Texto e identidade

August 27, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Philosophy, Systematic Theology
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TEXTOS E IDENTIDADES JOÃO DUQUE As breves reflexões que se seguem pretendem esboçar, apenas, um prefácio à abordagem do papel da Sagrada Escritura (Hebraica e Cristã) na construção da(s) identidade(s) cristã(s) e, por extensão, de identidades culturais intimamente marcadas prioritariamente pelo cristianismo, como é indiscutivelmente o caso da cultura europeia. Para organizar esta introdução geral ao conjunto das restantes aproximações ao significado diversificado da Escritura, proponho que nos concentremos, progressivamente, em alguns dos aspectos essenciais do tema enunciado no título. Assim e em primeiro lugar, impõe-se uma evocação geral do significado que a questão da identidade pessoal e cultural desempenha no mundo hodierno – mesmo que esse significado esteja, sem dúvida, marcado por não poucas ambiguidades. Após o esclarecimento de algumas dessas ambiguidades, exige-se a consideração do papel da mediação textual na construção de identidades. Com isso, entramos no núcleo teórico daquilo que aqui nos ocupa. De seguida, aplicar-se-ão esses pressupostos ao(s) texto(s) cristão(s) e respectiva identidade, de que resultará uma concepção aberta – isto é, relacional e universal – quer dos textos, quer da identidade. Para terminar, será esboçada uma contextualização da identidade construída a partir de textos, na era da imagem – que talvez seja a nossa – com todas as questões, problemas e desafios que isso comporta. Vamos por partes.

1. Busca de identidade A questão da identidade humana – no sentido do conjunto das características que definem uma pessoa particular, tornando-a diferente de qualquer outra, isto é, única e una – adquiriu crescente importância nos últimos séculos, sobretudo ao longo dos sécs. XIX e XX. A preocupação central do ser humano, sobretudo daqueles seres humanos que costumamos considerar «pensadores», deixou de ser a questão geral do ser, na sua manifestação cosmológica, ou então a questão da essência das coisas, mesmo até da essência do ser humano. A preocupação central tornou-se, cada vez mais, a da existência e destino do ser humano. Mas mesmo aí, passou-se progressivamente da questão do destino geral da Humanidade para a questão do destino de cada ser humano particular, jogada constantemente na sua existência concreta1.

1

Ver A. TORNOS CUBILLO, Inculturación, Madrid: Comillas, 2001, esp. 15-44.

O existencialismo, desenvolvido sobretudo ao longo do séc. XX, é disso o exemplo mais claro e completo. Segundo essa perspectiva, cada ser humano constrói-se a si mesmo, no processo de construção da sua identidade, e é nesse processo essencialmente particular que se joga o destino de cada indivíduo, enquanto ser livre. O modo de ser de cada ser humano – isto é, a sua identidade particular, única e irrepetível – precede cronologica e ontologicamente a essência humana, na sua unidade abstracta. O desenvolvimento da psicologia – sobretudo na sua expansão enquanto moda «psi», isto é, enquanto forma específica da cultura de massas – colocou a questão da identidade no centro das preocupações dos nossos contemporâneos, não apenas dos ditos «pensadores». Hoje em dia, já se tornou habitual o programa psíquico de «encontro de si mesmo», para descobrir aquilo que se é ou quem é cada um, juntamente com o sentido da sua existência própria. Ao constante perigo de dissolução na massa anónima que cada vez mais constitui o núcleo das nossas sociedades, os sujeitos vão respondendo com a obsessão da procura de identidade. É frequente, quer nas crises de adolescência quer lá para o meio da vida, presenciarmos que as mais variadas personalidades – sobejamente retratadas em todo o tipo de filmes e séries televisivas – sentem a urgente e vital necessidade de se «encontrarem a si mesmas», de descobrirem aquilo que são e para que vivem. Mas essa pretensa descoberta da identidade, colorida com doses de psiquismo de massas ou terapias diversas, faz-se segundo um modelo herdado da modernidade: o modelo subjectivo. Ou seja, pretende-se que a identidade de cada um se descubra pela introversão, pelo isolamento em relação a tudo e a todos, pelo corte de todo o tipo de relação2. Pretende-se que a identidade pessoal seja, assim, construída de forma absolutamente individual, porque se confunde a particularidade, unidade e unicidade de cada ser humano com a redução individualística de cada um a si mesmo. Segundo a interessante análise de Gilles Lipovetsky, “no momento em que o crescimento económico se esgota, o desenvolvimento psíquico reveza-o ... Canalizando as paixões no sentido do Eu, promovido assim à categoria de umbigo do mundo, a terapia psi, ainda que colorida de corporeidade e de filosofia oriental, gera uma figura inédita de Narciso, identificando-se doravante este com o homo psychologicus... Alargando deste modo o espaço da pessoa, incluindo todas as escórias no campo do sujeito, o inconsciente abre caminho a um narcisismo sem limites”3.

