Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio

July 6, 2017 | Autor: Eliane Lousada | Categoria: Formação De Professores, Trabalho Docente
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LOUSADA, E. G. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio. In: BUENO, L.; LOPES, M.A.P.T.; CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e formação inicial. Campinas: Mercado de Letras, 2013. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio Profa. Dra. Eliane Gouvêa Lousada FFLCH-DLM-USP Grupo ALTER-CNPq

Resumo Este capítulo tem por objetivo lançar uma reflexão sobre os conteúdos abordados na formação inicial de professores e de que modo estes futuros professores são preparados (ou não) para seu futuro métier. Para tanto, realizaremos uma análise de um texto usado na formação inicial de professores, caracterizando-o discursiva e enunciativamente e identificando as figuras de ação e os elementos do trabalho do professor presentes no texto. Os pressupostos teóricos gerais que orientam esse trabalho baseiam-se no Interacionismo Sociodiscursivo (Bronckart, 2004, 2006; 2008; Machado, 2004, 2007; Bulea & Fristalon, 2004), mas também na Ergonomia da atividade (Amigues, 2004; Saujat, 2002, 2004) e na Clínica da Atividade (Clot, 1999; Faïta, 2005). Os resultados apontam para a necessidade de se levar em conta o trabalho de ensino e os aspectos cotidianos desse trabalho nos contextos de formação de professores.

Palavras-chave: agir, trabalho educacional, relatório de estágio, trabalho de ensino.

0. Introdução Este capítulo tem por objetivo levantar e discutir a questão dos textos usados em situações de formação inicial de professores, caracterizando discursiva e enunciativamente um texto usado na formação inicial de professores e identificando as figuras de ação e os elementos do trabalho do professor presentes no texto. Os pressupostos teóricos gerais que orientam esse trabalho baseiam-se no Interacionismo Sociodiscursivo tal como discutido por Bronckart (1999; 2006; 2008), Bronckart & Machado (2004), Machado (2004, 2007) e Bulea & Fristalon (2004), mas também em algumas vertentes das Ciências do Trabalho,

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LOUSADA, E. G. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio. In: BUENO, L.; LOPES, M.A.P.T.; CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e formação inicial. Campinas: Mercado de Letras, 2013. sobretudo a Ergonomia da atividade (Amigues, 2004; Saujat, 2002, 2004) e a Clínica da Atividade (Clot, 1999; Faïta, 2005). Segundo Bronckart (2004, 2006), inúmeros são os textos encontrados em situação de trabalho. Esse fato levou o autor a propor uma classificação dos textos que podem ser encontrados antes, durante e depois da realização da tarefa de trabalho. Na situação de trabalho docente, encontramos também inúmeros textos, que têm sido estudados por pesquisadores do grupo ALTER, dentre os quais: textos que veiculam prescrições (Machado, 2004, 2007; Machado & Bronckart, 2005; Guimarães, 2007; Abreu-Tardelli, 2004, 2006; Lousada, 2004, 2006; Barricelli, 2007; Corrêa, 2007); textos realizados antes da realização da tarefa (aula), como as instruções ao sósia (Muniz-Oliveira, 2011); ou textos produzidos pelos próprios trabalhadores após a realização da tarefa, os textos autoavaliativos/interpretativos: diários (Mazzillo, 2006), autoconfrontações (Lousada, 2006; Buzzo, 2008), entrevistas posteriores e relatórios de estágio (Bueno, 2007). Outros pesquisadores do grupo analisaram textos avaliativos do saber docente e do conhecimento com o qual o docente trabalha (Cristovão, 2007). No caso deste artigo, vamos nos concentrar no caso dos relatórios de estágio, enquanto gêneros textuais presentes na formação inicial de professores em que os autores avaliam o trabalho. Esperamos contribuir, assim, para elucidar alguns aspectos da formação inicial ao trabalho de ensinar já que, segundo apontam os ergonomistas, o trabalho é um “enigma”. Sendo assim, apresentaremos os resultados da análise de um relatório de estágio produzido no contexto do curso de mestrado em Estudos Franceses, na Universidade de Guelph (Guelph, Ontario, Canadá), no ano 2007/20081, no qual duas das alunas realizaram o estágio obrigatório em uma escola de francês como segunda língua. Tratou-se de um estágio realizado durante o verão, em meio francófono, em que as alunas deveriam participar como professoras dando aulas a alunos da escola secundária e entregar posteriormente um relatório para a coordenadora do programa de estágio. O relatório foi

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O ano letivo no Canadá inicia-se em setembro e termina em maio.

