais. Os Conselhos dos Direitos são espaços regulamentados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 88, inciso II que preconiza [...] a criação de conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais

Palavras como “formulação”, “deliberação” e “controle” aparecem nas conceituações sobre o papel dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente normatizadas pelo ECA. Em linhas gerais, são duas áreas de atuação relacionadas com as políticas públicas: “formular/deliberar a política para o atendimento” e “controlar a execução das mesmas”. Em ambas aparece de maneira muito forte uma dimensão de gestão dessas políticas, pois a formulação e o controle das políticas tem relação com a definição sobre o “como” a política será feita. Essa execução diz respeito às atividades, estatais ou nãogovernamentais, portanto, atuações públicas, em relação às crianças e aos adolescentes. Essa

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forma de compreensão direciona um papel operacional e técnico para a instância dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente e isso pode ter como consequência um conflito com as organizações do Poder Executivo, responsáveis pela gestão da política pública para a criança e o adolescente. Ou seja, dificulta-se uma delimitação entre a dimensão política da política pública para a criança e o adolescente que deve ser debatida e deliberada pelo Conselho e a dimensão da gestão da política que fica sob o encargo do órgão competente indicado pelo Poder Executivo. Aos Conselhos dos Direitos também cabe funções em relação à sociedade (TEIXEIRA; TATAGIBA, 2007). O Eca em seu artigo 88, inciso IV aponta como instrumento para essa ação a “mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”. Processos, como a mobilização da opinião pública, poderiam ser ações realizadas pelos Conselhos para conseguir atingir esse objetivo. Todavia, essas ações são pouco vistas na realidade dos Conselhos nos diferentes níveis federativos, conforme apontado pela avaliação nacional dos Conselhos dos Direitos, financiada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (TORRES; TATAGIBA; PEREIRA, 2009). O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) é o órgão que delibera sobre a Política Nacional de Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente, controla e acompanha a implantação das políticas para a infância em todos os níveis. Esse ponto do controle é um aspecto que levanta alguma polêmica, já que a condição federativa do Estado brasileiro impede uma visão hierárquica no estabelecimento das relações entre os entes federados. A Mensagem presidencial n˚ 554, de 12 de outubro de 1991, sobre os vetos à lei de criação do Conanda apontava essa tensão e se posicionava sobre o papel da fiscalização do Conselho quando citava que a referência à “instância superior” no dispositivo e aos Conselhos [...] Municipais e Estaduais implica uma hierarquização, que contraria o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069/90). De fato, esses conselhos são autônomos, e não-hierarquizados, cabendo recurso à Justiça, através do Ministério Público, quanto a eventuais violações de suas funções. A fiscalização do Conanda, no caso, refere-se às linhas gerais da política nacional que a ele compete definir e à execução das ações, conforme o disposto nos artigos 87 e 88 da citada Lei n° 8.069/90.

Assim, desde as redações iniciais do ECA ficou estabelecido que ao Conanda caberia a função de deliberar sobre as diretrizes gerais da política pública, conforme a

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Constituição prevê.37 Para a melhor realização dessas diretrizes é possível pensar que o Conanda tem um papel de articulador de uma ampla rede não hierárquica entre os Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente (QUERMES, 2000). Associada à elaboração das normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, é atribuição do Conanda, conforme sua lei instituidora, fiscalizar as ações de execução das políticas federais, observadas as linhas de ação e as diretrizes estabelecidas nos artigos sobre a Política de Atendimento presentes no Estatuto da Criança e Adolescente: Avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente. Acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente. (BRASIL,Lei 8.242/91, Art. 2˚)

O Conanda foi criado pela Lei 8.242 em 12 de outubro de 1991. Apesar de instituído naquele ano, aspecto que atendia às normatizações do recém-aprovado ECA, o Conselho iniciou suas atividades apenas em 1993. O principal motivo para o atraso foi o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo e as reformas liberalizantes que entravam no Estado brasileiro. O Conanda passou a funcionar no governo Itamar Franco e um fato marcante para o início do Conselho foi a chacina da Candelária, ocorrida em 23 de julho de 1993, que teve oito crianças e adolescentes que viviam nas ruas, assassinados por policiais militares do Rio de Janeiro. Nos documentos do Conselho são encontradas duas atas registradas como a primeira assembleia do Conanda. A primeira com duas páginas foi registrada pela Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FBCIA), de 18 de março de 1993. Por esse documento é possível ver que a primeira assembleia do Conselho poderia ter sido um ato protocolar e formal com a pequena participação de atores governamentais e não-governamentais. Após a chacina, contudo, esse ato da 1ª Assembleia do Conanda ganhou maior repercussão e foi repetida em 28 de julho de 1993. Contou com a presença de todos os Ministros de Estado que tinham cadeira no Conanda e com os representantes nãogovernamentais. A ata dessa reunião, registrada em onze páginas, demonstra as ações

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O artigo 24 da Constituição Federal aponta que “Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente” e aponta em seu inciso XV a “proteção à infância e Adolescência”.

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realizadas para investigar a chacina, bem como as propostas de políticas para crianças e adolescentes, como Bolsa-trabalho, por exemplo. Atualmente, a lei de criação do Conanda está regulamentada pelo Decreto nº 5.089, de 20 de maio de 2004. De acordo com esse Decreto são competências do Conanda: I - elaborar normas gerais da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, bem como controlar e fiscalizar as ações de execução em todos os níveis; II - zelar pela aplicação da política nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente; III - dar apoio aos conselhos estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente, aos órgãos estaduais, municipais e entidades nãogovernamentais, para tornar efetivos os princípios, as diretrizes e os direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; IV - avaliar a política estadual e municipal e a atuação dos conselhos estaduais e municipais da criança e do adolescente; V - acompanhar o reordenamento institucional propondo, sempre que necessário, as modificações nas estruturas públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente; VI - apoiar a promoção de campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com a indicação das medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação desses direitos; VII - acompanhar a elaboração e a execução da proposta orçamentária da União, indicando modificações necessárias à consecução da política formulada para a promoção dos direitos da criança e do adolescente; VIII - gerir o fundo de que trata o art. 6o da Lei no 8.242, de 12 de outubro de 1991, e fixar os critérios para sua utilização, nos termos do art. 260 da Lei no 8.069, de 1991; e IX - elaborar o regimento interno, que será aprovado pelo voto de, no mínimo, dois terços de seus membros, nele definindo a forma de indicação do seu Presidente.

Ele está disposto como órgão colegiado da Secretaria de Direitos Humanos e vinculado à Secretaria Nacional de Proteção e Defesa da Criança e do Adolescente. Lima (2009, p. 49) aponta essa vinculação atual como uma evolução, pois desde a I Conferência Nacional do Direito da Criança e Adolescente, realizada em 1994, deliberou-se sobre a vinculação do Conselho a algum órgão da Presidência da República.38 Anteriormente, durante parte do período dessa pesquisa, estava vinculado ao Ministério da Justiça, no Departamento da Criança e do Adolescente (DCA). O Conanda tem a prerrogativa de aprovar o seu regimento interno, possibilitando uma auto-regulamentação sobre o seu funcionamento. Reforçando a Lei de criação e o Decreto que a altera, cabe ao regimento interno estabelecer de maneira adequada as 38

Em outubro de 2015 a Presidenta Dilma Rousseff alterou a vinculação do Conanda passando a estar vinculado ao Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, portanto não estando mais na Presidência da República.

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competências do Conselho. Foram cinco alterações regimentais aprovadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (Resoluções 001/1993, 062/2000, 077/2002, 099/2004, 121/2006). Lima (2009) estudou os regimentos internos do Conselho para construir uma narrativa sobre a natureza, a composição, a organização, o funcionamento, a competência dos órgãos e dos membros. Com base nesse levantamento podem ser percebidas algumas características do Conanda. Utiliza-se aqui o percurso construído por Lima (2009) para compreender as configurações institucionais do Conselho, pois auxilia na análise do contexto de atribuições do Conselho no período das resoluções estudadas. A natureza deliberativa e controladora do Conanda não foi alterada ao longo dessas mudanças regimentais. Por sua vez, o regimento foi sendo aperfeiçoado ao longo do tempo no sentido de cobrir lacunas interpretativas, pois nos primeiros regimentos aparecia, por exemplo, que o Conanda deveria deliberar e controlar ações em todos os níveis, por exemplo. Essa realidade, conforme apontada, fere o princípio de autonomia dos níveis federativos e, com isso, nas alterações posteriores essa ideia de controle das outras esferas subnacionais ganhou características mais brandas. Lima (2009, p. 50) aponta que as alterações, em linhas gerais, demonstraram uma tentativa de aperfeiçoamento do aparato institucional do Conanda, denotando o reconhecimento desse órgão no âmbito governamental e fora dele. Atualmente, o regimento interno lista dezesseis ações de competência do Conanda, conforme mostrado acima. Essas competências são descrições mais detalhadas sobre o funcionamento da política, que passam pelo controle orçamentário e das instâncias de atuação com as políticas. Em relação à mobilização da opinião pública que está definida no ECA, vale destacar que somente dois incisos tratam sobre o assunto: V - promover e apoiar campanhas educativas sobre os direitos da criança e do adolescente, com indicação de medidas a serem adotadas nos casos de atentados ou violação desses direitos; XV - estimular a ampliação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação e controle social, por intermédio de rede nacional de órgãos colegiados, visando fortalecer o atendimento dos direitos da criança e do adolescente no âmbito nacional, estadual, distrital e municipal;

Esses incisos demonstram a compreensão daquele Conselho sobre o papel da mobilização social no âmbito dessa instância. Ele deve ocorrer, segundo o Regimento Interno, se valendo das campanhas educativas em relação a determinados direitos violados e pelas

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organizações representativas e suas redes, ou seja, os Fóruns dos Direitos da Criança e do Adolescente. Dessa forma, a atuação do Conselho junto a sua interface social ocorre como canal de comunicação sobre temas e por meio dos espaços de articulação da sociedade. Notase a compreensão do Conselho Nacional sobre o seu papel enquanto mobilizador social, pois essa ação se estabelece por meio das agremiações das organizações da sociedade civil ou os Fóruns dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Essa é uma concepção que nasce na formação da área de políticas que tinha na figura dos fóruns um papel central e, por isso, a importância de analisar essas institucionalidades no contexto de pesquisas sobre a sociedade civil relacionada à criança e ao adolescente. As demais atribuições do Conselho têm relação com a política nacional de atendimento para a criança e ao adolescente e o Sistema de Garantia de Direitos. Vale destacar alguns exemplos: I - elaborar normas gerais para a formulação e implementação da política nacional dos direitos da criança e do adolescente, bem como controlar e fiscalizar as ações de execução nos níveis Federal, Estadual e Municipal observadas as linhas de acabo e as diretrizes estabelecidas nos Arts. 87 e 88 da Lei no 8.069/1990, Decreto no 5.089/2004 e Resolução no 105/2005; IV - acompanhar o reordenamento institucional, propondo, sempre que necessário, modificações nas estruturas Públicas e privadas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente;

A composição do Conanda foi objeto de alterações tanto do ponto de vista legal e dos decretos quanto dos regimentos internos. De acordo com a lei de criação do Conanda, de 1993, o Conselho [...] é integrado por representantes do Poder Executivo, assegurada a participação dos órgãos executores das políticas sociais básicas na área de ação social, justiça, educação, saúde, economia, trabalho e previdência social e, em igual número, por representantes de entidades não-governamentais de âmbito nacional de atendimento dos direitos da criança e do adolescente (BRASIL, 1991).

Na lei de criação do Conselho não era mencionada a participação de outros e novos ministérios que se tornaram importantes ao longo dos anos. A indicação de titulares e suplentes tampouco era citada. Em linhas gerais, são três modelos de escolha dos representantes governamentais, conforme Lima (2009). Nos primeiros regimentos, os titulares e os suplentes eram escolhidos e nomeados pelo Presidente da República. Num segundo momento, os titulares eram nomeados pelos Ministros de cada pasta. Atualmente, os

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Ministros indicam os nomes dos representantes que são designados pelo Secretário Especial dos Direitos Humanos. O Decreto atual que atualiza a lei de criação do Conanda (5.089/2004) regulamenta em 28 (vinte e oito) conselheiros titulares, sendo garantido o princípio da paridade.39 Nos regimentos anteriores o total era de 20 conselheiros divididos paritariamente. Essa alteração ocorreu no auge do debate sobre as duas resoluções estudadas, no começo do governo Lula, e esse aumento do número de conselheiros, e consequentemente de organizações da sociedade civil no colegiado, gerou espaço para a alteração de parte da configuração da sociedade civil no Conselho, pois possibilitou que organizações que antes não tinham acesso ao Conselho passassem a ter. Em relação aos conselheiros governamentais, o Decreto normatiza sobre os quatorzes ministérios que terão assento no Conselho: Casa Civil da Presidência da República Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Ministério da Cultura Ministério da Educação Ministério do Esporte Ministério da Fazenda Ministério da Previdência Social Ministério da Saúde Ministério das Relações Exteriores Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão Ministério do Trabalho e Emprego Ministério da Justiça Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. Outro elemento importante de ser destacado na composição do Conanda diz respeito à presidência. A lei de criação do Conanda (Lei 8.242/1991) aponta em seu artigo 5° que o Presidente da República nomeará e destituirá o Presidente do Conanda, escolhido dentre

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Metade destinada ao Estado e outra metade à sociedade civil.

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os seus respectivos membros. Por sua vez, o Decreto em vigor (Dec. 5.089/2004) dispõe que “a eleição do Presidente do Conanda dar-se-á conforme o disposto no regimento interno e sua designação será pelo Presidente da República”. Segundo Lima (2009, p. 56), até o ano 2000, a presidência do Conanda esteve sob os cuidados governamentais de Ministros da Justiça e Secretários de Estado dos Direitos Humanos. De 2000 a 2003, a presidência do Conanda é assumida por um representante não governamental, Cláudio Augusto Vieira da Silva. A partir do regimento de 2002, surge a especificação do tempo do mandato, um ano, e da possibilidade de recondução. Somente em 2005, o Conanda publica a Resolução n. 105 (alterada pela n. 106) que normatiza que haja alternância entre as representações governamentais e não-governamentais.

Importante destacar que a presidência do Conanda ficou pela primeira vez sob responsabilidade não-governamental durante os anos de 2000 até 2003, e isso foi um fator que auxiliou na mobilização de recursos para realizar o debate em relação às resoluções que são analisadas aqui. Outro aspecto em relação à composição do Conanda diz respeito à eleição dos conselheiros da sociedade civil. Desde o primeiro regimento, aspecto que não foi alterado posteriormente, “uma assembleia especial, constituída de conselheiros representantes nãogovernamentais, deveria eleger as ONGs que teriam representação no Conselho, para o período de dois anos de mandato” (LIMA, 2009, p. 55). O Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA) tem importância nesse momento. Ele é um agente central na eleição, pois coordena a assembleia especial e a escolha dos membros da sociedade civil que terão assento no Conselho Nacional. Isso não foi algo normatizado pelos decretos, mas essa tem sido a prática ao longo da formação do Conselho. Essa articulação é potente ao ponto de definir as candidaturas ao Conselho, já que organizações não filiadas ao Fórum Nacional dificilmente terão acesso ao Conselho. Com isso, demonstra-se a importância dessa articulação da sociedade civil na configuração de suas representações no Conanda. A participação de entidades no processo de escolha das representações nãogovernamentais no Conselho está associada ao número de estados nos quais a entidade atua. De acordo com o Regimento Interno, para que a entidade seja candidata ao Conselho deve atuar em cinco estados ou duas macrorregiões. Segundo Rocha (2013, p. 168), “tal arranjo resulta em uma composição pouco diversificada. Na realidade, das 14 organizações da

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sociedade civil representadas no Conanda, quase metade (6 entidades) são entidades do campo religioso”. O Plenário é o órgão supremo no Conanda. Além do Plenário, outra importante subdivisão na organização do Conanda são as Comissões Permanentes. Elas devem seguir a mesma lógica de representação paritária do Plenário. O Conanda conta com quatro comissões permanentes: “Políticas Públicas”, “Orçamento e Finanças Públicas”, “Articulação e Comunicação Social” e “Legislação e Regulamentação”. Cabe ao Plenário a convocação das Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente, que são fundamentais para as políticas públicas para a infância no Brasil. Até 2006 foram realizadas cinco conferências nacionais: 1997 – Criança e adolescente prioridade Absoluta; 1999 – Uma década de história – Rumo ao terceiro milênio; 2001 – Criança e adolescente e violência; 2003 – Pacto pela paz – Uma construção possível; 2005 – Participação: um direito que não tem idade. As discussões do Conselho feitas por esse arranjo entre comissões, conferências e pelo Plenário são consolidadas em resoluções que devem ser publicadas no Diário Oficial da União. Até outubro de 2012 esse Conselho realizou 150 deliberações. Essas resoluções ao longo dos períodos dos governantes têm a seguinte distribuição percentual:

5% 26%

Itamar FHC Lula Dilma

38%

31%

Gráfico 2 - Distribuição das resoluções nos períodos dos governos

Os dois primeiros anos de existência (1993 e 1994) foram o período de maior quantidade de deliberações, com um total de 39 (trinta e nove) resoluções. Comparando a

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produção do Conselho no período FHC (1995 – 2002) e Lula (2003 – 2010), teriam certa equivalência na quantidade de resoluções aprovadas, 31% e 38% respectivamente. Do total de resoluções do Conselho cerca de 70% estão associadas ao aparato criado para a operacionalização da política pública da infância, já que se relacionam ao funcionamento dos conselhos, tutelares e dos direitos, ao regimento interno do Conselho Nacional, às comissões, etc. Decisões sobre o Fundo do Direito da Criança foi quase metade dessa porcentagem, mostrando o interesse que esse tema levantava no nível do colegiado. A distribuição das resoluções em relação aos assuntos de estruturação da política segue uma proporcionalidade entre os dois governos (FHC e Lula), ou seja, independente das atuações governamentais esses foram assuntos que mobilizaram constantemente o colegiado. Diante disso, podemos refletir que a consolidação de uma área de atuação fundamentada nos direitos humanos, com maior intervenção estatal e princípios públicos, foi a grande responsável por esse alto percentual de deliberações do Conselho. Em outras palavras, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente tem um desafio de consolidar uma estrutura estatal estável para a sua realização, e as estruturas de Fundo e Conselhos (dos direitos e tutelares) seria um caminho para isso. Entretanto, questionam-se os porquês da constância desse tipo de resoluções ao longo do tempo, demonstrando uma dificuldade em consolidar essas institucionalidades. Além disso, um fator que fomenta essa permanência pode ser a falta de um desenho de um sistema de políticas públicas para a área, fazendo com que as resoluções se tornem apenas protocolos de intenções quando esbarram na autonomia estadual e municipal. No primeiro momento do Conselho (1993 e 1994), o espaço institucional do Conanda disputava o papel decisório com a Fundação Brasileira para a Criança e o Adolescente (FBCIA), herdeira de parte das atribuições da Funabem, que ficou com a responsabilidade por formular, normatizar e coordenar a política de defesa dos direitos da criança e do adolescente. A primeira reunião do Conanda (em 18 de março de 1993), contou com a participação da Presidenta da FBCIA que demonstrava o tom das decisões do Conselho para aqueles anos: [...]o funcionamento do Conselho marca um novo relacionamento entre o governo e as organizações não-governamentais. Ao incentivar a criação do Conanda e proporcionar os instrumentos para o seu efetivo funcionamento, o governo demonstra sua capacidade de diálogo e a certeza de que a convivência democrática no Conselho vai abrir uma perspectiva para que

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suas ações sejam mais eficientes e mais bem distribuídas. (Ata 1˚ Assembleia, Conanda, 18/03/1993)

A definição sobre a alocação institucional do Conanda foi pauta de conflitos nos primeiros momentos do Conselho, pois existia uma dúvida se ele deveria ser alocado na FBCIA ou na administração direta. Juntamente com isso, soma-se a falta de estrutura para a atuação do Conselho e essa era uma pedra no caminho para a consolidação dessas instâncias. As dificuldades nesse plano (em relação às condições de funcionamento) atingiram até mesmo o Conanda, que se viu obrigado a formalizar em uma resolução o pedido encaminhado ao Ministro da Justiça (que preside o Conselho) para uma ‘solução definitiva acerca da localização do Conanda, sua secretaria executiva e o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente’” (FORTES, 1996, p. 25).

A definição sobre o enquadramento operacional do Conselho e a novidade que essa instância representava no desenho da política pública e do Estado brasileiro deram espaço para a grande quantidade de resoluções nos primeiros anos de funcionamento do Conselho. Ou seja, a criação de um canal societal para dentro do Estado permitiu maior vocalização das demandas da sociedade civil reprimidas, e as decisões do Conselho foram a representação disso, o que mostra que, apesar de o Conselho ter a necessidade de lutar por seu espaço, existia também uma margem para atuação política das demandas trazidas pelas organizações não-governamentais. Essa busca por mecanismos para firmar o posicionamento do Conselho como um órgão participante da estrutura estatal e por condições para o seu funcionamento foi uma forma de evitar a retomada de modelos autoritários de Estado. Benedito Rodrigues dos Santos, em entrevista para Marques (2008, p. 101), retrata esse momento de tensão entre a visão que se tinha na época dos debates do movimento social e a chegada do Conanda: [...]tinha uma tensão interna do movimento social de que era considerar que, sobretudo como estava saindo da ditadura, tinha muita restrição ao Estado, então nós tivemos um momento muito estadofóbico (sic). Era muito difícil conviver Estado e sociedade civil. Mesmo nas comissões dos movimentos, aos poucos isso foi um pouco se diluindo [...].Sociedade e governo passou a ser uma tensão administrada, sobretudo, por um grupo menos basista, que vindo da academia como era meu caso tinha uma relação muito tensa e de confronto com o pessoal do governo, podia ser qualquer pessoa.

No fim do ano de 1994, Fortes (1996) aponta uma paralisação do Conselho a partir da troca da vice-presidência do Conselho. Essa função era ocupada pelo representante

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do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), Benedito Rodrigues dos Santos, e que foi trocado pelo conselheiro não-governamental representante da Pastoral do Menor. Segundo Fortes, “o episódio trouxe à tona distintas visões sobre a atuação nãogovernamental no conselho em dois planos: o da ação articulada em bloco e o da relação com o governo” (FORTES, 1996, p. 29). A relação do primeiro passava pelo Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (FNDCA) e o seu papel na articulação do lado não-governamental no espaço do Conselho. Em relação ao segundo, o argumento para a retirada do representante MNMMR foi o de colocar outro com “mais trânsito junto ao Executivo”. Embora num primeiro momento pareçam questões desarticuladas entre si, a relação entre ambas surge da avaliação de que só é possível a manutenção da atuação de um bloco não-governamental se for consenso entre seus participantes a necessidade de preservação da sua autonomia frente ao Estado. É sabido, por outro lado, que a Igreja Católica brasileira enquanto instituição não fez segredo das suas preferências eleitorais pelo candidato da situação à Presidência da República em 1994, assim como se sabe que as Pastorais e outros serviços não possuem autonomia de orientação frente aos organismos hierárquicos como a CNBB. (FORTES, 1996, p. 30)

Assim inicia o cenário de atuação do Conanda no governo Fernando Henrique Cardoso com disputas políticas eleitorais que perpassaram o universo não-governamental no Conselho. Disputas agravadas pela chegada posterior da Comunidade Solidária,40 como a organização daquele governo que passou a atuar com as políticas sociais e rivalizar espaços institucionais com o Conanda. Quermes (2000, p. 5), em estudo sobre o Conanda no final dos anos 2000, demonstra a fragilidade daquele espaço na época dos casos analisados: A experiência do Conanda não representa ampliação e democratização do Estado brasileiro. Por outro lado, esta experiência chancela um processo político de pouco compromisso do governo com as políticas sociais, mas que se fundamenta como avanço, como um legítimo processo democrático. A Sociedade Civil está servindo de “comparsa” em um processo no qual o governo não se sente pressionado pelo Conanda, órgão deliberado e controlador e a Sociedade Civil pouca articulada, sobrevive com migalhas advindas dos cofres públicos para manter suas atividades e se auto-sustentar. Este processo continua ratificando a cidadania tutelada, agora, com 40

As agendas de Trabalho do Comunidade Solidária eram: (i) à redução da mortalidade na infância; (ii) ao apoio ao desenvolvimento da educação infantil e do ensino fundamental; (iii) à geração de ocupação e renda; (iv) à promoção da qualificação profissional; (v) à melhoria das condições de alimentação dos escolares e das famílias pobres; (vi) à melhoria das condições de moradia e de saneamento básico; e (vii) ao fortalecimento da agricultura familiar.

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assentimento da sociedade organizada. [...] o Conanda tem legitima função publica, mas na pratica não consegue exercer sua função de órgão público deliberado e controlador. [...] não cumpre sua missão institucional, por não ter se legitimado junto à sociedade brasileira e ser desqualificado junto à burocracia pública.

Essa constatação do autor traz uma dimensão de legitimação das ações governamentais por parte dessas instâncias participativas, já que os Conselhos são espaços ainda frágeis no controle social das políticas públicas. Assim, os Conselhos têm um duplo desafio no sentido de se consolidarem como instância de controle social e até mesmo de conseguirem representar a diversidade social no contexto da política pública. O Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente é uma instituição chave para construir uma nova concepção de ação pública para a infância e a adolescência. Entretanto, ainda são encontradas muitas dificuldades para a realização disso como, por exemplo, a dificuldade de equilibrar informações e conhecimento entre conselheiros da sociedade e do governo. Somando-se outros pontos, Cisne e Suguihiro (2011, p. 41) apresentam uma sistematização de problemas em relação à prática conselhista aplicada às políticas para criança e adolescente. São eles: [...] fragilidade na formação dos conselheiros representantes da “sociedade civil”; prevalência de posturas autoritárias e clientelistas no trato da coisa publica; ausência de uma cultura política de participação que implica em obstáculos no exercício da co-responsabilidade dos Conselhos na gestão da coisa publica; não efetivação da paridade entre seus membros; ingerência do poder público em detrimento da representação dos interesses da “sociedade civil”; falta de recursos e investimento publico; dificuldades em garantir que as ações dos conselheiros imputem decisões, em especial, aqueles que representam a “sociedade civil”.

E chegam à conclusão que “há uma percepção por parte dos autores estudados que os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente ainda possuem um poder incipiente de formulação e deliberação das políticas voltadas para o público infanto-juvenil” (CISNE; SUGUIHIRO, 2011, p. 41). Esse limite está associado ao que Torres, Tatagiba e Pereira (2009, p. 14), estudando conselhos de direitos em todo o Brasil, demonstram quando citam que “ainda há uma forte concentração de poder no órgão executivo, enfraquecendo a sociedade nessa relação”. A realidade das instâncias participativas tem nisso base para suas dificuldades, já que a partilha de poder é atenuada tendo em vista as maiores possibilidades de atuação governamental nas políticas públicas. Diante disso, cabe à sociedade civil conseguir uma

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articulação melhor estruturada para fazer frente a essa autonomia. Os Fóruns dos Direitos da Criança e do Adolescente cumpririam esse papel de articular informações e subsidiar pontos de consenso entre as organizações da sociedade. Em relação a esse aspecto, Marques (2008, p. 101) cita que a manutenção da agenda de trabalho técnico no âmbito do Fórum Nacional DCA permitiu lançar as bases para o que viria, no governo Lula, a ser denominado de Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Contudo, em outras temáticas, os interesses são muito mais diversos. A sociedade civil é heterogênea em seus interesses e concepções sobre a política pública para a criança e o adolescente. Essa diferença pode ser alimentadora de uma busca por resolver os interesses pontuais de cada organização, ao invés de buscar temas e compromissos unificadores. Dessa forma, pode acontecer que diferentes instituições podem defender distintas concepções sobre as políticas públicas, ainda pautadas pelo assistencialismo e pela tecnicidade. Para tentar encontrar temas de interesse comum entre as organizações da sociedade civil foi formado o Fórum Nacional DCA, o qual é apresentado a seguir. 1.3. O Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA): a tentativa de institucionalização da sociedade civil Em certas políticas públicas alguns temas pertinentes à elas possibilitaram a criação de identidades coletivas no interior da própria sociedade civil e em torno de demandas sociais relacionadas com elas. No caso da infância, por exemplo, o tema da criança e do adolescente em situação de rua foi mobilizador da sociedade. No bojo desse tema estava a preocupação em relação à delinquência infantil, como nas operações “cata-pivetes”, bem como aspectos relacionados à pobreza e à vulnerabilidade de crianças. Portanto, esse tema era uma ausência nas políticas sociais adequadas para a proteção de crianças respeitando o ambiente social de vida. E foi fator agregador de pessoas e organizações interessadas no assunto e, a partir disso, um coletivo passou a se mobilizar para enfrentar o tema e influenciar o Estado. Os formatos desse tipo de intermediação social que ocorreram em diferentes políticas públicas foram, e ainda são, variados. A formação do Fórum Nacional Permanente de Entidades Não-governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, denominado neste estudo por Fórum Nacional DCA, é um exemplo desse aspecto mencionado. Esse Fórum inicialmente foi influenciado pela forma de atuação das Campanhas pelos direitos de crianças, realizadas à época da Constituinte, e pela mobilização do Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de

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Rua – MNMMR. Essas campanhas e o MNMMR eram intermediações entre diferentes tipos de movimentos sociais, organizações não-governamentais e pessoas (servidores públicos, acadêmicos, por exemplo) para influenciar a ação do Estado. A Campanha “Criança Constituinte”, uma das fontes do Fórum Nacional DCA, foi iniciada em 1986, reproduziu 26 Comissões no nível dos Estados e envolveu cerca de 600 organizações públicas e privadas (Dos SANTOS, 1992). O impacto dessa campanha teve maior repercussão a partir da adesão de 250.000 pessoas que subscreveram a Emenda Popular “Criança-Prioridade Nacional”. Um documento com propostas para o capítulo sobre crianças e adolescentes na Constituição Federal de 1988, encaminhado para a presidência da Assembleia Nacional Constituinte, e que foi o principal resultado das discussões da Campanha. Inicialmente a tentativa foi de incluir um capítulo inteiro sobre crianças e adolescentes na Constituição nascente, mas diante do tamanho que já estava a proposta de Carta Magna, os deputados constituintes ofereceram a alternativa de inclusão de artigos com a normatização posterior. Esse foi um dos fatores para o pioneirismo do ECA como a normatização específica da Constituição Federal. Segundo pesquisadores dessa Campanha (Dos SANTOS, 1992; PEREIRA, 1998), a principal divergência entre atores e organizações que compuseram esse debate e as propostas inseridas no documento se dava sobre a forma de tratamento da questão da proteção especial de crianças e adolescentes. Aqui aparece novamente o caráter da discussão das políticas de enclausuramento no contexto do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que era o ponto de maior tensão, pela necessidade do seu enfrentamento e pela diversidade de propostas existentes para o seu enfrentamento. O MNMMR, outra fonte de inspiração para o Fórum Nacional DCA, tinha um caráter nacional com multiplicações de suas estruturas nas bases (municípios, estados e comunidades). Ele tinha a Pastoral do Menor como instituição organizadora central, mas contava com outros atores, formalizados ou não, em sua rede de relacionamento. Esses tipos de intermediações visualizadas nas Campanhas e no MNMMR foram fundamentais para a consolidação e modelos dos Movimentos em Defesa de Crianças e Adolescentes, bem como na própria mobilização do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Dessa maneira, destaca-se a importância de olhar para a institucionalidade do Fórum Nacional DCA no contexto dessa pesquisa, já que a sociedade civil passou em parte a estar representada por essas institucionalidades. O Fórum Nacional DCA foi formado em março de 1988. Não contou nos primeiros anos de existência com uma formalização, a qual só aconteceu 5 anos depois

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(1993), por meio da Sociedade Brasileira de Defesa da Criança e do Adolescente, associação formada para gerenciar o Fórum. A gênese do Fórum ocorreu no contexto de algumas temáticas que tangenciavam as políticas de proteção especial, como o enclausuramento, e pela busca da concretização de um sistema de garantia de direitos que integrasse as políticas públicas para prevenir e enfrentar as vulnerabilidades infanto-juvenis. O Fórum Nacional DCA passou então a ser a institucionalidade articuladora da sociedade civil que atua com o tema da infância. Nesse contexto, as estruturas das organizações não-governamentais não perdem sentido, mas surge uma nova ecologia organizacional, mais complexa, na qual não apenas coexistem diferentes tipos de associação, mas associações especificamente institucionalizadas para realizar funções de intermediação (GURZA LAVALLE; VON BÜLOW, 2014). Estudando categorias desses tipos de organizações, os autores sistematizam uma conceituação sobre os Fóruns, apontando que: [...] são menos centrais e funcionam principalmente como espaços da sociedade civil para o adensamento de consensos em torno de políticas específicas e para a promoção de agendas básicas comuns entre seus membros (GURZA LAVALLE; VON BÜLOW, 2014, p. 137) Portanto, esse tipo de articulação seria mais uma forma para potencializar os movimentos de accountability, no sentido usado por Gurza Lavalle e Isunza (2011), pois possibilita uma relação entre os representantes e os representados. O Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente nasceu com essa perspectiva de intermediação e de criação de consensos em torno dessas políticas. Isso o diferencia de espaços mais voltados para a defesa de interesses corporativos (NILSSON, 2005), como associações laborais e conselhos de classe profissional. As propostas contra o enclausuramento de crianças foram constantes na mobilização do Fórum Nacional DCA. Contudo, do seu nascimento até o período dos casos estudados, o perfil dessa nova institucionalidade passou por algumas fases que permitem compreender elementos das interações sócio-estatais dessa área de política, mas, sobretudo as configurações da sociedade civil em relação ao tema. Gohn (1997, p. 125) demonstrava alguns elementos da formação desse Fórum: O paradigma que norteia a construção da rede de relações sociais no Fórum Nacional DCA é diferente do paradigma que fundamentava as ações coletivas da maioria dos movimentos sociais populares da década de 80. Em primeiro lugar trata-se de um fórum, uma reunião pública, um lugar onde se debatem os negócios públicos. Em segundo lugar, porque se trata de uma articulação, uma união circunstancial, momentânea, em função de objetivos

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predeterminados, que não diluem a natureza das partes. E em terceiro lugar, porque o recorte para sua composição se fez a partir de uma figura que ganhou personalidade jurídica nos anos 80: as Ong’s, entidades mistas, privadas, porém com características públicas, não-estatais, sem finslucrativos, mas voltadas para a defesa de causas públicas, de ordem comunitária.

Em seu princípio, o Fórum foi a entidade responsável pela mobilização da sociedade que visava tanto incluir um capítulo sobre crianças e adolescentes na Constituição Federal, quanto a aprovação do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA): Com a aprovação dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988 e tendo em vista a necessidade de sua regulamentação, o Fórum DCA adotou uma postura de abertura em relação à cooperação com setores do Estado e assume a tarefa de “articular, simultaneamente, a elaboração de um anteprojeto, e a formulação de uma sintonia social e política que determinasse vontade política em torno de sua aprovação” (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 42)

Durante a fase de redação do ECA, esse Fórum contou com outros atores que auxiliaram no processo de redação da proposta de lei. Inicialmente teve a participação de agentes da burocracia do Estado, principalmente com técnicos da Funabem, que participaram de maneira ativa nessa redação do anteprojeto de lei e trouxeram subsídios técnicos para o anteprojeto e, principalmente, colaboraram com visões contrárias às políticas de enclausuramento praticadas pelas suas instituições de origem. Contou também com atores membros do Ministério Público, do Juizado de Menores de Santa Catarina e do Unicef. Com a articulação parlamentar em torno do Projeto de Lei que regulamenta os artigos 227 e 228, constituindo o Estatuto da Criança e do Adolescente apresentado à Câmara e ao Senado simultaneamente, entra-se no processo de aprovação do ECA. O Fórum DCA mais uma vez, assumiu a responsabilidade de mobilizar os diversos atores sociais, realizando durante cerca de um ano, diversas ações, como debates, seminários, estudos, sensibilização e adesão de setores do Executivo, mobilização social, negociações políticas, articulação com os setores jurídicos, mobilização infanto-juvenil, lobbies junto ao Congresso Nacional e campanhas na mídia. (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 42)

Pouco a pouco, o Fórum Nacional DCA ganhou formas mais institucionalizadas, marcadas pela profissionalização de sua incidência nas políticas públicas e uma concentração dos seus membros, com pouca abertura para novos acessos e isso, pouco a pouco, diminuiu sua dimensão movimentalista.

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O Fórum Nacional DCA constituiu-se em espaço de ação política coletiva de defesa dos direitos de crianças e adolescentes, incorporando em sua organização entidades, movimentos sociais e pessoas comprometidas com a causa da criança, acima de distinções religiosas, raciais e ideológicas, partidárias e de classe. O perfil das entidades e movimentos que integraram o Fórum já acenava a natureza do caráter alterativo da política de atenção à criança e ao adolescente – o sistema de garantia de direitos (PEREIRA, 1998, p. 93)

Em 1993 foi formada a Sociedade Brasileira de Defesa da Criança e do Adolescente que passou a ser a entidade mantenedora do Fórum. Inicialmente essa organização buscou assumir um papel central e normatizado no ECA como a articuladora da sociedade civil no espaço do Conselho. A proposta de redação da primeira versão do ECA, artigo 4˚, demonstrava essa centralidade tentada no anteprojeto de lei: Art. 4° - Os membros efetivos e suplentes representantes dos Poderes Públicos são indicados pelos titulares dos respectivos órgãos, e os representantes das entidades não governamentais são indicados ao Presidente da República, através da escolha, sob a coordenação do Fórum Nacional Permanente de Entidades Não governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, com a supervisão da OAB. (Grifos nossos).

Esse artigo foi vetado pelo Presidente Fernando Collor de Melo, pois o Fórum não contava com personalidade jurídica, conforme a Mensagem n˚ 554 Em terceiro lugar, a coordenação da escolha dos representantes não governamentais pelo Fórum DCA constitui impropriedade técnica, já que se trata de uma articulação de entidades, não de uma pessoa jurídica com certa garantia de continuidade no tempo. O eventual desaparecimento dessa articulação obrigaria a uma reforma da lei, pois deixaria um vazio na forma de coordenação da escolha. Mais recomendável é certamente essa forma de coordenação ser regulamentada por decreto, mantendo a permanência da lei neste particular (BRASIL. Presidência da República. Mensagem do Presidente n° 554, 1991).

Assim, a tentativa de criação dessa organização buscou suprir essa lacuna, mas mesmo com sua formalização como pessoa jurídica não foi garantido na lei. Contudo, o acompanhamento dos momentos dos processos de eleição do Conanda pelo Fórum Nacional DCA tem sido uma prática tácita ao longo dos anos do Conselho, pois é o Fórum Nacional DCA que coordena a assembleia que escolhe os representantes da sociedade civil no Conanda. A década de 1990 marcou o período de início do Fórum, mas foi também um período de muitas instabilidades sociais e políticas. Não demorou em aparecer

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questionamentos sobre a atuação do Fórum em sua função de intermediação de organizações da sociedade civil. A avaliação da atuação do Fórum Nacional DCA durante a década de 1990 demonstra esse enfraquecimento. Neste contexto, o Fórum DCA, apesar de haver mantido um núcleo mobilizador, como não poderia deixar de ser, também atravessou dificuldades e se enfraqueceu tanto em termos de funcionamento (o secretariado ficou disperso e esvaziado), quanto em termos de articulação. (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 46)

O Fórum Nacional DCA também passou por questionamentos quanto à sua atuação relacionada aos governos daqueles anos, conforme apontado anteriormente no caso da substituição do vice-presidente do Conselho por outro com mais trânsito governamental (FORTES, 1996). Os governos Collor, Itamar e FHC por conta da adoção do projeto neoliberal trouxeram dilemas para o Fórum Nacional DCA como espaço de mobilização social e de controle social das políticas para a criança e o adolescente. Essa realidade fez com que o Conanda fosse utilizado para debater suas condições de funcionamento e não foram enfrentadas outras temáticas da política tão necessárias quanto a consolidação do Conselho. Na conjuntura de implementação da nova institucionalidade (do ECA) houve também um refluxo do conjunto do Movimento em defesa da criança e do adolescente, seja por questões de ordem de sustentação financeira, seja pela resistência de setores conservadores na implementação do ECA, o que forçou o referido Movimento a voltar toda sua prioridade para a implantação dos Conselhos de Direitos e Tutelares. (CECRIA; AMENCAR, 2000, p. 46)

A pulsão do período de formação dos movimentos de defesa da criança, vivenciada na década de 1980 e no começo dos anos 1990, sofreu uma modificação com a implementação do ECA e ao longo dos anos 1990. Essa alteração impactou na forma de mobilização da sociedade civil e, consequentemente, na própria estruturação do Fórum, fazendo com que esse espaço sofresse impacto e modificando sua importância como canal de mobilização da sociedade civil. 1.3.1. Uma breve análise da organização do Fórum DCA Conforme destacamos, a atuação do Fórum Nacional DCA foi decisiva na mobilização pela aprovação do capítulo da criança e do adolescente da Constituição de 1988 e

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do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O Fórum Nacional continuou, ao longo de sua existência, sendo um espaço para a intermediação das organizações da sociedade civil para o controle social da implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e, principalmente, como espaço de articulação política para a atuação da sociedade civil no Conanda. Essa importância do papel do Fórum tem uma perspectiva prática, pois ocorre também por aquele acordo tácito sobre as funções desse espaço no momento da escolha dos representantes da sociedade civil no Conselho. Essa função concentrou também no espaço do Fórum as definições prévias sobre as organizações que ocupariam o Conselho. Internamente no Fórum Nacional DCA esse processo é marcado por articulações entre entidades pautadas pela defesa de direitos e outras com uma política mais conservadora (PINI, 2006). As articulações que tinham maior quantidade de organizações como, por exemplo, as ligadas às Igrejas Católicas, que passavam a dominar a estrutura do Fórum, mas não eram elas que balizavam a discussão no Fórum, bem como o próprio Conselho, como relatado por um entrevistado não-governamental. Na realidade a eleição era definida dentro do Fórum. Você já sabia mais ou menos o que ia acontecer na urna pelo o que você percebia das movimentações no Fórum. É como eu te falo, a Igreja sempre teve muita capacidade de articulação também dentro do Fórum. Mesmo dentro dele, ela vinha com muitas entidades, ela tem muitas ONGs, muitas. Muito mais que as leigas, que a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e o Conselho Federal de Serviço Social – CFESS. Eles (o grupo ligado à Igreja) são inúmeras entidades, então eles têm uma maioria. Não tem necessariamente hegemonia no discurso, mas maioria de votos eles sempre tiveram. (Entrevistado 10 – Ator Não-Governamental)

Portanto, além dessa função prática de incidência na eleição, o discurso não é construído somente pela quantidade de organizações, mas pela qualidade dos argumentos. Nesse sentido, Pini (2006, p. 106), em análise sobre o Fórum Nacional DCA, cita que “a hegemonia do debate do projeto político de transformação social continua sendo dos sujeitos coletivos que contribuíram historicamente para a conquista dos direitos de crianças e adolescentes”. O Fórum é o interlocutor tácito do Conselho Nacional, diminuindo o acesso desse espaço para uma articulação social mais diversificada. É estabelecida, assim, uma contradição em relação ao espaço do Fórum Nacional DCA, pois ao mesmo tempo em que ele é necessário enquanto organizador de parte das organizações da sociedade civil, ele passa a ser cada vez mais restrito para um conjunto de organizações, principalmente para as organizações

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ligadas à Igreja Católica. O Fórum é também o interlocutor tácito do Conselho Nacional, diminuindo o acesso desse espaço para uma articulação social mais diversificada. Em estudo de caso mais recente sobre o Conanda, os conselheiros demonstram insatisfação quanto a isso, mostrando uma falta de diversidade na composição do Colegiado. Com relação ao número de representantes por segmento, por exemplo, a sociedade civil parece estar mais insatisfeita com a composição atual. Além disso, foram apontadas como pouco satisfatórias a diversidade dentro do conselho, bem como a forma de escolha das entidades que têm assento neste. (IPEA, 2012, p. 51)

Essa forma de composição transforma o caráter diverso que possibilitaria visões distintas sobre os temas no Conselho, e o transforma num espaço muito mais voltado pela busca por recursos estatais e o fundo público. Essa preocupação acaba dominando os debates dos Conselhos e, com isso, o poder de formulação de políticas centra-se no debate sobre a distribuição de recursos. Essa contradição aparecia de maneira muito forte durante o período dos casos analisados, pois era necessário romper com essas lógicas e passar para uma articulação mais incidente em relação às decisões às políticas de enclausuramento. Um conselheiro da sociedade civil, participante da gestão de 2000 – 2002, relata o desafio que o fortalecimento do espaço de articulação representava naquele momento. [...] a nossa proposta era de reforçar em primeiro lugar o Fórum Nacional DCA que na oportunidade estava bastante enfraquecido e havia uma tendência das organizações da sociedade civil de que esta representação no Conselho Nacional se desse pela história ou pela capacidade individual de cada organização (Entrevistado 6 – Ator Não-Governamental)

Assim, ao final da década de 1990 o contexto possibilitou uma tentativa de dar um significado mais coletivo para a atuação do Fórum Nacional DCA e, nesse sentido, a temática do enclausuramento conseguiu ser um dos elos de interesses heterogêneos que compunham o Fórum. Quando nós tivemos a elaboração do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), o Fórum também promoveu encontros regionais, seminários, etc. Quando elaboramos o Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, também o Fórum fez encontros regionais. (Entrevistado 11 – Ator Governamental)

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Ao longo dessa pesquisa não foi possível encontrar informações precisas sobre a composição do Fórum no início dos anos 2000, que foi a época dos casos analisados. Para compreender a estruturação do Fórum Nacional do Direito da Criança e do Adolescente foi feita uma pesquisa com dados de 2012. Nesse ano o Fórum era formado por 38 entidades atuantes na temática.41 Realizou-se pesquisas nos websites de todas essas organizações para compreender o discurso institucional de cada uma e suas filiações. Em somente quatro delas foram encontradas informações em suas páginas eletrônicas de que eram componentes do Fórum Nacional DCA. Esse baixo número pode demonstrar a falta de representatividade desse Fórum naquele ano, mas isso é um objeto a ser melhor avaliado por outras pesquisas que adotem outras metodologias que questionem sobre esse não pertencimento ao Fórum. Segundo os dados de 2012, a missão do Fórum Nacional DCA é “[...] garantir a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, por meio da proposição, articulação e monitoramento das políticas públicas e da mobilização social, para construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Suas atribuições são (Fórum DCA, 2012): • Apoio às ações das organizações filiadas. • Articulação e fortalecimento dos Fóruns e Frentes Estaduais de Defesa da Criança e do Adolescente. • Acompanhamento e monitoramento da atuação dos representantes da sociedade civil no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e na formulação das diretrizes para a área da infância e da adolescência. • Articulação e acompanhamento da Frente Parlamentar em Defesa da Criança e do Adolescente no Congresso Nacional. • Qualificação da intervenção da sociedade civil na garantia dos direitos da Criança e do Adolescente.

Para uma organização não-governamental participar do Fórum, era usada a mesma regra de representatividade do Conselho Nacional, pois é necessária a existência de representação da entidade em pelo menos cinco estados brasileiros ou em duas macrorregiões. [...]havia uma definição que uma entidade nacional tinha que atuar em pelo menos duas macroregiões do país ou em cinco estados. Essa atuação pode ser no atendimento, em assessoria, mas pode ser também publicações. Então, não é qualquer organização que participava do Fórum. Qualquer organização

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Disponível em: http://www.forumdca.org.br/

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no sentido de atuação geográfica, não em relação à qualidade do atendimento. Não era qualquer organização que participava, tinha que ter uma dimensão minimamente nacional. Então, era um universo pequeno. Se você pensar o conjunto de organizações que tem na sociedade civil brasileira, na sua diversidade é muito, são centenas de milhares de organizações e você tem no espaço nacional apenas 30 entidades. Mas, nossa compreensão era que se a entidade não tem uma atuação nacional, minimamente nacional, ela não vai conseguir pensar política pública para o Brasil. Se essa entidade tem uma atuação apenas numa comunidade, num bairro, apenas para o rural, apenas no município. Provavelmente ela não vai conseguir perceber a questão da diversidade inerente ao Brasil como um todo (Entrevistado 3 – Ator Não-Governamental)

Esse fato diminui o escopo das entidades que podem estar representadas naquele espaço e dificulta a ampliação da representação de outros atores que não compõem o Fórum, inclusive no Conselho Nacional. Em suas atribuições e ao longo de sua história percebe-se que o Fórum voltou-se para uma interlocução junto a suas organizações filiadas, demonstrada principalmente em sua primeira atribuição, e no monitoramento dos representantes no Conselho. Atualmente, conforme pode ser visto, o Fórum Nacional DCA fecha-se em uma lógica de representatividade endógena, com pouco espaço para interlocuções com outras organizações que atuam com o tema. Foram muitos formatos de organizações envolvidas no Fórum, porém existiu o predomínio das organizações voltadas para a prestação de serviços para a criança e o adolescente e, principalmente, vinculadas à Igreja Católica. Foram elas que cuidaram das crianças durante um largo período da história da assistência para a infância brasileira. Todavia, no período denominado “Educatividade” emergiram outros atores, voltados para a construção de outra atuação pública no tema infantil. No princípio da história do Fórum Nacional DCA houve motivos agregadores que provocaram um enquadramento das diferentes organizações e movimentos em prol da infância: seja a questão das crianças nas ruas, seja a questão do trabalho infantil ou mesmo as violências institucionais cometidas contra elas. Esses eram motivos para criar estratégias comuns entre os movimentos e geravam identidade coletiva e códigos compartilhados de norte a sul do país. Todas essas temáticas desdobravam-se nas políticas de enclausuramento e essas ações eram atacadas pelas organizações da sociedade civil. Assim, formava-se um Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente e buscava-se a preservação prioritária de crianças e adolescentes, com vistas à garantia de um futuro com dignidade para esse público.

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Os movimentos internacionais de valorização da infância, congregados em torno da Convenção Internacional do Direito da Criança, geraram um terreno fértil para os debates nacionais. Isso criou um leque de oportunidades no ambiente externo aos movimentos e possibilitou o crescimento das iniciativas de discussão social sobre a criança. O resultado desses processos foi a normatização de um modelo de interlocução entre sociedade e Estado no ECA, por meio das organizações representativas e pelos conselhos gestores de políticas públicas. Esses Conselhos, no contexto das políticas públicas para a criança e o adolescente, tiveram como modelo o sistema paritário, dando à sociedade civil metade das cadeiras para discutir e deliberar sobre as políticas públicas. A interlocução socio-estatal respeitou o modelo associativo e, por isso, fez com que a sociedade passasse a se formalizar para adentrarnos canais institucionais do Estado. A “sociedade civil”que adentrou nesse espaço foi resultante da agremiação de diferentes instituições e interesses sociais. Seria necessário que essa agregação ganhasse corpo próprio para fortalecer o lado social no espaço do Conselho, frente ao lado governamental. Além disso, a mobilização da sociedade civil serviria também para dar sentido à função de representação dos ocupantes do Conselho para que não ocupassem as cadeiras em defesa apenas de seus interesses particulares. Daqui surgiram os Fóruns da Sociedade Civil. No caso da infância essas organizações e movimentos foram agremiados no Fórum Nacional do Direito da Criança e do Adolescente. O conflito é outra dimensão utilizada para caracterizar uma rede de movimentos sociais, já que os adversários devem ser claramente identificados (MELUCCI, 2003; DIANI, 2003). Esse elemento foi fundamental para a formação do Fórum no início dos anos 1990, pois todos se colocavam contra a política autoritária e enclausuradora. Porém, com o passar do tempo e com a conquista do ECA esse elemento foi fragmentado entre diferentes bandeiras. Atualmente, pela missão do Fórum é possível ver que o enquadramento é amplo e não permite uma identificação dos pontos de conflitos e da luta por reconhecimento. Por fim, a constituição da rede também pode ser conhecida a partir da informalidade dos contatos entre os componentes da rede. Esse elemento é de difícil mapeamento a partir do método utilizado, porém apreende-se que a formalização da Sociedade Brasileira de Defesa da Criança e do Adolescente gerou um fluxo centralizado de informações nessa organização e diminuem os fluxos informais. Sobre isso, destaca-se que ela aponta como uma de suas atribuições o acompanhamento e o monitoramento da atuação dos representantes da sociedade civil no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Ou seja, foi criado um canal oficial de representação da sociedade ao qual todos

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os movimentos da sociedade devem se remeter. A não participação de entidades no Fórum Nacional DCA dificulta, por exemplo, sua participação no Conselho Nacional da Criança e do Adolescente. Podemos concluir que o Fórum Nacional do Direito da Criança e Adolescente vem de uma antiga articulação de diferentes organizações e movimentos sociais em torno do debate da priorização do público infantil nas ações de sociedade, família e Estado. Sua história é uma demonstração de 21 anos de articulação social. Entretanto, existem contradições nessa trajetória, algo que não pode ser tomado como simples desconsideração dos ganhos conquistados pelas organizações da sociedade civil em diálogo com o governo. Grande parte dessas contradições está relacionada à própria formação histórica dessa área de políticas e das relações públicas e privadas nos serviços prestados à criança e ao adolescente.

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Capítulo 2 Campo e Comunidade na Construção Democrática da Política Pública para a Criança e o Adolescente

Quais foram os efeitos gerados pelos Conselhos como espaços de promoção de encontros e discussão entre Estado e Sociedade, atuando no Controle Social e na formulação de políticas públicas? Essa pergunta auxilia na orientação desse capítulo. Busca-se voltar para seus elementos conceituais e debruçar-se especialmente sobre noções relacionadas ao Estado e à sociedade civil. Nesse sentido, utilizaremos os conceitos de Campo e Comunidade como relativos à sociedade civil e ao Estado. Os conceitos serão aproximados também de perspectivas de estudos sobre a participação social e as políticas públicas. De forma complementar, os conceitos trabalham com prospecções distintas, pois o primeiro se faz na realidade dos dilemas participativos no contexto dos Conselhos, enquanto o segundo molda-se pelo debate teórico-conceitual sobre o processo de tomada de decisão estatal. Esse cenário aplicado não significa que a perspectiva prática rebaixará a teórica para um segundo plano. Pelo contrário, e conforme assinala Reis (2003), os estudos de políticas públicas devem ter como agenda a sustentação teórica. Além disso, devem compreender e dialogar com as correntes que dão apoio aos pontos de vistas adotados e com as que divergem em relação a eles. Nesta pesquisa, os conceitos Campo e Comunidade segmentam espaços formativos e relacionados ao exercício do Controle Social. Denominamos “Controle Social” como o ato de constante interação entre atores da sociedade civil e governamentais no espaço dos Conselhos de Políticas Públicas, voltados para a fiscalização das ações governamentais e discussão sobre os rumos da política pública, que resultarão em deliberações, por meio da formulação de políticas. O presente estudo centra-se em dois desses momentos em que o Conselho conseguiu formular políticas públicas e impactar no tecido estatal que forma a Comunidade de Política, desde o Poder Executivo até mesmo no Legislativo. Ao segmentar esse espaço busca-se compreender o processo participativo, a interação entre representante e representado e o exercício da legitimidade, de forma a

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questionar a autorização, como semântica da representação, e passar a compreender processos interativos dos atores no Conselho com espaços organizativos mais amplos, relacionados com a Sociedade Civil e o Estado. Assim, a análise aqui empreendida não nega as interfaces sócio-estatais, muito menos a mútua constituição entre sociedade civil e sociedade política. Busca, metodologicamente, valorizar as peculiaridades de como esses espaços, Campo e Comunidade, se organizam nos processos de formulação de políticas públicas. Para isso, os conceitos são diferenciados a partir de suas características mais demarcadas e vivenciadas nesses processos, pois eles tramitam respectivamente sob “lógica da pressão” e “lógica da negociação”. A definição prévia de um traço predominante e caracterizador de cada um dos conceitos não significa desconsiderar outras características existentes nesses espaços. Por exemplo, as relações de conflito entre diferentes interesses que compõem cada espaço não desaparecem sob a lógica da pressão ou da negociação. Campo e Comunidade, dessa forma, são espaços heterogêneos, mas em momentos conjunturais alguns atores se movimentam baseados na forma em que os espaços se organizam. Os conceitos permitem compreender o papel dos Conselhos em seu hibridismo, pois estes são instâncias dentro do Estado, portanto componentes da Comunidade, mas que se projetam em diálogo com espaços organizativos da sociedade civil, ou em determinados momentos com o Campo. Portanto, os Conselhos operam no espaço de intersecção entre Campo e Comunidade, mas por vezes podem reduzir os significados desses encontros, pois podem não conter elementos do exercício representativo em relação a cada espaço. Assim, investiga-se o papel do Conselho na interação entre Campo e Comunidade e os limites de cada um deles em uma determinada área de política pública. De outra forma, busca-se também iluminar os processos de retroalimentação gerados pelo contato de um com o outro, já que os espaços são conexos, mas com características próprias. Os Conselhos de Políticas Públicas foram as instâncias que deram vazão para a influência social no Estado e, com isso, se tornaram o lócus de representação oficial da sociedade civil (AVRITZER, 2007). Entretanto, ainda existem lacunas para compreender os impactos desses espaços no arranjo organizacional interno ao Estado e, principalmente, sobre sua efetividade na governança das políticas públicas. Como parte dessa tarefa investigativa, recentes pesquisas sobre a participação social têm buscado olhar para esse aspecto diminuído nos estudos da participação e

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recondicionar ângulos de análise das interações sócio-estatais. Souza (2016, p. 39), por exemplo, auxilia nesse entendimento: [...] sem desconsiderar os novos padrões de relacionamento sócio-estatal que abrangem variados elementos e manifestações, permanece a necessidade analítica de reconhecer a distinção entre os dois âmbitos para estudar suas relações. Se sociedade e Estado estão cada vez mais indissociáveis, permanecem distintos. Mesmo que a diversidade de meios de interação possa relativizar fronteiras estabelecidas previamente, essas estariam esmaecidas, mas não diluídas.

