Timor-Leste: a nação delas

June 5, 2017 | Autor: Teresa Cunha | Categoria: Post-Colonialism, Timor-Leste, Womens Studies
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©Teresa Cunha Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Timor-Leste: a nação delas.

O país independente, a nação contemporânea de Timor-Leste tem como um dos seus mais arreigados princípios constitutivos a memória coletiva das guerras travadas contra os invasores e os ocupantes coloniais. Nesta paisagem sociopolítica, o sangue, o suor e as lágrimas que esse caráter bélico e fundacional implicam, são, quase só, os dos seus heróis viris, dos seus guerreiros incansáveis que levaram a cabo a luta pela libertação nacional. Em todo o caso em Timor-Leste, de uma maneira recorrente e, politicamente esmerada, tornou-se comum exaltarem-se os contributos e o sofrimento das mulheres durante essas guerras sem, contudo, os elevar ao estatuto público da heroicidade nacional. O reconhecimento e os agradecimentos são feitos nos discursos oficiais, os quais são, em boa verdade, apenas uma metonímia de obscurecimento daquilo que foram os seus sacrifícios e a verdadeira dimensão das suas realizações (Cunha 2006, 2010, 2011; Amal, 2007). A nação timorense, em múltiplos sentidos, tem-se servido de dois predicados morais e epistemológicos para se imaginar e se narrar tão moderna quanto as demais: a violência bélica e o sofrimento dos seus heróis másculos e narcisistas que são, quase simetricamente, a imagem invertida das misérias domesticadas e feitos silenciosos das suas mulheres.

Nas últimas décadas, Portugal tem lidado de maneira ambivalente com a sua recente história colonial na qual as guerras de ocupação travadas em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau tiveram uma importância estratégica tanto para a legitimação do regime fascista que as justificou como para a sua queda. O país tem vindo a processar a enorme turbulência societal e identitária deste período recente da sua história com múltiplas ambiguidades: lembrando e esquecendo, analisando mas também mistificando os contextos e as relações sociais e políticas que determinaram esse período traumatizante e definitório de uma nação portuguesa sem império no seu confinamento ibérico. Recorrente, neste período, é que, mais uma vez, a nação que foi e a que se vai sendo re-imaginada é a nação ‘deles’, dos homens das e nas guerras, os que estão mortos, mas também os que ainda estão vivos. Uma nação em que, como na de Timor-Leste, as mulheres são mais faladas do que falam. Este meu trabalho tem como objetivos, por um lado, situar esse período trágico mas também de ressurgimento político para Timor-Leste e, simetricamente, também

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para Portugal, que foi o processo político começado em 1999 e que desembocou na restauração da independência deste país em 2002. Porque a independência política não é absoluta regeneração, começo absoluto, tempo inaugural completo, pretendo mostrar como a ideia de nação libertada se autoconfina deixando de fora as múltiplas vozes que, falando, não estão a ser ouvidas ou levadas a sério. Pretendo sublinhar, ainda, que a onda de solidariedade de 1999 em Portugal permitiu aproximar os desejos de colonizados e colonizadores com o objetivo comum que foi a independência política de Timor-Leste, mas não foi suficiente para abrir um tempo e um discurso pós-colonial, ou seja, um tempo onde as memórias divergentes extravasam e se conjugam em dinâmicas de consenso e dissenso e, se tornam parte, ainda que de forma problemática, da constituição da nação ex-colonizada e daquela que colonizou. Assim, o meu segundo objetivo neste texto é problematizar a agência das subjetividades femininas timorenses trazendo para o centro da minha proposta epistemológica a memória narrada de uma delas tomando-a o contra-conto discursivo que, em língua portuguesa, revela uma outra narração da história das duas nações e onde o encontrão colonial1 começa a ser recontado e reelaborado com a autoridade criada pelo pronunciamento daquelas que até agora têm sido apenas faladas. Este ensaio está estruturado em três partes. A primeira explora esse momento de reencontro traumático entre Portugal e Timor-Leste durante o chamado Setembro negro de 1999, alguns dias depois da consagração da sua autodeterminação sob os auspícios das Nações Unidas. A segunda parte dedico-a a pontuar, muito brevemente, o final da guerra em Timor-Leste e como os tempos de profundas mudanças para o país independente não chegaram para abrir os portais das memórias e fazer fluir, sem a censura do olvido, os discursos, em outros termos, das mulheres. Termino em coautoria com Mina-Be. Usando as comensurabilidades que as nossas línguas portuguesas contêm, contamos através das nossas prolongadas conversas um curto mas significante excerto de todo este trabalho de memória e enunciação imprescindível à nação dela(s) e, pelas mesmas razões, à nação portuguesa.

1- Da ressaca imperial de 1999 ao descentramento que a independência de Timor-Leste exige

Foi sobretudo através da ficção literária que a nação portuguesa se recomeçou a pensar e a dizer-se após a implosão do império e do império sonhado. A reflexividade da escrita tornou possível tocar nas profundas feridas e nas

1 Esta

expressão, ‘encontrão colonial’ é da autoria de Margarida Calafate Ribeiro.

