TEXTOS TÊM DIREITOS? EXEGESE PÓS-MODERNA, ESPIRITUALIDADE E ÉTICA

June 8, 2017 | Autor: Stefan Kürle | Categoria: Research Ethics, Hermeneutics, Biblical Theology, Christian Spirituality, Biblical Exegesis
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[Práxis 26 (2015) 43-62] TEXTOS TÊM DIREITOS? EXEGESE PÓS-MODERNA, ESPIRITUALIDADE E ÉTICA Stefan Kürle*

RESUMO No contexto da atual multiplicidade de abordagens exegéticas e hermenêuticas referentes a Bíblia, este ensaio procura oferecer um caminho para manter a Bíblia como o centro fundamental da espiritualidade cristã. Interpretação ou exegese será considerada como uma atividade ética para qual um leitor fiel da Bíblia precisará desenvolver um determinado conjunto de virtudes interpretativas: humildade, sabedoria, confiança, amor e receptividade. A base para essa ética de leitura é buscada na noção da autoridade das Escrituras, definida como a autoridade de Deus que está sendo exercida através de uma leitura fiel dos textos bíblicos, levando o leitor a uma mente renovada e, assim, a uma ação renovada neste mundo..

PALAVRAS-CHAVE Autoridade das Escrituras; Espiritualidade; Ética; Exegese; Pós-modernidade.

ABSTRACT In the context of the current multiplicity of exegetical and hermeneutical approaches to the Bible a way is being sought to maintain the Bible as the foundational center of Christian spirituality. Interpretation or exegesis will be considered as an ethical activity for which a faithful reader of the Bible will need to develop a certain set of interpretive virtues: humility, wisdom, trust, love and receptiveness. The foundation for this ethic of reading is sought in the notion of the authority of scripture which is defined as God’s authority being exercised through a faithful reading of the biblical texts which leads the reader to a renewed mind and thus to renewed action in this world.

KEYWORDS Authority of Scripture; Spirituality; Ethics; Exegesis; Postmodernism.

________________ * Professor da Faculdade Teológica Sul Americana. Doutor em Teologia pela University of Gloucestershire, Grã Bretanha. Email: [email protected]

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Exegese e espiritualidade? Exegese (do grego ἐξήγησις de ἐξηγεῖσθαι “levar para fora”) é uma explicação ou interpretação crítica de um texto, particularmente de um texto religioso. Assim começa o artigo “exegese” no Wikipédia brasileiro.1 O alvo do presente artigo é considerar exegese como um ato espiritual. Suspeito que muitos não vejam com naturalidade muitos pontos de contato entre exegese e espiritualidade. Considerando as conotações ligadas à palavra “exegese”: aridez, metodologia, crítica, rigorosidade, distância, historicismo, exatidão, teorias ou hermenêuticas, a longa distância entre exegese e espiritualidade parece evidente. Livros sobre exegese, comentários bíblicos exegéticos e monografias técnicas parecem sustentar essa discrepância. No entanto, nas próximas páginas quero sugerir algumas avenidas para juntar de novo o que, em primeiro lugar, nunca deveria ter sido separado. O caminho proposto é o seguinte: Num primeiro momento, quero recordar, em traços grossos, pontos significantes da história da exegese, mantendo um foco especial na exegese pós-moderna. Posteriormente, seguirá uma reflexão sobre o papel das Escrituras Sagradas na igreja e uma justificativa da tese de que a leitura bíblica é um fundamento essencial para qualquer tipo de espiritualidade, seja ela individual ou coletiva. Como ler é uma atividade humana, podemos falar sobre ela em termos éticos, considerando virtudes que um bom leitor da Bíblia deve desenvolver. No final, será mais do que óbvio que exegese bíblica sempre foi e continuará sendo algo indispensável para a formação espiritual do leitor e como a espiritualidade do leitor é um fator indispensável para uma boa exegese. Atitudes com textos – uma brevíssima história da exegese “Naquela época não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia certo” (Juízes 21:25). “Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho; mas, então, veremos face a face. Agora conheço em parte; então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido” (1Coríntios 13:12).

Paulo, o apóstolo, sabia do estado intermediário que marca toda vida humana. Conhecimento é sempre parcial e muitas vezes obscuro. Plenitude epistemológica não é algo para nossa condição humana atual. Mas, e esse “mas” é algo muito importante na teologia paulina, nós já 1 . Acesso em: 17/11/15.

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somos plenamente conhecidos por Deus – esse fato gera uma esperança que sustenta nossa motivação de não desistir epistemologicamente e sucumbir ao extremo relativismo da pós-modernidade radical. Esse relativismo foi classicamente resumido no último versículo do livro de Juízes, um livro que narra as consequências da tendência humana de elevar o próprio ponto de vista como absoluto. O problema da pós-modernidade não é a multiplicidade das opiniões, mas sim, que não conseguimos mais decidir entre elas e que não existe mais um freio contra pessoas que querem impor a sua opinião a todos os outros. Claro que a interpretação bíblica se situou bem no meio dos desenvolvimentos culturais da nossa época e por isso, quero dar mais espaço aos reflexos pós-modernos, que podemos detectar na exegese das últimas décadas. Antes disso, no entanto, quero destacar um pensamento que já liga tudo isso ao nosso dossiê de espiritualidade: a Bíblia é parte de um evento comunicativo. Um dos meus colegas missionários foi recentemente confrontado com o desafio de dar um nome à nova tradução do Antigo Testamento na língua indígena Kaingang. Juntamente com sua equipe indígena de tradução, eles decidiram o título: “primeiro falar de Deus para nós”. Isso reflete exatamente a base fundamental de todas nossas discussões sobre a exegese: Deus quer se comunicar conosco. Mesmo que a Bíblia apareça para nós como uma obra acabada, ela é muito mais do que isso. Essa qualidade da Bíblia implica uma certa atitude com os seus leitores. A comunicação não pode ser uma via de mão única. Já uma leitura superficial esclarece que os textos bíblicos estão esperando por nossa resposta. A imagem bíblica de Deus não mostra um Deus deísta, que nos deixa em paz e não tem mais o mínimo interesse em nós. Três épocas Vamos ver que tipo de leitor, que atitudes e virtudes foram implicados pelos vários tipos de exegese durante a história da interpretação bíblica. Não devemos exagerar na divisão em períodos históricos. Em todas as épocas houve muitas abordagens diferentes para entender o texto bíblico. No entanto, permitindo uma certa generalização, podemos dizer que abordagens pré-modernas são bem diferentes dos movimentos mais tardios. Não faz mal seguir o grande especialista em hermenêutica bíblica – Anthony Thiselton (Thiselton, 1992, p. 143ss) oferece três grandes épocas da interpretação da Bíblia: pré-modernidade, modernidade e pós-modernidade. Entre os assuntos importantes que se destacaram nos tempos pré-modernos, houve as lutas sobre a interpretação alegórica; uma parte

