Tiago Zeni PSICANÁLISE E FÉ: UM ESTUDO SOBRE A METANÓIA DE SANTO AGOSTINHO Pós-graduação Lato Sensu

May 31, 2017 | Autor: Tiago Zeni | Categoria: Jungian psychology (Religion), Biografia, Metanoia, Santo Agostinho
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Tiago Zeni

PSICANÁLISE E FÉ: UM ESTUDO SOBRE A METANÓIA DE SANTO AGOSTINHO

Monografia

PORTO ALEGRE – RS, 2004

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Tiago Zeni

PSICANÁLISE E FÉ: UM ESTUDO SOBRE A METANÓIA DE SANTO AGOSTINHO

Monografia apresentada para a conclusão do Curso de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Redentor – RJ, para a obtenção do grau de Especialista em Teoria Psicanalítica.

PORTO ALEGRE – RS, SETEMBRO 2004.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................ 03 1.

VIDA

E

CONTEXTO

HISTÓRICO

DOS

PRIMÓRDIOS

DO

CRISTIANISMO ATÉ O NASCIMENTO DE SANTO AGOSTINHO ............ 06 1.1. Raízes do Cristianismo ........................................................................ 07 1.2. A Patrística........................................................................................... 09 1.3. O Desenvolvimento do Cristianismo na África ..................................... 11 2. VIDA DE SANTO AGOSTINHO ANTES DO ENCONTRO COM SANTO AMBRÓSIO................................................................................................. 14 2.1. Infância e Adolescência ....................................................................... 15 2.2. A Juventude ......................................................................................... 21 2.3. Algumas Considerações Sobre a Doutrina Maniqueísta ...................... 22 2.4. O Sonho de Mônica ............................................................................. 26 3. VIDA DE SANTO AGOSTINHO DEPOIS DO ENCONTRO COM SANTO AMBRÓSIO................................................................................................. 35 3.1. Breve Biografia de Santo Ambrósio até o Encontro com Agostinho .... 37 3.2. A Metanóia ........................................................................................... 50 3.3. O Processo de Individuação ................................................................ 53 3.4. Evitação do Incesto .............................................................................. 53 3.5. Mônica e o Arquétipo do Bom Pastor .................................................. 56 3.6. As Relações entre o Ego e o Self ........................................................ 57 3.7. A Idéia de Deus ................................................................................... 58 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 62 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 63

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INTRODUÇÃO

Jung foi um dos mais queridos discípulos de Freud, o criador da Psicanálise. Chegou a ser um dos maiores expositores da Psicanálise segundo Freud. Entretanto divergências teóricas acabaram por favorecer o rompimento entre o criador desta ciência e o seu discípulo predileto. Um dos motivos que levaram o discípulo a romper com o mestre foi a questão religiosa. Enquanto Freud buscava dar credibilidade científica à Psicanálise (segundo os critérios da ciência da época), chegando ao ponto de até mesmo considerar a religião como “ópio do povo”, Jung buscava de maneira independente, nas religiões, nos mitos, nas lendas, nos contos, nos rituais tribais, nas antigas formas de conhecimento, conteúdos que pudessem ajudar o paciente na sessão de análise. Para Jung, a religião não deveria ficar de fora da psicanálise. Para ele, esta sempre fez parte do itinerário humano. Onde existiram homens, ainda que na fase mais remota da evolução segundo Theilard Chardin, existiram manifestações para com o Sagrado, objetivadas e passíveis de ser constatadas através dos rituais e mitos que acompanharam as civilizações no decorrer dos séculos, deixando marcas indeléveis no Inconsciente Coletivo da humanidade. Dentro desta visão, a proposta atual é a de fazermos uma abordagem junguiana sobre a vida de Santo Agostinho, ressaltando a metanóia como ponto alto, a partir da qual se desencadeia o processo de individuação (ver com o orientador), a grande meta da teoria de Jung. O termo metanóia provém originalmente do grego, onde meta = mudança + nousis = pensar, na idade média, já na época de Agostinho, o termo era entendido como conversão. Para efeito de nosso trabalho, não

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entendemos metanóia como conversão, com o intuito de evitar uma possível idéia pejorativa. Entendemos metanóia como uma mudança radical de pensamento que nos leva a uma transformação no modo de viver e interpretar a vida, um viver para a verdadeira liberdade que conduz à felicidade e à satisfação da própria existência. Vale ressaltar que para a nossa proposta, entendemos a metanóia como uma mudança expressa não só no modo de pensar, mas principalmente no modo de agir de Santo Agostinho. Pode-se dizer ainda que o termo metanóia não é meramente uma idéia, mas sim um fato. Um fato que transforma a vida, no caso, o fato que transformou a vida de Santo Agostinho, de pagão em cristão, conforme ele mesmo nos apresenta. Cristão que veio a exercer as funções de padre, bispo e doutor da Igreja. Um grande pensador responsável por uma verdadeira gama de contribuições ao pensamento ocidental, e que em conseqüência influenciou de forma definitiva o desenvolvimento tanto da Filosofia como da Teologia até os dias atuais. Mais do que a notável ascensão dentro do cristianismo, valeu para a vida de Agostinho a felicidade resultante desta metanóia. Pode-se seguramente dizer que o objeto da metanóia não é o resultado histórico evidentemente constatado, mas a suprema felicidade e satisfação da existência que o indivíduo adquire quando a faz. É a metanóia o passo definitivo para a solução do problema da angústia existencial. Num primeiro momento, para o melhor desenvolvimento do tema proposto, queremos apresentar uma breve exposição do contexto histórico em que viveu Santo Agostinho, partindo dos primórdios do cristianismo até o seu nascimento. O texto servirá como fundamento para a análise que seguirá no decorrer dos próximos capítulos. Em seguida queremos fazer uma apresentação biográfica de Santo Agostinho, com base em sua autobiografia, as CONFISSÕES, e na obra de MADUREIRA. Queremos ressaltar ainda, neste segundo capítulo, alguns

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aspectos da teoria proposta por Carl Gustav Jung, e que foi pelo próprio autor denominada de psicologia analítica, a partir da qual se fará a abordagem subseqüente. No terceiro capítulo, pretendemos fazer a análise da vida de Santo Agostinho, tendo como ponto de partida a biografia exposta no primeiro capítulo e o referencial teórico apresentado no segundo capítulo, utilizandonos da interpretação como ferramenta básica para o desenvolvimento textual. Que nosso trabalho possa iluminar aos que, assim como Agostinho, na perspectiva da eternidade, são peregrinos da verdade e mensageiros da luz.

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1. VIDA E CONTEXTO HISTÓRICO DOS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO ATÉ O NASCIMENTO DE SANTO AGOSTINHO Santo Agostinho, pelo que se pode constatar em sua autobiografia, foi um homem que buscou incansavelmente a verdade, alguém que viveu de forma autêntica a sua liberdade, os seus desejos e aspirações até o fim de sua existência, ainda que precisasse passar pelo duro crivo da autocrítica, ao tomar consciência de ter se encontrado com o Deus cujo o próprio coração está inquieto enquanto não repousar1. A verdade, segundo a sua própria constatação, habita no interior do próprio homem2. Foi alguém que viveu seus arquétipos, passou pela humana experiência em toda a sua realidade, com seus incontáveis conflitos e dificuldades, e com isto, chegou ao bom termo de sua existência, tanto que foi aclamado pelo povo e obteve o reconhecimento eclesial da santidade, o que para efeito de nossa proposta de trabalho, independente da consideração eclesial, ousamos chamar de Individuação, a grande meta da teoria junguiana. Antes e mesmo depois da grande metanóia, Agostinho foi um homem no sentido humanista e pleno da palavra. Um homem que empregou sua vida em busca da verdade, sobre a qual assentaria o sentido maior de sua existência, e a partir da qual empregaria todo seu esforço em anunciar e levar a outros o conhecimento que operou a grande mudança em sua vida. Isto numa época em que a compreensão cristã concorria simultaneamente com várias outras correntes do pensamento. O próprio agostinho foi sujeito dos conflitos intelectuais pelos quais passava a Igreja. Mesmo antes de se fazer batizar, assumiu para si os

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Confissões, p. 36.

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valores da Igreja cristã, e a partir disso, buscou, como grande pensador que era, uma fundamentação filosófica para melhor propiciar a aceitação e difusão do cristianismo no meio intelectual da época. Santo Agostinho terminou por encontrar a almejada verdade no lugar mais sagrado: o seu próprio coração. A exemplo de São Paulo, que era antes da conversão um perseguidor e exterminador dos cristãos, Santo Agostinho desenvolveu sua vida num estado de completa indiferença ao cristianismo. E foi, assim como Paulo de Tarso, através de uma revelação divina o “Tolite Lege”, que a verdade lhe foi revelada. Contava Agostinho então com 30 anos de idade, e este singular momento marcaria definitivamente sua história de vida.

1.1. Raízes do Cristianismo Segundo os historiadores JEAN DANIELOU & HENRI MARROU (1973), no início do Império Romano, o cristianismo surgiu na Palestina, uma província romana habitada pelos judeus. Os fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião israelita; em segundo lugar, o pensamento grego e, enfim, o direito romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um privilégio único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e civilizações, ainda que poderosos e ilustres, são, religiosamente, politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel o cristianismo toma, também, o conceito de uma revelação e assistência especial de Deus. Daí a idéia de uma história, que é desenvolvimento providencial da humanidade, idéia peculiar ao cristianismo e desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.

“Noli foras ire, redi ad te ipsum in interiore homine habitat veritas” (Agostinho, Liber de Vera religione, XXIX, 72 APUD SANTOS) trad.: Não vá para fora, volte-se para si mesmo, no interior do homem habita a verdade. 2

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Quanto ao pensamento grego, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador das verdades reveladas, e como justificador dos pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como elemento constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e cristão. E quanto ao direito romano, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a Igreja, e não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, que são próprios e originais do cristianismo. Na revelação cristã é filosoficamente fundamental o conceito de uma queda original do homem no começo da sua história, e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Oprimidos por outros povos durante cerca de 600 anos antes do nascimento do cristianismo, os judeus aguardavam um salvador que seria enviado pelo seu Deus para libertá-los da dominação de povos estrangeiros. Isso estava escrito na Bíblia, em numerosas profecias. Para muitos, Jesus era o Messias, o qual, segundo a crença judaica, seria o filho de Deus. Embora não existam documentos escritos, sabe-se que os apóstolos Pedro e Paulo chegaram até Roma, onde organizaram comunidades. Em 67, durante a primeira perseguição aos cristãos, movida por Nero, eles foram torturados e mortos. Jesus escolhera Pedro como chefe de sua igreja. Como Pedro, considerado o primeiro papa, morreu em Roma, essa cidade tornou-se a capital do cristianismo. Durante o primeiro século, o cristianismo começou a se tornar popular. Os romanos, que eram politeístas, admitiam a prática de outras religiões, mas não o cristianismo. Isso se explica pelo fato de os cristãos serem monoteístas, negando os deuses romanos e admitindo um único Deus. Os primeiros cristãos eram acusados de traírem Roma e de serem "inimigos do gênero humano". Seus inimigos contavam que os cristãos matavam crianças durante o culto e depois bebiam seu sangue. A origem desse boato era o fato de os cristãos tomarem a comunhão (pão e vinho), a

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qual, para eles, representava o corpo e o sangue de Cristo. Devido às perseguições, os cristãos construíram catacumbas, que eram galerias subterrâneas onde eles se reuniam para fazer suas pregações e enterravam seus mortos. Apesar das perseguições, o número de cristãos foi crescendo. O cristianismo espalhou-se rapidamente entre os pobres da cidade. Mas logo também muitos ricos e nobres começaram a aderir à nova religião. Em 313, com o Edito de Milão, o imperador Constantino concedeu aos cristãos liberdade para praticarem sua religião. Em 391, o imperador Teodósio proibiu os cultos pagãos e mandou fechar seus templos. O Cristianismo tornou-se assim a religião oficial do Império Romano.

1.2.

A Patrística Para os historiadores JEAN DANIELOU & HENRI MARROU (1973),

com o nome patrística entende-se o período do pensamento cristão que se segue à época neotestamentária e chega ao início da escolástica, isto é, os séculos II-VIII da era cristã. Chama-se patrística, porquanto representa o pensamento dos Padres da Igreja, os mestres da doutrina cristã. Dada a culminante grandeza de Agostinho, a patrística divide-se em três períodos: antes de Agostinho, Agostinho e depois de Agostinho. Inicia-se com as Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São João e termina no século VIII, quando teve início a Filosofia Medieval. A patrística resultou do esforço feito pelos dois apóstolos intelectuais (Paulo e João) e pelos primeiros Padres da Igreja para conciliar a nova religião - o Cristianismo - com o pensamento filosófico dos gregos e romanos, pois somente com tal conciliação seria possível convencer os pagãos da nova verdade e converte-los a ela. A filosofia patrística liga-se, portanto, à tarefa religiosa da evangelização e à defesa da religião cristã contra os ataques teóricos e morais que recebia dos antigos.

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Divide-se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma) e seus nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Beda e Boécio. A patrística foi obrigada a introduzir idéias desconhecidas para os filósofos greco-romanos: a idéia de criação do mundo, de pecado original, de Deus como trindade una, de encarnação e morte de Deus, de juízo final ou de fim dos tempos e ressurreição dos mortos, etc. Precisou também explicar como o mal pode existir no mundo, já que tudo foi criado por Deus, que é pura perfeição e bondade. Introduziu, sobretudo com Santo Agostinho e Boécio, a idéia de "homem interior", isto é, da consciência moral e do livrearbítrio, pelo qual o homem se torna responsável pela existência do mal no mundo. Para impor as idéias cristãs, os Padres da Igreja as transformaram em verdades reveladas por Deus (através da Bíblia e dos santos) que, por serem

decretos

divinos,

seriam

dogmas,

isto

é,

irrefutáveis

e

inquestionáveis. Com isso, surge uma distinção, desconhecida pelos antigos, entre verdades reveladas ou da fé e verdades da razão ou humanas, isto é, entre verdades sobrenaturais e verdades naturais, as primeiras introduzindo a noção de conhecimento recebido por uma graça divina, superior ao simples conhecimento racional. Dessa forma, o grande tema de toda a filosofia patrística é o da possibilidade de conciliar razão e fé, e, a esse respeito, havia três posições principais: 1. Os que julgavam fé e razão irreconciliáveis e a fé superior à razão (diziam eles: "Creio porque absurdo"). 2. Os que julgavam fé e razão conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé (diziam eles: "Creio para compreender").

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3. Os que julgavam razão e fé irreconciliáveis, mas afirmavam que cada uma delas tem seu campo próprio de conhecimento e não devem misturar-se (a razão se refere a tudo o que concerne à vida temporal dos homens no mundo; a fé, a tudo o que se refere à salvação da alma e à vida eterna futura).

