\"Tirados assaz bem ao natural\": pistas para pensar a concepção de retratística na arte medieval através da tumulária feminina trecentista em Portugal

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Actas do IV Congresso de História da Arte Portugesa em Homenagem a José-Augusto França

23 NOVEMBRO SESSÃO TEMÁTICA 10 – O RETRATO

“Tirados assaz bem ao natural”: pistas para pensar a concepção de retratística na arte medieval através da tumulária feminina trecentista em Portugal Joana Ramôa Melo Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa Depois dos novos interesses suscitados no domínio da historiografia por matérias sensíveis à História da Cultura e das Mentalidades como o são as formas de relacionamento do Homem com o seu passamento e o imaginário além-morte (constituídas em objecto de estudo na década de 1970), coube, apenas nos últimos anos, à historiografia da arte cobrir de uma nova luz o entendimento desse fenómeno daqueles indissociável que é o da arca tumular decorada e o da – especialmente encantatória – figura jacente. O suporte teórico proporcionado pelos estudos de Philippe Ariès (1975, 1977, 1983), Jacques Chiffoleau (1980-81), Jacques LeGoff (1981), Marie-Thérèse Lorcin (1981), Michel Vovelle (1983, 1993), Alain Erlande-Brandenburg (1975) e, mais recentemente, Jérôme Baschet (1993-2010), Jean-Claude Schmitt (1994), Michel Fournié (1997), Michel Lauwers (1996-2005), Anita Guerreau-Jalabert (2000) ou Danièle Alexandre-Bidon (1993, 1998)1, para apenas citar alguns dos mais conhecidos investigadores da escola historiográfica e antropológica histórica francesas (de que somos, neste domínio, largamente devedores), revelou-se fundamental para a elaboração de novas formas de abordagem e de questionamento do fenómeno artístico da tumulária, chamando a atenção para aspectos determinantes do enquadramento mental em que o mesmo foi concebido e fornecendo pistas para a justa compreensão da razão de evoluir de algumas das suas formas e representações. Ainda assim, foi também esse fascínio pelas “descobertas” da Nova História, num domínio tão envolvente quanto difícil de alcançar como o das elaborações mentais e num âmbito a que, com mais à vontade ou pudor, voltamos de forma recorrente como o da morte, um encantamento difícil de ultrapassar e que, em certo momento, pareceu votar a explicação do episódio artístico e mental a que correspondeu a concepção do jacente a um âmbito puramente escatológico. Marcando presença, quase sem excepção, no interior dos mais ricos e visitados espaços de culto da Cristandade ocidental, o jacente de âmbito fúnebre oferece, na verdade, um dos mais eloquentes e abrangentes testemunhos do tempo medievo e, assim, um dos mais desafiantes temas para pensar a sua identidade. Ultrapassado o estigma da morte e o seu potencial macabro, a efígie tumular abre um leque surpreendentemente vasto de tópicos para o conhecimento daquela sociedade e de um conjunto de indivíduos concretos, que, se por um lado, com ela se fundem e confundem, por outro, não deixam de fazer uso dos mecanismos adequados para afirmar a sua personalidade. É nesta dualidade justamente que vive o jacente medieval, nele revelando-se muito do modo como o homem da medievalidade se entende a si mesmo e, desta forma, a concepção de retrato a que nesse contexto é dado espaço para vingar. De resto, a tridimensionalidade da prática escultórica e a ilusória escala natural do jacente tornam particularmente pertinente, presente e desafiadora essa reflexão em torno do que pode ser, afinal, o retrato medievo neste contexto, assim como da presença ou ausência, no mesmo, dessa parcela vital da identidade do conceito, o seu verismo. 1

Para uma síntese desta questão, veja-se Maria de Lurdes Rosa. “A morte e o Além”. In História da Vida Privada em Portugal, dir. José Mattoso, 402. [s.l.]: Círculo de Leitores e Temas e Debates, Setembro 2010.

