Textura no humanismo Jorge Falcon resumo.pdf

May 23, 2017 | Autor: Jorge Falcon | Categoria: Musical Composition, Music History, Music Theory, Musicology
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A relação entre o pensamento humanista e a mudança da textura na música no início do Barroco Jorge A. Falcón Tradução do inglês e resumo do texto editado anteriormente no International Journal of Music and Performing Arts: Some Considerations on the Relationship between Humanist Thinking and the Change in Texture in the Music of the Early Baroque, de Jorge Falcon e Martin Herraiz.

Palavras chave: Humanismo. Textura. Figura-fundo. Perspectiva. Eu lírico.

Introdução Este trabalho tem como objetivo realizar algumas considerações sobre as mudanças acontecidas na música na passagem do século XVI ao XVII. O Humanismo, como eixo do pensamento do Renascimento gerou, inevitavelmente, mudanças profundas na concepção, e conseqüentemente, na produção das artes como literatura e pintura, primeiramente, e posteriormente na música. Este trabalho toma como referência a mudança na textura com todas suas implicações teóricas e práticas como eixo significativo das mudanças do pensamento da Idade Média para o Renascimento. Por outro lado, a mudança na textura, de polifonia para melodia acompanhada será tratada de maneira não tradicional, com as ferramentas que são apresentadas na dissertação de mestrado do autor deste trabalho.

O Humanismo O Humanismo é o principal movimento intelectual, filosófico e artístico do Renascimento europeu.   Situa suas origens no Século XV na península itálica, retomando o antigo Humanismo da Grécia Clássica do Século de Ouro.  O Humanismo renascentista propõe o antropocentrismo, a idéia do homem como centro do pensamento filosófico, ao contrário do teocentrismo, que sustenta a idéia de Deus no centro do pensamento filosófico. É, além disso, um modo de viver centrado nos interesses ou valores humanos e uma filosofia que dá ênfase à capacidade para a auto-realização pessoal através do uso da razão.

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Na ciência, o florescimento cultural se manifesta na criação de teorias que explicam a natureza desde o ponto de vista do conhecimento humano, da lógica, das ciências exatas, com alicerce no método científico e experimental, de base cartesiana. Nas artes, os temas não mais se referem a assuntos religiosos, teológicos ou espirituais e sim a temáticas destinadas a representar o pensamento do homem como indivíduo: a temática da arte “desce” dos céus à terra.

O Humanismo nas artes visuais: o eu observador A arte na Idade Média era concebida como um instrumento didático. As imagens transmitiam o dogma da cosmogonia cristã e eram, deste modo, o principal veículo de uma religião direcionada a um universo de analfabetos. A arte tinha um fim prático, educacional e espiritual, representando um convite à meditação. Não havia nela nenhuma relação com a realidade concreta e cotidiana do mundo. As figuras, geralmente religiosas, eram estáticas, de formas e expressões invariáveis, de volumes e dimensões uniformes, e apareciam normalmente nas esculturas e relevos da arquitetura das catedrais e dos monumentos mortuários. Não tinham representação de profundidade ou volume, e eram inseridas contra o fundo sem idéia de espaço. A composição possuía rígidas normas como: hierarquia por tamanhos, frontalidade, isocefalia e hierarquia dos espaços. Mais do que normas eram dogmas religiosos, e quebrantá-los era sacrilégio. Era uma arte austera e sagrada, como a sociedade que ela representava. Até cerca do ano de 1425, a maioria das imagens era bastante estilizada, até mesmo esquemática, mas a partir de então podem ser vistas pinturas que apresentam um realismo quase fotográfico. O casamento de Arnolfini, (fig.1), por exemplo, pintado pelo mestre do início do Renascimento Jan van Eyck (1390?-1441), revela tridimensionalidade, presença, individualidade e profundidade psicológica não encontradas em obras anteriores.1

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Scientific American Brasil, Óptica e realismo na arte renascentista, edição 32 - Janeiro 2005 http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/optica_e_realismo_na_arte_renascentista_imprimir.html acessado em 04/03/2011, às 16h24min.  

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Fig.1

O novo estilo preocupava-se em dar às pessoas, objetos e paisagens a aparência mais natural possível. A pintura renascentista apresenta características inovadoras como: •   Uso do claro-escuro: jogo de contrastes com o tratamento da luz para reforçar a sugestão de volume dos corpos. •   Realismo: o mundo é pensado como uma realidade a ser compreendida cientificamente, e não apenas admirada como a expressão mais grandiosa do próprio Deus. •   Surgimento da idéia de estilo pessoal: o período é marcado pelo ideal de liberdade e, conseqüentemente, pelo individualismo. •   Popularização das idéias de autoria e de mercado artístico: os quadros começam a ser assinados sem exceção. •   Perspectiva: ponto de vista que corresponde à maneira como o ser humano interpreta visualmente seu ambiente, e é usada como método para representar situações tridimensionais em planos bidimensionais. A perspectiva coloca o eu como observador e ponto de referência do objeto artístico. Conseqüentemente, observar um quadro renascentista é fazê-lo desde o ponto de vista humano, naturalista. O eu observador é a medida das coisas.