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incontroláveis memórias sobre a Guerra Colonial e sobre o colonialismo secular que a veio a justificar. Essas rememorações tornaram-se textos, histórias que, de uma ou outra maneira, ligavam o passado com o presente significando um e outro. Tornou-se possível dizer e enunciar essa história disputando um espaço material e simbólico tanto aos esquecimentos escolhidos como ao comedimento das suas versões oficiais. As emoções complicadas, contundentes, contraditórias que percorriam o tecido social da nação portuguesa tornaram-se narrativas que foram dando significado às tensões e permitiam sobreviver à ideia de ruína. O recomeço significava ajustar aquela ideia hiperventilada de si e de nação multicontinental à sua condição de perdedora de guerras e colónias na sua irrelevância de periferia na Europa. Essa vida vivida ao longo do encontrão colonial chegava ao torpor das consciências, ainda profundamente marcadas pela convulsão que fez ruir o império, com romances como Os cús de Judas de António Lobo Antunes (1979), ‘Isabel, Isabel, Isabel de Noémia Seixas (1983) e a Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge (1988), entre outros. Os estudos críticos da história colonial, dos quais destaco aqui, a História da Expansão Portuguesa de Francisco Bettencourt e Kirti Chaudhuri (1998 – 2000), foram procurando compreender, aprofundar e elaborar um discurso que devolvesse à sociedade portuguesa uma reflexividade crítica sobre as suas atávicas presunções nacionalistas impregnadas de uma ideia excêntrica de si para poder ser imperial para além do que seria razoável imaginar-se. Na verdade, desde o século XVII com a longa e frutuosa reflexão de Fernão Mendes Pinto da sua Peregrinação (1614)2 passando pelo livro A Nau de Ícaro seguido de Imagem e Miragem da Lusofonia (1999) de Eduardo Lourenço até ao Caderno de memórias Coloniais de Isabela Figueiredo (2010) este trabalho de memória (Cooper; Stoler, 1997; Ally, 2011) tem vindo a percorrer os tempos, os lugares, os acontecimentos e tudo o mais que pode constituirse como elemento imprescindível à subjetivação da nação e à narração de si e não apenas da sua epopeia mais ou menos inflacionada. A complexidade e a violência do colonialismo português fica por compreender se não nos lembrarmos tanto das guerras que travou, como das ruturas profundas que impôs nos espaços e territórios que ocupou, as racionalidades com que se

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Publicado com o seguinte título: Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria , no do Sornau, que vulgarmente se chama Sião, no do Calaminhan, no de Pegù, no de Martavão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhu[m]a noticia. E tambem da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras pessoas... publicado em Lisboa : por Pedro Crasbeeck : a custa de Belchior de Faria Cavaleyro da casa del Rey nosso Senhor, & seu Livreyro.

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encontrou , bem como as alterações materiais, políticas e simbólicas que as independências políticas desses povos, antes seus subjugados, por sua vez lhe estão impondo. Ou seja, se a ideia de nação portuguesa sempre foi problemática e suscitou sempre vozes críticas e contraditórias mas o fim do império foi, sem dúvida, um momento de inigualável impacto nessa consciência deformada mas, ao mesmo tempo refletida num espelho de adoração de si mesma. Para o que me importa neste trabalho, quero sublinhar que foi em 1999 que a ruína desse império se consumou irreversivelmente na tragédia humana que acontecia em Timor-Leste, agora à vista e aos ouvidos de toda a gente nas telas das televisões e dos computadores, nas páginas dos jornais, nas palavras e gritos falados nos telefones satélite que, em língua portuguesa, tornavam a comensurabilidade dos factos e dos seus efeitos poderosamente partilhada. Este caos sobrevinha na sociedade portuguesa de tal forma que foi capaz de produzir ondas de choque que catapultaram as palavras das memórias para o espaço público da rua e das manifestações. Tudo aquilo a que se estava a assistir parecia ser a reedição de mais uma daquelas desgraças, ainda não esquecidas, associadas à guerra colonial e à descolonização que se consumaram com a independência dos cinco países africanos de língua oficial portuguesa. Como lembra Vale de Almeida, foi como que um momento de catarse daquilo que sentimos terem sido as nossas asneiras descolonizadoras e o próprio carácter negligente do colonialismo (Almeida, 2004: 182) Porém, desta vez, o drama era protagonizado por um interposto poder colonial: a Indonésia. Era como se aqueles acontecimentos de 1999, apesar de distantes e perpetrados por outrem, fizessem reaparecer a nossa história recente de guerra colonial, em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, com todos os traumas que ela implicou e implica para a sociedade portuguesa. Pelas imagens e pelas palavras, as televisões, os jornais, as rádios ampliavam esses sentimentos contraditórios de lonjura e proximidade com um povo ao qual a nossa história colonial e a nossa imaginação imperial nos ligava há séculos e, ao mesmo tempo, do qual nos fizemos tão apartados quanto negligentes pela emergência feliz, para nós, da democracia trazida pela Revolução dos Cravos em 1974. Em Setembro de 1999, Timor-Leste foi um misto de apego melancólico e de raiva cidadã possível de serem vividas nessa democracia portuguesa também ela conquistada a uma ditadura. Entre esta melancolia e esta raiva parecia estar também a convicção de que havia de ser possível fazer prevalecer uma opinião pública nacional acordada do sonho do império,

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apesar de uma classe política historicamente descuidada e descomprometida com a sua história colonial3 . A criatividade e a irreverência das iniciativas pela libertação de Timor-Leste4, cobriu o país como uma imensa e insuspeitada onda vinda do Tasi feto5 Índico até à costa Atlântica de Portugal. Em Setembro de 1999, ao contrário do que tinha acontecido até aí6, Timor-Leste colocava nas ruas milhares de pessoas, parava o trânsito e transformava a vida privada e pública das cidadãs e cidadãos em Portugal numa prolongada jornada de luta e na aprendizagem súbita de ‘quase tudo’ sobre aquele lugar tão longínquo. As personagens da ‘libertação’ ou da ‘ocupação’ tornaram-se nomes comuns nas bocas das pessoas; toda a gente conhecia datas e antecedentes; reavivou-se a memória sobre os massacres que vinham a acontecer desde 1975 e tudo pareceria compreender-se e fazer sentido. As expressões dos cartazes, bandeiras, autocolantes, títulos dos jornais e slogans pintados por todo o lado,