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LOUSADA, E. G. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio. In: BUENO, L.; LOPES, M.A.P.T.; CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e formação inicial. Campinas: Mercado de Letras, 2013. avaliado pela coordenadora (sem nota) e duas professoras e apresentado para coordenadora, a orientadora e uma outra professora. Primeiramente, exporemos os pressupostos teórico-metodológicos que guiaram a análise dos dados; em seguida, exporemos a análise dos dados para, finalmente, tecer algumas conclusões sobre o que foi encontrado.

1. Pressupostos teórico-metodológicos Nesta seção, apresentaremos alguns conceitos do interacionismo sociodiscursivo (ISD), o quadro teórico-metodológico central deste estudo. Utilizaremos, ainda, os aportes teóricos de pesquisadores da Clínica da Atividade (Clot, 1999; Clot et al. 2001; Clot, 2004; Faïta, 2005) e da Ergonomia da Atividade dos profissionais da Educação (Amigues, 2004; Saujat, 2002, 2004). Para o interacionismo social, o agir é considerado a unidade de análise do funcionamento humano e, portanto, também é um dos itens do programa do ISD. Porém, segundo Bronckart (2004, 2006), o agir não pode ser analisado a partir das condutas observáveis dos trabalhadores; só pode ser apreendido a partir das representações dele construídas nos textos. Para Bronckart (2006:193), os textos podem ser considerados como correspondentes empíricos/linguísticos das atividades de linguagem de um grupo, e um texto como o correspondente empírico/linguístico de uma determinada ação de linguagem (Bronckart, 2006:139). Como o trabalho é uma forma de agir, a análise de textos encontrados na situação de trabalho pode revelar muito sobre o agir e sobre o trabalho como forma de agir. Em nosso caso, a análise de textos autoavaliativos/interpretativos pode mostrar como os estudantes em formação inicial, futuros professores, vêem seu futuro trabalho e como se colocam em relação a ele. É também o fato de o trabalho ser uma forma de agir que nos leva a recorrer a um outro quadro teórico complementar: o de algumas das chamadas Ciências do trabalho.

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LOUSADA, E. G. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio. In: BUENO, L.; LOPES, M.A.P.T.; CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e formação inicial. Campinas: Mercado de Letras, 2013. Dentro deste outro quadro teórico, três conceitos importantes são os de: trabalho prescrito; trabalho realizado e trabalho real. Os estudos desenvolvidos pelos ergonomistas buscam compreender, principalmente, o conjunto de diferenças entre o trabalho realizado2 e o trabalho prescrito. Porém, na Clínica da Atividade (Clot, 1999), além do trabalho realizado e do prescrito, temos o real da atividade. Nessa linha teórica, a atividade realizada é o observável, ao passo que o real da atividade é o que não se vê, mas que faz parte de todo o processo, desde a elaboração da atividade até a sua realização, desde o que se faz ao que não se faz, desde o que se quer fazer ao que se é impedido de fazer. O real da atividade está relacionado ao como, ou seja, às lutas internas pelas quais os trabalhadores passam para realizar determinada tarefa. Desse modo, partindo da definição de trabalho, é possível ampliar essa concepção para a compreensão do trabalho educacional. De acordo com Amigues (2004), o trabalho educacional corresponde à criação/organização de um meio que seja favorável à aprendizagem e ao desenvolvimento dos alunos. Portanto, é um objeto – horizonte, pois vai se realizar mesmo após o término da atividade de trabalho educacional. Para dar conta da distância entre «trabalho prescrito » e « trabalho realizado”, os ergonomistas propuseram a noção de “reconcepção”, ou seja, a re-elaboração das prescrições visando a encontrar um ponto comum entre o que foi prescrito e o que pode ser realizado naquele contexto de trabalho (Saujat, 2002). A reconcepção pode ser vista como o objeto do trabalho do professor: a redefinição das prescrições iniciais, pensando naquele contexto particular de ensino (Saujat, 2002). Assim, a distância entre trabalho prescrito e realizado é algo natural, que provém da necessidade de adaptação das prescrições, de certa maneira “impessoais” (Roger, 2007), já que elaboradas para um coletivo de trabalhadores, à situação particular de trabalho de cada professor/trabalhador e não algo negativo, como se vê comumente nas instituições escolares (Amigues, 2002). As modificações que os trabalhadores fazem a partir das prescrições, adaptando-as a seu contexto, teriam o objetivo de aumentar sua eficácia no trabalho (Amigues, 2002). Dentro de uma abordagem