1.3. O Desenvolvimento do Cristianismo na África De acordo com MADUREIRA (1973) o contexto onde se desenvolveu Agostinho teve como pano de fundo o Império romano, que foi reestruturado em novas bases a partir do imperador Diocleciano (284-305) e de Constantino (306-337). Segundo

o

testemunho

de

Tertuliano,

grande

apologeta

do

cristianismo, desde o segundo século da era cristã, o cristianismo já se fazia presente na África, e o número de cristãos era abundante 3. O povo local, profundamente religioso antes mesmo do cristianismo se firmar por ali. Acolheu o cristianismo com muito melhor aceitação do que a religião politeísta dos romanos, visto que este combinava mais com a sua antiga religião. A África, embora pertencesse ao Império Romano, não foi de todo inculturada, tanto que o povo africano continuou falando a língua de seus antepassados, o púnico, embora o latim fosse a língua vigente do império romano. Agostinho não se fez indiferente a esta realidade. Além do latim, falava o púnico, isso mostra que preservou os laços com seus antepassados, o que acentua a idéia de que, embora vivendo numa África dominada politicamente pelo império romano, preservava um grande sentimento de patriotismo para com seu país. Tinha consciência histórica de que os seus antepassados foram dizimados e reduzidos à escravidão pelos invasores romanos.

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Esse fato se manifesta de forma significativa no Inconsciente de Agostinho, a ser percebido em seus escritos, mais acentuadamente quando escreve sobre o triunfo da cidade de Deus sobre a cidade dos homens.

Dois amores construíram duas cidades: o amor-prório, levado até o desprezo de Deus, edificou a cidade terrena; o amor de Deus, levado até o desprezo de si, fez a cidade celeste. Uma se gloria em si, a outra no Senhor. Uma mendiga a glória junto aos homens; Deus, testemunha da consciência, é a maior glória da outra. Uma, apoiada na própria glória, levanta a cabeça; a outra, porém, diz a Deus: Tu és a minha glória e ergues minha cabeça. A paixão do poder arrebata os príncipes e nações submetidos à primeira; na outra, todos se fazem servidores do próximo, na caridade: os chefes se desvelam pelo bem dos subordinados, e esses lhe obedecem. A primeira cidade, na pessoa de seu chefe, admira a própria força. A outra diz a seu Deus: Amar-te-ei, Senhor, pois tu és minha força. Também na primeira, os sábios levam uma vida puramente humana. Procuram os bens do corpo ou do espírito, ou ambos ao mesmo tempo; dentre eles, os que logram conhecer a Deus, não o glorificam como Deus e não lhe dão graças, mas se tornam vãos em seus pensamentos, e seu pensamento sem inteligência envolve-se em trevas; vangloriandose de serem sábios, isto é, dominados pelo próprio orgulho, e gabando-se de sua sabedoria, tornam-se loucos. Trocam a majestade do Deus incorruptível por imagens que representam o homem sujeito à corrupção, quadrúpedes e répteis. Foi à adoração de tais imagens que chegaram, tanto os condutores como os conduzidos, e adoraram e serviram a criatura de preferência ao Criador, bendito em todos os séculos. Na outra cidade, porém, toda a sabedoria do homem consiste na piedade, única que presta ao verdadeiro Deus um culto legítimo e que espera como recompensa a sociedade dos santos, a dos homens e também a dos anjos, a fim de que Deus seja tudo em todos.4

É possível de se perceber neste trecho o conteúdo inconsciente da dominação pelo poder romano. Embora a Igreja local fosse a Igreja Romana, Agostinho apresenta a cidade de Deus numa visão que difere e transcende os moldes do império vigente na época: a cidade dos homens é a expressão da realidade vivida sob a organização do Imperador. A solução para o problema da dominação é transcender a inculturação e dar lugar à cidade de Deus. Vale lembrar que mesmo a Igreja nesse contexto de dominação política não pôde ficar isenta da influência romana, resultando que a própria

3 4

Tertuliano, Apologética, 37 apud MADUREIRA, 1973, p. 23. Agostinho, A Cidade de Deus, XIV, p. 234.

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Igreja da África fosse uma Igreja latina. O trabalho de Agostinho em “A cidade de Deus” influenciaria uma mudança na própria organização eclesial, de forma que a obra “A cidade de Deus” foi o grande modelo na qual se inspirou a Igreja medieval. Há ainda que se interpretar sob uma ótica junguiana os dizeres de Santo Agostinho sobre o “amor-próprio” e o “desprezo de si” expressos no início do texto supracitado. Entendemos o “amor-próprio” não como o amor de si mesmo, visto que amar a si mesmo é um pressuposto cristão, mas como a visão de si obscurecida pela máscara, a persona, que faz com que o indivíduo represente papéis, que o impede de se revelar na totalidade. A persona é um dos obstáculos que atrapalham e que a pessoa precisa conhecer para que possa realizar a metanóia e desencadear o processo de individuação. Sendo assim, entendemos “amor próprio” como o “amor da persona” que teima em esconder a essência, e que dificulta que a pessoa vá ao encontro do seu Self. Em “o amor de Deus, levado até o desprezo de si”, entendemos que o “desprezo de si” tem significado contrário do que foi entendido como “amor próprio”. Não significa o abandono de si próprio de tal sorte que o indivíduo se apague. O “desprezo de si” de que fala Agostinho é o caminho da luz que leva o indivíduo a encontrar o Self, libertando o ser da persona. É pois, segundo o dizer de Agostinho, o amor de Deus que faz com que a pessoa encontre o que há de mais sagrado em si, ocasionando a metanóia e propiciando a individuação. Assim sendo, estas foram algumas das principais premissas históricas que se fizeram presentes no desenvolvimento da vida de Agostinho e que vieram a ter influência bastante significativa para a construção da história de vida de Agostinho e do desencadear da grande metanóia.

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2. VIDA DE SANTO AGOSTINHO ANTES DO ENCONTRO COM SANTO AMBRÓSIO

Conforme foi visto no capítulo anterior, o contexto histórico e social em que Agostinho viveu trouxe profundas influências para a sua própria constituição. É evidente que assim como a ele, esse contexto teve profunda influência sobre a constituição de sua família, tanto do lado paterno quanto do lado materno. Sobre

o

pai

de

Agostinho,

pode-se

dizer

que

este

era

consideravelmente mais velho do que a mãe quando se casaram. Diferente da mãe, o pai não era cristão e seguia os costumes dos pagãos. O próprio Agostinho revela nas Confissões que seu pai Patrício era um homem que tinha um coração excepcionalmente bom, mas que de vez em quando manifestava violentas crises de cólera. Tinha, pois, um temperamento bastante difícil, e embora não pusesse obstáculos à prática religiosa de sua mulher, como pagão que era, não dava muita atenção à regra moral, razão pela qual não se sentia obrigado a guardar a fidelidade conjugal no que tange à vida sexual. Quanto às posses, Patrício era possuidor de uma casa, alguns campos que somavam a área de doze hectares, e uma vinha, o que era suficiente para sustentar a família. Não era rico, e embora fosse considerado um homem influente em sua pequena cidade, não podia dar-se ao luxo de efetuar despesas maiores. Já a mãe de Agostinho herdou de seus pais, os avós de Agostinho, uma fervorosa formação cristã católica, se bem que grande parte desta formação foi recebida através de uma criada que passou toda a sua vida prestando serviços à família de Mônica. Essa criada influenciou o temperamento e o caráter de Mônica e de suas irmãs, incutindo-lhes um

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forte senso do dever e da responsabilidade, que veio a ter significativa influência na formação de Agostinho. Mônica era uma mulher dotada de grandes virtudes. Agostinho tinha um profundo amor por ela. Segundo ele, Mônica conseguiu criar um clima de felicidade em seu lar, e graças à sua incansável persistência, conseguiu que seu marido se inscrevesse como catecúmeno e se tornasse cristão, ainda que só pouco tempo antes de sua morte se tenha feito batizar. Quanto aos irmãos de Agostinho, sabe-se que Patrício e Mônica tiveram pelo menos quatro filhos, sendo dois homens e duas mulheres. Do irmão mais velho, chamado Navígio, conhece-se que se converteu ao cristianismo ao mesmo tempo que Agostinho, e que presenciou junto a este, a morte de sua mãe. Várias das sobrinhas de Agostinho, filhas de Navígio, mais tarde vieram a tornar-se irmãs religiosas. Quanto às irmãs de Agostinho, sabe-se que uma se chamava Perpétua, casou-se e quando ficou viúva entrou para um convento, chegando mais tarde a ser madre superiora em Hipona. A outra irmã foi mãe de um certo Patrício, que foi subdiácono em Hipona.

2.1. Infância e Adolescência Quando nasceu, Agostinho foi marcado com o sinal da cruz e “temperado com o sal divino”5, conforme era o costume cristão da época, sendo inscrito na lista dos catecúmenos. O pai de Agostinho não pretendia faze-lo cristão, mas Mônica se contentava com o que pudesse ser feito nesse sentido. Era costume na época não batizar imediatamente as crianças, deixando para fazer isso mais tarde, quando estas atingissem a idade da razão. Entretanto isso não impediu que sua mãe lhe falasse de Cristo e da doutrina cristã, deixando profundas marcas religiosas nesse período da vida de Agostinho.

5

Agostinho, Confissões, Livro I, p. 49.

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Agostinho foi amamentado por sua mãe e suas amas. Guarda belíssimas recordações dos tempos deste período, podendo-se perceber nas Confissões6 a satisfação de ter sido bastante alimentado com o leite materno. Recorda também dos tempos em que começou a falar por conta própria, sem ajuda de ninguém, a partir de sua própria observação e uso de sua inteligência. Contata-se por essas afirmações que Agostinho tinha uma boa imagem de si próprio, via-se como uma criança inteligente, bem cuidada e capaz de aprender por si só. Agostinho, a partir dos 6 anos, freqüentou a escola primária de Tagasta, onde aprendeu a ler, escrever e contar. No início, não gostava muito de leitura, escrita e cálculos, principalmente o grego e a aritmética. Foi tomado de verdadeira paixão pela harmonia da língua latina. Como qualquer criança, preferia brincar a estudar, apreciava os jogos e as competições infantis mais do que os estudos para os quais eram obrigados de uma forma impositiva. Em conseqüência, Agostinho e seus outros colegas eram constantemente castigados. Isto deixou marcas em sua vida, tanto que mais tarde7 condenou os castigos e as proibições das brincadeiras infantis. Nesta fase, a educação religiosa propiciada por sua mãe se fazia bastante presente. Relata Agostinho que em um dos momentos em que sofria uma crise forte de asma acompanhada de febre, fez uma fervorosa oração para que fosse curado e isto aconteceu. Essa experiência alegrou muito sua mãe que percebeu deste então que Deus havia reservado algo especial para o menino. Com de 12 anos de idade Agostinho pediu para ser batizado. Seus pais, no entanto resolveram adiar o batismo, mesmo depois de ocorrido a cura completa. A partir daí, Agostinho já se sentia cristão. Para efeito doutrinal, no que se refere à doutrina da Igreja Católica8, pode-se dizer que o desejo de Agostinho já lhe assegurava o lugar entre os batizados, uma vez que livre e

6 7

CONFISSÕES, 1999, Livro I, p. 41-2. Idem, p. 56.

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espontaneamente este pediu o batismo aos pais. Este fato é importante, uma vez que com essa idade, instruído na doutrina cristã por sua mãe, Agostinho já atuava como cristão. Adquiriu o hábito de rezar, pedindo a graça de não fracassar nos estudos. Talvez por influência do meio pagão que ridicularizava as orações de Agostinho, quando este não conseguia um bom êxito nos estudos, à medida em que ia crescendo, o fervor religioso inicial foi diminuindo, e o seu interesse foi sendo tomado pelas questões filosóficas que muito o inquietavam. Tendo terminado o curso primário, foi enviado à Madaura, uma cidade que distava trinta quilômetros de Tagasta. Esta cidade valorizava bastante o aspecto intelectual, e por conseqüência, como era o costume dos intelectuais da época, desprezava a religião cristã, considerando-a religião de pobres e ignorantes. O paganismo era, pois, a base de toda a educação, e os estudantes cristãos que lá estavam se viam obrigados a enfrentar a hostilidade de seus mestres. Pensamos que esse contato com professores hostis ao cristianismo colaborou bastante para que mais tarde Agostinho apresentasse o surpreendente grau de profundidade em seus pensamentos, e a devida fundamentação filosófica que sustentou teoricamente o cristianismo pósagostiniano. Nessa época, despontando como um bom aluno, por influência do meio e de seus professores, em Madaura, Agostinho já não se considerava mais cristão. Tinha por volta de 13 anos por esta época, e foi tomado de verdadeira

paixão

pela

leitura

dos

clássicos

latinos,

marcando-o

profundamente a obra Eneida de Virgílio. Foi aí que começou a se destacar como um grande orador. Por outro lado, a atitude de Agostinho com relação ao aspecto moral foi completamente diversa da que tinha para com os estudos. Com 14 anos mentia descaradamente, roubava, trapaceava, escondia dos professores sua 8

Cfe. CIC 1258-60 e CDC 849.

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queda pelo jogo e pela vida fácil. Abandonou o hábito de rezar e deu vazão aos seus instintos. Após encerrado o período de estudos em Madaura, Agostinho voltou para casa. Nesta época, já tinha completado 16 anos e seu pai fazia planos de enviá-lo para Cartago, capital da África romana. Esta cidade era considerada um centro de cultura onde imperava a eloqüência. Ciente da boa fama de orador do filho, o pai de Agostinho desejava que o filho estudasse lá, mas não tinha recursos financeiros suficientes. Resolveu então que Agostinho ficaria um ano em Tagasta, prazo em que contava conseguir o dinheiro necessário para a realização de seu intento. Seguindo o costume adquirido em Madaura, Agostinho entrega-se às paixões. O pai, vendo-o interessar-se cada vez mais pelo amor, pensava em casá-lo. Já Mônica se inquietava e advertia o filho a fim de que evitasse as fornicações e não seduzisse as mulheres dos outros. Agostinho, porém, não lhe dava ouvidos. Sobre essa etapa da vida de Agostinho, MADUREIRA, historiador e biógrafo de Santo Agostinho, escreve o seguinte comentário: (…) Lendo-se, nas Confissões (sic), a parte em que relata sua vida nesse período, tem-se a impressão de que o ardor com que se entregou ao prazer da carne foi apenas a outra face do entusiasmo que o levou depois a entregar-se ao prazer do espírito, e podemos mesmo dizer que toda atividade mental posterior de Agostinho constituiu um esforço único para unir esses dois extremos, na verdade, paixão carnal e amor pelas coisas do espírito eram uma só e mesma coisa, os objetos é que eram diferentes.9

Usando da Psicologia Analítica, pode-se perceber nesse comentário a análise enantiomorfa10 de como se manifestou a “energia da natureza” nesse período da vida de Agostinho. Se usarmos a terminologia de FREUD, pode-se dizer que o entusiasmo de que fala o autor supracitado é a própria

9

MADUREIRA, 1973, p. 39.