2

Ver, a propósito da relação familiar, P. D’OREY DA CUNHA, Ética e Educação: Lisboa: UCP,

1996, esp. 243ss. 3

G. LIPOVETSKY, A era do vazio, 51-52.

Contudo, manifesta-se aqui um grande equívoco, relativamente a qualquer equilibrada procura e construção da identidade pessoal. Em realidade, nenhuma identidade se constrói ou se descobre pelo isolamento, pela mera introversão, pela concentração do indivíduo em si mesmo. É o que se pode constatar, não apenas a partir do testemunho da psicologia, mas até mesmo do próprio conceito de identidade. Esta pressupõe a existência e a consciência de uma diferença, que radica precisamente na particularidade de cada pessoa. Mas a noção de diferença implica, necessariamente, uma relação, para se constituir como diferença e para ser percebida como tal. Nesse sentido, só no processo de relacionamento interpessoal é que podem construir-se identidades pessoais, porque só aí surgem diferenças reais e percepção clara dessas diferenças – isto é, das identidades. A identidade surge-nos, então, sempre como resposta específica à interpelação de uma alteridade. O encerramento na mesmidade do indivíduo não permite, nem a vivência nem a consciência da sua identidade. E o processo de resposta à alteridade, que vai originando identidades específicas, realiza-se de formas muito diversificadas. Antes de mais, trata-se de respostas concretas, na relação com outros seres humanos concretos: pais, irmãos, conhecidos, professores, etc. É do conjunto das histórias da relação de cada um com todos esses «outros» que se vai formando aquilo que podemos considerar a identidade pessoal. Mas todo o ser humano cresce e é aquilo que é, no interior de um tempo e um espaço culturais. Nesse sentido, uma das dimensões da resposta do sujeito perante a interpelação da alteridade liga cada pessoa com o seu contexto cultural. Cada um é aquilo que é, como resultado da constante inter-acção entre a sua idiossincrasia e o ambiente cultural. Aliás, não é possível, sequer, atingir o núcleo da identidade individual separadamente da sua identidade cultural, já que essas dimensões constituem um todo unitário na constituição identitária. Nesse sentido, toda a pessoa humana desenvolve a sua identidade por relação a uma herança muito diversificada e complexa, a que podemos chamar, de forma muito genérica, tradição. Não passou de uma ilusão auto-construída pelo pensamento moderno, o facto de se pretender que a identidade pessoal pudesse ser construída a partir exclusivamente do fundamento inabalável do cogito interior e individual, por ruptura com toda a tradição ou herança. Trata-se de algum impossível, mesmo impensável e contraditório nos seus termos. Na prática, nunca nenhuma identidade de construiu nem construirá desse modo. Como tal, podemos concluir que toda a identidade se constrói e se realiza num processo de relação à alteridade. Para utilizar a nomenclatura de Paul Ricoeur, o «si mesmo», na sua «ipseidade» (mais até do que na sua «mesmidade»), é sempre o que é, sendo «como um outro»:

quer em relação a si mesmo, quer em relação aos outros, quer em relação à cultura, ao mundo em geral4. Mas, para que a identidade se desenvolva assim – isto é, para que seja encontrada, progressivamente, por cada ser humano – a alteridade tem que o atingir, isto é, tem que o interpelar à sua resposta identificante. Ora, a alteridade, enquanto tal, é sempre outra, por isso inefável e não captável pela intencionalidade do sujeito que dela pretende ter consciência5. Como pode ela atingir o sujeito e provocá-lo à construção da sua identidade? Apenas em mediações de si, elas próprias outras, mas que permitem ao ser humano perceber a realidade que lhe é outra. De entre todas as mediações da alteridade, uma das mais importantes é a mediação textual.

2. Mediação textual Um texto é um têxtil, isto é, um tecido em que se cruzam e caminham em paralelo linhas diversas, para constituir um todo unitário, potencialmente sem princípio nem fim definíveis. Um texto tem uma história passada, um texto constitui uma história presente, um texto origina histórias futuras. E cada história possível, ligada a um texto, passa a constituir uma linha mais, no cruzamento das linhas que constituem o tecido textual. Nesse sentido, qualquer existência, qualquer vida, na sua identidade própria, é um tecido de histórias, em que confluem histórias de outros que nos precedem e nos interpelam, com histórias nossas, vividas com outros que, no presente, marcam a nossa história, e ainda com histórias futuras, de possíveis projectados, imaginados, simplesmente sonhados. Cada um de nós possui uma pré-história, uma história (feita de histórias diversas) e uma pós-história, feita de possíveis em aberto. E não somos produtores absolutos ou proprietários exclusivos, nem sequer da nossa história, muito menos do que nos serve de pré-história ou do que será a «nossa» póshistória. Estamos, isso sim, «emaranhados em histórias», nossas e dos outros, sem que possamos distinguir muito claramente o que é nosso e o que é dos outros. Esse emaranhado reflecte-se, de forma eminente, no tecido de um texto, no sentido mais estrito de obra escrita. Primeiro, porque ele próprio é um emaranhado, no seu tecido interno; depois, porque ele mesmo se situa no emaranhado da relação ao mundo e aos outros textos; por último, porque ele constitui especial mediação da nossa inserção no emaranhado das histórias que constituem a história da Humanidade, isto é, que constituem a nossa identidade. É neste último aspecto que eu desejava concentrar-me mais. 4