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É importante salientar que, para a ergonomia tradicional, trata-se do trabalho real (Guérin, 1997).

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Isso nos mostra a importância dos diferentes contextos e a necessidade de adaptação das prescrições a eles, por meio da reconcepção. Antes de passarmos à análise dos dados, convém lembrar os elementos do quadro teórico metodológico do ISD que serão usados para a análise, assim como o conceito de figuras de ação (Bulea & Fristalon, 2004), que também será usado para analisar os dados.

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Tradução da autora.

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LOUSADA, E. G. Textos na formação inicial de professores: o caso do relatório de estágio. In: BUENO, L.; LOPES, M.A.P.T.; CRISTOVÃO, V.L.L. Gêneros textuais e formação inicial. Campinas: Mercado de Letras, 2013. Segundo Bronckart (1999/2007:97), a organização de um texto é constituída por três camadas superpostas: a infraestrutura geral do texto; os mecanismos de textualização5; os mecanismos enunciativos. Convém ressaltar, todavia, que essa distinção é puramente didática; na prática os três níveis se apresentam em constante interação. A infraestrutura geral do texto é o nível mais profundo e se constitui pelo plano geral do texto, que corresponde ao conjunto dos conteúdos temáticos, pelos tipos de discurso (discurso interativo e discurso teórico, pertencentes ao eixo do expor; relato interativo e narração, pertencentes ao eixo do narrar), pelas sequências (narrativa, descritiva, argumentativa, explicativa, injuntiva e dialogal), que são modos de planificação da linguagem dentro do plano geral do texto, e pelos outros modos de planificação que podem ser combinados em um mesmo texto. Por sua vez, os mecanismos enunciativos são o último nível de organização do texto e propiciam sua coerência pragmática, esclarecendo os posicionamentos enunciativos (instâncias ou vozes que se responsabilizam pelo que é enunciado no texto) e expressando as diversas avaliações (julgamentos, opiniões, sentimentos) sobre alguns aspectos do conteúdo temático, avaliações essas que pode se realizar a partir das modalizações. Ao analisar textos encontrados em situações de trabalho a partir do quadro teórico do ISD, Bulea & Fristalon (2004) propõem o conceito de figuras de ação para descrever a maneira de se “dizer” o agir no trabalho. Sendo assim, as autoras propõem quatro figuras de ação6, ou modos de dizer o agir: 

Ação ocorrência: é a representação do agir que se refere à contemporaneidade da situação de produção do texto. Trata-se de uma figura de ação que é contextualizada na proximidade do espaço-tempo da situação de produção do texto e, por isso, apresenta características do discurso interativo: dêiticos de pessoa que remetem a

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Não descreveremos os mecanismos de textualização, neste capítulo, pois não serão utilizados para esta análise. 6 É importante mencionar que Bulea publicou, em 2010, um livro em que desenvolve a questão das figuras de ação, propondo uma 5ª figura de ação, como também podemos observar em Bueno (2007). No entanto, as análises presentes neste artigo já tinham sido realizadas quando o livro foi publicado, por isso essa figura de ação não será apresentada.

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Ação evento passado: é a representação do agir que é usada para explicitar, ilustrar, contar uma experiência tomada em sua singularidade. Essa figura de ação também é contextualizada, com unidades dêiticas que se referem à situação de produção do texto, geralmente o produtor do texto “eu”. Porém, diferentemente da ação ocorrência, uma história é contada, fazendo com que o conteúdo não se refira à situação de produção do texto. Sendo assim, os tempos mais freqüentes são o pretérito perfeito, futuro do pretérito e, eventualmente, presente. O modo de organização do discurso é o relato interativo.