denunciavam

uma

sociedade globalmente mobilizada

em

torno de

acontecimentos que se transfiguraram, rapidamente, numa causa. Por um momento, Timor-Leste parecia ter a capacidade de nos devolver a capacidade de voltarmos a ser um centro a reclamar o seu lugar no panorama da política internacional do nosso tempo. Talvez nesses dias densos e intensamente emocionantes do final de 1999 a nossa hiperidentidade tenha vivido um ponto de fuga onde se cruzou a nossa realidade amarga e a nossa utopia (Lourenço: 1983). De fato, parece que o que se passou em Portugal, no seguimento do anúncio dos resultados do Refendo em TimorLeste, foi uma majestosa manifestação contra a guerra e a violência que acontecia naquela pequena ilha do Sudeste Asiático e, ao mesmo tempo, uma consciência emancipatória de si e dos seus fantasmas. De fato, em Setembro de 1999, Portugal reviveu o seu império, mas como se de um negativo de uma fotografia se tratasse. Dessa vez, como uma ressaca imperial (Lourenço, 1999: 191), ou seja, um momento de recuperação da lucidez através da dor e das passagens estreitas de uma consciência ainda perturbada pelos acontecimentos. Os restos, porventura apenas imaginados (Ribeiro, 2004; Anderson, 2005), do nosso ‘império colonial’ tinham-se

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Durante duas décadas, os movimentos portugueses de solidariedade com Timor-Leste e algumas personalidades denunciaram, repetida e publicamente, aquilo a que chamaram o descaso político da sociedade, dos políticos e dos governos portugueses acerca de Timor-Leste. Retomando esse debate, num artigo publicado no Jornal Público, no dia 11 de setembro de 1999, com o título, A terceira traição, José Barata-feyo afirma que nas duas décadas que se seguiram a 1975 o conjunto da classe política portuguesa nunca acreditou sinceramente na causa de Timor. 4 A este propósito consultar a imprensa do último trimestre de 1999. 5 Tasi feto é a expressão em Tétum que designa o mar da costa norte da ilha de Timor-Leste e que significa, literalmente, mar mulher. 6 Com exceção de alguma mobilização social depois de ter sido conhecido o ‘massacre do cemitério de Santa cruz’ que ocorreu em Dili em 1991. Contudo é de notar que esta mobilização foi parcial e pouco consequente em termos políticos.

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desfeito nas guerras em África em pleno século XX e com elas desfez-se também a ‘casa colonial’ e a ilusão de um ‘mundo português’ indiferente à geografia da história e dos continentes. Uma nação nunca passa por uma qualquer guerra sem que ela a fira profundamente. A sociedade fica habitada por essa memória, por essa culpa, por essa violência feita de enormes perdas de sentido. A Portugal aconteceu o mesmo. A Guerra de Libertação para uns e a Guerra Colonial para outros foi, e é, um acontecimento traumaticamente estruturante do nosso passado e presente. Parece e é complexo. Trinta e nove anos depois da queda do regime fascista do Estado Novo, trinta e oito anos após a declaração de independência dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e de Timor-Leste, muitas feridas permanecem por cicatrizar. Os processos de reconciliação são difíceis e precisam de muito tempo, de outro tempo que não apenas o dos tratados internacionais e o dos relógios institucionais. Necessitam de resgatar as diversas memórias, as memórias divergentes, e reconstruir o ambiente propício a um novo encontro expresso nas diversas línguas faladas em português7 em que estamos a dizer e a escrever as nossas histórias que um dia, libertadas das colonialidades 8 (Quijano, 2000) restantes e resistentes, poderão afirmar-se pós-coloniais. Frente a frente com Timor-Leste, vivemos no final desse ano de 1999, um momento de enorme ruído mediático, histórico e emocional, durante o qual, todavia, as mulheres pareceram permanecer caladas junto às crianças em pânico e choro, junto ao mato rasteiro das encostas das montanhas por onde se fugia. A elas foi sendo reservado o plano de fundo das imagens como se fossem meros sublinhados da tragédia de um povo. E, assim, elas foram ficando para lá da orla dos fatos políticos, ausentes das negociações e das declarações públicas. Apesar de toda a visibilidade acontecida e da aclamada ressurreição de Timor-Leste como povo e como nação com que reaprendemos o fim do nosso império, as suas mulheres ficaram na nossa memória coletiva como vítimas, como sofredoras, veneradas talvez, mas sem história e sem voz própria. Por isso, volto ao início do meu argumento afirmando que não basta à nação timorense alimentar os seus dois predicados morais e epistemológicos fundacionais: a violência bélica e o sofrimento dos seus heróis másculos e narcisistas. O resgate substantivo da sua plena independência tem que contar com muitas outras

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Expressão de José Saramago. Aníbal Quijano define colonialidade como aquilo que permanece nas sociedade ex-colonizadas e que se constitui como uma racionalidade eurocêntrica e capitalista hegemónica e único modo legítimo de produção de conhecimento e configuração das relações sociais. Quijano, Aníbal (2000), ‘Colonialidade del poder, eurocentrismo y América Latina’ in Eduardo Langer (Org.) , la colonialidad del saber: eurocentrismo y ciências sociales. Buenos Aires: CLACSO. 8

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memórias feitas de palavras que estão para ser alinhadas e narradas de formas diferentes, com outros termos e prioridades mas, nem por isso, menos valorosas e intimidantes para quem pretende, esquecer o poema9.

Hai Feto Timor Lorosae Hamrik ba, lao ba oin nafatin Hamrik ba, tuba rai metin Luta ba o nia direitu Luta ba o dignidade Hamrik ba, tahan netik o rain Hamrik ba tahan netin o nia kafe Ai kameli nia morin no rikusoin tomak Mak iha o rain Ba o oan no bei oan!