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da grande divisão teológica entre os Alexandrinos e os Antiochenos. Origines (186-254) defendia a necessidade da interpretação alegórica, enquanto Theodoro de Mopsuestia (350-428) e João Crisostomos (347-407) limitaram muito esse tipo de exegese. Um outro campo bem disputado foi o papel da tradição como moldura para a interpretação da Bíblia. Ireneu (†202) enfatizou o papel positivo da tradição eclesial na sua luta contra os gnósticos, enquanto Cipriano (†258) queria justificar a tradição pela Bíblia. Um outro movimento se encontra mais nos mosteiros da idade medieval, a lectio divina – “leitura sagrada ou espiritual”. Observando os movimentos atuais referentes à espiritualidade, a lectio divina está novamente em vogue. A modernidade destacou de forma quase totalitária a importância da história e dos desenvolvimentos durante a história. Normalmente, o efeito era de considerar a própria época como auge do desenvolvimento. Essa ênfase nos desenvolvimentos históricos foi carregada por um grande otimismo referente a possibilidade de reconhecer como de fato aconteceu qualquer fato histórico. Objetividade era o ideal (alcançável). É a época do método histórico-crítico na exegese bíblica. A agenda por baixo desse movimento foi a emancipação da razão das autoridades políticas e eclesiais. Os tempos pós-modernos caracterizam-se predominantemente como reação contra as ideologias opressivas geradas pelo modernismo, mas a análise também foi aplicada contra as filosofias e religiões pré-modernas. Junto com a sua crítica ao modernismo, desenvolveu-se, consequentemente, um individualismo radical. Thiselton menciona dois exemplos para ilustrar as diferenças profundas entre as épocas (Thiselton, 1992, p. 143–146). (1) O individualismo. A modernidade é muito mais individualista do que a pré-modernidade e a pós-modernidade. O início disso é o racionalismo de R. Descartes (1596-1650) – o ego no centro do pensamento submetendo tudo à dúvida metodológica. Nas outras épocas, o indivíduo pertence a uma comunidade que o forma em suas crenças, práticas, convenções, tradições. Os indivíduos modernos são totalmente independentes. A diferença entre a visão pré-moderna e a pós-moderna se acha num outro lugar: um homem pré-moderno honra a tradição e facilmente se encaixa nas ideias tradicionais do coletivo. Na pós-modernidade (depois de Freud, Nietzsche, Marx) essas convenções devem ser suspeitadas, analisadas, descobertas, explicadas e destruídas. Uma hermenêutica de suspeita substitui uma cultura de confiança e dependência referente ao grupo. Confiança deu caminho à dúvida/ ceticismo que foi seguido por suspeição.

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(2) A natureza dos textos. Um homem pré-moderno busca por um sentido além das palavras – procura uma nova dimensão de significado em intensidade ou contextos mais amplos. Sl 114:1-2 pode servir como exemplo: Quando saiu Israel do Egito, e a casa de Jacó, do meio de um povo de língua estranha, Judá se tornou o seu santuário, e Israel, o seu domínio. O sentido quadruplo separa-se assim: o senso histórico (o referente imediato – o êxodo histórico de Israel); o senso alegórico (um cristão lendo isso vai querer incluir a redenção do mundo por Cristo); o senso moral (este lida com a vida prática – é um chamado para tomar posse da herança espiritual); e finalmente, o senso anagógico (o texto como sinal da visão escatológica quando tudo está sob o reino divino). Essas leituras não são um abuso do texto – apenas um aumento do seu significado a outros contextos mais amplos. O que foi importante para os exegetas dessa época, foi que as novas interpretações não saíam da moldura dada pela tradição eclesial-teológica. Na situação pós-moderna, esse limite da tradição foi tirado e assim há uma arbitrariedade absoluta nas interpretações. Em geral, a diferença entre as épocas é fundamentada no papel da tradição. 1. Uma hermenêutica baseada em confiança referente a tradição (pré-moderna), aceita felizmente que o leitor da Bíblia está inserido nessa tradição e precisa ficar nestes limites teológicos-eclesiais. 2. A hermenêutica pós-moderna também enfatiza o papel determinador da tradição e das convenções conscientes e subconscientes, mas ela quer subverter essa tradição e ridicularizá-la. 3. Na modernidade, no entanto, as hermenêuticas tornam-se ignorantes do papel contextual do leitor – elas miravam por objetividade. Essas épocas e categorias são bem ousadas e simples, mas ajudam a manter a orientação na grande pluralidade das avenidas exegéticas históricas e atuais. O foco do trabalho exegético durante as épocas pré-modernidade e modernidade estava, sem dúvidas, nos autores dos textos junto com os seus vários contextos históricos. Mais ou menos na metade do século passado encontramos algo interessante: a volta literária nos estudos bíblicos. O próprio texto ficou no centro da atenção exegética.