A escolha por distinguir os espaços do Estado e dos movimentos sociais também foi recentemente adotada por Barbosa (2014). Essa metodologia, conforme utilizada pelo pesquisador, buscou, sobretudo, demarcar cada um dos espaços envolvidos no processo de formulação de uma política (movimentos sociais e sociedade política) e valorizar as interações entre os movimentos e organizações sociais com o Estado. A escolha foi feita para reconhecer como cada um dos polos (movimento social e Estado) se configura especificamente, a partir de suas características centrais. E, após isso, para compreender como ocorrem os processos de transbordamentos desses espaços na interação de um com o outro e na formulação da política pública. Portanto, com a opção por trabalhar com polos distintos, partiu-se de uma perspectiva que compreende que a ação societal altera as conformações do Estado, mas, ao mesmo tempo, as configurações estatais impactam nos repertórios sociais. Estabelece-se assim uma retroalimentação entre cada um desses polos. Ao longo do processo de existência dos Conselhos de Políticas Públicas a forma de condução estatal sobre a política pública determina essas retroalimentações, assim como as transformações das organizações da sociedade e os movimentos sociais que atuam com o tema. A mútua constituição entre Estado e sociedade civil se estabelece de forma dinâmica e alimentada ao longo do tempo, de forma que ambos se modificam. Nesse processo, os estudos sobre a participação social buscaram analisar a sociedade civil como ângulo principal (GURZA LAVALLE, 2003; AVRITZER, 2009) e o Estado foi uma dimensão menos importante. Portanto, com a tentativa de segmentar os conceitos, buscamos também revalorizar o papel da sociedade civil, como instância de alimentação de conflito e pressão sobre o Estado, mas simultaneamente olhar para o interior do Estado e para a maneira como se decide sobre determinada política pública.

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O Campo de Defesa dos Direitos de Criança e Adolescente é um espaço permanente no debate sobre as políticas públicas. Na década de 1980, esse Campo encontrou unificação quando discutiu a falência do modelo de política pública adotado até aquela época. Ao longo dos anos seguintes e já no exercício do Controle Social, por meio do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), esse Campo foi sendo marcado pela diversidade e as atuações do Fórum Nacional DCA e do Conselho passaram a representar isso. Entretanto, em momentos de ameaças de restrição de direitos garantidos no novo marco legal, agentes componentes do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes passaram a se mobilizar contra esse risco de fragmentação. Assim, esse Campo ganhou evidência no momento de formação da agenda e colaborou com a formulação de política, quando pressionou o Estado por mudanças ou manutenção nas políticas públicas. A Comunidade da Política Pública é o espaço inter-organizacional formado por diferentes e múltiplas organizações componentes do Governo Federal e outras organizações não-governamentais que lidam com parte da política pública (conveniadas, parceiras, etc.) e atuam com o tema da criança e do adolescente. Esse princípio foi regulamentado pela Constituição Federal, em seu artigo 1˚, do artigo 227: “O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não-governamentais...”. A formação de sistemas de políticas públicas que abarcam entidades privadas e organizações estatais provocou o crescimento dessa Comunidade de Políticas. Esses sistemas, principalmente no nível da implementação da política pública, podem ser articulados por meio de redes institucionais de políticas (TATAGIBA, 2006). Nesse contexto, as organizações se guiam por diretrizes da política que são deliberadas pelo Conselho ou, mais comumente, pautadas pelo Poder Executivo. Nos momentos de formulação de uma política pública, a Comunidade de Política enfatiza o status dos participantes das múltiplas instâncias que compartilham o processo de decisão (comitês, comissões, conselhos, colegiados, etc.), já que atuando dentro do Estado as organizações e atores sociais adquirem uma diferenciação em relação às outras que não ocuparam aqueles espaços. Isso é gerado pela maior capacidade de acesso aos recursos públicos e no processo decisório. O espaço da Comunidade, dessa forma, é marcado pela negociação para a formulação de políticas públicas e pode ter a participação ativa de agentes da sociedade civil e receber influência dos agentes implementadores da política pública. A formação paritária dos Conselhos partiu do pressuposto dessa interação como resultante de sua formação colegiada. Todavia, os limites da representação tanto dos agentes

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não-governamentais, quanto dos governamentais, faz com que essa interação por vezes não extrapole o escopo das organizações representadas no Conselho e, por isso, a diversidade necessária para alimentar o conflito naquele ambiente fica prejudicada. Os atores não-governamentais, bem como os governamentais, podem aproveitar do espaço do Conselho para defender as suas pautas específicas e suas organizações, mais do que pensar sobre a estruturação das políticas públicas como um todo. Além disso, os atores não-governamentais quando adentram nos espaços da Comunidade de Política, mesmo que tragam linguagens e demandas daqueles movimentos, precisam fazer isso em relação com as práticas burocráticas internas ao Estado e ao ritmo governamental de encaminhamento das formulações de políticas. As dimensões envolvidas na negociação da política pública e as intencionalidades na política estão diretamente limitadas por isso. As decisões sobre a formulação de políticas, por vezes, ficam submetidas às vontades governamentais e não encontram terreno de compartilhamento de poder com as instâncias participativas. Em muitos casos, os governos usam essas instâncias para a validação de decisões já tomadas. Assim, por mais que os Conselhos tenham funções deliberativas, o Poder Executivo pode não reconhecê-las, e não dar espaço para a existência de formulações por parte do Conselho. Ao buscar segmentar e reconhecer espaços, sociais e estatais, e evidenciar os conteúdos que movimentam cada um deles, permite-se maior liberdade para reconhecer que os atores transitam entre esses polos. Segundo Teixeira (2013, p. 12) [...] as teorias sobre democracia participativa tendem a enfatizar muito a importância da sociedade civil brasileira na constituição da participação popular, mas talvez falte às análises um olhar mais acurado sobre a interação entre sociedade civil e sociedade política, principalmente no que se refere às implicações desse “ecletismo” provocado pela dupla, tripla militância.

Nesse trânsito, por mais que os atores tenham narrativas projetivas próprias, agem sob insígnias baseadas nas lógicas distintas utilizadas em cada espaço, já que o repertório usado na pressão, por vezes, não pode ser o mesmo que aquele usado na negociação. Portanto, a interação sócio-estatal é importante, mas é necessário também lançar luzes sobre a forma de funcionamento de cada espaço e como estes aspectos podem potencializar ou limitar a participação cidadã. Assim, à medida que a política pública passa a se estruturar, trazendo junto aparatos institucionais, ocorre também um crescimento da Comunidade de Política. O Campo nunca deixa de existir e em certos momentos é necessário que o espaço do Conselho de

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Políticas Públicas se volte para esse polo para ampliar suas representações sociais e, inclusive, sua voz na interlocução com a Comunidade de Política. As formulações de cada política pública estudada contaram com distintas configurações de Campo e Comunidade, dadas a partir dos conteúdos que mobilizaram os atores interessados na temática. Essas realidades demonstram que os limites de Campo e Comunidade não podem ser definidos previamente como coisas estanques. Abers e Von Bulow (2011, p. 54) propõem que a delimitação dos limites dos espaços de movimento social e Estado não é dada a priori, “mas sim pelo formato das redes de ação coletiva que existem na prática”. Dessa forma, as fronteiras não são estabelecidas entre Estado e sociedade civil de maneira geral, mas entre seus espaços organizativos de maneira específica e orientadas sob a lógica de cada conteúdo. Diani (2010) também propõe que as propriedades substantivas de Estado e sociedade não podem ser estabelecidas a priori. Para isso, parte de análises que extrapolam a fronteira entre Sociedade e Estado. As delimitações se estabelecem de acordo com as temáticas e os interesses envolvidos nos debates, bem como as relações que elas organizam. Dessa forma, os autores sublinham que as análises sobre os movimentos sociais não podem excluir os atores que estão dentro da estrutura estatal e, com isso, aproximam cada vez mais a compreensão de que os movimentos sociais interagem com o Estado. Essa interação entre sociedade civil e política foi uma das formas para responder aos desafios de promoção de políticas inclusivas e de qualidade no contexto do Estado (TATAGIBA, 2006). Se as temáticas relacionadas aos direitos da criança e do adolescente passam por articulações diferenciadas entre Campo e Comunidade, foi com o tema do enclausuramento que o espaço do Conselho ganhou maior destaque no interior deste sistema participativo. Nos casos estudados (PNCFC e SINASE), podemos perceber que o conhecimento transitou ora no Campo e ora na Comunidade de Política e o Conselho conseguiu dialogar com ambos. A partir disto, foi possível persuadir (e convencer) os atores políticos para promover as mudanças institucionais necessárias, resistindo com os princípios garantidos na formulação do ECA. Continua-se a delinear, nas próximas seções, os elementos conceituais – Campo e Comunidade – que são as bases para o desenvolvimento dos conteúdos posteriores, e para a compreensão das disputas e resistências na construção democrática da política pública de direitos humanos para a criança e o adolescente.

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2.1. Delineando o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes: a pressão social sobre as instâncias decisórias do Estado O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente foi um espaço emblemático após a redemocratização brasileira. Ele buscou romper com autoritarismos na estrutura social e estatal brasileira. Com isso, conseguiu responder aos anseios de participação que eram levantados por parte da sociedade civil e, sobretudo, ser a concretização do espírito do novo marco legal para criança e adolescentes. Para incidir sobre esses aspectos, formou-se um “Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes”. A formação desse Campo foi inicialmente corporificada na figura do Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum Nacional DCA), mas não se conteve nessa institucionalidade. Com o passar do tempo e com os limites desse Fórum, o Campo se fragmentou ainda mais a partir das investidas neoliberais sobre o escopo e as responsabilidades das políticas públicas. Nos momentos das formulações estudadas, por sua vez, o Campo voltou a ganhar unificação pontual a partir das ameaças de pautas e projetos de leis que cassavam direitos conquistados no ECA. O conceito de Campo aproxima-se de movimento social se este for pensado em uma perspectiva que o trate como espaço. Os movimentos sociais são “[...] redes de interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos ou associações engajados em um conflito político ou cultural, com base em uma identidade coletiva compartilhada”. (DIANI, 1992, p. 13). O maior esforço dos repertórios desses movimentos é o desafio de fazer com que um amontoado de sujeitos heterogêneos possa figurar como um coletivo, superando as disputas, competições e divergências internas. O que existe, de acordo com Tatagiba (2011, p. 173) “[...] é um conjunto de organizações e indivíduos frouxamente ligados entre si e que se reconhecem, e são reconhecidos, como parte de algo que é maior do que cada um isoladamente”. A visão contra a política enclausuradora, durante o final dos anos 80,foi um fator que agregou todas as organizações e pessoas, uma vez que se colocavam contra o Código de Menores e ao modelo Funabem/Febem. Portanto, no princípio da formação do Campo de Defesa todos se reconheciam como contrários à maneira como a política estava estruturada e ao autoritarismo estatal praticado. Colocavam-se também em oposição à forma que as organizações da sociedade civil realizavam seus serviços. A semântica do direito era o ponto que enfrentava essas duas questões ao mesmo tempo, pois, acoplada a essa palavra, vinha

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tanto a necessidade de aparatos públicos permanentes, como a responsabilização para gerar maior capacidade de respostas dos serviços públicos (estatais ou privados) às demandas de crianças e adolescentes. Apesar de todos se reconhecerem como parte da discussão dos direitos de criança e adolescente, os atores componentes do Campo distinguem-se em relação às organizações sociais a que estão vinculados e aos interesses dessas organizações em relação à política da criança. Aos poucos, principalmente durante os governos FHC, esse aspecto foi se tornando o ponto que demarcou a forma de atuação da sociedade civil mobilizada nas políticas públicas para a criança e o adolescente. Com isso, os Conselhos passaram a ser arenas de negociação desses interesses com o objetivo central de tentar viabilizar a sustentação financeira das organizações, garantindo que elas fossem as responsáveis pela implementação da política ou dos projetos financiados com recursos públicos. Com a ameaça de retrocesso em termos de direitos, que tinham sido fonte unificadora de discursos durante a década de 1980, o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente voltou a aparecer como um espaço de discussão sobre a situação de crianças e adolescente e, principalmente, para pressionar o Estado para resistir com princípios já conquistados. 2.1.1. Formação e fragmentação do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente: do antagonismo da sociedade contra o Estado aos dilemas neoliberais Durante o final da década 1980, o engajamento social para a conquista do Estatuto da Criança e do Adolescente gerou uma identidade coletiva entre atores sociais que discutiam o tema da infância no país. A temática do enclausuramento foi unificadora para os participantes, pois estes partiam de uma compreensão de que o enclausuramento poderia ser uma ação nos casos de vulnerabilidade de proteção de crianças, mas nunca deveria ser o objetivo fundamental da política. Assim, embora sejam plurais, os atores do Campo partem do reconhecimento de alguns valores fundamentais, ou princípios éticos comuns, e em função deles constroem suas bandeiras e formas de ação (ALVAREZ; DAGNINO, 1995). De outra maneira, os atores componentes do Campo divergiam sobre a melhor maneira para essas políticas serem realizadas. Ou seja, o Campo era marcado por diferentes representações sobre os conjuntos das práticas de institucionalização e do modo de operacionalização das políticas públicas. Os “Projetos de Políticas Públicas”, conforme

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discutidos,permitem compreender momentos históricos em que as bases dos discursos foram aplicadas na operacionalização da política pública e isso nos serve de referência para entender essas diferenciações. Outros autores que estudaram experiências sociais de reivindicação de direitos na década de 1990 também usaram a noção de Campo como espaços ampliados que unificavam atores de diferentes matizes e eram constituídos a partir de temáticas comuns. Utiliza-se o conceito de Campo de Defesa de Crianças e Adolescentes de forma similar ao que foi feito por esses autores. Ou seja, um espaço de diversidade, mas compartilhado por convergências temáticas e com algumas relações interpessoais. Para esses pesquisadores existia uma constante tensão e disputa na formação de um espaço marcado por divergências e no contato deste com a sociedade política.42 Apesar disso, quando o Campo estava unido em torno das temáticas, ele buscava pressionar o Estado para o reconhecimento de direitos. Baierle (1992) buscou uma compreensão para a ideia de “comunidade de iguais” e utilizou a noção de Campo para isso. O autor avançou no sentido de reconhecer um campo de significados comuns para a ação coletiva e a unificação da disputa política. Adotou, assim, a possibilidade de referências e diferenças convivendo nesse espaço. Portanto, a heterogeneidade, para esse autor, era um elemento constituidor. Nasceu o que ele, a partir de seu estudo de caso, chama de “Campo Popular” que, edificado em singularidades, tinha a possibilidade da construção de múltiplos sujeitos regidos pelo princípio da participação ativa, expresso na recusa da passividade social e da apropriação paternalista por parte dos governos. Baierle (1992) estabeleceu, assim, a partir desses significados, o reconhecimento de elementos ampliadores do debate sobre a relação movimento social versus Estado, escapando de uma chave de análise baseada na relação passividade do movimento social versus cooptação do Estado. Além disso, sua análise foi ampliadora por permitir a compreensão do conceito de Campo como algo que tangenciava diferentes sujeitos políticos, independente do local da fala de cada um dos atores. Doimo (1995) também discutiu a formação de um conceito com essa amplitude. É o que ela chamou de “Campo ético-político”, que supõe “[...] a existência de uma sociabilidade comum aflorada pelo senso de pertença a um mesmo espaço compartilhado de

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Alguns autores que estudaram a formação da área da criança e do adolescente usaram a ideia de Campo para compreender uma formação ampliada que passasse pelas disputas entre atores marcadas pelas representações sociais da infância (PEREIRA, 1998; PINHEIRO, 2004; NUNES, 2011)

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relações interpessoais e atributos culturais, como signos de linguagem, códigos de identificação, crenças religiosas e assim por diante...” (DOIMO, 1995, p. 68) Doimo (1995, p. 201), por outro lado, questionou a viabilidade futura e a resistência desse Campo ético-político quando passasse a existir o contato dele com a sociedade política, em especial com o surgimento de canais de participação social, assim como o aumento da sensibilidade do Estado em relação às demandas populares. Esses autores convergiram na percepção de uma esfera heterogênea, mas com convergências, como sendo um elemento para a construção de um coletivo unificado em torno dos ideais da participação cidadã. Compreenderam também que esse espaço tem sua maior predominância relacionada à Sociedade Civil, mesmo que já admitam como é o caso de Baierle (1992), a existência de atores ocupantes de cargos estatais na composição desse Campo. Os dois autores vinculam como tema da convergência entre os movimentos a demanda por mais participação social na decisão sobre a política pública. A participação cidadã também foi um ponto para aproximação entre os atores do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, já que buscavam romper com o modelo autoritário de Estado que vinha do período ditatorial e que passava pela forma de prestação de serviços. Na década de 1980, a noção de Campo compreendia um espaço ampliado de mobilização social em torno da questão da infância. Em estudo sobre esse período, Pinheiro (2003, p. 345) denominou essa mobilização social do final da década de 1980 da seguinte forma: Ao analisar os espaços institucionais, adentrei o lócus concreto de circulação e disputa de representações da criança e do adolescente, no Brasil de 1970/80, que se consubstanciaram na emergência e institucionalização de um campo político a eles referente, de grande visibilidade durante a Assembleia Nacional Constituinte, e que permanece até o início do Séc. XXI. (Grifos nossos)

A autora aponta que esse Campo permaneceu até o início do século XXI, algo verdadeiro, mas que deve ser analisado com nuanças, pois se ainda existem fatores unificadores, existem também heterogeneidades e diversidades sobre a forma de compreender as políticas para a criança. Além disso, a abertura de canais de participação e a maior sensibilidade do Estado em relação às demandas sociais, aspectos alertados por Doimo (1995), tornaram esse Campo

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mais diverso, pois o acesso ao Estado passou a configurar motivos de disputas entre as organizações que preferem ocupar os postos estatais. Nossa análise busca compreender as variações dessa mobilização social. Assim, buscamos discutir o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes ao longo da década de 1990, principalmente, a partir das convergências geradas pelas ações contra o enclausuramento e das heterogeneidades que demarcam a atuação da sociedade civil nessa área de política. Essa década foi o período de hegemonia da “institucionalização democrática e cidadã do ECA”, como apontado por CECRIA/Amencar (2000). Naquele momento esse espaço passou a ser mobilizado contra a política autoritária e pela responsabilização estatal, com base na noção de que crianças e adolescentes eram sujeitos que tinham “direito a ter direito”, e, com isso, incidiu na formulação da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), defendendo princípios relacionados com a proteção integral, que era a base da nova Convenção Internacional dos Direitos da Criança (CDC) em discussão na mesma época. Essa discussão internacional também repercutiu no âmbito interno do país por meio da atuação do Fundo das Nações Unidas para a Criança (Unicef) que foi a agência responsável por monitorar a aplicação da Convenção nos países.No Brasil, conforme já apontado, a atuação do Fundo foi essencial para a alteração das institucionalidades existentes. O Unicef durante as décadas de 1980 e 1990 financiou boa parte das ações relacionadas com a sociedade civil e com o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Com isso, o espaço de articulação do Campo ganhou maior fôlego, pois pôde contar com ajuda financeira e profissional. Entretanto, a vivacidade do Campo não foi única e exclusivamente por conta do apoio do Unicef, mas se assentava fundamentalmente sobre a necessidade de uma política pública menos enclausuradora. O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes se fortaleceu a partir das expectativas e interesses compartilhados por atores que defendiam crianças e adolescentes pobres e vulneráveis. O tema do enclausuramento de crianças e adolescentes era uma das fontes para discussões e descontentamento dentro deste Campo amplo e fortalecia sua mobilização, pois era a maneira pela qual o Estado exercia suas ações e tentava, por meio delas, resolver os problemas sociais em relação às crianças e aos adolescentes. Dessa forma, esse Campo se constituía próximo à lógica de movimento social, pois falavam

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[...] em nome de uma clientela [constituency] carente de representação formal, no curso da qual tais pessoas apresentam demandas, publicamente visíveis, por mudança na distribuição ou no exercício do poder, respaldando essas demandas com demonstrações públicas de apoio (TILLY, 1994, p. 30)

Naquele momento agentes e organizações se reuniam em torno do discurso hegemônico de que o enclausuramento poderia ser um meio para uma política protetora de crianças e adolescentes, mas nunca a finalidade da política pública. Esse foi o momento da passagem do “Estado ao Estatuto” (VOGEL, 2009), já que mudaria a perspectiva de garantia dos direitos com base nos aparatos estatais para outra com base na lei e na cidadania. Ou como denominou Rizzini (2009), a passagem do “pátrio poder ao pátrio dever”, já que com a chegada do Estatuto a perspectiva de garantia dos direitos passaria a ser um dever do Estado. A articulação em torno de temáticas agregadoras perdurou nos primeiros anos de funcionamento do Conanda. A demonstração das preocupações em tornos das pautas comuns pôde ser constatada já na primeira reunião do Conanda que definiu uma “comissão para definição da Política Nacional de Atenção ao Adolescente a que se atribui autoria de ato infracional” (Ata FBCIA da 1ª Assembleia do Conanda, 18/03/1993). Ou seja, os conselheiros da sociedade civil e o Fórum Nacional DCA passam a sentir um efeito centrípeto impulsionado pela diversidade organizacional. A autonomia dos movimentos sociais foi um valor nos debates do primeiro momento do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Ela foi a base para auxiliar nos discursos de um conjunto de organizações e movimentos sociais para lutar contra o modelo repressivo e autoritário de Estado. Daqui surgiram aqueles sentimentos alterativos que influenciaram a atuação social na década de 1980. O confronto e o antagonismo foram marcas das relações entre o Estado e a sociedade civil naquela década (DAGNINO, 2004). Na década de 1980, foram os movimentos sociais que levantaram a discussão sobre a situação de crianças e adolescentes. Faziam isso com participação de alguns atores que atuavam nos espaços estatais e de entidades prestadoras de serviços para a infância. Dentre esses se destaca principalmente o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua – MNMMR. Os formatos desses movimentos eram variados e isso provocava uma relativa tendência para sua análise a partir de uma vertente anti-institucionalista (EVERS, 1984).43 Neste formato existia uma visão de oposição ao Estado e de sua forma autoritária de

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Evers (1984) sugere que a identidade é a dimensão sobre a qual se estabelece uma relação positiva entre os membros do movimento social. Em contraponto, entende que o negativo nasce da institucionalidade que passa a

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atuação. Assim, os movimentos sociais pautavam sua atuação a partir de denúncias de omissões e transgressões do Estado contra a sociedade e tinham como valor a noção de autonomia (ABERS, BULOW, 2011; ABERS; SERAFIM; TATAGIBA, 2011). As relações identitárias internas aos movimentos eram fator importante para o início daquelas mobilizações sociais. Elas estavam relacionadas com as demandas comuns e específicas em torno das políticas públicas. Enquanto o Estado não se transformava para enfrentar as demandas requeridas, os movimentos criavam um braço de intervenção na realidade. Desta maneira, para enfrentar os problemas de forma autônoma e atuar em relação a algumas questões em que o Estado era omisso, eram realizadas ações diretas nas comunidades. Mutirões 44 e projetos 45 eram nomenclaturas para esse tipo de iniciativas empreendidas durante a década de 1980. O Campo de Defesa dos Direitos de Criança e Adolescente passou a ter seu início marcado por esse tipo de sujeitos que ofereciam uma ação autônoma em relação ao Estado. Pinheiro (2003, p. 345) demonstra a diversidade de composição desse Campo, mas enfatiza a presença de um ator constituinte “no espaço da sociedade civil tem-se um ator tradicional, presente no período em foco: a Igreja Católica, que efetiva práticas de assistência e de defesa, através de diferenciados setores e integrantes”.

Ao longo da década de 1980, os focos dos movimentos foram aos poucos se deslocando de uma mobilização solidária por carências coletivas (especialmente, em relação à temática da criança de rua) para outra, da ação frente ao Estado (que pressionava por uma política participativa e contra o modelo de políticas existente) que passava a ser pressionado para agir em favor da garantia de direitos. O primeiro passo necessário dessa interlocução entre os movimentos e o Estado passava necessariamente pela negação do Estado existente e a busca por alterações nele. As iniciativas sociais, denúncias e ações diretas foram importantes formas de mobilização social e de visibilidade para novas questões que pouco apareciam na cena pública. Para esses casos, movimentos sociais e organizações não-governamentais passaram a se confundir (TEIXEIRA, 2003) e a inter-relação deles com o Estado gerava a possibilidade

retirar a “pureza” dos movimentos. Nascem daqui preocupações quanto à mediação entre essas estruturas identitárias e as institucionalidades consolidadas (por exemplo, partidos políticos, políticos profissionais, Poder Executivo). 44 Os mutirões tiveram no terreno da questão habitacional o seu campo mais explorado (MIAGUSKO, 2011). 45 Um destaque ao Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo, associação civil, sem fins lucrativos, nascida em 1983 da articulação da Pastoral do Menor e igrejas evangélicas (Informações em www.pmmr.org.br). Esse pesquisador atuou como diretor presidente desta organização nas gestões de 2010-2011 e 2012-2013.

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de criar alternativas e soluções que proporcionavam subsídios para alterar as institucionalidades existentes, principalmente, embasados na ideia da “partilha de poder para governar” (Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática – GECD, 2000). Abria-se, de outra forma, a possibilidade também de se estabelecer uma dimensão educativa, na medida em que emergia um espaço de compromisso e luta em busca de equidade e justiça social, “valorizando as potencialidades humanas e conscientizando sobre a importância de transformar-se em sujeito político, construtor e executor de práticas democráticas e cidadãs” (BARBOSA, 2006, p. 175). O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes tem em atores configurados nesta perspectiva um dos seus pilares centrais. São essas organizações e movimentos que, ainda hoje, defendem noções sobre o reconhecimento da situação da infância no Brasil.46 Além dos movimentos e organizações citados até aqui, o Campo tinha como componentes alguns técnicos das instituições estatais que vinham para esse espaço para alimentar e serem alimentados de propostas metodológicas para a atuação com crianças e adolescentes. Eram pessoas técnicas e servidoras do Estado, que tiveram importância no momento anterior, mas que passaram a não concordar com a forma de atendimento realizado pelo Estado. Tatagiba (1996, p. 146) reconhece a presença desses atores estatais na composição de redes sociais movimentalistas, ou redes societárias, mas “no geral, não atuam como representantes do Estado”. No caso do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente podem ser listados juízes, promotores, pedagogos, educadores e técnicos do sistema Febem que discordavam da forma de organização desses serviços. Reforçando essa análise Sheinvar (2009, p. 18) dá o seu relato: A equipe técnica da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) – da qual fiz parte – teve presença contundente durante a transformação da legislação que sustentava a prática carcerária e incriminadora para as crianças pobres, os “menores”, definida no Código de Menores. Esse movimento organizado por elementos do Poder Judiciário, pelas equipes de técnicos dos órgãos públicos e por entidades da sociedade civil vinha no

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Dentre estes se destacam: Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, já mencionado, nascido no final da década de 1980 e responsável por mobilizar centenas de crianças/adolescentes em caravanas para Brasília para reivindicar a aprovação do ECA; Associação Nacional de Centros de Defesa da Criança e do /Adolescente (ANCED), que congrega as Organizações Não-Governamentais que atuam com defesa judicial de crianças e adolescentes e também é responsável pela elaboração dos relatórios das organizações da sociedade civil ao Comitê dos Direitos da Criança da ONU que expõem situações de violação de direito no Brasil.

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rescaldo dos movimentos sociais iniciados na segunda metade dos anos 1970 e resultou na Lei 8.069/90 – ECA.

Esse trânsito de agentes servidores do Estado e das fundações para os espaços da sociedade civil auxiliou na constituição dos discursos alternativos para o contraponto ao Estado. Ou seja, eram pessoas que atuavam em espaço de militância social, mas conviviam com as contradições de suas organizações de origem. Viam, por sua vez, por meio dos movimentos da sociedade possibilidades reais de mudança das institucionalidades existentes. A chegada das Instâncias Participativas foi também momento de mudanças sobre a ideia de autonomia que passou a incorporar a interdependência política entre organizações da sociedade e o Estado (AVRITZER, 2012; TATAGIBA, 2002, 2004; ABERS; KECK, 2006), tanto na interação nos conselhos quanto na implementação de políticas públicas. Na medida em que esse compartilhamento colabora com mutualismos de ambas as partes, ele traz também dilemas em relação às formas de relação entre sociedade e Estado (SINGER, 2008). Por sua vez, o principal demarcador desse momento é a internalização no âmbito do Estado das lutas por reconhecimento de direitos, já que anteriormente o Campo visava o Estado, mas se mobilizava de maneira externa. Portanto, até então, os movimentos citados prezavam pela autonomia política em espaços de denúncia e questionamento da ação estatal, ou seja, essa autonomia era necessária para agir apartadamente no controle do Estado. Contudo, essa luta interna ao Estado trouxe dilemas para a forma de interação entre os representantes da sociedade civil e os agentes governamentais. Uma primeira fissura entre os representantes da sociedade civil, narrada anteriormente, ocorreu quando da troca do vice-presidente do Conselho, Benedito Rodrigues dos Santos, pelo conselheiro representante da Pastoral do Menor. Lá a escolha foi feita por um conselheiro não-governamental com “maior trânsito” no governo recém-eleito, Raymundo Mesquita, representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Ou seja, passou-se daquela ideia antagônica que pautava anteriormente as relações entre sociedade e Estado, como narrado pelo próprio Benedito em entrevista (MARQUES, 2008), para a tentativa de uma relativa convergência, parceria e aproximação entre sociedade civil e governo. A partir daí começou também uma maior fragmentação da representação da sociedade no Conselho, com predomínio da Igreja Católica e de suas organizações, e isso expressou a tradução de conflitos mais amplos que se estabeleciam no Campo de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes e que se prolongaram ao longo da década de 1990.

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Na década de 1990, a noção de autonomia passou também a apresentar-se pelo viés da independência financeira e administrativa das organizações sociais. Nesta perspectiva, a ideia de autonomia está muito mais associada com a preservação da organização e a mobilização dos seus recursos, do que propriamente com a preocupação de uma ação política e social transformadora (ALMEIDA, 2006; BARBOSA, 2006; MONTAÑO, 2010). Sobretudo, nessa perspectiva, muda-se a semântica da participação deixando de lado as noções associadas ao conflito e incorporando o discurso da moderna gerência, eficiente e eficaz (TATAGIBA, 2003; 2006). O desenvolvimento do Fórum Nacional DCA retrata essa mudança, quando no princípio tinha uma configuração mais articuladora e de mobilização ante o Estado e tinha principalmente o MNMMR como liderança no processo. Na década de 1990, por sua vez, passou a estar mais preocupado com sua sobrevivência organizacional, e as organizações sob a Igreja Católica passaram a predominar na liderança do processo. Isso ocorreu, pois organizações associadas à Igreja Católica eram em maior quantidade dentro do Fórum Nacional DCA e passaram a ganhar as disputas pelo poder de voto. Isso coincidiu com a formalização do Fórum Nacional DCA e o objetivo de torná-lo viabilizador das ações da sociedade civil, com maior trânsito junto ao Governo. Parte desse debate acadêmico sobre a autonomia (FERNANDES, 1994; FRANCO, 1998; LOPES, 2004) influenciou a maneira como a ação governamental passou a compreender a atuação da sociedade civil. De acordo com essas análises, o Estado era visto como um interlocutor necessário para as ações da sociedade, mas cabia à própria sociedade dar conta de suas mazelas. Mais do que isso, admitiam a possibilidade do Estado delegar ações na execução de serviços públicos para essas entidades como forma de dar mais eficiência à alocação de recursos e garantir a sustentação financeira dessas entidades. Assim, passou a existir uma disputa hegemônica no Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que compreendia a atuação do movimento de direitos da criança saindo de um período de incidência política para mudança no Estado, para outro modelo mais pautado pela lógica da transferência das responsabilidades estatais para a iniciativa social e, portanto, tendo como pano de fundo uma visão de mercado. As organizações da Igreja Católica tinham interesse direto nessa brecha de atuação criada. Segundo essa visão, para resolver os problemas comunitários, a melhor forma de alcançar a eficiência nos serviços públicos seria a descentralização da responsabilidade pela execução do Estado para a sociedade. Assim, para essa concepção as mobilizações da sociedade deviam se transformar em Organizações da Sociedade (OS) para ter relação formal

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com o Estado e prestar serviços públicos. Pretensamente, essas organizações passaram também a ser canais de intermediação e representação política.47 Essa desresponsabilização do Estado abriu caminhos para o fortalecimento do discurso gerencialista e tem como consequência a despolitização dos espaços decisórios. Junto a isso, veio a compreensão sobre a participação com viés operacional, que a trata como instrumento de gestão (TATAGIBA, 2003; 2006) que são efeitos da denominada “confluência perversa” (DAGNINO, 2004). Esse foi o momento de composição do chamado terceiro setor, que se ampliou pelo aproveitamento de um espaço entre o Estado e o setor privado-lucrativo, mas que em uma perspectiva crítica (TEIXEIRA, 2003; BARBOSA, 2006; MONTAÑO, 2010) despolitizou e desresponsabilizou o Estado. O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes passou a ter, durante a década de 1990, uma grande influência dessa acepção do terceiro setor. Essa visão ganha ainda maior intensidade na área da infância e adolescência pela tradicional existência de organizações sociais que realizavam o atendimento de determinadas situações relacionadas à infância em substituição ao Estado. Foram elas que historicamente desenvolveram suas ações com base em discursos caritativos e, com isso, receberam essa incumbência em diferentes momentos históricos. Essas organizações eram associadas em grande parte a entidades religiosas, principalmente católicas, e durante décadas foram responsáveis pelo cuidado com crianças pobres e vulneráveis. Portanto, esse discurso gerencial é uma nova roupagem de uma antiga prática privatista. No final dos anos 1990, a relação de financiamento feita pelo Unicef para a mobilização da sociedade civil passou a minguar e essa agência passa a ter mais colaborações técnicas com maior interface com o Governo. Essa diminuição convergiu com a redução dos recursos internacionais para financiamento de atividades não-governamentais no Brasil (MENDONÇA et al., 2009). Essa nova configuração teve um grande impacto do ponto de vista da mobilização do Campo, na atuação do Fórum Nacional DCA e alterou a própria forma de viabilização dos debates relacionados com o tema da criança e do adolescente. Esse cenário modificou a relação entre o Campo de Defesa dos Direitos de Criança e Adolescentes e o Estado, pois criou espaço para a fragmentação das pautas de acordo com os interesses de cada ator presente na disputa. 47

A concretização dessa concepção ganhou formato legal pela Lei 9,790/99, denominada Lei das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP. Essa visão alcançou seu auge durante a Reforma Administrativa do Estado em 1998, que tinha o pressuposto de ampliar a transferência dos serviços públicos para as organizações de “propriedade pública não-estatal” (BRESSER-PEREIRA; CUNILL GRAU, 1999).

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Assim, ao final da década de 1990, o Campo estava mais demarcado pela disputa entre projetos, pelo predomínio dos conflitos políticos ou culturais do que por uma convergência. Esses projetos estavam em disputa por conta de ideias repressivas e caridosas que ainda permaneciam no horizonte discursivo da formulação das políticas sociais e ganhavam contornos predominantes diante de governos muito mais preocupados com questões econômicas do que sociais, como foi o caso do governo FHC. Quando as lacunas da atuação precária do Estado ficaram mais evidentes e houve a constatação de que aquela lei conquistada, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ainda não havia alterado as práticas enclausuradoras e possíveis retrocessos pairavam sobre essa temática, o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes voltou a se mobilizar durante o final da década de 1990, ganhar importância e exercer pressão e influência sobre o Estado para a alteração dos parâmetros legais existentes de maneira consistente com os princípios defendidos anteriormente. Essa convivência e tensão são retratadas na avaliação dos dez anos de implementação do ECA quando discute a temática do adolescente em conflito com a lei: A temática da criança e do adolescente em conflito com a lei tornou-se um dos pontos de pauta prioritários do Conanda e do movimento em defesa da criança e do adolescente, com iniciativas de seminários, debates, estudos, Assembleia do Conanda para discutir esta temática, elaboração e aprovação de resolução do regulamento de Diretrizes de atendimento à criança e ao adolescente autor de ato infracional. Além disso, a luta pela manutenção da inimputabilidade penal tem sido acompanhada pelo Fórum DCA, pelo INESC (entidade filiada ao Fórum) e pela Frente Parlamentar pela Criança e Adolescente, que estão permanentemente em alerta no Congresso Nacional e monitorando os debates nacionais e posturas conservadoras pelo rebaixamento da idade penal. (CECRIA/AMENCAR, 2000, p. 46)

Ao longo dos anos 1990, o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes era composto por diferentes atores, públicos e privados, e organizações da sociedade civil que podem ser divididas entre movimentos sociais, terceiro setor, organizações filantrópicas e instituições privadas. Enfim, inúmeros formatos possíveis e convergentes em determinado ponto por serem organizações interessadas no tema da infância e, principalmente, pautados por uma visão não-enclausuradora. Em nossa análise, o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes teve no tema do enclausuramento um ponto que o unificava. Quando houve uma ameaça de retrocesso em relação a essa temática, a heterogeneidade foi minimizada e todos se colocaram em um mesmo espaço de defesa do não enclausuramento.

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2.1.2. A retomada conjuntural do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes na formulação da política pública No princípio dos anos 2000 o Campo de Defesa voltou a encontrar conjunturas para mobilização coletiva e criação de redes. Essa ação ocorreu independente das fragmentações provocadas pelo Projeto Neoliberal e pela própria existência do Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes. O Conselho passou a estabelecer conexões com esse espaço organizativo do Campo que se organizava independente do Conselho e dos conselheiros não-governamentais. Com isso, vemos uma constatação da fragmentação da representação da sociedade civil, que passava, sobretudo pela forma de funcionamento do espaço do Conselho e do Fórum Nacional DCA. Esse aspecto evidencia que a categoria “interesse” deve ser analisada como elemento constitutivo desses espaços. Os conselhos de políticas públicas são espaços no âmbito do Estado, passíveis de disputas de poder e de acesso a recursos, por parte de outros atores sociais, que sem esse canal não teriam esse acesso. Assim sendo, as organizações da sociedade civil podem ter interesse em adentrar nesse espaço na tentativa de se apropriar de recursos e se aproximar do poder. Existem também organizações que participam dessas instâncias com o objetivo de representar interesses mais amplos de uma determinada parcela social, ou o que denominamos como dimensão educativa. Essa característica contrapõe um ideal de democracia, que pressupõe igualdade política, para outro que busca compreender as relações democráticas realmente existentes (MIGUEL, 2011). Ou seja, o interesse organizacional nos espaços de poder e de contato com o Estado são elementos que também moldam as instâncias de participação e montam a policy area. Entretanto, a evolução dessas mesmas policy areas não poderia ser reduzida ao jogo pragmático dos interesses no espaço de poder. É importante, dessa forma, olhar também para as relações sociais que se estabelecem para além dos espaços estatais e que ajudam a compor também a área de política. Os conselhos de políticas públicas lidam com poder no seu dia a dia e, por isso, mesmo que relações endógenas daqueles espaços já tenham se acomodado, eles se vitalizam com o estreito diálogo com o Campo de Defesa. As Conferências de Políticas Públicas seriam espaços para que essa vitalização ocorresse, mas essas instâncias participativas ainda estão pouco conectadas no dia a dia da política pública (POLIS, INESC, 2011). Ao mesmo tempo,

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o Fórum Nacional DCA, que seria o espaço de compilação dos debates sociais para uma melhor comunicação ao Estado, também encontrou limites ao longo de sua trajetória, principalmente quando se fechou em sua lógica endógena de representação entre os seus membros. Por mais que o interesse organizacional seja o demarcador das relações dos representantes não-governamentais nos espaços estatais, não poderíamos nas relações entre representantes e representados eliminar o conflito como elemento-chave. Dessa forma, a autonomia dos representados, consequentemente nas formações do Campo de Defesa, condiciona formas de analisar o conflito nas interações possibilitadas pela participação social. Ou seja, os espaços participativos não encerram a representação e, com isso, é possível pensar em autonomia por parte do Campo de Defesa que passa a aparecer em momentos de necessidade para garantir princípios éticos-políticos, que foram importantes na própria formação da área de política. Nesse contexto, a ideia de participação extrapola esses espaços formais e seus ocupantes. Aqui se estabelece uma tensão de disputas entre aqueles que pressionam (os representados) e aqueles que ocupam os assentos estatais (os representantes) e que podem preferir métodos de decisão mais insulados. Por isso, o esforço aqui empreendido de pensar em um coletivo social mais amplo, com ou para além dos conselheiros não-governamentais. Espaço que se mobiliza em torno da temática dos direitos e que tem autonomia para pressionar, tanto o Conselho como outros espaços estatais, a partir da existência de ameaças em relação aos direitos conquistados. A constituição dos espaços de participação foi mais uma fonte para atuação da sociedade civil para pressionar o Estado. Os repertórios utilizados pelo Campo de Defesa para acessar o Estado são dependentes do contexto em que se inserem e da rede de instâncias estatais disponíveis para desenvolver esse contato e, sendo assim, o Conselho é mais um espaço para pressão. Os repertórios e as fronteiras de contato do Campo com o Estado não podem ser dados a priori, mas ganham corpo no próprio desenvolvimento das temáticas debatidas e na defesa dos interesses. Em outras palavras, o Campo busca exercer pressão sobre as fronteiras do Estado, mas as estratégias a serem utilizadas aparecem no contexto de cada atuação. Nesses contextos, os conselhos de políticas públicas passam a ser mais uma opção para o contato do Campo. O Campo em si não é um espaço homogeneizado, mas ele pode ter atores convergindo a partir dos momentos mobilizadores, específicos e conjunturais, e envolver grupos e atores alinhados em termos de determinada estratégia escolhida. No Campo de

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Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes agregam-se diferentes tipos de organizações da sociedade civil, desde movimentos sociais até outras instituições formalizadas com natureza distinta (fundações empresariais, organismos multilaterais, instituições religiosas e organizações filantrópicas). Assim, em alguns momentos a heterogeneidade do Campo pode ser atenuada por temáticas que integram atores específicos criando redes entre si, exercendo pressão sobre o Estado e mobilizando-se contra, ou em favor de mudanças do/no Estado, por isso, a proximidade desse conceito com os movimentos sociais. Dessa forma, um Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes volta a ganhar corpo e visibilidade quando busca pressionar o Estado para mudar ou resistir com as instituições existentes. As disparidades entre os atores no Campo são deixadas de lado em torno de um interesse comum e da pressão sobre o Estado. Portanto, mais uma delimitação necessária no escopo conceitual e próxima à ideia de movimentos sociais, compreende Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente como um espaço social que tem atores mobilizados com base em um evento, campanha em particular, coalizão específica. Nesses momentos, para além dos objetivos específicos e das distintas concepções de mundo dos atores que compõem o Campo, esses personagens mobilizados passam a buscar objetivos maiores e a se enxergar como elementos de processos de mudança – ou de resistência à mudança – muito mais amplos e abrangentes (DIANI; BISSON, 2010). Essa identidade pontual e coletiva não extrapola os momentos conjunturais, pois quando a demanda é atendida ela passa a tramitar no nível das estruturas do Estado, que denominaremos como Comunidade de Política, que exerce o controle institucional e social. Esse processo retorna para a forma de atuação, repertórios e impacta na própria dinâmica do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente. Então se estabelece a ideia de retroalimentação entre Campo e Comunidade, pois com o passar do tempo e o desenvolvimento da política pública, ambos se alteram. Para reestabelecer a distinção entre autonomia dos representados e interesse dos representantes, que passa pela dimensão da participação social, foi necessário que alguns direitos do ECA fossem ameaçados, pois a partir desse perigo iminente, o Campo de Defesa voltou a viver conflitos políticos e identidades coletivas compartilhadas, apesar de sua heterogeneidade. Essa ação foi feita de maneira independente dos representantes nãogovernamentais que estavam no espaço do Conselho, mas contou também com momentos em que conselheiros participaram dos mesmos espaços de discussão. Atualmente, a chave de análise baseada na noção do interesse existente nos espaços participativos e na autonomia dos representados, é recolocada no debate sobre a

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participação social, bem como sobre as interações sócio-estatais, pois para além do cenário institucional, pensa os espaços sociais como elementos permanentes e em estado de atenção para evitar retrocessos. Com isso, assim como tem sido feito por Tatagiba e Teixeira (2006), nos parece interessante pautar a ideia de autonomiados movimentos da sociedade a partir da chave da qualidade da relação entre sociedade civil e o Estado e, com isso, distinguir o Campo de Defesa como chave de análise na formulação da política pública e pensá-lo na constante interação com o Estado. A autonomia é um valor e, como tal, informa os limites a serem observados na relação entre movimentos e sistema político, que quando não “obedecidos” podem resultar em instrumentalização, cooptação, etc. Nesse sentido, a autonomia não significa ausência de relação, forma como no geral costuma ser abordada, mas nos informa acerca da qualidade dessa relação, a forma como os atores se colocam nela. Falar sobre a autonomia dos movimentos, portanto, significa perguntar sobre a natureza dos vínculos que os movimentos são capazes de estabelecer com os demais atores do sistema político, significa perguntar até que ponto eles são capazes, nessa relação, de escolher os seus interlocutores em função das suas agendas, de defender seus interesses, de definir os objetivos da interação, e até que ponto eles pautam ou são pautados. A autonomia pode existir mesmo em um contexto no qual os movimentos mantenham vínculos constantes e permanentes com outros atores como partidos, sindicatos, governo, vereadores, deputados, aliás, esses vínculos e contatos se mostraram fundamentais em vários momentos. Não há, a priori, nenhum problema no fato dos movimentos se aliarem aos governos, partidos ou vereadores para encaminhar sua luta, suas demandas. Aliás, os movimentos sempre fizeram isso. O problema está na sensação de que essas relações servem muito mais ao Estado, aos partidos e ao governo do que aos próprios movimentos. (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006, p. 229)

A autonomia é um conceito que ajuda a compreender as fases do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Ela foi inicialmente pensada como uma ação antagônica ao Estado. Passou pela ideia de ação conjunta entre Estado e organizações da sociedade civil. Por fim, chegou à ideia de relações com autonomia para exercer pressão social sobre os espaços estatais de decisão sobre a política para resistir aos retrocessos ou avançar na formulação de políticas públicas. No interior do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes os atores têm um espaço com maior autonomia para defender seus interesses e defender pontos de vista marcados por distintas visões de mundo. Em relação às políticas públicas, os atores do Campo pensam de maneira distinta sobre como as questões sociais que atingem as crianças e os adolescentes devem ser tratadas e enfrentadas. Contudo, o tema do enclausuramento foi um ponto que unificou o Campo de Defesa na década de 1980 e começo dos anos 1990, e

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conseguiu transformar a heterogeneidade de abordagem dos atores em ponto comum na medida em que houve ameaças de mudanças e retrocessos. As disputas societais entre os Projetos de Políticas Públicas, presentes no Campo, buscam influenciar as normas e pautar as políticas para a criança e o adolescente a partir de visão de cada projeto. Apesar de ser marcado pela heterogeneidade e diversidade, nos momentos específicos para a Construção Democrática da Política Pública sua ação nos canais de decisão da política pública esteve em torno da manutenção das conquistas institucionais realizadas (especialmente, os direitos fundamentais estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente), e dos temas que violavam os direitos humanos consagrados no aparato jurídico nacional. Essa convergência possibilitou uma maior pressão sobre os espaços decisórios e favoreceu a resistência dos elementos garantidos no marco legal contemporâneo da política pública para a infância e adolescência.

2.2 Delineando a Comunidade de Política Públicas: o processo decisório e a negociação para a formulação da política pública As políticas públicas para a criança e adolescentes foram mais um exemplo pósConstituinte de conquistas institucionais que puderam promover caminhos para a consolidação de aparatos públicos para a ação em prol da garantia de direitos. Esse foi o principal efeito gerado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pois se promoveu ambiente para a estruturação do funcionamento das políticas públicas de forma a envolver institucionalidades estatais e privadas. Abrem-se, dessa forma, alguns temas que demandam uma discussão, quando se aborda aspectos sobre essas políticas públicas, entendidas como o Estado em movimento (SOUZA, 2003), são eles: 1) a ampliação das fronteiras estatais relacionadas com formulação/implementação das políticas públicas; 2) o caráter diferenciado dos atores sociais quando ocupam a estrutura estatal; e 3) a convivência entre a burocracia estatal e atores sociais no processo de tomada de decisão. O contexto contemporâneo das políticas sociais aproxima cada vez mais a formulação e a implementação da política e, por isso, modifica as estruturas decisórias do Estado. Com essa aproximação rompe-se com visões tradicionais sobre o ciclo das políticas públicas que o entendiam como etapas separadas e sucessivas. Busca-se, dessa forma, analisar essas etapas como parte de um grande processo integrado. Para o entendimento lógico, ele pode ser dividido entre formulação e execução. Contudo, na realidade da política pública, processos, conteúdos e atores estão conectados compondo um contexto único e um grande

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tecido público-estatal. Portanto, mesmo que o conceito usado esteja voltado para o ato da tomada de decisão, as conexões deste ato com a implementação das políticas já começam desde a própria existência da política pública e a partir do nascimento da questão pública que será enfrentada. As fronteiras atuais das políticas públicas envolvem organizações nãogovernamentais, para além das organizações estatais, que assumem função de executoras de parte das políticas públicas, e têm financiamento advindo da fonte orçamentária estatal. Essa rede implementadora pode ser motivo de acomodação de interesses e ela própria pode ser a fonte da permanência de violações de direitos, já que a forma de prestação de serviços em muitos casos pode ser mais adequada para as organizações do que para os beneficiários da política. O dilema relacionado a esse processo de ampliação das fronteiras públicas é como tornar esses aparatos organizacionais permanentes na garantia da política pública, conciliando isso com uma atuação política de controle social sobre o Estado. No nível federal, foco de análise dessa tese, a dimensão da implementação das políticas públicas, principalmente as sociais, é diminuída, pois essas foram atribuições delegadas aos níveis subnacionais. Contudo, cabe a aquele nível, no contexto do pacto federativo, deliberar sobre diretrizes gerais da política, que podem ser implementadas nos outros níveis (estados e municípios). Nesse sentido, no nível federal existe a disputa pelos recursos do Fundo Nacional do Direito da Criança e do Adolescente, mas, sobretudo pelas formas como as diretrizes gerais são decididas, pois a partir delas, abre-se espaço para um grande mercado de atuação nos níveis subnacionais da política pública para a criança e o adolescente. A Comunidade de Política acontece no contexto do Estado e como espaço de conexão entre atores estatais e sociais na formulação e na implementação de políticas públicas. Portanto, o conceito visa a política pública, pois analisa o Estado em movimento e privilegia os atores que transitam nas estruturas estatais (conselhos, comissões, comitês, grupos de trabalho, secretarias, departamentos, etc.). Esse Estado em movimento, no contexto pós-Constituinte, tem relação com o acesso de atores sociais ao processo de tomada de decisão do Estado, nessa tese com foco especial nos Conselhos de Políticas Públicas, mas que também pode ocorrer em outras instâncias abertas à participação social. Portanto, ao falar de Estado trata-se do processo de decisão, quando envolve roupagens participativas. Esse aspecto encontra interfaces com o que foi abordado sob o ponto de vista do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e

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Adolescentes, mas nesse momento o ângulo de análise é distinto, pois se projeta para o interior do Estado. Assim, a Comunidade de Política é espaço que agrega atores estatais, governamentais e sociais na medida em que participem do processo de tomada de decisão do Estado. Os atores sociais que ocupam o Estado muitas vezes transitam entre Comunidade e Campo, e fazem isso a partir de narrativas distintas. O Campo é um espaço com maior autonomia para a pressão, enquanto a Comunidade é espaço de negociação em que propostas saem vencedoras e outras são deixadas no caminho. A diferença fundamental desse conceito em relação ao de Campo de Defesa dos Direitos tem relação com o status diferenciado que atores sociais passam a ter quando ocupam a estrutura estatal. Portanto, a entrada no Estado e a ocupação de postos na tomada de decisão tornam os atores sociais que ocupam lugares estatais distintos daqueles que estão mobilizados por fora do Estado. Ambos, os atores sociais que entram e aqueles que permanecem fora, estão conectados, mas a natureza do Estado e o processo de tomada de decisão condicionam a atuação desses atores e permite aproximação aos recursos estatais. Isso não quer dizer que todos os participantes dos espaços estatais somente estão interessados em recursos econômicos e de poder. Entretanto, a capacidade organizacional dos atores que atuam baseados nessa lógica predomina e, com isso, alguns espaços do Estado passam a funcionar sob essa forma de atuar. Assim, a relação entre atores que estão fora ou dentro do Estado não é tratada de forma neutra e virtuosa, mas como processos de constantes disputas pautados por limitações, tanto as burocráticas do Estado, as da representação dos atores da sociedade civil no espaço do Estado e aquelas associadas às demandas sociais. O conceito de Comunidade de Política tem relação também com as institucionalidades estatais, sua burocracia e seus mandatários. O Estado se organiza de maneira própria, mas no contexto dessa tese não é tomado como um ente homogêneo e racional. O Estado é uma estrutura ampla e complexa que envolve técnicos e dirigentes e a tomada de decisão é caracterizada como uma ação resultante da influência de múltiplos atores ocupantes de postos estatais e aqueles externos ao Estado. Alguns estudos sobre participação social privilegiaram o enfoque sobre os dirigentes estatais (DANIEL, 1988; 1999; GOMIDE, 2003). Esse aspecto levou ao destaque da categoria “vontade política”, dentre outras, como determinante da ação estatal para com a participação social (WAMPLER; AVRITZER, 2004; AVRITZER, 2008; SOUZA, 2013).

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[...] o sucesso dos processos participativos está relacionado não ao desenho institucional e sim à maneira como se articulam desenho institucional, organização da sociedade civil e vontade política de implementar desenhos participativos (AVRITZER, 2008, p. 47)

Souza (2013), por outro lado, demonstra que essa categoria “vontade política” é vaga para compreender o espraiamento do processo de participação no contexto do Estado. Segundo a autora, faltam indicações sobre a organização para fazer funcionar o processo participativo, mas, sobretudo fazer o Estado se movimentar a partir daquelas discussões e decisões tomadas pelas instâncias de participação. Ou seja, a vontade política pode determinar a pré-disposição estatal para a participação social, mas como categoria não dá conta da efetividade das instâncias participativas. Além disso, a categoria não consegue também o envolvimento dos técnicos estatais no processo de tomada de decisão, pois trata esse ato como uma iniciativa de mandatários, ignorando os meandros do processo de tomada de decisão. A tomada de decisão pode de fato iniciar com uma vontade governamental, mas passa necessariamente por instâncias técnicas de formulação de políticas públicas e nessas instâncias envolve técnicos estatais e atores sociais que passam a ocupar o Estado. Pires (2014, p. 191) auxilia nessa compreensão: Uma possibilidade analítica potencialmente frutífera se abre ao buscarmos enxergar os processos participativos a partir do olhar dos atores estatais. O debate acadêmico sobre instituições participativas no Brasil e internacionalmente tem sido marcado muito mais pelas perspectivas societalassociativa e institucional do que por análises que privilegiem a compreensão da atuação de atores estatais (lideranças políticas e burocratas) e suas percepções sobre os sentidos, funções e usos da ‘participação social.

Portanto, ainda faltam investigações sobre a convivência entre a burocracia estatal e a linguagem da participação. O conceito de Comunidade de Política também destaca essa relação dentro do processo de formulação da política pública, pois entende esse processo como uma ação que não está restrita aos dirigentes governamentais, muito menos aos atores sociais que participam da Comunidade, mas enxerga outros técnicos e servidores estatais nessas interfaces para a formulação da política pública. Para a formulação de políticas é necessário algum nível de cooperação, que não elimina todo o conflito, mas que permite negociar a partir de pontos de consensos entre os formuladores. Dessa forma, o objetivo central e caracterizador do espaço da Comunidade é a negociação em torno do processo de formulação de políticas.

