TIROS, LÂMPADAS, MAPAS E MEDO: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

LUAN CARPES BARROS CASSAL

TIROS, LÂMPADAS, MAPAS E MEDO: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder

Rio de Janeiro 2012

Luan Carpes Barros Cassal

TIROS, LÂMPADAS, MAPAS E MEDO: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientador: Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho. Área de concentração: Processos psicossociais e coletivos.

Rio de Janeiro Fevereiro de 2012

Luan Carpes Barros Cassal

TIROS, LÂMPADAS, MAPAS E MEDO: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Aprovada em 22 de março de 2012

______________________ Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de Bicalho Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

______________________ Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)

______________________ Prof. Dr. Marcelo Santana Ferreira Universidade Federal Fluminense (UFF)

______________________ Prof. Dr. Luis Antônio dos Santos Baptista Universidade Federal Fluminense (UFF)

Para Valéria Lagrange, querida mestra. Por conta de sua própria experiência, avisou-me que a Psicologia não servia para muita coisa. Felizmente, ela estava certa. E consegui aprender que o ‘muito’ não é o que devemos buscar. Para aqueles cotidianamente assassinados pela ousadia de existirem.

AGRADECIMENTOS À minha mãe, Graça, que sempre imprimiu modos singulares de viver. Mesmo em desacordo com as expectativas, não desiste, insiste, vive uma vida de poesia. Aprendi que essas normas são arbitrárias e produzem sofrimento. Uma força de diversidade na minha vida. Ao meu pai, Alex. Talvez ele não se lembre de uma conversa quando me disse que fazer arte não precisa ser algo útil; e que queria viver em um mundo onde se pudesse fazer o inútil. Tive que rever minha relação com o tempo. Seu suporte silencioso me tranquiliza nos momentos de angústia. À minha irmã, Emile. Sempre diz que gosta de ter um irmão tão inteligente. O que ela não sabe é o quanto admiro sua dedicação ao que considero o mais bonito dos projetos: a criação de uma linda criança. E assim agradeço também à minha sobrinha Sofia, nova geração da família. À minha madrinha Renata, que pisou no Instituto de Psicologia muito antes de mim. Mediadora para os sentimentos conflitantes, os desafios paradoxais, as escolhas assustadoras. Apostando sempre nos desafios. À minha avó Sônia. Uma vida de dedicação ao serviço público e à família. Ela aparecerá duas vezes nessa dissertação. Se não posso dar conta de seu medo, pelo menos registro meu carinho e meu orgulho. Ao meu irmão Tiano, pelo companheirismo nas horas mais difíceis, e também nas mais divertidas. Ou por fazer de tempos ruins, piadas. E por sempre ter algo a criticar, mas também a elogiar. Pela companhia durante toda a segunda viagem a São Paulo descrita neste texto. E pela copa Rebarba. E por revisar atentamente (espero) este texto. A todas minhas famílias, que me emprestam seu nome e sua história, me acolhendo de inúmeras formas, protegendo uns aos outros. Aos meus amigos, que me fazem viver o Rio de Janeiro como um lar. Por mais que eu viaje, sempre quero voltar logo. Todos ajudaram a construir essa dissertação, direta ou indiretamente, mas alguns precisam de nomeação. Camila e Daniel, dos tempos de passe-livre e amizades intensas; agora profissionais sérios, como eu não me imagino sendo. Fernanda, dona do maior coração e da melhor cozinha do mundo, não necessariamente nessa ordem. Letícia, porque arrasa sempre, onde quer que esteja. Evelyn, uma mentora para sobreviver em uma militância muito dura. Vanessa, conhecida como linda ou derruba-eu; preciso explicar? Yamei, diva em todas suas sete personalidades. Aline, porque perdi e a vida é feita disso. Elisa, que costura tecidos em forma de sonhos, desde que esteja com disposição suficiente. Eliane, meu bebê, que cresceu e me enche de orgulho. Dana, mesmo com suas piadas infames (ou por causa delas). Crespo, porque tava ali parado. Jano, o fauno mais inteligente que há, e importante influência para eu parar de comer carne. E Guilherme, que com muito amor e cuidado acolheu meus ataques de estresse no último ano de dissertação, e me fez uma pessoa mais forte e me permitiu também ser mais frágil. Aos amigos que me fazem tanto voltar a São Paulo. Relações vindas de encontros inesperados. David e Eric, parceiros de RPG. Rafael e João, os nômades do couch-surfing. Nany, imperadora de nosso reino imaginário, protetora do meu mundo real, tantas viagens juntos que nem lembramos mais. Pedro e Nando, que me receberam em março do ano passado – é mais divertido vê-los no Rio.