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A “volta literária” De vez em quando, os teólogos se atrasam um pouco na interação com novas ideias. Este foi o caso com a teoria literária que já era formulada para textos na área das ciências humanas que chamamos “letras”. Neste mundo universitário encontramos a “crítica literária” que entendia textos basicamente como obras de arte. Para interpretar uma obra de arte, ninguém precisa conhecer o artista, nem o contexto dele. Apreciar arte é um processo que só precisa da obra em si. Obviamente essa avenida a-histórica tornou-se muito atrativa num dado momento, no qual muitos estudiosos da Bíblia iludiam-se mais e mais com os resultados da exegese histórico-crítica. Parece que não houve mais um consenso entre os biblistas – tudo estava se separando em escolas bem limitadas, uma combatendo as teorias da outra. Isso se tornou uma crise manifesta em muitos artigos e palestras das décadas 70 e 80. A decepção com a diacronia deu um impulso forte às avenidas sincrônicas para entender os textos bíblicos. Há várias teorias por trás desses movimentos sincrônicos da exegese bíblica. Uma dessas é o estruturalismo (ou a semiótica) da metade do séc. XX (Ferdinand de Saussure; Claude Lévi-Strauss). O estruturalismo deu fruto a muitas ciências, mas especialmente na análise da literatura, de línguas, de sociedades e de culturas. A convicção fundamental é que a abundância de fenômenos empiricamente observáveis mostra estruturas comuns que descrevem os relacionamentos entre esses fenômenos. O interesse em foco não é mais o desenvolvimento de certos fenômenos (diacronia), mas o sistema num determinado ponto da história. Isso nos leva a uma consequência interessante: O estruturalismo quer descrever tudo num sistema linguístico que é supra-individual, global. Um indivíduo depende desse sistema provavelmente sem querer e muitas vezes sem notar. Eu não posso decidir livremente o significado de uma palavra, nem criar uma nova regra gramatical, sem tomar o risco de não ser entendido. Mas não é só a língua que é limitada – todo tipo de pensamento é afetado (isso, pelo menos, é a convicção de um estruturalista)! Assim, a nossa própria liberdade é limitada – e isto é algo muito contra a intuição do ser humano moderno, que disse com Descartes cogito, ergo sum. Claro, que todo mundo tem a liberdade de movimentar-se dentro do sistema – mas isso não é mais o foco do método estruturalista. O indivíduo é destronizado – algo difícil de engolir para um homem dos séculos XIX e XX. Talvez pela primeira vez na história da exegese, o intérprete procurou o sentido do texto como foi escrito pelo autor, e não a intenção

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do autor. O estruturalismo quer encontrar convenções para ler o texto e não sugerir que os textos foram escritos a partir dessas convenções (Barton, 1996, p. 126). Entre as avenidas metodológicas que basicamente enfocam o texto em si, podemos mencionar o “novo criticismo” (new criticism) e a análise canônica (canonical approach; B.S. Childs). O “novo criticismo” foi um movimento muito forte nos EUA na área das letras. A ênfase foi a demissão da intenção autoral, como locus do sentido do texto. Apenas o texto e nada além do texto carrega o peso do sentido. Desse modo, nem precisava mais uma ideia das circunstâncias da origem textual. Os textos bíblicos foram tratados basicamente como qualquer texto literário mais recente. Talvez a mais importante dessas duas avenidas exegéticas, em termos de influência geral, foi a análise canônica de Brevard Childs (1979, 1993). Childs queria dar justiça ao fato de que os textos bíblicos distintos fazem parte de uma grande coleção de textos que oferecem em sua intertextualidade um contexto canônico, determinador do sentido de cada texto incluído. O cânon é o conjunto de todos os textos que uma certa comunidade aceita como autoritativo. A consequência dessa perspectiva é que o sentido histórico dos textos sem o seu contexto canônico, não é o sentido primário. Por exemplo, Sl 8 deve ser interpretado em relação a Jó 7:17-19; Hb 2:5-9 ou também Rm 5:7-8. No entanto, a interpretação canônica não implicou automaticamente no fato de que o texto bíblico teria sido concebido desde o início para fazer parte do cânon (judaico ou cristão). Em vez disso, Childs enfatiza que a compilação dos textos canônicos, que foi criada pela sinagoga e pela igreja primitiva, propõe-se como diretiva para interpretar cada parte do cânon: Cada um dos textos do cânon deve ser lido dentro do horizonte de todo o cânon. Desse modo, Childs também não quis entender a abordagem canônica como um passo exegético entre outros. É muito mais uma volta para uma exegese teológica que toma como seu início e horizonte o cânon bíblico. Consequentemente, o movimento de teologia bíblica adotou fortemente essa perspectiva exegética (entre outros Rolf Rendtorff nos seus dois volumes sobre a teologia do Antigo Testamento). Recentemente a leitura canônica foi adotada por uns exegetas romano-católicos muito influentes (p.ex. Georg Fischer, Georg Steins). A volta ao leitor Leituras literárias que enfocam mais o texto do que qualquer outra parte, continuam fortes no mundo das metodologias exegéticas.

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Mas ao lado delas foram desenvolvidas outras avenidas. Um pouco mais tarde, no entanto, descobriu-se o papel do leitor no processo da interpretação. Aos métodos que querem fazer justiça a esta perspectiva do texto vamos nos voltar agora. Temos basicamente dois foci nessa atenção ao leitor: o contexto do leitor e o leitor em si. Entre as leituras contextuais se destacaram a exegese da teologia da libertação e a exegese feminista. Provavelmente não preciso escrever muito sobre o movimento teológico da libertação. O sacerdote católico Gustavo Gutierrez e o presbiteriano Rubem Alves se destacaram no início desse movimento. O foco foi a luta contra a desigualdade social, econômica e política na América Latina. O problema da pobreza foi localizado nas estruturas capitalistas, sendo determinado como pecado estrutural. Cristo é o salvador das estruturas do pecado. Neste contexto, desenvolveu-se também um certo jeito de ler os textos bíblicos. Mas uma metodologia exegética especial não se desenvolveu. Uma leitura da teologia da libertação guia-se pelo alvo de usar o texto para motivar a vontade e gerar força para alcançar a libertação – para mudar a sociedade. Claro que textos sobre o êxodo, o profeta Elias, a crítica social dos profetas, o sermão do monte e outras críticas de Jesus contra as elites governantes estão bem no centro do interesse. Um movimento interessante que surgiu dessa teoria, foi a leitura popular da Bíblia em comunidades básicas. A ideia foi tirar a Bíblia das mãos de uma elite ocidental que dominava a interpretação por séculos. Isso foi chamado de exegese por baixo. Como o movimento da teologia da libertação, o movimento feminista também é guiado pelo interesse de um grupo (Collet, 2006). Exegetas feministas miram a um certo alvo político (equalização social entre homens e mulheres). Para alcançar essa finalidade, elas/eles mostram um certo favor à leitura desconstrutivista e psicanalista de certos textos para provar o papel desses textos de rejeitar os seus alvos políticos. Foram procuradas e criticadas tendências patriarcais nos textos bíblicos como na alta literatura em geral. O alvo foi estabelecer uma linguagem mais feminina e seguir a utopia de uma sociedade dominada pelos valores “femininos”. Nesse sentido, elas criticam a literatura que não mostra esses sinais ou segue outros alvos. Algumas feministas rejeitam categoricamente a Bíblia em sua totalidade, porque acham que a Bíblia e sua religião são ligadas sem esperança ao sexismo e à cultura patriarcal. Outros(as) querem afirmar o papel das mulheres na literatura bíblica e procuram trabalhar assuntos mais ligados às mulheres ou à espiritualidade feminina. Uma contribuição valiosa da perspectiva feminista na exegese, é alertar os leitores à existência dos seus preconceitos.