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O conceito de Comunidade de Política é entendido como espaço para a negociação no momento da formulação das políticas públicas que contém múltiplas organizações do Governo Federal, organizações não-governamentais executoras de políticas públicas, organizações que participam do Conselho e de outras instâncias. Assim, a Comunidade de Política, na concepção dessa pesquisa, tem como atores os agentes ocupantes de cargos no governo e outros atores, inclusive os não-governamentais, que têm assento nos espaços decisórios estatais e estão diretamente envolvidos no processo decisório de formulação de políticas públicas. Portanto, a Comunidade de Política movimenta o Estado nas ações das políticas públicas para a criança e o adolescente, e faz isso em resposta aos movimentos internos da própria estrutura estatal, aos movimentos da sociedade ou em resposta às pressões do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Os três temas debatidos anteriormente: 1) a ampliação das fronteiras estatais relacionadas com formulação/implementação das políticas públicas; 2) o caráter diferenciado dos atores sociais quando ocupam a estrutura estatal; e 3) a convivência entre a burocracia estatal e atores sociais no processo de tomada de decisão, combinadamente, trazem um dilema a partir de sua coexistência, pois com a entrada de novos atores e das organizações nãogovernamentais espera-se do Estado compartilhamento do poder de decidir. Todavia, para promover ações de garantia de direitos e prestação de serviço essas organizações podem estar vinculadas contratualmente com outras organizações governamentais. Assim, as mesmas organizações da sociedade civil podem estar tanto no papel de decisores quanto de executoras da política pública. Mais do que isso, essas organizações podem decidir sobre as diretrizes gerais da política pública e implementar as políticas em estados e municípios. A compreensão dessa relação de organizações sociais no espaço do Estado vem sendo estudada pelos denominados interesses neocorporativos. Côrtes (2015) aponta que essas organizações no interior do Estado conseguem impactar em um processo multiorganizacional no momento da formulação da política. Pode-se acrescer, ainda, que o que viabiliza a participação no processo decisório é a proximidade dessas organizações intermediárias neocorporativas aos membros políticos do núcleo central de gestão. Se, por um lado, criam-se canais de influência societal sobre os decisores governamentais, por outro, estes podem comprometer representantes de organizações societais com a implementação de medidas decididas nesses fóruns. (CÔRTES, 2015, p. 131)

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O risco nesse processo é tornar essas organizações herméticas em seus interesses, com grande influência do passado institucional das políticas e deixar os Conselhos com pouca abertura para a entrada de novos atores representantes de outras parcelas da sociedade que ainda não são participantes. O conceito de Comunidade de Política não é uma novidade nos estudos sobre a participação social (CORTES, 2002, 2015; CUNHA, 2009; WAMPLER, 2010), ou mesmo sobre a política pública (KINGDON, 2003; MARQUES, 2010). Esses autores, assim como é feito nesta tese, buscavam compreender o espaço ampliado que perpassava as fronteiras estatais-privadas como influenciador no momento da formulação da política pública. A forma de tratamento do conceito pelos autores, em alguns casos, pode ocultar as limitações que o contexto estatal apresenta. Essas limitações são, em muitos casos, relacionadas com a vontade política, mas também aos interesses dos atores sociais que ocupam o Estado e as limitações técnicas que incidem sobre a decisão da política. Nos usos do conceito nos autores que trabalharam com a participação social, as políticas públicas e o contato com o Estado passam a ser o cenário de atuação para atores sociais mobilizados. Por conta dessa abordagem, esses autores se aproximam da ideia de Campo conforme a compreende neste estudo, pois buscaram analisar como os movimentos da sociedade civil atuam para incidir no Estado e, sobretudo como esse espaço de interface sócio-estatal influencia na tomada de decisão. De outra forma, esses usos trazem alguns problemas. Segundo Lima (2012, p. 190) O conceito [de Comunidade de Política] é especialmente problemático porque legitima o distanciamento entre aqueles que se dizem representantes e aqueles que são vistos como representados, e também porque desconsidera as relações de poder existentes entre esses atores e os interesses defendidos por eles.

Segundo a autora, os conhecimentos diferenciados de cada ator geram um ranking dentro das comunidades de políticas podendo gerar exclusões em seu interior. A competência para atuar com um tema é dada pelo capital cultural dos atores na comunidade. Assim, “o uso do conceito de comunidades de políticas reduz a representação a uma relação entre pares e retorna à ideia de representação por afinidade” (LIMA, 2013, p. 192). Esse aspecto ressalta o reduzido número de atores políticos com capacidade de influência para impactar na estrutura de Estado. Portanto, na crítica da incorporação do conceito aponta-se um possível

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distanciamento entre os ocupantes dos assentos estatais e seus representados quando se trata das instituições participativas. Teixeira (2013) considera o termo Comunidade de Política como adequado para a compreensão desse espaço sócio-estatal ampliado de incidência na tomada de decisão do Estado, mas o expande na medida em que dá ênfase às trajetórias dos atores envolvidos como uma dimensão importante para a formação das comunidades de políticas, destacando o que ela chama de “múltiplas filiações”, a partir da análise de Mische (2008). As críticas de Lima (2013) e Teixeira (2013) parecem complementares e apontam caminhos para opções no uso do conceito. Conforme apontado, Lima (2013) cita o risco da homogeneidade no uso dos conceitos pelos autores da participação. Além disso, o aspecto principal da crítica de Lima (2013) aponta o risco de desconsiderar as relações de poder entre os atores e os interesses defendidos por eles. Trabalhar com um espaço integrador entre sociedade civil e Estado pautado por interesses comuns pode encaminhar uma lógica de homogeneização que pode ser oposta à compreensão pautada por heterogeneidades que formam tanto a sociedade quanto o Estado. A nossa opção por distinguir a Comunidade de Política do Campo permite enfatizar os trânsitos dos atores entre os espaços. Assim, e utilizando as críticas de Teixeira (2013), propõ-se que as trajetórias são marcantes e ligam os espaços, mas o fazem sob lógicas distintas, pois o objetivo do espaço do Campo é diferente do objetivo do espaço da Comunidade. Nos autores que lidam com a política pública o uso do conceito de Comunidade de Políticas tem relação com as diferentes influências (políticas, técnicas e econômicas) que incidem sobre a formulação de políticas. São duas vertentes centrais de análise do conceito, uma nascida de uma tradição estadunidense (KINGDON, 2003) e outra nacional (MARQUES, 2006). Em ambas, o relacionamento público-privado se dá pela admissão da influência privada no Estado e entende essa influência como canal para criação de ações públicas. Admitimos que não é possível tratar a relação público-privada sem deixar de levar isso em consideração. Por sua vez, os moldes desses relacionamentos devem ser distinguidos entre setores de políticas, já que os interesses envolvidos em políticas de infraestrutura, por exemplo, são bastante diferentes dos envolvidos nas políticas sociais e de direitos humanos. A teoria de Kingdon (2003) não questiona o uso do Estado por interesses privados. O autor compreende que essa dinâmica de disputa entre interesses privados gera o interesse público. Marques (2006) admite, por sua vez, que a ocupação de espaços é uma

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prerrogativa para viabilizar projetos privados e esse é um dos motivos de desvios do interesse público. Portanto, mais uma vez, vemos que o Estado é o foco maior dos interesses e o objetivo maior dos grupos. Mas a noção de constituição do interesse público é distinta na formação dos conceitos de Comunidade de Política para esses dois autores, pois enquanto o primeiro vê essa relação como virtuosa e construtora do interesse público, o outro a enxerga como fonte de desvios do interesse público para o privilégio dos negócios privados. Por mais que o Estado brasileiro tenha se aberto para a entrada de diferentes atores, a construção do interesse público ainda é um ponto que carece de referências adequadas à realidade brasileira. A simples soma dos diferentes interesses privados não permite a construção do público, já que os espaços de participação ainda são limitados e excludentes da representação de certas parcelas da sociedade, seja por afinidade ou por autorização. A ocupação dos espaços estatais também não traz automaticamente a constituição do interesse público, pois em alguns casos o aproveitamento do benefício é pautado pelo resultado privado. Nos momentos de formulação da política e diante da pressão do Campo de Defesa, essa forma de funcionamento privatista do Estado pode deixar de acontecer e, com isso, os benefícios podem passar a ser públicos. O Estado brasileiro passou por grandes alterações nas últimas décadas e, principalmente, após a Constituição Federal de 1988. Na medida em que novas institucionalidades foram conquistadas, a esfera do Estado foi ficando mais robusta, mesmo com o movimento de diminuição do Estado na década de 1990. Nessa pujança, o empenho dos atores sociais e não-governamentais por estar no Estado ou próximo a ele se ampliou, pois este continuou a ser um espaço para controle de recursos. Um ponto central trazido por esses autores (KINGDON, 2003; MARQUES, 2006) permanece para a análise de Comunidade de Política que aqui se desenvolve. Ele tem relação com a natureza da diferenciação dada pelo acesso ao Estado, já que a ocupação de postos estatais possibilita aos atores não-governamentais uma atuação voltada para seus interesses. Isso não significa que toda a ocupação dos postos estatais resulta em atendimento dos interesses privados. A dinâmica interna do Estado limita o número de postos a serem acessados pelos atores não-governamentais e, além disso, os mecanismos burocráticos de controle estatal oferecem filtragens para esse acesso. Assim, a Comunidade aparece como espaço de negociação que tem como palco as limitações burocráticas, e que ocorre a partir do jogo de disputas entre interesses.

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Dessa forma, não basta o Estado estar aberto para os novos participantes, ou os atores da sociedade civil entrarem e decidirem. É necessário também que a burocracia e corpo político do Estado (sociedade política) estejam orientados pela motivação para a mudança e a constante pressão do Campo de Defesa dos Direitos é parte essencial nesse processo. A Comunidade de Política convive com essas restrições e negocia a formulação da política pública nesse cenário. Se o processo de tomada de decisão ficasse restrito à Comunidade de Política se correria o risco de autorizar os representantes da sociedade civil nesses espaços a falar em nome dos seus representados e, com isso, usar esses postos decisórios em seu favor, pois poderiam não ter responsabilidade de prestar contas de suas ações. A existência permanente do Campo de Defesa dos Direito monitorando esses agentes sociais nos espaços decisórios evita esse problema e potencializa a mobilização da sociedade civil interessada na defesa dos direitos de crianças e adolescentes. 2.2.1. A formulação de políticas públicas, as interações socio-estatais, os Conselhos e a Comunidade de Política Pública para a Criança e o Adolescente Nesta tese o conceito de Comunidade de Política está associado às políticas públicas, pois, conforme já apontado, tem o objetivo de entender as ações do Estado ou o Estado em movimento (SOUZA, 2003). Ao dizer que o conceito visa às políticas públicas, aponta-se como foco a compreensão sobre as dinâmicas estatais da produção da política, centrando a análise nos momentos de construção democrática da política pública, que não está restrita à Comunidade, e nos efeitos desse processo para dentro do Estado. Essa escolha, conforme já apontado, não nega as interações sócio-estatais, mas busca optar por outro ângulo de análise na medida em que desvela interesses dos atores sociais que ocupam a estrutura do Estado, bem como as limitações técnicas da formulação das políticas públicas. Sem levar isso em consideração, as interações sócio-estatais como foco de análise pode apresentar limites nos estudos sobre a participação social e as políticas públicas. Em algumas vertentes de estudo, essas interações partem de um ângulo de análise com base na diluição dos contornos entre Estado, sociedade e mercado (KINGDON, 2003; MARQUES, 2010). Essa estratégia apresenta alguns riscos. Por exemplo, se adotado um referencial pluralista, as interações podem neutralizar os interesses envolvidos nesses processos, pois podem partir de um entendimento que os atores funcionam com peso e poder semelhantes, independente do espaço que ocupam – sociedade, mercado ou Estado.

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O Estado não pode ser considerado como um espaço com igual capacidade para o acesso dos diferentes grupos, pois isso desconsideraria a fluência dos canais políticos e partidários de acesso ao Estado, bem como o poder econômico de grandes corporações que podem mais facilmente comprar apoios estatais. Além disso, esse uso pode desconsiderar também o papel e as funções assumidas pelo Estado em países subdesenvolvidos e a importância dele enquanto ator social e econômico nesses contextos. A redução desses contornos sócio-estatais acarreta a diminuição da categoria conflito como parte do jogo de interesses em disputa que resultará na política pública. Nesse contexto, o Estado tende a ser visto como um ente homogêneo à espera do momento adequado (ou a janela de oportunidades) para proporcionar uma mudança na política pública. Ou seja, uma visão virtuosa de Estado que está sempre disposto a alterações positivas para atingir a melhor política pública (KINGDON, 2003). O Estado pode não ser um ente disposto às mudanças. Por vezes, a herança histórica herdada pelo Estado e a acomodação de interesses em seu interior, por exemplo, podem exercer pressão para que o Estado permaneça da forma como está configurado. A diluição dos contornos de sociedade e Estado pode também não alcançar o nível da formulação da política, ou o que estamos denominando como dinâmica interna do Estado. As formas de análises que não consideram as características intrínsecas do Estado não são novas na literatura sobre política pública no Brasil. Segundo Marques (2006, p. 16), no conjunto de trabalhos sobre o padrão brasileiro de produção de políticas estatais “raros foram os casos em que as dinâmicas internas ao Estado e associadas diretamente à constituição e ao processamento das políticas foram analisadas”. O resultado de toda essa trajetória é que o campo de estudos sobre o Estado no Brasil se encontra esgarçado entre uma produção ampla com preocupações teóricas e macrossociológicas e uma miríade de estudos de caso muito detalhados e específicos, oriundos em grande parte de áreas concretas de política. (MARQUES, 2006, p. 16)

Assim, a compreensão dessa dinâmica pode dar pistas sobre a forma de interação entre sociedade e Estado. Partindo dessas premissas críticas, o conceito de Comunidade de Política busca iluminar algumas dimensões sobre a produção da política pública, pois [...] o relacionamento Estado/sociedade é determinado pelas condições histórico-estruturais de desenvolvimento de uma dada formação social. Por sua vez, o plano de formulação de políticas públicas requer outras condições, que residem em um nível mais singular e são dadas pela organização

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sociopolítica específica onde se formula a política pública (LOUREIRO, 2006, p. 301).

Esses níveis de análise demonstram diferenciações para as investigações das políticas públicas e das relações sócio-estatais. O primeiro nível, denominado como relacionamento Estado/sociedade, é fundamental para compreender as ideias existentes em uma sociedade demarcada pelas condições histórico-estruturais de formação de cada política pública. No segundo nível, por sua vez, o recorte desce ao nível do funcionamento do Estado. Esses níveis compõem o cenário para a “Democraticidade do Estado” (DAGNINO et al. 2006), pois compreendem o grau que os componentes do Estado (leis, serviços, transparência, etc.) promovem a cidadania. O conceito de Comunidade de Política, conforme o utilizado, desde que voltado para uma maior atenção à dinâmica interna do Estado, pode auxiliar na análise sobre o Estado em ação e suas características. Entretanto, ele pode principalmente buscar construir pontes entre uma análise de nível macro, relacionado com a formação histórico-estrutural da área de política, e outras, que realizam a ligação com a forma de funcionamento do Estado no contexto dos casos analisados. O conceito analisa fundamentalmente os movimentos da produção da política no interior do Estado relacionados com a estrutura de governança das políticas públicas para a criança e o adolescente e da qual participam atores societais. Assim, o conceito permite analisar os arranjos necessários para a tomada de decisão, compreendida como parte do processo da política pública. Nesse sentido, o Estado é um ente heterogêneo marcado por diferentes interesses das agências, organizações e atores que circulam em torno do seu espaço. Gomide e Pires (2014) apontam que esses arranjos interinstitucionais dotam o Estado de capacidade de implementação técnico-administrativa e política. Essa noção, no contexto dessa tese, busca compreender o espaço de decisão sobre a formulação das políticas públicas, bem como incorporar as influências vindas dos atores implementadores e reconhecer o papel assumido por atores não-governamentais que passaram a assumir posições nas instâncias de formulação e implementação das políticas. Gomide e Pires (2014, p. 374) apontam que a participação social “exerce papel importante na promoção de inovações ao longo da implementação de programas e projetos”. Os Conselhos dos Direitos de Criança e Adolescentes têm papel fundamental nesse contexto. Em todos os níveis federativos, eles têm por competência deliberar sobre a alocação dos recursos do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Os Conselhos

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deliberam também sobre as organizações aptas para atuar com o tema das políticas públicas para a criança. Em muitos casos, essas organizações executam uma parte da política pública de atenção à criança, principalmente aquelas de proteção de direitos. As políticas de promoção de direitos, por sua vez, estão alocadas nos órgãos de políticas sociais do governo (educação, saúde, cultura, etc.) e os Conselhos acabam tendo pouco poder de deliberação sobre elas. As organizações não-governamentais passaram a assumir funções de execução de políticas públicas, inclusive com recursos orçamentários estatais, aspecto ainda mais fomentado durante a hegemonia neoliberal. Além disso, essa hegemonia criou espaço também para a própria ampliação do número de organizações não-governamentais aptas para prestar serviços. Se, por um lado, essa ampliação criou capacidade institucional na sociedade civil, por outro, aumentou a dependência dessas organizações dos recursos advindos do Estado. Juntamente com a função de execução de serviços públicos, coube também às organizações não-governamentais, a partir dos Conselhos dos Direitos, assumirem papel enquanto decisores e formuladores da política pública. Entretanto, existe uma contradição entre a dimensão política da deliberação e a dimensão pragmática para as organizações participantes. Ou seja, os espaços participativos pressupõem uma maior abertura política da decisão do Estado, mas os próprios participantes, no momento que adentram esse espaço e assumem funções públicas decisórias, podem preferir métodos mais autônomos em defesa dos seus próprios interesses. Mesmo com essa preferência, um dos efeitos positivos da abertura do Estado para a participação foi possibilitar uma maior transparência do processo de tomada de decisão. Assim, a construção democrática, tangenciada por essa ideia de transparência, se dá nos Conselhos de Políticas Públicas como um espaço de tensão entre os interesses particulares e o interesse público. O dia a dia do Conselho pode minimizar essa relação de tensão diante da forma difusa como as decisões são tomadas. Contudo, nos momentos de formulação de políticas essas questões ou contradições ganham maior ênfase e, com isso, é possível compreender os impactos da convivência entre interesse público e o privado. Os Conselhos de Políticas Públicas são estruturas usuais para essa participação e ganharam centralidade na discussão feita pelos pesquisadores da participação social, pois foram as instâncias criadas para serem esses canais e introduzir as demandas sociais no Estado. Os Conselhos foram compreendidos a partir do seu hibridismo, já que participavam da estrutura do Estado, mas tinham relação direta com a sociedade que atuava com aquelas políticas públicas. Restou, por sua vez, nessa forma de análise, uma tendência à bifurcação da

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interpretação sobre essas instâncias, pois ou elas eram compreendidas como estruturas de diálogo e deliberação, ou, por vezes, foram entendidas como espaços de representação de organizações da sociedade que passaram a ter uma função junto ao Estado (CÔRTES; GUGLIANO, 2010). Os atores sociais adentraram e ocuparam a estrutura do Estado como agentes que detêm função pública 48 e não têm empregos ou cargos públicos. São esses os atores representantes organizacionais que participam na tomada de decisão no Conselho ou em outras instâncias participativas para as quais são delegadas atribuições no momento da formulação (comissões, grupos de trabalho, comitês, etc.). Esse status gera uma diferenciação para nossa análise sobre esses atores, mesmo que eles não sejam os únicos decisores, pois garante uma maior capacidade de incidência sobre a política em relação aos atores que estão no Campo de Defesa. Portanto, a função pública cria um status diferenciado para as análises e permite trânsitos institucionais por parte de agentes da sociedade civil, uma vez que esses passam a negociar diretrizes políticas e ampliam a possibilidade de acesso aos recursos estatais. Com sua face voltada para a Comunidade de Política, o Conselho de Política Pública tem a função de captar os movimentos do âmbito da rede de implementação e de outros espaços de decisão sobre a política (comitês, fóruns, comissões, grupos de trabalho, etc.) para conseguir convergir com as ações necessárias para a formulação da política. O Conselho pode ser um espaço para criação de soluções sobre as políticas públicas, mas ele pode ser também ponto de convergência junto à Comunidade de Política para permitir captar as barganhas e negociações existentes no processo de formulação e coordenar o processo de formulação de forma mais democrática. O conceito de Comunidade de Política permite também compreender como convivem organizações estatais mais abertas para a participação social, com outras organizações que funcionam de maneira mais independente e insulada da relação com os atores sociais. Isso porque a formulação de políticas públicas é um processo multiorganizacional (MONTEIRO, 2007) e, portanto, não se pode acreditar que o Conselho, em sua função deliberativa, dá conta da complexidade que esse processo de formulação demanda. O Conselho estabelece uma conexão com as organizações dessa Comunidade e passa a ser um canal para as negociações sobre os conteúdos das políticas públicas. 48

O artigo 89 do ECA anuncia, por exemplo, que “a função de membro do conselho nacional e dos conselhos estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente é considerada de interesse público relevante e não será remunerada.”

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Diante desses limites, conforme apontados, considera-se que o conceito de Comunidade auxilia na análise sobre processos de reconhecimento de demandas sociais no interior do Estado, pois atores não-governamentais podem adentrar no espaço do Estado e influenciar nas políticas públicas. Estes o fazem como militantes de um movimento social relacionado com uma temática, mas podem também fazê-lo muito mais associados aos seus próprios interesses. Além disso, outras organizações governamentais também fazem parte da Comunidade de Política, que ganha um sentido de um arranjo institucional para a tomada de decisão. Os atores da Comunidade, no contexto das formulações analisadas, estão localizados em diferentes espaços organizacionais no interior do Estado como, por exemplo, no caso das políticas públicas para a criança e o adolescente, os Conselhos de Política Pública (Conanda e CNAS), Comitês (Comitê Nacional de Reordenamento de Abrigos49), Comissões (Comissão Inter-setorial para elaboração do Plano de Convivência, Comissão de Políticas Públicas e Medidas Socioeducativas do Conanda) e outras instâncias normatizadas (Secretaria de Direitos Humanos, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social, dentre outros) com função na formulação de políticas públicas. No momento da formulação de uma política pública, a Comunidade passa a buscar formas para o encontro de soluções para a execução da política pública. Ou seja, espaços decisórios que tem como finalidade convergir com consensos para alcançar um determinado produto/resultado (output) relacionado com a proposição ou as mudanças nas políticas públicas. A partir desse contexto, busca-se compreender os papéis assumidos pelo Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes – Conanda no contexto da Comunidade de Política, se analisar as funções assumidas por esse espaço frente às outras estruturas estatais (secretarias, ministérios, departamentos, comissões, etc.) na formulação das políticas públicas para a criança e o adolescente. 2.2.2. As institucionalidades estatais para a política para a criança e o adolescente e a Comunidade de Política Até o governo Fernando Collor as políticas para a criança e o adolescente contavam com uma institucionalidade específica para sua gestão, principalmente, aquelas

O Comitê̂ foi composto pelo DCA, SEAS, FONSEAS, CNAS, CONANDA, Colegiado do Fórum Nacional de Conselheiros Tutelares, RENIPAC, UNICEF e Fundação ORSA.

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voltadas ao enclausuramento. Era a época da Fundação Centro Brasileiro da Infância e Adolescência (FBCIA), que herdou as políticas da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (Funabem). Os primeiros anos do Conanda foram marcados pela disputa sobre a alocação de seu espaço institucional, se estaria a cargo da FBCIA, ou se estaria dentro do Ministério da Justiça. Por este motivo, as primeiras atas do Conselho vinham registradas como documento da FBCIA, conforme já citado. Com o fim da FBCIA, em 1995, já no governo FHC, suas funções foram atribuídas à Secretaria de Defesa dos Direitos da Cidadania do Ministério da Justiça, que posteriormente foi transformada em Secretaria de Direitos Humanos desse mesmo Ministério. O Ministério da Justiça é uma organização de suporte dentro do Governo Federal e com poucas atribuições de execução de programas e políticas. Por isso, a estruturação burocrática desse órgão é mais no sentido do apoio para algumas atividades finalísticas e com a execução própria de poucas funções. Essa realidade incide sobre a constituição da área das políticas públicas para a criança e o adolescente, pois são ações transversais que devem buscar diálogo com outras políticas e executar alguns programas sob sua direção. Nesse cenário institucional, a atuação dos atores não-governamentais ocupantes dos espaços estatais enfrentava poucas limitações institucionais até a configuração orçamentária e organizacional da área. Isso diferencia a formação da área das políticas públicas para criança e adolescente de outras políticas, em que as agências estatais e sua burocracia são mais bem delimitadas. A política para a criança e o adolescente, nesse cenário de pouca burocracia, passava a ser caracterizada como um balcão, utilizando a nomenclatura de Marques (2008), que dá um exemplo dessa situação. ... devido à situação de precariedade e falta de critérios técnicos para aplicação dos recursos, havia o risco de reduzir o DCA a uma espécie de “balcão federal de distribuição pulverizada de recursos” (Peppe, 2002, p. 11), que se buscou conter com as reformas promovidas em 1995 pelo governo Fernando Henrique Cardoso e depois, em 2000, com a introdução da gestão do PPA por programas.

Portanto, a institucionalização das políticas públicas passou por: (1) criação de um departamento específico para gerir as políticas – Departamento da Criança e Adolescente – DCA, criado em 1995 e até 2002, no Ministério da Justiça e (2) Plano Plurianual – PPA, que passou a coordenar o repasse de recursos do governo FHC, com predominância de preocupações econômicas e transferência de serviços públicos para a Comunidade Solidária. Com essa ação, a dinâmica interna do Estado passou a funcionar de uma maneira mais

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centrada nas políticas públicas de enclausuramento, e o espaço de formulação de política passava a destinar suas energias para o controle dessas políticas e a formulação de ações para o Poder Executivo. O Conanda passou a disputar espaço com a Comunidade Solidária que tinha uma atuação principalmente nas áreas estratégicas escolhidas pelo governo FHC: universalização da educação infantil e enfrentamento ao trabalho infantil. Ao mesmo tempo, parte considerável das atribuições da política de proteção de direitos de crianças e adolescentes estava alocada no Ministério da Previdência e Assistência Social. As políticas de Assistência Social ainda careciam de um sistema próprio e de um reconhecimento como políticas públicas, pois em muitos casos tramitavam como benefícios específicos e pontuais. Com a chegada do governo Lula essas políticas ganham um Ministério próprio (Ministério do Desenvolvimento Social) e um plano mais integrado (Plano Nacional de Assistência Social – PNAS), em 2004. Esse ministério tinha função central no projeto político do governo Lula e, portanto, concentrava poder e a execução de muitos programas, principalmente, o Programa Bolsa Família. Além disso, passava a ter burocracia estatal, recursos financeiros e materiais dando maior centralidade à política social (BICHIR, 2015). O governo Lula alterou também a configuração do tema da criança e do adolescente, pois este passou a ser uma pasta dentro da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). No princípio, essa Secretaria era uma pasta dentro da Presidência da República, mas posteriormente esse status foi alterado, passando ao mesmo nível de outros ministérios. Na SEDH, o tema da criança e do adolescente passou a ser coordenado pela Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SPDCA). 50 Essa subsecretaria passou a se organizar em diretorias relacionadas com a temática das medidas socioeducativas e com a questão dos abrigos. Esse histórico ajuda a compreender parte das dinâmicas internas em relação às políticas públicas para criança e adolescente. Esse cenário somado à permeabilidade da decisão do Estado por atores sociais faz dessas políticas públicas um universo desafiador para compreender as interações sócio-estatais, pois o acesso ao Estado passava a ser um benefício disputado por parte dos atores, já que podiam tomar parte no balcão das políticas públicas. De outra forma, nos temas que não eram o foco do governo, o Conselho tinha maior autonomia para atuar e destinar recursos. Por isso, estar no Conselho era uma possibilidade de receber recursos e atuar com temas que não eram destinados à Comunidade Solidária. Dessa forma, sustentamos nossa opção por tratar o acesso ao Estado por parte dos atores de maneira 50

A SPDCA foi criada em janeiro de 2003, e regulamentada pelos Decretos n˚ 4.671, de 10/04/03, 5.174/04, 5.783/06, 6.188/07 e 6.220/07.

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diferente dos demais representados que estão fora dessa estrutura, principalmente quando estes passam a se mobilizar em torno da defesa dos direitos de crianças e adolescentes. O Conanda foi um órgão frágil no contexto da Comunidade de Política, principalmente ao longo da década 1990, quando disputava espaço com a Comunidade Solidária, tanto que em determinados momentos existiu a ameaça de encerrá-lo (MARQUES, 2008). Além disso, boa parte das deliberações do Conselho tinha uma visão setorial, faltando uma maior percepção de promoção de direitos e políticas transversais. Em relação ao tema do enclausuramento o Conselho foi um espaço institucional que permitiu persuadir (e convencer) os atores políticos relevantes de modo a obter sua cooperação (GURZA LAVALLE, 2012). Esses atores foram, principalmente, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministro do Desenvolvimento Social que aceitaram o protagonismo daquele Conselho e deixaram espaço para a deliberação. Essa aceitação ganhou maior espaço a partir da entrada do governo Lula com forte respeito às instâncias participativas e valorização da política social.

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Capítulo 3 Metodologia, modelo de análise e dados da pesquisa: múltiplos fluxos e a análise das formulações das políticas públicas O caminho metodológico escolhido para esta pesquisa adotou estratégias qualitativas, por serem mais adequadas às análises que demandam uma maior profundidade. Além disso, podem recorrer às formas de análises que partem de múltiplas variações causais para compreender a gênese dos fatos políticos investigados. Os dois casos aqui analisados se enquadram nessas perspectivas, pois buscou-se conhecê-los de maneira aprofundada, visando alcançar a arqueologia do Estado para compreender “o modo como as instituições estatais se formam em diferentes ciclos ou períodos políticos” (DAGNINO et al., 2006, p. 19). Investigou-se as relações entre Campo e Comunidade a partir da concepção de múltiplas variações causais para o fato político investigado. O “fato político” analisado foi as “dimensões assumidas pelo controle social na formulação de políticas públicas”. Múltiplas variações causais desse fenômeno foram encontradas no contexto da investigação e, por isso, lançou-se mão de uma esquematização de análise que permite visualizar essa questão. A estratégia de considerar seriamente os processos causais torna mais clara a necessidade de ir além das variáveis como concebidas na lógica quantitativa de pensar a inferência causal, mas, sim compreender que existe múltipla causação nos fenômenos políticos, que são altamente dependentes do contexto, da história, e, das escolhas contingenciais dos agentes (REZENDE, 2011, p. 25-26)

Portanto, partindo dessa contribuição, buscou-se demonstrar as variações do fato político exposto, alimentadas pelo contexto da política pública, sua história e as contingências dos agentes decisores. As questões centrais dessa pesquisa problematizam um duplo caráter. Do ponto de vista geral, questiona-se: como são mantidas as instituições 51 que garantiram conquistas sociais no Brasil pós-1988? Já em caráter específico, a pesquisa investiga o papel do Conselho como esse lócus institucional de encontro entre a “lógica da pressão” e a “lógica da 51

O conceito de instituições goza de um variado leque de usos na Ciência Política, mas aqui são tratadas como uma variável estruturante dos processos e comportamentos políticos (STEINMO, 2001)

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negociação” que predominam nos momentos de formulação da política no Campo e na Comunidade, e os seus efeitos no contexto do desenvolvimento das políticas públicas para a criança e o adolescente no nível federal. A opção metodológica em trabalhar com questões com essa perspectiva dual busca encontrar formas alternativas para as críticas aos métodos qualitativos no contexto da Ciência Política.52 Estas críticas, dentre outros pontos, dizem respeito à dificuldade de estudos de caso com baixo número de ocorrências inferirem conclusões generalizantes. Assim, se a pergunta geral amplia o horizonte de análise que, por vezes, os estudos de casos não alcançam, a perspectiva restrita condiciona a análise para níveis mais circunscritos. Igualmente, se os estudos com small n alcançam conclusões generalizantes mais frágeis, eles podem desenvolver análises muito mais aprofundadas sobre o tema em foco, como já apontamos. King et al. (1994), também denominados KKV, autores iniciais na discussão sobre estudos de casos na Ciência Política, apontam que para esses estudos de small n seria importante articular duas dimensões nos desenhos de pesquisa qualitativa: (1) a formulação do problema de pesquisa de forma que mobilize as teorias e (2) a articulação entre dados e as teorias. Para esses autores, a teoria é a meta a ser buscada. Ela é o norte para todo o desenho de pesquisa. Assim, problema de pesquisa e dados coletados servem para criar intersecções científicas com a teoria existente. Forma-se assim uma perspectiva triangular em que cada um desses elementos é um dos ângulos e o centro é orientado pelo fato político em análise. Portanto, para o encontro das variáveis citadas (dados coletados, questões de pesquisa e teoria) é importante que o desenho da pesquisa articule elementos relacionados ao tratamento de questões relevantes para a dimensão empírica, bem como esse desenho possa cientificamente explicar os fatos políticos em análise. Como forma de avançar em aspectos críticos aos estudos de casos dentro da ciência política, autores contemporâneos discutem também uma forma de ampliar a validação desses estudos (KING et al., 2004; SOTOMAYOR, 2008; REZENDE, 2011). Para eles, o aumento do número de observações seria um mecanismo para vencer essa limitação. Frente a isso, o presente estudo optou por fazer o rastreamento do processo como forma de realizar

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Diante dessa dificuldade King et al. (1994) propõem que estudos de casos com baixo número de ocorrências sejam evitados e seja aumentado o número de observações. King et al. (2004), em artigo posterior, apontam que observação e estudo de caso são conceitos distintos e fizeram disto resposta para as críticas que receberam. Observação, nesse contexto, se refere ao valor particular de uma variável e não aos estudos de caso em si.

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essa tarefa, bem como obter mais fotografias momentâneas sobre o andamento da política pública. Outro aspecto problemático em relação ao uso de estudos de casos nas ciências políticas tem relação com os critérios para a seleção dos casos investigados. King et al. (1994) apontavam que essas escolhas estão envoltas em parcialidade e intencionalidade por parte dos pesquisadores e não, necessariamente, são a seleção dos casos sui generis em relação ao aspecto analisado. Respondendo estas críticas, os pesquisadores contemporâneos chegaram a um relativo consenso sobre esse processo de escolha dos casos a serem estudados (KING et al., 2004; SOTOMAYOR, 2008; REZENDE, 2011). Para eles, a escolha deve ser feita com base no conhecimento prévio dos pesquisadores, tanto das teorias que contornam o problema a ser pesquisado, quanto aos relevos assumidos por esse problema. Dessa forma, cabe ao pesquisador levantar casos não usuais que podem servir para identificar novos mecanismos causais. Conforme Sotomayor (2008, p. 169, tradução livre)53 seria possível estabelecer, dessa forma, uma sequência no sentido de que os estudos reconheçam lacunas nas teorias existentes, identifiquem caminhos causais alternativos, detectem evidências novas e explicações reformuladas com previsões mais sólidas e inovadoras a partir de somente um estudo de caso com valores extremos.

A escolha dos casos analisados surgiu inicialmente com base no conhecimento prévio por parte do pesquisador do universo de pesquisa.54 O primeiro motivo de escolha dos casos tem relação com a antiguidade do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, que foi um dos primeiros espaços participativos a ser estruturado após a Constituição de 1988. A partir da análise dos processos decisórios realizados ao longo de sua história selecionou-se os casos não usuais. Esses casos eram emblemáticos, pois a Instância

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“reconocieron huecos en las teorías existentes, identificaron caminos causales alternos, detectaron evidencia nueva y reformularon explicaciones con predicciones más sólidas y novedosas a partir de un solo caso de estudio con valores extremos” 54 O pesquisador atua com a área da infância desde 2007, quando coordenou projetos de pesquisa sobre o tema e iniciou algumas ações com Conselhos dos Direitos na região do Grande ABC Paulista. Mais recentemente, no ano de 2010 e 2011, o autor foi pesquisador do Projeto “Arquitetura da Participação Contemporânea” do Instituto Pólis e INESC e pesquisou mais a fundo o Conanda. Nos anos de 2011 e 2012, o pesquisador, já cursando o doutorado, atuou também como Consultor (PNUD) para a Reforma Política do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda e, com isso, pôde acompanhar o cotidiano do Conselho. Em 2014, o pesquisador escreveu como consultor (UNESCO) o V Relatório brasileiro à Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas.

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Participativa conseguiu incidir nas instituições que estão relacionadas com a operacionalidade do Estado, ou o que estamos denominando de Comunidade de Política, e com interlocução com organizações e atores representativos da sociedade civil, Campo de Defesa. Ou seja, os casos foram processos que passaram pelo Conselho como um articulador e canal de diálogo junto à sociedade civil e impactaram no Poder Executivo e Legislativo. Portanto, a existência destes fatos permite uma primeira aproximação dessas situações analisadas com base na ideia de “caso com valores extremos e não usuais”. Para esses casos existiu um jogo de disputas e resistências no processo de formulação dessas políticas públicas, que passou pela Instância Participativa, bem como pela sociedade e pelos poderes do Estado. Portanto, em termos de efetividade das Instâncias Participativas é possível constatar uma articulação que persuadiu (e convenceu) os atores políticos relevantes de modo a obter uma cooperação (GURZA LAVALLE, 2012). De forma geral, as configurações de Estado e sociedade civil são elementos teóricos que compõem variações para o fato político. Nessa pesquisa, trabalhou-se com a ideia de Campo e Comunidade como recortes parciais dessas noções. Coerente com a necessidade de assentar a pesquisa em contribuições teóricas, não se está criando por meio desta distinção blocos homogêneos que serão tratados de maneira estática e hermética. Pelo contrário, parte-se da compreensão de que Campo e Comunidade são formados de maneira heterogênea e, portanto, existem em seu interior grupos/organizações com interesses diversos e que disputam a hegemonia. Cada um dos polos tem um objetivo distinto, ou operam sob determinadas lógicas, que os impulsionam nos momentos de formulação da política pública, criam unificações pontuais que conformam esses espaços, determinam as conformações internas dos espaços e condicionam as relações sócio-estatais. Para tanto, o Controle Social é outra variável para as causas do fato político analisado. Aqui considera-se a abertura (ou não) do Estado para uma maior intervenção e agência dos atores envolvidos no processo decisório, mas, sobretudo a capacidade desse Estado criar canais de relação efetivos com a sociedade. Como parte das funções do Controle Social, cabe às instâncias participativas formularem políticas públicas. À medida que a política pública avança e ganha institucionalidades, esses momentos de formulação são diminuídos cabendo aos Conselhos assumirem o papel de acompanhamento da implementação das políticas; portanto, mais uma vez, verifica-se a conexão entre formulação e implementação. Os jogos de cooperações e conflitos dos processos deliberativos estabelecem dimensões de disputas e resistências que são variações no fato político a ser analisado. Eles

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são cenários para a compreensão das intersecções científicas entre dados coletados, problemas de pesquisa e teoria. Os processos de disputas e resistências nunca deixam de existir, mas ficam diminuído sem períodos de estabilidade e manutenção das institucionalidades sem uma maior tensão na relação entre Estado e sociedade civil. Os momentos de conjunturas críticas podem questionar essa relativa harmonia. Eles podem nascer da incapacidade da adequada garantia de direitos pelas instituições existentes, pela necessidade de trazer para discussão novos direitos ainda não incorporados no marco jurídico ou pela investida contra direitos existentes. Esses momentos podem se desdobrar no chamado de Poder de Agenda (Agenda setting) que cria ambiente para a elevação das problemáticas para a ação público-institucional. Estabelece-se assim alguns elementos para o entendimento sobre o fato político analisado. Essas são noções básicas para o desenho mais integrado da pesquisa que busca alcançar inferências causais mais articuladas e aprofundadas a partir de suas possíveis variações. Rezende (2011, p. 25) aponta que essa inferência deve “[...] conferir ênfase decisiva ao problema de process tracing e das explicações por mecanismos causais para buscar a compreensão mais densa de como escolhas e instituições produzem os fenômenos sociais”. Essa ênfase decisiva ganha contornos aplicados aos casos analisados na medida em que eles nascem dentro de um contexto de controle social, portanto, como exercício democrático de um Estado mais aberto para as influências da sociedade civil. Os casos analisados valorizam também atores e estratégias utilizadas para a construção das narrativas dos agentes no rumo de uma decisão. Desse modo, para compreender o fato político de maneira científica, a descrição detalhada dos processos foi um procedimento adotado na construção das narrativas sobre os casos estudados e auxilia na construção de inferências causais (COLLIER, 2011). Por meio da descrição detalhada foi possível criar uma visão sobre situações ao longo do tempo. Essa é a aplicação do denominado Rastreamento de Processo (process tracing), 55 que é uma das possibilidades procedimentais de pesquisa qualitativa no contexto da Ciência Política. Neste caso, os processos rastreados foram os caminhos para a tomada de decisão acerca das políticas públicas em relação ao enclausuramento de crianças. Essas políticas passaram pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda e, 55

“Process tracing is a fundamental tool of qualitative analysis. In the framework presented here, it is defined as the systematic examination of diagnostic evidence selected and analyzed in light of research questions and hypotheses posed by the investigator” (COLLIER, 2011, p. 823).

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principalmente, sofreram pressão por parte do Campo para resistência em relação aos direitos do ECA, e negociação na Comunidade de Política, para elaborar uma política condizente com o marco legal em vigor. O conceito de process tracing (rastreamento do processo) corre o mesmo risco de regressão ao infinito (KING et al., 1994) que os críticos da path dependency também apontam sobre ela. Ou seja, até que ponto é necessário regredir para compreender a relação entre estabilidade e mudança? Diante disso, as alternativas propostas por pesquisadores qualitativos são os estudos comparados a partir de causal process observations (CPOs). Essa descrição não está relacionada com a mudança ou a manutenção institucional, mas com a tomada de boas fotos momentâneas. Em termos de críticas ao process tracing, outra diferenciação se faz necessária, pois nem toda a explanações do tipo process tracing produzem explicações de tipo causal, e vice-versa. Assim, o método de process tracing é um procedimento possível para a realização de pesquisas em ciência política, mas é necessário lançar mão de outros métodos esquemáticos (modelos) para permitir uma leitura sobre as histórias traçadas.

3.1. O Modelo dos Múltiplos Fluxos e a formulação das políticas públicas A combinação entre o método qualitativo, estudo de caso e process tracing montam o cenário para a realização da pesquisa. A partir disso, foi possível coletar dados sob uma determinada lógica e realizar a montagem teórico-empírica da pesquisa. Entretanto, faltava um modelo para leitura e análise dos dados coletados e, principalmente, que desse vazão às opções de respostas às críticas feitas sobre os elementos do cenário investigativo. Então, adotou-se um método esquemático de forma a privilegiar a compreensão com base na múltipla variação causal, pois enfatiza a simultaneidade dos fenômenos. Assim, para a leitura dos dados obtidos pelo rastreamento do processo seguiu-se o Modelo de Múltiplos Fluxos (Multiple Stream Model) de Kingdon (2003). Esse modelo auxilia no entendimento do processo de produção da agenda. Na concepção de Kingdon existem distinções entre o que ele chama da “produção da agenda” (agenda-setting) e “produção da política”. Apesar do processo decisório, denominado como produção da política, ser um campo de estudos para a Ciência Política, Kingdon (2006, p. 219) salienta que os “processos pré-decisórios permanecem território pouco explorado”. A agenda-setting cria uma primeira etapa para a compreensão sobre os processos de elaboração

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de políticas públicas. Ela advém de problemas sociais percebidos e momentos em que os formuladores de políticas se sentem pressionados a fazer algo. A agenda, como eu a entendo, é uma lista de temas ou problemas aos quais agentes governamentais e pessoas fora do governo, intimamente associadas com aqueles agentes, estão prestando uma séria atenção em um determinado momento56 (KINGDON, 2003, p. 03, Tradução livre).

No âmbito da teoria da política pública, a questão base para a etapa pré-decisória é: como e por que alguns problemas se tornam importantes para o governo? Essa pergunta tem levado estudiosos da Ciência Política a se debruçar sobre processos decisórios no contexto do Estado (LINDBLOM, 1991; WILDAVSKY, 1979; KINGDON, 2003). Ao realizar tal análise eles levam em conta muitos fatores como, por exemplo, instituições, democracia, políticas públicas, atores, administração pública, conteúdos, etc. Ao tratar desses temas, os pesquisadores se debruçam, sobretudo, sobre a atividade política da tomada de decisão questionando, dentre outros aspectos: (1) como as decisões são tomadas? e (2) no jogo das disputas, quem ganha e quem perde? Quando essas teorias privilegiam essas perguntas não deixam de olhar para o aparato organizacional que regula as hierarquias da tomada de decisão, mas, por outro lado, podem em alguma medida negligenciar a diversidade e a heterogeneidade dos movimentos da sociedade no exercício de pressão sobre a decisão. Além disso, a aplicação estrita do modelo de Kingdon pode também não levar em consideração as peculiaridades dos comportamentos políticos em Estado em desenvolvimento. No que diz respeito à ‘policy analysis' nos países em desenvolvimento, é preciso levar em consideração o fato de que o instrumento analíticoconceitual (deficitário) foi elaborado nos países industrializados e, portanto, é ajustado às particularidades das democracias mais consolidadas do Ocidente. Defendo a tese de que as peculiaridades socioeconômicas e políticas das sociedades em desenvolvimento não podem ser tratadas apenas como fatores específicos de ‘polity' e ‘politics', mas que é preciso uma adaptação do conjunto de instrumentos da análise de políticas públicas às condições peculiares das sociedades em desenvolvimento. (FREY, 2000, p. 215-216)

56

“Process tracing is a fundamental tool of qualitative analysis. In the framework presented here, it is defined as the systematic examination of diagnostic evidence selected and analyzed in light of research questions and hypotheses posed by the investigator” (COLLIER, 2011, p. 823). The agenda, as I conceive of it, is the list of subjects or problems to which governmental officials, and people outside of government closely associated with those officials, are paying some serious attention at any given time (KINGDON, 2003, p. 03)

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A agenda-setting é uma atividade de caráter conflituoso em que grupos mobilizados competem para demonstrar que suas bandeiras e reivindicações são aquelas que merecem maior atenção. É, portanto, um momento de grande competitividade e conflito, pois grupos passam a buscar o convencimento público de que os seus problemas são os mais importantes dentre um leque de possibilidades. Neste jogo é estabelecido uma relação de perda e ganho em que alguns grupos são atendidos e outros ignorados. Nesse contexto, Kingdon (2003) entende que atores dentro e fora da estrutura governamental podem influenciar esse poder de agenda. Portanto, para Kingdon a noção de influência é algo que perpassa e integra atores estatais e sociais em um espaço agregador, chamado de Comunidade de Política, mas passa a ser um conceito limitado na medida em que privilegia os atores que estão mais próximos da tomada de decisão ou o que ele denomina como empreendedores da política. Segundo Kingdon (2003, p. 179), esses empreendedores “estão dispostos a investir seus recursos – tempo, energia, reputação, dinheiro – para promover uma posição em troca da antecipação de ganhos futuros na forma de benefícios materiais, orientados a suas próprias metas ou metas solidárias”. (tradução livre) Capella (2010) analisa o papel do empreendedor como sendo o indivíduo (eventualmente, pequenos grupos de pessoas), cuja principal característica consiste na defesa de uma ideia. Mas, segundo a autora, o que demarca esse conceito é a ideia de que esses indivíduos e grupos têm uma expectativa de ganhos futuros e isso é a bateria que os move na defesa das mudanças nas políticas. Portanto, por mais que a Comunidade de Política em Kingdon possa ter uma compreensão alargada que perpassa a fronteira do Estado e sociedade, o destaque primordial é dado aos “empreendedores de políticas”, que passam a ter função de liderança e capacidade propositiva para a mudança nas políticas. Quem são os empreendedores de políticas nas políticas para a criança e o adolescente no Brasil? Quem são os especialistas que influenciam as políticas públicas de direitos humanos no contexto brasileiro contemporâneo? Até que ponto essas políticas públicas e a estrutura de Estado, por mais que tenham se tornado híbridas e robustas, estão abertas para a participação de diferentes e novos sujeitos e, portanto, sujeita à inserção de novas questões públicas? Quem são os atores que se chegam aos espaços estatais, inclusive os Conselhos de Políticas Públicas? Em que medida esses atores estão dispostos às mudanças nas políticas públicas?

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Na sociedade brasileira são poucos os atores societais que têm influência significativa para impactar na estrutura do Estado federal e no nível da formulação de ideias. Cria-se dessa forma a noção de uma Comunidade restrita com conhecimento, poder de influência e capacidade para propor inovações. Parte das respostas para essas questões tem interface com o debate sobre a representatividade dos atores sociais nos espaços participativos do Estado, mas compreendemos também que a própria maneira de funcionamento do Estado é elemento que coíbe o acesso de novos participantes e isso encontra as questões levantadas anteriormente por Frey (2000). A teoria de Kingdon serve como um espelho para a análise das formulações das políticas públicas estudadas. Portanto, está condicionado à realidade brasileira e, nesse sentido, não poderíamos pensar políticas públicas de direitos humanos sem levar em consideração a presença dos atores sociais nas estruturas de Estado, a tentativa de retrocessos em direitos e a pressão para a manutenção ou a mudança da política pública. Mas, sobretudo, as formulações dessas políticas não poderiam ser pensadas sem o reconhecimento de um caráter conflituoso entre agências estatais, os movimentos da sociedade civil, o passado histórico das institucionalidades existentes e a busca por consolidação de estruturas para operacionalização dessas políticas. A forma de abordagem de Kingdon (2003) considera o Estado e os seus filtros burocráticos como polos virtuosos prontos para receber as inovações positivas pensadas pelos decisores. Todavia, em certas situações, a Comunidade de Política pode ser fonte de bloqueio contra propostas opositoras aos seus interesses. Esse aspecto demonstra a importância de levar em conta os atores no jogo e os burocratas que podem, ou não, traduzir as demandas sociais em políticas públicas. Mas, sobretudo, essa abordagem abre espaço para reconhecer que pressões são exercidas por outros atores fora da estrutura decisória e são peças chave para o processo de mudança. Nos cenários das políticas públicas para a criança e o adolescente a ideia de um continuum de evolução pode ser quebrado por interesses de retrocesso em direitos, ou seja, a solução oferecida para criar uma janela de oportunidade pode ser uma restrição na perspectivas dos direitos já garantidos pelo marco legal. Por fim, a forma de abordagem de Kingdon (2003) pode também não considerar o peso do passado institucional (trajetória da política) que determina estruturas e corporativismos na atuação das políticas públicas. Portanto, esses pontos críticos da abordagem de Kingdon são motivos para não adotá-la na íntegra. Ela serve, de outra forma, como um esquema de sistematização dos dados

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coletados. Nesse sentido, para compreender a ponte entre a agenda-setting (produção de agenda) e a produção de política, Kingdon (2003) desenvolve a ideia de fluxos relativamente independentes que convergem para influenciar na tomada de decisão sobre o enfrentamento dos problemas públicos. Segundo o autor, os fluxos são de três tipos: fluxo da política, fluxo da solução e fluxo dos problemas. Barbosa (2015, p. 3-4) traduz o andamento desses fluxos: Segundo as proposições explicativas de Kingdon, sempre que uma determinada questão for percebida enquanto um problema pelos decisores duma arena estatal afim, e houver na comunidade de especialistas da temática a que esta questão está relacionada uma solução com significativo apoio, e esta solução ou o problema tiver um ator com condições e que utilize seus recursos para promovê-la, e tal solução for considerada viável politicamente pelos decisores, é de se esperar que ocorra uma mudança na agenda decisória dessa arena estatal e uma mudança na política pública referente a essa temática.

Assim, o Modelo de Fluxos Múltiplos não explica necessariamente a mudança da política, mas compreende como a chegada de um determinado problema, somado aos outros fatores (políticos e em termos de soluções), gera uma sequência até a formulação da política (BARBOSA, 2015). Ou seja, o modelo não discute os porquês das escolhas na direção “A” ou “B”, mas compreende como ocorre o processo de definição para que uma determinada situação seja enfrentada. Espelhados no Multiple Stream Model procura-se explicar as imbricações que provocaram ambiente para as mudanças nas políticas para a criança e o adolescente com temática central na questão do enclausuramento. Conforme argumenta-se, essa questão do enclausuramento é o ponto a ser enfrentado pela existência de políticas sociais e de proteção à família. Então, efetivar direitos fundamentais, aspecto buscado nas duas resoluções estudadas, seria

uma

contrapartida

para

evitar

o

enclausuramento

ou

mesmo

chegar

à

desinstitucionalização, que foi a base da discussão sobre o ECA. O coupling (acoplamento) dos três fluxos ocorreu a partir de eventos e o Conanda foi um espaço fundamental para a mobilização das forças para alterar a política no momento adequado. A intensidade e a amplitude do debate social gerado deram maior escopo democrático ao processo e, consequentemente, gerou condições para a mudança na política. Esse fator, junto com a entrada do governo Lula com um projeto democrático com intervenções e prioridades nas políticas sociais, foi terreno propício para as mudanças que vinham surgindo no cenário das políticas públicas.

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O modelo aplicado aos casos analisados busca, a partir dos dados trazidos da empiria e do rastreamento do processo, compreender os efeitos da pressão da sociedade e a cooperação necessária para a formulação das políticas públicas.

3.2. As fontes e a coleta de dados Os processos decisórios foram analisados em contexto e temporalidade mais ampliados. Entretanto, evitando as críticas de regressão infinita, feitas sobre a path dependency e sobre o process tracing (REZENDE, 2011), a década de 1980 foi tomada como um primeiro momento para pequenas fotografias momentâneas. Foi naquela década que ocorreu a formação do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes e que impactou definitivamente nas formas das relações entre sociedade civil e Estado nessa policy area. A partir de lá e nas décadas seguintes descreve-se o desenvolvimento das relações entre Campo de Defesa e Comunidade de Políticas no contexto do Controle Social para a formulação da política pública para a criança e o adolescente. A década de 1990 inicia com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com essa institucionalidade abre-se também a possibilidade de uma path dependency a partir dessa Lei. Já quanto à temática pertinente a essa pesquisa, ou seja, o enclausuramento, e trazendo a Instância de controle social para a análise, começa a existir uma diferença nos processos de discussão sobre a forma como foi tratado o assunto do ato infracional e do abrigamento. Ou seja, se a década de 1980 foi um momento de relativa unificação do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes contra o enclausuramento, a década de 1990, por sua vez, começou a dar demonstrações da diversidade no interior do Campo. Ao mesmo tempo, nessa década, a Comunidade de Políticas passou a ser norteada pelos princípios neoliberais com um tipo de intervenção diferenciada sobre a questão social (MONTAÑO, 2002; BARBOSA, 2003; DAGNINO et al., 2006). Conforme apontado, o surgimento das duas temáticas teve temporalidades bastante distintas, apesar de serem enfrentadas simultaneamente no início dos anos 2000. O primeiro caso estudado tem como fato inicial a proposta de redação do primeiro Projeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas, em 1997, solicitada ao Desembargador por Santa Catarina, Dr. Amaral que na época era Conselheiro Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente pela Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e

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Juventude – ABMP. A partir desse evento, as fotos momentâneas auxiliam no rastreamento do processo até o ano de 2006, data da assinatura da Resolução sobre o Sistema Nacional Socioeducativo. Quanto ao Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, seu início remete ao princípio do ano de 2001, quando da realização da Caravana da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que visitou abrigos pelo Brasil. Para o rastreamento dos casos analisados, além de pesquisas sobre o tema da criança e adolescente, utilizou-se as atas das assembleias do Conanda,57 que são referências oficiais para compreender as questões e como elas aparecem ou desaparecem do debate. Todas as atas do Conselho foram lidas e os trechos que tratavam sobre o tema dos abrigos ou da medida socioeducativa foram destacados de forma a permitir catalogar os sentidos daquelas afirmações e os atores responsáveis pelo posicionamento. Para fazer o rastreamento do processo decisório utilizou-se também documentos oficiais do Conanda (Planos, documento base para consulta pública, memórias, etc.) e entrevistas aprofundadas com atores-chaves no processo. Quanto aos documentos, ocorreu o acesso a uns poucos documentos preparatórios para construção das deliberações finais e as próprias deliberações em foco (Sinase e PNCFC). A precariedade da memória desse processo foi marcante, assim como acontece em outros setores da Administração Pública no Brasil. O próprio Conanda não tem em seus registros memórias da discussão do processo. Os documentos foram conseguidos pelos entrevistados que registraram os momentos da discussão e mantinham parte dessa documentação. Alguns documentos produzidos no âmbito da sociedade civil ajudam a compreender os discursos do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente frente às ameaças em relação aos direitos conquistados com o ECA. São, por exemplo, avaliações feitas por organizações da sociedade civil sobre as políticas para a criança e o adolescente, cartas resultantes de eventos de mobilização da sociedade civil e pesquisas em sites de organizações não-governamentais que estiveram envolvidas naqueles momentos. Diante da limitação de acessar os documentos, optou-se pela utilização das entrevistas como forma de reconstruir a lógica do processo, algo que também tem seus limites, tendo em vista que já são passados quase 10 (dez) anos da discussão e a memória dos sujeitos já não é mais tão presente. Portanto, a tentativa foi ampliar o número de fontes de

57

Obteve-se 184 atas das assembleias do Conanda. Nem todas as assembleias realizadas contaram com atas, pois existiram períodos com problemas operacionais na estrutura do Conselho.