Aos meus companheiros de profissão, que fazem da psicologia um lugar muito mais bonito com suas práticas. Luciana, meu amor inseparável. Aline Garcia, parceira absolutamente necessária para que essa dissertação tomasse forma e fizesse sentido. Aline Gomes, eterna estagiária. Lívia, a força disfarçada de doçura. Vanessa, minha relação mais queer e subversiva. Ana Marsillac, que é qualquer coisa exceto patética, e me emprestou seu lindo apartamento para a Virada Cultural de 2011. Natália, com pipas, passeios e uma determinação que dá gosto. Naru, a psicóloga kawaii. Bianca, nas versões loira, morena e ruiva, todas igualmente divertidas. Fernanda, porque é maravilhosa. Janaína, sempre que me lembro de seu brinco de ankh, penso no imenso aprendizado que compartilhamos na pós. Kely, que luta lindamente por um cuidado que não seja sinônimo de exclusão. Juliana, com seus cigarros, seu humor ácido e a apresentação de trabalho bêbada. Rafael, por sempre me fazer rir, e também por me apresentar a tirinha usada no capítulo 4. Viviane, que compartilha comigo a encruzilhada de ser psicóloga ou professora ou largar tudo isso e ir pro circo. Cris, a líder de uma comissão de psicólogos insuportáveis. Lindomar, dotado de uma implicação que não se limita com as adversidades. Bia, que fez da psicologia uma casa e da casa uma loucura – no que ambas tem de mais potente. Aos professores. Com estes, apaixonei-me por dar aulas, por estudar e aprender e pelo lugar da escola. Ensinaram-me também um norte ético, que não é fácil, mas vale à pena. Algumas destas relações duraram muitos anos, com apostas imensas, que me davam uma direção nos momentos de maior fragilidade. Outros foram um pouco mais breves, mas inesquecíveis. Agradeço especialmente Ana Abrahão, Maria Amélia Costa, Alexandra Tsallis, Paula Cerqueira, Luciana Zucco, Adriana Geisler, Emerson Merhy, Alexandre Bortolini, Virgínia Kastrup, Selma Pau-Brasil, Maria Luiza, Riko, Libânia Xavier. Ao meu orientador, Pedro. Nossa relação teve várias mudanças nesses quatro anos. Duas pessoas muito intensas trabalhando juntas, produzindo inúmeras coisas, passando por diferentes espaços, sendo transformado por todo esse processo. Sou imensamente grato pela oportunidade que tive e pela amizade que construímos. Aos colegas nos diferentes espaços por onde passei durante minha formação – estudaram comigo na Politécnica e na UFRJ; que assistiram minhas aulas e muito ensinaram; que trabalharam comigo em estágios, projetos de pesquisa e extensão; militaram no Conselho Regional de Psicologia; que frequentaram baladas e congressos; conviveram nos inúmeros espaços que me constituem e atravessam.

que me que que

Aos membros da banca de avaliação, que trouxeram excelentes contribuições no exame de qualificação e agora me dão a honra de recebê-los para defender publicamente minha dissertação. À minha antiga analista, Maria Dorita. Foram seis anos de um trabalho muito árduo, mas com efeitos extremamente potentes na minha vida. À população brasileira, que financiou todo meu estudo, desde o ensino fundamental até a conclusão do mestrado. Espero fazer esse investimento retornar o máximo possível. À CAPES, pela concessão de bolsa que potencializou a realização desta pesquisa. À Cher, pelo glamour. A você que se interessou por este texto.