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O leitor em si se tornou foco de muitas abordagens hermenêuticas e junto com ele o processo de leitura e as condições de entendimento de textos. Já mencionei o estruturalismo que pode ser descrito como dar expressão à mecânica da literatura (Barton, 1996, p. 198). Ele mostra como textos podem criar sentido e também como eles limitam possíveis sentidos. Para os estruturalistas, nem o autor nem o leitor são agentes livres. Em reação a essa limitação dos papeis dos autores e dos leitores, John Barton menciona três movimentos: a análise retórica (Kennedy, 1984; Muilenburg, 1969; Trible, 1994), a “poética de narrativas bíblicas” (Alter, 1981; Sternberg, 1985) e a estética de recepção (Iser, 1974, 1984). O fundamento teórico dessas três avenidas exegéticas é a teoria da comunicação. O texto é o meio de transmissão de uma mensagem entre autor e leitor. Na análise retórica e também na poética de narrativas bíblicas a ênfase encontra-se novamente no como fazer sentido, e não no sentido em si. Desse modo, as duas perspectivas exegéticas mantêm um certo equilíbrio entre o texto e o leitor. Isso mudou com a estética de recepção. Além de querer ser muito mais do que uma metodologia exegética, ela põe o foco firmemente no leitor. A proposta básica dessa teoria é que no final das contas o leitor cria o sentido do texto, e não o recebe. Essas teorias já se localizam fortemente no âmbito amplo da pós-modernidade. Entre as avenidas mais largas ligadas ao coração do pós-moderno, encontramos duas que se destacam: o pós-estruturalismo (análise de discurso; M. Foucault) e o desconstrutivismo. Aqui começa a parte complicada, contra-intuitiva. Para o pós-estruturalista, a diferença entre texto e leitor, entre escrever e ler dissolve-se completamente. Interpretação é o mesmo que construir um texto, e construir um texto não difere de interpretar. Estamos presos num círculo infinito onde nem sabemos direito se estamos interpretando sentidos ou construindo sentidos. Exegese é um piquenique para qual o texto traz as palavras e o leitor traz o sentido. O critério de uma interpretação correta não existe mais – tudo vale o mesmo. Não dá para decidir entre uma interpretação boa e uma defeituosa. Claro que pós-estruturalismo não é uma teoria para provar ou refutar – é mais como um pulo visionário para um novo jeito de ver tudo (Barton, 1996, p. 222). O desconstrutivismo é uma outra teoria sobre textos em geral. O alvo é achar o ponto onde um determinado texto se desconstrói. Um exemplo óbvio seria uma tese de doutorado de 200.000 palavras que quer provar que todo pensamento importante pode ser expressado em 3-4 páginas. Esse movimento criou uma grande ruptura em todas

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as ciências literárias. Especialmente entre 1975 e 1985, a guerra pró e contra o desconstrutivismo separou os críticos literários. O nome principal é Jacques Derrida. Derrida começou o seu pensamento rejeitando a base do estruturalismo: se uma palavra é definida apenas por todas as palavras que ela não é, precisamos em consequência viver com uma ausência radical de sentido. Sentido, o ato de dizer que algo significa algo, é um processo sem fim, justamente porque não há um ponto final nessa regressão infinita. Assim o estruturalismo se desconstruiu – na visão de Derrida – e junto com ele a ideia de um sentido em si, pois nem o autor sabe com toda certeza o que ele queria dizer (Schmitz, 2002, p. 127–136) Um exemplo bíblico de uma exegese desconstrutivista seria uma leitura de Eclesiastes, onde se alega que é um texto de sabedoria, mas, ao decorrer, prova que sabedoria não vale nada. Forma e conteúdo vão em direções diferentes e assim o texto se desconstruiu (J. D. Crossan). O intérprete não desconstrói nada – ele só mostra como o texto faz isso sozinho. Claro que isso tornou-se uma filosofia abrangente e inclui cada forma de comunicação. Um leitor desconstrutivista vai ter a convicção de que todos os textos e toda comunicação é sujeita à desconstrução. Quem já vem com a convicção de que sentido no seu sentido comum nem existe, não vai querer encontrar sentido. Interpretação se torna algo totalmente vazio. Mas, “ceticismo radical é muitas vezes nada mais do que o absolutismo desapontado” (Schmitz, 2002, p. 137) Em outras palavras: quando você tem expectativas extraordinárias e descobre que não é possível alcançá-las, você fica perto de duvidar do sistema inteiro. Mas o que podemos levar para casa é uma boa dose de cuidado referente à certeza das nossas interpretações. Mas essa dúvida saudável não deve nos imobilizar em nossa luta pela melhor interpretação possível. Essas últimas perspectivas exegéticas fazem parte do projeto pós-moderno. Não precisamos entrar na natureza da pós-modernidade, basta ressaltar que logo vai ter outro movimento – simplesmente porque a interpretação pós-moderna do mundo não serve além de criticar a modernidade. Para este serviço agradecemos a pós-modernidade. No entanto, algo realmente construtivo não surgiu dessa forma de pensar. Implicações O que podemos deduzir desse resumo conciso demais? Várias coisas. Primeiramente, ficou óbvio que o simples ato de ler é algo muito complicado quando você começa a pensar um pouco além do óbvio. Segundo: no momento há uma pluralidade de abordagens exegéticas e no futuro mais próximo isso não vai mudar em sentido algum. A pergunta é: o que fazemos em frente de tal pluralidade? Ignorá-la não é uma boa

