The Order e Cut Piece: a linguagem cénico-simbólica e a ruptura nas práticas artísticas

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The Order e Cut Piece: a linguagem cénico-simbólica e a ruptura nas práticas artísticas

Introdução

“The performer performs the work. He or she establishes a horizon of experience—what is done, its implications and whatever style the performer uses are all aspects of this horizon. The viewer has his or her own horizon of experience. He or she watches the performance, and the horizons are matched up together. To some extent there is a fusion of these horizons (Horizontverschmelzung). When the horizons fuse, wholly or in part, they are bent, warped, displaced, altered. The performance ends, and the horizons are no longer actively fused. The viewer examines his or her horizon. It is changed, for the better or for the worse.” HIGGINS, 1998

Cerca de quatro décadas separam Cut Piece de The Order - Cremaster 3; para a arte contemporânea, é um período de tempo extenso e intrincado no que respeita à sua reinvenção interna, principalmente por esses 40 anos serem precisamente os últimos do século XX, cuja segunda metade foi intensamente povoada de novas vanguardas em todos os campos das artes plásticas e cénicas. Se a isto juntarmos o facto das obras aqui mencionadas terem uma natureza basilar intensamente performativa, uma disciplina artística cuja visibilidade e evolução foi incrementada neste mesmo período, rapidamente nos apercebemos que a distância entre a performance de Yoko Ono e o projecto híbrido de Matthew Barney define mais diferenças entre os dois objectos artísticos do que pontos de conexão. E, no entanto, é isso que aqui se propõe. A reflexão levada a cabo nas páginas seguintes teve como ponto de partida a relação que pode ser estabelecida entre The Order e Cut Piece, não de uma forma totalizante afinal, interessa por vezes deixar mais questões do que respostas -, mas tendo em conta pequenas bases reflexivas apoiadas essencialmente em dois aspectos que escolhi desenvolver como centrais. Um deles prende-se com o domínio simbólico de cada uma das obras e com a mutabilidade intrínseca desse mesmo domínio, que se reconstrói incessantemente por factores externos à própria obra (como a diferenciação espectatorial, a inserção socio-cultural, a própria história das artes cénicas, etc.), fazendo com que esta se comporte como um organismo vivo e em constante evolução. O outro aspecto central ao estabelecimento de relações entre as duas obras diz respeito à sua capacidade de romper com paradigmas artísticos anteriores e contribuir para a evolução da arte em geral e das artes cénicas em particular. Para esta reflexão, partiu-se das noções de Stoss de Heidegger e de Chock de Benjamin, fundindo a necessidade de ruptura que é inerente às obras mencionadas (e às vanguardas artísticas em geral) com a sua vertente simbólica intencional.

Assim, e partindo destes dois pontos-chave, procurou-se uma conexão entre Cut Piece e The Order sem que esta fosse demasiado forçada ou especulativa, pois se assim acontecesse não haveria nenhum proveito a tirar da presente reflexão. É de referir que o estabelecer de objectos de estudo particulares como ponto de partida, tal como aqui foi feito, é sempre uma tarefa ingrata na medida em que não é possível desligar por completo a vertente pessoal da análise empreendida. Optou-se, então, por assumir essa mesma vertente desde o início, apresentando pontos de vista próprios mas nunca perdendo a consciência do que estes são - visões particulares, resultados da fusão de dois horizontes distintos que, tal como é enunciado por Higgins, têm o poder de modificar o ponto de vista do sujeito mesmo depois do contacto com o objecto artístico ter cessado. São, no entanto, estas abordagens diferenciadas que operam um papel essencial no estudo de determinados objectos artísticos, enriquecendo-os e actualizando a sua contribuição conceptual para o panorama artístico.