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O Eu lírico na literatura humanista O gênero lírico tem sua origem na poesia lírica clássica originalmente cantada e acompanhada por instrumentos musicais. A própria palavra “lírica”, vinculada a “lira” (nome do instrumento de cordas originário dos povos que formaram a nação grega), evidencia essa relação. A gênero lírico é o gênero literário em que o indivíduo manifesta sua subjetividade. Na literatura usa-se o termo Eu lírico para demonstrar o pensamento daquele que está narrando o texto, e que possibilita a externalização dos sentimentos poéticos do sujeito. É o indivíduo expressando-se através da arte; arte que tem o ser humano como medida, referência e objeto. O Eu lírico dos textos de Torquato Tasso, Marino ou Strozzi é levado à música pelos madrigalistas como Monteverdi ou os integrantes da Camerata Florentina, provocando uma mudança significativa e duradoura; mudança que reflete a perspectiva do indivíduo e do eu lírico através da construção musical. O Humanismo em música Todas as mudanças observadas, tanto nas artes visuais como na literatura encontram seu correlato tardio na música somente a partir da segunda metade do século XVI. Dentre todas as mudanças que se observam no discurso sonoro do fim do Renascimento e do primeiro Barroco,2 a mudança de textura representa uma transformação a um modelo de textura que vai dominar a arquitetura musical pelos próximos três séculos. Na pintura, o uso sistemático da perspectiva como elemento expressivo da nova forma de pensamento, estabelecerá um sistema de hierarquias perceptivas que permitem uma leitura muito diferente do objeto artístico renascentista em relação à arte medieval. A partir deste momento um quadro se lê em profundidade. Nesta leitura o objeto que está mais próximo se encontra perceptivamente hierarquizado por sobre aqueles outros que se encontram em segundo plano. Estamos assim em presença do que é chamado de figura/fundo.

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Dentre as mudanças podemos citar: a incipiente funcionalização da harmonia modal que dará origem ao trabalho de Rameau no seu Tratado de Harmonia de 1722, a criação de novos gêneros e estilos e a “descida” da música a planos terrenos (uso de línguas vernáculas, temáticas seculares, aproximação a gêneros populares, uso da música como elemento criador de identidade social, etc.).

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Fig. 2

Na Gioconda, de Leonardo da Vinci (fig. 2), pintada entre 1503 e 1506 pode-se observar claramente uma figura de uma pessoa com nível hierárquico perceptivo superior, por ter maior e mais interessante informação que a paisagem de fundo; pela idéia de proximidade (perspectiva) e pela contundência gestáltica da figura. Contrariamente, no tríptico de H. Bosch The Garden of Earthly Delights (fig. 3), pintado na mesma época, é difícil estabelecer uma hierarquia perceptiva porque nenhuma das figuras ou cenas contidas nele possui importância diferenciada, em termos de quantidade e qualidade de informação, para se estabelecer como figura principal.

Fig. 3

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Criando uma analogia entre pintura e música, o quadro de Bosch representa uma composição polifônica no modelo tipicamente medieval, nos termos de polifonia definidos anteriormente. Leonardo, por sua vez, encarna o novo modelo humanista. Na canção Yesterday dos Beatles, (como em um lied de Schubert ou em inúmeras outras situações na música ocidental dos últimos 400 anos) percebe-se a linha melódica cantada como diferenciada e hierarquizada sobre o fundo dos instrumentos, que é a figura (a Gioconda) sobre o fundo instrumental (o fundo da Gioconda). No Humanismo, tratou-se de expressar os sentimentos humanos através de um eu lírico, que prefere figuras que estão perceptivamente “na frente” do quadro musical, e que são capazes de interpretar mais fielmente sentimentos individuais do que grupos vocais, ou peças polifônicas, que para o novo modelo soariam “impessoais”. A nova música terá prioritariamente uma figura e um fundo, embora a polifonia não se abandone definitivamente e continue-se usando como uma sofisticada forma artística. A nova música terá quase sempre uma bela melodia (uma figura), que realce e intensifique os sentimentos da letra. O novo modelo ainda está em vigência. Considerações finais O escopo deste trabalho é estabelecer relações entre a mudança de pensamento que originou o Renascimento e as manifestações artísticas da época, tais como pintura e literatura primeiramente, e que posteriormente se refletiram na música. A necessidade de expressão do eu lírico literário viu-se reforçada pela mudança acontecida na pintura, na qual o sujeito, observador e medida das coisas, encontra na perspectiva e o realismo uma maneira de reconfigurar o processo composicional adaptando-o aos novos paradigmas filosóficos. A mudança da textura polifônica à textura de melodia acompanhada (aqui analogada à configuração de figura-fundo) oferece ao compositor da época a estrutura formal ideal para a expressão coerente dos ideais humanistas, estabelecendo uma relação entre forma e conteúdo que se constitui em um modelo comunicacional funcional e duradouro.

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