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opção. Como podemos defender uma hermenêutica de confiança que tem como ponto de partida a convicção de que Deus quer influenciar nossas vidas através da Bíblia? Terceiro: um fruto muito bem-vindo no estudo de várias metodologias exegéticas é que o intérprete se torna cada vez mais competente no ato de interpretar e pode tomar responsabilidade por sua interpretação. Finalmente, o foco no leitor, nas suas competências, sua responsabilidade e suas atitudes parece muito fértil para juntar teologicamente muitos aspectos importantes na exegese. Penso que o filósofo Hans Georg Gadamer estava certo em determinar o lugar hermenêutico de “sentido” na sua metáfora da fusão de horizontes. Essa fusão sugere que compreensão é um ato criador, em que tanto o texto (tal como um produto de um autor individual, mesmo de um autor complexo), bem como os leitores desempenham um papel importante. Texto, autor e leitor são os três elementos básicos que têm o seu lugar importante: o texto como uma obra de arte literária, o autor em seu relacionamento histórico e os leitores com seus contextos interpretativos. Quem quer dizer algo sobre a significância teológica da Bíblia deve olhar para estes três elementos. Na minha opinião, junta-se ao papel do leitor a discussão mais frutífera quando olhamos às questões da exegese e da autoridade das Escrituras. Aqui, neste momento, a exegese se torna uma questão de reflexão ética. A ética tem a ver com viver juntos e, portanto, se encaixa com a nossa crença de que a Bíblia é parte da comunicação de Deus conosco. Essa comunicação é o ponto de partida da espiritualidade cristã: “Então, conhecerei plenamente, da mesma forma como sou plenamente conhecido”. Autoridade bíblica, leitura bíblica e espiritualidade bíblica Nossa espiritualidade se baseia na convicção que nosso Deus se revelou. Nosso acesso a essa revelação são as Escrituras Sagradas, pelo menos no âmbito protestante onde tradição eclesial e revelações extra -bíblicas devem ser julgadas em relação à Bíblia. Geralmente usamos a fala da “autoridade da Bíblia” para expressar essa nossa dependência das escrituras. Essa fala não está livre de problemas – como um texto pode exercer autoridade? A autoridade é sempre conferida a partir do exterior, quer porque há confiança na figura de autoridade, ou porque essa pessoa tem uma certa assertividade referente a seus objetivos por repressão ameaçada ou real. Nem um nem o outro pode ser aplicado a um texto. Então, o que queremos dizer quando falamos de “autoridade das Escrituras”?

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A autoridade de Deus, realizada pela Bíblia Aqui, N. T. Wright, oferece uma discussão muito útil em seu livro As Escrituras e a autoridade de Deus. Segundo Wright (2013, p. 21). “autoridade das Escrituras” é um resumo abreviado de “autoridade de Deus, realizada pela Bíblia”. O ponto de partida é, por conseguinte, a autoridade divina por trás da Bíblia. O que queremos dizer quando definimos Deus como autoridade? A linguagem bíblica utiliza o discurso do “reino de Deus”. Autoridade tem a ver com “reinar”. Toda autoridade vem de Deus (Rm 13:1; Jo 19:11; Mt 28:18; Isa 40-55; Ap 4-5). Então, o texto autoritativo refere-se a Deus e Jesus quando se trata de autoridade. A autoridade das Escrituras, por isso, só pode ser uma autoridade delegada. Para Wright, o caminho para uma restauração significativa da autoridade das escrituras pode ser construído apenas de suas partes: “O que queremos dizer quando falamos que Deus ou Jesus tem autoridade?”. “Qual o papel da Bíblia neste contexto?”. A própria Bíblia está ligada à autoridade divina com a linguagem de reinado e reino. Os Evangelhos sugerem que, olhando para Jesus, podemos perceber como Deus exerce sua autoridade. É a velha ideia israelita de que Deus é o soberano do mundo inteiro, mas que é preciso uma nova, fresca intervenção divina em nosso mundo, que é caracterizado pelo pecado, pela decadência, corrupção, morte, idolatria e a rebelião. A restauração desta criação é o eixo no qual gira toda escatologia bíblica: Deus, em Jesus, sua morte e ressurreição inauguraram a renovação da criação. Ela é o objetivo do exercício soberano do poder de Deus. Neste contexto, temos que entender quaisquer outras autoridades específicas (na Igreja e na sociedade). O objetivo da autoridade de Deus não é um reinado opressivo, como é conhecido pelos governantes humanos. No reinado de Deus, o foco está na realização do grande plano de Deus de curar o cosmos em sua totalidade. Isto está muito longe de escatologias triunfalistas. Assim, Wright determina a autoridade das Escrituras como uma autoridade indireta que age através da leitura e, em seguida, da ação resultante da igreja: “leiam e interpretem as Escrituras como vocês sabem, e assim deixem ela fazer através de vocês o seu trabalho no mundo” (Ibid., p. 77). No final das contas, foi exatamente isso que Jesus fez quando viveu em obediência tudo o que Deus realmente esperava de Israel e de toda a humanidade (Ibid., p. 41-43). Esse é o significado da “locução de cumprimento”: Jesus sempre liga as suas ações com a Escritura e assim mostra a antiga intenção divina: este é o ser humano que Deus imaginava no

