Tira a mão do meu filho: a apropriação do conceito de família como estratégia de privatização da educação

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Fala para a III Jornada Universitária em Apoio à Reforma Agrária (JURA) – 09 de maio de 2016, 14:00h, no auditório do Instituto de Estudos Sócio-Ambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás Mesa-redonda: A luta é de quem? Temas transversais na busca por transformações sociais

Educação para a diversidade, Estado e usurpação da res publica: a apropriação do conceito de família como estratégia de privatização da educação

Na manhã do dia 18 de junho de 2015, por meio do chamamento feito pelo gabinete da vereadora Célia Valadão (PMDB), realizou-se uma audiência pública no auditório da Câmara Municipal de Goiânia para discutir o projeto de lei do Plano Municipal de Educação. Atendendo ao prazo de aprovação estipulado no Plano Nacional de Educação, que inclusive impactava no planejamento do MEC para a destinação de verbas para a implementação dos PMEs, PEEs e PDE, o Fórum Municipal de Educação encaminhou o texto inicial do PME de Goiânia que versava, entre diversas outras coisas, sobre a igualdade de gênero e o respeito à diversidade sexual. Justamente como reação a este ponto, a audiência de Célia Valadão contra a “ideologia de gênero” se configurou como palco de legitimação do processo político que já visava solapar o PME goianiense igualitário e sensível à diversidade: na verdade, como bem lembrado pelo professor Luiz Mello (UFG), no momento da audiência pública a vereadora Célia Valadão já dispunha das assinaturas necessárias para conseguir realizar emendas supressivas no texto proposto pelo Fórum Municipal de Educação de forma a retirar quaisquer menções ao termo “gênero”; desta forma, a audiência pública não era espaço de diálogo (de falar e ouvir), mas de espetáculo (assistir e aplaudir – ou vaiar). À parte com a falácia representada pela simples expressão “ideologia de gênero” – que, aliás, nem de longe é descartável no debate sobre a educação pública –, minha preocupação com o processo de aprovação legislativa do PME de Goiânia se deu, desde 2015, em relação à enorme confusão entre o público e o privado. A mãe que gritava “Tira a mão do meu filho!” é o símbolo por excelência da quinzila entre o Estado e a família como instituições concorrentes em matéria de educação, o que também ficou evidente nas falas de diversas pessoas presentes na audiência pública em questão: 1) ao associarem o cristianismo ao Estado de direito; 2) ao negarem a autonomia do Estado de planejar os currículos por confundirem a educação familiar (informal) e a educação formal dos estabelecimentos de ensino; 3) o fato de público rechaçar em massa a ideia apresentada pelo professor Luiz Mello de que “as coisas são construídas socialmente”.

[Assistir vídeo “Goiânia contra a Ideologia de Gênero”: https://www.youtube.com/watch?v=9VBSrlrgNac]

Em relação aos dois primeiros pontos, é fundamental retomar a legislação vigente no Brasil sobre a educação. Em primeiro lugar, o texto da Constituição Federal de 1988 elenca os agentes responsáveis pela educação (art. 205) e os princípios que norteiam a educação (art. 206), princípios estes reafirmados pelo ECA (art. 53 e 54): Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino

É importante frisar que tanto a CF 1988 (a) quanto o ECA (b) dispõem também sobre o dever das famílias em matéria de educação:

a) “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”, “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”;

b) “Art. 55. Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. O que se depreende do texto constitucional e do ECA sobre a educação básica é que ela é: a) um dever do Estado, dever de oferta, sobretudo, mas também de outras inúmeras garantias, como a de qualidade, a de regularidade na oferta, a de proximidade das instituições de ensino em relação aos domicílios e também a de que o ensino se paute na pluralidade de concepções e ideias; b) um direito público subjetivo (CF 1988): “Art. 208 [...] § 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo”. Isso significa que a educação é um