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libido que o levou a desfrutar da sexualidade de uma forma abundante. JUNG não deixou de utilizar o termo “libido” aplicado por FREUD, mas atribuiu a este um singificado mais amplo. JUNG entendeu e apresentou o termo como “energia da natureza”, sendo esta a energia que impulsionou Agostinho a ir em busca de sua realização sexual na adolescência e a mesma energia que motivou Agostinho a deleitar-se nos prazeres da espiritualidade cristã na fase adulta. Para JUNG “(…) é impossível recorrer a apenas uma energia sexual, isto é, a um instinto específico como conceito explicativo, porque a transformação da energia psíquica não é uma dinâmica (sic) meramente sexual (sic). A dinâmica sexual é apenas um caso particular da totalidade da psique”11. No dizer de JUNG12, é o símbolo13 o mecanismo psicológico que transforma a energia, cabendo salientar que os símbolos sempre foram produzidos pelo inconsciente - nunca pelo consciente -, pela via da intuição. Isto vem a confirmar a idéia aqui apresentada sobre a diferença entre as concepções freudiana e junguiana de libido. “Como Freud se limita exclusivamente, por assim dizer, à sexualidade, para o fim a que ele se propunha era suficiente a definição sexual da energia como uma força instintiva específica”14. Essa distinção entre as diferentes concepções de libido é importante para o nosso trabalho, uma vez que pretendemos deixar claro que a chave

O Dicionário Aurélio nos apresenta seguinte definição: “Diz-se de duas formas ou figuras que não se podem sobrepor, e que são simétricas em relação a um plano, como, p. ex., um objeto e sua imagem refletida no espelho”. 11 JUNG, A Energia Psíquica, 1990, p. 28. 12 Idem, p. 44-6. 13 Para Jung, o símbolo tem uma representação real, p. ex.: “(…) o buraco feito pelos Watschandis no chão não é um sinal do órgão genital da mulher, mas um símbolo que representa a mulher-terra a ser fecundada” (JUNG, A Energia Psíquica, 1990, p. 44); O Dicionário Aurélio apresenta a seguinte definição “(…) Psicol. Idéia consciente que representa e encerra a significação de outra inconsciente”; O Dicionário de Psicologia complementa ainda com o seguinte significado que vem a estar plenamente de acordo com a concepção de Jung: “Para o primitivo, (sic) o símbolo detém o poder mágico do objeto que representa. Condensa as múltiplas forças de uma realidade viva; ele é, aliás, essa realidade” (RICHAUDEAU, 1978, p. 463). 14 JUNG, A Energia Psíquica, 1990, p. 28. 10

20

para a metanóia de Agostinho se deu através da busca de algo que estava para além da questão sexual: o oculto. Sendo assim, interpretamos que, o que Agostinho buscava com o desenfreado exercício da sexualidade, era o oculto. Analisando que a mãe, vinda de uma família católica tradicional, evitasse de falar abertamente sobre sexalidade, e que o pai mantivesse relações extraconjugais às escondidas de sua família, o desejo de Agostinho pendeu para a busca do que estava oculto através do sexo. Portanto Agostinho entendeu nessa fase, que o oculto estava no sexo. Buscou pois desvelar o que estava oculto através do exercício de sua sexualidade. Uma vez que a busca que fazia através do sexo era a busca do que estava oculto, ousamos afirmar que o que propiciou a grande metanoia foi o dar-se conta de que o oculto que ele buscava não estava exclusivamente no sexo. Entretanto, a busca pelo oculto através de seus relacionamentos com as mulheres fez parte de sua peregrinação pelo sagrado, tanto que, sem esta, não teria ele chegado à revelação da metanóia. O oculto que ele buscava era a verdade, que habitava o interior de seu próprio coração. Em virtude de o próprio Agostinho ter declarado mais tarde haver se envergonhado da vida que havia levado nesse período, pode-se constatar nesta fase a demonstração de alguns aspectos da sombra de Agostinho. Conforme ele mesmo afirma, o ano que passou em Tagasta foi um ano de completa ociosidade, vivido

em más companhias, mergulhado

em

“desordens” de todo tipo, onde viveu muitas aventuras sexuais e ignorou-se os resquícios da piedade cristã desenvolvidos na infância. Cabe salientar que para Jung a sombra não é má em sua totalidade 15, é apenas de uma certa forma vulgar, inadequada, primitiva e incômoda, pois nela o indivíduo esconde os aspectos de si que não quer mostrar. A sombra contém qualidades infantis e primitivas que de algum modo poderiam tornar

15

PIERI, 2002, p. 474.

21

mais viva e bonita a existência humana, mas que as regras e convenções sociais tendem a condenar. Embora Agostinho admita ter se envergonhado dessa etapa de sua vida,

pensamos que

os feitos

“desregrados”

de

Agostinho

foram

fundamentais para desencadear a grande metanóia. Se Agostinho não tivesse dado vazão aos seus instintos, possivelmente não teria a maturidade necessária para romper com o pensamento em voga na época e realizar a grande transformação de sua vida. Sem a satisfação que é própria daqueles indivíduos que ousaram ir até o limite na busca da realização de seus desejos, seria muito difícil que Agostinho avançasse para além do que lhe era esperado, e chegasse assim ao grau de felicidade, autonomia e intimidade com Deus, que podem ser percebidos através da leitura de suas obras.

2.2. A Juventude No outono de 370 Agostinho foi para Cartago, iniciando uma nova fase em sua vida, mas até os 32 anos, predominaria a busca incessante de sua realização sexual. Com 16 anos já estava ligado a uma mulher em uma forma de concubinato que, com exceção da moral cristã, os costumes da época aprovavam. Dessa união Agostinho teve um filho o qual chamou Adeodato. Viveu com essa mulher durante 14 anos, e mesmo quando bispo, se referiu a ela sem qualquer censura ou acabrunhamento. Pode-se constatar por isso, o quanto ela foi importante para a vida de Agostinho. De acordo com a teoria junguiana, ousaríamos dizer que esta mulher foi a que melhor completou a anima de Agostinho, dado o longo período que conviveu com ela. Sabe-se também que depois desta nenhuma outra mulher conseguiu estabelecer-se por muito tempo com ele, nem mesmo a esposa que sua mãe lhe arranjou.

22

Ao chegar em Cartago, morre seu pai. Desconhece-se a causa de sua morte. Sabe-se que durante o período em que Agostinho esteve fora de casa, devido à persistente dedicação de Mônica, Patrício assistira as aulas de catecumenato e fêz-se batizar um pouco antes de morrer. Sem dúvida, a morte do pai ocasionou um grande impacto na vida de sua família. Pode-se constatar que após este período, Agostinho dedicou-se ainda mais aos estudos, manifestando uma brilhante inteligência e capacidade de aprendizagem. Agostinho contava então com sua mãe e seu benfeitor, Romaniano, que lhe patrocinava os estudos e mantinha-lhe a mulher e o filho. Nessa época Agostinho, mais do que bom aluno, tornou-se um autodidata, assimilando com facilidade as ciências mais difíceis. A morte do pai, mais a leitura da obra Hortensius de Cícero, que trata sobre as tristezas da vida e as alegrias encontradas na meditação dos problemas eternos, introduziu Agostinho novamente na reflexão sobre as realidades invisíveis de que há muito se havia afastado. Resolveu estudar a Bíblia, mas decepcionou-se devido à linguagem popular, repleta de barbarismos com que a haviam traduzido. De qualquer forma este episódio orientou a vida de Agostinho para um novo sentido, despertando a paixão pelos problemas metafísicos, principalmente o do mal, que tornaria-se uma de suas grandes preocupação.

2.3. Algumas Considerações Sobre a Doutrina Maniqueísta É importante ressaltar alguns aspectos do maniqueísmo para que se possa melhor compreender esse caminho com o qual se ocupou Agostinho durante quase dez anos de sua vida. Os maniqueus eram numerosos e bastante atuantes em Cartago. Em sua doutrina, seguiam o pensamento de Manés, que por sua vez se

23

proclamava o “apóstolo de Jesus Cristo” e era tido por uma espécie de “líder” dos maniqueus. Em sua doutrina, exaltavam o Espírito Santo e prometiam aos seus adeptos o conhecimento e a explicação de todas as coisas. Negavam a existência de mistérios, pretendendo explicar e demonstrar tudo, inclusive a maneira como o mundo foi feito e como tudo um dia teria fim. Era seguro para eles a existência de dois princípios, um bom e outro mau, que desde sempre lutavam entre si, e essa luta entre os dois princípios marcava toda a criação. A missão dos homens enquanto membros da criação era fazer com que o princípio do bem vencesse o princípio do mal. Para tanto, propunham o seguimento de uma moral bastante severa onde quase tudo era fonte de pecado, e para tanto, os homens deviam abster-se de um grande número coisas para evitar o mal. Afirmavam que sua doutrina não tinha mistério algum, que era a pura expressão da verdade, e como tal, devia ser imposta à razão humana. A origem histórica do maniqueísmo está vinculada à expansão das comunidades cristãs na Ásia, no início do século III. Segundo nos apresentam os historiadores JEAN DANIÉLOU & HENRI MARROU16, o fundador do movimento, Manés, nasceu na Babilônia do Norte, em 14 de abril de 216. Seu pai, Palek, converteu-se ao ideal ascético e afiliou-se a uma seita batista, após ter tido uma visão. Manés, de início, pertenceu a esta seita, mas sofreu também influência de diversas outras seitas religiosas que se faziam presentes em sua terra natal, travou contato com brâmanes e budistas, além da tradicional religião do Irã: o masdeísmo. No ano de 240, Manés recebeu uma revelação que originou a sua missão. Acreditou que sua missão era a de dar continuidade à missão de Zoroastro, de Buda e de Jesus, de quem é o revelador supremo e no qual se manifestou a plenitude da verdade. Em sua primeira missão, vai para a Índia, onde converte o rei do país. A partir daí, segue seu trabalho de difusão da doutrina, até que é morto em 277.

16

DANIÉLOU & MARROU, 1973, p. 203-5.

24

Manés opôs-se claramente ao cristianismo, adotando como fundo de seu sistema um gnosticismo dualista que se inspira tanto no gnosticismo judeu-cristão como no zoroastrismo iraniamo. Em muitos pontos, porém, se inspirou no cristianismo sírio, a Paixão de Jesus se desliga de sua significação histórica para assumir um caráter mítico, embora continue sendo o cerne da teologia da salvação em sua doutrina. Enfim, o sicretismo resultante da influência recebida das diversas seitas com as quais manteve contato em sua juventude deixaram resquícios permanentes, ocasionado que sua doutrina resultasse permeada de grande sincretismo, uma vez que o próprio Manés acreditava-se herdeiro de todas as religiões. A Igreja maniquéia está dividida entre perfeitos e imperfeitos, sendo os perfeitos os ascetas, que constituem sozinhos a Igreja, e os imperfeitos, os ouvintes ou catecúmenos, que devem com eles aprender. Agostinho foi sempre considerado um ouvinte. Para DANIÉLOU & MARROU17, o maniqueísmo seria um desenvolvimento do cristianismo siríaco original, cujas tendências levada as mais extremas conseqüências conduzem a um dualismo cósmico, que acaba numa total condenação do mundo material, e numa obrigação moral, que proíbe o matrimônio e o uso de certos alimentos. A expansão do maniqueísmo estendeu-se da China à África do Norte, onde Agostinho, mais tarde, viria a conhecê-lo. Esta doutrina fascinou Agostinho, tanto que logo aderiu a ela e transformou-se em seu apologeta, encarregando-se de difundi-la entre seus amigos. Para quem estava acostumado à leitura de Virgílio, Apuleio e Cícero, essa doutrina parecia-lhe a que até então permitia melhor expressar seus conhecimentos e tentar responder às inquietantes questões a que se propunha. Como bom orador que era, não teve dificuldades em obter êxito em suas pregações, e o sucesso obtido fez com que aderisse com ainda mais convicção à doutrina maniqueísta.

17

Idem, p. 205.

25

Ressaltamos aqui que a intensidade com que Agostinho aderiu à doutrina maniqueísta, a dedicação com que se lançou aos estudos, as reflexões e pregações foram de suma importância para desencadear a grande metanóia. Até aqui constatamos que Agostinho vivia com intensidade as suas escolhas, buscava ir não só à profundidade das questões que o intrigavam, como também à profundidade das experiências humanas e às conseqüências de suas opções. A dedicação intensa às coisas assumidas levou-o à saciar o desejo de realização, e lhe deu a satisfação necessária para partir em busca de outro caminho quando percebeu que aquele ao qual havia se dedicado por tanto tempo, não mais respondia ao seu desejo. Foi o caso de sua dedicação total ao maniqueísmo, que levou-o a romper com o mesmo, e partir com toda a certeza em busca de um novo caminho que o pudesse satisfazer18. No outono de 373, Agostinho havia completado seus estudos. Entusiasmado pelo maniqueísmo, decidiu deixar Cartago e voltar para Tagasta, trabalhando como professor de gramática e dedicando-se quase que exclusivamente ao aprofundamento da nova doutrina assumida. Em sua cidade natal, Agostinho também teve sucesso em suas pregações com o maniqueísmo. Estava orgulhoso, parecia que finalmente havia encontrado um sentido para sua vida, uma razão de existir. O sucesso foi tanto que Agostinho conquistou para esta doutrina importantes nomes de sua cidade, inclusive o seu benfeitor Romaniano, seu amigo Alípio e Honorato, importante cidadão, que era uma pessoa que antes desprezava os maniqueus.

18

A idéia de dedicação total às escolhas de vida foi brilhantemente anunciada por NIETZSCHE na obra Assim Falou Zaratustra, com a frase: “Sê o que quiseres, mas o sê totalmente” (Nietzsche in: OS PENSADORES, 1999, p. xx). Como a filosofia de Nietzsche influenciou o pensamento de Jung é conveniente ressaltar esse aspecto: a idéia junguiana do homem que liberta-se da persona, assume a sombra, opera a metanóia, torna-se expressão do si-mesmo, encontra o Self e desencadeia o processo de individuação, corresponde de uma certa forma ao conceito de super-homem de Nietzsche. É o homem que superou a si mesmo, como foi o caso de Agostinho.