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dados, para tentar suprir ao máximo essas limitações encontradas e ter maior rigor do ponto de vista dos processos rastreados. As entrevistas ocorreram em dois momentos distintos. Em 2011, de forma exploratória,

foram

entrevistados

9

(nove)

conselheiros,

governamentais

e

não-

governamentais da gestão de 2004 a 2006, como forma de compreender o processo de debate do Conselho nos anos finais de elaboração das duas resoluções estudadas. Essas entrevistas foram realizadas no contexto do Projeto de pesquisa “Arquitetura da Participação Social no Brasil Contemporâneo” (POLIS; INESC, 2011). O roteiro da entrevista buscava compreender dimensões relacionadas com a representação dos conselheiros junto à sociedade civil e ao governo, a interface entre conselhos e políticas públicas e o conflito e pactuação no universo do Conselho. Para uma análise mais aprofundada sobre o andamento dos casos analisados, novas entrevistas foram realizadas em 2014, com 3 (três) desses primeiros entrevistados na primeira fase da pesquisa. Além destes re-entrevistados, novas entrevistas em profundidade foram realizadas com 6 (seis) novos entrevistados e participantes de momentos decisivos do processo de discussão sobre as resoluções. Ao todo foram 15 entrevistados (ver Anexo 1 – Entrevistados) que assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, concordando com o uso dos seus depoimentos para a presente pesquisa, seguindo os cuidados éticos nas pesquisas com seres humanos. Dois materiais apresentam conteúdos e memórias do processo da construção do Sinase. O primeiro é a tese de doutorado de Marques (2008) que acompanhou o processo de discussão do Sinase como técnico da Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH e coordenador do Conanda (1998 – 2002). Em sua tese, além do detalhe do andamento da formulação da política, consta também uma série de entrevistas com sujeitos centrais dentro do governo federal e alguns representantes da sociedade civil que estavam no Conselho. Alguns trechos dessas entrevistas serão utilizados nesta tese como fontes para a descrição do andamento do processo. Por fim, como fonte de dados, também há referência à dissertação de Mestrado de Silva (2009), que foi conselheiro do Conanda (1998 – 2006) e o primeiro presidente do Conanda representante da Sociedade Civil (Gestão 2000-2001).

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Capítulo 4 O processo decisório sobre as políticas de enclausuramento: pressão social e negociação para a tomada de decisão As deliberações do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, aqui estudadas, são exemplos para refletir sobre disputas e resistências na Construção Democrática de Políticas Públicas. Ambas nasceram de demandas sociais já consolidadas em um Campo de Defesa, principalmente aquelas relacionadas com a proteção da criança em seu ambiente familiar e resultaram, a partir da busca por reconhecimento de certas violações de direitos, na formulação das políticas públicas para grupos desprovidos de uma política pública adequada no contexto pós-ECA. As duas temáticas foram desenvolvidas a partir da articulação de atores qualificados, componentes da Comunidade de Políticas, que incidiram e se infiltraram na esfera decisória e, com isso, a partir de um longo processo de produção de política, conseguiram impactar nas políticas públicas e alterar o marco legal dessa área (Estatuto da Criança e do Adolescente). Contaram, por sua vez, com uma primordial pressão exercida pelo Campo de Defesa que a partir de sua mobilização incidiu sobre os atores decisores da política, alterando os rumos das políticas formuladas. Esses processos foram motivados por formações diferenciadas no âmbito da Comunidade de Política e do Campo relacionadas com cada uma das resoluções em questão. Entretanto, o que mais as diferenciam, não ocorre no contexto da Comunidade, mas sim, em como elas foram difundidas socialmente, especialmente, no Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Ou seja, foi o formato da pressão social, exercida pelo Campo, que diferenciou os casos analisados. Esse formato tem relação com a forma como a política pública se configura (herança histórica), pois a mobilização da sociedade passa pela forma como o Estado se organiza em cada política. As configurações desse jogo entre Campo e Comunidade montam o cenário das construções democráticas da política pública federal, notadamente aquelas relacionadas às políticas sociais e de direitos humanos. Esse cenário ganha feições mais completas ao adicionar as instituições (por exemplo, leis, projetos de leis, conselho, comissões, grupos de trabalho, ministérios, etc.) que passam a ser uma “variável estruturante” dos processos e dos comportamentos (STEINMO, 2001). Essas instituições são tomadas nesse estudo, não apenas

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como contextos onde se desenvolvem conflitos políticos, cada uma à sua maneira, como reguladoras das disputas políticas e, portanto, constrangedoras da ação. O próprio espaço do Conselho, pensado institucionalmente, serviu também para essa regulação, pois a partir do envolvimento desse espaço na formulação das políticas passou-se também a dar mais abertura para a construção democrática da política pública. Os rastreamentos dos processos das discussões de cada uma das deliberações estudadas demonstram, sobretudo, relacionamentos entre temáticas (conteúdo), atores e instituições envolvidas. Essas conexões, além de montar cenários para a compreensão das disputas e das resistências na construção democrática das políticas públicas, lançam luzes sobre dimensões do controle social no contexto da formulação da política pública para a criança e o adolescente. Mais uma vez, porém, vale ressaltar que a negociação entre atores se dá em torno da elaboração das normativas construídas, mas isso não impediu a existência de conflitos encontrados nestes processos de construções. As deliberações estudadas abarcam, justamente, as duas medidas a serem usadas na ação dos profissionais que atuam com as políticas públicas para a criança e o adolescente. O ECA, em conformidade com a doutrina de proteção integral, está dividido em dois tipos de medidas para os casos em que os direitos de crianças e adolescentes passam a ser ameaçados/violados, são as chamadas medidas de proteção (a partir do Art. 101) e as medidas socioeducativas (a partir do Art. 103). Portanto, os conteúdos envolvidos em cada deliberação são de natureza estruturante para as políticas públicas para a criança e o adolescente, e isso motivou uma mobilização ainda maior dos atores do Campo e da Comunidade. Com intenção de retratar os processos apresenta-se uma descrição dos movimentos institucionais, das conformações dos atores e dos conteúdos envolvidos no processo de argumentação de maneira que, posteriormente, tal exposição traga elementos para a análise das relações entre Campo e Comunidade, estabelecidas a partir de cada temática, bem como delineia disputas e resistências na construção democrática de uma política pública de direitos humanos. 4.1. As medidas socioeducativas no processo decisório inter-organizacional As medidas socioeducativas aparecem no Estatuto da Criança e do Adolescente como o “Título III – Da prática do Ato Infracional” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mais especificamente em seu “Capítulo IV – Das medidas socioeducativas” que é dividido em sete sessões:

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Seção I – Disposições Gerais, Seção II – Da Advertência, Seção III – Da Obrigação de Reparar o Dano, Seção IV – Da Prestação de Serviço à Comunidade, Seção V – Da Liberdade Assistida, Seção VI – Do Regime de Semiliberdade e Seção VII – Da Internação. (BRASIL. Lei n˚ 8.069, de 13 de julho de 1990)

Essas são tipificações das medidas aplicadas ao adolescente que cometeu “conduta crime ou contravenção penal”, conforme especificado no artigo 103 do ECA. A partir dessa tipificação, as medidas socioeducativas são divididas entre aquelas de “meio fechado” e as de “meio aberto”. As denominadas medidas de meio aberto são divididas em “Prestação de Serviços à Comunidade – PSC” e “Liberdade Assistida – LA” (listadas na Seção II à Seção V do ECA). Nelas o adolescente infrator não permanece preso em determinada instituição, mas deve passar por um processo educativo, cumprindo atividades que tenham esse caráter. As medidas de meio fechado são divididas em “Semiliberdade” e “Internação” (Seção VI e VII). Essa diferenciação é dada a partir de uma escala entre as menos e as mais enclausuradoras. Cada uma dessas medidas demanda um nível de complexidade na prestação dos serviços públicos, mas todas partem da associação entre a aplicação da medida (processo educativo) sem seja retirado do adolescente infrator seus direitos fundamentais (educação, saúde, etc.). As discussões sobre o chamado Sistema Nacional Socioeducativo – Sinase nascem com esse desafio à frente, na medida em que tentam conciliar as condições para a aplicação da medida socioeducativa aos adolescentes com o adequado acesso aos demais direitos fundamentais. Esses aspectos passam a ser associados ainda a uma preocupação de uma política pública menos enclausuradora. Portanto, a ideia de desinstitucionalização está colocada como princípio nessas discussões, pois o Sinase, mesmo que tenha nascido diante das graves situações de violações de direitos de adolescentes enclausurados, ou daqueles que cumpriam medida de restrição de liberdade, busca pautar-se pela priorização das medidas de meio aberto. O Sinase foi aprovado pela Resolução n˚ 119 do Conanda, de 11 de dezembro de 2006. Segundo seu artigo 3˚: O Sinase é um conjunto ordenado de princípios, regras e critérios, de caráter jurídico, político, pedagógico, financeiro e administrativo, que envolve desde o processo de apuração de ato infracional até a execução de medidas socioeducativas. (BRASIL. Conanda, 2006)

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A resolução foi publicada no final do ano de 2006, porém as discussões sobre as questões relacionadas ao ato infracional, especialmente a criminalidade infanto-juvenil, eram temas permanentes no espaço do Conselho, e refletiam um processo muito mais antigo. Pressões por respostas efetivas para a criminalidade infanto-juvenil eram feitas sobre os atores políticos mobilizados no Campo, mas principalmente na Comunidade. Essas pressões alcançavam (e ainda alcançam) seu ápice contra as propostas de diminuição da idade penal, que apareciam como o remédio mais efetivo para enfrentar esse problema. 4.1.1. A decisão de enfrentar a questão O final dos anos 1990 marca o período de início das discussões sobre a necessidade de uma revisão do Estatuto da Criança e do Adolescente em relação às medidas socioeducativas. Foram dois principais fatores para abertura do processo de discussão. Primeiramente, as discussões nasciam das distorções geradas pelas heranças institucionais e marcadas, principalmente, pelo modelo Febem e as violações ocorridas naqueles ambientes de internação (torturas, espancamentos, más-condições de higiene, superlotação, etc.). Esse primeiro aspecto demarca uma característica dos conteúdos discutidos no Sinase, pois provocava uma relativa predominância das discussões em relação às medidas de meio fechado, e estava lá o foco dos problemas mais sérios. Soma-se a isso o fato de que aqueles eram os adolescentes que “ninguém queria” e, portanto, restava ao Estado assumir essa atribuição e responsabilidade. Talvez por esse motivo, essas políticas de enclausuramento tenham se concentrado na pasta de Direitos Humanos dentro do Governo Federal, algo que contradiz a transversalidade desta área, pois passa a obrigar a execução de programas governamentais. Ou seja, o executor da política federal de proteção de crianças e adolescentes passa também a ser o canal de denúncia sobre maus-tratos de seu público-alvo. Outra demanda fortalecida no contexto do surgimento do debate sobre o SINASE tinha relação com queixas apresentadas pelos atores do Sistema de Justiça (magistrados, promotores de Justiça e defensores públicos) que diziam que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não era auto-aplicável. Segundo um entrevistado conselheiro nãogovernamental e muito atuante na construção do Sinase, O Sinase tinha uma grande discussão que era a seguinte: o que está no Estatuto é auto-aplicável ou ele precisa de regulação? Eu até entendo que isso está claro, mas na prática, os participantes do Sistema de Justiça estão no lado de garantir o direito de crianças e adolescentes e insistiram muito conosco [do CONANDA] de que precisava regulamentar algumas coisas. Daí, eu acho que se a prática está demonstrando que aquele documento do

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Estatuto está sendo interpretado e aí sendo legalizado de outras maneiras, então vamos regular. Só que aí, nós teremos que o nosso objetivo era demarcar e retirar tudo o que era da política do atendimento do âmbito da justiça. E Juiz não é para intervir no formato, na maneira de se fazer o atendimento, né? A justiça é fiscal, a justiça também tem o seu papel dentro da medida socioeducativa, mas o gestor tem que ter autonomia, tem que poder fazer as coisas conforme é a sua proposta pedagógica seja aquela que norteia esse trabalho. (grifos nossos) (Entrevistado 6 – Ator NãoGovernamental)

Dois elementos podem ser ressaltados desse trecho. O primeiro tem relação com a desjuridicialização, com o limite entre o papel da Justiça e do Poder Executivo nas discussões que se iniciavam. Os conteúdos relacionados ao Sinase tinham uma relação muito forte com a aplicação da lei e, portanto, eram pautados por atores que estavam nesse papel. O segundo elemento tem relação com uma divisão entre os que formavam o Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente no momento de surgimento do debate sobre a questão pública das medidas socioeducativas. Segundo José Gregori, exsecretário nacional de direitos humanos, em entrevista para Marques (2008), existia uma demarcação entre aqueles que queriam alterar o ECA e os que achavam que ele por si bastava. Essa dicotomia estabeleceu uma divisão nos defensores do ECA. Cristalizou-se uma discussão ideológica de uma facção contra e de uma facção a favor que defendia, digamos assim, a intocabilidade do Estatuto. A gente queria exatamente medir os resultados efetivos que o Estatuto vinha produzindo para saber que ajustes tinham que ser feitos.. Não era o problema o que se pretende modificar no Estatuto, mas que estão querendo mexer no Estatuto (grifos nossos). (GREGORI apud MARQUES, 2008, p. 145)

Portanto, esse movimento, do qual nos aproximamos aqui com a ideia de disputas e resistências, se dá em um fluxo paradoxal de manutenção das conquistas em âmbito legal, com pouca abertura para questionar se aquele modelo legal proposto ainda era o adequado. Nesse contexto, não se aponta a necessidade de constantes alterações legais ou mesmo de mudanças de questões inegociáveis como, por exemplo, a idade penal, mas a abertura ao questionamento sobre a efetividade do instrumento legal criado ou, simplesmente, questionar o porquê da lei ainda não ter surtido as mudanças que eram desejadas no momento de sua formulação. As investidas por redução da maioridade penal propostas por deputados federais e senadores no Parlamento também apareciam na discussão sobre a necessidade da alteração da

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Constituição Federal e do ECA.58 Contra essas propostas, o debate se estabelecia entre o Poder Executivo e membros do Poder Legislativo e aparece como ameaças constantes. Em resumo, pode-se ver três grandes motivos para o início do debate do Sinase. O primeiro tinha como foco a criação de uma sistemática para o funcionamento das políticas públicas, vencendo a “herança maldita” do passado institucional do sistema Febem. Ela se alimentava da ideia de um direcionamento adequado de recursos humanos e financeiros para a implementação dos serviços socioeducativos de atendimento ao adolescente infrator. O segundo ocorria a partir da demanda de uma discussão mais voltada para a aplicação jurídica das medidas socioeducativas. A aplicação da lei pelo Sistema de Justiça e a implementação das políticas públicas foram conteúdos envolvidos nesse processo de discussão. Portanto, apareciam como remédio para a problemática da delinquência juvenil e eram alternativas para o enfrentamento das propostas de redução da idade penal. O terceiro tinha relação com a criação de alternativas para prolongar ou mesmo não enfrentar o debate sobre as propostas de redução da maioridade penal. Portanto, o Sinase aparecia como uma forma de remediar esse assunto, pois seria uma estratégia de apontar que algo estava sendo feito para enfrentar o tema da delinquência, já que o ECA não promoveu essa alteração. Conforme apontado, as medidas socioeducativas foram uma temática fonte de conflito desde o princípio do Conanda. Porém, sobre o Sinase, especificamente, o seu início pode ser demarcado em meados de 1997. Um entrevistado recupera o processo e o vincula a esse terceiro motivo citado. Lá atrás, quando o secretário de direitos humanos era o Dr. José Gregório, ele virou para o Conanda e disse: - Olha, não tem mais como nós barrarmos as propostas. Vai passar o rebaixamento da idade penal. Então, a gente tem que ter uma proposta, não dá para ficar só na defesa. E aí, ele encomendou um texto ao desembargador Amaral, que é de Santa Catarina, que foi um texto que serviu de início... (Entrevistado 6 – Ator NãoGovernamental)

Sobre este mesmo momento, outro entrevistado acrescenta: ... paralelo a isso você tinha um debate de redução da maioridade penal, é quando o José Gregori chama o grupo liderado pelo Amaral, desembargador Amaral, para elaborar a primeira minuta de uma lei de execução (Entrevistado 3 – Ator Não-Governamental)

58

A PEC n˚ 171/1993 propõem alterar o artigo 228 da Constituição Federal para reduzir a maioridade penal e sejam inimputáveis somente os menores de 16 anos. Ao longo da história dessa Proposta de Emenda Constitucional foram apensadas outras 37 PECs.

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A partir dessa conjuntura crítica gerada pelas ameaças dos Projetos de Lei de redução da idade penal, um grupo de trabalho foi montado com o objetivo de avaliar os serviços para a implementação das medidas socioeducativas, assim como propor melhorias para o atendimento aos adolescentes internados. Segundo Marques (2008, p. 144), eram membros do referido grupo: José Gregori, secretário nacional dos direitos humanos, que presidiu o grupo de trabalho, e pelos especialistas: Antônio Fernando do Amaral e Silva, Antônio Carlos Gomes da Costa, Alayde Sant’Anna, Césare de Florio la Rocca, Cenise Vicente, Geraldo Vieira Filho, Justina Iva de Araújo e Silva, Joacir Della Giustina, Maria Josefina Becker, Oscar Vilhena Vieira, Ricardo Balestreri e Wanderlino Nogueira Neto.

O grupo estava dividido entre alguns membros do Sistema de Justiça (magistrados e promotores de justiça) e outros educadores (diretores de escolas, educadores sociais, professores, etc.). Antônio Carlos Gomes da Costa, um dos membros do grupo, foi um importante personagem do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Ele foi técnico da Funabem e sua presença pode ter influenciado a presença dos outros educadores na formação do GT. Aqui se nota a divisão entre as áreas de conhecimento, jurídica e educativa, algo que demarcou a discussão do Sinase, bem como a própria constituição da área de política relacionada com o adolescente enclausurado. O grupo produziu subsídios (Brasil, 1998) e estes deram bases para o denominado Anteprojeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas.59 A partir dos subsídios do GT, esse Anteprojeto foi escrito pelo desembargador Amaral e Silva, conselheiro do Conanda e representante da sociedade civil pela Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Área da Infância e Adolescência – ABMP, na gestão de 1996-1997. O Anteprojeto, segundo sua apresentação, não alterava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas garantia “que aos adolescentes infratores não sejam atribuídas medidas mais gravosas do que as que, em idênticas circunstâncias, seriam impostas aos adultos pela Legislação Penal” (ABMP, s/d e disponível como anexo em SILVA, 2009).

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A íntegra do anteprojeto de lei pode ser encontrada disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5547- acesso em: 24 set. 2014.

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Essa proposta para um Projeto de Lei iniciou o debate que tensionou boa parte da formulação do Sinase, quando os atores da Comunidade de Política e do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes passaram a colocar em dúvida se estavam, ou não, iniciando um direito penal juvenil no Brasil.60 Outro entrevistado relembra esse momento ao citar que: Uma grande disputa foi nessa questão jurídica, nós estávamos introduzindo ou não o direito penal juvenil? E aí, a gente fez uma opção, enquanto Conanda, de dizer: Não, esse debate não é nosso. A gente precisa de um plano e de um documento que organize. Esse debate deve ser feito no judiciário. (Entrevistado 6 – Ator Não-Governamental)

Notadamente, a partir da chegada desse anteprojeto na arena pública de discussões, alguns atores do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes passaram a expressar posicionamentos contrários ao teor da proposta. Dentre os opositores destaca-se principalmente a própria ABMP (Associação Brasileira de Magistrados Promotores de Justiça da Área da Infância e Adolescência), que passou a se organizar conjuntamente com o Instituto Ayrton Senna, Unicef, Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), Instituto Latino Americana das Nações Unidas (ILANUD), Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Encontra-se, dessa forma, uma situação paradoxal, pois o Desembargador redator da proposta era um representante da ABMP no Conselho e essa associação passa a se posicionar de maneira contrária ao seu representante. Aqui se percebe a desvinculação entre o Campo de Defesa, na figura dos representados, e os atores ocupantes de espaços estatais como representantes. A ABMP passava a encabeçar o debate por estar preocupada com a aplicação das medidas e o cumprimento da lei, ou seja, objetos de trabalho de seus associados. Com o anteprojeto de lei apresentado e tornado público, a ABMP passou a promover um debate com seus associados sobre os impactos da lei proposta. Esse debate tomou o ano de 1998 e parte de 1999, e após isso, como veremos, o Conanda passou a ser o espaço de convergência entre os posicionamentos a favor do anteprojeto de lei e os contrários, capitaneados principalmente pela ABMP.

60

O Promotor do Paraná, Dantom Silva, assina um documento em 3 de fevereiro de 1999 (disponível em: http://www2.mp.pr.gov.br/cpca/telas/ca_igualdade_20_2_1_2_2.php, acesso em: 6 dez. 2014) que apresenta seus posicionamentos contra a ideia de um direito penal juvenil no país e os debates que ocorriam no contexto da Comunidade de Política e atores do Judiciário.

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Outra organização que se projetou com a chegada da proposta de lei na arena de discussão foi o Fonacriad (Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente). Esse Fórum Nacional trazia para a Comunidade de Políticas demandas relacionadas com a implementação das medidas e sentia em suas ações o peso do passado institucional e do modelo Febem nos estados. Esses atores estavam entre a invisibilidade de suas ações, gerada pela omissão do Estado em executar o enclausuramento de adolescentes, e as reivindicações sociais, vindas do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que pressionava por outras formas de cuidado ao adolescente infrator. Ou seja, eram atores que faziam parte da Comunidade de Política, pois estavam na função de gestores de unidades socioeducativas ou dirigentes estaduais dessas políticas, mas, ao mesmo tempo, exerciam um papel ativista para buscar vencer as heranças do modelo Febem. Portanto, a elaboração e a publicização do Anteprojeto de Lei passou a provocar reações contrárias ao seu texto no âmbito do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, marcado, principalmente, pela atuação da ABMP, e na Comunidade de Política, com discussões entre o nível federal e os dirigentes estaduais das políticas públicas para criança e adolescente. O Anteprojeto nasceu no ano de 1997 e ficou até 1999 como ponto de debate. Faltava ao Poder Executivo uma ação mais efetiva para controlar a agenda pública em relação às medidas socioeducativas. Um entrevistado demonstra o longo processo de discussão realizado de maneira democrática e a dificuldade do comprometimento governamental na condução das mudanças das políticas públicas. Outra coisa que eu também posso te dar como exemplo, foram os seis anos gastos para elaborar o Sistema Nacional de Atendimento Nacional Socioeducativo (Sinase). Isso demorou seis anos por dois motivos, primeiro pelo próprio processo feito. Nós fizemos, com participação ampla das representações, encontros estaduais, encontros de todas as regiões do país, cada região, cada estado trazendo seus relatórios, suas propostas, para construir uma política pública para o Brasil inteiro e não substituir uma ou duas pessoas como já tinha sido tentado. Demorou também porque internamente, usando a burocracia como desculpa, o governo paralisava o processo, alegando que não tinha dinheiro, não posso pagar a sistematização e outras coisas (Entrevistado 6 – Ator Não-Governamental)

No princípio do ano de 1999, o Departamento de Criança do Ministério da Justiça passou a executar um papel mais estruturado na gestão das políticas públicas para a criança. Como uma dessas ações de estruturação, o financiamento dos projetos de organizações não-

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governamentais e governos subnacionais passou por alterações e isso gerou um impacto no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Conforme definido pelo Conselho (Ata da 57ª Assembleia Ordinária, 08 e 09/04/1999), os projetos passariam a seguir critérios padrões. Um entrevistado conselheiro não-governamental relata os dilemas relacionados ao financiamento de projetos que passaram pelo Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [...] eu coordenei a comissão de orçamento e finanças do fundo nacional nos dois anos que estive no CONANDA. Eu vi o que isso significa do ponto de vista do investimento público para a política da infância desse país. Eu vi o que isso significou inclusive na construção de mecanismos que dêem segurança à operacionalidade desse fundo e essa coisa toda. Eu vi o que isso significou na relação com o poder público nacional, com o governo central. Eu vi o que isso significou na relação com outros poderes públicos municipais e estaduais que buscam esse Fundo Nacional e essa relação necessariamente tinha que passar por mim enquanto coordenador da comissão pra tabular uma decisão e encaminhar pra o plenário do conselho pra que ele decidisse. Eu vi como a sociedade se relacionou com o Conselho justamente por olhar o Conselho apenas como banco de projetos e de financiamentos e não com a característica principal desse órgão que é a elaboração e deliberação de políticas publicas na área da infância, de coordenação da política publica na área da infância. (Entrevistado 10 – Ator Não-Governamental)

A mudança objetivava a passagem de uma lógica de “balcão”, conforme já abordado, ou banco de projetos, como citado pelo entrevistado, para outra mais estruturada e com critérios mais impessoais. A política de balcão se caracterizava pela inexistência de critérios públicos e estipulados para o repasse de recursos, que ocorria por relações personalistas. A temática da implementação das medidas socioeducativas era um exemplo dessas práticas. Por vezes, como cita um entrevistado conselheiro não-governamental: [...] e você na época tinha uma dicotomia muito louca porque às vezes o projeto era enviado ao Conanda, mas o Conanda não aprovava. Projeto de construção de unidade, por exemplo. Aí mandava para o Departamento da Criança e ele aprovava. Ou o contrário. Como que eu tenho dois órgãos que são vinculados ao governo federal e que recebem o mesmo projeto, um aprova e o outro não? Você precisava de critérios e você não tinha critérios... (Entrevista 4 – Ator Não-Governamental)

Para enfrentar essa situação, o Conanda passou a delegar os debates sobre aprovação e acompanhamento dos projetos ao Grupo de Trabalho Ato Infracional e Medidas Socioeducativas. Esse GT passou a ter uma identidade dúbia no contexto do Conanda, pois

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funcionava como um espaço fraco em termos de implementação das políticas e um espaço forte para denúncias sobre as más condições de atendimento para essa temática. Ou seja, o Conanda trouxe para dentro de sua estrutura, por meio desse GT, o problema e a solução para a “herança maldita” do peso institucional. Apesar disso, as discussões estavam muito mais pautadas pelos aspectos burocráticos da aprovação de projetos e alocação de recursos, do que em uma politização sobre a importância do enfrentamento da temática de forma ampla e modificadora. Nota-se, dessa forma, que o debate sobre as propostas de cunho administrativo-pedagógicas ainda não eram uma questão pública no espaço do Conselho e o tramite de discussão sobre a Proposta do Anteprojeto de Lei do Desembargador Amaral também ainda não encontrava grande ressonância no Conselho. Ou seja, os atores no Conselho ainda estavam mais voltados para a decisão sobre a aplicação do recurso e faltava um norte mais estruturado sobre os objetivos e critérios de uso desses recursos. Em relação ao debate sobre as medidas socioeducativas chegou-se ao final dos anos 1990 com a existência do Anteprojeto de lei, a criação de um Grupo de Trabalho no nível do Conselho e o princípio da mobilização de atores no Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente. Esse momento marcou o início da ampliação dos conteúdos dessa discussão e, principalmente, da repercussão dessa temática no Conselho Nacional. Segundo Marques (1998),61 no dia 2 de setembro de 1999, o Conanda realizou uma reunião com a participação de especialistas para debater o Anteprojeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas. Estavam presentes o Desembargador Antônio Fernando do Amaral e Silva, o Promotor Gercino Gerson, Procurador Olympio de Sá Sotto Maior e o Juiz João Batista Saraiva. Não existem registros mais detalhados em ata do Conselho62 sobre os resultados dessa reunião. Somente pôde ser encontrado o registro de um convite (Ata 63ª Assembleia do Conanda, 01/08/1999) feito aos conselheiros para que participassem do evento. Essa reunião foi o momento de convergência entre as propostas de alterações legais, que seriam provocadas pelo Anteprojeto de Lei, e alguns debates que ocorriam no interior do Conanda em relação às medidas socioeducativas, capitaneados principalmente dentro do GT sobre Medidas Socioeducativas. Portanto, a partir desse momento, o Conanda 61

O pesquisador, como já apontado, foi técnico do Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça, posteriormente da Secretaria de Direitos Humanos, e acompanhou todos os debates do processo de formulação do Sinase. 62 Isso demonstra, mais uma vez, a dificuldade de memória no setor público brasileiro e nessas instâncias participativas.

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passou a ser um espaço de debate entre os defensores do Anteprojeto de Lei e os atores que o questionavam. Nesse momento o debate sobre o anteprojeto saiu da esfera do Poder Executivo, representado pelo Departamento da Criança do Ministério da Justiça, e passou a encontrar no Conanda o espaço de debate em diálogo com os atores da Comunidade de Política e, principalmente, ampliando o canal de interlocução com o Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Na assembleia do Conselho, em 3 de novembro de 1999, o vice-presidente reconheceu o papel do Conselho nessa convergência e em relação a essas políticas. Segundo a ata: O Vice Presidente salientou que enquanto Conanda não poderia deixar de registrar que pela primeira vez um Projeto de Política Pública entrou pela porta do Conselho, o que considera de fundamental importância, ressaltou que o mesmo não ocorreu com o Anteprojeto de lei de execução das medidas socioeducativas, que entrou pela porta de trás e agora o Conselho é chamado à responsabilidade. (Grifos nossos) (65ª Assembleia do Conanda, 03/11/1999)

No interior do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes ganha destaque o 18˚ Congresso da ABMP,63 nos dias 14 a 17 de novembro de 1999, em Gramado (RS). Como resultado desse Congresso e a partir do conhecimento do Anteprojeto de Lei de Execuções de Medidas Socioeducativas foi constituído um grupo de trabalho, formado por juízes e promotores de Justiça, dessa associação que teriam a incumbência de propor propostas alternativas que viessem a explicitar processual e procedimentalmente a efetivação das medidas socioeducativas e demais garantias estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente” (ABMP, 2001, p. 3)

O GT/ABMP passou a trabalhar na criação de uma proposta de lei em alternativa ao Anteprojeto do Desembargador Amaral, e assim nasceu a Lei de Diretrizes SócioEducativas (sic), publicada em 2001. Nesse contexto, um aspecto importante é a relação entre atores representantes das organizações da sociedade civil no espaço do Conselho e os espaços associativos mais ampliados dessas organizações. O Desembargador Amaral, conforme apontado, era membro

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Os congressos da ABMP são eventos predominantemente dirigidos aos associados, mas recebem inúmeros outros profissionais que atuam com os direitos de crianças e adolescentes e, portanto, podem ser compreendidos como um momento de encontro de atores do Campo.

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do Conanda e representante da ABMP naquele espaço. A ABMP, por sua vez, publicou posteriormente o Anteprojeto de Lei para amplo conhecimento de seus associados,64 fazendo questão de enfatizar na introdução que se tratava da redação feita pelo Desembargador. Portanto, um texto autoral daquele magistrado e não retratava a compreensão do corpo de associados. Em seguida, com o intuito de ampliar a autoria de um novo projeto de lei, essa mesma Associação passou a criar uma proposta alternativa ao anteprojeto construído por seu representante. Esse exemplo mostra um jogo de conflitos entre a representação individualizada no Conselho e a organização a qual representa com sua estrutura formal e coletivizada. Não existem informações sobre como ocorreu o convite para a redação do anteprojeto de lei pelo Desembargador Amaral. O seu mérito foi iniciar o debate sobre os instrumentos para aplicação de medidas socioeducativas, partindo de bases mais consolidadas e detalhadas. De toda forma, como citou o vice-presidente do Conselho, a oposição ao anteprojeto se deu em uma perspectiva de questioná-lo por não ser uma construção coletiva. Com o Conselho assumindo maior responsabilidade pelo tema das medidas socioeducativas, as assembleias passaram a ser ocupadas pelos temas relacionados à problemática do ato infracional. As questões que apareciam no Conselho envolviam principalmente os problemas relacionados às instituições estaduais voltadas para a execução dessas ações (estruturas herdadas do modelo Febem) e a alocação de recursos do Fundo Nacional do Direito da Criança e do Adolescente nas políticas socioeducativas. Portanto, aqui aparecem as duas características que foram citadas, ou seja, o Conselho como espaço de denúncia e como local para a busca de meios paliativos para a gestão da política. Faltava uma regra mais ampla que resolvesse as questões denunciadas, portanto, abriu-se a partir de então um espaço para a discussão da ideia da resolução do Sistema Nacional Socioeducativo. Outro fato marcante no início do ano 2000 foi a tramitação da necessidade de uma pesquisa para diagnóstico sobre a situação das unidades socioeducativas no Conselho e no Departamento da Criança do Ministério da Justiça. Um entrevistado, técnico governamental e envolvido diretamente na pesquisa, relata esse surgimento: A secretaria não sabia, nem o CONANDA, nem nada, quantas eram as unidades socioeducativas de adolescente, para as medidas socioeducativas, para o adolescente em conflito com a lei de meio fechado, quantas instituições dessas existiam no Brasil. Ninguém sabia. Tinha tido uma caravana que o Congresso tinha feito, visitado as unidades, tinha encontrado 64

ABMP (s/d) e documento disponível como anexo na dissertação de Silva (2009).

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uma situação muito precária e ninguém sabia, porque como elas são da competência dos estados, o governo federal não sabia. Como elas eram? Quantas eram? Então, a gente tinha que primeiro identificar quantas eram e saber qual era a situação dessas unidades socioeducativas no tocante aos requisitos do ECA. Também a gente avançou um pouco, só que isso não foi publicado, era um material tão grande em pouco tempo. Aí, nós fizemos um arranjo, elaboramos lá o questionário junto com o UNICEF e pessoas que eram da área e conseguimos contratar pesquisadores da área em cada um dos estados e esses pesquisadores fizeram um levantamento de qual a unidade que tinha lá e foram lá aplicaram o questionário e deu assim super certo. Então foi o primeiro dado que existiu sobre isso foi a nossa pesquisa que a gente então aproveitou, eu aproveitei, para colocar algumas informações sobre as características dos meninos que estavam lá. Aí esse relatório foi o precursor da discussão do SINASE. (Entrevistado 3 – Ator NãoGovernamental)

Essa pesquisa não foi publicada até o final do governo FHC e os representantes do Conselho não puderam se apropriar dos seus achados, ou expandir a discussão sobre as medidas socioeducativas. Porém, no contexto interno do Departamento da Criança/MJ essa pesquisa gerou movimentações para o enfrentamento do tema. A partir de 2001 passaram a existir dois Projetos de Lei em disputa: o Anteprojeto de Lei de Autoria do Desembargador Amaral e o Anteprojeto de Lei de Diretrizes SócioEducativas, posteriormente desenvolvido pela ABMP. Somado a ambos surgiu também um documento organizado pela Conselheira do Conanda, Profa. Dra. Maria Stela Graciani, coordenadora da Comissão sobre Ato Infracional e Medidas Socioeducativas, que se referia aos Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade. Esses parâmetros surgiram, pois na 82ª Assembleia do Conanda, em 11 de julho de 2001 o CONANDA vem verificando em suas visitas aos Estados e também pelas informações recebidas, há uma grande relevância e urgência em definir parâmetros que oriente a aprovação de projetos de construção de unidades de internação e outras políticas de medidas sócio – educativas.

Para isso, foi constituído um Grupo de Trabalho composto por representantes do Conanda, Departamento da Criança e Adolescente e o Fonacriad, tendo a Conselheira como relatora. Um entrevistado relata a diferenciação entre alguns pontos que passaram a ser destinados à resolução enquanto outros destinados à lei. Quanto ao SINASE, nós tínhamos dois textos, um era especificamente sobre a proposta pedagógica e o outro era o que nós conhecemos como proposta

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do PL que foi dar na lei. O critério para a separação em dois foi o seguinte, o que foi outra grande discussão porque o Sistema de Justiça necessitava de alteração na lei para ele cumprir e fazer cumprir e uma resolução não seria o suficiente para isso. E o outro critério é que realmente necessitava de dividir porque tinha matéria que não poderia ser resolvida dentro de uma resolução. Então, o Conanda ficasse atento ao que é a missão dele, por exemplo, política pública na área de criança e adolescente. (Entrevistado 6 – Ator Não-Governamental)

O relato do entrevistado vem acompanhado de indicações sobre os limites institucionais em relação às deliberações tomadas nas instâncias participativas, pois suas resoluções não são suficientes para alterar leis ou ter força de lei. Ou seja, o processo de discussão da resolução pode mobilizar certos atores políticos representativos na área de atuação e alguns agentes do Executivo Federal, mas seria necessário ir além e efetivar outras alterações legais para a sua efetiva implementação. O ano de 2001 começou para o Conselho de maneira tensa em relação aos Projetos de Leis que tramitavam no Congresso Nacional e exerciam influências pela diminuição da idade penal. Boa parte da reunião de maio de 2001 (80ª Assembleia) discutiu o Projeto de Emenda Constitucional PEC n˚ 171/93 que retiraria o artigo 228 da Constituição, que juristas alegam ser a fonte para a idade penal ser uma cláusula pétrea. Com essa alteração, estaria aberto o espaço para a modificação da idade penal.65 A partir desta reunião, o Secretário de Direitos Humanos, José Gregori, passou a acompanhar de perto esse ponto de pauta para discutir junto ao Conanda as formas de ação contra a redução da maioridade penal articuladas entre o Conselho, o Poder Executivo e deputados. Segundo o Secretário: “[...] o assunto é uma questão de opinião pública, por isso, talvez seja necessário a mobilização pública neste sentido, visto que o rebaixamento penal vai contra a história e vai agravar a situação carcerária no país”. (Ata da 80ª Assembleia do Conanda, 09/05/2001) Como forma de mobilização contra as investidas pela redução da maioridade penal, o Conselho vinha coletando assinaturas junto à sociedade civil. Entretanto, essa ação não surtiu o efeito esperado no tempo desejado e, por isso, o Conselho em assembleia passou

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Essa PEC voltou no ano de 2016 a ser motivo de mobilização do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes contra a redução da idade penal. Dessa vez, a PEC foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça como passível de ser votada. Por se tratar de uma PEC, a aprovação deveria ser feita com 2/3 do plenário. Em primeira votação, a PEC foi rejeitada, mas o Presidente da Câmara, Eduardo Cunha, tramitou uma alteração de texto e permitiu uma nova votação na sessão seguinte e foi aprovada. (mais informações em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/com-nova-manobra-de-cunha-camara-aprova-reducao-damaioridade-penal-4715.html).

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a listar uma série de ações para a mobilização para enfrentar o tema da redução da maioridade penal em relação às organizações sociais, à mídia e ao Congresso Nacional. Outra iniciativa por parte do Conselho foi a criação de novo Abaixo Assinado. Desta vez, caberia uma coleta de assinaturas junto aos Conselhos Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente. Ao longo do ano de 2001, o Conanda buscou meios para fortalecer essa ação e formas para ampliar o número de assinaturas. Uma das estratégias foi tentar conciliar o processo de coleta de assinaturas com as Conferências Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança. Essas ações esbarravam nos recursos financeiros do Ministério da Justiça que alegava falta de orçamento e não apoiava aquela ação de maneira prioritária. Essa falta de apoio demonstra a dubiedade das políticas de direitos humanos na estrutura federal, pois o Poder Executivo – representado pela figura do Ministro de Direitos Humanos à época – vinha até o Conselho pedir a mobilização da sociedade civil, mas não se comprometia com um apoio político mais forte e com recursos para viabilização de campanhas de discussão junto a sociedade. Ou seja, uma dubiedade entre discurso e prática, principalmente porque o Governo Federal ao assumir a defesa dessa temática poderia gerar ônus políticos e eleitorais com repercussões maiores na véspera de eleições presidenciais. Com isso, o Abaixo Assinado e as tentativas de mobilização da sociedade contra a redução da maioridade penal foram minguando ao ponto de não mais aparecer nos registros das atas. A partir de meados do ano de 2001, o tema das medidas socioeducativas passou a ser a prioridade de aplicação dos recursos do Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Com isso, o Conselho deliberou pela junção das Comissões Temáticas de Orçamento e Finanças e de Medidas Socioeducativas e a alocação dos recursos do Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente prioritariamente no sistema socioeducativo. Essa nova configuração foi também resultante da regulamentação empreendida pelo governo FHC para o trâmite de recursos públicos que impactou no Conselho e nos convênios entre os estados e o Governo Federal. Mais uma vez alguns dilemas da gestão da política pública para o adolescente infrator aparecem como imbróglio em relação à gestão da política pública e em relação à política. Em relação à gestão, havia limitação de recursos por meio do Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente para financiar projetos. A atribuição da gestão da política socioeducativa ficou a cargo de estados e o Governo Federal acabou tendo instrumentos limitados para a cobrança de resultados dos recursos repassados. Assim, o cenário dessas políticas era composto de muitas violações para poucos recursos.

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O imbróglio político ocorria, pois a responsabilidade da solução dos problemas da política era atribuída ao Conselho, por meio do Fundo, e com isso o Poder Executivo tinha relativa autonomia para não enfrentar os reais problemas da política e não melindrar as relações com governos estaduais. Importante lembrar que os dirigentes estaduais vinham participando na solução dos problemas da política socioeducativa, por meio do Fonacriad, que tinha influência de partidos políticos e captação de recursos. A junção das Comissões refletiu na diminuição do espaço de denúncia contra as violações dos direitos dos adolescentes infratores, que tinha na Comissão de Medidas Socioeducativas um espaço importante. Assim, a Comissão passou a pautar suas discussões pelos dilemas da resolução em torno dos problemas das unidades socioeducativas e, com isso, perdia a potência de ser um espaço de denúncia. Em outubro de 2001, o Conanda informou o recebimento do encarte da Lei de Medidas Socioeducativas, elaborado pelo GT/ABMP. A Assembleia desse mês deliberou sobre ... além de outros assuntos foi debatido a proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas apresentada pela ABMP, tendo sido aprovado a constituição de grupo de trabalho composto pelo DCA, FONACRIAD, ABMP e CONANDA, objetivando aprofundar o assunto, inclusive envolvendo os Conselhos Estaduais. Foi debatido também a proposta apresentada pelo CONANDA e DCA sobre Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade, tendo sido aprovado a criação de grupo de trabalho composto pelo CONANDA, DCA e FONACRIAD para elaboração da proposta, tendo sido sugerido a data de seis de novembro para a realização da primeira reunião. (85ª Assembleia do Conanda, 03/10/2001)

Conforme destacado no trecho da Ata, a partir de então começam a tramitar os processos de discussão do PL sobre Medidas Socioeducativas e os Parâmetros para a aplicação dessas medidas. Aquela disputa, entre o Anteprojeto de Lei escrito pelo Desembargador Amaral e o PL de Medidas Socioeducativas, se tornou ultrapassada e o PL passou a tramitar como a proposta oficial que o Conselho assumiu. Essa proposta nasceu do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente na medida em que conseguiu envolver atores em seu papel de debate sobre os direitos de crianças. Portanto, a partir desse momento, ocorre a tramitação de dois instrumentos, o PL e os denominados Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade. Nota-se o predomínio das discussões sobre as medidas enclausuradoras na gênese do Sinase.

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Um tripé começa a aparecer como sustentador das discussões sobre o Sinase, pois além dos conselheiros governamentais e não-governamentais, passaram a ser envolvidos também os técnicos do Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça e os membros do Fonacriad. O final do ano de 2001 marcou o início do processo de aproximação entre os Conselhos Nacionais: Conanda e o Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS. Em um primeiro momento, esses Conselhos tentaram discutir a criação de uma Comissão comum, que passaria a integrar a estrutura dos dois Conselhos, e teria objetivos muito bem definidos, conforme aparecia na ata. Entretanto, não existe nas atas daquele período informações sobre quais seriam essas áreas a serem discutidas conjuntamente. De toda forma, a aproximação iniciada não contou com grandes desdobramentos, tendo um período mais produtivo da relação somente após a chegada do governo Lula. A segunda assembleia do ano de 2002 teve um momento de interrupção na tarde do primeiro dia (13 de março de 2002) para que os conselheiros pudessem ir ao Congresso Nacional e entregar uma carta ao presidente da Câmara (na época o Dep. Aécio Neves – PSDB/MG) e do Senado (Sen. Ramez Tebet – PMDB/MS). 66 Essa carta continha o documento “Pacto pela Paz” e as Moções contra o rebaixamento da idade penal, aprovados na IV Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada em Brasília, nos dias 19 a 22 de novembro de 2001. Aquela Conferência procurou discutir a questão da violência contra a criança, e mudar o contexto de debate do adolescente como autor de violência para a criança/adolescente como vítima. Somava-se assim aos esforços de mudança da perspectiva do trato das políticas públicas para a criança e o adolescente, saindo de um viés de punição para uma perspectiva de promoção de direitos que, uma vez negados, provocam reações, inclusive contra a própria sociedade. A Conferência foi também um espaço de vitalização do contato do Conselho com demandas da sociedade, mas conforme apontamos, o dia a dia dessa instância ainda é pouco demarcado pelas deliberações da Conferência (POLIS, INESC, 2011). A Conferência gerou subsídios para o debate dos Conselheiros com as autoridades do Poder Legislativo, mas não encontrava grandes desdobramentos após esse ato. Na cerimônia de entrega do documento “Pacto pela Paz” mais uma vez o tema da redução da idade penal foi articulado pelo Conselho junto ao Poder Legislativo. Essas ações 66

Notícia do Jornal do Senado sobre a reunião entre o Presidente do Senado e os Conselheiros do Conanda. Disponível em: http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2002/03/14/representante-do-conanda-entrega-atebet-pacto-pela-paz. Acesso em: 3 dez. 2014.

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eram cercadas de promessas retóricas de buscar travar os PLs favoráveis à redução por parte dos presidentes das casas legislativas, mas as iniciativas legais prosseguiam na arena do Poder Legislativo e, por vezes, voltavam com certa força nas discussões, o que provocava a necessidade de nova mobilização do Campo de Defesa contra essas iniciativas. O ano de 2002 foi de intenso debate do Conselho junto ao Campo de Defesa e a Comunidade de Política para a formulação da política. A assembleia de abril de 2002 foi um marco na construção democrática do Sistema Nacional Socioeducativo. Foi definido naquela reunião como se daria o processo de discussão nos Encontros Regionais sobre Medidas Socieducativas. Para isso, segundo a deliberação do Conselho, haveria grupos estaduais que deveriam ser formados por: dois representantes dos Conselhos Estaduais (respeitando a paridade entre governo e sociedade); um dirigente do órgão executor; um responsável pelo programa de medidas socieducativas; um técnico de unidade de internação; um Juiz da Infância e Juventude; um Promotor de Justiça da área da Infância e da Juventude; um representante do Fórum Estadual DCA e um representante da ABMP. Um entrevistado recupera esse período, ao relatar que Então, nós fizemos encontros em todas as regiões do Brasil, precedido de encontros estaduais. Desses encontros participavam quem era da gestão das medidas socioeducativas, o sistema de segurança, o sistema de justiça e o controle social através dos conselhos e dos fóruns. Então, nós fizemos isso. Em cada encontro desses tinham dois textos que aí se chegou a conclusão que um conjunto de procedimentos era para uma resolução e outro conjunto era para uma alteração da lei, que é essa lei que é aprovada agora em 2012, que não é igual àquela que saiu lá, mas enfim, foi o resultado do debate democrático possível aí. Então, durante seis anos, a gente movimentou todo o Sistema de Garantia para escrever o SINASE. (Entrevistado 6 – Ator NãoGovernamental)

Começava no âmbito externo ao Conselho os debates sobre as propostas do que viria se tornar o Sinase, mas no âmbito interno ocorria uma tensão entre o Conselho e o fim do governo FHC, marcado por sua pouca atuação na questão social. No primeiro semestre do ano de 2002, existiu também um fato marcante com as discussões de uma proposta de projeto da Pastoral do Menor para captação de recursos junto ao Fundo Nacional DCA, que buscava assumir a responsabilidade pelo atendimento de adolescentes em Medidas Socioeducativas de Liberdade Assistida em treze localidades do país. Esse seria um exemplo de descentralização da aplicação das medidas socioeducativas e mais um que o governo FHC tentou viabilizar antes de sua saída.

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O projeto da Pastoral foi apresentado ao Fundo Nacional do Direito da Criança e, nos primeiros momentos, a Comissão de Orçamento e Finanças / Medidas Socioeducativas procurou criar entraves para a liberação desses recursos. O ponto de maior tensão ocorreu na assembleia de maio de 2002 quando o plenário do Conselho deliberou pelo reenvio do Projeto à Pastoral para reapresentação e readequação de uma nova proposta. Portanto, esse projeto era uma demonstração das transferências de serviços públicos para as organizações do terceiro setor ao longo do governo FHC. Era também uma evidência da força que as organizações da Igreja Católica tinham no contexto dessas políticas. O Conselho recebeu, na Assembleia de julho daquele ano (93ª Assembleia), autoridades do Ministério da Justiça para uma cerimônia de comemoração alusiva aos 12 anos do ECA. O Secretário de Direitos Humanos, Paulo Sérgio Pinheiro, teve participação nesse momento e dois pontos importantes em relação às medidas socioeducativas foram ressaltados em sua fala. O primeiro ponto foi a referência sobre a finalização da pesquisa sobre as Unidades de Internação que estava em execução ao longo de 2001. Nesse momento não houve discussão sobre o andamento da pesquisa e sobre os resultados alcançados, mas o Conselho tomou conhecimento sobre a realização da pesquisa algo que tinha sumido daquele espaço. O segundo ponto foi sobre a importância da assinatura do Convênio Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente com a Pastoral do Menor, proposta que havia sido recusada pelo Conselho dois meses antes.

Essa passagem demonstra os conflitos existentes nas formas de prestação de serviços públicos por organizações da sociedade civil, principalmente as da Igreja Católica, que buscavam pressionar por outros meios as instâncias de decisão e tentar acessar recursos públicos. Ou seja, mesmo com a recusa do Conselho em relação à proposta da Pastoral, ela retornou para assinatura pelo Secretário de Direitos Humanos. Não se tem ciência sobre os reais compromissos assumidos pelo Governo da época para essa assinatura, passando por cima da vontade do Conselho, mas em ano eleitoral contar com o apoio de organizações do porte da Pastoral é uma grande aliança. Esse aspecto demonstra, de outra forma, conflitos ainda presentes em relação ao controle da decisão pública, principalmente nas temáticas relacionadas à alocação orçamentária. Apontamos anteriormente as iniciativas do governo FHC em criar trâmites padrões para a alocação de recursos e a dificuldade da decisão conjunta e coordenada entre Conanda e DCA/MJ para a aplicação dos recursos. Esse fato demonstra que essas tentativas serviam para decisões do Conselho, mas não se aplicavam de maneira tão restrita quanto às vontades governamentais.

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Esse debate aponta também dilemas quanto à atuação de entidades da sociedade civil na prestação de serviços públicos de Medidas Socioeducativas. Esse fato demonstra as tentativas de pressionar os órgãos decisores para a transferência de serviços para entidades da sociedade civil. Esse é um ponto de disputas e resistência no processo de formulação da política pública para o adolescente infrator, pois podem ser encontradas visões favoráveis e contrárias à execução dessas políticas por organizações não-governamentais. No segundo semestre de 2002 ocorreu a entrada de uma nova equipe governamental na estrutura do Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça (DCA/MJ), conhecedora dos trâmites nos processos de formulação de políticas públicas, que conjuntamente com os antigos conselheiros dos Direitos passaram a formular um processo mais coordenado para a criação da política pública. Sobre esse período, Marques (2008, p. 143) aponta que: Nos seis meses de trabalho daquela equipe (do Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça), que correspondia aos últimos seis meses de 2002 do presidente FHC, tomou-se a decisão de que o que restava fazer naquele momento era produzir diagnósticos, informações e buscar diálogo com os diversos atores da sociedade civil, universidades, organismos internacionais, principalmente Unicef e Ilanud, ABMP, MNMMR, Pastoral do Menor, Conanda, municípios e estados por meio do Fonacriad.

Assim, o cenário para a formulação da política pública no interior da Comunidade de Política passava a ser formado pela equipe do DCA/MJ e o Conselho, como local de gestão dos recursos do Fundo Nacional do Direito da Criança e do Adolescente, e definidor dos parâmetros técnicos e arquitetônicos para o funcionamento das unidades de internação. A 96ª Assembleia, em 12 de setembro de 2002, foi um momento de realização de um balanço sobre os encontros regionais. A conselheira coordenadora da Comissão de Medidas Socioeducativas fez uma retrospectiva de alguns pontos importantes nos encontros realizados. a) a importância do CONANDA ter inserido a discussão das medidas socioeducativas a nível nacional; b) o reordenamento institucional do ponto de vista arquitetônico, número de adolescentes, compleição física, visitas íntimas, e que nestas questões debatidas há consenso, porém com relação à proposta de Lei o assunto ainda é polêmico; c) a falta de leitura dos documentos pelos participantes dos Estados comprometem o andamento dos trabalhos. (96ª Assembleia do Conanda, 12/09/2002)

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Pode-se acompanhar pelo registro que havia pontos consensuais em relação aos temas da implementação da política. Mas a formulação dos conteúdos que estavam destinados para a nova lei ainda era um tema árduo e de difícil discussão por parte dos participantes dos encontros regionais. O debate da lei acabava sendo uma questão para os especialistas, enquanto os temas da implementação eram mais apropriados por atores do Campo. Essa é a constatação sobre a configuração do Campo de Defesa em torno do Sinase, conforme aponta um entrevistado. Eu não vejo militância no sistema socioeducativo. Acho que isso é um fenômeno. Você vê, por exemplo, militantes pela redução da maioridade penal, mas militantes pelo sistema socioeducativo, assim como a gente tem militantes pelo enfrentamento da violência sexual, trabalho infantil, não tem. Você vê bandeiras muito claras com segmentos que até se organizam, de fora da gestão púbica, que dá o mínimo de organicidade aos gestores que operam na área. Você não tem uma sociedade civil que faz militância pelo sistema socioeducativo. Exceto algumas ONGs, que em um momento ou outro, até ainda trabalham com medidas de meio aberto, ou agora tem uma novidade aí, que é trabalhar com a profissionalização dentro do meio fechado, e aí, digamos, os gestores estaduais procuram as ONGs, as organizações sociais para fazer a execução disto. Então, digamos, os grandes atores que nós temos na construção da medida socioeducativa, são os gestores estaduais, juízes, promotores e um tantinho (sic) de defensores que trabalham com a infância e a juventude. (Entrevistado 16 – Ator Governamental)

Na 97ª Assembleia, de 16 de outubro de 2002, o Conselho realizou uma discussão entre seus participantes sobre a Proposta de Lei de Diretrizes Socioeducativas e do Documento do Conanda sobre os Parâmetros para o funcionamento dos serviços públicos de medidas socioeducativas. A ata traz um relato da Conselheira, Coordenadora da Comissão de Medidas Socioeducativas, valorizando a ação do Conselho. A conselheira Maria Stela complementou a fala do conselheiro tecendo considerações sobre a importância dessas discussões que permearam todos os encontros sendo incluído o tema na agenda nacional. Para a conselheira a discussão hoje é muito mais abrangente, não ficando a mesma só com os profissionais que atuam diretamente na área. Ela considerou que o CONANDA cumpriu a sua missão no que diz respeito à articulação a nível nacional. (97ª Assembleia do Conanda, 16/10/2002)

A 98ª Assembleia, de 5 de novembro de 2002, foi um marco na evolução da discussão sobre o PL, pois o Conselho trouxe promotores de justiça com posições diferentes, contrárias e favoráveis, quanto à necessidade de um PL específico para a execução das medidas socioeducativas. Neste momento, mais uma vez pode ser vista a tensão entre o grupo

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a favor da mudança do ECA e a contrária, conforme citado anteriormente pelo Secretário de Direitos Humanos. O Presidente da ABMP, Saulo de Castro Bezerra, moderou o debate entre esses posicionamentos. O Promotor de Justiça do Paraná, Mário Luiz Ramidoff, defendeu uma posição contrária à necessidade do PL. Para ele “o que se quer nesta lei é construir uma ritualização de execução de medidas socioeducativas e que na verdade não se estabelece um contraditório que é o cerne da diferença entre o processo e o procedimento.” (98ª Assembleia do Conanda, 05/11/2002) Além disso, o Promotor apontou um risco da lei se tornar uma fonte para o maior enclausuramento de adolescentes. Segundo a ata, Outro ponto de reflexão destacado pelo Promotor é que a lei de diretrizes irá trabalhar só com a medida de internação, e que internação no Estatuto é exceção, não é regra e com a proposta, internação pode tornar-se regra. Dr. Mário não acredita que o Direito Penal Juvenil possa criar um sistema de garantias porque ele está vinculado ao Direito Penal, como o antigo Código de Menores. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma diretriz internacional da doutrina da proteção integral, que é uma vertente dos direitos humanos. (98ª Assembleia do Conanda, 05/11/2002)

O Dr. Públios Lentulos Rocha, Promotor de Justiça do Estado de Goiás, defendeu uma posição favorável a existência de uma lei específica. A ata não traz os argumentos usados pelo promotor em favor da lei, mas demonstra suas respostas aos pontos destacados pelo apresentador anterior. Em resumo, segundo a ata, o promotor afirma que “nenhum dispositivo do Estatuto está sendo aviltado pela proposta e que nas audiências com os adolescentes serão aplicados todos os direitos garantistas”. A 99ª Assembleia do Conanda foi a última do período do governo FHC. Este foi um período de baixo reconhecimento institucional do espaço do Conselho que, em certo momento, foi colocado em xeque com vistas ao seu encerramento. O Dr. José Gregori, Secretário Nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça de 1997 a 2000, aponta em entrevista para Marques (2008, p. 382), que o “Conanda pela amplitude é um órgão ecumênico, não é um órgão propriamente que se possa chamar governamental”. Para ele, existia uma tensão entre a baixa “produtividade” apresentada pelo Conselho, pois não conseguia impactar de maneira efetiva na deliberação da política pública. Mas, não é mencionado pelo Secretário que a produtividade do Conselho era profundamente marcada pela falta de condições institucionais para o seu funcionamento, e de recursos para viabilizar a coleta de assinaturas para o Abaixo Assinado contra a redução da idade penal.