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Representar graficamente alguém traz para primeiro plano, durante a medievalidade, um conjunto de valores que não correspondem necessariamente, na íntegra, aos requisitos habitualmente associados à noção do que é a retratística, mas que encontram perfeita harmonia com a sociedade que concebe e acolhe tais representações. “Inicialmente, a efígie não é retrato.”2 Será? Não, pelo menos, no sentido mais imediato ou simplista que podemos dar ao conceito. Não na concepção que foi despoletando dúvidas e afirmações menos pertinentes como o paradigmático comentário de Cordeiro de Sousa a propósito do estrabismo da rainha Santa Isabel revelado pelo seu jacente3, ou outros ainda, acerca do gigantismo de uma personagem histórica como D. Pedro, conde de Barcelos, ou o típico pescoço de inglesa de D. Filipa de Lencastre. Numa perspectiva mais alargada, contudo, falando de retratar enquanto acto de representar alguém, de lhe construir uma imagem determinada (fiel ou não fisicamente ao sujeito), o jacente não deixa de ser, afinal, um modo honesto e verdadeiro, mesmo que próprio, de o fazer. Assim, olhar o jacente medieval obriga, antes de mais, a ter presente aquilo que ele não é: moderno, realista (pelo menos na maioria dos casos e até certo momento, que é aquele que aqui nos ocupa), inteiramente laico, de apreensão imediata. Depois, a reconhecer a dupla natureza que o retrato neste contexto assume: a “natureza social”, que se traduz na configuração de uma imagem-tipo para determinados grupos e na primazia dada a elementos e figurações que identifiquem inequivocamente o indivíduo com uma família, linhagem ou categoria social; a “natureza religiosa”, no contexto da qual importará ter em conta as expectativas de salvação e a certeza da ressurreição vigentes no período em análise; portanto, o suporte espiritual do discurso que o jacente constrói e que, no limite, diz muito da condição humana e da relação que individualmente cada um estabelece com o sagrado. Dimensão terrena e projecção celeste estão, por isso, em estreita associação nesta forma de retratística, harmonizando-se – não contrariando-se – em todas as suas componentes. De resto, esses mesmos exemplares de jacentes, tão representativos da valorização de uma existência física concreta, podem ser vistos como o testemunho inequívoco da importância atribuída à materialidade na concepção que no Ocidente cristão imperou sobre a pessoa humana – mesmo para além da ressurreição ou num puro plano de divindade – e prova da relação dominantemente despudorada com a representação física e muitas vezes “antropomorfizada” daquilo que é sobrenatural. Uma vez trazida para o debate aquela dimensão social que o jacente comporta4, importará continuar a problematizar em torno da própria concepção de retrato que neste contexto se realiza, procurando deslindar a carga de individualidade e o grau de consciência de si mesmo, que pode conter uma representação inteiramente codificada ou fiel a códigos sociais pré-estabelecidos. Em última instância, tendo presente a complexa noção de indivíduo que impera na mentalidade cristã medieva, a busca de uma absoluta manifestação de individualidade revelar-se-á anacrónica. Referimo-nos concretamente ao facto de que, participando de múltiplas redes de solidariedades materiais e espirituais, o indivíduo na Idade Média dificilmente se revela em isolamento total (na sua inteira singularidade), ao mesmo tempo que a ligação íntima que mantém com a divindade, através da alma por ela criada e que para ela se encaminha, lhe nega a percepção de uma solidão absoluta. Um exemplo muito claro – para apenas citar um – das múltiplas possibilidades que neste contexto se criam para uma particular afirmação individual e de como a mesma pode desenvolver-se com recurso aos mecanismos da pertença comunitária, verifica-se no uso da heráldica, em que a escolha das armas ou o modo de as distribuir pelo sepulcro podem dar azo a fortes declarações de personalidade. É este o caso de D. Isabel de Aragão, através da colocação das armas do seu reino de

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Maria José Goulão. “Figuras do Além: A escultura e a tumulária”. In História da Arte Portuguesa, dir. Paulo Pereira, vol. II, 164. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995. 3 J.M. Cordeiro de Sousa. “Os ‘Jacentes’ da Sé de Lisboa e a sua Indumentária”. Revista Municipal (48): 7. 4 Para esta abordagem do jacente como “retrato social” pode considerar-se pioneiro o estudo de José Custódio Vieira da Silva. “Memória e Imagem: Reflexões sobre Escultura Tumular Portuguesa (séculos XIII e XIV)”. Revista de História da Arte 1, (2005): 47-81.