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início, o verdadeiro ser humano. Em Jesus a autoridade das Escrituras se tornou realidade, aí percebemos como é o reino de Deus. A Bíblia é o “sopro fresco de Deus”, que motiva a igreja e a dirige em sua intenção. Isso é algo muito diferente de uma autoridade estática, tal como um conjunto de regras comportamentais ou dogmas. Wright afirma que é a metanarrativa bíblica, em cujo poder é de mover as pessoas para um novo pensamento e nova ação (Rm 12:1) – e isso não é nada mais do que um exercício de autoridade (Ibid., p. 24). Assim, a Bíblia é mais do que um livro cheio de máximas sábias, mais do que o comentário oficial sobre a história da salvação, mais do que um depósito de ideias para abastecer uma espiritualidade cansada. A Bíblia é um dos meios, pelo qual Deus prossegue o seu grande projeto de salvação e de criação (Ibid., p. 28). Um cristão, uma igreja que segue e se orienta pela Bíblia, também se torna uma maneira de expressar a autoridade divina nesse mundo. Assim chegamos novamente à ética, que deve caracterizar o leitor fiel. Wright não fala de uma ética da leitura, mas ele descreve como nosso lugar na grande narrativa bíblica forma nossa identidade, nossa visão de Deus e do mundo (espiritualidade), nossas prioridades e, assim, nosso comportamento (ética). Tudo isso se forma através da leitura da Bíblia, em solidão e em comunidade. Desse modo antecipamos a nova criação de Deus que é caraterizada por justiça, alegria e paz (Ibid., p. 116). Autoridade da Bíblia e a práxis da espiritualidade Wright (Ibid., p. 115ss) ainda sugere cinco condições que ajudam nossa formação para sermos leitores pelos quais a Bíblia pode exercer a sua autoridade e assim formar nossa espiritualidade bíblica: 1. Devemos prestar muita atenção ao contexto amplo (literário, cultural, histórico e canônico) do texto bíblico e do nosso, como leitores. Isso é chamado de leitura encarnacional, na qual nem a humanidade de texto e leitor é desconsiderada e nem a divindade das Escrituras e a iluminação do leitor pelo Espírito Santo. 2. Uma grande ênfase deveria ter a leitura pública de grandes trechos da Bíblia no contexto do culto. Devemos ler e ouvir a Bíblia em comunhão e não apenas o pequeno trecho que é base da pregação. Só então, podemos dizer que nos expomos à autoridade das Escrituras. 3. Essas leituras realmente podem mudar nossas mentes e vidas, cada Cristão deve ler a Bíblia sozinho e em pequenos grupos. Para não perder as descobertas valiosas que surgiram a partir

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desta leitura, espaços devem ser criados, onde elas podem ser compartilhadas, comemoradas ou mesmo corrigidas. 4. A leitura das Escrituras deve ser atualizada constantemente pelo trabalho acadêmico apropriado. A liberdade acadêmica deve ser mantida, mas uma leitura acadêmica que se entenda como relevante para a igreja deve agir sempre em responsabilidade perante a comunidade. A igreja é uma moldura hermenêutica válida e desconsiderá-la normalmente leva a adotar irrefletidamente outras molduras mais ou menos cristãs. O critério é se a missão da igreja é apoiada no trabalho acadêmico sobre o texto. Confiança deve caracterizar a relação entre a Academia e a igreja. 5. Dentro do contexto da própria comunidade eclesial (Comunhão Anglicana), Wright relembra os bispos de ativamente encorajar uma boa leitura bíblica. Mas isso se aplica para todos que têm alguma posição de responsabilidade nas suas igrejas. Para isso, ninguém deve se sustentar apenas nos conteúdos aprendidos décadas atrás, nos anos de formação teológica. Essa exigência aos líderes deve nos lembrar qual parte da formação teológica deve receber o peso maior. A autoridade da Bíblia degrada a uma frase vazia quando os futuros líderes apenas leem sobre gestão e liderança e Deus não pode mais exercer sua autoridade através da Bíblia, simplesmente porque ela não é mais lida, estudada, pregada e discutida. Acho que agora a importância da Bíblia para nossa espiritualidade pessoal e comunitária deve estar óbvia. Uma Bíblia não lida, não pode exercer nenhuma autoridade e a exegese é a ferramenta para as pessoas que leem a Bíblia para outros. Agora nos resta mais um aspecto – a ética no ato de ler. Consideraremos várias virtudes que uma boa leitura exige dos seus praticantes. O leitor virtuoso Quando consideramos que Deus se comunica conosco através das Escrituras, que, então, estamos em comunhão com ele, uma reflexão sobre a ética de leitura torna-se algo óbvio. Comunhão é o lugar próprio da ética. Metáforas são de grande ajuda ou até necessárias para expressar essa ideia abstrata. Respeito seria um bom candidato para descrever uma boa atitude no ato de ler. Quando falamos de respeito, o foco resta na recepção e entendimento. Ambos pressupõem uma confiança inicial: o visitante poderia demonstrar ser um inimigo, mas abrir a porta mostra