RESUMO CASSAL, Luan Carpes Barros. Tiros, lâmpadas, mapas e medo: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Uma cartografia da homofobia e seus efeitos como processo de produção controlada de corpos e subjetividades no contemporâneo. A partir do trabalho de Michel Foucault, entende-se que a sexualidade é uma complexa estratégia de saber-poder estabelecida a partir do século XVIII, valendo-se de normas para a produção regulada corpos (individualizados), subjetividades (homogeneizadas), populações (ordenadas). Um ‘dispositivo da sexualidade’ investido na produção de ‘biopoder’. Foi utilizada a cartografia como metodologia para mapear processos de produção de subjetividade. O corpo é o principal instrumento do cartógrafo, sensível às relações de poder. Esta cartografia parte de duas situações de violência ocorridas no dia 14 de novembro de 2010: no Rio de Janeiro, um jovem homossexual foi baleado por um militar em serviço próximo a um quartel. Em São Paulo, um grupo de homossexuais foi agredido por rapazes, um deles usando uma lâmpada fluorescente. Os locais das agressões são os mesmos das Paradas do Orgulho LGBT destas cidades. Para entender tais atos, foi necessário retornar ao surgimento da categoria ‘homossexual’ no século XIX. Uma classificação psiquiátrica que identifica um ‘tipo’, com características próprias transformadas no fundamento de sua existência. A normatização sexual produz atualmente um modelo que todos devem seguir – a heteronormatividade. As agressões que tomam homossexuais como alvos são punições, nomeadas de homofobia, funcionando na reafirmação das normas, sustentados por discursos que marcam alguns modos de existência como ilegítimos e anormais. Tal qual o militar que disparou contra um homossexual, a eliminação de corpos se dá em nome da vida saudável, em defesa da sociedade. Por conta dos acontecimentos de Quatorze de Novembro, o debate sobre a homofobia toma as ruas, os noticiários e as conversas cotidianas. Certa noite, o cartógrafo anda sozinho pelas ruas de São Paulo, e o medo torna-se um potente atravessamento, produzindo a forma como se relaciona com o espaço, como constrói sua performance de gênero. O medo mata possibilidades, legitima pedidos por controle e disciplina, move economias, esvazia o espaço público, marca um sujeito como inimigo. Por conta do medo, o corpo-homofóbico, anormal, precisa ser localizado, controlado, destruído; para proteção do indivíduo-homossexual - desde que este seja adequado à diversas normas sociais. A violência torna-se questão individual e naturalizada, enquanto a eliminação sistemática das diferenças prossegue silenciosa. O medo é útil. Porém, em outra noite em São Paulo, a cidade é tomada por um grande evento cultural, tornando-se encontro de estéticas diversas. O enfrentamento da homofobia neste espaço não se deu pela naturalização de uma categoria, mas pela dispersão da mesma. O dispositivo da sexualidade produziu resistências: o corpo é desnaturalizado, investido por diversas tecnologias, produtor de prazeres para além do sexo. As identidades, construções móveis, servem como estratégia política para a reivindicação de garantia de direitos e o estabelecimento de relações de amizade não-institucionalizadas. A cidade, vivida antes como medo, pode ganhar uma nova geografia ao se tomar a diversidade como potência, sem naturalizar classificações nem organizar espaços. Por suas transformações, o corpo do cartógrafo pôde registrar como a diferença produz encontros, transforma relações, inventa mundos. Palavras-chave: Homofobia. Biopoder. Medo. Homossexualidade. Heteronormatividade.

ABSTRACT CASSAL, Luan Carpes Barros. Tiros, lâmpadas, mapas e medo: Cartografias da homofobia como dispositivo de biopoder. Rio de Janeiro, 2012. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