2- A Nação Delas

Entre o final de 1975 e o final de 1999, Timor-Leste sofreu uma guerra de ocupação levada a cabo pela Indonésia. A guerra perpassava toda a sociedade, chegando todos os dias às casas das pessoas, sob forma de violência direta, assaltos militares, emboscadas, tortura, violações sexuais, fome, doença, desaparecimentos e assassinatos. Os vinte e quatro anos de guerra foram, tanto para as mulheres como para os homens, um amargo período de sofrimento. A ocupação indonésia não assumiu apenas um caráter militar mas simultaneamente foi uma ocupação identitária. Esta ocupação identitária era visível, por exemplo, na restrição do uso das línguas nativas e na proibição do uso da língua portuguesa. Amílcar Cabral já havia analisado com desenvoltura que a resistência à dominação colonial só se pode manter com uma pressão permanente organizada da vida cultural desse mesmo povo (1976: 222) porque nenhum colonialismo sobrevive sem cometer dois crimes de liquidação de um povo: o genocídio físico e o epistemicídio cultural. A estratégia tinha como objetivo criar um espaço social e simbólico para a difusão e apropriação do bahasa indonesia10 e, através dela, se

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Poema de Filomena Reis em Tétum com tradução para Português de Mina-Be : Hei, mulheres de Timor-Leste/ Levantem-se e caminhem/ Caminhem firme/ Lutem pelos vossos direitos/ Lutem pela vossa dignidade/ Levantem-se e defendam a vossa terra/ Levantem-se e defendam o vosso café/ O cheiro do sândalo/ Tudo o que a vossa terra tem/ É para os vossos filhos e netos. 10 Significa língua indonésia.

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ocuparem os comportamentos sociais, reconstruir o imaginário nacional e os vínculos históricos. Numa sociedade que tanto valor atribui aos núcleos familiares e à suas relações e linhagens, a separação sistemática das famílias, devida à deslocação forçada de aldeias inteiras provocou danos irreparáveis nas relações de lealdade e de amparo, tão importantes para a sobrevivência das pessoas vulnerabilizadas pela guerra e pela pobreza extrema. Numa reportagem feita por Rod Nordland, reproduzida na obra de António Barbedo de Magalhães, é citado o coronel Kalangie, comandante das tropas indonésias em Timor-Leste em 1982, que dizia sentir-se entusiasmado com a política de ‘reinstalação’ das populações em 150 centros, com mais 50 planeados para o fim do ano (1982: 81). O paroxismo desta ocupação e genocídio foi atingido quando o estado indonésio colocou em marcha várias campanhas de esterilização forçada das mulheres (Sissons, 1997) cujo trauma permanece enraizado até hoje na sociedade timorense com consequências que nunca foram devidamente avaliadas. O Referendo levado a cabo pelas Nações Unidas no dia 30 de Agosto de 1990 determinou o fim da guerra, conduziu Timor-Leste a um período de transição sob administração internacional e, finalmente, à restauração da independência política proclamada em 28 de Novembro de 1975. Começava então a cumprir-se o desejo das e dos timorenses de se governarem a si próprias/os: ukun rasik a’an11 . Contudo, a construção de um país é um longo e complexo processo quotidiano de libertação dos velhos e dos novos laços de dependência e de colonialidade que existem dentro e fora de si. Governar-se a si mesmo tem implicado para Timor-Leste compreender-se a si mesmo e às historicidades que o foram constituindo naquilo que têm de unificador mas também de fraturante. Não é fácil ouvir as mulheres timorenses. É minha convicção que esta dificuldade reside no facto de nelas se sobreporem múltiplos colonialismos que têm organizado e sistematizado um silêncio rigoroso sobre muitas coisas e pessoas, mas sobretudo sobre elas. Mais do que isso, têm tornado impossível para muitas o uso da palavra nem que fosse para, depois, ser silenciada. Desarmar as mulheres das suas próprias palavras, do poder de nomear, de enunciar, é muito mais do que discriminar e ignorar: é a criação da condição da sua inexistência. Os discursos dominantes sobre Timor-Leste das últimas décadas foram construídos acerca e em torno da resistência à ocupação da nação. Neles são os homens os autores, os narradores e os protagonistas. A luta pela independência

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Expressão em Tétum que significa governar-se a si mesmo.

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política sobrepôs-se sempre a qualquer outra e a ‘unidade nacional’ foi usada como meta-narrativa que escondeu e afastou do horizonte coletivo muitas outras narrativas de libertação, nomeadamente as da igualdade e da justiça sexual. É neste contexto que as mulheres timorenses têm vindo a ser percebidas: como vítimas secundárias do todo fundamental que são os heróis da luta nacional pela independência (Magalhães, 1983; Gusmão, 1994; Ramos-Horta, 2004; Dowler, 2002). Por isso, para além de serem apenas ‘pedaços’ que são encontrados na literatura geral sobre TimorLeste, na maioria dos casos os testemunhos das mulheres são, também eles, dedicados à luta nacional pela independência, como se fossem outros homens mais, a falarem. Contudo, elas não são apenas vítimas, escravas, anjos, senhoras ou diabos da épica independência do país. Elas são mulheres, pessoas por inteiro na história de ontem e de hoje da sua Terra. Porém, a nação independente de Timor-Leste continua a não ser um espaço de escuta atenta do que as suas mulheres têm para partilhar e para dizer. No processo de construção do Estado, a sociedade Timor começa a fazer ouvir as suas narrativas acerca daquilo que considera ser a sua história própria, enquanto ancoragem indispensável de uma parte da sua identidade. É neste caldo fervente, povoado de contradições e esperanças, que as vozes das mulheres de Timor-Leste emergem, umas vezes sendo margem, outras dissidência, centro, subversão ou afastamento do relato oficial da epopeia nacional. Elas são parte constituinte da sociedade e são expressão da sua ‘experiência de fronteira’ (Hutcheon, 1998), que muitas vezes dissolve a antinomia entre interesses públicos e interesses privados. Aprenderam a falar e a analisar a sua dor de mães, filhas e esposas e com essa subjetividade excêntrica, própria das margens privadas de interlocutores (Ruddick, 1995: 228-232; Ognibene, 1997), elas realizam, de facto, atos com um profundo significado político. Complementam as narrativas em curso inculcando nelas mais conhecimentos, maior complexidade e, dessa forma, subvertem a ordem natural das coisas que as faria manter na esfera do privado essas consciências tão desalinhadas com a estilização máscula nacionalista. Contudo, estas fronteiras de que elas se fazem só se têm tornado visíveis em pleno processo de transformação e transgressão. Aproveitando as possibilidades providenciadas pelas ambivalências geradas na sociedade de Timor-Leste, as transgressões que as mulheres imaginam e praticam são contraestratégias povoadas de submissão e insubmissão, humildade e raiva. Neste sentido, as mulheres têm povoado esta década de independência política com atos disruptivos que, são, em si mesmos, espaços de conflitualidade, potenciadores da emancipação do país como nação e como povo. Elas, as mulheres, são sujeitos de uma mátria falando de outro modo, usando outras perspetivas, outras palavras e outros Outubro de 2013