Ver o desenvolvimento extraordinário desta ideia, assim como da distinção entre «idem» e «ipse»,

na questão da identidade, elaborado por P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, Paris: Seuil, 1990. 5

Este é um dos elementos fundamentais de toda a filosofia de EMMANUEL LEVINAS.

De facto, a construção da nossa identidade no interior do leque complexo de relações com todas as histórias que nos atingem, dá-se de diversos modos. Um deles, de importância saliente, é constituído pela relação com textos diversos. Sobretudo no contexto da civilização da escrita, o texto tornou-se uma forma primordial de contacto com as diversas formas de alteridade que constituem a nossa identidade. De entre esses textos, sobressaem os textos narrativos, precisamente por articularem de forma mais directa a própria realidade da história, em histórias que configuram a nossa história, possibilitando a sua continuidade. É por isso que a construção de identidade, enquanto processo que se desenrola no tempo, como uma história ou um emaranhado (tecido) de histórias, é um processo narrativo, inspirado nos textos narrativos, desenvolvido em contraponto com eles e dando origem a novos textos narrativos, infinitamente. Nesse processo de relacionamento com os textos que marcam a nossa identidade, inserimo-nos numa tradição textual, isto é, no tecido de uma história que se testemunha no tecido concreto de textos escritos. Não propriamente no sentido de que apenas nos limitássemos a morrer, por dissolução, no interior de textos fixos e acabados, isto é, em si mesmo já mortos. É o nosso viver que depende da nossa inserção na vida dos textos, os quais possibilitam o futuro de toda a vida. Por isso, a relação aos textos que marcam a nossa identidade é uma relação viva e dinâmica de interpretação, apropriação e aplicação desses textos, que abrem espaços novos de ser, originando outros textos ou a continuidade dos textos herdados. Essa relação é aquilo a que se pode chamar processo hermenêutico. Nesse processo assume-se, por um lado, a relação de pertença a uma tradição, já que o movimento vivo de hermenêutica dos textos parte de textos existentes, previamente dados, herdados, nunca produzidos pelo sujeito isolado, a partir do nada. No processo de construção de identidade, através da actividade hermenêutica que interpreta o mundo e se interpreta a si mesmo, todo o sujeito humano se situa sempre numa tradição cultural, quer disso tenha ou não consciência6. Por outro lado, a mediação textual dessa tradição e dessa pertença, possui um conjunto de características que determinam a construção da identidade de forma específica, por distinção em relação a outras vias de identificação, como no caso do diálogo directo, através do discurso falado, ou da interpelação provocada pelo frente-a-frente. De facto, um primeiro elemento importante da passagem do discurso falado ao discurso escrito é precisamente o da fixação do discurso: “o escrito conserva o discurso e faz dele um arquivo disponível para a memória

6

A hermenêutica de Hans-Georg GADAMER acentua, especialmente, este aspecto de pertença a uma

história anterior (Cf.: H.-G. GADAMER, Wahrheit und Methode, GW 1, Tübingen 1986).