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arriscar sua confiança. O texto desfruta de prioridade e, embora eu possa fazer coisas muito estranhas com o texto, a responsabilidade essencial do leitor é entender em reação às ofertas de sentido por parte do texto. Isso seria um encontro com o texto cheio de esperança e respeito. Textos também têm direitos! Quando os respeitamos, temos uma boa chance de que eles compartilhem os seus tesouros conosco – mesmo assim nós não os compreendemos de forma absoluta, completa. Quais as qualidades de um leitor respeitoso? Richard Briggs (2010, p. 36) procurou e encontrou cinco virtudes que acompanham um bom leitor da Bíblia. A partir de uma análise do leitor implícito (um conceito útil da teoria da estética de recepção) do Antigo Testamento, ele procura entender os pré-requisitos que os textos esperam de um leitor. Quais são as qualidades que o AT espera dos seus leitores? Briggs discute humildade, sabedoria, confiança, amor e receptividade como as “virtudes exegéticas”. Poderíamos suspeitar a fala de uma ética baseada em virtudes, porque o conceito clássico não é bíblico, mas sim aristotélico. Aqui não é o lugar para defender a adequação de virtudes para descrever a ética do AT, mas, desconsiderando o termo “virtude” em si, o conceito de formação de caráter a partir de um alvo de desenvolvimento é algo que se sente perfeitamente em casa nos textos do AT, especialmente na Torá e nos livros sapienciais. Nos seguintes parágrafos quero oferecer um resumo dessas cinco atitudes com a finalidade de mostrar como o ato de ler é algo profundamente condicionado por nossa espiritualidade e como os textos lidos têm a capacidade de moldar a nossa espiritualidade. Humildade Briggs começa a sua análise das virtudes com a humildade. Virtudes e humildade, na filosofia aristotélica, não se ligam bem. Humildade é um conceito que tem sido definido e avaliado de diferentes formas durante a história. Por causa dessa ambiguidade, Briggs tenta preencher o conceito a partir do AT. O texto ao qual ele baseia a sua análise é Nm 12:3 “Ora, o homem Moisés era muito humilde, mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra”. Isso, por acaso, se auto-desconstrói? É possível aspirar por humildade, assim como podemos aspirar por virtudes? Como podemos falar de excelência em humildade? Briggs, portanto, quer rever a definição e entender humildade a partir deste versículo. No contexto de Nm 12:3, encontramos o contraste de Moisés com Miriam e Aaron: diferentemente a eles, Moisés fala com Deus “face

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a face” (diretamente). O foco está principalmente em Moisés recebendo e repassando a palavra divina. Essa ênfase é justificada por uma outra caraterização marcante em Dt 34:10, que descreve Moisés como profeta paradigmático. “Humildade” é, então, melhor descrita como a consciência da dependência de Deus, especialmente quando se trata de transmitir a palavra de Deus (Ibid., p. 59). O jeito das discussões frequentes de Moisés com Deus sugere que aqui não se trata de subserviência, modéstia ou domesticação. Moisés fala com Deus determinadamente, mas com respeito. A partir do modelo de caráter que Moisés deixou para as gerações posteriores, Briggs conclui que Nm 12 promove um jeito de comunicar as palavras de Deus em dependência dele e em continuidade à Torá mosaica (Ibid., p. 62). Quando se trata do ensino da palavra divina, humildade é a virtude principal. Nesse sentido podemos também interpretar os outros textos que falam de humildade, especialmente em Mq 6:8. O que é espiritualidade, senão fazer justiça, amar, bondade e viver humildemente com Deus? Que esta virtude é basicamente uma virtude hermenêutica, é óbvio. Uma leitura humilde é uma leitura receptiva, hospitaleira, paciente, atenta e tranquila. Este tipo de leitura se realiza principalmente através da oração, como já enfatizaram teólogos como Thomas de Aquino e Karl Barth. Um outro aspecto de humildade, não mencionado por Briggs, é a qualidade encarnacional das Escrituras. Paralelamente à imagem de Jesus em Fl 2 (kenosis – esvaziamento), a palavra divina chegou a nós em forma humana (J. G. Hamann). Seguindo uma hermenêutica da humildade, um leitor da Bíblia deve reagir em humildade interpretativa ao ato da humilhação divina na palavra (Hempelmann, 2015). Isso significa a rejeição do postulado de uma revelação divina abstrata, incontestável, plenamente acessível: Deus se revelou a nós de forma concreta, controversa e multiforme. Isso significa também, no outro lado, a rejeição do desejo de dominar – nós renunciamos deliberadamente de reclamar a incontestabilidade da nossa interpretação. Nós não tentamos forçar a nossa interpretação em outros para segurar a nossa própria posição. Um exegeta humilde está sempre aberto para ser corrigido, está ciente e transparente em relação aos seus interesses particulares ou eclesiais, considere o outro sempre maior do que você mesmo, deliberadamente abra mão à interpretação perfeita – sem legitimar preguiça exegética! – e aceite outras interpretações para avaliar elas e ser questionado por elas. Pensando nessas qualidades e atitudes, fica óbvio que a virtude de humildade e a relação com a leitura da Bíblia é algo dependente do desenvolvimento espiritual da pessoa em sua

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integridade. Como é verdade com todas virtudes, a humildade deve ser treinada, cuidada e constantemente praticada para se realizar. Sabedoria Desde a antiguidade, a sabedoria é o pré-requisito fundamental para entender. O que seria uma alternativa adequada para ler a Bíblia com sabedoria? Para evitar repetir o óbvio devemos concretizar isso um pouco. Para cortar um longo caminho chegaremos no final, a quatro momentos que mostram sabedoria hermenêutica: 1. Um leitor sábio não ignora a ambivalência semântica de textos, mas quer permear a entender essa ambivalência e quer chegar a uma resolução. 2. Um leitor sábio contenta-se com as informações que um texto oferece (não é fácil desistir da tentação de imaginar para preencher as lacunas do texto!). 3. A tranquilidade interpretadora do sábio diferencia-se entre perguntas que abrem vista para frente e perguntas que se fixam em problemas exegéticos irresolúveis. 4. Um leitor sábio sempre procura um caminho prático para frente – “Agora podemos prosseguir!”, diz ele. Essa sabedoria exegética deve se mostrar não apenas nos grandes movimentos teológicos na Bíblia, mas também e especialmente nos detalhes dos textos. Em outras palavras: um sábio não desiste. Confiança Nos últimos dois séculos, em que a dúvida metodológica estava em voga, a confiança teve uma fama péssima. Duvidar e suspeitar estavam no centro da academia em todas as ciências. No entanto, sem confiança é impossível entender. O radicalismo pós-moderno desistiu do referente “significado” porque perdeu toda confiança. Por outro lado: confiar é fácil quando você não tem outra opção. Quando desconfiança se torna uma opção realista, a confiança verdadeira pode mostrar a sua força. Nós não podemos voltar no tempo a uma época pré-crítica. As dúvidas semeadas pelas leituras críticas da Bíblia são um desafio para fortalecer a nossa confiança. Essa confiança é a confiança em Deus e só numa segunda etapa, a confiança em nossas interpretações. Aqui se aplica o mesmo pensamento como oferecemos acima, referente à autoridade das Escrituras: a autoridade de Deus exe-