The Order Cordeiros no Guggenheim

Os 31 minutos que dão origem à sequência The Order são retirados da 3ª parte da série Cremaster, parte essa que tem na sua totalidade cerca de 3 horas. Trata-se de um ponto da narrativa em que o filme sofre um pausa reflexiva durante a qual são ensaiados os rituais de iniciação secreta da Maçonaria por representações alegóricas que representam, por sua vez, cada uma das 5 partes do ciclo Cremaster. The Order tem lugar no Guggenheim Museum, transmitido como um concurso pela antena no topo do edifício Chrysler (que é o tema central de Cremaster 3), e a sequência comporta-se como se de um jogo ou um sonho alegórico se tratasse; o concorrente é O Aprendiz, representado por Barney, e reconhecível pela boca ensanguentada da qual sai uma espécie de trapo; esta característica não é mais do que uma espécie de resumo contextualizante do resultado da falha na iniciação anterior - o castigo fez com que lhe fossem retirados todos os dentes de forma tão violenta que o fez expelir os intestinos pelo ânus. A roupa que enverga é uma espécie de kilt colorido em rosa e azul, representando as veias do sistema circulatório. A espiral do interior do Guggenheim, tantas vezes comparada a uma colmeia pela sua estrutura em espiral, funciona em The Order como um ecossistema destinado a albergar um jogo intrincado e bizarro. De facto, e segundo o livro de rituais Maçónicos, quando o aprendiz atinge o 3º Grau de Mestre Maçónico é-lhe dada uma colmeia, simbolizando a indústria e relembrando que viemos ao mundo como seres inteligentes e virtuosos, com o objectivo de trabalhar em conjunto diligentemente e sem nunca estarmos satisfeitos com o resultado atingido. Assim, The Order tem a estrutura de um pentatlo: são cinco os níveis organizados no interior do Guggenheim, e o Aprendiz terá que completar uma tarefa em cada um deles de modo a ultrapassar o obstáculo que o impede de chegar ao seguinte. O jogo inicia com um preview dos adversários do Aprendiz, apresentados no rés-do-chão por um grupo de anfitriãs de saltos altos e cuecas-tanga que se comportam como assistentes de um apresentador televisivo. O primeiro nível é The Order of the Rainbow for Girls, em que um grupo de bailarinas de sapateado dançam eximiamente vestidas de cordeiros, símbolo que é central à compreensão do ritual Maçónico e do qual falaremos mais tarde. No segundo nível duas bandas nova-iorquinas de hardcore, Agnostic Front e Murphy’s Law, tocam em palcos de sal perante uma plateia de fãs; a ligação deste nível com o ritual de passagem prende-se essencialmente com as letras que as bandas gritam uma à outra e com o puzzle que o Aprendiz tem que resolver, e que envolve instrumentos tradicionalmente ligados às ordens Maçónicas. O terceiro nível é talvez o mais representativo de toda a sequência, e do próprio Cremaster 3: a modelo e atleta paralímpica Aimee Mullins encarna a personagem da Noviça que irá sofrer mutações que a transformam de modelo de alta-costura de pernas

de cristal numa criatura felina, parcialmente parecida com uma chita. Mullins representa uma personagem central em toda a encenação de The Order: ela é o alter-ego do Aprendiz numa dualidade que realça a importância Maçónica conferida ao papel do homem e mulher como um todo que dá origem à criação, à vida - quando o Aprendiz confronta Mullins no terceiro nível, está a confrontar-se a ele próprio, a olhar-se ao espelho. A destruição da Noviça/Chita é não só uma parte vital de toda a iniciação mas também uma metáfora para a necessidade de deixarmos parte de nós para trás, uma libertação crucial do supérfluo de modo a que se possa seguir em frente - no jogo e na vida em geral. Aimee Mullins viria mais tarde a explicar que Barney queria que ela, inicialmente, fizesse a cena sem próteses: “Ele via esse factor como uma maneira de exprimir a teoria Maçónica de que é necessário perdermos a nossa parte inferior de modo a que possamos ascender a um nível superior”. Note-se o quão central é o factor destrutivo não só em The Order como em todo o Cremaster, factor esse que irá permitir posteriores conexões a Cut Piece. As esculturas do quarto nível remetem para Cremaster 4, mas também para o kilt envergado pelo próprio Aprendiz, dadas as ligações com o universo escocês. As suas relações com o ritual Maçónico são variadas: primeiro, alude aos níveis de iniciação depois de passado o nível terceiro (Mestre Maçon), dada a representação metonímica do cordeiro; em segundo lugar, a linha do animal remete para a configuração criada quando dois Maçons criam os Cinco Pontos da Irmandade (que é justamente o título deste nível), enquanto a própria gaita-de-foles simboliza a busca da perfeição na Maçonaria. O derradeiro nível é personificado por Richard Serra, que se apresenta não como O Arquitecto mas como ele próprio. Sendo este o nível mais alto, Serra representa as aspirações Maçónicas de moral elevada, do elemento masculino que faz com que a entidade desça totalmente no Cremaster 5 e complete o ciclo. Richard Serra enverga uma máscara de gás e atira vaselina contra uma tábua, cujos resquícios escorrem pela rampa do Guggenheim abaixo, marcando o elemento Tempo em The Order.