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Outra demarcação do período FHC foi a maior ênfase na transferência dos serviços governamentais para entidades da sociedade civil. Esse período de chamada baixa produtividade foi também marcado pela forte presença da Comunidade Solidária, que passou a gerir alguns serviços públicos, principalmente aqueles relacionados com a política social (ALMEIDA, 2006; BARBOSA, 2006, MONTAÑO, 2010). Em alguns momentos pôde ser notada a tentativa governamental de facilitação das transferências de responsabilidades para que as organizações não-governamentais passassem a atuar com as ações de aplicação de medidas socioeducativas, haja vista o convênio assinado em julho de 2002 entre Pastoral do Menor e DCA/MJ, mesmo com a rejeição do projeto pelo Conselho Nacional. O governo FHC foi um período de diminuição do Estado para atuação em algumas temáticas. Esse período tinha duas agendas articuladoras e assumidas pelo Comunidade Solidária da primeira-dama, Ruth Cardoso, a primeira relacionada com o trabalho infantil e a segunda, com a empregabilidade, que passava necessariamente pela universalização do ensino. Um entrevistado governamental retrata essa situação, ao apontar que [...] poderiam ser atribuições, características que poderiam ser dadas ao Estado governado em uma perspectiva neoliberal e ele foi competente para fazer isso naquele momento. Se você perceber claramente o Fernando Henrique tinha uma agenda para a criança e o adolescente clara. Não é essa a agenda da medida socioeducativa, era a agenda do trabalho. Era a agenda do trabalho infantil e do outro lado a agenda da empregabilidade, além é claro da questão da escola. (Entrevistado 11 – Ator Governamental)

Assim, esse foi um período de um quase vazio na área social e isso teve reflexos em relação ao papel do Conselho. Ao Conanda restou discutir os pontos que o Poder Executivo por si não assumia, como por exemplo, o adolescente infrator. Um entrevistado, técnico governamental, relata esse momento. [...] o Paulo Sérgio tem dificuldades de admitir isso em dezembro de 2002 quando a gente entrega pra ele um relatório de como estava o sistema socioeducativo. Não era só o socioeducativo, porque na verdade tinham várias dimensões da política da criança e do adolescente. Nós fizemos um diagnóstico da defensoria, das delegacias, do sistema socioeducativo, de vários serviços. Foram oito anos de nada. E é claro que o Paulo Sergio disse: - O que vocês querem com isso? O que vocês querem? Querem que eu entregue um relatório de oito anos de governo e que nós não fizemos nada? Era isso que dizia os relatórios. (grifos nossos) (Entrevistado 11– Ator Governamental)

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Uma das partes desse relatório foi composta com dados da pesquisa sobre unidades socioeducativas que tinha iniciado no ano de 2001, mas que somente reapareceu no Conanda naquela recente apresentação do Secretário de Direitos Humanos ao colegiado. O relatório da pesquisa era tão desalentador que não podia ser publicizado e isso não foi feito até o fim do governo, reaparecendo somente nas primeiras assembleias do Conselho, no novo governo. O período FHC demonstrou a tensão que a presença do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente permitiu, pois conseguiu, mesmo com todas as dificuldades, manter a agenda temática em relação às medidas socioeducativas. Alguns fatores auxiliaram nesse processo Como a presença e continuidade de técnicos do Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça. A mudança de governo manteve a equipe técnica no âmbito daquele Departamento, inclusive com a manutenção da Secretária Nacional de Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, Denise Paiva. Essa decisão foi motivo de tensão com o novo governo do PT e os conselheiros mais próximos do projeto do partido, pois aqueles personagens eram vistos como agentes do governo anterior e não portavam o projeto político vencedor naquela eleição. Outro fator que permitiu a continuidade foi a presença de conselheiros antigos que continuavam na gestão do Conselho.67 Segundo um entrevistado não-governamental, [...] nesse tradicional movimento de descontinuidade por parte do Estado, o Conanda conseguiu romper. Com os conselheiros de longo prazo, ele vai mantendo um pouco a história e vai garantindo um espaço de continuidade. Pelo menos de discussão dos mesmos temas. Acho que isso é um fator forte. O risco aí é o oposto, são os conselheiros profissionalizados e só participam do Conselho. (Entrevistado 3 – Ator Governamental)

Essa continuidade das agendas, destacada por um entrevistado, é um aspecto positivo em termos da manutenção dos conselheiros no espaço do Conselho. Esse foi um fator de resistência de questões que precisavam ser tratadas e manutenção de acúmulos em relação às temáticas. A troca dos conselheiros exigiria a existência de mecanismos para a manutenção institucional, acúmulo de temas e informações que são mantidas como agendas, e isso era

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O debate sobre a entrada de novos atores no espaço do Conselho pode passar por diferentes perspectivas: pelos dilemas da representação dos atores sociais que acessam o espaço do Conselho (FUCKS; PERISSINOTTO, 2006; LUCHMANN, 2007; BORBA; LUCHMANN, 2010) ou pelas regras institucionais que limitam a entrada de novos atores (CORTES, 2004; TATAGIBA, 2004; FARIA, 2007; AVRITZER, 2008; FARIA; RIBEIRO, 2010; LIMA et. al., 2014)

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pouco encontrado, dada a precária memória institucional dos espaços participativos do Governo Federal. A permanência dos conselheiros tem outro lado, quando analisada pelo ponto de vista da não entrada de novos atores sociais nos espaços decisórios, e essa tensão já foi apontada na literatura (DAGNINO, 2004). A abertura dos canais participativos para outros e novos atores, por exemplo, as funções de atuar com a formação de novos participantes; estimular novos atores da sociedade civil para disputarem os espaços participativos; contribuir para mais transparência e controle social do Estado; indicar políticas públicas distributivas e tornar a administração pública mais eficiente. A questão da memória institucional é uma dificuldade no modus operandis do Conselho, e isso pôde ser constatado no levantamento de dados para a pesquisa. A estrutura do Conselho, especificamente sua Secretaria Executiva, por exemplo, não detinha documentos de memória dos processos aqui analisados, além de sofrer com a rotatividade do seu quadro de pessoal, perdendo parte de sua memória institucional. Alguns documentos investigados somente foram conseguidos a partir dos entrevistados que disponibilizaram informações sobre os processos. O governo FHC foi o período em que se iniciaram os debates sobre formas para enfrentar a redução da idade penal e meios para efetivar um melhor serviço socioeducativo. Mas essas ações eram marcadas pela precariedade das interações sócio-estatais e, principalmente, na governança dessas políticas. Um entrevistado traz uma boa representação sobre o período: E aí nesse caso é mais fácil para a União, deixa o Conanda se virar com esse abacaxi e deixa a sociedade civil lá sozinha. Deixa também sem recurso. Você tem que fazer isso com o discurso e não com responsabilidade de implementação de uma política. (Entrevistado 11– Ator Governamental)

O início da discussão sobre o Sinase foi muito definido pelos atores do Sistema de Justiça e isso direcionou os conteúdos do processo de debate e os pontos de conflitos relacionados com o Poder Judiciário. Aos poucos esses conteúdos foram encontrando ressonância em relação às temáticas das políticas sociais e demandou uma movimentação por parte do Poder Executivo. 4.1.2. A mudança de governo e a janela de oportunidades

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O governo Lula assumiu com um projeto de ampliação de políticas sociais, participação social e intervenção estatal na economia. Entretanto, inicialmente, veio acompanhado de uma grande contenção de despesas e, por isso, a área de direitos humanos sofreu uma baixa orçamentária. Apesar desse corte orçamentário, o novo governo veio com outra postura frente às instâncias participativas. Isso ocorreu de forma especial nos três primeiros anos do governo Lula. Nilmário Miranda, Deputado Federal pelo PT/MG, assumiu a Secretaria Especial de Direitos Humanos e foi escolhido como presidente do Conanda na primeira assembleia do período do mandato Lula. O conselheiro não-governamental, representante da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – ABONG, José Fernando da Silva, foi escolhido como vice-presidente. Um entrevistado, conselheiro não-governamental, retrata esse momento. E foi um período que teve uma relação diferente porque o governo que entrou em 2003, primeiro governo do Lula, ele, pela primeira vez, o ministro, que era o Nilmário Miranda, coloca o Conanda na sua pauta. Fez uma diferença bastante significativa. Então, quando ele se apresentava, falava que era Ministro Secretário Especial de Direitos Humanos, mas também sempre falava que era o Presidente do Conanda. E houve uma aproximação, um trabalho bastante interessante nesse sentido, apesar das dificuldades financeiras que nós tivemos. Em 2003, por exemplo, nós tivemos um orçamento vinculado de zero. (Entrevista 4 – Ator NãoGovernamental)

Esse contingenciamento de recursos tinha como objetivo garantir o superávit primário, pois essa foi uma promessa de campanha do recém governo, demonstrada na Carta ao Povo Brasileiro.68 Portanto, esse foi um ponto de tensão já que o governo Lula pautava-se por um projeto de inclusão social e cidadania, mas cortou orçamentos para áreas relacionadas com as políticas sociais e de direitos humanos. A Secretaria passou a depender de alocações orçamentárias pontuais de acordo com cada caso e cada política. Essa foi uma dificuldade, pois as políticas de direitos humanos, e, consequentemente, a área das medidas socioeducativas mais uma vez ficavam sem uma lógica de funcionamento constante e permanente, essenciais para as políticas públicas e

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O então candidato à Presidência da República Luís Inácio Lula da Silva escreveu esse documento (22/06/2002) para demonstrar aos mercados a continuidade das ações para enfrentamento da crise econômica que assolava o país naquele ano. A manutenção de contratos e o superávit primário eram condições para isso. Em determinado momento, a Carta cita “Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”.

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permaneciam sujeita aos ânimos governamentais. Essa escassez de recursos deu margem para a continuidade e o fortalecimento da gestão conjunta entre Secretaria de Direitos Humanos e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente dos parcos recursos. Um entrevistado recupera as dificuldades vividas no momento. Essa pactuação de que vamos gerenciar o recurso de maneira conjunta nesse momento e talvez até por uma escassez de recursos que o primeiro ano do Lula foi um ano de orçamento zero. Então, isso exigiu uma busca de recursos fora, na qual a Petrobrás passou a ser a principal doadora de recursos para o Fundo. Mas a decisão da aplicação de recursos era conjunta. (Entrevistado 3 – Ator Não-Governamental)

Para contornar temporariamente a situação, o presidente do Conanda, ministro Nilmário passou a buscar destinação de recursos por parte da responsabilidade social das empresas públicas. E aí, final do ano, Nilmário, num contato particular dele com a Petrobrás, ele conseguiu uma doação da Petrobrás, mas essa doação deveria, era para a estrutura da subsecretaria e da secretaria de direitos humanos para a área de criança e adolescente, mas a Petrobrás só aceitava fazer isso como uma doação, uma destinação pela renúncia fiscal através do Fundo Nacional da Criança e Adolescente e isso por um debate aguçadíssimo porque a Petrobrás nunca tinha se interessado em fazer um aporte significativo como era naquela oportunidade, era cerca de 10 milhões de reais, e por conta de uma conjuntura política intragoverno, uma solução política do que o presidente do CONANDA na época que era o Nilmário Miranda, ele então conseguiu fazer uma gerência e conseguiu essa destinação. Depois teve um debate grande, porque a sociedade civil ficou muito chateada com isso, tanto por conta do recurso que iria adquirindo, evidentemente que não, mas por conta de que isso tinha sido feito não de uma forma institucional, Petrobrás, conselho, prioridade absoluta, todo esforço que vínhamos fazendo há anos para viabilizar o fundo nacional. E aí deu um debate um pouco mais aguçado, mas já se sabendo que ninguém ia dizer não no ano de zero real, de zero, a 10 milhões para fazer atendimento principalmente, que eram centrados nesses recursos no atendimento do reordenamento do sistema sócio educativo. (Entrevistado 6 – Ator Não-Governamental)

Essa busca por recursos levou cerca de seis meses, chegando ao seu desfecho em agosto de 2003 quando o Conanda, a SEDH e a Petrobrás assinaram o termo de cooperação técnica. Outro ponto relevante no início do mandato do governo Lula tem relação com a reconfiguração da área de direitos humanos no governo federal. Essa área deixou de ser uma secretaria dentro do Ministério da Justiça e foi alocada como uma Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH associada à Presidência da República (Medida Provisória n˚

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103/2003). O Departamento da Criança e do Adolescente (DCA) passou a ser uma subsecretaria dentro da SEDH (Decreto n˚ 4.671, de 10 de abril de 2003). Um conselheiro não-governamental relata essa situação. A gente tinha no governo anterior o seguinte: no período FHC uma secretaria de Estado dentro do Ministério da Justiça. Com o governo Lula ficou a Secretaria Especial de Direitos Humanos com status ministerial, o que equivale a presidência da república, apesar de fisicamente a gente estar lá no Ministério da Justiça. E aí, nesse período o Lula baixou um decreto rebaixando o status da Secretaria Especial de Direitos Humanos, para Subsecretaria Especial de Direitos Humanos. Então, nós tínhamos uma subscretaria de direitos humanos e dentro uma subsecretaria de direitos da criança. Sub do sub. Se já era ruim ter uma subsecretaria da criança imagine uma subscretaria que era o sub, sub do sub. Teve um debate que nós fizemos com o MDS, o Osvaldo Russo que era secretário Executivo e nós fomos esmagados. Porque quem é que falava? A sociedade civil. Porque na hierarquia do poder Ministro fala com Ministro, Governador fala com Presidente, Secretário fala com Secretário, Gerente fala com Gerente, então ficava o Conanda falando e o Subsecretário Nacional dos Direitos Humanos que foi o Mário Mamede, ele não tinha força política para falar, porque ele não tinha status de ministro. Então acho que isso foi muito ruim, acho que perdemos muito ali na discussão do Sinase para a Política Nacional da Assistência que repercute até hoje. (Entrevistado 3 – Ator NãoGovernamental)

Portanto, o Conanda passou a estar alocado institucionalmente na Subsecretaria do Direito da Criança e do Adolescente, dentro da Subsecretária Especial de Direitos Humanos. Marques (2008, p. 186) relata Este fato gerou uma mobilização dos atores sociais nacionais e internacionais porque se entendia como um rebaixamento da “questão dos direitos humanos” de um nível ministerial para um segundo escalão da presidência. Naquele momento, houve uma união entre os diferentes movimentos de defesa dos direitos humanos, provocando aglutinação e solidariedade setorial, que buscavam o restabelecimento da Secretaria Especial em nível de ministério e com orçamento próprio. O Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos fez um manifesto dirigido à ministra Dilma Rousseff e ao ministro Jacques Wagner expressando a preocupação de que no governo Lula “os direitos humanos estão recebendo um tratamento mais secundarizado”, retornando, “institucional e politicamente [...] à condição que tinha quando era um organismo de terceiro nível hierárquico no Ministério da Justiça”. Esse manifesto teve adesão de entidades da sociedade civil representadas no Conanda.

Esse rebaixamento de status afetou a discussão da política pública do Sistema Nacional Socioeducativo. Nas negociações entre essa estrutura e o Ministério do

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Desenvolvimento Social (MDS) existia um gap de hierarquia e a SEDH tinha pouco poder para negociar com aquele Ministério. A Subsecretaria representava o Sistema Nacional Socioeducativo e devia debater com o MDS, que representava a criação da Política Nacional da Assistência (PNAS). Em muitos casos, a Subsecretaria não tinha forças para fazer frente à PNAS, pois esse era um projeto central na proposta do governo Lula. Essa situação foi revogada pelo Decreto n˚ 5.174, de 9 de agosto de 2004, portanto, uma boa parte do tempo de discussão do Sinase foi sob o mando desta subsecretaria. Na 100ª Assembleia, de 12 de fevereiro de 2003, o presidente do exercício anterior, Claudio Augusto Vieira da Silva, fez uma retrospectiva das principais ações realizadas pelo Conselho até 2002, foram elas: 1) Elaboração do Orçamento do FNCA; 2) Acompanhamento e monitoração dos Convênios/FNCA; 3) Monitoração do Pacto pela Paz; 4) Monitoração das Diretrizes Nacionais para a Política de atenção Integral à Infância e a Adolescência e do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil; 6) Continuar a interlocução sobre crianças e adolescentes indígenas; 7) Crianças e Adolescentes com necessidades especiais; 8) Manter interlocução com a Frente Parlamentar sobre questões pertinentes a crianças e adolescentes; 9) Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil; 10) Integração com o Programa Bolsa Escola); 11) Proteção ao Trabalhador adolescente; 12) Articulação com o Congresso Nacional; 13) Conselho Tutelar; 14) Elaboração de Plano Nacional de Diretrizes para Capacitação dos Operadores do ECA; 15) Pesquisa sobre inimputabilidade penal do adolescente infrator; 16) Analise de Projetos); 17) Normatização do repasse fundo a fundo; 18) Normatização das Medidas Socioeducativas; 19) Interlocução com o Governo Federal visando a definição e o acompanhamento de programas e projetos na área da criança e do adolescente, inclusive o Programa Fome Zero; 20) Revitalização da Comissão CONANDA/CNAS (100ª Assembleia do Conanda, 12/02/2003).

Podem ser vistos alguns pontos recuperados pelo Conselheiro que são relacionados com a temática do ato infracional (pontos grifados). Contudo, ainda não havia uma sistemática explicitada e racionalmente criada com a intenção de formular a proposta do Sinase. Ainda eram temáticas soltas, mas com sintonia com o tema do ato infracional. Destaque é feito para o item 18 que cita a “normatização das Medidas Socioeducativas” e está relacionado com o debate que vinha sendo feito em termos da elaboração do Projeto de Lei de Medidas Socioeducativas. É possível notar que a ideia de uma resolução com a proposta de um Sistema de Políticas Públicas para as medidas socioeducativas ainda não era tão sistematizada, mas o PL já era reconhecidamente um ponto de prioridade para o Conselho. Esse PL demonstra a força da pressão social do Campo de

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Defesa sobre o Conselho, pois deixar de lado aquela discussão poderia gerar prejuízos do ponto de vista da representatividade do Conselho. Além de oferecer essa retrospectiva, a primeira reunião do governo Lula foi simbólica também por trazer outros temas que perpassavam a temática do adolescente infrator. O primeiro foi o ressurgimento do debate sobre a redução da maioridade penal e a pressão de alguns conselheiros da sociedade civil que discutiam maneiras para travar as investidas por aquela redução. Além disso, nesta reunião, foi recebido o Secretário Estadual de Serviço Social do estado do Piauí, a representante do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente daquele Estado e uma Conselheira Tutelar de Teresina/PI para apresentar o “estado da arte das medidas socioeducativas no estado”. Segundo o relato, o estado havia passado por uma rebelião em uma penitenciária e os adolescentes passaram a ser encarcerados na Casa de Custódia e em Delegacias, juntamente com presos adultos. Segundo o relato da Conselheira Tutelar, “não há medida de internação no Estado e quando o adolescente é aprendido vai direto para a internação” (Ata da 100ª Assembleia, Conanda, 2003). Essas situações são representativas do quadro encontrado pelo novo governo: discussões ainda esparsas, pressão por redução da idade penal e precariedade nas estruturas estaduais de atendimento ao adolescente infrator. Aquela pesquisa sobre mapeamento das unidades de internação foi apresentada de maneira detalhada para o Conselho Nacional na 102ª Assembleia. A fala da Diretora do Departamento da Criança e Adolescente (DCA/MJ) demonstrava uma tensão que envolvia esses dados. Segundo a diretora: “o objetivo da apresentação da pesquisa era debater o assunto, obter sugestões e não apontar culpados ou inocentes” (102ª Assembleia do Conanda, 07/04/2003). Pode-se assim aferir a tensão que esta pesquisa provocou no âmbito do governo federal e na passagem de governo. Conforme apontado, a Diretora permaneceu na mudança de um governo para outro; por um lado, isso foi positivo, pois gerou continuidade de ações, como discutimos. Negativamente, esses dados não puderam ser tratados de maneira mais crítica, pois a Diretora, de certa forma, ainda representava compromissos com o governo anterior. Parte da pesquisa foi publicada posteriormente pelo IPEA em agosto de 2003 como um Texto para Discussão (IPEA, 2003). Esse texto de discussão apresentou dois itens: o perfil dos adolescentes privados de liberdade no Brasil e a situação das unidades de execução de medida de privação de liberdade ao adolescente em conflito com a lei. Segundo a publicação, foram encontradas 190 unidades de aplicação de medidas socioeducativas de meio fechado no Brasil e os principais problemas eram: superlotação, inadequação dos

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espaços físicos, práticas de isolamento ainda aplicadas, atividades escolares inadequadas para o perfil do adolescente, dentre outros aspectos (IPEA, 2003). A 103ª Assembleia, realizada em maio de 2003, foi de planejamento das ações do Conselho para aquele primeiro ano de governo Lula. Já havia passado um primeiro momento da mudança governamental e já existia uma melhor visualização sobre as atividades da nova secretaria (SEDH). O assunto das medidas socioeducativas foi retomado como um ponto “prioridade zero” para o Conselho naquele ano. Todavia, por mais que o processo já tivesse iniciado no governo anterior e uma série de atividades já tivesse sido realizada, não existia uma apropriação por parte do colegiado, conforme se vê em um fragmento da Ata: O Presidente solicitou que fosse elaborado o projeto de lei de execução das medidas socioeducativas com o apoio da Frente Parlamentar. O Assessor Rafael complementou que já existe um projeto de lei do Estado de São Paulo e que o mesmo está sendo analisado. O conselheiro Marcos argumentou sobre a deficiência de pessoal para a realização do trabalho, necessitando de um advogado e estagiários, além de propor o nome da assessora Simone para integrar o grupo. Informou que há um documento extenso sobre o assunto a ser trabalhado. A Conselheira Maria Izabel informou que há um ano o Conselho está discutindo a questão, já tendo sido realizado cinco Encontros Regionais, porém ainda não há uma posição formal do Conselho e que a Comissão que trata o assunto está trabalhando nesta direção. O Presidente indicou o conselheiro Cláudio como Coordenador do Grupo de Trabalho, o Conselheiro Marcos e os Assessores Tarcisio e Rafael, para apresentarem a proposta do projeto de lei na próxima plenária do Conselho. O Conselheiro Marcos reafirmou que a demanda é muito grande e as divergências também. Além disso, há que se elaborar a proposta pedagógica e os parâmetros de construção e que para tanto, há necessidade de uma assessoria pedagógica e a inclusão de conselheiros governamentais no grupo de trabalho. O Gerente de Projetos Paulo Marques informou disponibilidade do Assessor Tarcisio integrar o grupo de trabalho sobre o projeto de lei, assim como o DCA se propõe a colaborar na elaboração da proposta pedagógica. O conselheiro Cláudio deixou registrado que o texto do projeto de lei que está no CONANDA não é o de São Paulo e nem o da ABMP, mas é o resultado dos encontros das cinco regiões, com a participação dos diversos operadores do sistema de justiça e dos Conselhos Estaduais dos Direitos. O conselheiro Vicente ressaltou sobre a necessidade urgente de deliberação sobre o assunto, visto que há vários Estados aguardando as orientações para novas construções e/ou adequações das unidades de atendimento. O VicePresidente reafirmou que a sistematização da proposta é prioridade zero para o Conselho, indicando o nome da Sra. Eliana Crisóstomo para realização dos trabalhos, considerando que a mesma já sistematizou as propostas regionais. O conselheiro Marcos propôs que o Assessor Técnico Francisco ficasse exclusivo no grupo de trabalho. A proposta foi debatida visto a deficiência de pessoal na Secretaria Executiva. A conselheira Elizabete ponderou que as discussões havidas ainda não proporcionaram consenso no colegiado, havendo divergência nas questões mais polêmicas sobre o projeto de lei. O Presidente ressaltou que embora haja divergências há também a necessidade de apresentação da proposta. (103ª Assembleia do Conanda, 12/05/2003)

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O Conselheiro Não-Governamental Claudio Silva, ex-presidente do Conanda, assumiu um papel importante neste trecho, pois lembrou que o debate do PL do Conanda não era mais sobre o PL de São Paulo e menos o PL da ABMP, mas era o resultante dos eventos regionais realizados. Por esse trecho percebe-se uma dificuldade nas construções democráticas de políticas públicas, pois as memórias são mantidas com os atores e falta uma sistemática institucional mais adequada de gestão, monitoramento da informação e dos processos de debate. A permanência dos Conselheiros permitiu em parte a manutenção dessa memória. A 105ª Assembleia, realizada em julho de 2003, contou com a) Assinatura do Protocolo de Intenções e entre a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e o Ministério da Saúde para a implantação do Plano Nacional de Atenção à Saúde para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação, internação provisória e semiliberdade (Conanda, 2003).

A redação do Protocolo foi realizada pelo Grupo de Trabalho Saúde e Justiça, formado pelos Ministérios da Justiça e da Saúde e pelo Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fonacriad), em 2002. Esse protocolo deu bases posteriormente para a Portaria Interministerial n˚ 1.426, de 14 de julho de 2004, que estabelecia as diretrizes para a implantação e implementação da atenção à saúde dos adolescentes em conflito com a lei. O que deve ser valorizado nesse Protocolo foi o pioneirismo da Política de Saúde ao compreender o seu papel dentro do Sistema Socioeducativo. Esse pioneirismo não serviu de exemplo para as outras políticas setoriais, 69 conforme a entrevista de um técnico ministerial: ... de certa forma a gente (Ministério da Saúde) já tinha um norte tanto que na época, eu me lembro que cheguei a sugerir pra vários ministérios que fizessem algo parecido com o que a gente fez, sabe? Regulamentassem, por meio de portaria, as diretrizes como deveria ser esse atendimento, entendeu? Como deveria ser essa atuação dentro do socioeducativo. Então a gente sem dúvida nenhuma saiu muito mais na frente. Pra você ver, só hoje que o MEC está começando a ter uma atuação mais efetiva. A cultura não conseguiu encontrar o seu lugar no socioeducativo, aliás na época inclusive surgiu 69

A título de exemplo, a política de educação começou a discutir suas diretrizes para o Sistema Socioeducativo em 2015 (Parecer Conselho Nacional de Educação, Câmara da Educação Básica, 8/2015, aprovado em 7 de outubro de 2015).

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algumas ideias de fazer algumas portarias, mais uma coisa muito pontual, não aquela coisa de ação programática. Quer dizer, tem um recurso que vai ser permanente, que vai ser pactuado com esses gestores, a cultura vai entrar dentro da unidade socioeducativa assim, assim, assim, todas as unidades sócio educativas vão ter cinema ou vão ter um curso pros adolescentes aprenderem a usar vídeo e enfim, som, aquela coisa tudo que é menino gosta, fotografia, não teve isso. Então isso aí, por um lado a gente percebia uma certa dificuldade dos outros gestores de compreender essa realidade do socioeducativo, buscando fazer esse olhar diferente mesmo, porque a gente precisa de ter essa política diferente e essa política não pode ser pontual. Ela tinha que ser permanente. (Entrevistado 14 – Ator Governamental)

A saúde mental é outra temática delicada e relacionada com a promoção à saúde e o adolescente em conflito. Existe uma linha tênue entre as práticas de medicalização da adolescência infratora e a transformação desse adolescente em doente mental.70 A promoção à saúde no contexto do sistema socioeducativo buscava vencer essas perspectivas e adotar a visão de saúde integral. Segundo um técnico do Ministério da Saúde, que acompanhou as discussões do Sinase, ... uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Saúde é uma coisa, o delito é outra, ele não está deixando de cumprir a medida. Você não o está tirando de uma responsabilidade. Você está tratando de um problema de saúde dele. Separar essas coisas é muito importante (Entrevistado 7 – Ator Governamental)

Passados os seis primeiros meses do governo Lula, o Conselho começou a ser um espaço de demonstração das contradições da política socioeducativa, a partir dos exemplos de estados que já haviam sido pauta de debates, comunicados e liberação de recursos anteriores, e onde, mesmo assim, os problemas persistiam. Na 106ª Assembleia, por exemplo, os conselheiros trouxeram relatos das conferências estaduais das quais participaram e os depoimentos que ouviam sobre o tratamento socioeducativo em cada estado. São Paulo, Rondônia, Minas Gerais eram exemplos de estados que receberam recursos federais para a construção de unidades, mas ou as unidades não tinham sido construídas, ou já apresentavam problemas (rebeliões e intervenção policial). Esse fato soma-se àquela compreensão da invisibilidade e omissão do tema por parte dos governos estaduais que, após 13 anos de ECA, ainda não apresentavam medidas efetivas para essas políticas públicas.

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Refere-se aqui como exemplo ao “Caso Champinha” que ficou famoso nacionalmente por cometer um brutal assassinato de outros dois adolescentes de classe média paulistana. (CARLOS, 2011). Esse adolescente vem recebendo constantes atestados de insanidade mental e isso o conduziu para um enclausuramento em um hospital psiquiátrico, mesmo passado o seu tempo de cumprimento da medida socioeducativa.

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Um fato chamou atenção na 107ª Assembleia, de 14 de agosto de 2003, quando o Conselho aprovou a participação do Conselheiro Claudio Augusto da Silva no evento do Núcleo de Estudos da Criança e do Adolescente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NCA/PUC/SP) sobre as medidas socioeducativas. Portanto, vemos que a movimentação no Campo de Defesa vinha ocorrendo na temática socioeducativa. Como parte desses debates do Campo de Defesa destaca-se o Seminário Multidisciplinar Internacional sobre Direitos Humanos e Responsabilidade Penal Juvenil, ocorrido em São Bernardo do Campo, na Universidade Metodista, nos dias 12 e 13 de agosto de 2003. A primeira polêmica ocorreu na 106ª Assembleia do Conanda após o recebimento do convite para a participação no seminário. A polêmica ocorreu porque alguns conselheiros lamentaram o uso da expressão “direito penal juvenil” e, além disso, pela não inclusão de algum Conselho dos Direitos, inclusive o próprio Conanda, como promotor do evento. A polêmica ganhou contornos mais sérios após uma carta resposta, discutida na 108ª Assembleia, de 8 de outubro de 2003, que foi assinada pelo Ministro Nilmário Miranda e respondia alguns questionamentos levantados pelos participantes daquele seminário. O trecho da ata retrata o mal estar gerado entre representantes governamentais e da sociedade civil em relação à carta. O Presidente falou da correspondência que havia assinado respondendo as questões surgidas no Seminário Internacional Sobre o Direito Penal Juvenil, provocando grande polêmica junto à ABMP, e que a resposta de um ex-Juiz da Infância e da Juventude fora de indignação contra o Conanda. Considerando o relacionamento Conanda e ABMP, o Presidente propôs que o Conselho procurasse esclarecer o mal entendido. (108ª Assembleia do Conanda, 8/10/2003)

O juiz citado foi o Desembargador Amaral, o qual foi o autor do primeiro Anteprojeto de Lei de 1998 e a sua resposta defendia suas opiniões lá daquela época e sua defesa de um direito penal juvenil, algo que parecia ter sido vencido com a proposta de Projeto de Lei posterior da ABMP. Essa carta colocou em posição de conflito o posicionamento do Conanda e o da ABMP, gerando um incômodo entre essas instituições. A representante da ABMP se posiciona da seguinte forma: A conselheira Simone 71 informou que na avaliação da ABMP o mal entendido fora mais no sentido de equívoco conceitual por parte do CONANDA e na forma da redação, onde afirmava que não era possível falar 71

Simone Mariano da Rocha, representante da ABMP e conselheira do Conanda.

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em direito penal juvenil, como se isso pudesse acender a questão do rebaixamento da idade penal e não se pudesse trabalhar a questão do garantismo. Na sua avaliação não deveria relativizar a nomenclatura e sim o fundamento, de forma harmoniosa, que está perpassando tanto no CONANDA como em outras instâncias. Houve sim, um estranhamento na forma de redação. (108ª Assembleia do Conanda, 08/10/2003)

Mas, a polêmica se fortaleceu a partir de outros posicionamentos de conselheiros. Para o conselheiro Marcos 72 não se pode colocar apenas como uma infelicidade de redação, pois de certa forma isso reforça algumas ideias que são colocadas no simbólico e no real e que diante as dificuldades que o Brasil está passando para readaptação ao novo Código Civil, se faz necessário chamar a atenção que a expressão direito penal juvenil é no mínimo inadequada. O conselheiro Cláudio73 considerou importante resgatar e preservar as instituições que fizeram parte do processo para debater o Projeto de Lei de Medidas Socioeducativas através dos cinco encontro regionais; AMBP, FONACRIAD, SPDCA e CONANDA, para não macular o processo que está em andamento até hoje. Com relação à denominação, o conselheiro considerou tarefa para os estudiosos se posicionarem. O objetivo central foi o que o país inteiro apontou através das conclusões dos cinco Encontros Regionais, ou seja, a regulamentação da aplicação das medidas socioeducativas. Esclareceu ainda que o debate fora deliberado conjuntamente pelas instituições promotoras, por conta de equívocos e iniciativas isoladas que estavam surgindo. Informou que a minuta do Projeto de Lei já estava pronta e após deliberação será assinada pelas instituições promotoras. Ressaltou que a proposta fora construída pelo conjunto dos aplicadores do sistema, não concordando que a redação de um oficio vá destruir todo o processo. Esclareceu que foi feito uma opção política em trabalhar o processo conjuntamente, por motivo da sua complexidade do ponto de vista político. Se forem dispersadas as forças quem perderá serão os adolescentes em cumprimento das medidas. Considerou perda de tempo a discussão de denominações, alegando que o que tem que ser feito é direcionar o produto construído para o caminho legal, por isso a minuta do Projeto de Lei terá ampla divulgação, além de ser realizada oficina para um posicionamento técnico do projeto que irá reordenar aplicação das medidas socioeducativas. A conselheira suplente Maria de Lourdes 74 falou do Seminário Internacional sobre Direito Penal Juvenil e da experiência apresentada pela Fundação Abrinq de medidas socioeducativas. Com relação ao recebimento do Oficio, a conselheira informou que o Presidente da Fundação Abrinq ficou surpreso e pediu esclarecimentos do ponto de vista conceitual. A conselheira solicitou que o CONANDA fizesse ampla divulgação sobre o posicionamento do Conselho a fim de sensibilizar as entidades e esclarecer o “pano de fundo” dessas questões. (108ª Assembleia do Conanda, 08/10/2003)

72

Marcos Antônio Paiva Colares, representante da OAB e conselheiro do Conanda. Claudio Augusto Vieira Silva, representante da Fundação Fé e Alegria e conselheiro do Conanda. 74 Maria de Lourdes Alves Rodrigues, representante da Fundação Abrinq e conselheira do Conanda. 73

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Para buscar apaziguar os conflitos, o Ministro Nilmário responde de maneira amena, buscando preservar as conquistas realizadas e corrigir os equívocos gerados pela carta de sua Secretaria. Segundo a ata, seu posicionamento foi o seguinte: No que diz respeito a ABMP, o Presidente Nilmário concordou com as diferenças de pensamento dos seus integrantes e propôs que as divergências porventura surgidas fossem discutidas de maneira fraterna para não criar exasperação. Solicitou que se houver necessidade de reparações que fossem feitas preservando o caráter fraterno e cooperativo. (108ª Assembleia do Conanda, 08/10/2003)

Um aspecto interessante está relacionado aos conteúdos envolvidos no debate sobre a resolução do Sinase. O debate sobre o início, ou não, do direito penal juvenil no Brasil era muito mais problematizado pelos atores conselheiros da área jurídica, essa nomenclatura não soava de maneira tão grave para os demais. Aqueles que não eram da área jurídica procuraram diminuir a questão do uso da nomenclatura e valorizar o processo realizado até aquele momento, principalmente os debates dos seminários regionais e suas conquistas. 4.1.3. A formulação da política As discussões continuavam ocorrendo no nível do Grupo de Trabalho e demoravam a reaparecer na plenária do Conselho. O processo de formulação realizado nas plenárias dos Conselhos é de difícil operacionalização, o Grupo de Trabalho, em razão do número de participantes, era uma instância mais ágil na tomada de decisão. Portanto, ao longo de um tempo, a formulação da resolução do Sinase estava delegada ao Grupo de Trabalho. Isso pode ser constatado, pois ao longo do segundo semestre a questão do Projeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas não reapareceu nas assembleias do Conselho. Ele somente reapareceu na 117ª Assembleia, realizada em junho de 2004, mas com um informe rápido dizendo sobre a finalização do processo de revisão do PL feito pelo GT e a realização de uma nova reunião em julho para fazer a versão final. Nesse momento aparece uma primeira tensão entre a competência temática das medidas socioeducativas dentro da estrutura governamental, pois existia uma dúvida se deveriam ficar associadas ao Conanda ou ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que começava a ser proposto. A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) passou a ser formulada em 2004, como parte da deliberação da IV Conferência Nacional de Assistência Social, e foi um marco para as políticas sociais no Brasil. A PNAS, conforme seu documento

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final (MDS, 2005, p. 11), “expressa a materialidade do conteúdo da Assistência Social como um pilar do Sistema de Proteção Social Brasileiros no âmbito da Seguridade Social”. Além disso, a PNAS é fruto de um compartilhamento de projetos políticos entre militantes do campo da assistência social e o novo governo (GUTIERRES, 2013). O Conanda recebeu os membros do Ministério do Desenvolvimento Social em sua Assembleia para uma apresentação sobre a PNAS e os gestores do MDS chamaram os Conselheiros do Conanda para participarem do processo de consulta pública que estava aberto. Na assembleia seguinte (121ª), em outubro, foi realizada uma apresentação sobre a Versão Preliminar do Sistema Nacional Socioeducativo. Fizeram essa apresentação o Sr. Paulo Marques, da Secretaria de Proteção e Defesa do Direito da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Sr. Claudio Augusto Vieira da Silva, conselheiro não-governamental e coordenador da Comissão de Medidas Socioeducativas. Na apresentação foram listados os conceitos, princípios e organização do Sinase e os principais procedimentos da ação e gestão pedagógica para as medidas socioeducativas. Um ponto de tensão que reapareceu no debate foram as relações entre o documento do Sinase apresentado e a Política Nacional de Assistência Social, que tinha sido apresentada ao Conanda alguns meses antes e estava em fase de consulta pública. A Secretária Nacional de Assistência Social, Márcia Lopes, que ocupava um assento no Conanda, como conselheira governamental, tomou a palavra para dizer que não havia incongruência entre o que era debatido na PNAS e o Sinase, mas que esse poderia ser um assunto a ser tratado em uma comissão tripartite do MDS, do CNAS e do Conanda. Após essa palavra, o Conselheiro Claudio declarou que “o Conanda não tem que contextualizar alguns pontos, mas sim se posicionar em todas as questões elencadas no documento” e, com isso, o Conanda conseguiria se posicionar do seu papel frente ao Sinase e em relação à PNAS. Ficou estabelecida uma disputa entre o Conanda, como detentor da política de implementação das medidas socioeducativas, e o Ministério do Desenvolvimento Social, que passava a ser a institucionalidade gestora dessas políticas sociais. Alguns entrevistados tratam essa disputa com a metáfora do Tratado de Tordesilhas, que vinha dos aparatos institucionais muito mais antigos. Segundo uma entrevista, uma conselheira governamental relata: Antes, como que era, a área da criança e do adolescente você tinha FBCIA, o MDS, o Ministério da Assistência e tal. Ai como tinha essa divisão tinha uma discussão quem cuida do que? Aí ficou a área de direitos humanos cuidando da parte da proteção, proteção pensando nos direitos... (Entrevistado 11– Ator Governamental)

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Segundo um entrevistado, conselheiro não-governamental, ao lembrar da interpelação da PNAS pelo Conanda, relata: Nós participamos, o CNAS manda o documento para a gente da política e quando você pega a política, está lá na média complexidade as instituições de medidas socioeducativas em meio aberto e na alta complexidade estão as instituições de aplicação de medida socioeducativas de privação de liberdade. Está lá, na política nacional. E o Conanda se posicionou contrário. (Entrevista 04– Ator Não-Governamental)

Nesse sentido, os atores conselheiros fizeram questão de enfatizar a necessidade de fortalecer a articulação entre as institucionalidades que tinham interface com a questão. Assim, o espaço do Conanda passou a ganhar maior repercussão, pois foi o lócus de convergência e encontro da Comunidade de Política. A Comissão de Orçamento e Medidas Socioeducativas entregou ao Conselho o documento que foi resultante de suas discussões e deu origem ao Projeto de Lei e aos Parâmetros de Construção das Unidades Socioeducativas. Com isso, o Conanda passou a discutir em suas próprias assembleias questões relativas ao SINASE, fazendo das plenárias do Conselho o espaço de soluções dos conflitos. Essa transferência do lócus do debate promoveu uma ampliação dos atores participantes das reuniões do Conselho, fazendo com que cada assembleia fosse acompanhada por servidores públicos da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa da Criança da Secretaria Especial de Direitos Humanos, atores do Fonacriad e do Fórum Permanente de Organizações da Sociedade Civil (Fórum Nacional DCA) e do Unicef. Apesar desse processo de debate passar a ser realizado no âmbito da assembleia, ainda era usual a interrupção dessa dinâmica produtiva para o colegiado se deter em casos graves e emblemáticos relacionados com a aplicação das medidas socioeducativas. Foi assim, por exemplo, na última assembleia de 2004 (123ª Assembleia) e nas primeiras de 2005 (até julho) quando o Conselho passou a discutir o problema do Centro de Atendimento Juvenil Especializado – CAJE do Distrito Federal. O atendimento aos adolescentes infratores no Distrito Federal era tão problemático que o Conselho, juntamente com o Conselho de Defesa e Proteção da Pessoa Humana (CDPPH) encaminhou a necessidade de um processo de intervenção federal no DF. Essa situação demonstra os entraves da discussão e a herança institucional desta política pública, já que a modernidade da proposta do Sinase era travada por formas arcaicas no trato da adolescência infratora. Além disso, era constante a pressão entre os conselheiros não-governamentais de rápida intervenção naquela situação e a demora (ou mesmo a inação) por parte do Executivo e da propalada intervenção federal. Uma

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discussão de teor próximo a que iniciou o ano de 2005, ou seja, com intenções intervencionistas, também ocorreu no final daquele ano, mas, dessa vez, a pauta foi a Febem de São Paulo. Assim, continuavam a tramitar duas ações no âmbito do Conselho, a primeira relacionada com a dinâmica produtiva de busca por proposições e formulações da política e outra que usava o Conselho ainda como canal de denúncia pelas violações de direitos na implementação da política. Esse tensionamento advindo das práticas violadoras de direitos humanos não era uma novidade. Contudo, agora, a dinâmica de formulação passava a ser muito pujante e um norte utilizado como resposta para aqueles problemas tradicionais. A 127ª Assembleia do Conanda, de 18 de maio de 2005, iniciou os momentos decisivos no processo de formulação da resolução do Sinase. Naquela assembleia os conselheiros passaram a discutir parágrafo por parágrafo da proposta e decidir sobre alguns pontos polêmicos no contexto dessa política, e essa dinâmica se estendeu por mais duas assembleias posteriores. Na 127ª Assembleia ganha destaque a discussão sobre a delegação da implementação das medidas socioeducativas por organizações não-governamentais. Uma parte do colegiado defendia que essa era uma atribuição exclusiva do Estado, enquanto outra dizia que existiam experiências em curso de prestação de serviço por organizações nãogovernamentais que demonstravam que era possível essas organizações prestarem um bom serviço. Importante relembrar que esse debate já vinha desde o final do governo anterior. Um entrevistado demonstra esse conflito: Nós tivemos alguns pontos conflitivos, por exemplo, quando nós fomos aprovar o SINASE, por exemplo, tanto que o SINASE e algumas partes lá sobre, por exemplo, a responsabilidade da execução das medidas socioeducativas em meio fechado. Então isso foi conflituoso, por que parte dos conselheiros tinham a leitura que a execução das medidas socioeducativas em meio fechada é de responsabilidade de execução do estado e não de instituições da sociedade civil, sociedade civil é até uma parceira, mas isso tem que ser uma política pública então o estado que é responsável pela execução, então isso foi conflituoso dentro da própria sociedade civil do CONANDA porque tinha esse pessoal do CONANDA que executam medida sócio educativa através de convênio, de contratos com governos estaduais e que não ficaram felizes e que votaram contra. (Entrevistado 9 – Ator Não-Governamental)

Em votação, o primeiro grupo contrário à transferência dos serviços saiu vitorioso com 11 votos enquanto o segundo teve 7 votos ao final. O resultado, por sua vez, conforme

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está escrito na lei, deixa em aberto essa decisão, conforme relata um entrevistado Conselheiro Não-Governamental. na legislação não diz que não pode, porque tinha uma ala que dizia que tinha que escrever na legislação que ONG não faz acautelamento, que o ECA é omisso, o ECA deixa em aberto e o que acabou ficando é em aberto, nós queríamos que escrevesse que não pode fazer, que aquilo é papel do estado e perdemos. Então, só que eles acham que eles também perderam, porque eles queriam que dissesse no ECA que pode, então acabou ficando omisso de novo. (Entrevistado 4 – Ator Não-Governamental)

Outros pontos passaram por votação, naquela assembleia, dentre os quais podem ser destacados a necessidade do Plano Individual de Atendimento (PIA) para o adolescente socioeducando e o financiamento do sistema. Nas assembleias seguintes foram discutidos os textos iniciais que comporiam a publicação da resolução e retomados outros pontos que ainda estavam pendentes. Quanto aos textos da publicação, o zelo para com isso foi algo inusitado em uma dinâmica conselhista, haja vista a necessidade de encontrar palavras e termos adequados em cada texto. Entretanto, como essa era uma temática pertinente ao conselho e de sua propriedade, até nisso o colegiado se preocupou. Por sua vez, na 129ª Assembleia, em julho de 2005, o ponto de polêmica se deu em torno da capacidade de cada unidade socioeducativa. Dessa vez o conflito esteve entre os conselheiros e os gestores representantes do Fonacriad. Os primeiros defendiam uma capacidade menor em cada unidade, enquanto os outros demandavam uma maior capacidade, visando uma maior economia de escala. Esse debate foi postergado para a assembleia seguinte na qual a questão foi votada e venceu a proposta de até 3 unidades de internação com 30 adolescentes em cada, como o parâmetro arquitetônico do Sinase. A mudança de Ministro de Direitos Humanos, entrando Paulo de Tarso Vanuchi, marcou o início do ano de 2006. O ministro veio à primeira reunião do Conanda para se apresentar e ouviu algumas demandas dos conselheiros. Após essa apresentação, os conselheiros ponderaram sobre o momento político para a apresentação do Projeto de Execução de Medidas Socioeducativas ao Congresso e avaliaram o auxílio do novo ministro para essa apresentação. O novo ministro veio acompanhado de uma nova secretária nacional de defesa e proteção da criança e do adolescente, Carmem Silveira de Oliveira. O ano de 2006 foi o ano de aprovação da resolução do Sinase e do encaminhamento do Projeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas ao Congresso.

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O início do ano foi conturbado pelas denúncias que atingiam o governo Lula, especialmente o caso chamado Mensalão. Essas denúncias tiraram uma relativa tranquilidade na governabilidade do governo e a análise de conjuntura para a apresentação do PL passou a ser feita pelo Poder Executivo que buscou avaliar o melhor momento para essa apresentação. Por sua vez, esse PL era fruto de um longo processo de debate e isso pressionava o Poder Executivo para uma solução mais ágil. Na 138ª Assembleia, em abril de 2006, ocorreu uma reunião conjunta entre Conanda e Conselho Nacional da Assistência Social (CNAS). Essa reunião foi o momento de definição da data para a apresentação do projeto de lei na Câmara dos Deputados que ficou para julho de 2006 e de aprovação da resolução. Com isso, o Conanda e o CNAS passaram a um compasso de espera destes momentos, pois o texto da resolução e a proposta de lei estavam finalizados. Em junho de 2006, na 140ª Assembleia, a resolução do Sinase foi aprovada e sua publicação pôde ser feita. A aprovação foi um ato procedimental e protocolar a partir de uma salva de palmas, pois o debate já tinha ocorrido, conforme aqui retratado. Nesse tema, o Campo foi menos vigoroso do que nos debates sobre o Plano de Convivência Familiar e Comunitária. Isso determina as configurações do processo de discussão da temática socioeducativa que tem maior preocupação com elementos relacionados com a implementação da política e a aplicação da lei. Ou seja, as discussões do Sinase estavam muito mais voltadas para soluções em termos da melhor política pública e deixaram o terreno do direito como uma área de discussão para os atores do Sistema de Justiça.

4.2. O Plano de Convivência Familiar e Comunitária O Plano de Convivência Familiar e Comunitária é apresentado como mobilizador de conteúdos e propostas ampliadoras para a atuação em relação às medidas de proteção do ECA. A primeira versão do ECA trazia oito tipos de medidas de proteção (art. 101, ECA),75

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Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários; III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial;

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sendo que as duas últimas estavam ligadas aos temas do acolhimento institucional. Portanto, antes da retirada da criança de sua família e sua colocação em uma instituição (anteriormente, chamadas de abrigo), seriam tentadas uma série de alternativas mais brandas (inciso I ao VI). Entretanto, um dos problemas mais graves na aplicação dessas medidas era que os agentes públicos distorciam essa interpretação e usavam o acolhimento como a alternativa prioritária frente às situações relacionadas com a pobreza. Portanto, a medida de abrigamento, em muitos casos, passava a ser uma ação de punição contra a situação socioeconômica da família, que era castigada por sua pobreza com a retirada de suas crianças do mesmo ambiente comunitário/familiar. O ECA buscou, sobretudo, reduzir essa prática por meio de alternativas de políticas sociais que deveriam ser garantidas às famílias e crianças como forma de suporte às necessidades básicas. Junto com essas medidas, foram buscadas também alternativas de processos educativos junto às famílias para evitar situações de maus-tratos, caso a criança estivesse nessa vulnerabilidade. Abarcando as medidas de proteção, mas principalmente buscando instrumentos para correção das distorções na aplicação delas, nasceu o “Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária”, com o intuito de criar regras para o funcionamento de instituições de acolhimento, mas especialmente, de buscar condições para que a aplicação de medidas de retirada das crianças de suas famílias fosse acompanhada por ações para que o abrigo fosse provisório, garantindo assim a adequada convivência familiar e comunitária. Dessa forma, a política de convivência familiar e comunitária, direito fundamental de crianças e adolescentes, para a qual o Plano buscou ser uma referência, não se limitava ao reordenamento e funcionamento dos abrigos. Este foi um amadurecimento que brotou das situações de disputa e resistência entre os atores da Comunidade de Política e a mobilização social nascida a partir do Campo de Defesa, como será demonstrado. A política de convivência familiar e comunitária passou a abranger, além das ações para o fortalecimento de vínculos familiares e do reordenamento de abrigo, aspectos relacionados à adoção, pois essa também seria uma forma de garantir o direito à convivência familiar.

VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII - abrigo em entidade; VIII - colocação em família substituta. Parágrafo único. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade..

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Após a resolução do Conanda do Plano de Convivência e a partir da aprovação da Lei 12.010/09, alterada com base no Plano de Convivência, a lista de medidas de proteção inicial do ECA passou de oito para nove, sendo incluída a possibilidade de inclusão em programa de família acolhedora como mais uma alternativa em substituição ao modelo de abrigo que era usado anteriormente. 4.2.1. A evolução das discussões sobre as violações de direitos de crianças e adolescentes O processo de discussão sobre as vulnerabilidades e as violações de direitos de crianças e adolescentes no âmbito dos abrigos ocorreu de maneira tardia, se comparada com a temática das medidas socioeducativas, que estava presente desde os primórdios do Conanda. Foi somente a partir dos anos 2000 que a Comunidade de Política e o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes começaram a levantar elementos dessa temática, sobretudo como uma ação que violava direitos de crianças e adolescentes. Alguns fatos podem ser enunciados como motivos para essa demora. Primeiro, pelos abrigos serem uma questão de competência da política pública local, portanto municipalizada. Esse pode ter sido um motivo pelo qual o próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) não tomava o assunto como algo urgente. Segundo, por mais que crianças e adolescentes estivessem em abrigos, estes não ofereciam extremas violações com notoriedade de casos de violências ou mortes, e no senso comum, eram alternativas mais adequadas do que as famílias/comunidades cercadas de vulnerabilidade. Por fim, esse sempre foi um assunto intrinsecamente relacionado com a caridade e a filantropia e, até recentemente, sem uma entrada e regulação do Estado nessa seara: quem questionaria essas práticas ditas bondosas? Essa temática se deu a partir da Caravana da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM), em visita aos abrigos da rede federal, realizada entre 2 a 10 de dezembro de 2001. Esses abrigos eram beneficiados por repasses federais por meio da Rede de Serviços de Ação Continuada (Rede SAC). Portanto, por mais que os abrigos tivessem sido municipalizados, ainda restavam estruturas federais destinadas à execução dessa política. Essas eram heranças da atuação da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FBCIA) e da Legião Brasileira de Assistência (LBA), a primeira fortemente relacionada à política de justiça (Ministério da Justiça) e a outra com a política de

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Assistência Social. A Caravana percorreu 6 (seis) estados brasileiros76 com o objetivo de verificar a real situação dos programas de abrigos para crianças e adolescentes. Segundo o seu relatório77, ... pode-se notar que os orfanatos são piores que prisões. Quem está numa cela cometeu um crime. Cada dia que passa é um dia a menos de pena. Criança de abrigo é vítima. Cada centímetro que cresce, cada noite que atravessa, as chances de voltar a encontrar uma família de verdade diminuem. Hoje no Brasil existem mais 200 mil crianças à espera por uma família, vivendo o abandono dentro de um orfanato. A maioria tem mais de 4 anos. E todos têm menos de 19 anos. (BRASIL, 2002)

A alternativa colocada pelo relatório da Caravana, a partir da constatação de que “as chances de encontrar uma família de verdade diminuem”, foi o estímulo à adoção. Aqui começa a aparecer uma dicotomia nos conteúdos presentes ao longo dos debates sobre o Plano de Convivência Familiar e Comunitária. Essa dicotomia era estabelecida entre a “facilitação à adoção e, consequentemente, destituição do poder familiar” versus o “fomento à convivência familiar e comunitária”. Os resultados dessa Caravana foram apresentados em matéria de título “Órfãos do Brasil”

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no Caderno Especial do jornal Correio Braziliense,79 de 9/1/2002. Este jornal,

apesar de ter distribuição no Distrito Federal, repercute fortemente nos corredores da Esplanada dos Ministérios. Essa matéria serviu, então, como um disparador de iniciativas para iniciar o debate em torno da necessidade de repensar o modelo de abrigos no Brasil. Esse histórico, tanto da Caravana quanto da reportagem, foi relatado por um entrevistado que na época era técnico dos Ministérios envolvidos na temática. Segundo ele: [...] tem um historicozinho (sic) que no todo ele é quase nada, mas que foi essencial pra que o plano fosse feito, que foi em 2002. Não lembro se foi em 2001 ou em 2002. Foi feito uma caravana do Congresso, Caravana dos Direitos Humanos, no serviço do acolhimento da criança e adolescente em 8 estados. Saiu uma matéria no Correio Brasiliense, eu até tenho essa matéria

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Passando pelas cidades de São Luis, Salvador, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Mais informações sobre a Caravana, disponíveis em: http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/documentos/relatorios-de-atividades/RelatAtiv2001.html Acesso em: 20 ag. 2014. 77 Mais informações disponíveis em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoespermanentes/cdhm/documentos/relatorios-de-atividades/RelatAtiv2001.html Acesso em: 30 de ag. 2014 78 Mais informações disponíveis em: http://www.gaasp.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=362%3Aos-orfaos-dobrasil&catid=58%3Areflita&Itemid=73 Acesso em: 30 ag. 2014. 79 Essa matéria foi vencedora do prêmio Imprensa Embratel e finalista do Prêmio Ibero-americano pelos Direitos da Infância e Prêmio Esso de Jornalismo.