individual e colectiva”7. A fugacidade do discurso oral é suplantada pela estabilidade de um texto, que permite às sucessivas gerações uma referência memorial originária, precisamente em relação ao mesmo texto. Ajuda, por isso, a que a transmissão de identidade não resulte tão facilmente em perda de identidade ou, pelo menos, na sua deturpação completa ou parcial. O texto afirma-se na sua alteridade em relação a todos os receptores – e mesmo a todos os transmissores – dificultando, assim, a total subjectivação do conteúdo identificante. A identidade construída por referência ao texto é, desse modo, sempre e explicitamente, uma identidade no jogo com uma alteridade prévia e primordial, como é próprio de qualquer construção sadia e equilibrada da identidade. De qualquer modo, a forma como cada indivíduo e cada geração actualiza a memória arquivada no texto não é sempre a mesma. Isso conduz-nos a considerar as restantes alterações provocadas na linguagem – e na sua relação ao mundo – através da passagem da fala à escrita, do discurso oral ao texto. Nesse processo, o texto «distancia-se» do locutor e mesmo do escritor, adquirindo uma existência autónoma, que o constitui «outro» em relação à(s) subjectividade(s) produtora(s) de discurso. O mundo a que dá origem – ou, pelo menos, que em si reflecte – tornase um mundo em si mesmo, articulado no conjunto dos seus textos, sem referência directa às subjectividades autoras materiais desse mesmos textos. Nessa alteridade «distanciada», o texto potencializa, antes de mais, a relação do mundo a que dá origem – e, embora secundariamente, do(s) respectivo(s) «criador(es)» – com um leque eventualmente infinito de leitores (inter-locutores), diferentemente da limitação própria da situação de oralidade, reduzida ao locutor e ao(s) ouvinte(s) directo(s) – mesmo que essa seja a situação originariamente «dialogal». Instaura-se, assim, uma possibilidade universal de recepção do mundo do texto, através do acto de leitura. Este, devido precisamente à alteridade do texto, também não é mero exercício de uma subjectividade isolada do leitor, mas o jogo do mundo contemporâneo a esse sujeito – mediatizado na linguagem (também textual) – com o mundo do texto, enquanto outro. Instaura-se, assim, o processo hermenêutico, pelo qual o leitor, com o seu mundo, compreende o mundo do texto e se compreende perante esse mundo, sendo marcado identitariamente por essa compreensão. Desse modo, a alteridade do texto, nos seus variados significados, torna-se fonte de identidade, no jogo hermenêutico do leitor com esse mesmo texto. E é esse processo hermenêutico, que não se fixa na letra morta do texto nem na apropriação subjectiva por parte do leitor individual e presente, que faz do texto um instrumento de abertura de futuro. De facto, o tecido do texto, pelo processo hermenêutico, encontra-se intimamente unido ao tecido da história. O processo de leitura e apropriação do texto é que o

7

P. RICOEUR, Do texto à acção, Porto: Rés, s.d.,143.

religa constantemente com a história, fazendo do texto um potencial de imaginação da história possível, cuja possibilidade possibilita o futuro. Assim, a mediação textual da identidade inaugura um processo infinito – mas não arbitrário – de construção de identidades, presentes e futuras. Isto é, o futuro de toda a identidade – da própria existência do ser humano, como humano – depende, em grande parte, da mediação textual. Caso contrário, tudo se limitará à repetição do presente, sem passado nem futuro (eterno retorno do mesmo). O texto torna-se, portanto, o fundamental suporte da memória e da esperança, como pilares da história humana e da humanidade da história. Tudo isso porque “a realidade de que fala o texto é uma realidade aberta para as suas possibilidades” 8. E tocamos, aqui, num ponto fulcral: o da «realidade de que fala o texto». Tratar-se-á, simplesmente, de um realidade anterior ou posterior ao texto, que se encontra fora dele, e que o texto apenas reflecte, como instrumento de transmissão, quer de pessoa a pessoa, quer de época a época ou de lugar a lugar? Nesse caso, o texto seria um reflexo – pálido e mesmo deformador – de uma realidade «em si», independente do texto. A identidade deveria orientar-se por essa realidade em si mesma, apesar de ter que percorrer o texto para a ela chegar. E a interpretação correcta do texto consistiria, apenas, na investigação feita no sentido de percepcionar o que seria essa realidade que deu origem ao texto, isto é, qual será o seu sentido originário, avaliado pela sua relação – mais ou menos fiel – aos acontecimentos que relata ou às doutrinas que veicula. Mas a questão é algo mais complexa. De facto, mesmo que tenha havido acontecimentos e formulações que tenham originado os textos, após a sua transformação em tecido textual, a «realidade» em questão – que é precisamente o núcleo orientador da identidade – passa a ser algo inseparável do texto, isto é, a ser o próprio texto e tudo aquilo que ele pode originar. Por isso mesmo, na construção de identidades a partir de textos, não é possível sair fora desses textos, para encontrar uma realidade «original» completamente exterior e independente deles. As possíveis – não arbitrárias – identidades, presentes e futuras, constróem-se a partir da realidade do texto que é, precisamente, o conjunto das identidades por ele possibilitadas. O texto abre um sentido – uma direcção – para a história. Todas as possibilidades de sentidos particulares se inserem, doravante, nesse sentido aberto. Se não se inserem nessa direcção, deturpam o sentido do texto. Mas os sentidos particulares possíveis não estão definidos e limitados à partida, pertencendo ao processo histórico, ao futuro, o desenvolvimento de todas as suas possibilidades. “Se houver aqui alguma questão acerca do «verdadeiro significado» do texto, ela só poderá ter o sentido de: qual a ordem verdadeiramente desejável do texto?”9. 8