Cut Piece A tesoura de Buda

Cut Piece é um exemplo da extraordinária capacidade que Yoko Ono tem de agitar públicos no que respeita às suas acções surpreendentes, enquanto perturba as suas noções de self e others. Apresentada pela primeira vez em Março de 1964 na cidade japonesa de Kyoto, a performance original durava aproximadamente uma hora durante a qual Ono se ajoelhava em palco segundo a maneira japonesa tradicional com uma tesoura colocada em frente. Os membros da audiência aproximavam-se então e cortavam partes da sua roupa, até esta estar reduzida a farrapos que a desnudavam. A performance foi repetida várias vezes ao longo dos anos por Yoko Ono (as performances em Nova Iorque e Londres foram as que lhe conferiram maior visibilidade) e, posteriormente, por outros artistas, como Charlotte Moorman. Cut Piece implica um sujeito - em princípio do sexo feminino, embora Ono tenha mais tarde afirmado que não é essencial que o performer seja uma mulher - que é violentado psicologicamente, e que se sujeita a essa perturbação feita por acções que lhe são externas de modo voluntário. Trata-se de uma acção com uma componente paradoxal, que tanto envolve acções lentas e delicadas como ataques subliminarmente agressivos. A participação da audiência é, portanto, um abuso simbólico, uma metáfora para a intromissão íntima no que respeita à integridade física e psicológica do sujeito. Cut Piece desconstrói a relação sujeito/objecto estabelecida entre o espectador e o objecto artístico, apresentando uma situação em que o espectador é ele próprio o potencial “agressor” no acto de desnudar o corpo feminino, facto que foi mais tarde contextualizado como fazendo referência às questões de género, enfatizando a reciprocidade existente entre os vários sujeitos, e insinuando o quão estes se tornam objectos entre si. No entanto, e apesar de todas as conotações que lhe foram sendo atribuídas ao longo dos anos - protesto contra a guerra do Vietnam, questões feministas, etc. - a verdadeira inspiração para Cut Piece foi a doutrina budista. Ono declarou o seu desejo de proceder como Buda, de maneira a renunciar o egoísmo e promover a dádiva, e transportando isso para o universo do artista como ser que dá algo ao mundo, que oferece pedaços da própria alma sem esperar nada em troca, e apenas porque o deseja fazer ou porque impera em si próprio uma necessidade comunicacional, de iminência na criação de laços através do que faz e vê.

A mutabilidade do domínio simbólico

Foram conferidos a Cut Piece diversos significados ao longo das décadas; as mais famosas interpretações da performance de Yoko Ono prendem-se essencialmente com questões feministas, apesar destas interpretações variarem consoante a envolvência socio-cultural em que o acto de insere. Afinal, Cut Piece vinha até com uma espécie de livro de instruções, sob a forma dos event scores que povoam a obra conceptual de Yoko Ono, Grapefruit. O que torna esta performance tão mutável e adaptável é exactamente a sua natureza; ao longo dos anos, Cut Piece acabou por se tornar num gigante teste Rorschach, em que o mais importante não era a performance em si, mas o que ela despertava nas consciências de quem assistia ou mesmo participava. Já a obra de Matthew Barney engloba na sua essência um ponto de partida muito mais elaborado, principalmente devido à inclusão de signos e significantes com interpretações que são, de certa forma, “oficiais”, e que por si só moldam e determinam a direcção simbólica de The Order. Os símbolos maçónicos e todo o ritual que envolve a iniciação nesta “ordem” não são tão subjectivos quanto o poderiam parecer à primeira vista; ao invés, ajudam a manter um fio condutor em toda a história, sendo uma ajuda preciosa principalmente para quem assiste a todo o ciclo Cremaster. Qual é, então o ponto de fusão entre estas duas obras, que parecem tão distantes uma da outra em todo o tipo de contextos? Dir-se-ia que, além da natureza performativa, o que as une é exactamente a necessidade de comunicação através de símbolos e significados e a ruptura como ponto essencial da mensagem artística, ruptura essa que se sintetiza nos dois objectos centrais de cada uma das performances - o machado de The Order e a tesoura de Cut Piece -, e cujo domínio simbólico será alvo de uma reflexão mais extensa e cuidada no capítulo seguinte. Além dos objectos de corte, é de frisar a centralidade do sujeito como ponto de união das duas obras; o facto de existir uma sujeição voluntária do próprio artista/sujeito no que respeita à evolução de cada uma das performances pode ser conotada com a natureza do monólogo teatral. É, pois, o acto de comunicação da existência de um conflito interno, de uma história do domínio do privado, que permite interpretações relacionadas com o egoísmo altruísta que aqui se revela pelo sacrifício a que o artista/sujeito se auto-propõe - o altruísmo está exactamente nessa linha ténue que roça o masoquismo artístico, que expõe o criador artístico como se de um simples objecto se tratasse. No entanto, o que se torna interessante observar é a mutabilidade do estatuto do sujeito em cada uma das obras; este oscila essencialmente entre os papéis de dominador e de dominado, pois é ele quem lança e/ou aceita as regras do jogo, mas não controla a possibilidade que essas regras têm de se poderem virar contra ele próprio. Em The Order, a personagem do Aprendiz é terrivelmente Goethiana, remetendo-nos para o universo de Der Zauberlehrling (O Aprendiz de Feiticeiro) em que uma das principais noções centrais é não só a de que não se deve tentar operar forças que não se podem