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origem em momentos-chave da iconografia tumular5, de D. Maria de Vilalobos6, através da preponderância dada ao escudo da sua própria linhagem, ou de D. Vataça7, por meio da total ausência das armas do marido do seu programa tumular. Ausência de verosimilhança – marca inequívoca do jacente medieval trecentista português – não significa, por outra parte, desinteresse pela identificação clara do indivíduo representado. Pelo contrário, no retrato fúnebre medieval, o assinalar da individualidade está bem presente e é conseguido por via de recursos iconográficos – a heráldica, os atributos, as inscrições – que tornavam o reconhecimento da pessoa representada mais inequívoco do que qualquer aproximação física, cuja eficácia dependeria já da habilidade do artista e/ou da duração da memória do fácies da personagem8. De resto, aquela mesma noção de pertença a um grupo e de ostentação de uma conformidade com o mesmo funciona, neste contexto representativo, não como via de apagamento do indivíduo, mas como parte assumida na definição do mesmo, enquanto ente que vive em sociedade e actua como membro de uma comunidade cristã. Através do vestuário e dos atributos codificados, expressam-se, deste modo, não apenas uma noção de pertença e encaixe social, como também a honra inerente à conformidade com os princípios da linhagem e, assim, a prática de virtudes que contribuem para que o indivíduo alcance a salvação. Se focarmos esta reflexão nos jacentes femininos que o Portugal de Trezentos nos deixou9, verificamos que domina um tipo de retrato que corresponde, do ponto de vista fisionómico e mesmo 5

No remate do Calvário (facial da cabeceira), na cena da “elevatio animae” (reverso do baldaquino). A mesma chamada de atenção para as escolhas iconográficas de D. Isabel de Aragão foi anteriormente feita por Francisco Pato de Macedo e Giulia Rossi Vairo; v. Francisco Pato de Macedo. “A Capela Funerária da Rainha D. Isabel de Aragão”. Santa Clara-a-Velha de Coimbra: Singular Mosteiro Mendicante. Tese de doutoramento, Universidade de Coimbra, 2006, 641-698; Giulia Rossi Vairo. “Alle origini della memoria figurativa: Sant’Elisabetta d’Ungheria (1207-1231) e Isabella d’Aragona, Rainha Santa de Portugal (1272-1336), a confronto in uno studio iconografico comparativo”. Revista de História da Arte 7 (2009): 221-235. 6 Sobre a tumulária da Sé de Lisboa, veja-se: Carla Varela Fernandes. Memórias de Pedra: Escultura Tumular Medieval da Sé de Lisboa. Lisboa: IPPAR, 2001. 7 A este propósito veja-se: Maria Helena da Cruz Coelho e Leontina Ventura. “Vataça: uma dona na vida e na morte”. In Actas das II Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, vol. I, 159-193. Porto: Centro de História da Universidade do Porto / Instituto Nacional de Investigação Científica, 1987. 8 No momento em que o naturalismo ganha terreno e até um certo realismo começa a ser valorizado – como podemos apreciar claramente nalguns jacentes quatrocentistas, a começar pelos de D. João I e D. Filipa de Lencastre – não é porventura de um maior grau de individualismo que devemos falar – pois esta é uma noção que, sempre articulada com o conceito de “comunidade”, é indispensável à compreensão do jacente, desde a sua origem –; antes de um seu entendimento e configuração segundo novos valores estéticos, aqueles que imperarão em definitivo posteriormente; v. José Custódio Vieira da Silva e Joana Ramôa. “O Retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória”. Revista de História da Arte 5 (2008): 77-95. 9 Referimo-nos concretamente aos seguintes jacentes: rainha D. Beatriz (?) (Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça); D. Margarida de Albernaz (Sé de Lisboa); D. Isabel de Aragão, a Rainha Santa (Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra); infanta D. Isabel (Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra); D. Vataça (Sé de Coimbra); D. Maria de Vilalobos (Sé de Lisboa); infanta de Portugal e de Manuel (Sé de Lisboa); D. Domingas Sabachais (Capela dos Ferreiros, Oliveira do Hospital); D. Sancha Pires (Mosteiro de S. Domingos do Rossio, Lisboa); D. Inês de Castro (Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça); dama anónima (Sé de Lisboa). Para uma análise geral do panorama da tumulária medieval feminina portuguesa, veja-se: Rosa Pomar. “Memória Tumular de Rainhas, Infantas e Fidalgas em Portugal (1250-1350)”. Revista da Faculdade de Letras. História II Série, vol. XV-2 (1998): 1509-1530; Carla Varela Fernandes. “Fama y memoria: Los enterramientos portugueses de reinas y mujeres de la nobleza en el siglo XIV”. Grabkunst und Sepulkralkultur in Spanien und Portugal / Arte funerario y cultura sepulchral en España y Portugal, eds. Barbara Borngässer, Henrik Karge, Bruno Klein, 207224. Madrid: Iberoamericana, 2006; Joana Ramôa Melo. “Listening to Women through Funerary Art and Practices: an Overview of the Feminine Agency in Portuguese Church Monuments of the Fourteenth-Century”. In Monuments and Monumentality in Medieval and Early Modern Europe, ed. M. Penman, 117-128. Shaun Tyas: Donington, 2013.