K. WENZEL, Die Gegenwart des Verstehens. Hermeneutik im Schatten theologischer

Rezeptionsdefizite, in: K. MÜLLER (ed.), Fundamentaltheologie, Regensburg 1998, 151-175, esp. 169ss. 9

J. MILBANK, Theology and Social Theory, Oxford 1990, 343.

É precisamente essa «ordem» ou «direcção» (sentido) do texto que marca a sua «realidade», o seu «mundo», o qual está na origem da identidade de quem se lhe refere. Mas, por isso mesmo, não se trata de um processo fechado e acabado – um sentido definido de uma vez por todas – mas sim de um percurso em caminhos de que se conhece apenas o que foi aberto até então e, possivelmente, a direcção no sentido da qual é possível – e necessário – continuar a abrir. Ora, tudo isto se aplica, de modo particularmente especial, à construção pessoalcomunitária da identidade cristã, a partir dos seus textos fundamentais, essencialmente do texto escriturístico.

3. Texto cristão Também a identidade cristã se constrói essencialmente por relação a textos. Não que o texto seja o fundamento último, o alfa e omega do cristianismo. Já Tomás de Aquino insistia fortemente na distinção entre proposições da fé e a Prima Veritas, como finalidade última da relação crente10. Mas a relação mais originária do cristianismo, assim como a sua articulação sóciopragmática, não podem separar-se das mediações, pelas quais se vive e se percebe a identidade cristã. Ora, entre essas mediações, sobressai a textual, segundo o modelo apresentado anteriormente. Para resumir e ordenar esta breve abordagem do texto cristão – articulado em muitos textos – proponho uma aproximação a partir de um conjunto de conceitos que, pelo menos em português, se constróem a partir da raiz «texto». 1. Assim e em primeiro lugar, qualquer texto conhece um pre-texto. Nenhum texto nasce do nada. Corresponde a acontecimentos ou a ideias que, mesmo que eles próprios já estejam em relação a outros textos, não constituem ainda o texto em causa. No caso do texto cristão, o pretexto é, primordialmente, a própria prática – como palavra e como acção – de Jesus. Essa prática é que originou o texto e, por isso, constitui o seu pretexto. Ou seja, o texto não surge em função de si mesmo, como finalidade última – como seria o caso, talvez, do texto exclusivamente literário11 – mas no seio de um pretexto, em relação ao qual adquire significado. Claro que não é fácil isolar o texto cristão, marcando-lhe o início absoluto a partir de uma determinada prática existencial particular, dos textos que o precedem – no caso, sobretudo dos textos da Escritura Hebraica – e que entram no tecido do novo texto, criando a sua própria 10

Cf.: TOMÁS DE AQUINO, De vritate, 14, 1; STh, II, II, 1, 2.

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Mesmo aí, a relação entre texto e mundo da vida não pode ser totalmente cortada.

realidade, que já é sempre interpretação crente da prática existencial em causa. Nesse sentido, o pre-texto deve-se sempre já a um texto e não possui um significado bruto em si mesmo, independentemente do texto que o precede. Mas, as novas possibilidades de sentido, a nova direcção – que não é absolutamente nova – do texto cristão deve muito à prática de uma pessoa e, por isso, ao pre-texto que será tornado texto. E essa dívida nunca pode ser esquecida. 2. Ora, quer os textos que precedem o texto cristão quer a prática existencial que lhe serviu de pre-texto, constituem o con-texto desse mesmo texto. Isto é, o texto cristão inclui, no seu tecido interno, esses elementos, que passam a ser um com o novo texto. Eles são o contexto em que surge o novo texto e, por isso, passam a constituí-lo intrinsecamente. Por outro lado, o texto cristão, a partir do momento em que se constitui como tal, passa a ser a mediação fundamental de vivência e construção da identidade cristã ao longo da história futura. Essa identidade desenvolve-se, portanto, a partir do interior do texto e no jogo do crente, em comunidade, com esse texto. O texto passa a ser, por isso, o contexto primordial da construção da identidade cristã. É nesse contexto que, originariamente, se pode debater qual é essa identidade, porque é aí que, pela razão crente, se entende essa identidade. Fora do contexto – que é o texto – essa identidade corre o risco de se perder, pela equívoca identificação com outros contextos de referência. Mais ainda, a identidade cristã que se vai construindo, ao longo da história, pela relação ao contexto do texto, insere o texto em novos contextos, que são precisamente as situações prático-existenciais – assim como «ideológicas» – diferentes em cada espaço em cada tempo, mesmo em cada cultura. O texto, enquanto contexto primordial, entra assim num processo de exploração dos seus sentidos, pela relação a contextos novos, que dinamizam a própria realidade contida no texto. Os sentidos assim abertos ou mesmo imaginados – sempre na fidelidade à «direcção» presente no contexto do texto – passam a fazer parte do texto, isto é, passam a ser elementos integrantes do contexto do texto, passam a estar e a ser «com o texto». E todas as identidades futuras contam, na sua relação ao texto, com esses elementos do con-texto. 3. Contudo, esses elementos passam a ser marcantes para a identidade cristã, na medida em que são assumidos pelo texto – mesmo que, na letra, o texto permaneça inalterado. Assim, a relação identificante de cada cristão ou comunidade cristã ao texto é, sempre e primordialmente, a relação ao seu interior, isto é, ao tecido textual enquanto tal – e não a todo o tipo de elementos externos, mesmo que esses não possam ser descurados. Assim, no processo hermenêutico de interpretação do texto e construção da identidade cristã, a referência primordial é o intra-texto,