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digitalizada, e ela ganhou prêmio, chamava "Órfãos do Brasil", e mostrou coisas bem chocantes. Nessa época que saiu eu trabalhava na Secretaria de Direitos Humanos, mas na área da Autoridade Central da Adoção Internacional. E eu lembro que esse assunto eu estava sempre prestando atenção porque eu gostava. Foi interessante porque eu discutia as questões de direitos humanos, e falava: não, mas isso era só de assistência e tal. Aí quando saiu eu disse, olha lá, a comissão dos direitos humanos que fez, tá vendo os direitos humanos as crianças são violadas, mas não teve maiores desdobramentos. Pouco depois, aí sim em 2002, eu já estava na Secretaria de Assistência Social, MPAS, naquela época, e aí a gente fez um Colóquio, foi o primeiro Colóquio Técnico de Reordenamento da Rede de Acolhimento para a Criança e Adolescente. E foi uma parceria também assim, uma coisa bem caseira sabe, e trouxe representantes das secretarias de todos os Estados, e alguns atores que estavam com atendimento diferenciado e que trabalhavam essa questão da convivência. Na verdade, apesar da gente falar como reordenamento, vieram realmente pela primeira vez experiências legais de acolhimento familiar, família acolhedora, casa mais humanizada, e também de reintegração familiar. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

O entrevistado cita uma tensão entre a forma de prestação dos serviços de acolhimento e a garantia dos direitos nesse tipo de atividade. Esse limite foi desvelado pela matéria do Jornal, pois demonstrou que crianças e adolescentes em abrigos sofriam uma série de esquecimentos, tanto da Justiça, que as colocava no abrigo sem prazo de validade, como da própria família, que passava a perder o contato com a criança quando esta era institucionalizada. Assim, o conhecimento sobre a gravidade da situação, enquanto violações de direitos garantidos no ECA, possibilitou também o reconhecimento da necessidade de atuação no contexto das políticas públicas. Outro entrevistado relata esse início do processo apontando a ampliação dos interlocutores denunciantes e a chegada da temática ao Conanda, como o espaço institucional para auxiliar no enfrentamento e na discussão do tema, principalmente a partir do conhecimento da situação de forma mais estruturada, vindo da Caravana da Comissão de Direitos Humanos. [...] houve um evento no Ministério da Assistência Social, na época da Benedita quando ela ainda era ministra. Primeiro ano do Governo Lula, 2003, não sei ao certo se foi no final do FHC que reuniu instituições, governo, etc. As instituições da sociedade colocavam com muita força que o direito à convivência familiar estava sendo violado, não estava sendo respeitado, não tinha critérios para colocar os meninos em abrigos, tinham problemas sérios de financiamento. Então, aí foi colocado essa questão no Conanda que a assumiu e tinha que saber como estava essa situação. (Entrevistado 11– Ator Governamental)

O evento citado pelos entrevistados ocorreu em agosto de 2002 e foi o “Colóquio Técnico sobre Rede Nacional de Abrigos”. O evento foi organizado pelo Departamento da

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Criança e do Adolescente (DCA) do Ministério de Justiça (MJ), a Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), ainda no governo FHC. Além dessas instituições, contou com a participação das secretarias estaduais de assistência e entidades não-governamentais que atuavam com o tema.80 Os participantes do Colóquio indicaram a necessidade da realização de uma pesquisa nacional sobre a situação de crianças e adolescentes nos abrigos e um plano que regrasse o funcionamento dessas entidades (Brasil, s/d). Portanto, os organismos governamentais deram início a um debate sobre a situação dos acolhimentos institucionais e passaram a realizar uma pesquisa, conforme a demanda vinda dos participantes do Colóquio, pois existia um vazio de conhecimento sobre a situação das crianças e adolescentes nessas instituições. Nesse evento foi criada uma rede de comunicação entre os participantes que não contava com uma formalização por meio de Decreto, mas foi um espaço de articulação entre atores da Comunidade de Políticas e do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, pois eram atores não-governamentais e governamentais que implementavam essa política pública. Essa rede passou a ser chamada de Comitê para o Reordenamento da Rede Nacional de Abrigos, composto pelo Departamento da Criança e do Adolescente (DCA) do Ministério da Justiça, Secretaria de Estado da Assistência Social do Ministério da Previdência e Assistência Social (SEAS), Fórum Nacional dos Secretários Estaduais de Assistência Social (FONSEAS), Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Colegiado do Fórum Nacional de Conselheiros Tutelares, Rede Nacional de Instituições e Programas de Serviços de Ação Continuada (RENIPAC), Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fundação ORSA. O Comitê realizou três reuniões durante o ano de 200281 e representou um início para o debate sobre a temática do reordenamento dos abrigos. A 96ª Assembleia ordinária do Conanda, realizada em 12 de setembro de 2002, contou com uma apresentação sobre os resultados do Colóquio. Segundo a ata dessa reunião: Foi realizada discussão sobre a realidade atual dos abrigos e das evidências constatadas, concluiu-se que os programas nacionais de abrigos

80

Não foi possível acessar registros do evento, somente repercussões por meio das atas do Conanda e relatórios sobre o processo de elaboração do Plano. 81 Ocorreram nas seguintes datas: 1a. Reunião – 24/09/2002; 2a. Reunião – 22/10/2002 e 3a. Reunião – 22/11/2002 (BRASIL, s/d).

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encontram–se como verdadeiro caos e que não há o menor conhecimento da rede de abrigos no país. O que há são levantamentos esporádicos. Foi informado que os abrigos são heranças das antigas instituições CBIA e LBA e que desde a extinção desses órgãos os mesmos não sofreram reformas físicas e orçamentárias, pois os valores “per capita” continuam os mesmos. (grifos nossos) (96˚ Assembleia do Conanda, 12/09/2002)

Esta não tinha sido a primeira aparição da situação dos abrigos nos debates no âmbito do Conselho. Em dois momentos anteriores o tema dos abrigos apareceu, mas não teve a devida sequência e apropriação por aquele colegiado. O primeira foi na 76ª Assembleia do Conselho, de 4 de dezembro de 2000. Naquele momento o debate ocorreu a partir do aparecimento de uma matéria denúncia no Jornal do Comércio de Recife/PE e, com isso, os conselheiros viram a necessidade de “aprofundar os estudos para definir o perfil para funcionamento

de

abrigos

através

de

resolução

do

Conselho”,

mas

não

teve

operacionalização. Na 79ª Assembleia, de 4 de abril de 2001, o conselheiro representante do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) trouxe uma proposta sobre o “Programa Acolher”, que foi a primeira proposta para reordenamento das organizações sociais e governamentais que atuavam com abrigo. Esse tema ficou de ser reapresentado, mas não retornou ao conselho a partir da análise das atas das assembleias posteriores. Portanto, esses momentos mostram mais uma temática que apareceu no Conselho e que não ganhou projeção para ser tomada como uma questão pública relevante, algo feito somente no ano seguinte (2002), com os resultados da Caravana, da matéria do jornal e do Colóquio técnico. A pesquisa para conhecimento sobre a situação dos abrigos, demanda surgida no Colóquio, começou a ganhar efetividade. A questão da viabilização da pesquisa foi muito ágil. Na 97ª Assembleia do Conselho, em 16 de outubro de 2002, existiu uma informação de que o projeto do Censo dos abrigos não tinha sido apresentado para o Fundo Nacional do Direito da Criança e isso causava estranheza, pois tramitava de outra forma para captação de recurso. O convênio para a realização do levantamento de abrigos foi assinado entre o Conanda, a Associação Nacional de Centros de Pós Graduação em Economia (ANPEC) e o Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas (IPEA), e relatado na 99ª Assembleia, ocorrida em dezembro de 2002. Essa foi a base para a realização da pesquisa que teve seu início a partir do momento dessa assinatura.

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É possível notar que nesse primeiro momento, o debate sobre a situação dos abrigos ocorreu nas instâncias do Estado e na Comunidade de Políticas, já que foram os ministérios que passaram a assumir a temática e procuraram meios para o conhecimento sobre a real situação dos abrigos. Os conselheiros da sociedade civil que se manifestaram nas assembleias em relação ao assunto não trouxeram novidades e pontos de conflitos, apenas reforçaram os encaminhamentos que vinham sendo propostos pelos ministérios. Por sua vez, a mobilização do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescente também iniciou nesse momento, pois passaram a demonstrar que os abrigos não estavam garantindo os direitos de crianças e adolescentes. Nesse primeiro momento vale destacar a presença da Organização Não-Governamental Terra dos Homens que ajudou na mobilização do Comitê, bem como promoveu assistência técnica a esse espaço de debate, por meio de sua diretora-executiva, Cláudia Cabral. Importante destacar que 2002 foi o último ano do governo FHC, e tanto o colóquio quanto os outros procedimentos foram realizados em época de eleição e finalização de mandato. Portanto, quanto desses espaços de denúncia não ganharam mais força para compensar a relativa ausência da atuação do Estado no campo social que marcou o período FHC? Além disso, quanto dessas denúncias não ganharam ainda maior repercussão dado esse momento eleitoral, a partir da atuação da militância em direitos humanos? A presente pesquisa não responde essas questões, mas são pontos válidos para ficarem no horizonte de novas reflexões a serem empreendidas. Essa sequência de eventos fortaleceu a sensação de que crianças e adolescentes abrigados estavam tendo seus direitos violados, mas, principalmente, que a realidade desse público era invisibilizada, pelo menos do ponto de vista do governo federal. Essas denúncias, tanto jornalísticas, quanto oficiais, passaram a ser tratadas como situações de violações de direitos humanos, conforme destacou um dos entrevistados (Entrevistado 5), e isso mobilizou a Secretaria de Direitos Humanos (SDH) como o espaço institucional para visibilizar tal situação, mas em trabalho associado ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), durante a época de FHC, e posteriormente com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) no governo Lula. Como vimos, Lula indicou o Deputado Federal por Minas Gerais, Nilmário Miranda (PT) para assumir o cargo de Ministro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Nilmário compusera a Comissão de Direitos Humanos, durante as caravanas aos abrigos (2001), além de ser um militante da área dos direitos humanos no Estado de Minas Gerais.

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Em relação à questão da convivência familiar e comunitária, o governo Lula recebeu o começo de um processo que ainda não tinha grandes subsídios, apenas o conhecimento da necessidade do diagnóstico e, para isso, a “aprovação” da viabilização da pesquisa. Contudo, esse tema ainda não era reconhecidamente uma área de atuação do Conselho. Na primeira assembleia do Conselho do ano de 2003, o presidente anterior, representante não-governamental – Claudio da Silva – fez uma avaliação dos pontos estratégicos para atuação do Conselho na gestão que se iniciava (2003a 2005). Foram 20 os pontos apresentados pelo Conselheiro, mas a questão dos abrigos sequer apareceu como um assunto estratégico daquele momento. Portanto, é possível perceber que o assunto vinha em uma crescente em termos de preparação para o seu enfrentamento, mas ainda não era um tema apropriado pelo Conselho e por seus conselheiros, ao ponto de não ser incluído como tema prioritário para a gestão do Conselho que iniciava e muito menos para o novo governo. Dessa assembleia de fevereiro de 2003 até julho de 2003 não houve discussões sobre a questão dos abrigos. Em julho, na 105ª Assembleia, a pesquisa de levantamento dos abrigos reapareceu no Conselho, desta vez com a informação de que o questionário havia sido enviado ao Conanda, que faria uma análise técnica. Passados alguns meses, em outubro de 2003 (108ª Assembleia), a pesquisa apareceu novamente como ponto de pauta do Conselho. Dessa vez, foi a partir de uma notícia da chegada do “manual da pesquisa”, conforme aparece na ata. Não está claro o que é o chamado “manual da pesquisa”, mas pode ter sido o relatório parcial da pesquisa, pois nas reuniões seguintes o presidente do Conselho relata que recebeu esse material, que fez a leitura e iria encaminhar aos conselheiros. No primeiro semestre de 2003 começou a ser fortalecida a Frente de Deputados pela Adoção, que nasceu em maio, com o intuito de criar uma Lei Nacional da Adoção (Discurso e Nota Taquigráfica, Câmara dos Deputados, 29/04/200382). Esse projeto de lei supriria uma demanda suscitada pela Caravana da CMDH aos abrigos, em 2001, e foi, como será argumentado, a fonte para o fortalecimento do Campo de Defesa, incidindo sobre o

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Sumário do discurso do Dep. João Matos (PMDB/SC): Compromisso da Frente Parlamentar da Adoção de luta pela superação de obstáculos e preconceitos existentes na adoção de crianças no Brasil. Anúncio da apresentação, pela Frente, de projeto de lei sobre instituição da Lei Nacional da Adoção. Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/sitaqweb/TextoHTML.asp?etapa=3&nuSessao=059.1.52.O&nuQuarto=45&n uOrador=3&nuInsercao=0&dtHorarioQuarto=15:28&sgFaseSessao=GE%20%20%20%20%20%20%20%20&D ata=29/04/2003&txApelido=JOÃO%20MATOS Acesso em: 20 ag.2014.

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debate do Conselho que modificou os conteúdos relacionados às questões do Plano de Convivência. Em agosto de 2003, como resultado dos debates na Frente Parlamentar, o Deputado Federal João Matos (PMDB/SC) apresentou o Projeto de Lei n˚ 1.756, de 20 de agosto de 2003, para uma Lei Nacional da Adoção. O projeto recebeu apoios de deputados da base aliada do governo, assim como de oposicionistas, e isso foi uma de suas forças. Um ex-técnico da SPDCA narra a história sobre como ele teve acesso ao Projeto de Lei de Adoção e demonstra o princípio da relação tensa entre o projeto de lei anunciado e a Comunidade de Política. Entrevistado: Aí quando eu entrei no carro com o Ministro, ele estava com o Anteprojeto da Lei Nacional de Adoção e ele me deu o projeto assim e falou: - A gente é a favor ou contra isso? Aí pô, um negócio de não sei quantas páginas. Lá do Ministério da Justiça que era onde ficava a SEDH até o Congresso eram cinco minutos e falei assim: A adoção é um negócio legal, tal, bacana e falei assim, a gente é a favor disso aí. Aí chegou lá, era uma cerimônia de apoio para a lei de adoção, com a relatora da Comissão lá que ia analisar. Pesquisador: quem era? Entrevistado: Era a Maria do Rosário. Deputada do Rio Grande do Sul, fazendo festa, uma bancada lá. Teve fala do João Matos que é pai adotivo, do PMDB de Santa Catarina. Pesquisador: Tem alguma coisa a ver com a Frente Nacional da Criança do Adolescente ou era paralela? Entrevistado: Não, era a Frente Nacional de Adoção. Era paralela. Aí esse cara tinha uma coisa particular com aquele negócio ali, porque ele era pai adotivo, então teve... e ele encomendou esse projeto de alguns juízes. Um grupo de juízes tinha escrito o projeto para ele. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

A entrevista demonstra a força com que o Projeto de Lei nasceu, já que contava com quadros influentes dentro do PT, além de outros partidos. Ele era uma demanda nascida da Caravana da CMDH, que foi sempre um espaço cativo dos partidos de esquerda. Aparentemente, o colegiado do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente não tinha conhecimento sobre o nascimento daquele Anteprojeto. Portanto, o remédio para a questão do abrigo foi pensado na época da Caravana e foi criado posteriormente, faltava ampliar o seu debate no Campo de Defesa sobre a Criança e o Adolescente, bem como junto ao Conanda. Nesse sentido, o entrevistado continua o seu relato:

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E esse negócio se espalhou, foi distribuído por aí. Aí os organismos mais importantes do campo dos direitos humanos e da área da criança, quando leram o documento, falaram assim: Pô, esse negócio aqui está tirando crianças dos pobres para dar para os ricos. Tinha um processo quase sumário de destituição do poder familiar, uma coisa violenta ali. Cara, ali fizeram uma... o pessoal de São Paulo, é o Núcleo da Criança e Adolescente- NCA, pessoal do NCA da PUC (núcleo de estudos vinculados ao curso de serviço social), a Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Estado de São Paulo, o Ministério Público, fizeram tipo uma carta de repúdio, uma coisa assim e mandaram para lá e convidaram o ministro para debater isso em São Paulo. Aí a Secretaria Nacional viu que o negócio estava esquisito e propôs me mandar ao invés do Ministro; me mandou, para debater o negócio lá. Aí eu cheguei lá no TUCA, que era um teatro da PUC e assim que era um marco de enfrentamento da ditadura e o TUCA estava cheio de gente. E assim, eu fiz uma fala tentando conciliar as coisas e aí o pessoal começou a descer o cacete. E era só gente boa. Pessoal fera. A Myrian Veras, uma professora da PUC de quase 80 anos. Cara, só cacete. Tomando cacete. Fiquei tonto de tanto tomar pau lá. Aí quando eles acabaram me passaram a palavra e eu falei: Olha, vou dizer uma coisa para vocês que vão ficar muito surpreso assim, mas vocês me convenceram. Eu nunca mais vou voltar aqui para fazer esse discurso que eu fiz hoje e eu vou levar essas posições que vocês estão falando aqui, vou apresentar isso ao Ministro, vou defender essas posições, se o pessoal não me quiser lá que me tirem. Aí o pessoal aplaudiu, tipo, dobramos a presidência. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

Esse encontro ocorreu em 8 de novembro de 2003 e contou com entidades e representantes da sociedade civil ligados ao movimento em defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foi lançado um manifesto de chamamento para o evento na qual 18 organizações aparecem como assinante83 dentre essas existiam 1 organização governamental (Fundação Criança de São Bernardo do Campo), 1 Conselho dos Direitos (Conselho Estadual dos Direitos de Crianças e Adolescentes de São Paulo) 84 e as demais eram organizações nãogovernamentais. Esse foi o princípio da mobilização no Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, que se utilizou do Projeto de Lei Nacional de Adoção para seu

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Eram elas: Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Juventude (Abraminj-SP); Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude (ABMP-SP); Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ SP); Associação Paulista de Magistrados (Apamagis); Associação Comunidade de Mãos Dadas (ACMD); Associação dos Juízes pela Democracia (AJD); Associação Paulista de Terapia Familiar (APTF); Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP); Conselho Regional de Psicologia (CRP-SP); Conselho Regional de Serviço Social SP; Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); Centro de Apoio Operacional para Promotores da Justiça da Infância e Juventude do Estado de São Paulo (CAO/MP-SP); Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Luiz Gonzaga Junior (Cedeca-Santana); Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; Fundação Criança de São Bernardo do Campo; Fundação Orsa; Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC); Núcleo da Criança e do Adolescente de Pós-graduação em Serviço Social (NCA/PUC-SP); e, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP. 84 Importante demarcar que o Estado de São Paulo era governado por partido diferente da União e, costumeiramente, se coloca contra as políticas federais.

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fortalecimento. A partir desse momento começa um encontro entre o PLNA, os movimentos de oposição a ele e os debates sobre o reordenamento de abrigo. Em dezembro de 2003, na 112ª Assembleia do Conanda, o vice-presidente informou que recebeu e estava analisando o relatório da pesquisa. Esse primeiro relatório foi publicado em outubro de 2003.85 Portanto, o ano de 2003 finalizou com um primeiro relatório da pesquisa realizada, mas ainda não publicizado e com o surgimento do Anteprojeto de Lei Nacional da Adoção, que não havia passado por discussão no espaço do Conselho, apesar do conhecimento do Presidente do Conanda na época, Ministro Nilmário Miranda. Simultaneamente, o Projeto de Lei Nacional da Adoção passou a receber críticas vindas do Campo de Defesa, por fora do espaço do Conselho. Segundo os agentes sociais, o PLNA previa uma retirada quase sumária da criança pobre para a adoção, ou seja, um processo de destituição do poder familiar, ponto que foi vigorosamente debatido na época do ECA. As informações que tramitavam por dentro, ou por fora, do Conselho demonstraram as dimensões do processo de construção democrática e, além disso, apontaram para limites que as Instâncias Participativas têm, já que não dão conta do rol de informações sobre suas políticas públicas e, consequentemente, são lentas nas reações e posicionamentos que ocorrem em outras organizações. Em outras palavras, os atores no Conselho Nacional não tinham atentado para o risco que o PLNA trazia e foi necessário a mobilização por fora do Estado para compreendê-los. 4.2.2. A formulação da política Em abril de 2004, na 115ª Assembleia do Conanda, a discussão sobre os abrigos retornou com mais vigor no âmbito do Conselho. Segundo a ata: [...] o Presidente Nilmário Miranda informou sobre o reordenamento do Comitê de Abrigos incluindo o tema Convivência Familiar e Comunitária, ressaltando a necessidade de elaboração de um Plano Nacional para nortear as ações. Serão incluídos novos atores na Comissão que terá prazo determinado para conclusão dos trabalhos. Foi baixado Decreto Presidencial sobre o novo Comitê de Abrigos com a composição da estrutura vigente (Grifos nossos). (115˚ Assembleia do Conanda, 13/04/2004)

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IPEA. Levantamento Nacional dos Abrigos para Crianças e Adolescentes da Rede de Serviço de Ação Continuada (SAC). Relatório de Pesquisa Número 1. Outubro, 2003. Disponível em: http://www.mprs.mp.br/areas/infancia/arquivos/abrigos.pdf Acesso em: 22 ag. 2014.

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Apesar da ata citar um Decreto baixado naquela época, o único Decreto conhecido sobre o assunto foi editado em outubro de 2004.86 Portanto, quase 8 meses após aquela declaração na Assembleia. Na mesma reunião de abril, o coordenador para a questão dos abrigos da Secretaria de Proteção e Defesa da Criança e do Adolescente (SPDCA) foi ao Conanda para fazer um relato sobre como estava o andamento da situação. Ele apontou a aprovação da Comissão, a partir da indicação de funcionários da SPDCA e do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Além disso, o coordenador informou que a partir daquela data o debate não se daria apenas em torno da questão do reordenamento de abrigos, mas que mais dois outros eixos tinham sido acrescentados: Prevenção, entendida como integração de políticas básicas e supletivas para a manutenção da criança na própria família, e a adoção. Pela primeira vez o tema da adoção apareceu junto com a discussão do reordenamento do abrigo; portanto, começou uma ampliação dos conteúdos do debate da convivência familiar e comunitária. Essa mudança ocorreu como parte da pressão que foi desenvolvida pelos atores do Campo de Defesa e pelo evento/manifesto organizado por parte deles. Se essa parcela mais ampliada da sociedade civil não esteve presente nos primeiros tempos da temática do abrigo, ela apareceu com força e começou a resistir, com discussões que estavam no contexto de formação do próprio ECA, principalmente a garantia do direito fundamental à convivência familiar e comunitária. Na Assembleia de maio de 2004 ocorreu uma apresentação sobre os resultados parciais da pesquisa. A ata não apresenta discussões mais amplas sobre os resultados apresentados, somente cita que se deliberou pela divulgação dos slides aos conselheiros e a realização de uma apresentação dos dados na reunião de articulação entre o Conanda e os Conselhos Estaduais. Em setembro de 2004 (120ª Assembleia do Conanda) o tema dos abrigos voltou ao Conanda, com alguns informes sobre a viabilização da Comissão Intersetorial para a discussão do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Segundo registrado em ata, a Comissão não tinha sido viabilizada até a data por conta de falta de recursos do MDS, mas os conselheiros pediram explicações sobre essa falta de agilidade. Conforme citado, o Decreto foi assinado no mês seguinte e o caso demonstrou a demora em relação aos tempos das decisões tomadas nas Instâncias Participativas e os trâmites burocráticos sob poder do 86

Decreto de 19 de outubro de 2004: Cria Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, e dá outras providências.

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Poder Executivo federal, e como isso pode ser fator de enfraquecimento das deliberações nas arenas de debate e provocar a desmobilização dos atores políticos envolvidos. Ou seja, as discussões sobre o PNCFC vinham ocorrendo no âmbito do Conselho e de articulações ainda informais e somente em outubro passaram a ganhar um espaço institucional de debate. Caberia à Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, após 90 dias, entregar o Plano de Convivência Familiar e Comunitária. Ela era composta por: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Educação; Ministério da Saúde; Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA; Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência - CONADE; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - CONANDA; Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS; e Associação Nacional dos Defensores Públicos da União.

Uma portaria conjunta n˚ 1, de 12 de novembro de 2004, estipulou os participantes da comissão. Pelo Conanda, a representante foi a Conselheira pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Maria das Graças Fonseca Cruz. Entretanto, alguns entrevistados apontaram que outros nomes participaram da Comissão e não ficando restrito à Conselheira indicada. Essa é uma demonstração da força das organizações relacionadas com a Igreja Católica, pois a oficialidade da indicação ficou com essa representante, mas na prática outros atores tinham maior legitimidade para debater o tema dos abrigos, pois atuavam com a área. Ou seja, essas organizações ocupavam os espaços de decisão para realizar sua política. A coordenação da Comissão foi exercida por representantes da Secretaria de Direitos Humanos e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. O Decreto de criação da Comissão apresentou uma lista de possíveis atores que poderiam ser convocados para participações nas reuniões. Eram eles: Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente; Frente Parlamentar da Adoção; Fundo das Nações Unidas para a Infância - UNICEF; Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e da Juventude - ABMP;

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Fórum Colegiado Nacional dos Conselheiros Tutelares; Fórum Nacional dos Secretários de Assistência Social - FONSEAS; Conselho dos Gestores Municipais e Assistência Social - CONGEMAS; Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA; Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção - ANGAAd; e Rede Nacional de Instituições e Programas de Serviços de Ação Continuada RENIPAC.

Esses

atores

apresentam

diferentes

filiações,

havendo,

por

exemplo,

representantes do Poder Legislativo, de organismo multilateral, de Fóruns de Servidores Públicos e de Gestores e das articulações das organizações não-governamentais atuantes com o tema da criança e do adolescente e da adoção. No contexto dessa formulação eles integrariam a Comunidade de Política, já que tratariam diretamente com as instâncias estatais e os espaços de deliberação sobre a política pública para a criança e o adolescente, bem como formulariam o Plano. Sobre a dinâmica interna da Comissão, os entrevistados relatam uma relativa facilidade na forma como ocorreu a condução do debate. ... a gente conseguia avançar. Não ficava estancado em uma discussão sem fim, às vezes acontece isso. O plano era coordenado conjuntamente pelo MDS e pela Secretaria de Direitos Humanos, e funcionava com encontros, seminários, geralmente mensais, ou às vezes, um pouco mais afastados, que vinham todas as pessoas, e vinham pessoas para falar dos temas e depois uma parte geral com discussão mais ampla, e depois, desde o início se discutiu três sub grupos que cada um tratava dessas temáticas. Um tratava a questão do fortalecimento da família, de prevenção e formalização. O outro dos serviços de acolhimento, de como deveria ser o reordenamento, incluindo a questão da reintegração familiar, e o terceiro, as questões relacionadas à adoção. E desses três, em cada um tinha um consultor contratado da UNICEF para sistematizar os trabalhos. (Entrevistado 7 – Ator Governamental)

Mas, apesar de ser um debate desenvolto, existiram temas que foram fontes de tensão e, nesses casos, o debate era menos conclusivo, ou ocorria de forma mais ampla para não travar nas discussões dos detalhes. O tema da adoção foi um desses temas, que no contexto da comissão foi discutido de forma genérica, conforme aponta o entrevistado: Tanto que o plano, nas questões específicas, acaba que não se posicionando em relação ao prazo. Se for ver na questão da adoção, flui mais e é mais superficial pra entrar detalhadamente igual aos outros temas. Isso porque

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não tinha consenso. Chegou à conclusão que se aprofundássemos mais isso, não ia ser feito mais nada, porque aí parece que a divergência entra na discussão, e tudo vira briga e todo o resto pararia. (Entrevistado 7)

Nesse trecho destaca-se uma realidade a ser notada: o tema do Projeto de Lei Nacional da Adoção, que foi a fonte de tensão para a mobilização do Campo de Defesa e razão para a ampliação do escopo do debate, foi também matéria de disputas internas na Comissão. Esse intervalo entre a criação da Comissão Intersetorial e o início do seu trabalho, foi coincidente com alguns encaminhamentos da tramitação do Projeto de Lei Nacional da Adoção. O PL passou a ser discutido em Comissão Especial, instituída em 11 de agosto de 2004, com a designação da Dep. Teté Bezerra (PMDB/MT) para a relatoria. Até o final de 2004 o projeto de lei deveria passar por audiências públicas87 e consulta pública como parte do trâmite legislativo. Durante os anos de 2003 e 2004, a mobilização social do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes contra o Projeto de Lei Nacional de Adoção ganhou cada vez mais força. Em 8 de novembro de 2004, um grupo de 59 organizações88 lançaram a Carta de São Paulo em Defesa da Convivência Familiar e Comunitária. A carta levantava seis

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Audiências realizadas em Brasília, 24/08/2004 e a segunda, no Rio Grande do Sul, em 01/09/2004. Assinam a carta: Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente da Pós-graduação em Serviço Social (NCA/PUC-SP); Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP; Instituto Sedes Sapientiae; Curso de Especialização em Psicologia Jurídica da PUC-PR; Centro de Apoio Operacional aos Promotores da Justiça da Infância e Juventude do Estado de São Paulo (CAOIJ/MP-SP); Associação Brasileira de Magistrados da Infância e Juventude de São Paulo (Abraminj-SP); Associação Brasileira de Magistrados e Promotores da Infância e Juventude (ABMP-SP); Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris); Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP); Associação Paulista de Magistrados (Apamagis); Desembargador Marcel Esquivel Hoppe (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul); Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca-SP); Conselho Regional de Psicologia (CRP-SP); Conselho Regional de Serviço Social SP (Cress-SP); Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - SP; Associação Comunidade de Mãos Dadas (ACMD); Associação dos Juízes pela Democracia (AJD); Associação Paulista de Terapia Familiar (APTF); Fundação Criança de São Bernardo do Campo; Fundação Orsa; Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Luiz Gonzaga Junior (Cedeca-Santana); Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC); Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-SP); Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco (Amar-SP); IMDDCA/FDCA – Lapa; Secretaria de Assistência Social de São Paulo; NASP – ABC; Mov. Nac. Meninos e Meninas de Rua – SP; Projeto Meninos e Meninas de Rua de Guarulhos; ARAI – Pio Monte; AVIB; Conselho Tutelar São Bernardo do Campo – SP; Grupo Acesso – Sedes Sapientae; Comissão de Justiça e Paz/Escritório Modelo – D.Paulo Arns-SP; Ministério Público de São Bernardo do Campo; Abrigo São Mateus; AGES – CEDECA – Lapa; Associação Cheiro de Capim; Prefeitura Municipal de Diadema; NC Força Ativa; Pastoral da Criança; Fundo Municipal do Direito da Criança e Adolescentes – São Bernardo do Campo; Observatório PM Democ. Direta; Centro Social Nossa Sra. Bom Parto; SME / PM Campinas; Secretaria Municipal da Assistência Social / Projeto SAPECA / PM Campinas; Associação Semente; Instituto Dom Bosco; CMDCA / Rede Criança; Cruzada Pró-Infância; Assoc. Santamarense Mamãe; Conselho Tutelar Jabaquara; Funcef; Setorial DCADM – PTSP; Programa Abrigar – Instituto Camargo Corrêa; Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Santos); Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB-Santos; e Comissão de Cidadania da OAB-Santos

88

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pontos de oposição a elementos do Projeto de Lei Nacional de Adoção, desde sua oposição ao direito à convivência familiar e comunitária até o enquadramento da adoção como política pública para resolver a questão do abrigamento. Dessa forma, as organizações defendiam a retirada do Projeto de Lei ou a sua rejeição integral por parte dos deputados. Um entrevistado relata esse momento: [...] E assim, do ponto de vista do legislativo, a gente ficou tentando mudar o projeto de lei, então aquele projeto de lei foi para a consulta pública, o pessoal caiu de pau em cima, uns diziam assim, isso não tem jeito, tem que rasgar e fazer outro e criou uma tensão ali porque, inclusive a SEDH ficou apoiando essas coisas de mudar o projeto, né. Do ponto de vista técnico a gente apoiava a mudança. Aí conversava com a.... e assim, a Maria do Rosário um pouco incomodada com a gente, desse negócio, querendo fazer e aprovar logo o texto, tinha uma coisa esquisita naquilo tudo ali, sabe. E chegou a ter umas reuniões em que ia aprovar, e aí a gente tinha que fazer um lobby, chamar pessoas para travar o processo, na última hora, fazer um jeito que não tivesse quórum, assim umas estratégias meio de guerrilhas, assim; aí, numa dessas que ia aprovar a lei, uma assessora da Maria do Rosário, a gente tinha feito outro parecer, contrário, apresentado à comissão, não sei o que... aí ela recebeu aquilo e assessora dela veio conversar comigo. Aí ela falou comigo assim: Pô, você não sabe não? E eu falei: Não. Não sei o que? Ela disso: Pô, tem um acordo aí para aprovar esse negócio. E eu: Que acordo? Ela: Do João Paulo Cunha, lá do Presidente da Câmara. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

O entrevistado relembra a linha do tempo de sua história, desde aquele dia que entrou no carro e que recebeu o Projeto de Lei do ministro até essa conversa com a assessora da deputada e chega à seguinte conclusão: ... na verdade, o jogo já estava dado. Mas, questionado sobre a “decisão já tomada” e mudança provocada pela pressão social no Campo de Defesa dos Direitos, ele chega à outra conclusão: eu estou mexendo com política pública a um tempo e tem coisas que tem um tempo de maturação. Se esse tempo tiver chegado, se você pegar e tiver uma ação propositiva e tal, a coisa anda. E tem outras coisas que se o tempo não tiver chegado, não adianta. (Entrevistado 13– Ator Governamental)

Esse entrevistado acrescenta sua opinião sobre o porquê do tema da adoção ser controverso na Comunidade de Política. Segundo ele: [...] depois que vivi esse negócio eu cheguei à conclusão que adoção é a coisa mais difícil que você tem para trabalhar. Porque as pessoas discutem adoção com os nervos à flor da pele. São pessoas normalmente envolvidas com processos de adoção, então, é uma coisa muito complicada. E o que acontece também? Do ponto de vista da justiça da infância e da juventude, a

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adoção é onde o juiz faz a média dele com as pessoas. Aquilo ali dá um poder danado, aquele poder de decidir: essa aqui vai para você. De ele poder arrumar uma criança para uma família. Porque assim, a adoção, o pessoal costuma falar assim, que é uma cobra de duas cabeças, uma fila de duas cabeças, você tem uma fila de meninos esperando para ser adotados e uma fila de gente esperando para adotar. Mas, porque isso não casa? Porque assim, o perfil de crianças que as pessoas querem não é a que tem para ser adotada. Então, assim, quando aparece uma criança branquinha lá, não sei o que, menino, sem problemas de saúde, o juiz, ele tinha o poder de dar para quem ele quisesse. Então, isso é um super poder para o juiz. Um super poder, e aí isso foi regulamentado, o cadastro nacional de adoção, só pode fazer adoção internacional se não tiver candidato no país, várias coisas que mexeu na estrutura do judiciário e teve discussões muito ríspidas assim, inclusive com gente que com certeza tinha comércio de criança aí. Cara que ganhava grana para mandar criança para o exterior, umas coisas estranhas. Então, acho que foi uma lei muito interessante. (Entrevistado 13– Ator Governamental)

Essa dicotomia entre a Lei de Adoção e o Plano de Convivência Familiar e Comunitária foi fundamental para a ampliação dos conteúdos que começaram a ser discutidos dentro do Plano. No dia a dia da Comissão, porém essa não foi uma tensão tão presente, ou seja, apesar do Campo se mobilizar contra o Projeto de Lei de Adoção, os conteúdos sobre adoção e a melhor forma de aplicá-los não foram temas de grande disputa para os atores que passaram a discutir o Plano. Ou seja, o Plano não era contra a adoção e reconhecia nesta um bom mecanismo para garantir convivência familiar e comunitária para crianças em situação de abrigamento, desde que não tivessem vínculos familiares. Todavia, o Plano colocava a adoção como uma medida para casos de uma total inadequação ou inexistência de ambiente familiar para a criança. A adoção não podia ser tratada como uma forma de destituir o poder familiar e era essa a principal crítica ao Projeto de Lei Nacional de Adoção vinda do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. Um entrevistado relata essa separação ao citar o PL e os debates da Comissão: [...] uma coisa completamente separada na verdade, inclusive acho que a maioria das pessoas (...da comissão intersetorial...) eram contra o projeto que foi colocado. Na verdade era um projeto ruim. Justamente porque não tinha discussão com ninguém. Era só da cabecinha de quem estava com a visão muito focada numa questão só e não tinha a visão do todo e tal. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

Logo em seguida, esse mesmo entrevistado conclui, demonstrando a força que a mobilização anti-PL Nacional da Adoção teve para o fortalecimento do debate: “Não se fala, mas esse início mostra que não teria plano se não tivesse esse germe. É interessante”.

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Outro entrevistado também declara essa mesma compreensão ao dizer que a mobilização mudou o debate sobre o Plano. Este entrevistado conclui: Parece que assim, no caso dessas coisas dos abrigos, que já havia certo consenso nacional em torno de alguns pilares, que esses abrigos grandões tinham que acabar, isso era uma coisa meio óbvia que todo mundo já tinha digerido essa coisa. Então, havia, vamos dizer, uma vontade e um desejo de mudança ali, que aquele grupo de pessoas, ele pode ter um espaço, foi dado um espaço para ele produzir, e aí eu acho interessante como o Plano, ele acabou ficando representativo. (Entrevistado 7 – Ator Governamental)

A oposição ao Projeto de Lei ocorreu em defesa dos direitos fundamentais e não foram desenvolvidas propostas mais consistentes para o objeto do PL, ou seja, para a adoção. Entretanto, o PL Nacional da Adoção permanecia como uma sombra para o Plano de Convivência Familiar e Comunitária e, por vezes, ele reaparecia no debate para reaquecer as propostas de garantia de direitos fundamentais. Exemplo disso pode ser tirado de um debate no contexto do Conanda, na 124ª Assembleia de fevereiro de 2005, quando uma conselheira relata sua participação em evento realizado em São Paulo e seu posicionamento contrário ao PL. Em dezembro de 2004 foram divulgados os resultados da pesquisa nacional sobre abrigos.89 A pesquisa demonstrou alguns fatos que, por si, traziam outro patamar de discussão sobre a questão do abrigo no Brasil. A pesquisa mostrou que 86,7% das crianças e adolescentes abrigados possuíam família, com a qual a maioria mantinha vínculos (58,2%), sendo os motivos relacionados à pobreza os mais citados para o abrigamento (52%). Ainda assim, o tempo de duração da institucionalização variava de 2 a 5 anos para 32,9% de todos os abrigados. Do universo pesquisado, 68,3% dos abrigos eram organizações nãogovernamentais e 67,2% deles possuíam significativa influência religiosa. No que se refere à manutenção dos abrigos não-governamentais, cerca de 70% dos recursos eram próprios ou se originavam de doações de pessoas físicas ou jurídicas. Os repasses da União totalizariam cerca de 30% do total de recursos utilizados pelos serviços. Os resultados da pesquisa auxiliaram na construção de propostas em relação ao Plano, mas, principalmente, consolidaram a constatação de que os direitos à convivência familiar e comunitária vinham sendo violados, a partir da existência dos abrigos.

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IPEA/CONANDA. O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: 2004. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/3050 Acesso em: 26 ag. 2014.

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Passado o tempo de produção do Plano pela Comissão, um novo Decreto foi promulgado, em 24 de fevereiro de 2005, dando mais tempo para que a comissão apresentasse seus resultados. A Comissão trabalhou, conjuntamente, do momento do Decreto (novembro de 2004) até abril de 2005, prazo final para a apresentação dos resultados aos Conselhos Nacionais da Criança e do Adolescente (Conanda) e da Assistência Social (CNAS). Essa discussão ocorreu simultaneamente ao processo de criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Algumas questões debatidas na comissão foram princípios abordados no documento do Plano Nacional de Assistência Social, lançado oficialmente em novembro de 2005, que estruturou as bases funcionais e de princípios para o SUAS. Desses encontros resultaram especificamente a presença dos “Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos”, a “Matricialidade Sociofamiliar” e o termo “Convivência Familiar e Comunitária”, que passaram também a ser incorporados no SUAS. Simultaneamente ao debate de consolidação do SUAS, ocorreram também definições de ações que estavam relacionadas com a política pública de Assistência Social. Esse aspecto tem relação direta com o debate do Plano de Convivência Familiar e Comunitária, pois uma pequena parte da rede de abrigos ainda estava relacionada com a política da Assistência Social no Brasil. Por outro lado, existiam ações federais relacionadas, principalmente, à antiga FBCIA. Apesar de essa Fundação ser uma autarquia, com relativa autonomia, estava também associada à política da criança e do adolescente que tradicionalmente esteve dentro do Ministério da Justiça. Portanto, aqui se desenvolve uma fronteira entre temas de garantia de direitos de crianças e adolescentes, que passariam a ser assimilados pela SDH, e o atendimento nos serviços de acolhimento institucional da política de Assistência Social. Após a finalização do período de trabalho, a Comissão apresentou seus resultados ao Conanda. Segundo um entrevistado: A gente apresentou uma versão preliminar da comissão, estava ruim, a gente sabia que estava ruim. Aí, o Conanda falou está meio ruim, tal. E a gente falou, mas isso agora também é de vocês, vocês têm que colocar isso para uma consulta pública, porque aí vão vir contribuições e daí a gente melhora. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

Esse chamado do técnico ao Conselho aponta questões relacionadas à forma de trabalho nas Instâncias Participativas. Nesse processo decisório existiu, no funcionamento da Comissão Intersetorial, um distanciamento entre o trabalho dos conselheiros, nãogovernamentais ou governamentais, e a chegada dessas informações para o nível do

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Conselho. Aqui se percebe que o Conselho não sabia o que estava se passando no âmbito da Comissão, sendo que ao mesmo tempo estava lá representado. Entretanto, segundo um entrevistado, a participação de conselheiros foi uma constante no processo de debate da Comissão: “O que achei interessante é que do começo ao fim foram os mesmos conselheiros, a assistência foi sempre a mesma, às vezes vinha outros, mas do Conanda também. (Entrevistado 7 – Ator Governamental)”. O colegiado do Conselho e o próprio espaço institucional do Conselho foram agentes fracos no momento de formulação desse Plano, diferentemente do que ocorreu com a questão das medidas socioeducativas. Entretanto, a re-apropriação do debate pelo Conselho que estava representado por conselheiros na Comissão, se não funcionou tão efetivamente para a formulação do Plano, foi importante para a interlocução junto ao Campo de Defesa dos Direitos, principalmente a partir da consulta pública que seria realizada nos meses seguintes. Essa apropriação pelo Conselho, por sua vez, não ocorreu de maneira ágil. A Comissão encerrou seus trabalhos em abril/2005 e somente em julho/2005 houve uma informação, na assembleia do Conanda, passada pelo técnico da SNPDCA, sobre o processo de formulação do Plano. Segundo a informação passada na 129ª Assembleia, julho/2005, os temas debatidos eram desde as políticas para a família, o afastamento da criança da família e a destituição do poder familiar. Começou a existir uma orientação mais clara sobre a proposta do Plano que já tinha sua versão produzida pela Comissão. Em outubro de 2005, na 132ª Assembleia do Conanda, o tema do Plano de Convivência Familiar e Comunitária reapareceu. Dessa vez, a partir de uma constatação que gerou tensões na relação entre Conanda e CNAS. Segundo a ata, O grupo (plenário do Conselho) entendeu que o documento está muito voltado para a Assistência Social deixando de contemplar outros setores importantes (educação, saúde, trabalho e emprego, etc.) não garantindo os direitos da Criança e do Adolescente. Razão pela qual o documento terá que ser revisto e pedem ao Conanda que assuma a atribuição de passar informação para os outros Conselhos para que possam também contribuir na elaboração do documento e posterior discussão com o CNAS. O plenário resolveu que o grupo de trabalho deve formalizar ao Conanda dizendo o que está insuficiente e quais são os pontos fragilizados que devem ser revistos. (132 ª Assembleia do Conanda, 17/10/2005)

Toda a agilidade que foi demandada para o coletivo do Conselho na Assembleia de outubro não teve novos encaminhamentos até o fim do ano. Ou seja, a tentativa de consolidar elementos de direitos humanos no Plano não se viabilizou de maneira tão rápida.

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No retorno do assunto ao Conanda, em dezembro de 2005, na 134ª Assembleia, foram dados os seguintes encaminhamentos: Em relação ao Plano Convivência Familiar Comunitária, foram tirados os encaminhamentos: 1) CONANDA, neste momento, coordenar o processo de discussão junto aos Conselhos da Saúde, Educação e Ministério do Trabalho e Emprego, implantação do Sistema Nacional da convivência familiar e comunitária; 2) CONANDA provocar junto ao CNAS a discussão deste assunto em 2006) 3) Conselheiros encaminharem até dia 13.12 sugestões quanto aos seguintes assuntos que necessitam ser melhor detalhados no plano: criança e adolescente com deficiência, criança e adolescente com HIV, Sinase. Enviar as sugestões para o e-mail da Andréa: 4) CONANDA e o CNAS enviarem o plano aos Conselhos Estaduais da Criança e do Adolescente e da Assistência Social para encaminhem os CMDCAs e CNASs a versão do documento para discussão e obter contribuições; 5) Relatórios dos CEDCAs e CEASs devem ser enviados ao CONANDA até final de fevereiro/06; 6) Sistematização pelo CONANDA, março/06. Esta proposta vai ser apresentada pelo presidente do Conanda ao CNAS. (134ª Assembleia do Conanda, 07/12/2005)

Portanto, de outubro a dezembro não houve ações efetivas em relação ao que tinha sido proposto anteriormente. Isso demonstra que o tempo de formulação da política não ocorre de maneira coerente e racional no âmbito das Instâncias Participativas. Por outro lado, a indicação da Consulta Pública aparece pela primeira vez para a data de março de 2006, ou seja, praticamente um ano após o encerramento da Comissão e a entrega da primeira versão. O trâmite do Projeto de Lei Nacional de Adoção corria no Poder Legislativo. Em Reunião Ordinária da Comissão especial, realizada em 17/05/2006, a relatora apresentou seu voto final que demonstrou a incidência do Conselho na discussão. A relatora afirmou que seu relatório tinha sido embasado nas Audiências Públicas realizadas no decorrer dos anos tanto naquela casa como nos estados, além de contribuições do Conanda. A Deputada destacou que inicialmente esse Conselho “condenou integralmente” a proposta, mas que no decorrer de discussões foram sendo abertas possibilidades de discussão. No mês seguinte da apresentação do Voto Final, a relatora compareceu ao Conanda para um debate sobre a lei. A 140ª Assembleia do Conanda, realizada em sete de junho de 2006, foi um marco para o Conanda no debate sobre o Plano Nacional e o Projeto de Lei Nacional da Adoção. Além da relatora, estiveram presentes nessa assembleia: o Promotor de Justiça Murilo José Digiácomo, representante da ABMP, a Senhora Márcia Prates, Assessora Jurídica do Legislativo, a Senhora Márcia Santana, Assessora da Deputada Federal Maria do Rosário.

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A Dep. Teté iniciou narrando os encaminhamentos relacionados ao PL e o seu debate com a sociedade no final de 2005. Apontou que os pontos polêmicos do projeto eram: 1) questão do financiamento dos programas de adoção pelos recursos oriundos de dedução dos contribuintes do imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas destinados aos fundos dos direitos da criança e do adolescente da união e 2) questão do cadastro prévio dos adotantes e adotandos centralizados em um cadastro nacional. A ata do Conselho não cita as soluções dadas para esses problemas indicados pela Deputada. O Promotor de Justiça apontou que a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Área da Infância e Adolescência (ABMP) era contra qualquer Projeto de Lei sobre Adoção e a favor do Plano Nacional de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. O Promotor ressaltou que o Congresso Brasileiro da ABMP, realizado no mês de maio de 2005, em Belo Horizonte, aprovou “moção de repúdio” ao Projeto Substitutivo. Solicitou que o Conanda não se manifestasse apenas contra o Projeto, mas que fizesse articulações junto ao Congresso Nacional para a sua rejeição. Importante destacar que essa organização não-governamental, a ABMP, foi assinante do manifesto contra o PLNA (novembro de 2003) e da Carta de São Paulo (novembro de 2004), ambos os documentos estruturadores da incidência do Campo de Defesa contra o PLNA. Em seguida, alguns conselheiros, principalmente não-governamentais, passaram a expor suas críticas ao PLNA e alguns defenderam o Plano de Convivência Familiar e Comunitária como a alternativa efetiva do Conanda para o assunto e concluíram pelo rápido encaminhamento do Plano ao Congresso Nacional como proposta contra a PLNA. Esse debate sobre o PLNA pode ter sido o motivador para a agilização da realização da Consulta Pública que não havia sido encaminhada anteriormente e foi agilizada. A ata da 141ª Assembleia, em julho/06, cita que a Consulta Pública estava em processo de realização. Essa Assembleia marcou também uma maior ênfase do Conselho no tema da Convivência Familiar e Comunitária, pois o SINASE foi aprovado naquele mês e isso liberou mais espaço para o debate, assim como determinou mais agilidade para sua aprovação. Segundo a ata, Foi informado que o prazo para consulta pública tinha sido prorrogado até o dia trinta e um de julho próximo e que, até o momento, já́ havia recebido cerca de cem contribuições. Após o prazo final será́ feita a sistematização das contribuições recebidas. Para tanto, foi aprovada a constituição do Grupo de Trabalho composto por dois representantes do Conanda sendo que o nome do conselheiro Helder foi indicado como um dos representantes para

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compor o grupo e dois representantes do CNAS, sendo que a SEDH, o MDS e o Unicef terão um representante cada. Comporão ainda o GT, três consultores cuja finalização dos trabalhos esta prevista para o final do mês de agosto. O documento final será submetido à deliberação do Conanda e CNAS nas respectivas Assembleias do mês de setembro. O lançamento do documento está previsto para o dia doze de outubro de dois mil e seis. (141ª Assembleia do Conanda, 12/07/2006)

Portanto, nessa reunião foi encaminhada uma série de ações para terminar o PNCFC até o fim do ano. Estipulou-se o prazo para o fim da Consulta Pública: agosto de 2006. Além dos encaminhamentos para a análise dos conteúdos das propostas recebidas pela Consulta Pública. Um entrevistado, participante ativo do processo, narrou como ocorreu: [...] Aí ele colocou para Consulta Pública, vieram sei lá umas 400 contribuições, aí a gente teve que trabalhar, sistematizar esse negócio, foi uma trabalheira que a gente teve. E aí, sistematizou e ficou um texto legal. Ficou bem interessante. Ficou interessante e aquelas entidades que mandaram contribuição se sentiram contempladas e redatoras dos documentos assim, como coautora do documento, então assim, de uma paulada só, a gente conseguiu não apenas enfrentar alguns elementos abrasivos que tinham e tal, mas também a gente conseguiu uma sinergia de fazer aquele negócio ser considerado; então muita gente começou a escrever e se referir ao plano e tal e fazer coisas com base no Plano e exigir com base no Plano, então o Plano realmente ele se tornou uma referência assim, inclusive para a mudança da lei (Entrevistado 13– Ator Governamental)

Na 142ª Assembleia, realizada em agosto de 2006, foi feito o seguinte relato: O Senhor Presidente informou que no dia oito de agosto aconteceu uma reunião entre ele e o Presidente do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, com a presença de técnicos da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, além do conselheiro do Conanda Helder Delena e a Senhora Alison Sutton, representante do Unicef. Nesta reunião, havia sido definido um calendário para leitura, sistematização e incorporação das contribuições oriundas da consulta publica ao Plano Nacional. Foram estabelecidos nesta reunião e referendados pela Assembleia do Conanda os seguintes acordos: a) leitura, sistematização e incorporação das propostas até a primeira semana do mês de setembro de dois mil e seis; b) no período de doze à quatorze de setembro leitura, sistematização e debate sobre o documento no Conanda e, de dezenove a vinte e um de setembro debate no CNAS; c) as Assembleias do Conanda e do CNAS para deliberação do Plano Nacional, serão realizadas nos dias dezoito e dezenove de outubro de dois mil e seis sendo que oportunamente, será́ definido em qual destes dias será́ realizada a Plenária Conjunta. Para a referida decisão levou-se em consideração a Assembleia Descentralizada do CNAS e Eleição da representação da sociedade civil no Conanda, ambas no mês de novembro. Para o ajuste neste calendário foi necessário alterar a data da Assembleia do Conanda agendada previamente

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para os dias quatro e cinco de outubro de dois mil e seis. (142ª Assembleia do Conanda, 08/08/2006)

A 143ª Assembleia, setembro/2006, apresentou alguns números da Consulta Pública: foram recebidas 228 contribuições. Um total de 198 contribuições foi recebido por mensagem eletrônica, das quais 122 contribuições com propostas, 59 com conteúdos diversos e 17 de parabenização. Além das mensagens eletrônicas, outras 30 contribuições foram recebidas por carta, sendo 12 dirigidas ao Conanda e 18 ao CNAS. As críticas e apontamentos mais qualitativos em relação ao Plano foram no seguinte sentido: Informou a metodologia utilizada no processo de sistematização [das contribuições]: Fortalecimento da família – políticas que dão sustentação às famílias, a convivência ameaçada – onde se identifica alguma crise e onde há necessidade de uma interação; convivência interrompida – acolhimento institucional ou familiar; separação da criança da família e adoção. É importante a participação do judiciário é necessário que o Plano aponte estratégias de envolvimento do Poder Judiciário. Mudanças culturais, principalmente a relação de gênero. Estes são os temas relevantes e recorrentes. Na crítica mais estrutural do plano, é dar ênfase no acolhimento ao invés da promoção da conveniência familiar e a preservação do empoderamento da família. (143ª Assembleia do Conanda, 12/09/2006)

Na 145 ª Assembleia, em novembro de 2006, foi informado sobre a aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito à Convivência Familiar e Comunitária de Criança e Adolescente, que ocorreria no dia 13 de dezembro pela manhã, por meio de uma Assembleia Conjunta entre o Conanda e o CNAS. A ata da 146ª Assembleia, dezembro/2006, traz informações sobre a cerimônia de aprovação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos de Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária. Essa foi uma cerimônia rápida que aprovou o que tinha sido produzido no processo de discussão dos últimos anos. As palavras dos conselheiros foram no sentido de saudações ao processo de elaboração e seus resultados e compreendendo esse momento como um marco para a história da política pública para a criança e o adolescente. Essa assembleia final para a aprovação contou com atores não-governamentais responsáveis pela sistematização dos resultados da Consulta Pública e também pela redação final do documento. Além disso, o segundo semestre de 2006 foi um momento de liberação de pauta no âmbito do Conselho, já que o Sinase havia sido aprovado em julho daquele ano e, consequentemente, houve mais tempo para o trabalho com o Plano de Convivência. Uma comparação entre os processos, feita por um entrevistado, pode dar informações para

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compreender os motivos do debate sobre o sistema socioeducativo passar pelo colegiado do Conselho enquanto o outro debate, da convivência familiar, tramitou por fora (comissão, grupos, Poder Executivo, Frente Parlamentar). Eu acho que existe uma contra força no caso do SINASE muito forte. Do ponto de vista da lei nacional de adoção, os consensos, o plano, de certa forma eles pacificaram e de certa forma houve uma nova posição hegemônica, uma mudança cultural no sentido de que alguns conceitos foram afirmados e outros caíram em desuso, alguém ganhou a batalha, entendeu? Da discussão, do que deve ser feito, e no caso do SINASE, ainda não aconteceu isso, ainda tem essa coisa da vingança da repressão, da punição, essa coisa..., o cara que faz tem que sofrer, tem que se ferrar, tem uma coisa assim. O socioeducativo mesmo, o conceito de pegar esse cara, ele está em formação, torná-lo cidadão, eu acho que, assim, muita gente não engole aquilo, essa história. Na verdade, assim, passa a mão na cabeça, o Estado sendo conivente e gera mais violência, daí gera sentimento de não responsabilização e no caso do socioeducativo a coisa é um pouco mais complicada. (Entrevistado 13 – Ator Governamental)

Outro entrevistado resume como ocorreu o papel do Conselho no caso analisado: Na verdade, você fez uma pergunta, o papel dos conselhos: nunca teria saído se não fosse pela resolução dos conselhos, foi uma força bem legal. Agora, durante as discussões desse GT eles estavam presentes, mas não foram tão atuantes não. Assim, eu acredito no produto, dessa parte mais pensante, sairia sem os conselhos, mas não teria essa força e essa capilaridade que teve essa discussão. Chegou de uma forma bacana. Na construção em si não foram atuantes. Estavam representados na comissão dos subsídios. Não lembro de ninguém participando, só do Fernando. (Entrevistado 7 – Ator Governamental)

Essa opinião do entrevistado enquadra dois tipos de ações sobre as quais o Conselho tem postura diferente, pois o Plano de Convivência Familiar e Comunitária ganhou um caráter bastante abrangente, e abarcou ações de políticas sociais para buscar garantir as condições para a convivência familiar e comunitária. Conforme um entrevistado relata: ... ele acabou quase que sendo “O Plano Nacional”, da política da infância e da adolescência, tanto é que alguns municípios se referem assim: se implantar o plano da convivência familiar e comunitária, implantará todos os demais programas porque ali tem um pouco de trabalho infantil, tem até um pouco de socioeducativo e tudo mais... (Entrevistado 03– Ator NãoGovernamental)

Assim, o Plano de Convivência Familiar e Comunitária chegou a sua conclusão como um instrumento amplo, mas que conseguiu resistir em termos de direitos fundamentais, principalmente, ao pautar a convivência familiar e comunitária como um esforço coletivo que

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passava por políticas sociais e aplicação de medidas temporárias de proteção. Pautou também esses direitos na medida em que ofereceu alternativas ao debate sobre a facilitação da adoção como uma forma de atuação para as crianças e adolescentes abrigados. O debate sobre o Projeto de Lei Nacional de Adoção continuou após a resolução do Conanda/CNAS e ao longo dos anos seguintes (2007 e 2008). Entretanto, a aprovação do Plano de Convivência conseguiu inverter a pauta e as perspectivas iniciais assumidas no Projeto de Lei Nacional de Adoção foram abandonadas e substituídas por uma nova postura, na qual a adoção passa a ser um tema dentro de uma área mais ampla, relacionada à convivência familiar e comunitária. Nesse período, como é possível constatar no histórico de tramitação do PL,90 os procedimentos foram de debate e inclusão de outros projetos de leis que tinham finalidades próximas à que estava sendo proposta no PL original. Por fim, o Projeto de Lei 6.222/05, apresentado pela Senadora Patrícia Saboya (PSB-CE), foi o projeto determinante para a proposta final. Esse projeto resultou na Lei 12.010, de 3 de agosto de 2009, dando ainda mais ênfase ao direito à Convivência Familiar e Comunitária e alterando procedimentos em relação à adoção.