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corporal, a uma perfeita idealização do defunto. Para a problematização deste facto não nos parece despiciendo ter em mente a noção do corpo “aperfeiçoado” que pensadores como Santo Agostinho entendem ser aquele que se configura na pós-ressurreição10 – momento em que se “imprime”11, na matéria que é o corpo, final e verdadeiramente a imagem renovada da perfeição de Deus, perdida após a Queda e recuperada pelos justos depois da morte, o que torna os eleitos semelhantes aos santos e a Cristo12. O problema da ressurreição e da salvação da alma é, assim, inquestionavelmente central para a compreensão das características e da evolução do fenómeno tumular e da efígie a ele associado, embora não esgote em si as dinâmicas de funcionalidade dos mesmos, nem as aspirações do encomendante neles plasmadas. Se assim fosse dificilmente explicaríamos a existência desses moimentos em período anterior à difusão da crença no Purgatório (portanto, da fé no poder das intercessões levadas a cabo nos momentos subsequentes à morte, para as quais os recursos individualizadores das arcas visam contribuir). Nestes casos, e continuando pelos de época posterior, a preservação de uma memória específica (com outros propósitos para além do salvífico) constitui um (ou o) aspecto vital, uma função na qual os epitáfios começam por desempenhar a função principal13 e que não deixa de estar profundamente impregnada pelos valores espirituais. Esta é, assim, uma dupla condição e necessidade – as duas dimensões encontrando-se solidamente interligadas – que é preciso ter presente no estudo do monumento funerário medieval; do mesmo modo que devemos articular os mesmos dois aspectos (social e religioso; espiritual e laico) no entendimento da função retratística que o jacente concretiza. Nos jacentes femininos portugueses, o vestuário e os atributos (a par da heráldica e das inscrições patentes nas arcas), constituem, ao longo de toda a centúria de Trezentos e mesmo na passagem para a seguinte, os principais dados de identificação da pessoa representada – portanto, de construção de uma memória do indivíduo – e aqueles que, simultaneamente, contribuem para expressar as virtudes com que cada dama se apresenta na sua imagem derradeira e mais duradoura. Da observação daqueles jacentes transparece a ideia de uma feminilidade em idade “ideal”, difícil de determinar com precisão e, sobretudo, de um estado de integridade física que, em muitas situações, não se coaduna nem com a faixa etária nem com o aspecto que aquelas personagens históricas deveriam ter apresentado no momento da sua morte. Não se trata, portanto, de projectar no exterior da tampa, como em espelho, o corpo mortal e perecível que sob ela se guarda, nem por isso 10

A discussão gerada em torno deste tópico é apresentada de forma sumária, mas rica e estimulante, por Jérôme Baschet, que se refere a uma obsessão quase maníaca dos cristãos com a integridade dos corpos dos bem-aventurados depois da morte física; v. Jérôme Baschet. “Âme et corps dans l’Occident médiéval: une dualité dynamique, entre pluralité et dualisme”. Archives de sciences sociales des religions 112 (OutubroDezembro 2000). Posto em linha a 19 de Agosto de 2009. URL: http://assr.revues.org/20243. 11 A partir do final do século XI, a metáfora do selo e da semelhança “imprimida”, usada com frequência num discurso de reflexão teológica para explicar a articulação entre o ser interior e o exterior do indivíduo (tal como o selo se compunha de um retrato e de uma inscrição com o nome) e a conformidade do indivíduo com o grupo social a que pertence (os selos correspondendo a retratos categorizados, replicáveis a partir de uma matriz), acompanha a difusão do uso deste recurso entre os homens livres; v. Michel Pastoureau. “Les Sceaux et la fonction sociale des images”. In L’Image : fonctions et usages de l’image dans l’Occident médiéval, ed. J. Baschet, J.-C. Schmitt, 275-308. Paris: Le Léopard d’Or, 1996. 12 V. Thomas E.A. Dale. “The portrait as imprinted image and the concept of the individual in the romanesque period”. In Le Portrait: la représentation de l’individu, coord. Agostino Paravicini Bagliani, Jean-Michel Spieser, Jean Wirth, 91-116. Firenze: Sismel – Edizioni del Galuzzo, 2007. A este propósito será igualmente interessante reflectir sobre a semelhança física existente entre as imagens criadas pelos escultores de Trezentos para uns e outros, “simples mortais” e figuras santas. 13 O verdadeiro regresso do epitáfio, depois de um período de perda de interesse pela personalização dos sepulcros e a identificação do defunto na sociedade hispano-visigótica, ocorre ao longo do século XII (entre 1151 e 1200). A partir de 1282, as inscrições funerárias passam a representar regularmente entre 50% e 60% do total de epígrafes conhecidas. Estes dados baseiam-se no estudo de Mário Jorge Barroca. “Memórias”. In História da Vida Privada em Portugal, dir. José Mattoso, vol. 2 – A Idade Média, coord. Bernardo Vasconcelos e Sousa, 437-438. Círculo de Leitores e Temas e Debates, Setembro 2010.