isto é, o texto em si mesmo, com todos os harmónicos de sentido que lhe estão ligados e que foram construídos por toda a tradição da identidade cristã. Não se procura, portanto, um sentido fora do texto, antes do texto, posterior ao texto, mas sim no próprio texto. E é esse sentido interior ao texto – tal como ele, hoje, nos atinge – que constitui o ponto de referência central para todo o processo hermenêutico. 4. Mas, precisamente a identidade mediatizada e impulsionada pelo texto cristão é uma identidade relacional, de pertinência universal, isto é, não se encerra em contextos fechados, como se o interior do texto fosse uma fortaleza bem definida e inatacável, também sem acesso ao exterior de si mesma. A universalidade do cristianismo, que se vive enquanto relação aos outros diferentes, constituindo a sua identidade fundamental, implica que o texto seja considerado na sua dimensão de inter-texto. Em primeiro lugar e já internamente, o texto cristã não é monolítico, não se reduz a um texto apenas. A Escritura é, já de si, um conjunto de textos que se relacionam mutuamente, quer em complemento quer mesmo em crítica. Por isso, a identidade cristã daí resultante é uma identidade relacional já no próprio processo hermenêutico de interpretação e aplicação dos textos. Nenhum texto, enquanto unidade escrita que repousa em si mesma, pode repousar fechado em si, sem levar em conta a relação aos outros textos que fazem parte do tecido do grande texto cristão. Este, por seu turno, só possui significado e validade na relação aos textos das antigas Escrituras, de tal modo que a sua percepção só é viável numa hermenêutica inter-textual em relação a esses textos precedentes – os quais, por seu turno e dada a complexidade da sua diversidade, também só se compreendem na inter-textualidade deles mesmos. E, segundo o texto cristão, os textos que o precedem só adquirem significado se forem lidos, inter-textualmente, na sua relação ao novo texto, surgido da prática existencial de Jesus – que aliás, praticou eminentemente a inter-textualidade. Para além disso, dada a universalidade relacional inaugurada pelo texto cristão, também a relação deste a textos não escriturísticos passou a ser importante, precisamente para evitar o encerramento do texto cristão no estrito contexto do seu intra-texto. Antes de mais, foi decisiva a relação ao texto filosófico grego, que durante e desde a época patrística influenciou marcadamente as possibilidades futuras da identidade cristã. Mesmo que nessa relação, por vezes, se tenha perigado a identidade, o certo é que, na generalidade, essa via foi muito fértil e, actualmente, o texto cristão já não pode prescindir dessa referência fundamental. Mas, entretanto e sobretudo com o contacto com outras tradições culturais e religiosas, a inter-textualidade do texto cristão em relação a outros textos identificantes assumiu papel

saliente. É o caso de textos fundamentais de outras religiões, que no contexto do actual diálogo inter-religioso ou do processo constante de inculturação do cristianismo assume importância cada vez mais crescente. 5. Mas a identidade relacional originada pelo texto cristão aponta ainda para uma relação «exterior» mais fundamental. Se vimos que o texto não constitui o princípio e o fim últimos do cristianismo, não podemos esquecer o seu papel mediador. É um papel incontornável, para nós humanos, e só através dele é que podemos ser cristãos, mas é sempre apenas mediação da nossa relação àquele que constitui princípio e fim da nossa fé. Por isso, o texto cristão implica, no seu próprio tecido, enquanto identidade construída com esse mesmo tecido, a referência ao extratexto ou para-texto. Trata-se, no fundo, da presença, no sentido do texto e na direcção aberta pelo texto, de um excesso de sentido, no qual se insinua, de forma presente-ausente, o ponto de orientação da identidade cristã. Porque o texto não é Deus e Deus não se reduz ao texto nem cabe nos seus limites, a constante presença do extra-texto na relação do cristianismo como o seu texto identificante é fundamental. Só essa atitude, hermenêutica e existencial, possibilita que a relação ao texto cristão seja verdadeiramente cristã, isto é, não-idolátrica. Por isso é que o cristianismo não é religião do livro, pois o texto não é o seu centro – mesmo que, na realidade concreta da sua identidade, ele esteja no centro. 6. Na actualidade, seria indicado falar ainda do hiper-texto. Em sentido estritamente teológico, a reflexão poderia conduzir-nos às mesmas conclusões que a respeito do para-texto, já que o hipertexto nos evoca uma dimensão para além do texto, mesmo que articulada textualmente – ou de modo semelhante. Mas, tendo em conta o significado técnico que o conceito de hiper-texto possui no contexto da net, as reflexões ao respeito teriam que ser mais vastas e mesmo complexas. Aqui, limito-me a chamar a atenção para três aspectos que me parecem importantes. a) Em primeiro lugar a referência ao hipertexto levanta a séria questão da relação entre particular e universal. Será o hiper-texto ainda um texto, ou apenas a ideia abstracta de texto global, cujo tecido não é o tecido de nenhum texto concreto? Se assim for, a referência ao hipertexto é problemática para a construção da identidade, pois não chega a proporcionar à pessoa a