direito inerente à criança e ao adolescente e que constitui responsabilidade do Estado atender a esse direito; mas que, para além do atendimento individualizado do direito à educação, cabe ao Estado a elaboração de políticas públicas educacionais que visem a todas as crianças e aos adolescentes, levando em conta o bem comum, ou seja, a coletividade, tal como ressalta Duarte (2004); c) em relação à família, é um direito básico que cabe ser assegurado pelo Estado, mas também um dever no qual a família toma parte ativa, o qual, se não cumprido, é passível inclusive de sanções previstas no ECA (art. 129). Esta caracterização da educação como simultaneamente direito e dever (SOUZA, 2015) é bastante elucidativa para apresentar um contraponto jurídico e político à confusão entre os direitos de natureza privada e os de cunho social. Ao elencar o direito de as famílias transmitirem seus valores morais e religiosos a seus filhos, a professora de direito da UFG e procuradora do TJ-GO Liliana Bittencourt desfigura completamente o texto do Pacto de San José da Costa Rica como se o direito à educação estivesse subordinado à “Liberdade de Consciência e de Religião”. Quando menciona o parágrafo 4 do art. 12 do referido documento, Liliana afirma que as famílias teriam direito a promover uma educação sem que “nenhum ente externo” interferisse. Aqui é preciso recorrer ao texto do Pacto de San José e desfazer uma série de deformações propositais. O item elencado diz o seguinte: “4 – Os pais, e quando for o caso os tutores, têm o direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções” (grifo meu). Ora, a discussão do PME não se situa no âmbito da educação religiosa e moral; pelo contrário, se considerarmos o que dispõe a LDBEN em seu início, veremos que a legislação brasileira versa tão-somente com respeito à educação escolar:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. § 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias. [grifo meu]

Por esse motivo, o recurso ao tratado de direitos humanos para subordinar o direito à educação escolar, que é dever estatal para com a coletividade, ao direito de educação moral e religiosa, que

é direito da família para com seus filhos, representa uma forma de retorcer a lei de modo a permitir a dominação do público pela esfera familiar, privada. O que os processos políticos que se deram na sequência da audiência pública sobre a “ideologia de gênero” mostraram foi algo mais importante que a simples distorção na compreensão do papel do Estado e a que tipo de educação o PME se referia. Envoltas pela cortina de fumaça midiática armada pela Igreja Católica e pelos legisladores conservadores, emendas supressivas ao texto inicial do PME foram votadas e aprovadas. Tais emendas provocaram alterações sensíveis em alguns pontos do PME que versavam originalmente sobre as questões de gênero e sexualidade, tal como podemos ver no comparativo a seguir; mas, além disso, fizeram permanecer os convênios do município com as creches filantrópicas como forma de integralização do atendimento à educação infantil: Meta/

Texto inicial encaminhado pelo Fórum

Estratégia

Municipal de Educação

1.7

2.15

3.7

Reduzir, gradativamente, a oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como entidades beneficentes de assistência social na área de educação, assegurando a expansão da oferta na rede escolar pública. garantir o acesso e condições para a permanência, aprendizagem e terminalidade de crianças e adolescentes com deficiência, negros, indígenas, quilombolas, povos do campo, povos itinerantes, comunidades tradicionais, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais do ensino regular, enfrentando a discriminação, o preconceito e fortalecendo sua identidade Estruturar e fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso e da permanência dos(as) jovens beneficiários(as) de programas de transferência de renda, no ensino médio, quanto à frequência, ao aproveitamento escolar e à interação com o coletivo, bem como das situações de discriminação, preconceitos e violências, raciais, de gênero, orientação sexual, de deficiência, intolerância religiosa e/ou qualquer outro tipo de preconceito, práticas irregulares de exploração do trabalho, consumo de drogas, gravidez precoce, em colaboração com as famílias e com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à adolescência e juventude.

Texto emendado e sancionado Articular a oferta de matrículas gratuitas em creches certificadas como Entidades Beneficentes de Assistência Social na área de educação, com expansão da oferta na rede escolar pública. garantir o acesso e condições para a permanência, aprendizagem e terminalidade de crianças e adolescentes com deficiência, negros, indígenas, quilombolas, povos do campo, povos itinerantes e quaisquer outras comunidades excluídas do ensino regular, enfrentando a discriminação, o preconceito e fortalecendo sua identidade Estruturar e fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso e da permanência dos(as) jovens beneficiários(as) de programas de transferência de renda, no ensino médio, quanto à frequência, ao aproveitamento escolar e à interação com o coletivo, bem como das situações de discriminação, preconceitos e violências, raciais, Ø de deficiência, intolerância religiosa e/ou qualquer outro tipo de preconceito, práticas irregulares de exploração do trabalho, consumo de drogas, gravidez precoce, em colaboração com as famílias e com órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à adolescência e juventude.