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acontecimentos para falar do país que querem que seja seu e governado por si e pelos seus próprios meios. Estas mulheres que foram o outro do outro e que não passaram nem incólumes nem, distraidamente, pela experiência do colonialismo e da guerra, têm vindo a refletir, a participar e a contribuir não apenas para compreender como se resistiu ao ocupante indonésio, mas também a pensar e a participar na construção de uma nação que seja Delas também e que querem que seja democrática e livre. Elas estão a pensar e a elaborar as resistências necessárias às adversidades que a independência lhes tem imposto, assim como às tentativas de transformar Timor-Leste num estado falhado ou fraco, ou seja, incapaz de cumprir o desígnio de se governar a si mesmo. O que está em causa é contar a história que é talvez comum mas que sobretudo é constituída por ideias e memórias diferentes, sendo todas indispensáveis para alcançar a paz que todas e todos desejam. Importa pois mudar o nosso olhar de lugar e lançar sobre Timor-Leste e o mundo um conhecimento que tem história, geografia e sexo. Tendo consciência desta diversidade, eu e a Mina-Be escolhemos escrever subvertendo a ideia de que há uma história sobre Timor-Leste e Portugal a ser contada12. Deliberadamente percorremos e transgredimos as fronteiras vigiadas da história oficial, usando nessa transgressão as nossas línguas faladas em português, para tornar acessível o que até agora tem sido ignorado: o ato duplamente colonial de fixar as mulheres num silenciamento que as transforma em ausências. Escrever o texto que se segue foi fixar as lembranças selecionadas pela memória. Cada página escrita são acontecimentos colonizados com os nossos conhecimentos individuais e com a seleção que fizemos deles. Contaminámos a narrativa com emoções e a priori com que as nossas subjetividades operam quando refeltem sobre os assuntos de que falámos. Contudo, este texto não é uma história de vítimas do colonialismo português, nem do colonialismo indonésio, nem da turbulenta e complexa construção da independência e da identidade. Esta é uma estória13 em que assumimos uma posição a partir da qual olhamos, falamos e interpretamos os problemas e sugerimos soluções. Estamos perante um exercício que não é apenas a descrição do que foi a guerra, a ocupação militar e a independência mas sim, uma análise crítica e situada e um

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É importante referir que o texto aqui apresentado foi escrito por nós as duas entre 2009 e 2010 e esta a versão final acordada mutuamente e resultou de várias entrevistas em profundidade realizadas ao longo de dois anos. 13 Ao escolher a palavra ‘estória’ faço-o consciente dos debates sobre a antinomia ou subalternidade que este termo traz consigo relativamente a ‘história’. Neste trabalho confiro ao substantivo ‘estória’ o atributo de uma narrativa coerente e articulada numa variedade de testemunhos diretos dos acontecimentos relatados, a qual não reivindica ser, no entanto, uma descrição exclusiva, exaustiva e tida como a sua mais rigorosa e, por isso, a verdadeira versão.

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conjunto de propostas para realizar a paz e a democracia na Terra amada de TimorLeste. 3- E se a nação fora mesmo delas? O excerto da estória que Mina-Be conta sobre a Nação Dela e das suas conterrâneas dá conta de dois dos momentos mais traumáticos para ela e, quiçá, para todas e todos os timorenses: o começo da beligerância armada, a guerra, a fuga, o exílio e o regresso e a reconstrução dos sonhos sobre os estilhaços da sua comunidade imaginada. São momentos tanto de ruptura como de reconstrução e, sobre eles, a subjetividade atenta e analítica de Mina-Be revela que as prioridades políticas da guerra e da paz não são feitas de discursos, bandeiras erguidas, de paradas e tratados. A vida e a nação são muito mais do isso e precisa de se narrar em todos as suas significações para se emancipar, para sempre, do colonialismo português, secular, medonho e sexista e de todos os demais colonialismos machistas e narcisistas contemporâneos. Esta não é a história de Timor-Leste nem nunca pretendeu sê-lo. É porém, uma parte dela que precisa de ser contada. Falar, contar, relatar, narrar, escrever, descrever, tornar texto o que é contexto é um exercício de consciência cosmopolita (Santos, 2001) que interconecta diferentes saberes, espaços e tempos do mundo e as diferentes línguas faladas em português em que se expressam para identificar as zonas de contato nas quais se processam os encontros de reconciliação essenciais para a construção de uma paz duradoura e sustentável e que não podem dispensar as relações ‘de pele com pele’ (Galtung, 1996) de que as mulheres parecem não querer abdicar. É um ato de autoridade discursiva e analítica que tanto a história como a literatura e também a sociologia tem negado a estas subjetividades, incapazes, na sua lógica de legitimação interna, a poderem reclamar não apenas a autoria dos seus próprios pensamentos mas a sua importância na construção de um pensamento objetivo, porém, não neutral (Harding e Santos). Esta é uma parte da nação Delas que sobre a ressaca imperial da nação portuguesa se me apresenta como inadiável para uma compreensão mais complexa e, também mais completa, do intenso debate epistemológico sobre mulheres e nacionalismo.