possibilidade de mergulhar em nenhum texto concreto; apenas estaria a pairar ou a «navegar» acima dos textos12. b) Isso levanta a segunda questão: como se constrói identidade em relação ao hiper-texto? Não estando esta relacionada com a presença profunda ou o «mergulho» num texto particular, a identidade vai-se construindo por uma espécie de «bricolage» sem fim. Esse processo coloca, por um lado, o problema da identidade num trajecto infinito, nunca podendo atingir um ponto em que se pudesse falar de alguma estabilidade; simultaneamente, o único ponto de referência e critério para a construção da identidade, a partir de elemento fragmentários e aleatoriamente disponíveis, passa a ser apenas o sujeito individual – a não ser que adquira esses critérios noutros textos. Mas então, a sua identidade já não nasce do hiper-texto. A estrita imanência a este implicaria uma identidade, no mínimo, fragmentada. Mas como identificá-la, então? A partir de que parcela? c) Como se viu, segundo este modelo de construção da identidade, passa a ser o indivíduo o autor da sua identidade, cortando a referência a qualquer texto particular e montando, peça a peça, a sua identidade a partir de elementos dispersos de textos diversos. As ambiguidades de uma identidade auto-construída não se farão, contudo, esperar. Assim, as virtualidades do hipertexto, nas suas potencialidades de abertura infinita, de construção sem fim da identidade, poderão resultar no fim da identidade própria e herdada. Mas outra questão, anterior a esta, por isso mais geral e possivelmente de consequências mais vastas, nos surge no horizonte da actualidade: será que o texto ainda está no centro da nossa cultura e da forma como, nela, se constróem identidades? Será que o novo contexto cultural implicará, em si mesmo, o fim do texto como mediação identificante primordial?

4. Texto e imagem Em realidade, vivemos cada vez mais numa civilização da imagem e já não propriamente da escrita. É certo que as imagens também podem ser lidas como textos. Mas, em sentido rigoroso, a forma de organização do real e de formação de identidades realizada pela imagem é distinta da que é levada a cabo por um texto, no sentido de tecido escrito com características próprias. A questão mereceria, sem dúvida, um estudo muito alargado, por se tratar de assunto complexo e vasto. Limitar-me-ei, aqui, a enunciar apenas alguns dados fundamentais. 12

Não admira, por isso, que os «praticantes» do hipertexto, na maioria dos casos, apenas

«naveguem» constantemente, de palavra em palavra, de conceito em conceito, sem chegar a construir um verdaddeiro tecido orgânico digno do nome de «texto».

1. Antes de mais, na construção da identidade, a relação da pessoa à imagem privilegia uma forma específica de conhecimento ou percepção do real, que vai ter influências enormes na identidade pessoal e cultural. Trata-se de um conhecimento preponderantemente – ou mesmo exclusivamente – elaborado por «impregnação». Se considerarmos que o processo de aprendizagem, a que costumamos chamar educação, é precisamente o processo de construção de identidade, esta pode dar-se de três modos, segundo a famosa divisão de Liliane Lurçat: impregnação, actividade e transmissão. “A aprendizagem por impregnação tem um grande poder, opera com mais eficácia no início da vida e, de forma mais geral, em qualquer circunstância que não exija a consciência de que se está a aprender”13. Ora, é precisamente por causa disso que este tipo de aprendizagem, se se tornar exclusivo, cria identidades acríticas, uma vez que aquilo que é absorvido na identidade não é filtrado conscientemente. E a forma mais eficaz de aprendizagem por impregnação é, sem dúvida, a que se dá pela imagem, actualmente sobretudo pela imagem televisiva e, no seu interior, pela imagem publicitária. Algo distinto se passa com a aprendizagem pela actividade, que se dá através da acção sobre as coisas e através da leitura. De facto, ler é um processo activo, pelo qual o leitor se apropria, de forma pessoal, do mundo do texto, tornando-o seu e, desse modo, transformando-o. Mas, simultaneamente, o leitor deixa-se transformar, configurar, pelo mundo do texto, de forma crítica e profunda (numa espécie de passividade activa). Nesse processo, que se continua na elaboração de textos por parte do leitor, vai-se formando a estrutura de pensamento que marca a identidade pessoal e que constitui a característica fundamental do homo sapiens. Ora, a convivência inter-humana, isto é, a possibilidade de relação exige o desenvolvimento dessa capacidade do pensamento, também como capacidade de diálogo e de argumentação clara. Caso contrário, os seres humanos apenas se impõem uns aos outros, pela força – ou se deixam subjugar uns pelos outros (o que é o mesmo, visto apenas por lados distintos). O desaparecimento de hábitos de leitura e de escrita poderá ter, nesse sentido, consequências bem mais drásticas e profundas do que possamos pensar à partida14. Percebe-se, então, a importância dos textos e da relação aos mesmos, no processo de construção de identidade – também da identidade cristã, pessoal e comunitária – como força de