26

Sua mãe Mônica, no entanto, não teve alegria com o novo encaminhamento do filho. Estava muito preocupada com a conduta moral de Agostinho. O marido já lhe havia sido infiel, o que a fazia compreender a natureza, a busca incessante pelos prazeres da carne e as violentas paixões do filho. Tinha ela muita dificuldade em aceitar a adesão de Agostinho ao maniqueísmo. Já velha e viúva, dedicava seu tempo às orações e à prática das boas obras. Não poderia aceitar que seu filho se enveredasse por uma via que ela mesma, em sua fé, considerava como um erro. Sua preocupação chegou a tal ponto que proibiu Agostinho de comer e dormir em sua casa.

2.4. O Sonho de Mônica Nesse período, Mônica teve um sonho: (…) Nesse sonho viu-se de pé sobre uma régua de madeira. Um jovem airoso e alegre veio ao seu encontro a sorrir-lhe, enquanto ela se conservava triste e amargurada. Perguntando-lhe ele as causas do acabrunhamento e das lágrimas cotidianas – não para saber, mas para instruir, como é de costrume –, e respondendolhe ela que chorava a minha perdição, mandou-a sossegar, aconselhando-a a que atendesse e visse que onde ela se encontrava lá estaria eu também. Apenas olhou, viu-me junto de si, de pé, na mesma régua.19

Num primeiro momento, poderíamos interpretar este sonho como o desejo que Mônica tinha de que o filho lhe desse ouvidos. Seguindo o modelo de interpretação junguiana através dos símbolos, podemos dizer que a régua representa a retidão moral do catolicismo, por onde Mônica sempre procurou andar e no qual nutria desejo de ver também o seu filho; o jovem que ela vê aproximar-se e que mais tarde ela identifica como sendo seu filho, representa a novidade, ou seja, algo que está para acontecer; o acabrunhamento seguido pelas lágrimas de Mônica representa o estado e a passagem de uma situação triste, dolorosa, para uma

19

CONFISSÕES, 1999, Livro III, p. 94.

27

renovação. A novidade representada pelo jovem, é uma novidade que ela, num primeiro momento, ainda não consegue ver, mas que mais tarde, apresenta-se de forma clara. O sonho mostra que a imagem que momentaneamente Mônica está tendo de seu filho, é uma imagem obscurecida, talvez por elementos da própria sombra de Mônica, levando em conta que, conforme vimos acima, sua educação foi bastante rígida no que se refere ao seguimento da moral cristã, e por conseqüência – como é bastante comum constatar em pessoas que tiveram esta educação –, apresenta

alguns

preconceitos

para

com

os

que

contradizem

os

ensinamentos morais. Sendo assim, a falsa imagem formulada pelos preconceitos a impediria de ir ao encontro de seu filho. Enquanto que ela não aceitasse Agostinho com a sua atual realidade, desprovida dos preconceitos, não poderia ajudá-lo, como erroneamente pensou ao proibi-lo de comer e dormir em casa. O sonho pode ser interpretado ainda – com o que concorda o autor das CONFISSÕES20 – como um sonho premonitório, indicando a metanóia e a conversão de Agostinho. Podemos concluir a partir deste sonho que o sofrimento de Mônica terá fim, e o que até então estava obscurecido (a realidade por ela não aceita sobre Agostinho) seria visto às claras (aceitação da realidade do filho mediante o processo de conversão e a operação da grande metanóia). A partir deste sonho, Mônica resolveu aceitar novamente o convívio de Agostinho em sua casa. Quando Mônica contou este sonho a Agostinho, este lhe disse ser apenas o prenúncio da conversão dela e de sua entrada próxima para o maniqueísmo. Mônica porém, via outro sentido: era o próprio Agostinho que vinha juntar-se à mãe. A partir desse dia, Além de consentir em recebê-lo novamente em casa, não poupou esforços. Rezava, procurava pessoas consideradas “autoridades” em moral, teologia e filosofia, e pedia-lhes

20

Idem, p. 95.

28

ensinamentos que pudesse transmitir ao filho, na intenção de fazê-lo superar o maniqueísmo. Percebendo que as tentativas de argumentar com o filho não tinham efeito, resolveu falar com um bispo, para que este viesse falar com seu filho. O bispo, sabendo da fama de maniqueísta fanático que era Agostinho, lhe disse: “Deixe-o ficar onde está; limite-se a rezar por ele a Deus; pela leitura ele mesmo reconhecerá o erro e quão grande é a sua impiedade”21. Esse bispo havia confidenciado a Mônica que, também ele, outrora, havia

conseguido

libertar-se

das

controvérsias

e

argumentações

maniqueístas com as quais se havia envolvido, e nas quais sua mãe lhe havia instruído desde a infância. Percebendo as lágrimas e as persistentes súplicas de Mônica, disse a ela: “Vai em paz e continua a viver assim porque é impossível que pereça o filho de tantas lágrimas”22. Segundo MADUREIRA, embora externamente Agostinho continuasse o mesmo, prosseguindo professor de gramática, e persistente procurador de adeptos para o maniqueísmo “(…) no fundo de si, Agostinho já se sentia perturbado. A firmeza de Mônica o inquietava. A força de suas preces desconcertava-o. (…) Voltava, aos poucos, a sentir-se perdido”23. De acordo com a Psicologia Analítica, pode-se dizer que Agostinho estava principiando a reelaboração de sua alquimia interna, efetivando um processo que conduz ao encontro e à vivência autêntica do si-mesmo. Quando voltou para Tagasta, Agostinho encontra-se com um grande amigo, companheiro de infância, que também havia se convertido ao maniqueísmo. Agostinho tinha uma grande afeição por este rapaz. Acontece que o jovem adoeceu profundamente. A família, sem que ele soubesse fez com que recebesse o batismo cristão. Não dando importância ao fato, e certo da recuperação do amigo, esperou o momento de rirem juntos do gesto de sua família. O inesperado porém aconteceu. O jovem conseguiu

21

Ibidem, p. 96. Ibidem, p. 96. 23 MADUREIRA, 1973, p. 48. 22

29

melhorar um pouco, e quando Agostinho tentou zombar do batismo, a reação do amigo foi-lhe inesperada: olhou para ele como se tratasse de um inimigo e disse-lhe que se quisesse continuar seu amigo, parasse de brincar daquela maneira com algo tão sério. Agostinho resolveu esperar até que este ficasse totalmente curado para daí conversarem sobre o assunto. O amigo porém morreu, deixando um grande vazio na vida de Agostinho, conforme ele mesmo nos expressa:

Com tal dor, entenebreceu-se-me o coração. Tudo o que via era morte. A pátria era para mim um exílio, e a casa paterna, um estranho tormento. Tudo o que com ele comunicava, sem ele convertia-se-me em enorme martírio. Os meus olhos indagavam-no por toda parte, e nào me era restituído. Tudo me aborrecia, porque nada o continha e ninguém me avisava: “Ali vem ele!”, como quando voltava, ao encontrar-se ausente. Tinha-me transformado num grande problema. Interrogava à minha alma por que andava triste e se perturbava tanto, e nada me sabia responder. Se lhe dizia: “Espera em Deus”, não obedecia. E com razão, pois o homem tão querido que perdera era mais verdadeiro e melhor que o fantasma em que lhe mandava ter esperança. Só o choro me era doce. Só ele sucedera ao meu amigo, nas delícias da alma.24

A dor da perda do amigo abalou Agostinho, não só pela interrupção da convivência e da belíssima amizade que os dois cultivavam, mas também porque deixou em Agostinho algumas questões que não foram esgotadas: teria a doença sensibilizado o amigo de tal forma que este transcendeu a compreensão teórica que lhes era comum? O que fez com que o amigo, antes fiel adepto maniqueísta, chamasse-lhe a atenção para que se mostrasse mais respeitoso para com as práticas cristãs antes de morrer? Sem dúvidas estas foram questões que não poderiam ter deixado de preocupá-lo, e que contribuíram bastante para que se desencadeasse a grande metanóia. Agostinho se viu envolto numa grande confusão. Gostava muito desse seu amigo, e a morte, de súbito, o levara, sem ao menos lhe dar a chance de despedir-se. Este episódio fez com que aflorasse ainda mais o desejo da busca da verdade para Agostinho. Este desejo, conjuntamente com o 24

CONFISSÕES, 1999, Livro IV, p. 104.

30

desgosto de ter perdido o amigo e mais a vontade de ser bem sucedido na vida, fez com que Agostinho resolvesse fechar a escola, e no outono de 375 deixar Tagasta e mudar-se para Cartago. Somente seu benfeitor Romaniano foi avisado. Nesse período, nasceu seu filho Adeodato, firmando um pouco mais o relacionamento que Agostinho tinha com a sua mulher. Em Cartago, Agostinho abriu uma escola de retórica, contado com o apoio Romaniano, que nestas alturas lhe já lhe havia confiado a educação de seus dois filhos e de seu irmão mais novo. Em Cartago Agostinho conquistou bons alunos que viriam a ser seus seguidores e fiéis amigos, entre os quais Nébrida e Alípio, mas nem estes se interessavam ainda seriamente sobre os problemas da verdade; Alípio só apreciava no maniqueísmo a austeridade, que considerava verdadeira e autêntica. Este, depois de várias experiências amorosas, desgostou-se e passou a viver em castidade. Nébrida e os demais só procuravam a glória do mundo, almejando ocupar altos cargos no Estado. Esta amizade com seus alunos diminui a tristeza da perda de seu amigo em Tagasta, trazendo novamente alegria em sua vida. Com 22 anos de idade, Agostinho já ensinava a jovens de sua idade ou mais velhos do que ele, levando a fama de melhor mestre de eloqüência da cidade. Por esta época, Agostinho já tinha uma vasta experiência de vida. Além da grande cultura adquirida, primava pelas amizades buscando viver o amor em todas as suas relações. Entretanto, nem todos os seus alunos eram bons amigos e estudantes. Alguns não manifestavam interesse pelo seu talento e sua cultura. Viam suas aulas como um meio a mais de subirem na vida, sendo até mesmo, por vezes, desrespeitosos para com o mestre. Agostinho bem sabia que ele também por vezes não fora bom exemplo de aluno, e tolerava com paciência os menos interessados. A dedicação que mantinha junto aos alunos que tinham sede de aprender e criar levou Agostinho à busca da beleza das idéias expressas em

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forma de poesia. Vemos com isto a tentativa de contemplar o sagrado que perseguia ao longo de sua vida, visto que, ontologicamente a beleza, assim como a unidade, a verdade e a bondade são consideradas transcendentais do ser25. Agostinho não deixou de expressar a idéia de que a beleza é uma das formas da manifestação divina, tanto que em 380, com 26 anos, publicou seu primeiro tratado, entitulado Sobre o Belo e o Conveniente, obra que está desaparecida26, mas que se sabe tratar sobre a especulação filosófica e estética. Uma das questões que importunavam a Agostinho era sobre o vício e a virtude, para a qual veio a elaborar uma resposta a partir de um poema elaborado em sua juventude27, e que culmina na seguinte frase: “não são os pecadores em si, nem a própria miséria que são necessários para a perfeição do universo, mas as almas enquanto almas”28. Esta resposta vem de encontro à crítica que Agostinho faria ao maniqueísmo que pregava a necessidade de um princípio mau para que se pudesse considerar a perfeição do universo. Agostinho, nesta etapa já não conseguia concordar com esta pretensa verdade. Por essas idéias é possível notar que Agostinho já se superava no que diz respeito ao estreito limite da visão maniqueísta, usando da filosofia como instrumento fundamental para a sua libertação através da busca pela verdade do conhecimento. A partir daí, quanto mais Agostinho aprofundava suas reflexões, mais percebia a grande fragilidade do pensamento maniqueísta. Por essa época, um de seus alunos, o discípulo Nébrida fez-lhe uma questão que Agostinho não conseguiu responder: se haviam dois princípios opostos, o do Bem e o do Mal, o que significava a onipotência de Deus? Não poderia Ele combater a massa hostil das trevas? E que mal essas trevas lhe poderiam causar? Se 25

Cfe. SILVA, Marcos Bolda da. Metafísica e Assombro: Curso de Ontologia, São Paulo: Paulus, 1994. 26 Cfe. Nota do tradutor in: CONFISSÕES, 1999, Livro IV, 13, p. 112. 27 “Todas essas coisas te pertencem e são boas, porque foram criadas por Ti, que és bom. Não existe nada nelas que provenha de nós, a não ser o pecado pelo qual, Com desprezo da ordem, nós amamos, em vez de Ti, o que vem de Ti” (AGOSTINHO apud MADUREIRA, 1973, p. 52). 28 AGOSTINHO apud MADUREIRA, 1973, p. 52.

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elas lhe causam algum mal, é porque Ele não é nem incorruptível nem inviolável. Mas se elas não lhe causam mal algum, não há razão para Ele combatê-las. Era realmente impossível a partir dos fundamentos doutrinais do maniqueísmo responder a esta questão sem negar a essência da própria doutrina. Como se não bastasse, Agostinho constatou por si mesmo uma nova dificuldade: por que os maniqueus celebravam solenemente a morte de Manés, fundador do maniqueísmo, ao passo que à Páscoa, festejada mais ou menos na mesma época, não davam a menor importância? Celebrar a morte de Manés e ignorar a morte e ressurreição do Cristo não significaria elevar o discípulo acima do mestre? A princípio os maniqueus responderamlhe que a morte de Manés fora real, ao contrário da do Cristo, cujo corpo não passava de aparência29. Contra-argumentou, porém, Agostinho: se foi impossível ao Verbo de Deus assumir um corpo verdadeiro, como afirmar que o Espírito Santo encarnou na pessoa de Manes? Porventura não se trataria de uma ousadia além de todos os limites do mais vulgar bom senso? Essas e outras questões eram discutidas de forma exaustiva com os seus discípulos, em reuniões públicas. Por essa época, apenas uma razão prendia ainda Agostinho e seus discípulos ao maniqueísmo: a santidade dos assim chamados “eleitos”30, mas essa razão também já estava para ser abalada. Agostinho, embora tivesse se dedicado à pregação da mensagem dos maniqueus, e por mais que tivesse transformado sua vida segundo as regras

29

Essa idéia foi herdada originalmente do docetismo, que também foi condenado pela Igreja católica como heresia, mas que devido ao sincretismo, fez parte da constituição da doutrina maniqueísta. 30 O comentário de MADUREIRA (1973, p. 54) sobre o papel dos “eleitos” e dos “ouvintes” na doutrina maniqueísta, vem reafirmar e complementar o que antes foi apresentado pelos historiadores DANIÉLOU & MARROU sobre a mesma. Segundo MADUREIRA, os “eleitos” constituíam um número reduzido de almas excepcionais entre os maniqueus, que seguiam a regra da perfeição, cuja finalidade era libertar a luz do reino das trevas, através da abstinência sexual e de certos alimentos e bebidas. Os “ouvintes”, seriam os demais seguidores da doutrina, obrigados apenas a obedecer a um catálogo de preceitos morais, como era o caso de Agostinho. A estes, era-lhes prometido renascer um dia no corpo de um “eleito”, caso tivessem praticado boas obras e prestado favores aos “eleitos”.