Ação canônica: que vem de um modelo teórico e é a-contextualizada, externa à prática. Essa figura de ação não apresenta marcas que remetam à situação de produção do texto, e o tempo verbal mais frequente é o presente genérico, além da possibilidade de outras formas como o infinitivo ou formas não verbais, como as nominalizações. Além disso, encontramos a presença de modalizações deônticas. Essa figura de ação organiza-se em discurso teórico.



Ação experiência: cristalização de experiências vividas, em dimensões pessoais ou vividas por outros. Nessa figura de ação, encontramos também marcas do agente produtor do texto, que aponta uma forma de sedimentação de agires realizados por outros e reapropriados pelo agente. Ela é, assim, um arquétipo de representações múltiplas, apresentando o agir de uma forma relativamente estável, de maneira descontextualizada, mas que pode ser sempre facilmente recontextualizado. Ela também é organizado em discurso interativo, como o agir situado, porém o eixotemporal que o caracteriza não é o da situação de interação: ela remete a um agir genérico, um eixo temporal não limitado, um agir habitual e daí a presença do presente genérico e também de advérbios que indicam a frequência.

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2. Análise dos dados

O relatório de estágio que foi analisado tinha as seguintes características materiais: 21 páginas, divididas em: Introduction; Situation sociolinguistique; Motivation; Aspect cognitif de l’apprentissage; Observation et réflexion; Conclusions. Para esta análise, foram selecionadas duas partes: Observation et réflexion; Conclusions, já que elas contêm menos teorias e mais relatos pessoais sobre o desenvolvimento do estágio e sobre o trabalho da aluna na escola, sendo consideradas, desse modo, mais apropriadas para se estudar o trabalho. Cabe ressaltar que os relatórios de estágio produzidos no contexto estudado nesta pesquisa diferem em muitos aspectos dos relatórios de estágio que são produzidos nos cursos de licenciatura no Brasil, em razão da própria situação de produção textual. No entanto, há semelhanças que ficam mais claras durante a análise dos dados. O contexto sociossubjetivo de produção do relatório é bastante particular: o enunciador é uma estudante de mestrado, francófona, da província de Ontário, Canadá, que tem um bom nível de francês oral, porém muitas dificuldades na escrita (o que é visível no texto, às vezes de difícil compreensão) e está muito preocupada pela situação do francês no Canadá, mais especificamente em Ontário. Ela escreve de maneira muito pessoal, mesmo quando as exigências acadêmicas pedem um texto menos subjetivo (presença constante de JE/EU) e de maneira desorganizada (o que é visível no plano global do texto). Sempre quis ser professora e fez o mestrado por esse motivo. Os destinatários são diretos: a coordenadora do programa que decide, a partir da opinião dos outros dois professores, se a aluna passa ou não e indiretos: dois outros professores do programa que lêem o relatório e participam da apresentação. A partir desse contexto sociossubjetivo, tínhamos as seguintes questões de pesquisa:

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Para respondê-las, fizemos a análise dos tipos de discurso e das características enunciativas e discursivas globais do texto, tendo encontrado o seguinte: 

Tipos de discurso predominantes: discurso interativo, quando ela faz comentários etc.; relato interativo, quando ela relata a experiência; às vezes, discurso teórico, quando ela expõe as regras do métier, a definição do métier.



Características enunciativas e discursivas globais: alto grau de implicação do discurso: escrita bastante pessoal, subjetiva (je, me, moi); ausência de referência explícita aos destinatários (o texto não é explicitamente destinado a ninguém).



Menções aos actantes: Júlia, a estudante que fazia o estágio, é o actante mencionado com mais frequência: 78 vezes (je; j’); ela é o protagonista principal do texto; a professora (com quem ela faz o estágio) aparece nove vezes (cinco vezes como « enseignante », professora; quatro vezes como « mentor», mentora); os alunos são mencionados dez vezes.