A cartography of homophobia and their effects as a process of controlled production of bodies and subjectivities in the contemporary. Based on the work of Michel Foucault, sexuality is understood as a complex strategy of knowledge-power drawn from the eighteenth century, making use of norms for the regulated production bodies(individual), subjectivity (homogenized), populations (ordered). A 'sexuality device' invested in the production of 'biopower'. Cartography was used as a method for mapping production processes of subjectivity. The body is the main tool of the cartographer, sensitive to power relations. This cartography starts with two situations of violence that occurred on November 14, 2010: in Rio de Janeiro, a young homosexual was shot by a soldier on duty near a barracks. In Sao Paulo, a homosexual group was attacked by young men, one using a fluorescent lamp. The locations of the attacks are the same as LGBT Pride Parades of these cities. To understand such acts, it was necessary to return to the emergence of the term 'homosexual' in the nineteenth century. A psychiatric classification that identifies a 'type', with their own characteristics transformed on the foundation of its existence. The sexual norms currently produces a model that everyone must follow - the heteronormativity. The assaults that take homosexuals as targets are punishments, named homophobia, working in the reaffirmation of norms, supported by discourses that mark some modes of existence as illegitimate and abnormal. Just like the soldier who shot the homosexual, the elimination of bodies takes place in the name of healthy life, in defense of society. On account of the events of November Fourteen, the debate on homophobia takes to the streets, the news and everyday conversations. One night, the cartographer walks alone through the streets of Sao Paulo, and fear becomes a potent crossing, producing the way he relates to the space and build his gender performance. The fear kills possibilities, legitimate demands for control and discipline, move economies, empty public spaces, marks a subject as an enemy. Because of the fear, the body-homophobic, abnormal, need to be localized, controlled, destroyed for protection of the individualhomosexual - since he is suitable for the diverse social norms. The violence becomes naturalized and individual matter, while the systematic elimination of differences goes silent. The fear is useful. However, on another night in Sao Paulo, the city is taken by a large cultural event and became encounter of diverse aesthetic. The homophobia combating in this space is not given by the naturalization of a category but by its the dispersion. The sexuality device produced resistance: the body is denatured, invested by various technologies, producing pleasures beyond sex. The identities, movable constructions, serve as a political strategy for the warranty claim rights and the establishment of friendly relations were not institutionalized. The city, formerly of fear, can make a new geography by taking diversity as power without naturalizing classifications or organizing spaces. For its transformations, the body of the cartographer could record how the difference produces encounters, transform relations, invent worlds. Keywords: Homophobia. Biopower. Fear. Homosexuality. Heteronormativity.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO: “O QUE ESTÁ EM JOGO”, 9 1 – A SEXUALIDADE COMO ESTRATÉGIA, 13 1.1 – A fabricação de indivíduos e seus corpos, 13; 1.2 – Uma ‘descoberta’ prazerosa: o dispositivo da sexualidade, 16; 1.3 – Biopoder: Fluxos e movimentos do dispositivo da sexualidade, 24; 2 – “PARTIR, ANDAR”: PERCURSOS POLÍTICO-METODOLÓGICOS, 32 3 – HOMOSSEXUALIDADE: PRODUZINDO TRANSGRESSÕES ESPERADAS, 42 3.1 – A ‘invenção’ da homossexualidade e seus efeitos, 43; 3.2 – Homofobia e processos de criminalização da sexualidade, 49; 4 – MAPAS DE MEDO, CARTOGRAFIAS DA HOMOFOBIA, 58 4.1 – O cartógrafo sai para passear: a Avenida Paulista, 59; 4.2 – Medo, delinquência e a construção do homofóbico, 68; 4.3 – “É hora da Virada”: o retorno a São Paulo, 76; 4.4 – Corpos, prazeres, relações e amizades: pistas de um mundo diverso, 82; CONSIDERAÇÕES FINAIS, 89 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 94

INTRODUÇÃO: “O QUE ESTÁ EM JOGO”1 Em 14 de novembro de 2010, jovens foram agredidos na Avenida Paulista, em São Paulo, com lâmpadas fluorescentes por outro grupo de garotos. Alguns profissionais de segurança privada próximos ao local intervieram; o ato foi registrado por câmeras de vigilância e deduziu-se que aconteceu pela orientação (homo)sexual dos agredidos. No mesmo dia, um rapaz gay foi baleado próximo a um quartel por militares em serviço logo após o encerramento da Parada do Orgulho de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)2 do Rio de Janeiro. Seus agressores justificavam o ato por ele ser homossexual. Durante alguns dias, a mídia nacional bombardeou noticiários com discussões sobre o caso, acompanhando ‘agressores’ e ‘vítimas’, seus advogados, suas famílias e seus históricos pessoais. Peritos judiciais e psicossociais apresentam suas interpretações. A ‘homofobia’ torna-se pauta da vez; pelo menos até ocorrer uma imensa invasão policial no Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, que foi acompanhada ao vivo pela imprensa. Arma-se o circo em outro picadeiro. A ‘homofobia’3 ganhou espaço de destaque nos noticiários e, desde então, retorna eventualmente às pautas, de diferentes maneiras. Desde casos de violências (inclusive assassinatos) de homossexuais até as declarações de um Deputado Federal eleito pelo estado do Rio de Janeiro, que afirma ser possível ‘prevenir’ a homossexualidade na infância, contanto que o pai se faça presente e, caso necessário, utilize a força física. Através do tiro, da lâmpada, da fala pública, o debate sobre homofobia ganha força e torna-se mais ‘natural’ nas notícias. Esta poderia ser uma dissertação explicando a homofobia, valendo-se de perguntas tais como ‘qual a causa’ ou ‘como preveni-la’. Tomar como óbvio que a homofobia existe e, por isso, que precisamos eliminá-la. Seria uma pesquisa concentrada nas mortes e nos cadáveres. Porém, inspirado por Foucault, faço uso do título de um item de sua História da Sexualidade I: A vontade de saber – “O que está em jogo?”. O próprio autor aponta: “É 1