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maniqueístas de conduta moral, nunca passou de um “ouvinte”. Acontece que ele próprio constatou certa vez que alguns dos assim chamados “eleitos” bebiam vinho, se embriagavam, comiam carne e seduziam as mulheres alheias, o que lhes era proibido segundo a regra maniqueísta. Agostinho denunciou alguns destes, mas terminou por constatar que nada lhes aconteceu, não foram punidos e continuaram a freqüentar as assembléias, gozando de todos os privilégios. De fronte a todas estas contradições, e preservando o intento de encontrar a verdade, Agostinho ia se convencendo cada vez mais da grande fragilidade da doutrina maniqueísta. Havia ainda somente uma esperança para Agostinho: encontrar-se com Fausto, conhecido como o chefe supremo dos maniqueístas na África, o mais sábio dos maniqueus, e através dele, tentar ver elucidadas suas dúvidas para que pudesse continuar acreditando naquela doutrina que há tanto tempo se dedicava. O encontro não foi como o esperado: Agostinho expôs a Fausto todas as dificuldades e contradições que havia encontrado nos ensinamentos maniqueístas, mas Fausto não soube como responder. Entretanto, Agostinho reconheceu a sinceridade de Fausto, que “não ignorava sua ignorância”. E por esse motivo, passou a procurar Fausto com freqüência para discutir todas as suas idéias. Os encontros chegaram ao fim quando Fausto foi desterrado para uma ilha, onde escreveu uma crítica ao Antigo Testamento, que mais tarde, no ano 400, Agostinho viria a refutar. Nesta época Agostinho já contava 29 anos. Embora tivesse bons amigos e discípulos, já não se sentia muito à vontade em Cartago. Percebia seus alunos e queridos amigos irem embora à medida que terminavam os estudos, deixando nele uma sensação de vazio. Embora tivesse sua mulher, seu filho e sua mãe junto com ele, Agostinho já não estava mais contente com a vida que vinha levando. A frustração que teve de ver suas dúvidas elucidadas com Fausto foi-lhe um grande golpe. Já não mantinha o mesmo zelo para com o maniqueísmo, sendo considerado quase um desertor.

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Na esperança de uma renovação em sua vida, resolveu mudar-se para Roma, onde encontraria um campo maior para realizar suas atividades. Havia ainda o boato de que os alunos em Roma eram mais disciplinados, Agostinho já se sentia cansado, muito de seus alunos em Cartago não se empenhavam como ele gostaria. Contava para isto com o apoio de Fausto, que por essa época era bispo de uma igreja maniqueísta naquela cidade. Sua mãe Mônica temia esta atitude do filho. Se antes fora o maniqueísmo que havia afastado Agostinho do cristianismo, agora era Roma que levaria o filho para longe dela. Não vendo como convencer a mãe a deixar-lhe partir, não hesitou em mentir-lhe para não presenciar o seu sofrimento: na hora de embarcar, estando Mônica em sua companhia, disselhe que ia subir ao navio para se despedir de um amigo, e que não era preciso espera-lo, pois demoraria um pouco. Pediu-lhe então que fosse para uma capela não muito distante do porto, onde logo depois iria encontrá-la. Ao invés disso, partiu para Roma, deixando sua mãe chorando e rezando na capela durante toda aquela noite.

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3. VIDA DE SANTO AGOSTINHO DEPOIS DO ENCONTRO COM SANTO AMBRÓSIO

Quando Agostinho chegou a Roma, era fim do ano 383, o maniqueísmo era considerado ilegal. Um decreto do imperador Diocleciano, de 287, condenava os maniqueus à pena capital ou ao trabalho escravo. Em 382, o imperador Teodósio havia promulgado outra lei que punia com a pena de morte os maniqueus. É possível de compreender a razão pela qual os maniqueus eram perseguidos em Roma. Em sua doutrina, não aceitavam a autoridade do imperador, quando muito, privilegiavam os “eleitos” como os grandes responsáveis por levar a termo o cumprimento de sua doutrina, tinham Manés como o fundador, que já havia morrido, e como foi dito anteriormente, Fausto, que era considerado como um chefe supremo do maniqueísmo na África. Mas fora estes, o império que era formados de homens não constituía para eles nenhuma autoridade. Os maniqueus consideravam-se os verdadeiros anunciadores da verdade, não devendo, para eles, ter o Estado influência alguma que pudesse ser contrária à sua doutrina. Para o Império isto não era nada interessante, mas mesmo assim, isto não impedia a existência de muitos “ouvintes” e “eleitos” em Roma, dentre os quais estava um amigo de Agostinho cujo nome não se sabe, com o qual ficou hospedado nesse período. Logo que chegou, Agostinho foi atacado por uma febre que quase o levou à morte. Depois de recuperado, constatou que também em Roma os “eleitos” viviam um ascetismo mais de palavras do que de atos, o que só veio a confirmar a sua decepção perante a doutrina maniqueísta. Aos poucos Agostinho foi conseguindo alguns alunos. Infelizmente, os estudantes romanos tinham o péssimo hábito de não pagarem seus

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professores. A maioria deles assistia às aulas, e no dia do pagamento não compareciam mais. Isso colaborou para que Agostinho ficasse mais desanimado, descrente do maniqueísmo e decepcionado com o fracasso de seus planos. Por essa época, chega a Agostinho a notícia de que em Milão estavam precisando de um professor de retórica, e que se havia feito este pedido ao prefeito de Roma, chamado Símaco. Quando Agostinho se apresentou, Símaco pediu que este fizesse um discurso sobre um tema de improviso. Ficou impressionado com a capacidade retórica de Agostinho, e aprovou de imediato a ida deste para Milão. O prefeito de Roma, Quinto Aurélio Símaco era uma pessoa instruída no universo das letras, era descendente de uma família de membros do senado. Ocupou desde cedo os mais altos postos do Estado e era considerado um protetor dos letrados. Era membro de uma família de senadores, tendo ocupado desde cedo os mais altos cargos no Estado, foi questor, pretor, pontífice e procônsul. No dizer de MADUREIRA: (…) Era contudo pobre de sentimentos e imaginação. Reacionário sem princípios, adotava os costumes antigos mais por afetação e oportunismo do que por convicção. Não compreendia nada do cristianismo, embora, por ambição, continuasse fiel aos césares de seu tempo. Por isso, não hostilizava abertamente os cristãos, mas via com bons olhos os que punham obstáculos ao progresso do cristianismo.31

Ambrósio era parente de Símaco, mas o prefeito pouco simpatizava com ele. Uma das causas dessa antipatia era o fato de Ambrósio ser um dos chefes da Igreja Católica na Itália, enquanto que Símaco, tinha uma certa dificuldade em aceitar o cristianismo. Sem dúvida, o fato de Agostinho ter fama de maniqueu ajudou para que Símaco o enviasse para Milão. Se Agostinho fosse cristão, dificilmente teria a aceitação de Símaco. Sem saber, Símaco estava protegendo àquele que iria mais tarde aliar-se a Ambrósio, e que faria violentas críticas contra as práticas pagãs do império romano.

31

MADUREIRA, 1973, p. 58.

37

Nesta época, Agostinho estava afastado e não acreditava mais no maniqueísmo embora não cresse ainda no cristianismo. Sem haver encontrado solução para as questões que o angustiavam e nem a paz procurada, instalou-se em Milão como professor de retórica no outono de 384. Chegando lá, imediatamente entrou em contato com Ambrósio, que atuava como bispo de Milão. Sua primeira visita foi em caráter oficial. Agostinho simpatizou com ele e, para melhor conhecê-lo, resolveu participar da missa aos domingos, a fim de ouvir os seus sermões.

3.1. Breve Biografia de Santo Ambrósio até o Encontro com Agostinho32 Ambrósio nasceu em Tréveris, no ano de 340. Seu pai que também tinha o nome de Ambrósio e era prefeito da Gália. Quando ainda jovem, o pai de Ambrósio veio a falecer, e sua mãe resolveu mudar-se para Roma, juntamente com seus filhos. Recebeu uma esmerada educação de sua mãe e de sua irmã Marcelina, que mais tarde, foi também declarada santa pela Igreja católica. Aprendeu o grego, destacando-se como bom poeta e orador, além de dedicar-se à advocacia. Com o sucesso obtido em seu trabalho chamou a atenção de Anício Probo e de Símaco, o supracitado prefeito de Roma. Probo era prefeito pretorial da Itália, e as causas que Ambrósio defendera para ele, fez com que Probo nomeasse Ambrósio seu assessor. Mais tarde, o imperador Valentiniano nomeou Ambrósio governador, com residência em Milão. Seu amigo Probo pediu que governasse mais como um bispo do que como um juiz. Ambrósio seguiu o conselho, e por conseguinte, veio a ocupar um dos cargos de maior importância do Império.

32

O conteúdo que aqui utilizamos, referente à vida de Santo Ambrósio, foi elaborado a partir de um texto extraído da internet, escrito em língua espanhola, e que é possível de ser encontrado no endereço: http://www.corazones.org/santos/ambrosio.htm

38

Quando o bispo Auxêncio, adepto do arianismo, que governava a diocese de Milão faleceu em 374, o povo se dividiu em dois partidos, uns queriam um novo bispo fiel ao arianismo, enquanto outros queriam um novo bispo fiel à fé católica. Ambrósio agiu com diplomacia, propondo uma eleição pacífica e sem tumulto. Percebendo sua capacidade de de liderança e organização, o povo, que já tinha conhecimento de seu trabalho aclamou: “Ambrósio bispo!”, aclamaram-no ambos os partidos, tanto o dos arianos como o dos fiéis à fé católica. Mas Ambrósio não pretendia aceitar o cargo. Nem sequer era batizado, embora os bispos tivessem aceito a sua nomeação por aclamação. Ambrósio alegou que “a emoção havia pesado mais que o direito canônico”, e tratou de sair de Milão. O imperador recebeu a notícia do acontecido, mas Ambrósio também havia escrito a ele, pedindo-lhe que o permitisse renunciar. Valentiniano ficou feliz em saber que havia eleito um governador digno de ser aclamado bispo, e mandou que o vigário da província tomasse as medidas necessárias para consagrar Ambrósio. Tratou então de escapar mais uma vez, e hospedou-se na casa de um senador chamado Leôncio. Quando Leôncio ficou sabendo da decisão do imperador, entregou Ambrósio, e este não teve mais como não aceitar. Ambrósio recebeu o batismo, e uma semana depois, em 7 de dezembro de 384, foi sagrado bispo. Contava então com 35 anos de idade. Assim sendo, resolveu cortar os laços com tudo o que o prendia até então. Repartiu todos os seus bens entre os pobres e cedeu à Igreja todas as suas terras e posses. Confiou a seu irmão Sátiro, que também foi mais tarde aclamado santo pela Igreja católica, a administração temporal de sua diocese para que pudesse consagrar-se exclusivamente ao ministério espiritual. Como bispo, denunciou ao imperador os abusos de certos magistrados imperiais. O imperador sempre lhe dava ouvidos e incentivava-o para que aplicasse “os remédios que a lei divina prescreve”. Ambrósio que

39

não tinha ainda uma grande formação teológica, resolveu dedicar-se ao estudo da Bíblia, Origenes e de São Basílio. Ambrósio combateu o arianismo com tanto êxito que erradicou-o quase por completo de Milão. Todos os dias celebrava com o povo, pondo-se sempre à disposição para que os fiéis viessem falar com ele. Entretanto, Agostinho e Ambrósio nunca chegaram a conversar mais intimamente. Para MADUREIRA33, Agostinho nunca revelou a Ambrósio as suas dúvidas nem lhe manifestou os seus mais íntimos problemas. Enquanto que Ambrósio, antes de ser sagrado bispo, fora potentado, magistrado, estadista e, como bispo era considerado um diplomata de corte imperial, Agostinho era somente um intelectual, ainda que brilhante, mas que não conhecia as complicações e segredos da política, como era o caso de Ambrósio. Enquanto que a cultura de Ambrósio era predominantemente jurídica, e sua teologia de inspiração marcadamente grega, a de Agostinho era exclusivamente literária e latina. Enquanto a obra de Ambrósio pende mais para a de um exegeta e moralista, a de Agostinho é a de um notável filósofo e teólogo especulativo, visto que Agostinho conhecia mais a metafísica do que a própria Bíblia. Entretanto, essas diferenças na formação destes homens, não impediram que Ambrósio trouxesse luz para Agostinho com os sermões dominicais. Pode-se perceber com isso que a metanóia de Agostinho não dependeu diretamente do esforço de Ambrósio, o que vem a confirmar que o sujeito da metanóia é o próprio indivíduo, que descobre dentro de si a luz necessária para operar a grande transformação e que o leva a encontrar-se com o que há mais sagrado dentro de si, o Self, para a partir disso, viver autenticamente essa sua descoberta fundamental em vista da plena satisfação de sua existência como ser humano. Além das diferenças de formação entre Agostinho e Ambrósio, havia ainda o fato de Agostinho ter chegado a Milão recomendado por Símaco e

33

MADUREIRA, 1973, p. 59.

40

precedido pela fama de maniqueu convicto, o que pode ter colaborado para manter a reserva de Ambrósio em relação a ele. Por mais que tentasse, não conseguia obter de Ambrósio a atenção desejada. Ambrósio preparava seu sermões a partir do método da leitura orante da Bíblia e também pelas leituras de São Basílio e de Santo Atanásio, tendo Cristo como o centro de suas pregações. Assim sendo, os sermões de Ambrósio eram ditos de forma simples e direta, e conquistavam a todos os ouvintes. Agostinho, num primeiro momento, como bom retórico, prestava mais atenção à forma dos sermões de Ambrósio, mas com o tempo, foi se empolgando com o conteúdo, que ressaltava o amor comovido e apaixonado que é próprio dos cristãos. Nessa época, Ambrósio estava escrevendo sob a forma de sermões a Apologia do Profeta Davi. Agostinho que conhecia muito bem a doutrina maniqueísta, confrontava os ensinamentos de Ambrósio com as interpretações maniqueístas do Antigo Testamento. Enquanto que os maniqueus menosprezavam os patriarcas e os reis do Antigo Testamento e diziam em relação a Davi: “Como reconhecer nesse adúltero, nesse homicida, o anunciador, a imagem e mesmo um dos antepassados do Cristo?”, Ambrósio anunciava em seus sermões: “O que há de admirável, de cristão e santo em Davi, é precisamente seu arrependimento e expiação. Deus permite muitas vezes que os melhores caiam, pois levantam-se maiores depois da queda e constituem assim exemplo poderoso para os medíocres. Não poucos monarcas foram adúlteros e homicidas como Davi, mas quantos se arrependeram? Quantos se curvaram humildemente {as advertências dos sacerdotes, quantos confessaram publicamente suas culpas e procuraram castigar-se com penitências voluntárias e apagar com obras de misericórdia as manchas do pecado? Pedro também pecou, e mais gravemente talvez, pois renegou seu Mestre e seu Deus. Entretanto, bastou-lhe uma palavra de amor para obter o perdão de Jesus. Não devia também ser perdoado o grande rei poeta que todas as noites alagava sua cama de pranto e comia seu pão misturado com cinza e bebia seu vinho com lágrimas de remorso?”34

34

AMBRÓSIO apud MADUREIRA, 1973, p. 61-2.