controlar, mas também a de que existem passos específicos no que respeita à evolução num aprendizado, e que nenhum passo deve ser ignorado. A tentativa de igualar/ superar o próprio mestre está também presente em The Order, mas de uma forma mais subliminar, impressa apenas pelos significantes maçónicos respeitantes à personagem do Arquitecto (Hiram Abiff). A ideia de que o corpo só deve evoluir quando o espírito já o fez (a inteligência/tomada de consciência antecede a entrada num patamar superior) é fulcral no que respeita à compreensão do percurso empreendido pelo Aprendiz em The Order. Em Cut Piece, este jogo entre o que é permitido e o que é quebrado sofre uma variante; o sujeito controla o início e o final da performance (segundo as regras estabelecidas pela própria Yoko Ono, o acto acaba quando o performer assim o deseja), mas não a reacção do público nem cada acto de corte em si. Torna-se interessante verificar que o referido “monólogo” não deixa de o ser pelo facto de haver outros sujeitos envolvidos; o que sucede é que este é influenciado pela interacção e enriquecido pela imprevisibilidade, estando esta paradoxalmente prevista desde a enunciação de Cut Piece. Poder-se-ia dizer que Cut Piece é uma espécie de monólogo colectivo, uma acção que apenas atinge a sua totalidade quando um grupo específico opera como se se tratasse de um sujeito único, de forma a permitir um melhor e mais completo entendimento da mensagem comunicada - repare-se aqui na semelhança existente com o terceiro passo da iniciação maçónica, em que a colmeia simboliza exactamente esta necessidade de operar em conjunto como um passo essencial no aprendizado. Afinal, o artista/performer é, por natureza, um misto de aprendiz e mestre, sendo na constância desta relação que o sujeito se auto-descobre e se dá a descobrir, por actos de natureza artística que visam a comunicação num nível que ultrapassa o simplismo do imediato e buscam a autonomia como objectos comunicantes cujo direito de existência dispensa o explicável.

O Stoss de Heidegger e o Chock de Benjamin: a necessidade de ruptura nas práticas artísticas