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Em 1975 foi o corte. Fomos obrigados a sair de Maubara, de Timor. Nós saímos no dia 27 quando foi o contragolpe, da FRETILIN, nós não tínhamos hipóteses e tivemos que sair para não sermos apanhados: eu, o meu marido e os meus filhos. Mas o Bessa já tinha saído de casa uns dias vinte dias antes logo no dia 11. Só passado quinze dias é que apareceram em casa para nos levar. E eu sem saber para onde é que íamos, nem sabia para quê, porquê. Ele disse que esteve em Liquiçá, que foram todos mobilizados, os homens todos, que ele também não sabia o que era mas não tinha outra hipótese porque os homens tinham que aderir ao movimento da UDT e do Movimento Anti-Comunista, MAC. Pronto, ele teve que ir, como todos foram, só que depois não correu bem e tiveram que fugir, quando a Fretilin depois fez o contra-golpe. No sítio onde nós estávamos não tínhamos hipóteses de ir para a Austrália, porque a nossa intenção era ir para a Austrália, mas não podíamos ir, tivemos que fugir para a fronteira. Pedir segurança na fronteira. Eu, o Bessa e três filhos: um com oito meses, outra com dois anos e a Aurora com três anos. Eu tinha vindo de minha casa, morava lá em cima na montanha, como era, na altura, era monitora escolar, vinha para baixo tratar da matrícula dos alunos da minha escola. Quando cheguei a Maubara para ir para Díli, já não podia vir porque disseram: vai ter que esperar mais uns dias, para sair daqui. E eu fiquei ali. Tudo o que eu tinha ficou tudo lá em cima na minha casa. Só tinha o que trazia para uns dias, não é? Para os miúdos. No dia 27 saímos de Maubara sem saber para onde íamos. Só me disseram: tem que ser! Tem que ser! Anda, vá, não tens tempo de fazer mais nada, pega nos miúdos, nas crianças, numas roupinhas, umas mudas e o leite do Níveo. Saímos de noite de casa de carro. Fomos em duas carrinhas. Uma da administração, uma do china. O administrador do posto chamou o china para nos levar, a nós e à mulher dele e ele ficou. Entregou a mulher e os filhos ao nosso cuidado para que os pudesse levar até à fronteira. Porque não deixavam sair os homens, não é? Pelo caminho fora, fomos barrados assim por alguns da UDT ou os da FRETILIN perguntaram: para onde é que vocês vão? O Bessa e o outro que ia connosco, que era administrador do posto de Bazartete, que era um europeu também, diziam: nós vamos levar as mulheres e as crianças à fronteira, mas nós voltamos, nós não estamos a fugir, vamos levar as crianças para segurança deles. Eles ficam lá na fronteira e nós voltamos. Saímos no dia 27, no dia 28, 29. Depende, no dia 29 entrámos na fronteira. Depois, dia 30 levaram-nos. Chegaram uns camiões enormes para nos levar e fomos. Disseram-nos: agora vocês já estão em segurança, não se preocupem que daqui a duas ou três semanas vocês podem regressar outra vez para Timor. E pronto, nós ficámos ali. O Bessa ainda tentou vir, deixou-nos lá e depois ele ainda tentou vir, só que quando chegou a Batugadé já não podiam passar, já estava cheio de militares indonésios, que disseram para eles não passarem. Dormíamos no chão. Comíamos o que eles davam. Na altura ainda nos davam pequeno-almoço e coisas para cozinhar, arroz e carne. Davam para a gente cozinhar. Panelas e essas coisas todas. Primeiro ficámos num alojamento, numa casa dum china. Eu, os três casais, e outra senhora, cujo o marido depois também apareceu lá. Ela também tinha três filhos e a irmã com um filho. Ficámos ali numa casa do china. Comíamos, dormíamos ali. Pouco tempo depois, tiraram-nos dali e levaram-nos para outro lado porque não podíamos estar ali. Como tinha familiares em Atambua fomos para casa de um tio meu. Eles também, coitados, não tinham nada. Fiquei ali durante um ano a passar mal. Dormíamos no chão, não tínhamos cama. A princípio ainda comíamos com os que nos davam os militares indonésios. Depois, quando começaram a tratar para os refugiados voltarem, quem quisesse voltar depois da invasão da Indonésia. No dia 7 de Dezembro soubemos da invasão, porque o Bessa estava na fronteira, ficou sempre ali à espera, para entrar também, mas depois ele voltou e disse que já não dava para voltar que a Indonésia tinha invadido tudo. A única hipótese era sairmos dali, aceitarmos e assinar a integração e voltarmos. Tínhamos segurança, tínhamos tudo. Ou então ir para