3.12

3.21

9.9

15.13

18

Implementar e apoiar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação racial, [de] gênero, orientação sexual, deficiência, intolerância religiosa ou qualquer outro tipo de preconceito, potencializando a rede de proteção contra formas associadas de exclusão Ampliar as políticas e programas de formação inicial e continuada dos profissionais da educação, sobre gênero, sexualidades e promoção da igualdade racial Garantir, a partir da vigência deste PME, nas políticas públicas para a EJA o atendimento às necessidades dos jovens, adultos e dos idosos, visando à promoção de políticas de superação do analfabetismo, ao acesso a tecnologias educacionais e atividades recreativas, culturais e esportivas, à implementação de programas de valorização e compartilhamento dos conhecimentos e experiência dos idosos e à inclusão dos temas do envelhecimento e da velhice, de sexualidades e de gênero nas escolas, conforme prevê o Estatuto da Juventude e o Estatuto do Idoso. Assegurar, aos profissionais de educação, formação continuada referente à inclusão de pessoas com deficiências, educação das relações étnico-raciais, educação do/no campo, educação escolar indígena, de gêneros, diversidade e orientação sexual e diversidade religiosa, visando à construção de um projeto de educação que considere essas especificidades Assegurar a existência e cumprimento dos planos de carreira para os(as) profissionais da educação básica e superior pública Ø de todos os sistemas de ensino, tomando como referência o piso salarial nacional, definido em lei federal, nos termos do inciso VIII, do art. 206, da Constituição Federal.

Implementar e apoiar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação racial, Ø deficiência, intolerância religiosa ou qualquer outro tipo de preconceito, potencializando a rede de proteção contra formas associadas de exclusão Ampliar as políticas e programas de formação inicial e continuada dos profissionais da educação, Ø e promoção da igualdade racial Garantir, a partir da vigência deste PME, nas políticas públicas para a EJA o atendimento às necessidades dos jovens, adultos e dos idosos, visando à promoção de políticas de superação do analfabetismo, ao acesso a tecnologias educacionais e atividades recreativas, culturais e esportivas, à implementação de programas de valorização e compartilhamento dos conhecimentos e experiência dos idosos e à inclusão dos temas do envelhecimento e da velhice, Ø nas escolas Ø. Assegurar, aos profissionais de educação, formação continuada referente à inclusão de pessoas com deficiências, educação das relações étnico-raciais, educação do/no campo, educação escolar indígena Ø e diversidade religiosa, visando à construção de um projeto de educação que considere essas especificidades Assegurar a existência e cumprimento dos planos de carreira para os(as) profissionais da educação básica e superior, pública e privada, de todos os sistemas de ensino, tomando como referência o piso salarial nacional, definido em lei federal, nos termos do inciso VIII, do art. 206, da Constituição Federal.

À exceção da emenda apresentada pela vereadora Tatiana Lemos (Meta 18), votada no dia 19 de junho e que teve como efeito assegurar também aos profissionais da educação privada o direito a planos de carreira e ao pagamento do piso salarial nacional, as demais emendas, sem exceção, já haviam sido aprovadas em comissões legislativas anteriormente à audiência pública chamada pela vereadora Célia Valadão. A emenda proposta pelo vereador Anselmo Pereira, por