FOUCAULT, 1988, p.91. Ramos e Carrara (2006) apontam que o Movimento Homossexual Brasileiro, como era chamado desde seu surgimento, se intitula nos últimos anos como movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT), para dar conta das especificidades de múltiplas experimentações da sexualidade e do gênero que não tem direitos reconhecidos. Retornaremos a esta questão no capítulo 3. 3 O termo homofobia é utilizado para divulgar a violência contra homossexuais. Este conceito será discutido no capítulo 3. 2

preciso fazer a história dessa vontade de verdade, dessa petição de saber que há tantos séculos faz brilhar o sexo. [...] O que é que pedimos ao sexo”? (FOUCAULT, 1988, p.90-91). As posições sobre homofobia tornam-se cada vez mais delimitadas, em defesa da liberdade: de expressão daqueles que entendem a homossexualidade como ‘antinatural’, ou de exercício ‘natural’ da sexualidade daqueles que amam (e/ou desejam, e/ou transam com) pessoas do mesmo sexo. Sobrevivência a qualquer preço – de quem, do quê? Quais as condições de possibilidade para emergência e instituição da homofobia como conhecemos, e quais efeitos dessa ‘verdade’ nos processos de produção de subjetividade? Ao longo da dissertação, seguiremos juntos alguns mapas que surgiram a partir deste questionamento. Entretanto, quando pergunto ‘o que está em jogo’, devo considerar também minha história, para colocar em análise as forças que constroem esta questão de pesquisa, neste espaço, desta forma. Em junho de 2010, Alexandre Ivo, de 14 anos de idade, foi torturado e assassinado em São Gonçalo em um ato de extrema crueldade. Apesar de não haver consenso sobre sua orientação sexual4, estava claro um exercício de homofobia. Esse caso conseguiu visibilidade na mídia e na militância, principalmente pela idade do jovem. Quando acompanhei as notícias, senti um misto de tristeza, medo, raiva, e não sabia bem quais intervenções construir a partir desse acontecimento. Cinco meses depois, as agressões relatadas no começo desse texto tomaram a mídia, e surgem várias notícias sobre homofobia. Sinto a violência mais próxima – de mim, de meus amigos e amigas que circulam nesses territórios. Ao ver a notícia de Copacabana, minha avó liga para o meu pai para saber se eu estava na Parada do Orgulho. Ela também teve medo. Na semana seguinte, com a invasão militar no Complexo do Alemão e um clima de insegurança atravessando a cidade e os telejornais do país, meus alunos em Petrópolis e meus parentes em Porto Alegre se preocupam comigo. Quando vou a São Paulo, sinto medo ao andar sozinho de madrugada por um pequeno trecho da Avenida Paulista – lembro-me da lâmpada fluorescente, uma fala recorrente entre amigos. O medo se repete, se espalha, se infiltra. Não pode ser um simples ‘acaso’ – seus efeitos estratégicos atendem a alguns interesses. Em 2008, durante a graduação em psicologia, ingressei em uma pesquisa sobre psicologia e homofobia, e em seguida entrei como colaborador no Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro. Assim tive meu segundo encontro com Michel Foucault. 4

Alguns familiares relatam que o assassinato se deu porque ele andava com homossexuais, enquanto outros afirmam que o próprio Alexandre era homossexual.