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Portugal. Fiquei muito triste. Fiquei desiludida. Ficar com os indonésios pior ainda do que estávamos com os portugueses, não valia a pena. Depois quando soubemos que podíamos inscrever-nos para sair dali, que Portugal nos ia lá buscar, o Bessa foi lá. Foi então que nos cortaram a alimentação, não davam mais nada. Por isso vendi tudo o que tinha: rádio, anéis, alianças, vendemos tudo, relógio, fio de ouro que eu levei, tudo o que eu tinha no corpo, que levava, vendi tudo para comprar comida para os miúdos. Não tínhamos terreno para fazer uma horta, não deixavam. A gente fazia um furo, porque a Noruega e a Suíça davam bombas para tirar água, e os indonésios é que utilizavam. Não nos deixavam nem tomar banho, tínhamos que ir para a ribeira. Foi um inferno. Aquele ano foi um ano para esquecer. O meu filho Níveo esteve a morrer porque me deram leite estragado. Aquilo fez tão mal ao miúdo, andava com diarreia, quase a morrer. Então depressa fui entregá-lo e disse: olha, o meu filho está a morrer porque não tem leite para beber, fica com ele para morrer nas tuas mãos. Eu não posso fazer mais nada! Uma freira indonésia foi arranjar um bom leite, deu-lhe, o miúdo tomou e salvouse. Sentávamo-nos sozinhos em casa à espera. Voltar com a Indonésia assim é que não. Embora eu tivesse lá a minha família toda, os meus tios todos pedissem para eu voltar, eu disse que não. Para viver na miséria assim, então eu prefiro ir embora para Portugal. O meu marido é de lá, porque é que eu não hei-de ir? Entretanto, engravidei da Teresinha, a minha mais nova. Todos os dias tinha que ir para a ribeira apanhar água, para trazer para casa, para cozinhar, para dar banho aos miúdos, para lavar. Nos primeiros meses, depois com a barriga grande e tudo, sujeitava-me a cair no meio das pedras mas o que é que havia de fazer? Ele ia pescar para uma várzea que tinha lá peixinhos e apanhávamos para os miúdos comerem. E também uma tia minha tinha em casa mandioca e bananas, e de vez em quando dava-me um bocado a gente comer. Esses tios tinham sido expulsos para a Indonésia no tempo dos portugueses como muitos foram para Angola e Moçambique. O meu tio foi para a Indonésia. Então ele pegou no povo dele todo e levou tudo, uma aldeia inteira foi toda com ele. Naquela zona onde nós estávamos éramos todos timorenses que falavam Kemac e Bunác Depois em 1999 foram todos embora outra vez para Timor-Leste Alguns ainda estão vivos, outros já morreram. Eu tenho hoje em dia ainda lá uns primos porque os meus tios já morreram todos. Tinha três tios. Tinha um que era militar, na altura era primeiro-sargento. Como ele era militar, ele tinha que fazer o que lhe mandavam, mas ele não tratava mal ninguém, olhou sempre por nós. Os miúdos quando ficavam doentes, era mulher que era enfermeira que das Flores, que tratava deles e nos mandava medicamentos. De vez em quando ia lá e convidava-nos para ir a casa dela almoçar. Mas era o único, os outros não. Tanto que eles nem queriam que nós voltássemos. Disseram-nos: não pensem em entrar num avião porque chegam ao alto mar e os indonésios atiram-vos para o fundo do mar. Eles eram indonésios porque eles foram a minha mãe era ainda bebé. A minha mãe ainda nasceu em Timor-Leste mas quando o meu avô foi, ela foi também, mas os outros tios já nasceram lá. Ela só voltou quando foi a Segunda Guerra. O meu tio conheceu a minha mãe e trouxe-a, era o irmão do meu pai que depois conheceu a minha mãe e falou com a minha avó. Passado um ano do casamento o meu tio faleceu e depois casou para o meu pai porque os nossos aqui levaram muito dinheiro, fizeram aquele barlaque de antigamente. Os meus avós disseram: agora pronto casas outra vez com o irmão. Ela teve mais cinco filhos. Finalmente passado um ano conseguimos ir no terceiro voo. No segundo voo aconteceu uma desgraça. Levávamos apenas a roupa dos miúdos. Dei tudo às pessoas que ficaram lá em Atambua, que não tinham nada, dei tudo. Chegámos lá, começaram a chamar os nomes, não tinham lá o nosso nome na lista. Enganaram-nos mais uma vez. Olhem, ainda não é desta vez que vocês vão, vão na próxima. Voltámos outra vez para casa do meu tio sem nadinha. Chorei tanto, tanto que disse: olha, embarque, eu já não quero mais. O meu marido foi outra vez falar com a Cruz Vermelha que nos deu outra vez umas louças, umas panelas e depois esperámos mais algum tempo até que, mais um mês, se não me engano, o avião voltou outra vez. À terceira vez, viemos. A Teresinha estava quase a nascer, já a dar à luz, já fazia nove meses. Podia ter nascido na viagem, com aquela agitação toda,