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de cristalizar o instante da morte na sua vivência terrena; antes, pelo contrário, de consumar uma certa ideia de incorruptibilidade do corpo, reservada aos santos e virtuosos. Trata-se, sim, de uma imagem ideal de eternidade e bem-aventurança que se confunde (e nos confunde), sem preconceitos, com a própria imagem terrena do ser humano, no pleno exercício das suas prerrogativas mundanas. Domina a representação de uma mulher jovem (pela ausência das marcas de envelhecimento)14, na maturidade do seu ciclo biológico (pela configuração de um corpo assumidamente assexuado), dotada de uma genérica e abstracta formosura (reflexo das suas qualidades intrínsecas e virtudes interiores), consciente da sua idiossincrasia e assumida intérprete das suas especificidades, que mais têm que ver com o género e, sobretudo, com a classe a que pertence do que com a fase da vida em que faleceu15. Este último aspecto é-nos revelado eloquentemente pelos exemplos de infantas mortas antes de atingirem a idade adulta (Coimbra e, possivelmente, Lisboa), cuja menoridade apenas perpassa na menor dimensão dos respectivos túmulos (consequentemente também das efígies), no vislumbre dos cabelos e no colo descoberto dos jacentes, em tudo o resto émulos dos retratos das casadas e mesmo das viúvas, falecidas em estágios bem diversos das suas vidas e da realização feminina – muitas delas tendo já cumprido, de resto, os deveres da maternidade, função primordial da existência feminina, mas que não encontra tradução visual na generalidade dos programas tumulares16. Se para o universo tumular masculino, a idade “ideal” de representação (portanto de apresentação de si mesmo, na sua dignidade máxima) parece genericamente corresponder à fase de plenitude que é, por norma, identificada nos esquemas relativos às idades do homem com a meia-idade17, será interessante ponderar, tendo em conta o carácter não inclusivo do sexo feminino de grande parte dessa reflexão medieva elaborada em torno do ciclo da vida, qual a idade considerada “perfeita” para as mulheres que estes seus jacentes poderão reflectir. Se nem os autores medievais, nem os seus comentadores se debruçaram sobre esta “variação” entre sexos, o domínio tumular parece expressar diferenças apreciáveis18. Tais divergências relacionam-se, antes de mais, com a necessidade de criar uma imagem adequada ao quadro de valores que se espera ver plasmado no comportamento de cada um dos géneros e, neste caso, das mulheres, a começar por um sentido de pureza (associada, por excelência, a uma determinada fase da vida), que necessariamente afasta estas representações daquelas que são mais