Naquele trabalho, comecei a compreender as complexas relações de poder que atravessam o debate da sexualidade, além de pensar na produção regulada de modos de existência. Com Foucault, construí uma questão que me levou ao mestrado em psicologia – como se relacionam normas, transgressões e castigos a respeito da homossexualidade, e quais seus efeitos nos processos de subjetivação? Por que a Psicologia? Esta é a ciência que responde, por excelência, sobre a subjetividade humana ou, como afirma Canguilhem, (1973, p.13): “A psicologia não é mais somente a ciência da intimidade, mas a ciência das profundezas da alma”. Se a sexualidade ocupa um lugar central nas reflexões sobre a subjetividade e a individualidade, a psicologia se estabelece como saber que dita a verdade sobre o sexo e os sujeitos. No Brasil, até hoje a psicologia se orienta pelo modelo das ciências naturais (FERREIRA NETO, 2010); ao mesmo tempo, a sexualidade é compreendida sob uma ótica essencialista e biologizante (JUNQUEIRA, 2007). A psicologia tem legitimidade para falar do sexo, mas precisa ser interrogada sobre o que fala e como fala. Como ciência e profissão, a psicologia muitas vezes se posicionou de forma que “abrisse mão de sua potência de colocar problemas e ficasse limitada a fornecer soluções a problemas postos pela sociedade e pela ciência” (KASTRUP, 2007, p.63). Sobre a homossexualidade, a psicologia construiu aparatos técnicos e teóricos visando o retorno dos sujeitos às normas sexuais. Foucault (1988) aponta que tais práticas apenas enraízam as estratégias de dominação e poder das normatizações sobre a sexualidade. Baptista (1999) acrescenta que especialistas (inclusive psicólogos e psicanalistas) constroem teorias, ideias e conceitos sobre determinadas categorias de sujeitos, que servem para justificar a eliminação de populações a partir de seus modos de existência. Estar na psicologia é valer-se deste espaço de reconhecimento para criticar o que este saber tem instituído. Mas o ingresso no mestrado também me colocou um desafio. Eu não tinha clareza da estratégia que utilizaria para produzir e analisar as relações de poder. Até o final de 2010, eu evitava a discussão centrada na homofobia, pois considerava que este conceito retirava potência política dos debates sobre violência, na medida em que remetia a um autor, o ‘indivíduo homofóbico’. Entretanto, os acontecimentos daquele momento romperam com minha noção cristalizada sobre homofobia. Percebi o quanto este conceito é estratégico tanto para movimentos LGBT, bem como para agremiações conservadoras (especialmente algumas ligadas a fundamentalismos religiosos). Se a homofobia é um lugar construído a partir de relações de poder, podemos deslocá-la, transformá-la e utilizá-la na desconstrução não apenas de si própria, mas de toda lógica da

qual ela emerge – a tomada da sexualidade como uma essência do humano (FOUCAULT, 1988), e seus efeitos normativos como consequência obrigatória. Entretanto, falar de homofobia não significa se limitar à violência, processo sistemático de eliminação. A partir desta questão, é possível apontar para outras possibilidades de entendimento e experimentação dos corpos, dos prazeres e das relações. Deste modo, a presente dissertação tem por objetivo analisar os efeitos da homofobia em espaços públicos como estratégia de produção controlada da vida, e seus efeitos nos processos de produção de subjetividade. Escolhi como aposta metodológica a cartografia, que entende toda pesquisa como intervenção no mundo, na existência do investigador, no campo problemático e na própria questão epistemológica originalmente proposta (KASTRUP, 2008). A cartografia se propõe a acompanhar processos produtivos (como de subjetivação), utilizando dispositivos que façam ver e falar as relações de poder instituídas. O texto não se organiza de forma hierárquica, mas dá uma direção e uma estética para esta argumentação. O primeiro capítulo discorre, a partir da obra de Michel Foucault, sobre o estabelecimento e a manutenção da sexualidade como conhecemos – essência que seria compartilhada por todos os indivíduos e guardaria a verdade do sujeito, produzindo a vida de forma regulada. Assim, descrevo a constituição da normatividade sexual. O segundo capítulo discute a proposta política e metodológica da cartografia, entendendo a subjetividade como processo produtivo que pode ser mapeado se valendo de alguns dispositivos. Desta maneira, apresento as linhas gerais dos pressupostos metodológicos desta pesquisa, que sustentaram a construção da dissertação. O terceiro capítulo mapeia o surgimento da categoria ‘homossexual’ e do conceito ‘homofobia’ e seus efeitos no contemporâneo, tendo como disparador uma situação de violência no Rio de Janeiro. A delimitação das transgressões ganha as páginas. O quarto e último capítulo cartografa a produção do medo nas ruas de São Paulo, a partir da grande visibilidade dada pela homofobia; além disso, traz algumas pistas de possibilidades de enfrentamento da homofobia que possam romper com o funcionamento instituído da sexualidade. O castigo toma forma, bem como a produção de resistências. Por fim, nas considerações finais construo apontamentos de uma pesquisa que não se pretende completa. Como Kastrup (2007) discute, a criação de problemas traz uma potência inventiva muito mais interessante que a mera resolução dos mesmos. Não é possível saber de antemão quais efeitos desse texto. De todo modo, esta dissertação aposta na desnaturalização de alguns fenômenos tomados como dados, para a construção de alternativas múltiplas, coletivas, diversas.