41

Havia ainda uma citação do apóstolo Paulo que muito impressionava Agostinho, e que era constantemente repetida por Ambrósio em seus sermões: “A letra mata, mas o espírito vivifica”35, esta frase, bem como as comparações que Agostinho fazia entre a doutrina maniqueísta e as pregações de Ambrósio, findaram por provocar em Agostinho uma nova postura perante o cristianismo. Agostinho percebia agora o quanto havia deixado de ganhar ao ignorar os textos bíblicos e o quanto se deixara influenciar por falsos preconceitos em relação à doutrina dos cristãos. Impressionava-o também a franqueza e a lealdade das pessoas com as quais convivia nas celebrações, e que reconheciam e aceitavam em sua fé, os mistérios revelados pela Bíblia. Enquanto isso lembrava que os maniqueus a tudo queriam impor suas

próprias

opiniões,

sem

se

preocuparem

em

fundamentá-las,

manifestando-as como a expressão máxima da verdade. Percebendo isso, o próprio Agostinho agora assim se expressava: “Eu ainda não tinha atingido a verdade, mas já havia fugido do erro”36. Nesta etapa, Mônica chegava a Milão carregando consigo a esperança de ver Agostinho como cristão ainda antes de morrer. Estando ali, continuou com suas práticas religiosas, e assistia junto do filho aos sermões de Ambrósio. Ambrósio por sua vez, louvava a piedade de Mônica em frente à Agostinho, mas isso ainda não bastava para convencê-lo. Dizia Agostinho: “Eu queria ter tanta certeza no que diz respeito às coisas invisíveis, como de que 7 e 3 são 10”37. Em meio a tantas hesitações e conflitos de pensamentos, Agostinho tomou a iniciativa de tornar-se catecúmeno na Igreja católica. Contava 30 anos quando se deu isto, ao seu lado estavam sua mãe, sua mulher, seu filho, seus amigos Alípio e Nébrida, e o seu benfeitor Romaniano, além dos novos amigos que havia conquistado em Milão.

35 36

2 Cor 3, 6. CONFISSÕES, 1999, Livro VI, p. 146.

42

Pode-se notar o grande conflito interno que Agostinho travava consigo mesmo nesse período, no seguinte discurso proferido na ocasião de haver se deparado com um homem bêbado na rua:

Vede como esse mendigo é mais feliz do que nós. Nós, com as torturas do pensamento, aspiramos à felicidade que ele, por meio de alguma moeda que mendiga e graças a alguns copos de vinho, a possui completamente, como jamais a possuiremos. Certo, sua alegria não é a verdadeira alegria; mas a felicidade que tornamos a meta de tanto labor é mais enganosa ainda. Com efeito, que vemos em nós? Sua alegria e minha angústia, sua tranqüilidade e minha inquietação. Se me propusessem trocar-me por ele, sem dúvida recusaria, pois prefiro ser eu mesmo, com meus próprios temores e tormentos. Mas teria ou não teria eu razão? Quem me assegura que sou eu que estou com a verdade? Sou melhor do que ele por causa de minha ciência? O saber, porém, não me dá a alegria que lhe dá o vinho. E para que me serve esse saber? Porventura, empreguei-o para instruir os homens e torná-los melhores? Não, eu o emprego para agradar aos poderosos e às multidões, visando apenas ao dinheiro e às lisonjas. E mesmo agora, não vou acaso desempenhar meu papel de adulador público? Convém, dir-me-eis vós, considerar a causa de nossa alegria. Esse bêbado encontra a sua no vinho; a minha, eu a procuro na glória, causa tida como a mais nobre. Mas se a alegria do mendigo não é a verdadeira alegria, a glória a que aspiro não é também a verdadeira glória. Ele curtirá essa mesma noite o seu vinho; amanhã despertará e livre erguerá a cabeça. Quanto a mim, ao contrário, deito-me ébrio de ambição – e ébrio me levantarei de uma embriaguez imbecil que não me traz nem mesmo a compensação do riso. Por isso, repito, esse velho embriagado é mais feliz do que eu. E, talvez, seja também moralmente superior a mim, pois ganhou o seu vinho desejando ao próximo um bom dia e muitas venturas, ao passo que eu espero obter o entusiasmo de uma glória vã proferindo mentiras.38

Eis uma reflexão típica de alguém que está operando a metanóia. Agostinho expressa aqui que tomou consciência de sua condição, do trabalho pelo qual até então se havia empenhando e que não lhe deu a devida satisfação, trabalho com o qual buscava a glória, mas só encontrou desilusão. Ao deparar-se com o mendigo, pode-se perceber que Agostinho sentiu-se inferiorizado perante este. Para Agostinho, o mendigo era mais

37

Idem, p. 150. AGOSTINHO apud MADUREIRA, 1973, p. 63-4 e CONFISSÕES, 1999, Livro VI, p. 1534. Obs.: optei aqui pela citação de MADUREIRA uma vez que a tradução dessa passagem me parece de maior clareza para a compreensão do leitor. 38

43

feliz do que ele, que se degladiava consigo mesmo em busca da felicidade, mas não a encontrava. Não conseguia ser como os demais cristãos que, segundo Agostinho, viviam a fé com tanta naturalidade como respiravam. Buscava agir com autenticidade (o que é fundamental para a metanóia), mas como intelectual que era, não conseguia ainda aceitar a fé cristã. Somente com as categorias da razão, não conseguia por mais esforço que fizesse, responder as questões que o atordoavam. Já estava cansado de tentar encontrar fora de si o conhecimento que lhe traria a felicidade. Era chegado o momento de Agostinho encontrar-se com o Self, mas para isso teria ainda de descobrir, assim como o arquétipo do peregrino que subiu a montanha para buscar a sabedoria, que a luz, a verdade procurada, a grande resposta para a sua inquietação, estava dentro de si. Nesta fase, muitas propostas foram feitas a Agostinho, que enfrentava sérios problemas econômicos. Por necessidade, precisava trabalhar, explorar o próprio talento, continuar com a escola, servir àqueles que poderiam melhorar sua situação, mas a reflexão sobre o sentido de sua própria existência o levaria a tentar outras possibilidades. Pensou então em fundar com seus amigos uma espécie de comunidade filosófica leiga, onde poderia consagrar-se inteiramente ao estudo e à contemplação, para isto cada membro contribuiria com seus bens pessoais, e tudo seria da comunidade. Seus amigos e inclusive seu benfeitor estavam dispostos a financiar o projeto, mas Agostinho, pensando no bem das mulheres que não estariam dispostas e nem suportariam o silêncio de uma vida de monges-filósofos, resolveu desistir da idéia. Devido à insistência de Mônica, Agostinho voltou a pensar no casamento. Seu amigo Alípio discutia com Agostinho tentando persuadi-lo a não realizar este intento, para que pudessem se dedicar integralmente à pesquisa da sabedoria. Mas Agostinho sabia muito bem a diferença de um verdadeiro matrimônio e dos prazeres rápidos e furtivos a que ele e Alípio se haviam entregado anteriormente. Agostinho não via como impedimento e

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nem mesmo empecilho ao seu projeto de vida, o convívio com uma companheira de todas as horas. Entretanto,

Mônica

insistia

para

que

Agostinho

se

casasse

legitimamente, mas não achava conveniente que isto se desse junto àquela com a qual convivia há mais de dez anos. Para os padrões da época, a mulher com que Agostinho convivia pertencia a uma classe inferior. Além disso, seus amigos achavam que ele precisava de uma mulher mais rica, que pudesse aliviá-lo das despesas domésticas. Constata-se aqui um dos tristes aspectos da sombra coletiva da época. Era impensável que um intelectual de renome como Agostinho, que convivia com as mais altas personalidades e freqüentava as casas dos nobres, se unisse legalmente com uma mulher de baixa condição. Mônica talvez até não tivesse partilhado deste preconceito devido à sua formação católica, mas achava conveniente para a conversão do filho que este se casasse com uma mulher cristã. A própria Igreja não fazia objeções, era costume que um homem deixasse sua concubina a fim de casar-se com uma mulher que lhe servisse de esposa. Mônica arranjou-lhe então uma esposa que pensava ser conveniente, mas Agostinho teria que esperar pelo menos dois anos para poder casar-se com ela, pois a jovem contava apenas 12 anos, e pelas leis da época, o casamento só era permitido a partir dos 14. Além disso, os pais da moça impuseram como condição do casamento, o afastamento da outra mulher. Isto foi decisivo para que Agostinho cortasse os laços de convívio entre ele e aquela com a qual havia convivido até então. Em meio a um grande sofrimento, Agostinho teve de concordar em expulsá-la de casa. Sabe-se que esta regressou à África, e fez voto de jamais conhecer outro homem39. Mas Agostinho não suportava a abstenção sexual. Não conseguia viver sem uma companhia feminina. Levou então para casa outra amante

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para auxiliá-lo a suportar a solidão. Conta-se pelo que descreve MADUREIRA40, quatro mulheres na vida de Agostinho, duas africanas e duas milanesas, sucessivamente: a mãe e a primeira amante, a segunda amante e a noiva, a qual não viria a desposar.

Enquanto isso, Agostinho seguia seus estudos. Travou contato com um filósofo de Milão cujo nome não se sabe, mas que emprestou para ele alguns livros de autores neoplatônicos que haviam sido traduzidos para o latim. A partir daí, Agostinho permaneceu sempre um filósofo de inspiração neoplatônica. Isso levou-o a responder a alguns problemas de ordem intelectual com que há muito se debatia. Com o conhecimento de Plotino, descobriu Deus como unidade, como espírito puro e perfeição infinita, descobriu também com Plotino que a verdade absoluta poderia ser atingida pela concentração nas realidades interiores

e

espirituais,

embora

os

próprios

discípulos

de

Plotino

considerassem essa idéia como impossível. A partir da idéia de perfeição divina, aprendida da escola platônica com Plotino, Agostinho deu solução ao problema do mal que há muito o importunava: o mal não poderia ser uma substância conforme pensavam os maniqueus, mas uma privação do bem Além do mais, o mal estaria na relação entre as coisas, e não nas coisas em si mesmas. Agostinho começou a perceber no neoplatonismo certas verdades que estavam implícitas no cristianismo. Este conhecimento levou-o a dissipar os preconceitos intelectuais em relação às idéias cristãs e a reiniciar novamente o estudo da Bíblia.

39

O escritor Jostein Gaarder publicou uma suposta carta na qual a concubina de Agostinho conta a sua versão da história. Ver GAARDER, Jostein. Vita Brevis – A Carta de Flora Emília para Aurélio Agostinho. São Paulo: Cia das Letras, 1996. 40 MADUREIRA, 1973, p. 67.

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Com a leitura das cartas de Paulo, Agostinho ficou encantado pelo seu conteúdo. Encontrou nas palavras do apóstolo a confirmação das verdades que havia recentemente descoberto com o neoplatonismo, e também as respostas que complementavam as verdades recentemente descobertas. Ficou maravilhado. Com esta nova visão a partir da filosofia grega, identificou a figura de Jesus com a do Deus que se fez homem, o Verbo que se fez carne, encontrando através dessa nova leitura da Bíblia, as respostas às suas inquietações intelectuais e o conforto que era necessário ao seu coração. No dizer de MADUREIRA: Imediatamente Agostinho se transforma. Dispõe-se a abrir mão, a despojar-se de si mesmo, a desnudar-se até as mais última camada de si mesmo, dispõe-se a ir ao extremo de negar sua personalidade exterior, a converter-se a revirar-se de dentro para fora, a arrancar a máscara da sabedoria que o conduzira à repetição de perguntas sem respostas, ao impasse de uma inteligência que pretendia tudo ver sem antes ver a si mesma.41

De acordo com a Psicologia Analítica, podemos compreender esse comentário de MADUREIRA como a expressão de um momento crucial na vida de Agostinho: o desencadear da grande metanóia. A transformação de que fala MADUREIRA pode ser entendida como mais uma etapa, onde Agostinho segue fazendo a re-elaboração da alquimia interna que o levaria a descoberta do si-mesmo. O restante do comentário pode ser entendido como o desencadear do desprendimento da persona, onde Agostinho principia o desejo de abandonar o “homem velho” a fim de tornar-se o “homem novo”, eis o processo da grande metanóia. Corria o ano de 386 quando se deu início A GRANDE METANÓIA da vida de Agostinho. Contava ele então com 32 para 33 anos. Por essa época o imperador promulgou uma lei que permitia a liberdade de culto aos arianos, punindo com morte aos que desrespeitassem 41

MADUREIRA, 1973, p. 71.

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essa lei. Ambrósio que era bispo em Milão, percebeu que essa medida visava-o de modo particular, uma vez que era um dos principais responsáveis pelo combate ao arianismo. Ambrósio trancou-se juntamente com os fiéis na catedral, onde por algumas semanas exortou o povo à resistência, até o momento em que o imperador mandou levantar o cerco. Esse acontecimento impressionou Agostinho, que percebia nas lutas e triunfos da Igreja, o sinal de um chamado de Deus para si. Foi ter com Simpliciano, um padre romano que era considerado um dos mais sábios mestres do catecismo cristão. Agostinho procurara-o, a princípio, para conversar sobre os evangelhos e sobre o casamento. Acabou por confessar a Simpliciano sua história de vida, bem como as suas transgressões morais que, por influência da doutrina cristã conforme era entendida até então, acreditava ser os seus pecados. No decorrer da conversa Simpliciano alegrou-se pelo fato de Agostinho ter tomado conhecimento das obras dos neoplatônicos, e aproveitou para falar-lhe do homem que as traduziu para o latim, o qual havia conhecido pessoalmente. Assim como Agostinho, Mário Vitorino era africano, tendo emigrado para Roma em 340 em busca de glória. Aos poucos, foi destacando-se como o melhor mestre da arte da oratória. Antes de se converter, era um pagão confesso que ridicularizava o cristianismo. No intuito de combater os cristãos com suas próprias armas, decidiu estudar as escrituras. Como era conhecedor das obras dos neoplatônicos, assim como Agostinho ficou encantado com as escrituras e acabou por converter-se

ao cristianismo.