13

L. LURÇAT, Tempos cativos, Lisboa: Ed. 70, 1998, 53.

14

Mesmo que não atinja a situação radical de desaparecimento completo do homo sapiens e, com

ele, do próprio ser humano, enquanto tal, como parecem temer alguns analistas mais extremos (Cf.: G. SARTORI, Homo videns, Lisboa: Terramar, 2000).

equilíbrio em relação ao perigo de apenas nos tornarmos em reactores perante aquilo que nos querem impingir. Por outro lado, o cristianismo terá que avaliar com cuidado a forma como recorre à imagem, na transmissão dinâmica da sua identidade. Fazê-lo de forma a que o receptor a acolha de maneira apática, acrítica e sem compreender profundamente o seu significado – isto é, através preponderantemente de processos de impregnação – contradiz a própria identidade cristã. Como tal, talvez seja necessário nunca perder de vista o horizonte textual como forma primordial e fundamental de formação de identidade, recorrendo à imagem apenas como complemento ou ilustração, com a eficácia que lhe é própria15. 2. Simultaneamente, a civilização da imagem é uma civilização da sua fugacidade. Ou seja, não se procede apenas à substituição de textos fundamentais para a construção da identidade por imagens igualmente fundamentais, como base de uma identidade a transmitir com alguma continuidade – o que significaria que eram imagens com memória e esperança, também com estabilidade suficiente para transportarem um mundo de valores em si mesmas. O que parece acontecer é que a era da imagem nem da imagem chega a ser: é apenas do simulacro das imagens, no processo constante da sua substituição aleatória. De facto, as imagens sucedem-se constantemente, sem criar raízes nem adquirir significado identificante estável. Reflectem, quando muito, uma cultura em que domina a fragmentarização e a ausência de identidade suficientemente estável. Nesta cultura – ou constante encenação de cultura simulada – não admira que assistamos a uma profunda crise de referência identificante a textos que constituam veículo de valores fundamentais para a totalidade ou, pelo menos, maioria dos nossos contemporâneos. Seja a referência ao texto da Escritura, que durante tantos séculos marcou o processo de construção de identidade dos europeus – e não só –, seja mesmo a referência a outros textos fundantes, como os literários ou os históricos. A fugacidade da imagem publicitária parece ter atingido também esses textos – quando ainda restam alguns – que são arbitraria e levianamente substituídos por outros, insignificantes ou com significados absolutamente estranhos à nossa herança cultural. Substituição essa que, de imediato, transita à substituição seguinte, como quem muda de roupa, por moda, em cada estação. Nessa situação, não admira que as sociedades contemporâneas estejam carregadas com problemas, mesmo patológicos, de crise de identidade. A instabilidade é tal, a banalidade e falta de seriedade das referências é de tal modo que nunca chegamos a saber ao certo aquilo que somos, de onde vimos e para onde vamos – e se é que vale a pena ser... 15

Note-se que, em certo sentido, até mesmo a concentração na «eficácia», relativamente à

transmissão da identidade cristã, é altamente problemática.

É preciso tomar consciência desta situação e das suas causas, para propor alternativas válidas e necessárias aos nossos contemporâneos. É claro que teremos que evitar, a todo o custo, enveredar pelo caminho fácil do fundamentalismo, que volta a propor os textos tradicionais como se de realidades fechadas em si mesmas se tratasse. A proposta cristã de construção de identidade por referência ao texto cristão – de que sobressaem os textos escriturísticos – é sempre uma proposta de interacção dinâmica com esses textos, tal como é exigido por eles mesmos. Só nesse processo complexo e sempre inacabado é que vamos descobrindo o que somos, como cristãos e como seres humanos, assim como aquilo que devemos ser.

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