exemplo, rejeita a ousada meta apresentada pelo Fórum Municipal de Educação de tornar a educação infantil progressivamente mais pública ao diminuir a dependência em relação aos convênios com entes privados e fazendo cumprir aquilo que a Constituição Federal atribui como dever dos municípios. É fundamental observar que, assim como a emenda da vereadora Célia Valadão que propunha a retirada dos termos gênero, sexualidade e orientação sexual do PME, a alteração proposta por Anselmo Pereira já havia sido encaminhada à CCJ no dia 17 de junho, ou seja, um dia antes da audiência pública sobre “ideologia de gênero”. Nesse sentido, é notória a confluência de duas ações paralelas, não necessariamente articuladas previamente, mas que fortalecem o mesmo processo: enquanto a manutenção dos convênios com creches privadas significa a desresponsabilização do município em relação à oferta direta de educação infantil, a retirada dos termos gênero, sexualidade e orientação sexual, principalmente com respeito à capacitação dos profissionais da educação, também implica pensar que o PME 2016 – 2021 de Goiânia não nasce comprometido com a educação para a diversidade. Vale recapitular que um processo semelhante ao da votação do PME ocorreu na discussão e aprovação do projeto de lei que deu origem ao atual PNE, quando a mesma polêmica gerada em torno dos termos gênero, sexualidade e orientação sexual foi erigida ao mesmo tempo em que não se garantia a aplicação integral do equivalente a 10% do PIB nacional anual exclusivamente em educação pública. Outro ponto que merece destaque é a estranha supressão da redação relativa ao Estatuto do Idoso e ao Estatuto da Juventude (Meta 9, Estratégia 9.9), supressão essa não requerida por meio de nenhuma emenda, e assim mesmo aprovada. Uma rápida consulta ao Estatuto da Juventude é capaz de explicar a alteração no texto do PME de Goiânia:

Art. 17. O jovem tem direito à diversidade e à igualdade de direitos e de oportunidades e não será discriminado por motivo de: I - etnia, raça, cor da pele, cultura, origem, idade e sexo; II - orientação sexual, idioma ou religião; [...] Art. 18. A ação do poder público na efetivação do direito do jovem à diversidade e à igualdade contempla a adoção das seguintes medidas: [...] II - capacitação dos professores dos ensinos fundamental e médio para a aplicação das diretrizes curriculares nacionais no que se refere ao enfrentamento de todas as formas de discriminação; III - inclusão de temas sobre questões étnicas, raciais, de deficiência, de orientação sexual, de gênero e de violência doméstica e sexual praticada contra a mulher na

formação dos profissionais de educação, de saúde e de segurança pública e dos operadores do direito; [...] V - inclusão, nos conteúdos curriculares, de informações sobre a discriminação na sociedade brasileira e sobre o direito de todos os grupos e indivíduos a tratamento igualitário perante a lei; e VI - inclusão, nos conteúdos curriculares, de temas relacionados à sexualidade, respeitando a diversidade de valores e crenças.

Portanto, a justificativa apresentada pela vereadora Célia Valadão de que o Plano Nacional de Educação não previa menção aos termos gênero, sexualidade e orientação sexual, tal como consta no relatório do vereador Edson Automóveis (17 de junho de 2015), entra em conflito com a legislação vigente desde 2013 e que assegura aos jovens o direito a uma educação pautada no respeito e na compreensão da diversidade sexual e de gênero. Também fica flagrante não ser verdade que “os termos suprimidos não são realmente definidos em nosso sistema jurídico”, como afirma a vereadora na justificativa da emenda proposta. Vê-se então como a amálgama entre educação escolar e educação familiar é formada para retirar do Estado as prerrogativas de organizar, regulamentar, conceber e implementar seus sistemas de ensino. O brado daqueles que diziam “não ao ensino da ideologia de gênero” em favor da família – como se as famílias que perdem seus filhos e suas filhas em função do racismo, da intolerância religiosa e da LGBTfobia não sofressem com a falta de políticas públicas para a diversidade nas escolas – representa a total incompreensão a respeito do real papel das famílias nos processos educativos em ambientes escolares, bem como anulam para o Estado as prerrogativas constitucionais que a ele competem. É a invasão do foro íntimo no Estado, maximizado e sintetizado no Pai-Nosso final da audiência pública do dia 18 de junho de 2015, que torna os setores conservadores de diferentes expressões do cristianismo menos caricaturas do que ícones exemplares do nível de interferência da esfera privada na res publica. Nesse sentido podemos também compreender a vaia maciça ao professor Luiz Mello quando da sua defesa de que as mulheres podem pensar e questionar seus papeis na sociedade: ao transpor indiscriminadamente o regime privado para o bem público, essa privatização se converte em histeria quando defrontada com o fato de que os processos de educação escolar não apenas se forjam como também ainda evidenciam o caráter social da educação, caráter inclusive reconhecido pela CF 1988 ao dizer ser de responsabilidade da sociedade o respaldo à criança e ao adolescente. Além disso, creio não ser exagerado dizer que a família, ou melhor, o modelo familiar a que se faz menção (pai-mãe-filhos), é o emblema de um processo mais amplo de