No que diz respeito a como ela mesma se vê enquanto futura professora, percebemos que a questão da disciplina dos alunos a preocupa: é algo que é necessário, mas que ela tem que desenvolver, pois aparentemente tem dificuldade em manter a disciplina dos alunos; ela aparece acompanhada de modalizações deônticas, sinalizando o que é necessário/preciso fazer. Além disso, ela tem uma opinião sobre o ensino que oscila entre o lado positivo, a

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A própria professora se representa em trechos de discurso interativo e relato interativo, com forte presença de modalizações apreciativas e deônticas, caracterizando a figura de ação ocorrência.



O métier de professor aparece em discurso interativo e discurso teórico. As partes em discurso interativo podem ser interpretadas como ação ocorrência e, às vezes, ação experiência. Já as regras do métier, aparecem em discurso interativo e, geralmente, discurso teórico, com forte presença de modalizacões deônticas e, por essa razão, sendo representadas pela ação canônica.



As dificuldades encontradas pela professora aparecem em discurso interativo, marcadas por advérbios de frequência, caracterizando a ação ocorrência e a ação experiência, nos trechos em que há vários advérbios de frequência.



Representada como ação ocorrência, a questão da disciplina aparece como uma preocupação, algo que a aluna e futura professora terá que aprender. Essa questão não aparece nos programas de formação (não é abordada no programa de mestrado em questão); não aparece também no documento que pré-figura o agir do professor na região do Canadá em que foi realizada a pesquisa (o novo Currículo de Ontário), nem nos livros didáticos.

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3. Considerações finais Por meio da análise realizada do relatório, pode-se perceber uma visão da futura professora que oscila entre a idealização da figura do professor7, como podemos ver nesse exemplo: malgré la multitude de théories qui existent, il reste que c’est l’enseignant qui a le pouvoir d’illuminer une salle de classe et rendre l’apprentissage une expérience positive8. (Cousineau, 2008). E, por outro lado, as dificuldades e obstáculos para lidar com os aspectos mais cotidianos do métier. Sendo assim, a disciplina, uso da língua francesa pelos alunos e a necessidade de tomar boas decisões nos momentos certos, ou seja, pensar e mudar a ação durante seur curso, entre outros, foram apontados como preocupações reais pela aluna e futura professora. Como já mencionado, os aspectos mais « cotidianos » do métier estão ligados ao « trabalho de ensino », como coloca a Ergonomia da Atividade. Porém, justamente quando consideramos o trabalho de ensino, vemos que a gestão da classe e a organização do meio de trabalho coletivo são essenciais para o sucesso da aula. No entanto, estes aspectos, ligados às regras implícitas do métier, e únicos em cada situação de trabalho, geralmente não estão presentes nas formações. Isso nos mostra a importância dos diferentes contextos e a necessidade de adaptação das prescrições a eles, por meio da reconcepção. Sendo assim, seria importante que, nas formações, houvesse espaço para a discussão da reconcepção, necessária para o exercício do métier, e, portanto, indispensável para que se passe das prescrições iniciais para sua realização material em um contexto específico de ensino, abordando, assim, os aspectos mais cotidianos do trabalho de ensino. 7

A idealização da figura do professor foi encontrada em várias outras pesquisas do grupo ALTER, em diferentes textos que circulam em diferentes situações de trabalho educacional (Bueno, 2007; Lousada, 2006; Abreu-Tardelli, 2006). 8 Apesar da grande quantidade de teorias que exisstem, resta que é o professor que tem o poder de iluminar uma sala de aula e tornar a aprendizagem uma experiência positiva. (tradução da autora)

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sobre

a

reconcepção

das

prescrições iniciais, em função de diferentes contextos de ensino, atentando para aspectos que fogem às normas e regras do métier, mas que têm de ser levados em conta pois fazem parte do trabalho cotidiano de ensinar. Por outro lado, em relação à continuidade das pesquisas, parece necessário conduzir estudos paralelos, para acompanhar as figuras de ação ao longo do desenvolvimento. O que acontece com as figuras de ação no início e no final de um ciclo de formação de professores, por exemplo? Poderiamos pensar que, ao longo da formação (inicial, contínua, pelas situações de trabalho) do professor, existiria uma passagem gradual de ações representadas como ação ocorrência ou ação evento passado para a ação experiência. Talvez, assim, o avanço das pesquisas pudesse contribuir para revelar a face oculta, implícita, do métier de professor, tão frequentemente mencionada por teóricos que analisam o trabalho.

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