1 – A SEXUALIDADE COMO ESTRATÉGIA

(Calvin & Haroldo – Por Bill Watterson) 1.1 – A fabricação de indivíduos e seus corpos

Foucault, em História da Sexualidade I: A vontade de saber (1988), coloca em análise a hipótese hegemonicamente difundida de que há um imenso aparato repressivo criado a partir do século XVII, com auge na era vitoriana. Atualmente, a sociedade enfrentaria os efeitos dessa interdição ao falar sobre si em alguns espaços, como consultórios de psicanálise e sítios na internet. Uma nova forma de análise é proposta por Foucault: o discurso sobre a repressão do sexo se sustenta porque atende a determinados regimes de verdade e de poder. Segundo Foucault (1988, p.19), “em vez de sofrer um processo de restrição, [a colocação da sexualidade em discurso] foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação”. Vale destacar que Foucault tem uma análise bastante particular sobre o poder, rompendo com tradições de análise políticas centradas em ‘encontrar’ ou ‘identificar’ o poder, seja no Estado ou em um grupo específico. O poder está no ato, no detalhe, espalhado; tão exposto que passa despercebido (FOUCAULT, 1979c). Para Deleuze, Foucault “deve ter sido o primeiro a inventar esta nova concepção de poder, que buscávamos, mas não conseguíamos encontrar nem enunciar” (2005, p.34), rompendo com os modelos (e lugares) tradicionais da esquerda e da direita5. De acordo com Foucault:

5

Bacca, Pey e Sá (2004) apontam que no Brasil, assim como em muitos países da América Latina e África, entende-se que o referencial marxista é de esquerda e, quem rompe com este paradigma, é de direita. Por isso, há um histórico de resistência ao estudo de Foucault em diversos cursos das ciências humanas e sociais. No entanto, o trabalho deste autor permite colocar em análise esta dicotomia, e construir outras possibilidades, quiçá transversais. Nesta pesquisa, foi possível (ir)romper com uma formação prévia marcada pelo marxismo e pela defesa de um modelo único de sociedade, para apostar na diversidade.

Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos com suas materialidades e suas forças. Ora, o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia [...] esse poder mais se exerce do que se possui, que não é o ‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de um conjunto de suas posições estratégicas. (FOUCAULT, 1987, p. 26).