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Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=129112 Acesso em: 10 ag. 2014.

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Capítulo 5 O Controle Social na formulação da política pública: disputas e resistências na construção democrática da Política Pública Nessa tese estudou-se o ato da produção da agenda das políticas públicas, pois buscou-se responder por que alguns problemas se tornam relevantes e são enfrentados. Esse é um processo complexo que envolve dimensões relacionadas com os conteúdos da política, as organizações que atuam com a política pública e a disponibilidade governamental para enfrentar a problemática. O Modelo dos Múltiplos Fluxos, que aqui é tomado como referência, auxiliou nessa sistematização final dos dados da pesquisa. Ele foi útil para dar vazão para a análise das múltiplas variações causais do fato político investigado, pois cruzou as interfaces teórico-empíricas com as categorias relacionadas com o processo de agenda setting e a formulação da política pública. O cerne da discussão passa pelo fato político analisado, ou seja, “as dimensões assumidas pelo controle social na formulação das políticas públicas”, e dessa forma, o centro da análise é no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, no contexto de cada um desses aspectos e, sobretudo, na interface entre Campo e Comunidade. A estruturação desse capítulo está dividido em quatro partes, sendo que na primeira há um debate sobre aspectos demarcadores dos casos analisados. Em seguida, com apoio do Modelo Múltiplos Fluxos de Kingdon (2003), analisa-se os elementos relacionados ao reconhecimento do problema como algo a ser enfrentado (fluxo dos problemas), das oportunidades abertas no debate político em torno da necessidade da mudança na política (fluxo da política) e da existência de subsídios técnicos previamente formulados como alternativas para o enfrentamento dos problemas (fluxo das soluções). Conforme elementos críticos apresentados, esse Modelo não é tomado como a tradução em escala reduzida do fato político analisado. As relações entre Estado e sociedade no Brasil não podem ser compreendidas como problemas de polity, relacionados com a existência de instituições políticas, ou politics, relacionados com o processo político. Ou seja, as institucionalidades podem não significar restrições objetivas aos atores, pois em muitos casos, elas próprias podem carecer de reconhecimento e melhor delimitação funcional no interior do Estado, bem como de reconhecimento sobre o seu papel no âmbito da sociedade. Além disso, no contexto de nossas relações sócio-estatais, as instituições democráticas ainda

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são frágeis e coexistem com comportamentos políticos-administrativos modernos e tradicionais (FREY, 2000) e isso é mais um fator dificultador da racionalidade dos processos políticos. O modelo também não é tomado com delimitações muito rígidas de cada fluxo e sobre os elementos que os compõem, pois aspectos encontrados nos casos analisados podem ser associados e explicados do ponto de vista de mais de um fluxo. Em outras palavras, fatos e explicações relacionados aos casos podem ser tomados sob diferentes pontos de vistas em mais de um fluxo, pois múltiplas variações causais incidem sobre o mesmo fato político e acionam diferentes vieses de explicação.

5.1. Elementos demarcadores dos casos analisados: as ideias sobre o enclausuramento e o papel do Estado Conforme debatemos, na perspectiva dos Múltiplos Fluxos as ideias são bases epistemológicas da discussão das políticas públicas. Isso faz parte de uma guinada dos estudos sobre essa área de conhecimento. Os autores que destacam o papel das ideias enfatizam a centralidade do discurso, da interpretação, da representação simbólica, entendendo que a produção de políticas se aproxima mais do processo de argumentação do que de técnicas formais de solução de problemas. (CAPELLA, 2016, p. 14)

Esse aspecto incide nos casos analisados, pois o processo de argumentação se deu em torno dos conteúdos da política de enclausuramento. A discussão sobre as técnicas formais de solução de problemas esteve envolvida na negociação, mas o escopo da formulação das políticas públicas foi ampliado quando encontrou argumentos relacionados com princípios debatidos na redação do ECA. O papel atribuído ao Estado e às organizações não-governamentais na formulação e na implementação de políticas públicas também foi outro objeto que encontrou posicionamentos distintos entre os atores que formulavam a política pública. Portanto, antes de entrar na sistematização possibilitada pelos fluxos, aborda-se esses dois aspectos que são centrais nos casos analisados, pois tratam tanto da natureza dos conteúdos das políticas de enclausuramento, quanto da percepção do papel do Estado por parte dos atores políticos.

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5.1.1. As ideias relacionadas à política pública de enclausuramento e o Controle Social As ideias aplicadas ao contexto analisado estão relacionadas com o processo de debate sobre a temática do enclausuramento de crianças e adolescentes, pois esta pode ser tratada como a representação da convivência entre o hoje, trazido com o ECA, e o ontem. Para compreender essa convivência lançamos mão de uma arqueologia do Estado e investigamos como as institucionalidades se formam e como promovem (ou não) o movimento de Democraticidade do Estado (DAGNINO et al. 2006). Formam-se, assim, as bases para a análise das dimensões assumidas pelo Controle Social na formulação de políticas públicas. As políticas públicas para a criança e o adolescente, no contexto pós-constituinte, foram refundadas retoricamente na perspectiva anti-enclausuradora. O Estatuto da Criança e do Adolescente teve seus pilares de sustentação formados pelos direitos fundamentais e na compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos no exercício desses direitos e isso gerou uma trajetória futura associada a esse novo marco legal. Nesses processos, conforme apresentamos, a condução da promoção de políticas públicas sociais, compreendidas como modos de operacionalização para a garantia dos direitos fundamentais, está colocada pari passu com as políticas de proteção. Nessa relação, a ideia de proteção social contra vulnerabilidades se estabelece desde a existência das políticas sociais, pois são elas que garantem condições básicas para a vida das famílias. Essa é também a base argumentativa para a ideia de desinstitucionalização, pois o foco deixa de estar nas instituições, estatais ou não-governamentais, e passa a centrar-se nos beneficiários das políticas, ou seja, crianças e adolescentes e em suas relações familiares e comunitárias. Nessa perspectiva, os problemas causadores do enclausuramento devem ser resolvidos primordialmente no nível familiar-comunitário, com apoio e assistência das organizações que fazem a política social, para que em um segundo momento, na existência de vulnerabilidades sem solução, passem para a fase de institucionalização. Assim, o enclausuramento passa a ser tratado como ações esporádicas até a solução dos problemas que levaram a criança/adolescente para aquela instituição. Esse escopo mais geral sobre as ideias relacionadas com as políticas de enclausuramento tem efeitos no debate sobre as resoluções estudadas em três perspectivas. Primeiramente, o processo de debate amadureceu deixando os temas técnicos e tendo como suporte a discussão sobre argumentos e princípios. A segunda perspectiva tem relação com a busca por consolidar mecanismos permanentes na prestação de serviços públicos. A terceira

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perspectiva está relacionada com a necessidade de mudança no ECA e as resistências que essas mudanças provocavam. Os casos analisados passaram a ganhar mais repercussão e amplitude discursiva a partir do momento que deixaram de ser ações de normatização sobre o funcionamento e a implementação das políticas, ou técnicas formais de solução de problemas, e passaram a incorporar argumentos relacionados às perspectivas de centralidade na criança/adolescente. O Plano de Convivência Familiar e Comunitária, por exemplo, teve seu início demarcado com preocupações relacionadas com o chamado “reordenamento de abrigos”, mas passou a incorporar a garantia do direito fundamental à convivência familiar e comunitária, forjado principalmente pelas ameaças trazidas pelo surgimento do Projeto de Lei Nacional de Adoção (PLNA). Na perspectiva do reordenamento dos abrigos, a ideia central estava relacionada com uma proposta de reconfiguração das instituições de acolhimento e do processo judicialburocrático para tornar e manter a criança abrigada. Essas ações ganharam visibilidade, pois as crianças “eram esquecidas naquelas instituições”, conforme o relatório da Caravana da Comissão de Direitos Humanos aos Abrigos (BRASIL, 2002). Com isso, no momento da discussão do Plano de Convivência, preocupações dos debates iniciais sobre o ECA retornaram e, para além da disputa sobre a nova forma de implementar abrigos, a discussão passou a pautar-se pela compreensão de que era necessário firmar políticas sociais antes mesmo da alternativa-abrigo, para garantir a convivência familiar e comunitária. O Sistema Nacional Socioeducativo também iniciou com o debate sobre a questão do direito penal juvenil, ou seja, código de procedimentos para apuração judicial do ato infracional. A proposta do Desembargador Amaral, surgida em 1997, e a proposta ABMP de 2001 foram exemplos dessa forma de tratar a temática. Todavia, posteriormente, principalmente a partir da percepção do Conanda sobre o seu papel, o debate sobre o Sinase incorporou perspectivas relacionadas aos direitos fundamentais de adolescentes socioeducandos de forma que ampliou a temática debatida91 e a perspectiva do Direito Penal Juvenil ficou de lado, mesmo que reaparecesse em momentos conjunturais.92

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O documento “Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade”, produzido pelo Conanda em 2001, é um exemplo de tentativa de alterar a forma como a prestação de serviços públicos socioeducativos era pautada por preocupações relacionados com a qualidade do ambiente das Unidades de internação para as medidas socioeducativas. 92 Especificamente, na situação da tensão entre os Conselheiros Nacionais e o Ministro Nilmário Miranda que respondeu as dúvidas dos participantes do Seminário Multidisciplinar Internacional sobre Direitos Humanos e

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Outro conteúdo que fundamentou os casos analisados, a partir da trajetória traçada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, está relacionado com a busca por consolidar as políticas públicas como aparatos permanentes e ações garantidas universalmente. Nesse caso, busca-se deixar de lado a noção de “caso-problema” para passar para a tentativa de institucionalização de uma prática parametrizada em nível nacional. Essa é a base para a ideia de desjuridicialização, na medida em que cria aparatos de políticas sociais relacionados com as violações de direito e deixa a esfera judiciária como lócus para apuração do ato infracional. Anteriormente ao ECA, cabia ao juiz, além do ato de julgar, também o direcionamento do adolescente aos espaços de aplicação de medidas. Em muitos casos, a política social não era oferecida de maneira adequada e faltavam condições para a aplicação da medida socioeducativa. Com isso, esses atores do Poder Judiciário sentiam os desafios de lidar com adolescentes que estavam à margem da sociedade e sentiam também a impossibilidade de aplicar medidas adequadas e de forma mais amena que o enclausuramento. Por esse motivo, destacou-se a atuação da Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça para a área da Criança e Adolescência (ABMP), que representava profissionais desse segmento e que deu importantes subsídios para as propostas do Sinase. Essa divisão entre políticas públicas e ações do judiciário também pôde ser vista no PNCFC. A manutenção da criança na instituição de acolhimento deve ser decidida pelo Juiz da Vara da Infância. Anteriormente, a manutenção da criança/adolescente naquele ambiente era monitorada pela equipe de gestão do abrigo. Ou seja, o Poder Judiciário necessitava ser acionado para a revisão do abrigamento. Essa dupla atribuição entre as políticas judiciárias e o Poder Executivo, ou ONGs implementadoras, dificultava a análise do tempo e da permanência das crianças e isso pôde ser um dos motivos do esquecimento das crianças naquele ambiente. Com os debates da resolução do PNCFC ficou evidenciada a necessidade de uma ação das políticas do judiciário entrando no universo das instituições de acolhimento, portanto, junto às políticas sociais, para promover audiências sobre a pertinência da manutenção da criança e do adolescente no abrigo.93 Por fim, outro conteúdo marcante nos dois casos foi a disputa entre a manutenção do aparato legal conquistado, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e as mudanças necessárias para enquadrá-lo em novas bases de funcionamento. Existia no movimento social Responsabilidade Penal Juvenil, ocorrido em São Bernardo do Campo, na Universidade Metodista, nos dias 12 e 13 de agosto de 2003. 93 Alguns anos depois do debate da resolução os órgãos de justiça estipularam a forma de funcionamento dessas audiências (Vide: Instrução Normativa nº 02/2010 da Corregedoria Nacional de Justiça e Provimento n˚ 32/2013 do Conselho Nacional de Justiça).

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pela criança, conforme apontou Gregori, ex-ministro e entrevistado por Marques (2008), “uma facção que não queria mudar o ECA”. Por outro lado, as investidas em termos de Projetos de Leis nascidos de perspectivas limitadoras de direitos trouxeram a necessidade de discutir as alterações do ECA no nível legal. Entretanto, os contextos dos casos permitem verificar que mesmo com a mudança da lei, foi garantido que os princípios que estavam colocados no momento do nascimento daquele marco legal, retornassem e balizassem as discussões, resistindo com esses elementos. Essas questões analisadas permitem verificar conteúdos gerais sobre a forma como o atual ainda é enfrentado pelo o antigo, pois a forma como as políticas estavam configuradas demonstram que o Estatuto da Criança e do Adolescente era uma lei que ainda carecia de aplicação compatível. Além disso, as institucionalidades existentes e a sua forma de atuação ainda carregavam uma herança institucional que impactava na maneira como atuavam. Por mais que a retórica de fundação do ECA tivesse perspectivas amplas e antienclausuradoras, as práticas de institucionalização e os modos de operacionalização das políticas ainda careciam de referenciais que permitissem a ligação entre a retórica e a prática. Assim, os conteúdos e as ideias em torno da política ajudam no sentido de servir como princípios para o debate sobre as políticas públicas, mas era necessário também chegar ao nível da implementação dessas políticas. As questões técnicas pautaram inicialmente a discussão sobre as políticas públicas. Elas estavam no horizonte de discussão, principalmente por influência dos implementadores (atores do sistema de justiça, organizações não-governamentais e gestores de unidades socioeducativas, por exemplo) e dos dilemas de sua implementação, mas o universo das ideias foi pouco a pouco se ampliando, principalmente, sob influência dos princípios debatidos na fase inicial do ECA e relacionados com as ideias contra o enclausuramento. 5.1.2. O Controle Social e as disputas em torno do papel do Estado e das organizações da sociedade civil Parte das diversidades em relação à forma de pensar sobre os conteúdos das políticas públicas para a criança e o adolescente, estavam relacionadas com a compreensão por parte dos atores políticos sobre o papel do Estado nesse contexto, ou seja, a forma como o Estado se move (ou se moveu) para atender as retóricas institucionalizadas e os seus modos de operacionalização também demarcam o debate entre o hoje e o ontem.

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Por vezes, no contexto dos casos analisados, os aspectos sobre a forma de movimentação do Estado eram vistos por certos atores participantes como aparatos inadequados para conseguir a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Esses aparatos ainda podiam estar associados com uma visão fundamentada na repressão, base para a formação do Projeto de Política Pública Autoritário, ao invés de serem tratados como mecanismos para a socioeducação. Eles também podiam ser tomados como formatos incapazes de alcançar a necessidade de atuações mais customizadas de acordo com o interesse superior da criança e do adolescente. Assim, a tentativa de transferência das responsabilidades estatais para as organizações da sociedade civil foi um conteúdo que marcou os dois casos analisados. Essa transferência pode fortalecer as propostas do Projeto de Política Pública Assistencialista, principalmente se essa ação estiver associada ao discurso de desresponsabilização estatal pelos fatores que geram problemas na sociedade, hegemônico durante a década de 1990, com o Projeto Neoliberal. Os casos analisados demonstram exemplos sobre como essas propostas de configurações entre Estado e organizações não-governamentais incidiram sobre as formulações de políticas públicas. Ao final da formulação do Sinase, por exemplo, o debate no Conanda se estabeleceu sobre a permissão para as Organizações Não-Governamentais atuarem com as medidas socioeducativas de meio fechado. A resolução aprovada não faz menção específica sobre os limites da atuação das organizações da sociedade civil nas medidas socioeducativas de meio fechado e atribuiu a elas grande parte das medidas socioeducativas em meio aberto. Nesse caso, percebe-se o interesse dos implementadores das políticas em abocanhar parte desses serviços e sua prestação em boa parte dos estados e municípios. No PNCFC, as ONGs, em sua maioria nascidas na década de 1990, como demonstrado pela pesquisa IPEA (2003), já eram a principal forma de atuação com as políticas de abrigamento. A resolução, por sua vez, buscou garantir formas permanentes de financiamento dessas organizações por meio de repasses orçamentários. Esses repasses ficaram garantidos pela política de assistência social94 e tiveram influência dos debates do PNCFC.

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A resolução n˚ 109/2009 do Conselho Nacional de Assistência Social tipifica os serviços de acolhimento institucional como serviços de alta complexidade. Essa tipificação foi o resultado de um debate na política de assistência que define os serviços a serem prestados por aquela política e, consequentemente, a forma de financiamento.

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No contexto pós-ECA, ao olhar para o Estado, também se discute o papel das organizações não-governamentais do ponto de vista da implementação e da decisão sobre a política pública. Por esse motivo, lança-se mão do conceito de Comunidade de Política privilegiando as configurações estatais, mas reconhecendo o caráter diferenciado dos atores quando passam a acessar esse espaço. Esse conceito buscou também enfatizar as diferenciações existentes entre as funções de organizações não-governamentais quando assumem funções públicas, daquelas funções feitas por elas mesmas quando participam de espaços de mobilização social. Um primeiro aspecto tem relação com as entidades não-governamentais no Estado, pois entende que a ocupação dos espaços estatais permite direcionar recursos públicos-estatais para as organizações não-governamentais. A ausência de aparatos burocráticos relacionados com as políticas para criança e adolescente poderia gerar maior liberdade para a atuação das organizações não-governamentais. Esse era, por exemplo, o entendimento dessas políticas como balcão de captação de recursos para Ongs, conforme discutido. Além disso, a ocupação dos espaços estatais também permite às Ongs se posicionarem de maneira distinta no interior do movimento social, ou mesmo do Estado. Com isso, aqueles que estão no espaço estatal ganham um status diferenciado e isso também determina o interesse em ocupar essas posições. As organizações não-governamentais prestadoras de serviço público para a criança e o adolescente vieram, após a institucionalização do ECA, com um mercado profissional associado a elas. Esse aspecto amplia as influências que a rede implementadora pode ter no momento da formulação da política. E com isso trazem também os interesses neocorporativos que incidem nas novas configurações das políticas públicas. Côrtes (2015) cita que essa perspectiva teria uma dupla função, aproximar os dirigentes públicos dos canais de influência societal, bem como comprometer as organizações não-governamentais com o que foi decidido. Contudo, conforme apontado, o risco desse processo é tornar as organizações herméticas em seus interesses e restringir a abertura dos canais de participação entre as organizações que fazem a implementação e as que decidem sobre a política pública. A institucionalização de Fóruns interorganizacionais foi um caminho para evitar que as representações da sociedade civil perdessem de vista seus papéis de diálogo com uma instância social mais ampla (GURZA LAVALLE; VON BÜLOW, 2014). Eles eram a possibilidade de estabelecer uma frente de accountability entre representantes e representados (LAVALLE, ISUNZA, 2011).

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O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes foi durante algum tempo representado pelo Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, conforme debatido no capítulo sobre o Fórum Nacional DCA. Contudo, o Fórum Nacional DCA também foi se limitando nas organizações que o compõem, sendo um espaço de representação de e entre as organizações que lá estavam, faltando mais capacidade de diálogo com a diversidade de temas relacionados à infância no país. Em outras palavras, o Fórum Nacional DCA passou a ser o espaço de representação organizacional, ao invés de ser o representante do segmento da infância no país. A chegada do governo FHC e sua defesa do projeto neoliberal trouxe maiores dilemas para sociedade civil e sua representação no espaço do Conselho. Nesse período, o Campo de Defesa se fragmentou ainda mais, pautados pela escassez de recursos para atuação das organizações não-governamentais, principalmente com a mudança da atuação do Unicef, e a aproximação das ONGs com o governo FHC.95 No nível do Fórum Nacional DCA, bem como no próprio Conselho, essa fragmentação foi ainda mais marcada pelo distanciamento entre as organizações vinculadas à Igreja Católica e as outras organizações componentes do Fórum. Essa é mais uma demonstração do peso do passado na formação dessa policy area, pois a Igreja Católica durante muitas décadas foi a principal fonte de financiamento das organizações de caridade que com a chegada do Conselho passaram a ocupar espaço importante nesse colegiado. Com a apropriação dessas ações com o viés de políticas públicas, as organizações relacionadas com a Igreja passaram a realizar suas atuações associadas com o Estado. Assim, o Conselho passou a ser um canal de acesso na decisão sobre a alocação de recursos no nível federal, bem como nos outros níveis federativos. O Campo de Defesa, com isso, foi se desvinculando do Fórum e até mesmo das representações no Conselho e passou a ter condições de pressionar esses representantes e procurar outros espaços estatais de interlocução. Essa questão passou a incorporar a ideia de autonomia na perspectiva da qualidade da relação entre os representados e os representantes (TATAGIBA; TEIXEIRA, 2006) e compreender os espaços sociais como permanentes e em estado de atenção para evitar retrocessos.

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Importante relembrar o caso da troca do vice-presidente do Conselho para uma pessoa de mais trânsito junto ao Governo. Outro fato a ser relembrado foi a tentativa de assinatura de Convênio entre a Pastoral do Menor e o Governo Federal, no final do governo FHC, para a administração de serviços públicos para a criança e o adolescente.

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A desvinculação do Campo e do Fórum, conforme se faz nessa pesquisa, permite também considera relações de poder entre os atores e os interesses defendidos por eles. Enfatiza ainda os trânsitos dos atores entre os espaços, reconhecendo o Fórum Nacional DCA como mais um espaço de disputa, mas não como o espaço representativo da sociedade civil que defende os direitos de crianças e adolescentes. Assim, quando o Conselho conseguiu fazer uma interlocução ativa com o Campo de Defesa, para além do Fórum Nacional DCA, pôde ser espaço para trazer para o Estado as demandas de atores da sociedade civil no debate sobre as mudanças da política pública. 5.2. O Controle Social e a percepção sobre os problemas da política na agenda pública O fluxo dos problemas se apresenta a partir dos aspectos que elevam determinado assunto como um tema a ser enfrentado nas esferas decisórias do Estado. Esse aspecto passa fundamentalmente pela sensibilidade pública à determinadas temáticas e, nesse caso específico, em relação com a criança e o adolescente. A forma como ocorre a assimilação desses temas aciona diferentes aparatos de respostas aos temas e, consequentemente, opera com diferentes atores no Campo e na Comunidade. Por mais que as medidas socioeducativas e as medidas de acolhimento institucional tratem sobre o enclausuramento de crianças, a forma como cada um desses temas repercute na sociedade e, consequentemente, no Estado os tornam diferenciados como uma questão pública em termos de seu reconhecimento. Esse aspecto permite compreender como as temáticas incidem sobre a esfera decisória e, principalmente, como se tornam questões públicas. As medidas socioeducativas estão relacionadas com a delinquência infantojuvenil. Elas reacendem percepções que embasaram o projeto de política pública autoritário, e, assim, são visualizadas como alternativas de punição por parte de alguns atores políticos. As propostas de redução da idade penal se assentam nessa perspectiva e pressionavam as instâncias políticas para buscar meios para deter o avanço dessas matérias. O acolhimento institucional, por sua vez, está associado às questões relacionadas com as vulnerabilidades infantis e, sendo assim, provocam sentimentos de beneficência, alimentando pontos do projeto de política pública caritativo. Assim, em relação ao fluxo dos problemas, se pode sugerir que os conteúdos das duas resoluções discutidas refletem sobre problemáticas que estão relacionadas com as marcas históricas da política pública para a criança e o adolescente, com a forma como a

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sociedade civil passou a se organizar para atuar com o tema e com as configurações profissionais relacionadas com as políticas públicas. 5.2.1. Elementos para a delimitação das questões públicas na política para a criança e o adolescente Em relação às marcas históricas, sabe-se que a temática do enclausuramento foi a principal área de atuação do Sistema Febem, tanto por motivos de internação quanto de abrigamento. No nascimento do ECA, a discussão feita no âmbito do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente contra o enclausuramento era, sobretudo, contra o modelo Febem e o que ele significava, pois já não dava conta da necessidade de proteção de crianças e adolescentes. As medidas socioeducativas aparecem no espaço público como um dilema histórico. A sensibilidade social ao tema é grande, principalmente na perspectiva da punição ao adolescente infrator. A imprensa noticiava, de forma cada vez mais corriqueira, os crimes cometidos por adolescentes e com isso o poder das propostas de redução da idade penal era ampliado. Assim, existem aqueles que querem uma política pública ainda mais repressiva como a solução para o enfrentamento da delinquência juvenil, diminuindo a idade penal, por exemplo. Todavia, de outro lado, estavam os serviços públicos que deveriam incorporar formas de funcionamento baseadas na nova lei, portanto, menos enclausuradoras. O Sistema Febem foi desmontado como a principal organização para o atendimento de crianças e adolescentes, mas seus edifícios, especialmente nas estruturas estaduais, e sua forma de atuação centralizada no nível federal ainda permaneceram. Essas marcas traziam uma herança histórica tratada como entulho autoritário. Convivem assim, o ontem com sua infraestrutura baseada em modelo de grandes organizações tuteladoras de crianças e adolescentes, e o hoje com sua retórica baseada nas políticas sociais e desinstitucionalizadoras. Essas organizações passavam por rebeliões dos adolescentes internos que eram noticiadas nas televisões e que mobilizava atores do Campo de Defesa dos Direitos para pressionar o Estado por respostas mais adequadas para as políticas socioeducativas (PALHETA, 2010). Esse tema mobilizava alguns poucos atores defensores de direitos humanos de crianças e adolescentes, principalmente associados ao Poder Judiciário e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

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A crise do modelo Febem trazia o predomínio das discussões das medidas socioeducativas em relação ao meio fechado, pois lá estavam as maiores demandas de melhoria. Isso é uma contradição no contexto das medidas socioeducativas, pois as medidas de meio aberto, com base no princípio da desinstitucionalização, deveriam ser mais enfatizadas. Como exemplo desse predomínio pode-se citar o documento do Conanda, de 2001, sobre os Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade. O Conselho usava sua energia para buscar resolver os problemas da medida socioeducativa de meio fechado. O espaço do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente ao longo dos anos 1990 não conseguia mobilizar e movimentar o Poder Executivo federal para o enfrentamento mais profundo dessas questões. Naquela época essa problemática era terreno para que o Conselho tentasse por seus meios resolver a implementação dessas políticas. Essa atuação embaralhava ainda mais os papéis de gestão da política e de deliberação política, e transferia ao Conselho a responsabilidade junto aos adolescentes que “ninguém queria”. Mas, essa transferência era cercada de problemas, pois o Conselho destinava recursos orçamentários para um determinado estado reformar ou construir unidades socioeducativas, mas em muitos casos esse dinheiro ou era devolvido sem uso, ou mesmo usado em outras finalidades.96 Isso demonstra o desinteresse por parte dos governos estaduais em implementar uma política pública socioeducativa adequada às necessidades dos adolescentes. Outra temática de atuação da Febem foram as crianças pobres que eram deixadas pelos seus pais para serem cuidadas por aquelas organizações.97 Com o fim desse sistema, essas crianças retornaram, repentinamente, para suas casas e famílias que deveriam passar a ter condições de educá-las. As crianças sem uma família ou com famílias sem interesse de cuidá-las podem ter ido para novos abrigos vinculados às políticas públicas. Abre-se assim uma área de atuação predominantemente privada e essa foi a herança histórica herdada nesse tema. Diante da forma tradicional de lidar com essa questão, a atuação privada, muitas vezes ainda próxima das práticas caritativas, ocupou esse tema. Assim, a atuação privada na área das políticas para

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São Paulo, Rondônia, Minas Gerais foram exemplos de estados que receberam recursos federais para a construção de unidades, mas ou as unidades não tinham sido construídas, ou já apresentavam problemas (rebeliões e intervenção policial). 97 O filme “O contador de histórias” (2009) narra a história de uma criança deixada na Febem por sua mãe que vivia em situação de extrema pobreza para que a instituição cuidasse dele. Em determinado momento, o menino é tratado como um “caso sem solução” quando aparece uma pesquisadora estrangeira que passa a cuida-lo.

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a criança e o adolescente também auxiliou e foi um meio para a desconstrução do modelo Febem. Mesmo que sob um contexto bastante distinto daquele dos primeiros momentos da política pública para a criança e o adolescente, o lado privado não-governamental ganhou ênfase como extensão daquela lógica caritativa. Esse discurso ganhou ainda mais força com o Projeto Neoliberal, predominante nos anos 1990, que buscava estratégias de transferência dos serviços públicos aos entes privados e não-governamentais. Assim, elementos do Projeto de Política Pública Caritativo voltavam a aparecer sob nova roupagem e isso ganhava evidência a partir da tendência de atribuição das ações relacionadas com as políticas públicas para os entes não-estatais. As clivagens profissionais também são motivos que demarcaram as formas do reconhecimento do enclausuramento como questão pública e, principalmente, formam diferenciações entre as resoluções analisadas. Primeiramente, as novas configurações profissionais de atuação com os temas das políticas públicas geraram um contingente de pessoas que passaram a defender sua atuação. Por exemplo, quantos Conselheiros Tutelares existem no Brasil? Quantos juízes, promotores e defensores públicos passaram a atuar com a área? Quantos educadores? Esse aspecto criou uma zona de interesse profissional ou neocorporativo (CÔRTES, 2015) em relação ao tema da criança e do adolescente e isso incide no debate sobre as propostas para a área. Esse aspecto aproxima também os interesses relacionados à implementação da política pública aos espaços de formulação da política. Essas configurações, por sua vez, são determinadas pela área de atuação de cada uma das resoluções. Ou seja, os interesses profissionais (podem também ser denominados de neocorporativos) e seus conteúdos se vinculam às temáticas relacionadas com as medidas socioeducativas e ao abrigamento. Por exemplo, em relação às medidas socioeducativas o principal ator profissional que discutiu o assunto estava no Poder Judiciário (magistrados, promotores de Justiça e defensores públicos). Diante disso, o debate sobre o Direito Penal Juvenil ganhou importância e isso tinha pouca repercussão entre as pessoas técnicas que atuavam com o tema da infância. Prova disso, foi a dificuldade que os participantes dos Seminários Regionais tinham em debater sobre a Lei de Medidas Socioeducativas, proposta pela ABMP, em 2001. Coube ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, por sua vez, distinguir as temáticas que faziam parte dessa discussão mais jurídica que seria função do Poder Judiciário, e discutir e propor melhoramentos, assumindo as questões relacionadas com as políticas públicas e a sua implementação.

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Outros atores relevantes no debate sobre o Sinase foram os gestores das políticas públicas de medidas socioeducativas. A organização Fonacriad (Fórum Nacional de Dirigentes Governamentais de Entidades Executoras da Política de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), por exemplo, foi um espaço fundamental na discussão da política. Essa organização teve ao longo do processo de discussão um papel dicotômico, pois muitas vezes ela era usada como espaço para viabilizar recursos para os estados junto ao Governo Federal e perdia seu caráter de proposição na formulação das políticas pública. Já em relação ao Plano de Convivência Familiar e Comunitária, as organizações e seus educadores que atuavam com o tema, foram os principais atores na discussão e traziam demonstrações de boas práticas para lidar com o tema do abrigo. O “Colóquio Técnico sobre Rede Nacional de Abrigos”, realizado em 2002, demonstra essa predominância desses atores na discussão sobre o tema. O Projeto de Lei Nacional de Adoção (PLNA) mobilizou outra parcela de profissionais que atuam com o tema. A análise dos documentos resultantes dessas mobilizações permite verificar que o rol de instituições assinantes é bastante variado (academia, organizações de fomento, organizações de atuação direta, órgãos públicos). 5.2.2. O Conselho entre o Campo e a Comunidade na definição das questões públicas Para uma análise mais aprofundada sobre os casos é necessário entrar no nível das configurações do Campo e da Comunidade para compreender como atores e instituições passaram a atuar para conseguir elevar os problemas para a condição de questões públicas. Essa perspectiva segue Loureiro (2006, p. 301) quando cita que “o plano de formulação de políticas requer outras condições que residem em um nível mais singular e são dadas pela organização sociopolítica específica onde se formula a política pública”. O início efetivo das discussões do Sinase veio pelas pressões dos projetos de leis de redução da idade penal e pelas precariedades do sistema Febem. O início se deu, conforme relembrou o entrevistado 6 quando citou o pedido do Secretário Nacional de Direitos Humanos, José Gregori, na perspectiva de que “Vai passar o rebaixamento da idade penal. Então, a gente tem que ter uma proposta, não dá para ficar só na defesa”. Essa primeira iniciativa partiu da Comunidade de Política, especialmente do Secretário de Direitos Humanos, e o Conselho assistiu sem grande participação à movimentação em torno da criação do primeiro Anteprojeto de Lei para Execução de Medidas Socioeducativas, desenhado pelo Desembargador Amaral.

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Posteriormente esse quadro foi alterado. Após um debate no plenário do Conselho, em novembro de 1999, o vice-presidente registrou que pela primeira vez um projeto de política pública entrou pela porta do Conselho. Com isso, esse Anteprojeto passou a ser assumido como um tema do Conselho, e isso abriu ainda mais espaços para movimentos de questionamento por parte do Campo. Surge então o início do debate do Projeto de Lei da ABMP. Notamos que o Poder Executivo assumia uma função pendular no enfrentamento dessa temática, pois inicialmente coube a ele convidar os atores para propor uma proposta para o problema, mas depois o Poder Executivo retirou-se desse papel de centro das discussões e deixou para que o Conselho o assumisse. No contexto de desenvolvimento dos Anteprojetos ainda faltavam elementos para conseguir criar uma sistemática estruturante para formular uma política pública. O momento crucial para preencher essa lacuna ocorreu por volta do ano de 2002, quando houve mais uma morte em uma unidade socioeducativa. Um entrevistado recupera esse momento: E aí, em particular, na questão da Medida Socioeducativa estávamos vivendo aquele final daquela fase muito dramática da Febem em São Paulo. Muitos motins, muitas rebeliões, muitas mortes. E aqui no DF também. Então, já tinha todo um material construído em torno das Medidas Socioeducativas e estava faltando muito pouca coisa. No momento de mais uma dessas crises, ele [o Secretário de Direitos Humanos] me fez a proposta de eu ir lá ver a morte de um menino. Aí eu falei na Assembleia do Conanda: - Está bem, vou lá, mas tem uma coisa que é mais importante nesse período, do que a gente chorar mais uma perda, que é pegar o material que nós temos e que falta, na verdade, um trabalho de sistematização final dele para que a gente proponha uma deliberação do Conanda. E aí ele topou na hora. Então, tinha esse ambiente de se construir algo que fosse mais permanente que reformulasse esse sistema. Nós estávamos numa crise muito grande, principalmente ameaçados com as constantes propostas de rebaixamento da idade penal tendo em vista do sistema Febem falido e ainda persistente. (Entrevistado 6)

Portanto, a partir desse triste evento, foi criado terreno propício para o debate de convergência entre as propostas de lei que vinham sendo discutidas (Anteprojeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas, 1997, e o Anteprojeto de Lei de Diretrizes SócioEducativas, 2001), bem como os Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades Socioeducativas. Esses documentos passaram a ser discutidos nos seminários regionais junto ao Campo de Defesa e profissionais da área. Assim, do ponto de vista da problemática das medidas socioeducativas esse foi um momento que modificou a forma de atuação do Conselho e abriu margem para a divisão entre aspectos jurídicos e de políticas sociais.

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A partir desse fato, foi possível promover o encontro mais produtivo entre as pressões que vinham do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente contra o Sistema Febem, os debates do Campo em termos da Proposta de Lei, os documentos debatidos pelo Conanda sobre as medidas socioeducativas e a necessidade de respostas contra as proposta de redução da idade penal. O Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, apesar de estar bastante fragmentado, também conseguiu promover um importante papel em relação à temática das medidas socioeducativas e na articulação do Campo de Defesa. Por exemplo, ele intermediou o financiamento de pesquisas sobre o problemas das unidades socioeducativas e também em relação à implementação do ECA (CECRIA; AMENCAR, 2000). Além disso, os entrevistados apontam que existiu um grande esforço coletivo por parte de alguns atores não governamentais no Conanda para fortalecer e ampliar a atuação do Fórum enquanto sociedade civil. Nesse sentido, a temática do enclausuramento pôde ser uma preocupação que encontrava unificação entre os componentes do Fórum. Contudo, nos casos analisados, verifica-se que o Fórum não foi o principal fio condutor das pressões do Campo para o Estado. Esse papel foi assumido pelas organizações que conseguiam debater o assunto e angariar apoios de outras organizações em relação ao tema. As precariedades do sistema Febem eram conhecidas. O Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes levantava sua voz contra esses problemas das unidades de internação de adolescentes socioeducandos, mas isso era filtrado no ambiente do Estado que não priorizava a melhoria daquela política pública. Do ano de 1997 até o ano de 2002, por exemplo, foram inúmeras as reuniões do Conselho em que o tema das medidas socioeducativas voltava, seja a partir de denúncias de maus-tratos, por violência ou superlotação nas unidades de internação. Na maioria das vezes, eram os conselheiros nãogovernamentais que interpelavam o plenário do Conselho sobre essas situações. Essas denúncias, por sua vez, não eram tratadas de maneira mais sistemática e quase todas as vezes e perdiam na dinâmica do Conselho e da política pública. Entretanto, elas continuavam a demonstrar a necessidade do enfrentamento da política. De forma geral, nota-se que as denúncias do Campo chegavam ao espaço do Conselho que agia no Controle Social das políticas públicas. Mas ele não conseguia condições para introduzir essas denúncias como questões públicas relevantes, ao ponto de movimentar a Comunidade de Política. Faltava um passo definitivo para demonstrar que aquelas denúncias eram representativas de um problema maior das políticas públicas socioeducativas no Brasil.

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Elas nasciam com perspectiva de casos dos estados, mas não ganhavam um enfrentamento mais sistemático e diagnosticado sobre os problemas das políticas socioeducativas. Deste modo, era sabido que existiam problemas (rebeliões, mortes, maus-tratos, etc.) em determinados estados da Federação, mas em que medida esses fatos eram também a realidade de outros estados? O Conselho, dessa forma, não conseguia sistematizar essas denúncias pontuais e, consequentemente, sair de uma lógica do caso a caso para passar a uma atuação sistêmica. A lacuna de uma ação diagnóstica por parte do Campo pôde ser suprida por organizações da Comunidade de Política. Coube aos órgãos estatais investigar os problemas das políticas públicas de enclausuramento. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados foram institucionalidades fundamentais nesse aspecto. Em ambas, o assunto ganhou maior visibilidade no interior da Comunidade a partir do momento da publicação dos resultados das Caravanas da Comissão de Direitos Humanos. Em relação às Caravanas nota-se que o Conselho não foi um agente nesses momentos, mas isso tem certa coerência dado que ele é um espaço do Poder Executivo. O Conselho poderia ser um espaço de concentração de conhecimento sobre a temática da criança e do adolescente e, muito mais do que seu papel como órgão do Poder Executivo, ele poderia ser convidado pela Comissão de Direitos Humanos como a organização que conhece os problemas da política da criança e do adolescente. A

reportagem

do

jornal

Correio Braziliense,

que

foi

resultante

do

acompanhamento dessas Caravanas pela mídia, também auxiliou na demonstração de que alguns pontos encontrados eram temas que violavam direitos humanos de crianças. A partir dessa reportagem, o governo federal desenvolveu o Colóquio para o debate sobre a rede de atendimento de crianças abrigadas, que foi mais um espaço para discussão dos problemas. Vale destacar a natureza desse tipo de evento na estrutura do Governo Federal, pois foi mais uma forma para coletar informações sobre a fragilidade da rede de abrigos, problematizar a temática, e ao mesmo tempo compreender que algumas ações poderiam ser implementadas a partir de práticas das instituições que lidam com o tema. As pesquisas do IPEA demoraram em surtir algum efeito em termos da formulação da política. Quanto às resoluções, essas pesquisas foram momentos importantes para demonstrar a complexidade das temáticas que deveriam ser enfrentadas. A pesquisa em relação às medidas socioeducativas foi feita, mas não houve qualquer interação com o Conselho. Um motivo para esse procedimento pode ter relação com

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a dificuldade por parte do Governo Federal em enfrentar e debater essa questão. Ou seja, o governo manteve a pesquisa em sigilo até a sua saída, talvez com receio de publicizar aquela sensação traduzida pelo Secretário de Direitos Humanos, “Foram oito anos de nada”. Dessa forma, a pesquisa sobre o Sinase somente apresentou seus resultados no começo de 2003, já com a chegada do governo Lula. Em relação à pesquisa sobre os abrigos, o processo foi constantemente acompanhado pelo Conselho que recebeu e debateu o instrumento de pesquisa, o manual da pesquisa, os relatórios de andamento e finais da pesquisa. A apresentação dos resultados das pesquisas, tanto do Sinase quanto do PNCFC, deram novas energias ao processo de formulação das resoluções. Isso aconteceu, pois deixaram de ser discussões esparsas, para constituir um processo mais aplicado aos problemas das políticas a serem enfrentados, aspectos que serão mais bem abordados nos fluxos das soluções. Em relação aos problemas da política, um último ponto que questiona o papel do Conselho Nacional tem relação com o pacto federativo. A questão da fiscalização das políticas públicas é um aspecto que gerou polêmicas desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescentes, e dos motivos de seus vetos, até as alterações regimentais posteriores. As denúncias trazidas pelos atores da sociedade civil e organizações não governamentais podem chegar ao Poder Executivo federal, mas este pode não encaminhar ações para não melindrar as relações políticas com os governos estaduais. Como já citado, essas denúncias alimentavam ações do Conselho para tomar a responsabilidade de financiar o sistema socioeducativo nos estados, mas por diferentes motivos, essas unidades podiam não utilizar esses recursos. Assim, verificou-se que a dimensão do Controle Social em relação à recepção de problemas relacionados com as políticas públicas demonstrou fragilidade, pois não conseguiu introduzir as temáticas no interior do Estado ao ponto de fazê-lo se movimentar para enfrentar o tema. Os diagnósticos produzidos passaram por filtros burocrático e políticos para chegar (ou não) ao controle social. A fonte de problematização foi produzida primordialmente dentro da Comunidade de Políticas, mas os atores do Campo visualizavam oportunidades de trazer suas bandeiras a partir das temáticas que começavam a aparecer. 5.3. As oportunidades de mudança na política e o Controle Social na agenda pública

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Nesse fluxo procura-se discutir as situações propiciadas por consensos dos atores políticos para enfrentar as questões públicas. Ou seja, a existência de possíveis oportunidades e vontades políticas para enfrentar os custos provocados por uma eventual mudança na política. Contudo, o maior risco nesse processo, principalmente em relação às políticas de direitos humanos, é a abertura da possibilidade para o retrocesso nos direitos que já haviam sido conquistados no nível legal. Primeiramente, as vontades de retrocessos abertas nesse fluxo da política ganham maior relevância quando comparamos as altas expectativas provocadas por um aparato legal avançado como o ECA, convivendo com a realidade limitada da operacionalização da política pública, bem como com as representações sociais que incidem sobre o público-alvo da política. Em um segundo aspecto, percebe-se que até mesmo os Conselhos deliberativos normatizado por lei entraram como parte desses objetos ameaçados. Conforme demonstramos, durante o governo FHC, havia um questionamento sobre a produtividade do Conselho e sua importância na deliberação nas políticas públicas. Entretanto, essa era uma crítica rasa, pois o Conanda teve um papel primordial no desafio de consolidar aparatos públicos permanentes de atuação com essas políticas públicas (Conselhos dos Direitos, Conselhos Tutelares e Fundo). Portanto, para determinadas questões o Conselho foi uma instância necessária, tendo em vista a disseminação dessas estruturas pelo território nacional, fomentada pelas iniciativas e apoios federais. Em relação aos Conselhos de Políticas Públicas deliberativos também existiam expectativas quanto ao caminho aberto no Estado a partir da decisão nessas instâncias. Contudo, o cenário enfrentado por essas decisões não é tão simples quanto respostas para um jogo do que foi deliberado versus o que foi implementado. Esses aspectos passam pela forma como são estabelecidas as relações de poder internamente no âmbito do Conselho, assim como das relações desses espaços na governança das políticas públicas. O caso do Conanda demonstra que por si só o Conselho não encontrava forças suficientes para mover e impactar no espaço da Comunidade de Política e, por vezes, não foi a instituição-chave como espaço de decisão sobre algumas políticas para a criança e o adolescente, principalmente quanto à promoção de direitos de crianças. Entretanto, a natureza dos conteúdos das políticas de enclausuramento e a inexistência de organizações responsáveis por elas, ou mesmo a falta de iniciativa governamental para lidar com essa problemática, aumentou o espaço para a decisão do Conselho em relação aos temas.

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O Controle Social se estabeleceu de maneira amplificada no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente quando encontrou a atuação e a pressão por parte de atores do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Foi a interação com o Campo de Defesa que potencializou o espaço do Conselho, provocada principalmente pelos conteúdos anti-enclausuradores das duas políticas analisadas e esse fluxo da política enfatiza esse aspecto. 5.3.1. Poder Executivo, Legislativo e o Conselho na condução da política A política de enclausuramento foi uma temática cujas resoluções do Conselho geraram um efeito significativo, pois primeiramente o Conselho nesses temas pôde ser espaço institucional que permitiu persuadir os atores da Comunidade de Política (GURZA LAVALLE, 2012). Além disso, o processo de discussão sobre a resolução e os subsídios para a produção legal gerados a partir dele transformaram projetos de leis que ameaçavam os direitos de crianças e adolescentes. Esse é um efeito diferenciado dos casos analisados, pois se instituiu um arranjo multi-organizacional de governança dessas políticas públicas do qual o Conselho fez parte. Para isso, a contribuição central do Conselho foi sua interface e diálogo com uma parcela significativa e qualificada da sociedade que pressionava para não perder direitos. Essas ameaças que surgiam no horizonte dos casos traziam limitações sobre os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, seja pela redução da idade penal ou por meio da adoção, como a alternativa para enfrentar o problema do abrigamento no país. No interior do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente era visto como uma lei avançada dentro do referencial normativo e, assim, estava apta a dar conta das violações dos direitos. Por isso, o Campo era resistente quanto aos processos de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente e, sobretudo, às mudanças conforme vinham tramitando no Congresso Nacional. Entretanto, a realidade mostrava que os problemas das políticas públicas permaneciam, pois tinham estrutura precária e faltava um desenho mais definido sobre as atribuições das unidades federativas no desenho da política, bem como do Controle Social. Assim, os Poderes Executivos também tinham sua parcela de responsabilidade no surgimento das propostas que retrocediam em direitos, pois eles deixaram de implementar as políticas públicas de maneira condizente com o ECA. No nível federal, por exemplo, com o fim da FBCIA na década de 1990, o surgimento da Comunidade Solidária e da Reforma Gerencial

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do Estado esses serviços passaram a ser vistos como “atividades não-exclusivas” e, portanto, poderiam ser delegados para as entidades não-governamentais. Além disso, o governo FHC concentrou sua prioridade na Comunidade Solidária, que não tinha a questão do enclausuramento como principal. Dessa forma, faltava uma institucionalidade estatal que assumisse a responsabilidade por esses serviços. Com isso, existia um vazio sobre a definição da responsabilidade em relação ao tema e isso transferia grande parte das atribuições ao Conselho Nacional. Assim, existiam dois níveis de tramitação sobre temática do enclausuramento e que delinearam as oportunidades de mudança das políticas públicas. O primeiro delegava os problemas e as denúncias da implementação das políticas públicas ao Conselho. Nesse nível, especialmente em relação às medidas socioeducativas, o Conselho aplicava os seus recursos e buscava decidir pontualmente sobre a política. Faltava-lhe uma capacidade mais estruturada de traduzir as denúncias sobre a política pública como questões sistêmicas. No contexto das resoluções estudadas esses aspectos puderam ser encontrados, pois a própria ideia de uma estruturação mais sistêmica, por meio de plano ou sistema, só surgiu depois de passado algum tempo do começo das discussões, com a finalização dos diagnósticos e com as condições políticas para o Conselho incidir sobre a Comunidade, dadas pela chegada do governo Lula. O outro nível era estabelecido pelas disputas em torno das alterações legais e ficavam em um terreno de intersecção entre o Poder Legislativo e parte do Poder Executivo, mas que pouco incluía o espaço do Conselho. Nesse nível, mesmo o Conselho sendo um espaço periférico de incidência na política, às vezes era procurado pelos agentes governamentais, tanto do Executivo como do Legislativo, para tentar encontrar alternativas contra as ameaças aos Projetos de Lei. Tanto foi assim que o próprio início do caso do Sinase veio com as limitações que o Poder Executivo tinha para enfrentar o debate da redução da idade penal no Congresso Nacional. Assim, a oportunidade que a discussão política abriu foi um terreno para que as resoluções do Conselho se tornassem respostas institucionais alternativas aos Projetos de Leis que estavam sendo debatidos. Com isso, as resoluções surgiam também como remédios para tentar conter as ameaças aos direitos de crianças e adolescentes. 5.3.2. Campo, Comunidade e Conselho no trâmite dos Projetos de Leis que ameaçavam direitos de crianças e adolescentes

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Esse embate entre os Poderes Legislativo e Executivo ajudou na postergação do efetivo enfrentamento da redução da idade penal, que já tinham propostas quase desde o nascimento do ECA.98 Por vezes, os procedimentos regimentais de encaminhamento desses PLs ganhavam maior agilidade e os gestores governamentais vinham ao Conselho para buscar angariar apoios para tentar segurar esses trâmites. O Conselho servia como espaço acessório de articulação para que, junto com os governos, ganhassem mais capilaridade e ampliassem o diálogo com um maior número de deputados. Assim, a disputa ficava submetida ao jogo regimental que por alguns trâmites de resistência, por parte do Poder Executivo ou de deputados aliados à causa da infância, conseguiam segurar o processo. Esse era um embate procedimental e com dificuldades para dialogar sobre a pauta de não redução da idade penal na arena legislativa e nos debates políticos.99 O governo FHC assumia uma posição dúbia nessa ação, pois tinha dificuldade em defender assuntos que eram contrários à opinião pública, e que poderiam ter efeito eleitoral adverso.100 De um lado, ele buscava meios para evitar e conter o debate sobre a redução da idade penal junto ao Poder Legislativo, e o Conselho lhe servia como espaço de interlocução com uma parcela da sociedade. Por outro, esse governo não apoiava de maneira decisiva ações de discussão do tema junto à sociedade e, principalmente, de implementação dessas políticas. A alegação era sempre de falta de recursos para mobilizar a opinião pública e isso foi demonstrado, por exemplo, por ações simples como a dificuldade de viabilizar recursos financeiros para a coleta de assinaturas para abaixo-assinados, bem como para outras ações de mobilização social. O entrevistado 6 demonstrou essa dificuldade “Demorou também porque internamente, usando a burocracia como desculpa, o governo paralisava o processo, alegando que não tinha dinheiro, não posso pagar a sistematização e outras coisas”. De outra forma, o Conselho conseguiu viabilizar recursos para promover o debate sobre as políticas socioeducativas junto ao Campo de Defesa e à Comunidade de Políticas. Esses encontros iniciaram no último ano do governo FHC (abril de 2002) e o governo Lula chegou recebendo esses subsídios como forma de alimentar o debate sobre a temática.

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O primeiro Projeto que propunha a redução da idade penal (PL n˚ 171) foi protocolado no ano de 1993. Essa situação de contenção das propostas de redução da idade penal durou até 2015 quando o Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, foi eleito com a pauta central de agilizar a aprovação da redução da idade penal. Diante dessa iniciativa e facilitação do Presidente, as comissões e o Plenário da Câmara votaram o encaminhamento do PL n˚ 171 em cerca de 04 (quatro) meses. Essa era uma demonstração de como a pauta pode ser contida pelo jogo regimental e assim tinha sido ao longo de muitos anos. Existindo o compromisso e vontade política para o encaminhamento, esse pode ser um trâmite ágil. 100 Somente a Presidente Dilma Roussef, na história pós-88, em abril de 2015, se pronunciou oficialmente como contrária à redução da idade penal. FHC e Lula eram contrários, mas nunca vieram a público para falar sobre essa pauta. 99

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Aqui percebe-se que a temática não cresceu como resultado de uma militância do Campo de Defesa dos Direitos da Criança que se mobilizou e pressionou por respostas às propostas de redução da maioridade penal. Como alertou o entrevistado 16 “Eu não vejo militância no sistema socioeducativo”. E complementa “os grandes atores que nós temos na construção da medida socioeducativa, são os gestores estaduais, juízes, promotores e um tantinho (sic) de defensores que trabalham com a infância e a juventude”. Portanto, mesmo com os movimentos de debate, os grandes participantes eram atores que atuavam com as políticas socioeducativas. A temática da adoção, de outra forma, surgiu e cresceu de maneira distinta comparada ao Sinase. O aparecimento dessa temática despertou de maneira mais ampla o Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes. As propostas para leis em relação à adoção conseguem mover paixões e caridades, conforme foi apontado pelo entrevistado 13, e rapidamente mobilizaram governo e oposição, organizados por meio de uma Frente Parlamentar de Apoio à Adoção, para a apresentação do Projeto de Lei Nacional da Adoção. Assim que o Campo de Defesa teve o conhecimento das ameaças contidas no PLNA, passou a se mobilizar e pressionar o Poder Executivo e o Poder Legislativo para evitar mudanças conforme estipuladas pelo PLNA. Ficou estabelecida uma disputa entre o combinado para aprovação do PLNA, pois conforme relembrou o entrevistado 13 já existia “um acordo para aprovar esse negócio”, e as demonstrações por parte do Campo sobre os perigos aos direitos fundamentais de crianças desse projeto. Em meio a esses acordos, o governo Lula representou um outro momento da política pública se comparado ao período FHC, pois conseguiu encampar um espectro de atuação com políticas sociais101 e de uma maior interlocução com as arenas participativas.102 Todavia, os primeiros anos desse Governo foram marcados também pelo contingenciamento de recursos orçamentários em diversas áreas de políticas, assim como na temática da criança e do adolescente. Politicamente esse início de governo foi um período muito intenso, pois, até a crise do Mensalão, ele conseguiu abrir um canal de diálogo propositivo junto aos Conselhos e conseguiu também articular sua bancada para aprovação de

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A principal iniciativa do novo Governo em relação às políticas sociais foi a formulação do Plano Nacional de Assistência Social que deu bases para o Sistema Único de Assistência Social e a estruturação de equipamentos estatais de atuação com o tema, ou os chamados Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). 102 Conforme mostrado, até 2002, existiam 44 Instâncias Participativas. No primeiro mandato do governo Lula, 2003 a 2006, foram criadas 22 conselhos e no segundo mandato 5 conselhos, totalizando as 71 IPs existentes em 2010 (Polis/INESC, 2011).