privatização do bem público, que passa também pela paulatina privatização da previdência social, da educação e da saúde, além da mais recente alteração no regime de exploração das reservas de petróleo pré-sal. Se tomarmos estes diversos ataques ao papel social do Estado numa perspectiva conjunta, veremos que a interferência do foro íntimo no coração do Estado indica que a defesa de uma versão conservadora de entidade familiar se alia estrategicamente ao processo mais geral de desmantelamento do Estado como agente eminentemente público. Para finalizar, gostaria de arriscar a hipótese de que a questão da dominação privada da res publica extrapola enormemente o âmbito da educação para a diversidade, perpassando não somente os movimentos ligados às causas da comunidade LGBT, feministas, antirracistas, mas a própria questão fundiária. Assim como certo conceito de família é usado para justificar a descaracterização da educação escolar como direito público subjetivo (ou seja, pertencente em primeiro lugar à criança e sendo prerrogativa obrigatória do Estado quanto à oferta e da família quanto à frequência escolar) e que não está sujeito pois à subserviência aos valores morais e religiosos das diferentes entidades familiares, por outro lado certo conceito de família (a meu ver, o mesmo usado para atacar a educação para a diversidade proposta pelo Fórum Municipal de Educação de Goiânia) também é usado como forma de tipificar quem é considerado como verdadeiro trabalhador da terra. As referências recentes de parlamentares conservadores ao MST como movimento criminoso aliadas às inúmeras menções aos “agricultores” e às “famílias” feitas por deputados na votação da admissibilidade do processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff permitem exemplificar provisoriamente a estratégia política que associa um certo modelo de entidade familiar conservador, políticas de privatização e da reação contra a suposta interferência do Estado em matéria privada (quando na verdade o que tem ocorrido é justamente a intrusão crescente do privado na esfera pública). Então, se o PME, a questão fundiária, os direitos reprodutivos das mulheres, as causas do movimento LGBT, entre outros, parecem se defrontar com um problema comum, penso que o desafio é pensar formas de articular as lutas em defesa dos bens coletivos. Como hipótese final, gostaria de dizer que a disputa do conceito de família me parece estratégico para todas as lutas atuais. Se o conservadorismo tem insistido em pautar uma família heteronormativa, constituída em torno da obsessão pela posse da terra, do consumo e do elogio de tudo que é privado, a comunidade LGBT, os povos indígenas, os grupos quilombolas diversos e os trabalhadores do campo – trabalhadores em sentido estrito, e não no sentido do termo “agricultor” tal como empregado pelos deputados gaúchos em abril de 2016 – ensinam a todo instante que um mundo permeado por relações mais plurais e calcadas no sentido de coletividade é possível e necessário.

Nesse ponto, as lutas pela terra e pela diversidade se cruzam e se reforçam, e, se devidamente articulados, podem ajudar a transformar para melhor a sociedade em que vivemos.

Referências https://jus.com.br/pareceres/32818/educacao-dever-do-estado-e-da-familia-principalmente-dafamilia Evaldo de Souza (2015): https://jus.com.br/artigos/38504/a-educacao-como-direito-publicosubjetivo-artigo-208-vii-1-cf-88 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm#indice http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000200012 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/anexo/and678-92.pdf http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12852.htm https://www.youtube.com/watch?v=9VBSrlrgNac https://www.youtube.com/watch?v=LGEvxbYmy-I https://www.youtube.com/watch?v=V-u2jD7W3yU / https://youtu.be/V-u2jD7W3yU?t=13436 http://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/ideologia-de-genero-na-mira-dos-vereadores-degoiania-38190/ http://www.camaragyn.go.gov.br/noticia.aspx?tipo=NOTICIA&ID=5284 http://www.camaragyn.go.gov.br/noticia.aspx?tipo=NOTICIA&ID=5265 Fontes adicionais: arquivos disponíveis no site da Câmara Municipal de Goiânia

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