Mário Vitorino veio então procurar Simpliciano, a fim de contar-lhe sobre sua conversão. Simpliciano, não acreditando nesta súbita conversão provocou-lhe: “só acreditarei que és cristão quando eu te vir dentro de uma igreja” ao que Vitorino questionou: “são então as paredes que fazem os cristãos?”. Por fim, Simpliciano, convidado por ele, acompanhou-o até a

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Igreja para que assistir ao seu batismo. Desse dia em diante, Vitorino voltou seu talento para a defesa e a explicação da fé que antes tentava demolir. Agostinho ficou profundamente impressionado com a história de Mário Vitorino, tanto que afirma nas CONFISSÕES ter sentido “o veemente desejo de imita-lo”. Havia, de fato, bastante semelhança em suas histórias de vida: ambos eram professores de retórica, africanos, buscavam a glória e foram iniciados no cristianismo através da leitura dos neoplatônicos. Para Agostinho, faltava somente o batismo que, no princípio da adolescência já havia desejado receber, mas que agora, demorava em decidir-se pelo motivo forte de não sentir-se ainda pronto para guardar a castidade. Um dia recebeu a visita de Ponticiano, um membro da corte imperial que era compatriota de Agostinho. Ponticiano ao verificar os livros de Agostinho, impressionou-se de encontrar as cartas de Paulo entre eles. Agostinho confirmou o seu interesse, ao que Ponticiano, como cristão que era, muito se alegrou. Resolveu então contar a Agostinho sobre a vida de Antão, o grande, um anacoreta egípcio falecido em 356. Antão havia sido um homem muito rico que veio a distribuir todos os seus bens aos pobres, e partiu só, a fim de levar uma vida de penitência no deserto. Durante dez anos, Antão empenhou-se em superar as tentações que o acometiam, e veio a vence-las através dos rigorosos hábitos a que se impunha: dormia numa esteira ou no chão, alimentava-se exclusivamente de pão e água e por vezes ficava até quatro dias em jejum. Quando ficou sabendo que os cristãos estavam sendo perseguidos, voltou para Alexandria a fim de os encorajar. Antão que havia permanecido 70 anos no deserto, era um exemplo de vida totalmente oposto ao de Agostinho. Nunca havia freqüentado uma escola e desprezava tanto a literatura como a filosofia. Afirmava: “meu livro é a natureza das coisas criadas por Deus. A natureza, quando eu quero, abre para mim os livros divinos”42.

42

MADUREIRA, 1973, p. 75.

49

A história de Antão foi para Agostinho um exemplo de era possível a superação das tentações que Agostinho buscava vencer. Não satisfeito, Ponticiano contou ainda para Agostinho que, certa feita, quando fazia um passeio com três companheiros membros da corte, dois desses entraram na cabana de um eremita, onde encontraram um livro sobre a vida de Antão. Resolveram então, após a leitura, fazerem-se eremitas. Ponticiano a princípio ficou muito impressionado com isto, pois além de estes contarem com a mais alta estima do imperador, contavam com altos cargos no império e estavam às vésperas de seus casamentos. As duas noivas destes seus amigos, por sua vez, ao tomarem conhecimento do ocorrido, resolveram tornar-se freiras em um convento. Após ouvir estas histórias, Agostinho sentiu-se ainda mais motivado a pedir o batismo, uma vez que estas histórias inspiravam nele a autoconfiança de que seria possível viver a castidade. Agostinho resolveu então procurar seu amigo Alípio, a fim de conversarem sobre o propósito da castidade. Enquanto pensava sobre a conversa que teriam, Agostinho foi tomado por uma grande reflexão consigo mesmo acerca deste tema. É emocionante esse episódio onde o grande intelectual

defronta-se

consigo

mesmo

num

desejo

extremo

de

renascimento. Conforme nos expressa MADUREIRA: (…) Com o [grifo nosso] coração mergulhado em pranto, fora de si, ouviu a voz de uma criança que lhe dizia: “Toma e lê, toma e lê”. Levantou-se de um salto e agarrou o livro que a criança lhe oferecia. Abriu-o ao acaso e esbarrou com estas palavras da Carta de São Paulo aos Romanos: (sic) “Andemos honestamente como de dia: não à cata de gulodices nem de bebedeiras, não em desonestidade e dissolução, não em lutas e invejas. Revesti-vos, porém, do Senhor Jesus Cristo, e não deis importância à carne e às suas concupiscências”. (…) Iluminou-se o coração de Agostinho, dissipou-se a angústia, acalmaram-se os tormentos, extirparam-se as dúvidas. A luta chegava ao fim. Enfim, sentia-se livre – nada mais agora o separaria do Cristo.43

43

Idem, p. 76.

50

Agostinho partiu então imediatamente à procura de Alípio, levando-lhe a carta de Paulo, a fim de que o amigo visse com seus próprios olhos as palavras que o iluminaram. Alípio, ao tomar o livro, deparou-se ainda com a continuação do trecho que lhe mostrara Agostinho, em que dizia: “Auxiliai aquele que ainda é fraco na fé”. Resolveu então seguir o exemplo de Agostinho. Após, foi correndo ao encontro de Mônica para contar-lhe a novidade. Mônica não cabia em si de tanto contentamento: o filho por quem ela havia rezado e chorado durante tantos anos voltava a seus braços a fim compartilhar a mesma fé. O grande sonho de sua tornara-se realidade.

3.2.

A Metanóia Para JUNG44, o termo metanóia é proveniente do grego, onde meta =

mudança e noien = pensar, mente. Assim sendo, podemos entender a metanóia como uma mudança de mentalidade, de postura perante a vida. Entendemos ainda a metanóia, a partir do que Jung nos apresenta, como uma mudança radical de pensamento que nos leva a uma transformação no modo de viver e interpretar a vida, um viver para a verdadeira liberdade que conduz à felicidade e à satisfação da própria existência. JUNG recorre à tradição gnóstica para dar ao termo uma definição mais exata, e nos chama a atenção para o fato de que o termo foi interpretado pela tradição cristã, devido à influência judaica, como “arrependimento dos pecados”, tanto que a Vulgata traduziu a expressão grega dos Atos dos Apóstolos “pantas pantachon metanoien” por “poenitentiam agere”, que significa fazer penitência. Entretanto, se usarmos a tradição grega e a língua original na qual foi escrita o texto dos Atos dos Apóstolos, poderemos perceber que o pecado do qual se deve fazer

51

penitência é evidentemente o pecado da ignorância, da inconsciência “agnoia”. Para que possamos melhor compreender a expressão, é preciso ter clara a diferença entre a forma de compreensão da tradição grega e a da tradição judaica. Quando o apóstolo Paulo se encontrava entre os atenienses, chamou-lhes a atenção para que lembrassem que pertenciam à linhagem divina.45 Para os gregos, pertencer à linhagem divina era relembrar que descendiam dos deuses segundo a mitologia que lhes era conhecida. Assim sendo, pode-se seguramente afirmar que a compreensão dos gregos quando Paulo falou sobre a metanóia, foi a de que era preciso voltar ao tempo forte, o tempo da criação, pois como descendentes da linhagem divina, tinham dentro de si a centelha divina – o que mais tarde JUNG viria a chamar de Self –, e se deixassem fluir essa verdadeira essência sagrada que habita o interior de cada um, estariam de acordo com o Deus verdadeiro, mas até então desconhecido, que Paulo veio lhes anunciar 46. Dessa forma, podemos entender a metanóia como a permissão da mais pura manifestação do Self, da centelha divina que é parte imanente em cada um de nós. A grande tomada de consciência de si próprio. É a fidelidade à terra de que falava Nietzsche47, a fidelidade ao estado original do qual somos provenientes, a linhagem divina da qual todos fazemos parte. Eis aqui um dado fundamental para a efetivação da metanóia: enquanto ouvia os discursos de Ambrósio, Agostinho não conseguia fazer com que as palavras deste criassem raízes em seu coração e lhe proporcionassem uma nova postura perante a vida. Foi somente quando por si só veio a confrontar os ensinamentos cristãos com os ensinamentos neoplatônicos, aos quais havia aderido com toda a sua integridade, que a doutrina cristã começou a apresentar-lhe um sentido que o pudesse satisfazer.

44

JUNG, AION: Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo, 1990, p. 182. At 17, 29. 46 At 17, 23. 45

52

Não bastava saber as verdades necessárias, pois se assim fosse, os ensinamentos de sua mãe, a leitura que o próprio Agostinho tentou fazer da Bíblia e as brilhantes pregações de Ambrósio certamente teriam levado a termo seus efeitos. Isto confirma a idéia de que a metanóia provém de uma descoberta interior, que somente a própria pessoa pode encontrar a partir de si mesma. Quando esta se deixa iluminar pela luz que carrega consigo e que habita dentro de si, é que as idéias, os valores, as crenças e as doutrinas religiosas apregoadas pela tradição têm o seu verdadeiro efeito. À medida que a pessoa os assume como parte integrante de si mesma, do seu arcabouço inconsciente, então é que esses conteúdos despertam a verdadeira satisfação que leva o indivíduo a viver com a plena alegria que é própria daqueles fizeram a grande metanóia, desencadearam o processo de individuação, e assim sendo, puderam se considerar felizes. Até então, todas as descobertas de Agostinho faziam parte da busca que o levaria ao encontro de si. A partir da metanóia, Agostinho pôde privilegiar àquilo que realmente fazia sentido para a sua vida: a vivência que era a expressão autêntica do si-mesmo inflamado pelo Self, e o cristianismo, religião na qual se encontrou e que possibilitou que pudesse melhor realizar a expressão autêntica do seu si-mesmo, resultando na sua enorme produção intelectual e de vida, que deu fundamentação filosófica às idéias cristãs e que serviu de base para o desenvolvimento da Teologia, deixando uma herança na qual se fundamenta até hoje o pensamento eclesial, além do seu testemunho de vida, que muito ajudou às pessoas de sua época, e àquelas que até hoje, através do conhecimento de sua vida e de suas obras, despertam dentro de si o desejo de encontrar a felicidade alcançada por Agostinho através da metanóia. Agostinho percebeu que as solicitações às práticas e vivências cristãs, como a da caridade e a do amor ao próximo estavam permeadas de uma sólida e inabalável postura filosófica, com a qual veio a identificar-se

47

Nietzsche in: OS PENSADORES, 1999, p. xx.

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completamente, preenchendo assim o grande vazio dentro de si que há muito tempo procurava suprir. Com o desencadear da grande metanóia, Agostinho se transforma. Dispõe-se a libertar-se de tudo o que não correspondia à verdadeira expressão do si-mesmo; liberta-se da máscara da persona, assumindo a sombra como parte integrante de sua vida e de sua história, sem a qual não seria o que era agora, sem a qual não teria a maturidade suficiente para operar a grande metanóia, e a partir da qual tirou lições importantes que foram anunciadas no decorrer da sua vida através das suas obras e dos seus sermões.

3.3. O Processo de Individuação Não se pode deixar de dizer ainda que é a partir da metanóia que desencadeia-se o processo de individuação48. Não há como desencadear esse processo que, aliás, é a grande meta da teoria junguiana, sem que antes o indivíduo tenha se permitido viver e manifestar o Self de forma autêntica, tornando-se a expressão verdadeira do si-mesmo, o que se dá com a efetivação da grande metanóia. Se com a metanóia, o indivíduo encontra-se com o Self e adquire a plena consciência do si-mesmo, com a individuação ocorre a plena realização da existência como ser-no-mundo. Pode-se dizer que sua inscrição como catecúmeno foi o primeiro passo dado a partir da metanóia. Quando criança, havia sido inscrito no catecumenato por sua mãe. Desta vez, porém, era o próprio Agostinho que com maturidade e autonomia, tomava a iniciativa de seguir um caminho que havia evitado desde a pré-adolescência. Embasado pela sua história de vida e pelos novos conhecimentos adquiridos, via com novos olhos os conteúdos que havia aprendido em sua infância.

54

3.4. Evitação do Incesto Sobre o dado inconsciente que levou Agostinho a rejeitar o cristianismo desde a pré-adolescência até a metanóia, ousamos levantar aqui a hipótese de que esta rejeição tenha sido causada devido ao incesto inconsciente entre ele e sua mãe49. O escritor JOSTEIN GAARDER50 em seu romance VITA BREVIS51, nos apresenta a carta de Flora Emília52 para Aurélio Agostinho, na qual Flora faz pertinentes acusações sobre a relação edípica entre Agostinho e sua mãe, o que vem a estar de acordo com a nossa observação sobre essa relação incestuosa inconsciente entre mãe e filho. O incesto é um dado presente no Inconsciente Coletivo da humanidade. Remete-nos à época tribal, quando as tribos mantinham relações endogâmicas a fim de perpetuar a subsistência do grupo. A própria mitologia grega é repleta de relações incestuosas53. Como os mitos e as práticas da época tribal se fazem presentes em nosso Inconsciente Coletivo, o incesto pode bem ser considerado um arquétipo, que no caso de Agostinho, conforme constatamos, manifestou-se para com sua mãe. Agostinho fala muito do grande amor que sua mãe nutria por ele. Desde criança, Mônica percebia a grande piedade de Agostinho. Percebia o fervor nas orações que este fazia, até mesmo presenciou a cura de um

48

JUNG, O Eu e o Inconsciente, 1988, p. 49. Cfe. Entrevistas com orientador deste trabalho em março e abril de 2004. 50 GAARDER, Vita Brevis – A Carta de Flora Emília para Aurélio Agostinho, 1996, p. 93. 51 Embora não exista ainda a certeza sobre a autenticidade histórica desta carta conforme nos expressa GAARDER, ousamos aqui utilizá-la como uma referência que vem a concordar com o que estamos apresentando. Cabe lembrar que o próprio Jung utilizou-se não poucas vezes de textos literários como o Fausto de GOETHE (cfe. JUNG, O Eu e o Inconsciente, 1988, p. 15; 41-2; 138-9) para melhor explicitar as suas idéias. 52 Segundo GAARDER, Flora Emília seria o nome da concubina de Agostinho, mãe de seu filho Adeodato, que foi por influência de Mônica e com permissão de Agostinho, expulsa de suas vidas por ocasião do desejo de Mônica, de que Agostinho se casasse com uma mulher cristã a fim de facilitar a sua conversão ao cristianismo. 53 Cfe. MÉNARD, René. Mitologia grego-romana. São Paulo: Opus, 1991. 3v. Trad.: Aldo Della Nina. 49