Recuperando a instabilidade enunciada por Vattimo em relação às práticas artísticas, é passível de ser estabelecida uma ligação com a necessidade de ruptura inerente a estas como característica essencial à sua evolução dentro do mundo/mundos da Arte (aqui recorrendo às teorias de Arthur Danto). Assim, tanto The Order como Cut Piece contêm elementos que as relacionam com este “romper” voluntário, e que são visíveis não só na sua parte mais física e interpretativa, como também na sua estrutura teorizante; o Stoss (literalmente, Golpe) de Heidegger é em The Order personificado pela utilização das ferramentas Maçónicas contra a Chita, de modo a ultrapassar o terceiro nível e assim “seguir em frente”, no jogo e na própria evolução pessoal, que não é mais do que uma metáfora da evolução artística per se. Em Cut Piece, é o uso da tesoura como instrumento interventivo activo na performance que marca o Corte; este representa muito mais do que o Stoss enunciado acima - aqui é vital a posição em que o performer se coloca, voluntariamente, e que permite que lhe sejam retirados pedaços daquilo que é a sua estrutura, aqui representados pela roupa (retirar o exterior de forma a valorizar o interior, a desnudar uma essência?). O acto de romper como basilar no que respeita à concretização das duas obras alia-se então a uma retórica performativa que implica o Stoss como rito de passagem, como uma evolução transpositiva que conduz cada objecto artístico em direcção à sua “idade adulta”, a uma maturidade metafórica que lhes reserva um lugar no mundo artístico contemporâneo, ao mesmo tempo que solidifica significados e os transporta para um nível de entendimento comum numa relação biunívoca entre a percepção espectatorial e a intenção criativa. O comprometimento estabelecido com o conceito de Chock já opera num outro nível de compreensão da performance; recorde-se o quanto foi retirado à obra de arte contemporânea no que respeita à sua dimensão aurática. Assim, enquanto Vattimo declara que “a reprodutibilidade técnica já não parece operar em termos de Chock”, mencionando os casos da mediação e remediação dos objectos artísticos passíveis de ser reproduzidos ad infinitum, a performance parece operar num campo ligeiramente distinto; o que se torna característico neste tipo de prática artística é exactamente a sua capacidade de ser única e irrepetível enquanto encenação. Com toda a controvérsia que isto possa gerar, uma performance pode ser repetida aquando da sua intenção e princípios, mas cada acto performativo é um caso único que adquire a sua originalidade não só na natureza humana do artista, mas também na relação existente entre a obra de arte e o(s) público(s), cuja diversidade e constante mutabilidade a tornam num acontecimento potencialmente irrepetível na sua íntegra, recuperando assim a aura declarada perdida por Walter Benjamin.

Em The Order e Cut Piece encontramos dois exemplos distintos deste Chock: enquanto que Cut Piece se destaca na sua busca pelo estatuto de acontecimento único através não só do contexto em que se insere mas também do contacto com o público, de tal maneira imprevisível que poder-se-ia dizer que roça o happening, The Order filia-se na categoria mediatizada por se instaurar como vídeo-performance-art, podendo apenas ser atingido por um feedback espectatorial indirecto (o público está ausente na mise-enscène). No entanto, The Order recupera o Chock de uma maneira transversal, ao transformar as próprias screenings oficiais em verdadeiros acontecimentos artísticos. A resposta que lhe é conferida por parte do público passa então pela reformulação de ideias e reestruturação de (pre)conceitos acerca das fronteiras entre o que é o vídeo-arte e o que é a performance - a fusão resultante do hibridismo de The Order é que recupera o verdadeiro Chock e o reinventa numa nova dimensão. Assim, o desejo da eternização por parte da obra de arte acaba por renascer na intenção de tornar a experiência vídeo tão autêntica quanto o mais primário olhar sobre um quadro, Enquanto Cut Piece reformula a barreira entre o que se vê e o que se faz (“eu observo, logo, opero”), a verdadeira ligação entre a performance de Yoko Ono e o Chock benjaminiano é estabelecida num nível muito superior, aspirando a uma unidade e singularidade artísticas que roçam a beatitude. Originalmente enunciada como um event score, Ono referir-se-ia a estas instruções de criação artística como “sementes”, pela natureza germinal que lhes era intrínseca; Kevin Concannon refere, no seu texto Yoko Ono - Cut Piece: From Text to Performance and Back Again, o quão fértil são as suas ideias tão singelamente enunciadas em texto, comportando em si próprias a possibilidade de se manifestarem em variações múltiplas. É esta multiplicidade que nos transporta de novo para o universo de Walter Benjamin, cuja teoria estética é recuperada na infinidade de stagings de que Cut Piece pode ser alvo, e que alteram o impacto que a performance tem/teve ao longo dos anos; no entanto, é importante referir que a essência da obra não foi modificada ou adulterada - é o olhar do público que a veste de roupagens diferentes, consoante uma multiplicidade de factores que lhe são externos. A aura perdida de Benjamin introduz-se, então, subrepticiamente entre a performance apresentada e os diferentes distanciamentos espectatoriais.