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cutada pelo texto bíblico. Amor Amor é uma palavra com uma semântica estendida. Nem todas as definições modernas servem em nosso contexto. Agostinho usou (em latim) a palavra caritas e afirmou que o amor a Deus serve como moldura dentro da qual toda leitura cristã da Bíblia deve ficar. Interpretação válida da Bíblia deve sempre se mostrar na práxis do amor a Deus e ao próximo. Amor a Deus podemos definir como lealdade a Deus, que certamente pode ser crítica, como Abraão e Moisés mostraram em sua intercessão para o povo israelita. Mas lealdade pode ser praticada asperamente – sem amor. Briggs sugere que, de vez em quando, é melhor aceitar uma interpretação defeituosa em nome do amor em vez de insistir em toda consequência na interpretação certa. Amor sempre tenta calcular os efeitos de uma determinada interpretação (Ibid., p. 162s). Essas decisões sempre são casos individuais que exigem uma boa dose de sabedoria. Receptividade Talvez a mais profunda base para a espiritualidade cristã é o sentido da proximidade entre o cristão e Deus. O tema teológico presente em quase todas partes do cânon hebraico e a presença divina e suas consequências para o povo. O povo é reunido na presença divina e a atitude adequada neste momento é a receptividade. Briggs define a virtude da receptividade como a capacidade de enfocar e encontrar o texto em si e em seu conteúdo. Usando o exemplo de Isaias 6, Briggs exige de um leitor virtuoso a prontidão de ser encontrado pelo texto se ele gosta ou não, para desafiar os próprios preconceitos através do texto. Este tipo e receptividade são a base, abaixo de todas as virtudes exegéticas, mas também são moldados pelas outras (Ibid., p. 192). Por outro lado, o leitor convocado por Deus através do texto bíblico não deve “congelar” reverentemente frente a tal revelação divina. O alvo sempre é a ação humana em resposta à convocação, seja ela tão estranha como a ordem de obstinação, no caso de Isaias. Concluindo O leitor implícito de toda Bíblia é o discípulo de Deus (M. Bockmuehl). O leitor virtuoso constrói as suas virtudes pouco a pouco em conversação com o texto e vai ser guiado pelo caminho do discipulado, para uma noção cada vez mais profunda sobre o que significa viver com Deus. Ler se torna a prática vivencial do discípulo, se torna uma

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expressão do discipulado. Ler a Bíblia é um ato de fé e um ato ético – algo profundamente espiritual. Mas essa qualidade espiritual não é algo esponjoso, desestruturado, abstrato ou arbitrário. Tentei mostrar vários aspectos do ato de ler para concretizar essa noção. Textos têm direitos, sim – devemos tratá-los com toda atenção e responsabilidade. Mas os textos bíblicos vão além disso: a sua qualidade autoritativa significa que Deus age conosco através desses textos para exercer a sua autoridade como rei do cosmos. Deus age com palavras e nós reagimos interpretativamente e em obediência a essa ação. No final das contas, propomos uma mudança de perspectiva: olhamos à Bíblia não mais na perspectiva de Deus, mas a partir da nossa perspectiva humana. A Bíblia é a palavra divina para nós em uma linguagem que podemos entender, para que nos transformemos em novos seres humanos que agem nesse mundo de acordo com a vontade de Deus. A alternativa seria entender a Bíblia como um produto divino perfeito e tão extraordinário, tão “inteiramente outro” que ela fica ao nosso lado, mas separada de nós, em distância. Quem vai se aproximar a uma Bíblia desse jeito? Ninguém. É talvez essa noção subliminal que involuntariamente promoveu a ausência da Bíblia em nossas igrejas. Vamos treinar os nossos músculos éticos para encontrar a Bíblia de forma virtuosa, para dar uma chance a Deus de nos mudar profundamente para sermos os seres humanos através dos quais Deus reina esse mundo. Assim podemos celebrar a “festa da interpretação”. O espírito de pentecostes supera todas as distorções culturais e ideológicas que deformam nossa comunicação e ergue de novo a língua como meio de comunicação. … Ainda gozamos apenas as primícias da interpretação, mas olhamos para frente até o dia quando conheceremos plenamente, da mesma forma como somos plenamente conhecidos. Veni spiritus interpres! Vem espirito da interpretação! (Vanhoozer, 1997, p. 165).

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Práxis Evangélica 26/ 2015 Faculdade Teológica Sul Americana HEMPELMANN, Heinzpeter. Hält die Bibel-Hermeneutik, was sie verspricht? Evangelische Schriftauslegung vor ethischen Herausforderungen. Theologische Beiträge, v. 46, n. 4, p. 231–241, 2015. ISER, Wolfgang. Der Akt des Lesens. Theorie ästhetischer Wirkung. 2. ed. München: Fink, 1984. ISER, Wolfgang. The Implied Reader: Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1974. KENNEDY, George Alexander. New Testament Interpretation Through Rhetorical Criticism. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1984. KONTEXTUELLE THEOLOGIE. In: COLLET, Giancarlo. Lexikon für Theologie und Kirche. Freiburg-Basel-Wien: Herder, 2006. v. 6. p. 327–329. MUILENBURG, James. Form Criticism and Beyond. JBL, v. 88, p. 1–18, 1969. SCHMITZ, Thomas A. Moderne Literaturtheorie und antike Texte: Eine Einführung. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2002. STERNBERG, Meir. The Poetics of Biblical Narrative. Bloomington: Indiana University Press, 1985. THISELTON, Anthony C. New Horizons in Hermeneutics. The Theory and Practice of Transforming Biblical Reading. London: Marshall Pickering, 1992. TRIBLE, Phyllis. Rhetorical Criticism: Context, Method and the Book of Jonah. Minneapolis: Fortress, 1994. VANHOOZER, Kevin J. The Spirit of Understanding: Special Revelation and General Hermeneutics. Disciplining Hermeneutics: Interpretation in Christian Perspective. Grand Rapids: Eerdmans; Apollos, 1997. p. 131–165. WRIGHT, N. T. Scripture and the Authority of God: Revised and expanded ed. London: SPCK, 2013.

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