55

episódio de asma54 mediante às fervorosas orações de Agostinho quando menino. Quando da ocasião deste episódio, o próprio Agostinho afirma: Vistes, Senhor, que, sendo ainda criança, sobrevindo-me certo dia uma febre alta, motivada numa opressão do estômago, bati às portas da morte. Sabeis, meu Deus, pois já então por mim vigiáveis, com que ardor e fé pedi à piedade de minha mãe e de nossa mãe comum – a vossa Igreja – o batismo de Cristo, Deus e Senhor meu. A minha mãe carnal, porque na sua fé e coração puro me gerava com maior solicitude para a vida eterna, perturbada, procurava com pressa iniciar-me e purificar-me nos sacramentos da salvação, confessando-Vos eu, Senhor Jesus, para obter a remissão dos meus pecados. (…) Tinha eu já verdadeira fé, como minha mãe e todos os de casa, exceto meu pai, que não prevaleceu em mim contra os direitos da piedade materna de eu crer em Cristo, no qual ele ainda não acreditava. Minha mãe desejava ardentemente que eu Vos considerasse a Vós, meu Deus, como pai, mais do que [grifo nosso] àquele que ainda não tinha fé. Nisso a ajudáveis a triunfar do marido, a quem servia melhor pelo fato de nisso obedecer às vossas ordens. 55

Conforme podemos perceber no trecho supracitado, Agostinho faz uma associação sincrônica entre a Mãe Igreja e a sua própria mãe, o que vem a confirmar uma hipótese que ousamos apresentar: a de que ele tenha inconscientemente assimilado a ambas como uma só. O fato de Agostinho afirmar ter sua mãe desejado que ele considerasse a Deus como pai mais do que a seu pai biológico, vem a sugerir que Mônica considerasse Agostinho como sendo de sua exclusiva responsabilidade, o que vem a colaborar com a idéia da forte relação edipiana entre ambos. Podemos ainda, pelo que se pode constatar – não só pela supramencionada citação, mas por toda a história de Mônica – que, de acordo com a Psicologia Analítica, Mônica pode ser classificada como sendo uma mulher do tipo Maria, que casa-se para ter filhos, mas dificilmente se apaixona pelo marido. Aqui, cabe acentuarmos a forte relação edipiana entre Agostinho e sua mãe. Pensamos que provavelmente seja essa relação que tenha impedido Agostinho de firmar-se definitivamente com outra mulher, uma vez 54 55

MADUREIRA, 1973, p. 34-5. CONFISSÕES, Livro I, 11, p. 49-50.

56

que mesmo sua companheira de longa data – mãe de seu filho Adeodato, a qual Agostinho afirmou ter amado intensamente – Agostinho consentiu em deixar, devido a insistência de Mônica. Com o advento da pré-adolescência, no aflorar da sexualidade, Agostinho foge do incesto renegando a religião materna. Dessa forma, Agostinho está fazendo a evitação do incesto, pois pela experiência que havia tido na infância, identificou a religião cristã com a figura de sua mãe. Unir-se à religião cristã seria portanto unir-se à própria mãe. Assim sendo, a evitação do incesto seria uma causa inconsciente que levou Agostinho a fugir do cristianismo. Nas CONFISSÕES, são inúmeros os episódios onde Agostinho fala das lágrimas de Mônica por causa de suas atitudes contrárias à religião materna. As freqüentes lágrimas de Mônica que a primeira vista, podem ser interpretadas como a preocupação com a salvação da alma de Agostinho, poderiam ainda ser interpretadas como ocasionadas pelo desejo incestuoso de Mônica pelo filho, que não era correspondido. Foi somente com o desencadear da metanóia, que se tornou possível para Agostinho assumir a religião da mãe. Dessa forma foi possível a Agostinho fazer a transgressão que libertou-o dessa relação edípica, possibilitando que finalmente ele pudesse fazer a entrega total, o que ainda não havia sido possível no seu relacionamento com as mulheres com as quais se havia envolvido até então. Foi, pois, com a metanóia que Agostinho pode fazer a sua entrega total, assumindo a Igreja por ele idealizada como a nova expressão de sua anima, que levou-o a manifestar de forma apaixonada, todo o amor que podemos nele perceber, através do estudo da sua vida e das suas obras.

57

3.5. Mônica e o Arquétipo do Bom Pastor Pelo que percebemos na história de vida de Mônica, ela sempre buscou trazer sua família para a religião herdada de seus pais. Como cristã que era, muito provavelmente tenha assumido em si um arquétipo que pode ser identificado com a parábola do bom pastor56, despertando em si o desejo de trazer para o cristianismo àqueles que ainda não o pertenciam. É interessante notar que Mônica casou-se com um pagão, alguém que ignorava completamente o cristianismo, empenhando-se em convertê-lo. Obteve sucesso, ainda que este tivesse recebido o batismo somente no final de sua própria vida, o que vem a fortalecer a idéia de ter assumido e vivido esse arquétipo. Com os filhos, isto também se deu. Mas pelo que se constata a partir da leitura das CONFISSÕES, pode-se dizer que Agostinho acabou sendo “a mais desgarrada das ovelhas”, pelo qual Mônica mais se esforçou em vista de poder realizar o seu intento. Ousamos levantar a partir disso, a hipótese de que Mônica tenha, a partir do seu desejo inconsciente de resgatar as ovelhas perdidas, projetando em Agostinho, a imagem da ovelha perdida da parábola do bom pastor. Assim como “o bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas”57, Mônica lutou com todas as forças durante toda a sua vida para ver Agostinho cristão, e tão logo se deu o batismo, não muito tempo depois, veio a descansar em paz com a satisfação que é própria daqueles que dão-se por satisfeitos e consideram cumprida a sua missão. Dessa forma, podemos dizer que Mônica viveu plenamente este arquétipo, obtendo o resultado por ela desejado.

56

Jo 10, 1-18.

58

3.6. As Relações entre o Ego e o Self Para que ocorra a metanóia e se desencadeie o processo de individuação é indispensável a harmonia entre o Ego e o Self. Entendo aqui o Self de acordo com JUNG como a centelha divina, de onde emana o que há de mais sagrado para a pessoa. O Self é sujeito da totalidade psíquica que independe das condições do espaço e do tempo. Já o Ego é temporal, ou seja, sofre a ação do espaço e do tempo. Pode ser entendido ainda como aquele que sofre a ação da tentativa de manifestação da totalidade psíquica por parte do Self. O Ego é o “portal” da consciência, o sujeito do consciente, essencial para o sentimento de identidade pessoal, sem o qual seríamos esmagados pelas percepções, sentimentos, pensamentos e memórias do dia-a-dia. O Self, o sujeito do inconsciente, que propicia ao Ego a possibilidade de ser. Pode-se dizer que enquanto o Self é o centro da nossa personalidade, o Ego é o centro da nossa vontade, o que permite que lutemos por objetivos conscientes. O Ego e o Self mantêm uma relação que estende-se por toda a vida e perpassa todas as fases, desde a infância até a velhice. Para JUNG, a maneira mais comum de se estar desiquilibrado é colocar a consciência como o centro da personalidade, identificando-se demasiadamente com as experiências e intenções conscientes.

3.7. A Idéia de Deus Em Tipos Psicológicos, JUNG, partindo da grande crítica de KANT58, apresenta de uma forma brilhante o significado psicológico de Deus para a

57

Jo 10, 11a KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura in: OS PENSADORES. 2.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1999. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. 58

59

vida íntima de cada um.

(…) O dado chamado “Deus” e designado pela fórmula “bem supremo” significa, como o próprio termo o diz, o valor psicológico supremo. Em outras palavras, é um conceito ao qual se atribui, ou realmente possui, a maior e mais geral importância na determinação de nossos pensamentos e ações. Na linguagem da psicologia analítica, o conceito de Deus se confunde com o complexo representativo que, segundo a definição anterior, concentra em sai a maior soma de libido (energia psíquica). De acordo com isso, o conceito de Deus real da alma seria completamente diferente nas diversas pessoas, como se verifica na experiência. Mesmo como idéia, Deus não é um ser único e constante, muito menos na realidade. Pois, como se sabe, o valor atuante mais alto da alma humana está localizado bem diversamente. Há pessoas “cujo Deus é a barriga” (Fl 3,19) e para outras ele é o dinheiro, a ciência, o poder, o sexo etc. Toda a psicologia do indivíduo ao menos em seus aspectos essenciais, varia conforme a localização do bem supremo, de sorte que uma teoria psicológica baseada exclusivamente em um instinto fundamental, como poder ou sexo, só pode explicar traços de importância secundária quando aplicada a um indivíduo com outra orientação.59

O próprio Agostinho, quando sacerdote, era muito criticado pelos “feitos desregrados” de sua história de vida, por aqueles que tentavam fazer com que ele perdesse a credibilidade dos fiéis. Agostinho, como brilhante orador que era, e imbuído da verdade divina conquistada através da metanóia, respondeu brilhantemente aos que assim o condenavam: Que nossos adversários digam tudo o que quiserem contra nós. Continuamos a amá-los. É verdade que estive afastado de toda boa obra. Estive mergulhado em erro deplorável. Fui atingido pela loucura. Não nego o meu passado, mas glorifico o Deus que me perdoou... Por que abandonas tua causa para agredir um homem que se converteu a Deus? Por acaso sou a Igreja católica? Sou a herança do Cristo espalhada por toda a Terra? Para mim, basta-me fazer parte dela. Condenas minhas faltas passadas. Mas o que fazes de extraordinário? (…) O que censuras em mim, eu mesmo já condenei. Só espero que venhas a imitar-me e que teu erro se torne o teu passado. Minhas faltas passadas são muito conhecidas, sobretudo aqui nesta cidade. Foi aqui que me entreguei a uma vida desregrada. (…) Por causa do Cristo, reneguei todo o mal que cometi. Quanto às faltas de que me acusam no presente, ninguém pode dizer nada. (…) Deus [grifo nosso] sabe o que trago em mim e conhece os frutos que produzo. Mas não me importo de ser julgado por nenhum tribunal humano. Não me julgo a mim mesmo. Deus me conhece melhor do que eu me conheço a mim mesmo”. 59

JUNG, Tipos Psicológicos, 1991, p. 58.

60

Agostinho, mediante a metanóia, havia compreendido o verdadeiro sentido do cristianismo que tem como princípio o amor, ao invés da Lei 60. JUNG apresenta uma passagem que concorda perfeitamente com esta compreensão agostiniana de Deus: “Esta opinião coincide, de certo modo, com uma concepção tradicional segundo a qual Deus, convertendo o Antigo Testamento (sic) no Novo (sic) se converte do Deus da ira, que era, no Deus do amor”61. É importante notar que no ambiente conturbado em que viveu Agostinho, repleto de seguidores das mais diversas doutrinas, era muito diversa a imagem de Deus que as pessoas faziam. Agostinho expressa no parágrafo supracitado algumas das idéias que seriam parte integrante de um novo modelo de Igreja. Este modelo que Agostinho viria a inaugurar, foi gestado no decorrer de sua própria vida e tomou a sua expressão máxima com obra “A Cidade de Deus”, que veio a servir de fundamento para a organização eclesial no decorrer do período medieval. Não se pode separar a vida de Agostinho de suas obras. Estas são a expressão daquela e isto também se dá com o novo modelo de Igreja por ele criado. Alicerçado na fé e na filosofia platônica, pode-se seguramente dizer que Agostinho fez brotar do mais íntimo de si mesmo, uma Igreja renovada, que comportava as exigências que ele próprio fazia para consigo mesmo, em relação à nova fé assumida. Como intelectual que era, outrora havia se recusado a aceitar uma fé que não fosse baseada em sólidos e bem fundamentados argumentos. Agora, como adepto da nova fé, buscava não só dar-lhe uma fundamentação segura a partir da filosofia platônica, mas também as “razões cuja a própria razão desconhece” para fundamentar a fé cristã. Inaugurava assim um novo modelo de Igreja, que conciliava a experiência numinosa62 com o desejo da busca de novos conhecimentos através de uma sólida

60

Mt 22, 34-40. JUNG, Aion – Estudos sobre o Simbolismo do Si-mesmo, 1976, p. 182. 62 BIRCK, Bruno Odélio. O Sagrado em Rudolf Otto, Porto Alegre: Edipucrs, 1996. 61

61

fundamentação, de modo que o cristianismo pudesse ser vivido e assumido por todos, desde os intelectuais mais exigentes até os iletrados. A partir de sua experiência pessoal de busca e de encontro consigo mesmo, Agostinho elaborou muitos dos fundamentos necessários para embasar a Teologia e livrar o cristianismo das tendenciosas e malintencionadas críticas de muitos de seus contemporâneos, que não viam com bons olhos e possuíam muitos preconceitos para com a religião cristã. Agostinho assumiu em si um ideal de Igreja cristã que seria o modelo de Igreja medieval. Pode-se dizer que assim como Agostinho operou a sua grande metanóia, o próprio Agostinho com sua colaboração para o desenvolvimento da Teologia veio a operar uma pequena metanóia no seio da Igreja católica, o que veio a ter significativa influência na história da Igreja, influências estas que não passam desapercebidas até mesmo nos dias atuais.

62

CONSIDERAÇÕES FINAIS JUNG considerou a metanóia como o ápice do encontro consigo mesmo. O momento de assumir-se como indivíduo na própria totalidade psíquica, e que dá origem a um processo interminável rumo à nossa excelência como seres humanos: a Individuação. O trabalho de JUNG não se ateve apenas aos estudos de casos que ele efetuou e presenciou em seu consultório, foi até as raízes da história da humanidade, numa busca ilimitada pela compreensão dos complexos e mistérios que fazem parte da humanidade, tanto no âmbito individual como no coletivo. Dentro das muitas personalidades estudadas por JUNG, Agostinho se destaca como um grande exemplo de alguém que conseguiu desencadear o processo de individuação. A metanóia é o ponto que precede a esta etapa conforme nos relata a teoria junguiana, e é a partir dela que a pessoa consegue assumir-se de maneira plena como indivíduo. Um dos quesitos do trabalho do analista de orientação junguiana é ajudar as pessoas a desencadearem a própria metanóia, libertando-se das máscaras, assumindo a sombra e concentrando a energia psíquica naquilo que realmente traz realização ao indivíduo: a vivência dos nossos arquétipos, o que é Sagrado e que é próprio de cada um de nós. A partir deste trabalho sobre a metanóia de Santo Agostinho, esperamos que a presente leitura possa ter despertado o interesse pelo estudo da terapia junguiana, que é bastante complexa, mas que pode trazer enormes benefícios tanto para vida de nossos pacientes como para a nossa própria.

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