Conclusão

“What is involved [in performance] is indeed an obvious presence, not a presence sought after or represented; this desire to discover, then, a here/now which has no other referent except itself” PONTBRIAND, 1982

Pontbriand, assim como Féral ou Robert Wilson, propõe uma aproximação ao acto da performance que se situa num campo completamente diferente do do teatro tal como este é enunciado por Michael Fried no seu texto Art and Objecthood (1967); este atacava o teatro de uma maneira feroz no que respeita ao seu estatuto artístico, sugerindo que este, ao necessitar de uma audiência para existir e se afirmar como objecto estético, não possui autonomia artística na sua essência. Pontbriand defende que a performance “apresenta, não representa”; assim, podemos afirmar que toda a questão da simbologia se torna uma mais-valia no que respeita à interpretação do acto performativo, pois possibilita uma abordagem total, sem no entanto dispensar as pequenas e fragmentadas reflexões individuais de cada sub-cena/objecto, mas relembrando que estas só fazem sentido quando confrontadas com um todo que nunca é, de forma alguma, a soma das partes. Assim, tal como a reflexão sobre uma obra de arte pictórica não se deve centrar em pormenores sob pena de se perder o conceito central (“the big picture”, literalmente), a performance também deve ser confrontada na sua análise com um constante zoom in/ zoom out que permita a observação de pormenores alternada com uma aproximação ao conceito geral. É inevitável a constatação da importância que esta coerência simbólica unificadora de uma performance tem no seu papel como motor do Stoss heideggeriano; para um verdadeiro break-through ter lugar no que respeita ao avanço vanguardista da arte, é necessário que este seja impulsionado por um objecto artístico que albergue na sua essência um mecanismo construtivo munido de uma lógica interna tão poderosa que o torne indispensável neste acto de ruptura. O staging de uma performance implica, então, o poder da presença do acto artístico como elemento humanizante que irá lhe conferir o elemento místico aglutinante que por sua vez o transporta de volta à dimensão aurática benjaminiana. Em The Order e Cut Piece é o antropocentrismo que se alia a rituais mais ou menos quotidianos e que colocam estes dois objectos artísticos numa linha ténue situada entre a massificação da arte e a reinvenção da obra a cada olhar, tornando-a única em cada nova confrontação com o espectador. Importa então referir que é a contextualização do domínio simbólico e a sua mutabilidade intrínseca que re-humanizam os objectos artísticos aqui referidos e que os relacionam auraticamente com um mundo da Arte que as novas tecnologias, como o

vídeo, pareciam vir condenar ao desencantamento. É necessário relembrar, também, que o rompimento com o passado e com o status-quo não é um factor-novidade no que respeita à história da Arte; este apenas se tornou mais notório à medida que a Arte se desligava do representativo e se autonomizava - recorrendo à Teoria da Implicação enunciada por Arthur Danto, um objecto artístico só pode ser conotado com determinado movimento quando surge o seguinte, demonstrando assim a necessidade da existência de um passado sólido e fiável do ponto de vista artístico e histórico para que se possa operar uma verdadeira evolução na Arte. The Order e Cut Piece inserem-se então numa estrutura artística que pelo seu carácter iminentemente híbrido as coloca muito perto do Sublime kantiano, qualidade apenas atribuída a um objecto sem forma ou de forma mutável. Afinal, e segundo a clarificação que Schopenhauer faz acerca do conceito de Sublime, as obras aqui enunciadas possuem o poder de “esmagar” psicologicamente o observador, contendo na sua essência artística uma força que pode ser comparável à atribuída aos fenómenos da Natureza. Não se procura aqui, de forma alguma, valorar excessivamente as obras mencionadas; apenas se constata a profundidade analítica de que podem ser alvo, assim como a relevância da sua natureza não só para a evolução do mundo artístico (como já foi analisado neste trabalho) mas também para o repensar das teorias estéticas, e, claro, da constante reformulação do staging nas artes performativas. É quando a reflexão sobre a relação emissor/receptor/mensagem é repensada que se constata a importância do domínio das linguagens cénicas para a gigantesca evolução da Arte em geral.

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DOCUMENTOS VÍDEO The Order - Cremaster 3, Matthew Barney, 2002 (31 min. aprox.) Cut Piece, Yoko Ono, gravada no Carnegie Hall, New York em 1965 (9 min. aprox.)

Ana Leorne #24821 Mestrado em Ciências da Comunicação - Cinema e Televisão Seminário de Linguagens Cénicas - Prof. Doutor Paulo Filipe Monteiro 2º Semestre 2008/2009

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