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Tal como os efeitos físicos da morte sobre o corpo humano, também os efeitos do envelhecimento estão genericamente ausentes da configuração dos jacentes trecentistas portugueses. De facto, no contexto medieval, particularmente entre as mulheres, dificilmente se entende a representação de uma idade avançada como reflexo de um estatuto mais nobre ou de um qualquer incremento de poder – enquanto no caso dos homens, alguns traços de maturidade, como a barba, tendem, a partir do séc. XII e a exemplo da própria evolução iconográfica cristológica, a constituir sinais da sua dignidade senhorial; v. Jean Wirth. L’image à l’époque gothique (1140-1280), 163. Paris: Les Éditions du Cerf, 2008. 15 Curiosamente, este é também um elemento que se revela coerente com um dos aspectos que diferencia o epitáfio medieval do paleocristão: mesmo quando regista os elementos cronológicos (o ano, por vezes o mês e o dia do óbito), nunca indica a idade da pessoa; v. Mário Jorge Barroca. “Memórias”. Op. cit., 438-439. 16 Este “apagamento” da função materna parece ser, além do mais, consentâneo com o carácter eminentemente “espiritualista” e tipificado da maioria dos jacentes femininos portugueses (extensível, aliás, ao programa das arcas), para não dizer das efígies medievais lusas no geral. 17 A “inventus”, como lhe chama Santo Isidoro de Sevilha, decorrida entre os meados dos 20 e os meados dos 40, o que, por outra parte os situa na proximidade dos 33 anos cristológicos, tomados por alguns teólogos (que interpretam à letra as palavras de S. Paulo aos Efésios) como a idade que assume o corpo ressuscitado. Sobre a reflexão medieval elaborada em torno das idades do homem, aplicado a concretizações iconográficas portuguesas de âmbito tumular, veja-se: Luís Urbano Afonso. O ser e o tempo: As idades do homem no gótico português. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2003. 18 Para uma leitura sugestiva sobre esta matéria veja-se: Kim M. Philipps. “Maidenhood as the Perfect Age of Woman’s Life”. In Young Medieval Women, ed. Katherine J. Lewis, Noël James Menuge, Kim M. Phillips, 1-16. United Kingdom: Sutton Publishers, 1999. Não dispomos de espaço para aprofundar o tema mas pretendemos, em publicação futura, explorar este tópico de reflexão.

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pertinentes no universo masculino. Esta poderá constituir, quanto a nós, uma das matérias para as quais o olhar atento sobre os jacentes deverá trazer novas leituras19. Do ponto de vista iconográfico, os jacentes femininos do século XIV manifestam uma absoluta conformidade com o modelo de virtudes proposto à comunidade feminina a partir do século XIII20: o temor a Deus (perante quem a mulher se apresenta em toda a sua virtude, visando receber misericórdia); a domesticidade (representada pelos pequenos cães de companhia que algumas apresentam); a castidade (seja através de uma verdadeira ode à virgindade, como no caso da infanta D. Isabel, seja da afirmação mais subtil, de uma contenção simbolicamente representada pelo véu que oculta em absoluto a cabeleira); o exercício da vida espiritual como principal dimensão autorizada de uma prática activa (cristalizando, nalguns casos, a imagem de uma absorta dedicação à leitura das orações ou dos salmos); a oração, portanto, como rito central de estruturação do quotidiano feminino; a relação controlada com um corpo que se adorna mas que se contém em gestos de grande suavidade; a caridade (materializada nas bolsas que algumas trazem à cintura), acto religioso e de marcação social. As divergências fundamentais que podemos observar, entre os jacentes femininos portugueses, na configuração dos diferentes rostos, têm, por outro lado, muito mais que ver com o trabalho próprio de cada escultor e com a região oficinal a que as efígies pertencem do que com qualquer tentativa de eternizar a imagem fiel que estas damas apresentariam em vida. Analisando estes rostos em sucessão cronológica, constatamos, para além do apuramento técnico que alguns mestres e oficinas lograram alcançar (com exemplo máximo nos jacentes de D. Maria de Vilalobos e de D. Domingas Sabachais), a introdução significativa de um leve sorriso (em substituição do lábio invertido que os exemplos mais precoces – o da rainha D. Beatriz (?), em Alcobaça21, e o de D. Margarida de Albernaz – ostentam), nota de mudança transversal na escultura gótica, cujas valências ideológicas e espirituais foram já sobejamente exploradas. No contexto tumular, esta alteração – diríamos – coaduna-se na perfeição com a mudança de paradigma no que ao processo de salvação diz respeito: 19