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mas olha, não deu. Fomos de barco até Kupang. Dali até Bali de avião militar indonésio. Depois de Bali, é que apanhámos o nosso avião português para Lisboa. Parámos em várias bases americanas, não saíamos dali, porque era avião militar. Só aterrava, para abastecer nas bases americanas. Em Honolulu, em Washinghton. Saímos, acho que foi de Bali, no dia 28 de Agosto e chegámos a Lisboa dia 31 à noite. Não conhecia ninguém, não estava ninguém. Ficámos quase a noite toda, até de madrugada à espera que alguém nos levasse para algum alojamento,não sei para onde. Apareceu um camião da tropa enfiou-nos todos dentro do camião e eu grávida, quase a nascer a criança, com os três pequeninos, o Níveo com um ano e oito meses no colo, a Aurora e a Lurdes. Levaram-nos para uma pensão ali para os lados de Cascais. Para uma pensão, uma noite só. Fomos todos para lá. Iam muitos chinas de Maubara. No outro dia à noite, estávamos a jantar, a Cruz Vermelha disse: olha, vocês agora vão arrumar as coisas, vamos para os acampamentos no bairro do Jamor. Arrumámos as nossas coisas e lá fomos todos para o bairro do Jamor. Tinham lá casas pré-fabricadas, mas eram só a cobertura e as paredes à volta, lá dentro era tudo amplo, não havia ainda divisões. Estavam a construir porque era para os refugiados de 1975. Ficámos ali dentro naquele tipo de barracão, mas cada um arranjou um cantinho para ficar. Ficámos durante um mês. Íamos comer à Cruz Vermelha. Davam as refeições, pequeno-almoço, almoço e jantar. Havia um balneário, para toda a gente. Estávamos nós de Timor, timorenses, e moçambicanos. Estavam muitos, quando chegámos já estava lá cheio de moçambicanos. E depois a Teresinha nasceu na maternidade da D. Estefânia em Lisboa. De madrugada fui para a maternidade e não tinha nada. Nós chegámos lá, não tinha nada, não tinha roupa para a bebé nem nada. Depois foram lá umas senhoras, uma até era minha professora, era timorense, o pai é que era europeu. Era muito nosso amigo, amigo dos meus pais. Eu conheci-a e disse: ai a dona Maria José foi minha professora! Ah e tu, como é que te chamas? Sou a Hermínia. Ela disse: tu estás crescida! Então e o bebé, quando é que nasce? Ai, disse eu, só estou à à espera mas não tenho nadinha, não tenho nada, ninguém nos deu nada, enfiaram-nos para aqui assim. E ela disse: peça a Deus para a criança não nascer hoje, nós vamos arranjar roupinha. Chegaram à noite, com duas ou três sacas, com tudo Havia fraldas, roupinhas, aquelas coisas todas completas, quando chegaram à noite carregaram tudo para o hospital. Já não faltou nada para o bebé. Eu tinha 25 anos e quatro filhos. Eu dizia sempre que não, um dia hei-de voltar a Timor mas sem os indonésios. Nunca perdi as esperanças. Isso posso dizer. Muita gente veio dizer-me: não vale a pena, porque vocês aqui já estão bem, agora já têm a casinha, os filhos já estão todos bem, já estão a trabalhar, já estão. E eu disse: está bem, os filhos já têm o futuro deles mas eu hei-de voltar um dia a Timor. Mas voltar com os indonésios lá, não volto. Quando cheguei aqui a primeira vez depois da guerra foi ainda pior do que quando saí daqui. Só chorava. Ver Timor. Tenho aqui Timor na imagem, não é? Voltar e ver Timor daquela maneira. Não conhecia, já não conhecia os sítios onde morava, os sítios onde eu passava, vi tudo, tudo, tudo preto, vi tudo mesmo triste. Fiquei muito revoltada, fiquei muito triste, fiquei muito desiludida. Não contava com Timor assim, as pessoas, mesmo as pessoas e o ambiente era tudo diferente. Nessa altura havia pessoas que nos diziam: ai, agora que Timor volta a florir é que vocês voltam! Os velhinhos, não sabem do que nos aconteceu e diziam: ai senhores, vocês é que tiveram sorte, foram para países grandes, com tudo, não vos faltava nada, nós aqui é que sofremos. E nós começamos a explicar-lhes: olhe, não foi bem assim, nós fomos mas nunca deixámos de trabalhar, também passámos trabalhos, vocês sabem que a gente vai para a terra dos outros, se a gente não tem trabalho também ninguém dá nada, também trabalhámos muito, com muito sacrifício, mas nós nunca esquecemos Timor, nós sempre gritámos por Timor. Vocês aqui passaram mal e não podiam fazer mais. Não podiam gritar porque eram logo apanhados. Tiveram que fazer o que a Indonésia mandou fazer. Nós lá fora pudemos gritar à vontade que ninguém nos proibia. Mas nós gritámos muito para a comunidade internacional

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saber o que se passava. Se ninguém saísse de Timor, nós éramos todos comidos pelos indonésios e isto hoje era dos indonésios, não era nosso. Graças a nós que saímos, que conseguimos sair de Timor, para fazer força lá fora, porque se não fôssemos nós, não deixavam entrar aqui jornalistas para passar informações lá para fora. Depois eles começaram a entender isso tudo. Eu estou na minha terra. Se eu fosse eleita primeira-ministra a primeira coisa a fazer era acabar com essa miséria e resolver as coisas com justiça para haver paz aqui em Timor. Eu penso que as pessoas que estiveram envolvidas com as torturas dos indonésios, até mesmo os que foram criminosos, que fizeram tanta coisa, penso que tem que haver uma justiça, ir a julgamento, receber uma pena. Só nisso acho que bastava para os familiares das vítimas ficarem em paz, na altura fizeram mal, mas já pagaram. Assim a gente para poder ter a reconciliação, mas primeiro vai ter que haver justiça senão não há reconciliação. Se fosse primeira-ministra a primeira coisa que eu fazia era isso. Essa é uma opinião de muita gente, muita gente. Acho que quase todos, embora estejam caladinhos, com medo, não dizem nada mas se a gente conversar com eles, eles concordam. O meu maior sonho é ver este Timor em paz. Paz e sossego. Este é o meu maior sonho, ver toda a gente a viver bem. Não passar tantas dificuldades, não passar tanta miséria. Esse é o meu maior sonho, ver toda a gente satisfeita da vida. Há tanta coisa por fazer. A primeira coisa é criar emprego para toda a gente Falava com as pessoas, pedia ajuda aos países internacionais para mandarem aqui algum trabalho, há tanta coisa aqui para fazer. Tanta coisa, tanta coisa! Está tudo ao abandono. Nós temos tanta coisa que podíamos exportar, falta é meios para fazer estas coisas. Eu punha toda a gente a trabalhar na agricultura. Perguntava às famílias, o que é que querem fazer, querem um bocadinho de terreno para viver? Dava um bocado de terreno, dava uns animais para criar, incentivos. As pessoas não estão a fazer nada porque não há ninguém que se interesse por elas. Também dava mais condições aos pescadores para eles pescarem.

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