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seus projetos. O próprio PLNA pode ter surgido no bojo dessa negociação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo e o presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha (PT/SP), e já existiam acordos para sua aprovação. O PLNA nasceu da redação de uma proposta feita por um juiz do Estado de Santa Catarina e encampada pelo Dep. João Matos (PMDB) do mesmo estado. Ele era a pronta resposta para as Caravanas da Comissão de Direitos Humanos aos abrigos, realizada em 2001. A alternativa colocada pelo relatório da Caravana foi o estímulo à adoção, a partir da constatação de que quanto mais tempo a criança passava no abrigo “as chances de encontrar uma família de verdade diminuem”. Ao tomar conhecimento do texto da proposta de lei, o Campo passou a fazer eventos de mobilização contrários ao conteúdo do PL. Esse processo de mobilização foi muito significativo. Algumas cartas resultaram desses momentos, a primeira em 2003 foi assinada por dezoito organizações. Esse evento foi importante, pois começou a fazer a ponte entre o Campo de Defesa e o Poder Executivo Federal, principalmente a partir da presença do técnico da Secretaria de Direitos Humanos como foi narrado. No ano seguinte, 59 organizações assinaram a Carta de São Paulo que rejeitava o PLNA e solicitava a formulação do PNCFC. Essa foi a base para a incidência desse debate na formulação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária e principalmente para evitar a aprovação do PLNA. Com base nessa mobilização em torno da Carta, realizada pelo Campo de Defesa dos Direitos, destaca-se o debate feito na 140ª Assembleia do Conanda que contou com a participação da Dep. Teté que fazia a função de relatora do Projeto de Lei Nacional da Adoção. Participou também do debate um representante da ABMP que recuperou o conteúdo das Cartas como demonstração da rejeição que o PLNA tinha no contexto do Campo. A partir dessa assembleia, o Campo de Defesa, o Conanda, parte do Poder Executivo e alguns deputados da Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos de Crianças passaram a agilizar a articulação de formas para conter o PLNA na Câmara. Uma alternativa encontrada foi a apresentação de outro Projeto de Lei (Projeto de Lei do Senado n˚ 6.222 de 22 de novembro de 2005 da Senadora Patrícia Saboya) que conseguiu angariar os apoios do Campo de Defesa, de parte do Poder Executivo e dos partidos coligados e ser rapidamente aprovado no Senado, prejudicando o PLNA que ainda corria em trâmites para a aprovação na Câmara dos Deputados. Esse exemplo do PLNA demonstra também que a articulação entre o Campo de Defesa e o Conselho Nacional fortaleceu a contenção de iniciativas que nasceram de autoria pessoal ou de pequenos grupos. Nesse sentido, por meio da pressão do Campo de Defesa foi

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possível alterar essas propostas, por meio de um processo coletivo e alcançar concepções representativas do que defende o Projeto de Políticas Públicas Educativo. No caso do Sinase, o primeiro anteprojeto de lei surgiu das discussões de um Grupo de Trabalho convidado pela Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, em 1997, e contou com a redação final do Desembargador Amaral. Nesse início, esse debate ficou sob a tutela do autor da proposta e do Secretário de Direitos Humanos e o Conanda foi espaço ausente. Com a apropriação do Plenário do Conselho em relação à proposta do Desembargador Amaral, o Conanda passou a ser um espaço mais atuante na construção de alternativas ao Anteprojeto. Essas alternativas passaram a ser formuladas pelo Campo de Defesa, especialmente pela ABMP, e essas propostas passaram a ser assumidas pelo Conselho, principalmente a partir de 2001. Em novembro de 2002, no apagar das luzes do governo FHC, o Conselho fez uma reunião para discutir os projetos de lei, mas especialmente para compreender o seu papel enquanto espaço institucional e a necessidade, ou não, da apresentação de uma lei específica para a aplicação de medidas socioeducativas. Portanto, vemos dois movimentos por parte do Conselho. Primeiramente, quando a proposta de PL nasceu como demanda do Poder Executivo, o Conselho observou a tudo de maneira não tão presente. Essa é uma demonstração da força que as iniciativas do Governo têm no espaço do Conselho e a dificuldade desse espaço em se contrapor a essas vontades. Em seguida, um movimento de contraponto ao anteprojeto começou a existir na sociedade e, com isso, o Conselho pôde ser um espaço para repercutir esses descontentamentos. A tramitação desses Anteprojetos, por sua vez, abriu uma discussão mais técnicojurídica sobre a aplicação do direito. Para passar de uma sistemática restrita para uma estruturação mais ampla, ou um Sistema Nacional Socioeducativo, foi necessário que o Conselho deliberasse sobre a separação entre questões da política social e questões da política judiciária. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente conseguiu, no contexto desses movimentos, ser o espaço de debate sobre as visões distintas sobre as políticas públicas e, principalmente, acolher as pressões que vinham do Campo e, a partir disso, ganhar outro status no interior da Comunidade de Política. Assim, em ambas resoluções, o Conselho deixou de ser o espaço com representação limitada e foi um espaço de promoção de encontros entre o Campo e a Comunidade. No contexto desse fluxo da política, a Comunidade de Política envolveu atores do Poder Legislativo, a Frente Parlamentar de apoio à Adoção, a Frente Parlamentar de Defesa

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dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, os agentes do Poder Executivo responsáveis pela articulação legislativa e os Secretários Nacionais de Direitos Humanos. A negociação realizada nessa Comunidade não pôde ser plenamente identificada no processo de pesquisa, pois a elaboração legislativa passou por dimensões muitas vezes ocultadas. O Entrevistado 1 relata esse caminho, por vezes obscuro, de entrega do Conselho ao Poder Executivo, até a aprovação da lei. [...] O PL do Sinase foi encaminhado pela presidência. Ele foi entregue nas mãos do Presidente Lula e encaminhado para a Casa Civil. A minha avaliação pessoal é que aí o Conanda perdeu o controle político. Inclusive, o texto foi mexido dentro do Congresso, muito mexido. Teve uma forte pressão do Fonacriad porque nós colocamos um item para dar força aos gestores e ele entenderam que aquilo era uma ameaça. Era o seguinte os diretores de unidades e do sistema estadual deveriam ser escolhidos a partir de uma lista tríplice aprovada nos Conselhos Estaduais. Por que isso? Para tirar essa política da lógica da divisão partidária que na prática é a política que você tem nos estados. Eles entenderam que com isso eles estavam perdendo poder de indicação. E foi muito ruim. Até hoje, eles continuam reféns da lógica partidária.

O Conselho teve um papel importante no contexto dessa Comunidade, mas que ganhou maior projeção a partir de seu contato com o Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Portanto, o Conselho conseguiu amplificar as demandas do Campo de Defesa na Comunidade e, com essa ajuda, foi um espaço significativo na formulação dessas políticas públicas. Essas formulações não contiveram somente as resoluções analisadas, mas avançaram para o Poder Legislativo e conseguiram impactar no marco legal para a criança e o adolescente. O Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente teve um papel expressivo nesse fluxo. A abertura do debate político para a necessidade da lei já existia, mas estava tomado pelos retrocessos e pela influência dos projetos de políticas públicas autoritários e caritativos. O Campo conseguiu ocupar, a partir de sua mobilização, o espaço societal e resistir com elementos que foram base para o ECA, principalmente, fundamentados na desinstitucionalização e na desjuridicialização. Assim, as mobilizações do Campo de Defesa pressionaram o Conselho, a Secretaria de Direitos Humanos e a Frente Parlamentar pelo Direito de Crianças e Adolescentes. Cada um desses canais de interlocução junto ao Campo resultou no fortalecimento do papel do Conselho como o espaço que conseguiu representar as pontes

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entre a Comunidade e o Campo. Ou seja, a existência e a mobilização do Campo vitalizaram o espaço de incidência do Conselho na formulação da política pública. Nesse fluxo vimos que a abertura da política para a possibilidade de alteração vinha sendo ocupada por projetos que ameaçavam direitos fundamentais garantidos no ECA. A mobilização do Campo, a disponibilidade do Conselho para dialogar com essa parcela da sociedade, a pertinência temática e a entrada de um governo aberto para as inovações trazidas pela Instância Participativa auxiliaram na resistência contra as ameaças que o ECA sofria, e puderam passar de uma agenda temática para a formulação da política.

5.4. O Controle Social e a construção das soluções para a política pública A construção de soluções para auxiliar no encaminhamento das propostas para a implementação da política pública é uma ação que começa anteriormente ao próprio processo de formulação da política. Ou seja, as soluções tramitam entre atores e espaços em um nível discursivo e a disponibilidade delas, somado à ampliação da percepção dos problemas e à abertura para a mudança política, permite considerar determinados elementos ou problemas da política pública como passíveis de serem enfrentados. Nos casos analisados, a construção das soluções, mais do que nos fluxos de problema e da política, foi integradora de atores no Campo e na Comunidade. O Conselho pela forma como está estruturado poderia ser o lócus para a ocorrência desses encontros, mas os casos demonstram que os processos de construções de soluções extrapolaram essa instância e passaram por outros espaços de encontros entre atores do Campo e da Comunidade como, por exemplo, redes, grupos de trabalhos, comitês, comissões, etc. Assim, a abertura do Estado para a construção social da política pública não se limita somente à instância do Conselho, mas este foi parte essencial no arranjo da Comunidade e, principalmente, responsável pela convergência entre subsídios construídos para formular a política pública. Um aspecto positivo nessa convergência promovida pelo Conselho foi que, a partir do momento de sua apropriação e principalmente por formas de ampliação do diálogo junto ao Campo de Defesa, o Conselho conseguiu instituir uma roupagem mais participativa nos processos de formulação de políticas públicas por meio de seminários regionais ou de consultas públicas. 5.4.1. O Conselho e os outros espaços decisórios no trâmite de proposição de alternativas para as políticas de enclausuramento

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No trâmite discursivo das soluções podemos verificar a presença de espaços integradores entre atores do Campo e da Comunidade. A Comissão de Medidas Socioeducativas que passou por diferentes fases foi espaço central para as propostas de políticas sociais, matéria central do Conselho em contraponto às políticas judiciárias. Inicialmente essa comissão tinha um caráter de denúncia, em que filtrava os pontos que chegavam ao Conselho que tinham relação com as medidas socioeducativas. Em seguida, a Comissão passou a ser o espaço de seleção sobre os projetos de estados que seriam financiados com recursos do Fundo Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Como parte desse processo, a Comissão criou uma proposta de padronização para os financiamentos ou o que chamavam de Parâmetros Mínimos para Construção de Unidades de Internação e Semiliberdade. Posteriormente, no começo dos anos 2000, um Grupo de Trabalho composto por conselheiros não-governamentais e técnicos da Secretaria de Direitos Humanos foi o responsável pela etapa de construção do texto da política do Sinase. Com esse arranjo, as soluções passaram a tramitar em termos das propostas para a política pública e deixaram de lado o debate sobre os Anteprojetos de Lei para Aplicação das Medidas Socioeducativas. Assim, essas duas instâncias foram as responsáveis pelo processo de compilação das soluções e formulação da política. Não fizeram isso isoladamente, mas em diversos momentos devolviam os seus trabalhos para a esfera do Plenário do Conselho. Em relação ao Sinase esse processo foi muito mais intenso e o Plenário discutiu ponto a ponto as propostas de texto e redação de cada artigo da resolução. Isso indica a prioridade e a forma como esse tema repercutia no Conselho. Após a aprovação do Sinase, o Conselho retomou com mais ênfase a discussão do PNCFC, com certa pressão de tempo, para que pudesse ser uma proposta alternativa ao Projeto de Lei Nacional de Adoção, que vinha correndo no Poder Legislativo, bem como pudesse ser aprovada até o fim do ano de 2006, quando acabava o período do mandato dos representantes da Sociedade Civil que estavam construindo a política. O espaço central de formulação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária foi a Comissão Intersetorial para Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, normatizada pelo Decreto 19 de outubro de 2004. O processo de publicação da Resolução para início da Comissão demorou oito meses, pois o Conselho deliberou em plenário a criação da Comissão em abril de 2004. Ou seja, as discussões sobre o PNCFC vinham ocorrendo no âmbito do Conselho e

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de articulações ainda informais, e somente em outubro passaram a ganhar um espaço institucionalizado de debate. Essa Comissão trabalhou durante seis meses e discutiu os conteúdos em relação ao reordenamento de abrigos, à prevenção, entendida como integração de políticas básicas e supletivas para a manutenção da criança na própria família, e a adoção. Uma análise dos trabalhos da Comissão do PNCFC e as entrevistas indicaram que o Conselho tinha pouco conhecimento sobre como estavam as discussões naquele nível. As devolutivas demoravam em retornar ao espaço do Conselho que só foi chamado para assumir posição sobre as questões sobre as quais ainda pairavam dúvidas no final do processo. O tempo de resposta do Plenário do Conselho para essa chamada também foi bastante lento, pois a proposta de resolução produzida pela Comissão chegou em abril de 2005 e somente em julho de 2006 o Conselho encaminhou discussões e consulta pública. Portanto, em ambos casos, pode-se notar que o Conselho não foi o espaço central de formulação, mas que foi uma instância que passou a ser acionada a partir do momento de ampliar o debate sobre as resoluções saindo de Comitês e Grupos de Trabalho e passando para o Campo e a Comunidade de Políticas. O Conselho em si demonstrou pouca capacidade institucional para promover algum acúmulo de conhecimento em seu contexto de funcionamento e essa pode ser uma dificuldade para ele não ter sido o espaço de formulação. A dificuldade de encontrar materiais com o registro histórico do processo de produção da política é uma mostra dessa baixa capacidade institucional. O Conanda era marcado pela alta rotatividade de servidores, pela pouca capacidade de registrar e encaminhar suas decisões. A dinâmica coletiva e colegiada do Conselho pode ser um fator de demora nas discussões e uma dificuldade para a operacionalização dos processos de formulação de políticas públicas por essas instâncias. 5.4.2. Campo, Comunidade e a construção dos subsídios para a formulação da política pública Um processo de acúmulo de conhecimento foi sendo feito em torno das temáticas e isso permitiu uma evolução das soluções propostas. Essa evolução deixou dilemas relacionados com as questões técnicas da política e passou para o processo de argumentação sobre os problemas. O Sinase deixou de ser um debate em torno da aplicação das medidas socioeducativas para passar à discussão sobre a integração das políticas públicas na implementação dos serviços socioeducativos. Quanto ao PNCFC, o debate começou com a questão técnica do reordenamento de abrigos, passou pela questão da adoção e terminou por

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integrar as políticas públicas para prevenção e realização dos serviços temporários de abrigamento. As pesquisas diagnósticos do IPEA auxiliaram nesse processo de definição sobre os problemas a serem enfrentados e, consequentemente, de acúmulo de soluções. Foi notável a guinada nos debates sobre as temáticas a partir da publicação dos resultados das pesquisas, pois isso balizou as discussões em torno de políticas públicas, saindo de uma lógica baseada ainda no caso a caso. Os repertórios dos atores sociais no momento dessa formulação não são exatamente os mesmos que nos espaços do Campo de Defesa. Ao adentrar no Estado, seja no Conselho, ou em outros espaços, os atores do Campo não dispõem da mesma autonomia que têm no Campo, mesmo que o façam a partir de suas Múltiplas Filiações e de um possível ativismo estatal. Um ator organizacional que incidiu sobre os dois momentos, mas com pesos diferentes, foi a Associação Brasileira de Magistrados e Promotores de Justiça da Infância e Adolescência (ABMP). Essa organização representa as clivagens profissionais que passaram a demarcar a área da criança e do adolescente, já que é representativa dos atores do Poder Judiciário, mas que fazem essa representação como agentes societais. Nos processos de discussão do Sinase, a mobilização do Campo passou centralmente por essa entidade, pois no primeiro momento foi o seu representante, Desembargador Amaral, que escreveu o primeiro Anteprojeto. A ABMP ao tomar conhecimento do texto da proposta passou a promover um processo de debate, que contou com apoio de outras organizações não-governamentais, e, com isso, chegou à definição de apresentar uma nova proposta que fosse mais representativa da maneira como pensa o corpo de seus associados. Nasce daqui a Proposta de Lei de Diretrizes Sócio-Educativas, elaborada pelo GT/ABMP, e encaminhada ao Conanda em 2001. Em relação ao PNCFC, a ABMP foi assinante das Cartas do Campo e debatedora do Projeto de Lei Nacional da Adoção em audiências públicas promovidas pela Câmara dos Deputados, bem como no Conanda, em assembleia de junho de 2006. Naquela assembleia, o Promotor Murilo José Digiácomo, representante da ABMP, ressaltou que o Congresso Brasileiro da ABMP, realizado no mês de maio de 2005, aprovou “moção de repúdio” ao PLNA e defendeu a total rejeição do PLNA. A ABMP, por outro lado, se colocava em uma área de discussão que tinha pouca aderência com os outros participantes do Campo de Defesa, já que estavam mais afeitos à legalidade do processo. Esse foi um aspecto necessário nas discussões, pois ambas mexiam

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com as orientações gerais da política pública, mas tocavam também no aparato legal criado e nos direitos. Assim, era importante incluir os atores que lidam no dia a dia da política e, dentre esses, aqueles que buscam defender crianças e adolescentes na esfera jurídica. O Campo de Defesa passou a ter uma configuração mais diversificada, principalmente na temática da Convivência Familiar e Comunitária. Nesse tema, as cartas assinadas pelas mobilizações demonstram o espectro de organizações que pressionam o Estado para não retroceder com as políticas públicas. No âmbito do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária uma organização que fez o trânsito entre o Campo e a Comunidade foi a organização nãogovernamental Terra dos Homens. A partir do primeiro Comitê de reordenamento de abrigo, essa organização passou a mobilizar as entidades que lidavam com a política de abrigamento ou o que chamava de Rede Nacional de Abrigos. Por sua vez, as organizações mobilizadas em torno das Cartas incidiram de maneira mais emblemática na discussão contra o Projeto de Lei Nacional de Adoção e também engrossaram o Campo de Defesa e fortaleceram o PNCFC. As Cartas foram mobilizadas principalmente a partir de organizações e movimentos sociais do Estado de São Paulo e, dentre eles, alguns tinham atuação nacional. Em relação à maneira como o Conselho estabeleceu o diálogo com o Campo, pode ser vista uma ampliação dos atores que participaram das discussões a partir das estratégias de um debate mais amplo com o público, por meio de consultas ou de seminários. O Sinase passou por esses debates em uma fase de coleta de informações e propostas sobre as medidas socioeducativas. Esse processo começou no último ano do governo FHC por meio dos seminários regionais. Nesse momento a ideia era discutir sobre o projeto de lei para aplicação de medidas socioeducativas e em relação às políticas sociais socioeducativas. A primeira temática era pouco debatida pelos participantes e isso pode ter ajudado no entendimento de que o Conselho deveria se ater às questões da política social e deixar o debate sobre a Lei para os atores do Poder Judiciário. A partir dessa percepção, o Conselho passou a focar suas energias no processo de debate sobre o Sinase, deixando de lado os PLs sobre aplicação das medidas. O processo de debate público e ampliado, no caso do PNCFC, ocorreu em um momento em que já existia uma primeira proposta formulada pelo Comitê. A demora para a realização da Consulta Pública, demonstra que o debate do PNCFC era secundário na dinâmica do Conselho, que naquele momento estava bastante ocupado com os debates do

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Sinase. A apresentação do relatório Final do PLNA, em julho de 2006, agilizou o processo de Consulta Pública promovida pelo Conselho, pois era necessário apresentar uma alternativa ao PL. Além disso, a aprovação do Sinase em julho daquele ano gerou uma maior abertura da agenda do Conselho que teve mais tempo para o PNCFC. Algumas questões pontuais devem ser ressaltadas no processo de formulação dessas políticas. O primeiro aspecto tem relação com a crítica apresentada sobre a amplitude do conceito de vontade política (SOUZA, 2013). Nessas críticas estava presente a falta de indicações sobre como a organização estatal faz funcionar o processo participativo. Nos casos estudados é possível notar que a aproximação entre servidores da burocracia do Estado e os Conselheiros Nacionais permitiu que os processos fossem traduzidos para as linguagens burocráticas. Isso ocorreu com maior ênfase a partir do último ano do segundo mandato do Presidente FHC e continuou, inclusive com os mesmos profissionais, no primeiro mandato Lula. Essa tradução permitiu uma melhor delimitação sobre o papel de uma deliberação do Conselho Nacional de Políticas Públicas e a necessidade de lidar com diretrizes gerais. A presença de atores mobilizados pelas causas da criança no interior do Estado também alterou o posicionamento do Controle Social na estrutura de governança das políticas. O ativismo estatal realizado pelo Ministro Nilmário Miranda, por exemplo, possibilitou um maior reconhecimento do Conselho. Conforme vimos, esse Ministro sempre se posicionava como presidente do Conanda e isso ajudava a levar as pautas do Conselho em outras instâncias. O protocolo de intenções para o “Plano Nacional de Atenção à Saúde para adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação, internação provisória e semiliberdade” foi uma iniciativa isolada, mas conseguiu localizar o papel do Sistema Único de Saúde no contexto da aplicação das medidas socioeducativas. Faltou ao Conanda conseguir mobilizar as outras políticas para criarem Planos próximos ao que fez a Política de Saúde. Talvez tenha faltado nas outras políticas a capacidade e a maturidade para compreender as interfaces de seus sistemas e políticas com aquele universo das medidas socioeducativas. A política pública de assistência foi uma exceção, pois conseguiu oferecer planos com interligação com as resoluções do Conanda. Contudo, essa relação foi de disputa entre o recém criado Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e sua discussão sobre as relações do Plano Nacional de Assistência Social e estruturação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) com as temáticas debatidas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Algumas vezes os Conselheiros do Conanda se manifestavam

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contra a amplitude do SUAS, que passava a abarcar temáticas das Medidas Socioeducativas e das Instituições de Acolhimento. Essa divisão faz parte de uma tradicional indefinição sobre o papel das políticas da criança e do adolescente e da assistência social. As disputas entre a Febem e a Legião Brasileira de Assistência já demonstravam essas tensões e isso continuou como herança ao longo do tempo. Com a sistematização das políticas de assistência social grande parte das atribuições para ambas as resoluções deveriam estar nessas políticas, mas o Conanda buscava manter essas matérias sob sua propriedade, para de alguma forma criar pertencimentos em relação às suas políticas públicas e ao Controle Social. No caso do Sinase, a separação foi mais relacionada com a jurisdição dos serviços, em uma dupla perspectiva. Primeiramente, houve uma separação entre o papel deliberativo do Conselho e os órgãos executores das políticas, pois aos Conselhos dos Direitos ficou destinada a decisão sobre as políticas e o seu controle e às políticas de assistência coube a execução das medidas. Outro ponto diz respeito ao nível de responsabilidade dessas políticas, pois as medidas socioeducativas de meio aberto foram destinadas ao SUAS, enquanto as de meio fechado ficaram com as políticas para a criança. Contudo, essas políticas em poucos estados tem um setor específico e responsável por elas como ocorre no nível federal. Em muitos casos, as políticas estão alocadas na mesma secretaria que cuida da assistência social e, sendo assim, essa divisão é pouco eficiente. As soluções contaram com um processo de acúmulo que permitiu desenvolver os seus conteúdos e, para isso, alguns fatores foram fundamentais: por exemplo, o encontro entre os agentes de Campo e Comunidade, a disponibilidade de um diagnóstico e o ambiente institucional apto, adequado e competente para essa formulação. Nesse fluxo das soluções houve uma maior integração entre atores do Campo e da Comunidade de Políticas promovida pelos espaços de debate e formulação das políticas. Esses espaços foram concentrados na Comunidade de Política por mais que os conteúdos já tivessem propostas e alternativas construídas no âmbito das organizações da sociedade civil. O Conselho teve um papel de receber os trabalhos desenvolvidos por outras instâncias de produção da política, grupos de trabalho, comissões, etc. Após recebê-las coube ao Conselho também ampliar esse debate, discutindo as soluções com um público mais amplo, por meio de consultas públicas e seminários regionais. Como parte da Comunidade de Política destaca-se também a presença de atores burocratas com capacidade e conhecimento para traduzir os conteúdos debatidos em linguagens que fossem aptas para serem aplicadas nas políticas públicas brasileiras.

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CONCLUSÕES Esse trabalho de pesquisa buscou, antes de tudo, se debruçar sobre os conflitos da gestão das políticas públicas contemporâneas, no contexto da atuação de uma Instância Participativa. Os Conselhos são um avanço em termos da gestão democrática das políticas públicas. Contudo, como discutido ao longo da tese, ainda são instâncias frágeis para romper com o passado de cada área de política, tanto no nível dos discursos/ideias que ainda tramitam

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nesses espaços, quanto das estruturas institucionais pré-existentes. Assim, os Conselhos foram analisados como a própria representação da formação da área de política pública, uma vez que as configurações de Estado e das organizações da sociedade civil também se internalizam em seu espaço. Se a pesquisa estivesse pautada somente nessas perspectivas poderia alimentar propostas para a extinção dessas instâncias participativas. Afinal, grosso modo, podem ser vistos como espaços com baixa efetividade e com pouca capacidade de fomentar inovações nas políticas públicas. Essas propostas chegaram a pairar sobre o universo do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), principalmente durante o período do governo Fernando Henrique Cardoso, que o compreendia como espaço ecumênico, mas de pouca produtividade como espaço de deliberação de políticas públicas. Todavia, não pautamos nossa análise somente na ênfase dessas faltas de efetividade. Demonstramos, sobretudo, que mesmo que elas existam, não impediram que em determinados momentos a presença do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente conseguisse impactar em uma ampla rede de atores e organizações para alcançar o processo político e conflituoso da formulação de políticas. Os motivos da escolha dos dois casos analisados partiram dessas perspectivas, pois se destaca duas deliberações dentre todas as resoluções do histórico do Conselho em que isso pôde ocorrer. Não que isso tenha eliminado parcialidades e intencionalidades nesse processo de escolha, mas o conhecimento prévio do pesquisador permitiu levantar casos não-usuais na realidade do Conselho (KING et. al., 2004; SOTOMAYOR, 2008; REZENDE, 2011). O exercício da efetividade das instâncias participativas, perspectiva à qual essa investigação se associa, não pode ignorar a consolidação desses espaços no cotidiano das políticas públicas e as conformações sócio-estatais de atuação na área de política pública. Para fazer isso, no entanto, é fundamental sincronizar as análises sobre a política pública e a participação social. Por meio dessa forma de observação, é possível apurar os ângulos de visão sobre a efetividade das Instâncias Participativas e, assim, depurar seus efeitos no âmbito da política pública. Essa investigação ampliou essas análises quando, mesmo com as limitações do desenvolvimento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, buscou enfatizar os momentos e as configurações que o Conselho passou a assumir quando se projetou, tanto para a sociedade, quanto para o Estado. Por isso, o esforço de compreendê-lo como parte de um sistema participativo (SÁ & SILVA; LOPES; PIRES, 2010) ou como um espaço entre sociedade e Estado.

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O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, assim como o Estatuto da Criança e do Adolescente são bons exemplos de institucionalidades que surgiram no bojo do processo constitucional de 1988, e que passaram por processos de enfrentamentos com vistas à redução de sua abrangência. As ameaças de encerramento do Conselho, bem como as diminuições de direitos conquistados demonstram conjunturas críticas que forçaram uma revisão do papel do Conselho e do ECA. Essa constatação permite validar a primeira hipótese dessa pesquisa que apontava que o ECA traçou uma path dependency para as políticas públicas da criança e no Brasil pós 1980. Entretanto, para realçar nuances nos formatos desse processo, a pergunta geral da pesquisa foi como as instituições que garantiram conquistas sociais foram mantidas no Brasil pós-88? Pode-se compreender que esses processos de manutenção se dão em movimentos de embate entre as conformações nas instâncias participativas das representações do Estado e da sociedade civil e a necessidade de alterações do aparato legal para melhor adequação aos dilemas contemporâneos. Existe, assim, uma constante tensão entre o que consolida a formação da política e o que indica a necessidade de mudanças. Em relação às conformações citadas, a manutenção das instituições se alimenta de um movimento contraditório de existência de antigas e grandes organizações na área da política pública e a inclusão de novos atores sociais com novas pautas. Por exemplo, a existência de grandes organizações da Igreja Católica no espaço do Conselho foi um ponto positivo para manter a instância participativa nas tentativas de encerrá-la. Ao mesmo tempo, a hegemonia dessas organizações, tanto no Conselho quanto no Fórum Nacional DCA, limitou a entrada de novas pautas que puderam eventualmente ser introduzidas com a chegada de novos atores sociais nos espaços participativos. A necessidade de alteração do aparato legal também se estabelece em cenário de embates entre alguns atores políticos que se apegam às leis existentes e não estão interessados em mudanças, enquanto que o cotidiano das políticas públicas e suas falhas demandam alterações para melhor aplicação do aparato legal. A Construção Democrática da Política Pública ocorre em contexto de disputas e resistências, na qual as resistências são movimentos de conflito estabelecidos para a manutenção de direitos conquistados anteriormente. Essa dimensão, conforme tratada nessa investigação, é um objeto com espaço para outras pesquisas futuras em termos da teoria da formulação da política e mesmo dos estudos de participação social. Valorizar os aspectos que permanecem garante uma perspectiva que pode ser essencial ao lidar, por exemplo, com as políticas de direitos humanos, uma vez que permite desvelar aspectos relacionados com as

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ideias e argumentos das políticas. Permite também demonstrar como as intenções iniciais formadoras de uma determinada institucionalidade ainda são relevantes ao ponto de mantê-las ao longo do tempo. Mas, principalmente, como a sociedade civil se organiza para pressionar o Estado e evitar que aconteçam mudanças em relação à retirada de direitos já conquistados no marco legal. As disputas, por sua vez, retratam os pontos de conflitos que indicam a necessidade de mudanças na forma de atuação da política pública. Elas são objetos mais usuais nas análises de formulação, pois são elementos que podem ser explicitados em uma comparação sobre o que era e o que mudou. Contudo, as disputas desvelam um jogo conjuntural de interesses entre os diferentes aparatos que sustentam a política pública e as lacunas da política que precisam ser respondidas por aqueles mesmos aparatos ou por novas estruturas a serem criadas. Para compreender essas disputas e resistência, mais do que enfatizar os limites das fronteiras entre Estado e sociedade civil, é necessário focar nas funções que espaços relativos à sociedade e ao Estado exercem nos momentos de formulação da política. Portanto, a análise não nega as interfaces sócio-estatais, assim como a mútua constituição entre sociedade civil e política. Por outro lado, buscou-se enfatizar as peculiaridades sobre como os espaços da sociedade e do Estado passaram a se organizar na formulação de políticas. Novas investigações podem ser realizadas utilizando essa perspectiva, abordando outras áreas de políticas setoriais para compreender como se organizam a sociedade civil e o Estado. Buscou-se também centralizar a análise do Conselho em suas projeções entre a sociedade civil e o Estado. No contexto dos casos analisados, o espaço do Conselho conseguiu ser híbrido, pois está na Comunidade, portanto, projeta-se para o interior do Estado, mas teve constante e produtivo diálogo com a sociedade, principalmente por meio do Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Conseguiu, com isso, repercutir vozes do Campo de Defesa para dentro do Estado, bem como ser espaço de convergência de propostas elaboradas na Comunidade de Políticas. Ou seja, nesses temas, o Conselho atuou como órgão de Estado, para além dos interesses segmentados e corporativos, mesmo que sob a regência desses interesses. Por isso, como questão específica propõe-se entender como o espaço do Conselho funciona como o lócus institucional de encontro entre as lógicas da pressão, vinda do Campo de Defesa, e da negociação, estabelecida na Comunidade, e os efeitos desses encontros no desenvolvimento da política pública para a criança e o adolescente.

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O Conselho e as Resistências na Construção Democrática da Política Pública O roteiro das resistências promovidas no contexto dos casos analisados permite visualizar indicações sobre o papel do Conselho na gestão das políticas públicas. Nos casos analisados, as mudanças propostas tramitavam nas negociações entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo e o Conselho não participava delas. Aos poucos e por diferentes motivos, o Conselho começou a fazer-se presente nos debates, animado principalmente por sua interlocução com movimentos da sociedade civil. Assim, as resistências e o Conselho foram dependentes das mobilizações do Campo. É possível pensar que a trilha aberta pelo processo de formulação do Sinase facilitou a passagem para a formulação do PNCFC que surgiu posteriormente. Ou seja, os debates sobre o Sinase criaram uma espécie de trajetória formuladora e um aprendizado por parte do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e isso potencializou a formulação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária. Outro fator de influência sobre aspectos de resistência nos dois casos foi o momento da entrada do governo Lula que, mesmo tendo negociado o PLNA, tinha uma interlocução mais ativa com as instâncias participativas, maior propensão às políticas sociais e era mais sensível às reivindicações dos movimentos sociais. A distinção principal no trâmite dos dois casos analisados se deve aos conteúdos relacionados com cada uma das propostas de resolução: enquanto o Sinase atua com a questão polêmica da delinquência, o PNCFC movimenta sentimentos de benemerência com as crianças vulneráveis. No Sinase, os conteúdos estão relacionados com a falta de vontade de assumir a responsabilidade pelo tema, já que beneficiar esses adolescentes problemáticos pode ser visto como prejudicial para a sociedade. Por vezes as alternativas oferecidas em termos de políticas públicas estão associadas com a punição, conforme sustenta o Projeto de Política Pública Tecnicista/Autoritário. Já no PNCFC, atuar com a temática da adoção ou do abrigamento nasce como resultado do espírito de cuidado e, assim, essa temática pode reavivar práticas de beneficência. Com isso, elementos do Projeto de Política Pública Caritativo voltam a figurar como pontos para o debate. Esses conteúdos da política de enclausuramento foram fatores que permitiram uma maior participação nos debates por parte do Conselho. A omissão governamental, a natureza

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polêmica da temática e a existência da Instância Participativa possibilitaram o deslocamento do local de debate, saindo da iniciativa governamental para a discussão via Conselho. Esses aspectos reforçam a complexidade das relações sócio-estatais brasileiras que não podem ser tratadas como fatores específicos de policy, polity ou politics, mas a partir da inter-relação entre eles. Nos casos analisados, a natureza dos conteúdos da política (policy), as formas de atuação das instituições (polity) e do trâmite do processo de discussão (politics) estiveram associadas. As resistências relacionadas com o Sinase vieram como contraponto aos Projetos de Leis pela redução da maioridade penal. Primeiramente, o roteiro de resistência ocorria por dentro das instituições estatais e, principalmente, pela tentativa de encontrar maneiras regimentais e procedimentais para interromper os encaminhamentos dos Projetos de Leis (PLs). Esse era um processo capitaneado pelo Poder Executivo e pelo seu canal de negociação junto ao Poder Legislativo. Essa resistência conseguiu impactar, durante um período de tempo, na estrutura de governança das políticas públicas e conter aqueles projetos de leis ameaçadores. A pesquisa não alcançou esses aspectos internos ao Poder Legislativo. Essa lacuna pode indicar sugestão de futuras pesquisas, com a intenção de compreender como de fato funciona o Congresso Nacional, para além das regras estabelecidas. Por muito tempo, os PLs de redução da idade penal permaneceram bloqueados no trâmite de negociação e seria interessante compreender esse jogo de negociações e conchavos a partir desse exemplo ou de outros nos quais isso aconteceu. Nesse processo, o Conselho funcionava como espaço coadjuvante e servia aos objetivos do Poder Executivo como mais um instrumento a ser mobilizado para buscar conter os PLs. Os conselheiros eram acionados por agentes governamentais para ampliar os canais de contatos com deputados, e tinham pouca autonomia para enfrentar esse debate por si. Esses PLs serviam como um motivo de constante preocupação no Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente. Por vezes, os trâmites regimentais de bloqueio demonstravam fragilidades e os PLs reapareciam com novos encaminhamentos dados para as propostas no Congresso Nacional. O início da história do Sinase se deu em mais um desses momentos. Como lembrou o Secretário de Direitos Humanos, “vai passar o rebaixamento da idade penal”, e a partir disso, foi necessário oferecer outro remédio para conter os PLs. As condições para a primeira alternativa de solução de resistência se deram quando o Secretário de Direitos Humanos convidou o Desembargador Amaral para escrever o primeiro Anteprojeto de Lei de Medidas Socioeducativas. Essa proposta foi desenhada como uma alternativa técnica e de procedimentos judiciais para o enfrentamento dos PLs. Assim, as

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resistências tramitaram inicialmente como iniciativa governamental e foram oferecidas em termos de alternativas técnicas para enfrentar o tema da redução da maioridade penal. Entretanto, o peso do teor dos conteúdos relacionados com as políticas socioeducativas passou a incidir sobre o debate e aquela iniciativa governamental foi aos poucos minguando. Aquele protagonismo governamental passou a se esconder atrás das estruturas estatais e, principalmente, na falta de vontade de assumir a liderança no debate em relação ao tema da redução da maioridade penal. Um exemplo disso é que aquele primeiro Anteprojeto de Lei passou a ser conhecido como algo de autoria do desembargador, ao invés de ter sido demandado e resultante de um Grupo de Trabalho instituído por membro do Poder Executivo. O Governo passou lentamente a se retirar dessa pauta e, com isso, o Conselho ganhou maior espaço de governabilidade em relação à temática. “Essa era a primeira vez que um projeto de política pública entrou pela porta do Conselho”, conforme foi apontado pelo Presidente do Conanda à época. Esse pode ser um efeito positivo na efetividade dos Conselhos nas políticas públicas, pois determinados assuntos podem ter efeitos eleitorais e o Poder Executivo não assumir essa agenda pública por medo dessas reações. O Conselho, por sua vez, tratado como uma instituição de Estado pode levantar e ser protagonista nos debates desses temas. Investigar em futuras pesquisas outras questões em que Conselhos de Políticas Públicas ganham projeção no processo decisório e no interior da Comunidade de Política pode demonstrar fatores importantes para a efetividade das Instâncias Participativas. Além de não assumir a liderança no processo de debate, o Poder Executivo, principalmente no período FHC, também não facilitava mobilizações sociais mais efetivas para resistir contra a redução da maioridade penal. Com isso, o Conanda tinha muita dificuldade de se colocar como o articulador de uma ampla rede formada por outros Conselhos estaduais e municipais e, principalmente, promover a “mobilização da opinião pública para a indispensável participação dos diversos segmentos da sociedade”, conforme estabelecido no Inciso VII, do Artigo 88 do ECA. Era estabelecida, dessa forma, uma ação contraditória por parte do Poder Executivo, pois atuava nos bastidores para conter os PLs, mas não assumia essa temática como algo necessário, nem tampouco a liderança frente ao debate público. O Campo de Defesa ficava com um desafio, pois contava com o Poder Executivo, mas lhe faltava maior capacidade para ampliar as mobilizações e fazer o debate público. O Conselho ficava nessa fronteira, não conseguia iniciar os movimentos internos ao Governo e tinha dificuldade para promover um debate mais ampliado.

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Com a entrada do Conselho no debate, os processos de resistência passaram a ter maior repercussão a partir da mobilização de espaços de debate na sociedade civil. Com esse debate ficou evidenciado que além das questões técnicas sobre o direito penal juvenil era importante também discutir sobre as conquistas sociais garantidas no marco legal que instituiu a política pública para a criança e o adolescente no contexto pós-Constituição. Ou seja, a discussão feita pelo Campo passava pela questão técnica, mas voltou-se prioritariamente para os argumentos em torno do ECA. O início do caso do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária também teve relação com questões técnicas e aos poucos foi incorporando aspectos relacionados com argumentos associados ao ECA. Esse começo girou em torno do debate entre a adoção, como alternativa para a questão do abrigo, e a necessidade do reordenamento de abrigos. Nesse caso, o Conselho sequer sabia da proposição do PLNA. Essa não é uma novidade na realidade do Conanda que muitas vezes recebia informes dos agentes governamentais sobre políticas já formuladas. Ou seja, muitas vezes as políticas, inclusive as de proteção de direitos, são formuladas independentemente do Conselho. Quando o PLNA tornou-se de conhecimento público, o Campo de Defesa passou a se posicionar contra as suas propostas, pois “estavam destituindo o poder familiar”, conforme apontavam na época. O Conselho passou, então, a receber os documentos do Campo de Defesa e, com isso, pôde se posicionar de maneira contrária ao PLNA. Aqui começou a existir uma disputa entre a Lei de Adoção e a necessidade de se pensar sobre um Plano de Convivência Familiar e Comunitária. Como parte dos processos de resistência, coube ao Conselho lapidar os conteúdos relacionados com as resoluções para compreender o que era parte de uma discussão técnica/jurídica e o que eram matérias de políticas sociais. Ao realizar essa definição, o Conselho aproximou os agentes interessados na política, deu voz ao Campo de Defesa e, sobretudo, ajudou o Poder Executivo a tornar a Comunidade de Política interessada no encontro de soluções para a política. Nesse sentido, o Conselho passou a conseguir ser espaço de formulações coletivas contrapondo-se às iniciativas surgidas de pessoas ou de pequenos grupos. Esse pode ser destacado como outro efeito da efetividade dos espaços dos Conselhos na formulação de políticas públicas. Nesses processos, verificou-se que o Campo assumiu funções de pressão sobre o Estado, mas também exerceu interlocução para validação das soluções e, nesse ponto, também foram promovidas resistências. As configurações do Campo foram distintas em cada um desses momentos, mas seguem a estrutura da representatividade organizacional, principalmente, de ONGs já consagradas no ambiente da política pública. Com a entrada do

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Campo em cena, a pressão social passou a funcionar com argumentos de valorização do ECA. No primeiro momento, o posicionamento ocorria como uma repulsa a qualquer mudança do ECA. Como apontava o Secretário de Direitos Humanos existia uma facção que defendia a intocabilidade do Estatuto (GREGORI apud MARQUES, 2008, p. 145). Essa forma do Campo lidar encontra convergência com a compreensão de que o ECA é uma lei completa e muito bem escrita. Essa recusa também ocorreu no PNCFC, pois as cartas dos movimentos contra o PLNA se colocavam contrárias a qualquer mudança no ECA e, somente posteriormente passaram a aceitar algum tipo de alteração. A liderança do Conselho nos processos de discussão sobre as temáticas, associadas com a atuação e a pressão do Campo de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes, ressalta a importância das relações políticas no contexto dos estudos sobre a atuação das Instâncias Participativas. A ação de alguns conselheiros não-governamentais potencializou a recepção das pressões vindas do Campo no espaço do Conselho. A partir dos casos analisados podemos concluir que a recepção das pressões do Campo no espaço do Conselho se deu muito mais por iniciativa de atores individuais do que pela dinâmica colegiada do Conselho em seu dia a dia. Esse aspecto foi encontrado nas falas dos entrevistados, mas pode ser uma área para futuras pesquisas que examinem a realidade do Conselho de maneira mais cotidiana e consigam compreender as relações intraconselhos e, principalmente, da relação dos conselheiros com suas organizações. Para ampliar essa troca entre Conselho e Campo, muito mais do que partir de iniciativas individuais, as representações da sociedade civil poderiam atuar de maneira mais colegiada. Com esse objetivo, o Fórum Nacional DCA seria outra forma para aproximar ainda mais representantes e representados. Sua função criaria outra ecologia organizacional, mais complexa, na qual não apenas coexistem diferentes tipos de organizações, mas associações especificamente institucionalizadas para realizar funções de intermediação (GURZA LAVALLE; VON BÜLOW, 2014). O Fórum, desde sua criação eem seu desenvolvimento, também carece de maior efetividade em relação a essa função (FORTES, 1996; GOHN, 1997), pois ao longo do tempo mantiveram-se naquele ambiente as mesmas organizações, sem a entrada de novos atores que poderiam trazer novas pautas. Portanto, o próprio Fórum Nacional DCA pode se fechar em lógicas herméticas de defesa das organizações associadas e deixar de articular demandas sociais no espaço do Conselho. Assim, as resistências na Construção Democrática das Políticas Públicas foram ações que se deram em outros espaços além do Conselho, do Poder Executivo e do Fórum Nacional

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DCA. Essas ações permitiram dar maior sentido ao espaço do Conselho em sua interface de discussão com a sociedade civil interessada no tema da criança e do adolescente. Com essa interface mais valorizada, foi possível também ampliar o reconhecimento do espaço do Conselho na Comunidade de Política e torná-lo instância de convergência entre as soluções técnicas para a questão da política pública e, principalmente, lugar de defesa dos argumentos favoráveis ao Estatuto da Criança e do Adolescente. O Conselho e as Disputas na Construção Democrática da Política Pública Quando se destaca as disputas nos processos de formulação de política pública, buscase enfatizar os aspectos que nos momentos de formulação das políticas públicas viriam a passar por mudanças. As escolhas desses aspectos que seriam mudados foram feitas prioritariamente dentro da estrutura estatal e nasceram como o resultado das negociações feitas entre os múltiplos atores e organizações que influenciam no processo de formulação de política. Esse foi um dos motivos para diferenciar o acesso estatal no contexto dessa pesquisa, já que estar no Estado possibilita influenciar as formas de operacionalização da política pública. Nesse ciclo decisório, o uso do espaço do Conselho não fica voltado somente para atender aos interesses dos seus membros, já que o Controle Social passa por uma relação de interação entre o Campo, a Comunidade e o Conselho. Dessa forma, quando os atores nãogovernamentais entram no Estado, isso não significa uma assimilação automática de seus interesses, afinal o Estado funciona como filtro e espaço de negociação. Além do que os atores sociais passam a estar conectados com bandeiras defendidas por um público mais amplo e, por isso, não podem apenas buscar suas vontades. As duas resoluções estudadas foram distintas das outras temáticas debatidas no Conanda, como por exemplo, trabalho infantil ou violência sexual. Nestes temas o Conselho foi um espaço de aprovação dos Planos Nacionais, mas nunca foi o espaço de formulação dessas políticas. Já com a política de enclausuramento, o Conselho foi a instância responsável pelas formulações, e conseguiu ser espaço de aliança da competência técnica e do debate político entre representantes de governo e da sociedade para incidir na concepção de políticas públicas de garantia de direito. Foi, de outra forma, espaço que se projetou como canal de interlocução com os movimentos da sociedade que defendiam os direitos de crianças e adolescentes e, com isso, provocou movimentos na Comunidade de Política, inclusive ao ponto desta tratá-lo como a instância fundamental no processo de formulação. Assim, as

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primeiras grandes disputas se deram entre os conteúdos que balizam cada Projeto de Política Pública e que estão profundamente associados com a compreensão sobre o papel das políticas públicas e a responsabilidade por elas. Discutiu-se também disputas relacionadas com o papel do Estado e das ONGs na prestação de serviços, as configurações do movimento social da área da infância e o financiamento da política. Os teores dessas disputas influenciam as decisões sobre os aparatos técnicos da operacionalização da política que passam, então, a ser o desdobramentos das escolhas dos modelos para as políticas. Uma grande parte das disputas encontradas nessa pesquisa está relacionada com a própria estruturação de uma área de políticas públicas com profissionais e estruturas, que passaram a ganhar funções na prestação de serviços e no atendimento à criança e ao adolescente. Com isso, esses profissionais e suas organizações passaram a defender sua forma de atuação, bem como projetar outros mercados para atuar. Essa disputa gera uma maior ênfase da área de políticas públicas para crianças e adolescentes nas políticas de proteção de direitos, pois são temáticas que podem ser cuidadas por essas organizações. Esses aspectos validam em parte outra hipótese dessa pesquisa que entendia que os conteúdos dos debates sobre a questão do enclausuramento de crianças e adolescentes tiveram como norte uma noção de setorialização das políticas públicas, em contradição com as perspectivas inter-setoriais que seriam desejáveis para políticas como as voltadas para infância. Como parte dessa estruturação da política, há também que os aparatos do passado ainda incidem sobre a formação de novas políticas. Ocorre, assim, uma disputa entre as antigas estruturas que precisam ser alteradas, mas que ao mesmo tempo já consolidam a área de políticas, e o novo que está por vir com outras formas de atuação. Ao fim, grande parte dessas disputas permeia a área da criança e do adolescente no Brasil como uma política pública de proteção social, ainda carecendo maior capacidade de incidência sobre as políticas de promoção de direitos. O segundo aspecto das disputas que se debate está relacionado com as configurações do movimento social da área da infância. Parte-se da hipótese de que o movimento social por políticas públicas fundamentadas em direitos humanos que resultou no ECA foi se limitando progressivamente em algumas temáticas específicas e que não são abarcadoras de todas as crianças e adolescentes. O movimento social pela criança e o adolescente se mobiliza em torno de diferentes pautas, e a questão do enclausuramento é uma questão chave, desde a formação da área das

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políticas na época do ECA. As questões do enclausuramento apareceram e mobilizaram os atores da sociedade civil de maneira mais ampliada. A grande força do controle social se deu quando o Campo de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente passou a se posicionar de maneira contrária aos Projetos de Leis existentes, encontrou o Conselho aberto a essa interlocução e o Poder Executivo disposto a promover essas reivindicações. Essa foi uma confluência de fatores que permitiu impulsionar o movimento social como espaço fundamental nas disputas relacionadas com a política pública. Como apontadp, a área da política para a criança e adolescente tem a característica de ter as organizações de atendimento participando no espaço de decisão sobre a política. Ao apontar a existência de um movimento social na área não se prescindem a existência e participação dessas organizações de atendimento. Ao contrário, reconhece-se que as disputas no Campo são distintas das disputas na Comunidade e a participação das organizações de atendimento no Conselho não significa que elas deixam de se mobilizar para a reivindicação de direitos. Por fim, outro motivo para as disputas esteve relacionado com os recursos financeiros para a execução da política pública. A área da criança e do adolescente tem um fundo setorial para o financiamento de parte da política. A decisão sobre o uso desse Fundo é objeto de disputa por parte dos atores políticos. Ao final do período FHC, o uso dos recursos do Fundo passou por uma normatização para passar a tramitar a partir de critérios públicos. A política para a criança, nesse sentido, buscou deixar de ser balcão de pequenos negócios para passar a tramitar em uma lógica mais integrada. Esse aspecto possibilitou, por exemplo, o início do trâmite do uso dos recursos com prioridade nas políticas socioeducativas por meio da integração da Comissão de Orçamento e da Comissão de Medidas Socioeducativas. Essa responsabilidade do Conselho pelo financiamento de parte da política trouxe alguns problemas, pois faltavam recursos para resolver demandas dos estados e organizações não-governamentais e o Conselho não conseguia controlar a efetividade do uso do recurso. Ao transferir a responsabilidade do financiamento ao Conselho e ao Fundo, o Poder Executivo se desresponsabilizou de parte do financiamento. Dessa forma, a manutenção das políticas aprovadas passa pela alocação de recursos financeiros para a execução da política pública e esse foi um objeto de disputa nas duas resoluções estudadas. O orçamento público é objeto de disputa entre as agências governamentais, bem como entre os atores implementadores da política pública. No caso das resoluções estudadas, o orçamento aparecia como um objeto a ser normatizado para permitir o funcionamento das políticas e, a partir dessa normatização, permitir espaço para a atuação

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estatal ou não-governamental. Os atores no Conselho disputaram até os últimos momentos da formulação do Sinase as definições sobre essa alocação. No Projeto de Lei encaminhado constavam delimitações sobre o uso do orçamento, mas na lei aprovada esse foi um aspecto omitido. No caso do Plano Nacional de Convivência, coube à Política da Assistência Social assimilar parte do financiamento dessa política, principalmente a partir da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) aprovada em 2004. As disputas encontradas no contexto da Construção Democrática da Política Pública alimentam a constante tensão entre o que consolida a política e o que indica a mudança. Elas permitem verificar os interesses dos atores desde o momento do reconhecimento da questão pública até as definições sobre as formas de alocação de recursos para a implementação da política. O Conselho foi um espaço de debate sobre esses temas e, principalmente, lugar de solução sobre esses conflitos que foram resolvidos por votação. Promoção de direitos, controle social e a transformação de uma área de atuação Os discursos dos adolescentes retratados no início trouxeram para essa tese provocações sobre ideias, controle social e uma área de política pública. Ambos, cada um da sua forma, solicitavam uma articulação sistêmica entre organizações da sociedade civil e Estado, de forma a garantir o direito de crianças e adolescentes. A reivindicação desses aspectos encontra limitações na consolidação da área de política pública. Aqui pode estar um grande paradoxo para as políticas de direitos humanos no contexto brasileiro, já que os mesmos elementos que consolidam a política pública são aqueles que podem limitar mudanças. Passa a ser contraditório assim a necessidade de aparatos permanentes de prestação de serviços versus a constante reformulação e revisão sobre a forma como os serviços são prestados e, principalmente, se estes atendem aos anseios do público-alvo. Nessa relação pode acontecer do foco da política pública – o interesse superior da criança e do adolescente – se perder nesses aparatos institucionais e nos ritos processuais. Nesse contexto, os aparatos consolidados buscam se manter e o Controle Social, que deveria ser o meio de transformação, passa a ser a própria representação dessa permanência. A última hipótese da pesquisa apontava que a impossibilidade de uma política pública integrada e inter-setorial no contexto da Administração Pública federal direciona as discussões sobre as políticas para a criança e o adolescente para políticas de caráter de proteção. De fato, a constituição de uma política federal sobre a promoção dos direitos de

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crianças e adolescentes passa pela falta de capacidade inter-setorial, bem como de coordenação federativa, e a estrutura do Conselho por si só não dá conta de resolver essas demandas. Portanto, outra política pública mais integrada e inter-setorial fica como a meta a ser buscada. Cabe à própria administração pública aprender outra forma de atuação que esteja centrada nos sujeitos e promova direitos com prioridade absoluta e, para isso, use a assessoria das estruturas organizacionais existentes. O Campo da criança e do adolescente, como já fez em outras épocas e sob outros princípios, pode colaborar com ensinamentos, desde que se volte mais para as políticas de promoção de direitos e o Controle Social represente isso. O Controle Social, nessa realidade, pode passar a dar mais espaço para a ausculta das crianças e dos adolescentes como atores ativos de seu desenvolvimento. Com isso, romperia com a estrutura adultocêntrica das decisões sobre a política e pautar-se-ia pelo interesse daqueles a quem a política se destina. Momentos como os discursos da Conferência mencionados são passos fundamentais para que isso seja alcançado. Cabe agora rever e repensar a maneira como esses discursos impactam na prática organizacional e no cotidiano da política.

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281

Anexo 1 – Entrevistados

Entrevistado

Caracterização

01

Profissional com formação em direito e atuação como defensor de direitos humanos de crianças e adolescentes. Atuou em Centros de Defesa no Estado de São Paulo e em negociou em rebeliões de adolescentes nas FEBEM de São Paulo. Participou do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente como conselheiro nãogovernamental.

02

Servidor público aposentado com formação em estatística. Foi secretário do Ministério do Desenvolvimento Social durante os anos de formulação das resoluções. Atuou como conselheiro governamental no Conselho Nacional da Assistência Social e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

03

Profissional com atuação na área dos direitos humanos e experiência na CNBB e no Centro de Cultura Luís Freire de Salvador/BA. Representou esse Centro no Conanda durante dois mandatos e esteve durante mais um mandato como representante ABONG. Participou da diretoria do Conanda ao longo dos anos de elaboração das políticas analisadas (2003 – 2006).

04

Doutora em Serviço Social e presidente do Conselho dessa profissão. Participou do Conanda como conselheira não-governamental.

05

Advogada - foi conselheira nacional do direito da criança e do Adolescente representando o movimento nacional de direitos humanos.

06

Profissional, psicólogo e mestre em educação com dissertação sobre políticas para criança e adolescente. Teve atuação em organizações não-governamentais sendo Conselheiro Nacional do Direito da Criança e do Adolescente de 1996 até 2006. Antes de chegar ao CONANDA tinha participado do processo de trabalho com criança e adolescente de rua pelo movimento dos direitos de criança e adolescente e da elaboração da proposta de emenda popular relativo ao artigo 227. Foi da diretoria do Conanda no final da década de 90 e início dos anos 2000.

07

Profissional técnica governamental ocupante do cargo de especialista de políticas públicas e gestão governamental. Teve atuação na Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Posteriormente foi transferida para o Ministério da Previdência Social na Secretaria de Assistência Social e passou a atuar com o tema dos abrigos para crianças e adolescentes. Foi ativa na construção do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária.

08

Conselheira não-governamental do Conanda atuando com organização ligada a Igreja Católica. Socióloga de formação com pós-graduação em educação e políticas sociais. Bacharel em direito. Conselheira não-governamental durante dois períodos, sendo o primeiro da década de 90 e o segundo no começo dos anos 2000.

09 10

Educador e teólogo por formação. Atuou em organizações da sociedade civil que militam por direitos de crianças e centros de defesa. Foi conselheiro não-governamental por dois mandatos sendo o primeiro durante a formulação das resoluções estudadas.

11

Profissional servidor do governo federal ocupante de cargo de especialista de políticas públicas e gestão governamental. Tem formação em ciências sociais e doutorado em

282

Entrevistado

Caracterização educação com estudo sobre a política para a criança e o adolescente. Atuou na Secretaria de Direitos Humanos, Departamento da Criança e Adolescente (DCA) do Ministério da Justiça e o Conselho Nacional do Direito da Criança e do Adolescente – Conanda.

12

Profissional servidora do governo federal que ocupa o cargo de analista de pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – IPEA. Foi conselheira governamental do Conanda e passou por outros conselhos nacionais (CONSEA, por exemplo). Acompanhou os debates sobre o Sinase e o PNFC na função de pesquisador do IPEA.

13

Servidor público do distrito federal e foi alocado no Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça para coordenar o cadastro de pessoas desaparecidas. Além desse tema atuou ativamente em outros temas, principalmente, a questão da convivência familiar e comunitária. Atuou do DCA/MJ de 2002 até 2006. Servidora pública ocupante de cargo comissionado no Ministério da Saúde na secretaria de saúde do adolescente. Auxiliou a elaboração da resolução sobre a saúde do adolescente em cumprimento de medidas socioeducativas.

14

15

Profissional ocupante de importante cargo na secretaria de direitos humanos, especialmente no departamento da criança e do adolescente (DCA/MJ), durante o segundo mandato do governo FHC e início do governo Lula.

16

Psicóloga e ocupante de importante cargo de comissão na Secretaria Nacional de Proteção e Defesa do Direito da Criança (SNPDCA) da Secretaria de Direitos Humanos (SEDH) durante o primeiro mandato do governo Lula.

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