Parece-nos central para esta discussão lançar um olhar atento sobre os túmulos de infantas de Coimbra e de Lisboa, nos quais o problema se articula com uma reflexão acerca da concepção medieval sobre a criança. Neste contexto, chamamos somente a atenção para o contraste existente entre a representação dos dois irmãos, Dinis e Isabel, rapaz e rapariga, mortos sensivelmente com a mesma idade e, contudo, figurados (respectivamente, em Odivelas e Coimbra) segundo esquemas perfeitamente diversos: a figura masculina numa clara aproximação a uma imagem imberbe e infantil; a figura feminina num perfeito acordo com uma maturação corporal incompatível com um desenvolvimento de pouco mais de um ano. Outros dados deverão cruzar-se na justificação desta discrepância de critérios (passando pela própria divergência de tempos e oficinas), mas talvez a diferença de géneros não seja, mais uma vez, neste caso completamente alheia à situação. Sobre a identificação do jacente de Odivelas com o infante D. Dinis veja-se: Giulia Rossi Vairo. “O mosteiro de S. Dinis, panteão régio (1318-1322)”. In Encontro do CITCEM: Família, Espaço e Património (26-27 de Novembro de 2010), coord. Carlota Santos, Actas, 6-11. Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2012. 20 Para uma síntese destes modelos comportamentais veja-se: Carla Casagrande. “A mulher sob custódia”. In História das Mulheres, dir. Christiane Klapisch-Zuber, vol. 2 – A Idade Média, 99-141. Porto: Edições Afrontamento, 1990. 21 Na nossa tese de doutoramento dedicámos um extenso capítulo à discussão em torno da identificação da rainha sepultada em Alcobaça. Por uma série de elementos que integrámos numa reconstrução histórica da encomenda e das biografias de ambas as personagens associadas a esta representação – D. Urraca e D. Beatriz – pudemos reforçar a probabilidade de se tratar de uma peça associada à segunda personagem e situada na década de 90 do século XIII. V. Joana Ramôa Melo. O Género Feminino em Discussão. Re-presentações da mulher na arte tumular medieval portuguesa: projectos, processos e materializações. Tese de doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, 2012, Parte II, Cap. 1. Recentemente voltámos a tomar a questão, problematizando e complexificando esta atribuição: Joana Ramôa Melo. “Ser rainha e ser presente, ser mulher e ser potente: o suposto primeiro jacente régio português e as dúvidas geradas em torno da pertença a D. Urraca (1187-1220) ou D. Beatriz Afonso (1244-1300)”. In Reginae Iberiae: El poder regio femenino en los Reinos Medievales Peninsulares, ed. Miguel García-Fernández, Silvia Cernadas Martínez. Santiago de Compostela (no prelo).

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do jacente imóvel, adormecido na morte, aguardando pacificamente a beatitude, ao de gestualidade dinâmica, exercitando pela eternidade, numa vida além da morte, a condição social de que gozou em terra e as virtudes que o conduzem à bem-aventurança. Exteriorização – por vezes roçando os limites da ostentação – e revelação interior dialogam, por isso, de forma constante e dinâmica na maneira como o indivíduo se apresenta, através do seu túmulo, simultaneamente ao mundo terreno que abandona e ao espiritual que depois da morte o receberá. Esta deve constituir uma apresentação exemplar, num retrato que é, antes de mais, a súmula deliberada e bem arquitectada das virtudes que cabe a cada sujeito na sua época e contexto manifestar. Na sua configuração individual, o jacente apela para o cristalizar de uma memória pessoal, mas é na conformidade com um grupo – que ele representa por meio de um conjunto de caracteres estereotipados – que as suas próprias características ganham sentido e (até) conteúdo religioso. A relação que sempre se mantém com a materialidade terrena do ser humano e a importância atribuída ao papel que em vida lhe coube desempenhar (mesmo depois da morte) patenteiam-se, assim, no modo como nestas representações se preservam as diferenças entre homens e mulheres (quer físicas, quer simbólicas ou conceptuais), contrariando, neste contexto representativo específico, toda e qualquer concepção abstracta e assexuada do corpo do bem-aventurado.

Fig. 1 – Jacente de rainha. Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça (século XIII)

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Fig. 2 – Jacente de D. Domingas Sabachais. Capela dos Ferreiros, Oliveira do Hospital (c. 1341?)

Fig. 3 – Jacente de infanta de Portugal e de Manuel. Sé de Lisboa, Deambulatório (século XIV, meados?)

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Fig. 4 – Jacente de D. Maria de Vilalobos. Sé de Lisboa, Deambulatório (1349-1367)

Fig. 5 – Jacente de D. Vataça. Sé Velha de Coimbra (c. 1337)

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Fig. 6 – Jacente da infanta D. Isabel de Portugal. Mosteiro de Santa Clara-a-Nova de Coimbra (1326-1336)

Fig. 7 – Jacente de D. Inês de Castro. Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, transepto (c. 1360)

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BIBLIOGRAFIA

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