O poder é sempre relacional, tático, dinâmico, em movimento. Se nós vemos uma estabilidade, está em seus efeitos, pois ele é constante produção, em curso, mais que hierarquia pré-estabelecida. Organização, coordenação não são funções dadas do poder, e sim efeitos de seu exercício (FOUCAULT, 1979d). Nessa perspectiva, o poder não deriva de uma sociedade de classes, dividida entre aqueles que o possuem e que não o possuem. Todos estão envolvidos no exercício do poder: “O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1988, p.103). De acordo com Bacca, Pey e Sá (2004), o poder circula, produzindo efeitos de saber, dando visibilidade para alguns discursos como legítimos e mantendo outros correndo em paralelo, até que as relações modifiquem os lugares estratégicos, tornando alguns daqueles antes silenciados agora hegemônicos. Candiotto (2010), ao estudar a obra de Foucault, aponta que a verdade do sujeito é produzida por discursos e regimes de poder vinculados de forma indissociável, sendo necessário localizar temporalmente suas construções. Para este autor, as práticas não estão ligadas a ideologias ou coincidências, mas funcionam de acordo com regularidades, estratégias, tecnologias e racionalidades. Os discursos instituídos como verdadeiros instauram uma ordem, marcando outras falas como falsas e ilusórias. A formulação da sexualidade enquanto uma verdade atende à produção de determinadas relações de poder (em detrimento de outras) – e mesmo de certos modos de existir; “a sexualidade não é fundamentalmente aquilo de que o poder tem medo; mas [...] ela é, sem dúvida e antes de tudo, aquilo através de que ele se exerce” (FOUCAULT, 1979c, p.236). Por isso, Foucault aponta que outra importante característica das relações de poder é sua função produtora: mundos, regimes de visibilidade, modos de existência, corpos, saberes, verdades. É através dos efeitos que podemos acompanhar feixes de poder, pois não possuem forma nem essência, sendo então não-visíveis (BACCA; PEY; SÁ, 2004). O poder produz subjetividades; “o sujeito para Foucault não é constituinte da verdade, mas sempre constituído por ela” (CANDIOTTO, 2010, p.64). Não se trata de uma dimensão ‘interna’ do sujeito a ser preenchida por representações ‘externas’, e sim uma produção

permanente, atendendo a fins estratégicos, articulados a relações de poder e atravessada pelos regimes de verdade daquele momento histórico. O sujeito é processual, posto que a subjetividade é produzida, fabricada através de sistemas complexos e descentralizados. O indivíduo é produto, com demarcações delimitadas, normalizadas, relacionadas umas às outras por sistemas valorativos e organizações hierárquicas: a “produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.28, grifo dos autores). Nesta perspectiva, a noção (e experiência) de indivíduo é efeito, e não mais dado a priori da existência. Guattari e Rolnik apontam: Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. [...] Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.31).

Produção de um modo-indivíduo de existência: inscrição de forças em movimento, processos produtivos, elegendo o corpo como fronteira da dicotomia ‘dentro-fora’ ou ‘indivíduo-sociedade’. Para Guattari e Rolnik, “não existe unidade evidente da pessoa: o indivíduo, o ego, ou, poderíamos dizer, a política do ego, a política da individuação da subjetividade é correlativa de sistemas de identificação que são modelizantes” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.38). Para isso, há o desenvolvimento de diversas tecnologias de poder que fazem ‘confessar’ a verdade e documentam, registram e fabricam a individualidade (FOUCAULT, 1987, 1988; CANDIOTTO, 2010). Pelbart (2009) entende que o regime de produção de subjetividade universalizante se mantém porque captura e produz o desejo de milhões de pessoas, vendendo formas de viver que consumimos sem nem questionarmos, porque são entendidas como naturais, dadas como universais. O modo-indivíduo emergiu e se estabeleceu porque seus efeitos produtivos são pontos de apoio ao diagrama de poder instituído. Entretanto, concordamos com Deleuze (1990) que o universal nada explica, ele que deve ser explicado. E por isso as interrogações sobre corpo como mínimo denominador comum de todos os sujeitos. Diversas abordagens científicas até hoje afirmam, como Le Breton (2010), o corpo como origem da existência humana, através do qual pode agir sobre o mundo e, assim, existir. O corpo, ao nascer, seria sempre inscrito na rede de sentidos ali presente, sendo mediado pelas condições sociais, mas dando expressão à particularidade individual. Este corpo tem uma definição de seus limites históricos (de início e fim) e geográficos (fronteiras), bem como suas funções básicas. O humano pode ser múltiplo, a partir desta base sempre comum,

característica da espécie. Compondo esta universalidade, está o sexo, em suas funções reconhecidas como diferenciação entre homens e mulheres e origem dos indivíduos (reprodução). Assim, o corpo nos une não só uns aos outros, mas à nossa cultura, aos outros animais, a toda natureza. Há uma essência humana, da qual não se poderia escapar. Um pensamento essencialista sobre o humano produz normatizações, onde a diferença se torna anormalidade. O desviante é um corpo mórbido, com comportamentos inadequados, que sofrerá intervenções (FOUCAULT, 1984a, 1987). Uma verdade estabelecida, que necessita de análise:“Situar a verdade a partir da vontade (histórica) de verdade significa sugerir que ela é deste mundo, nada mais que efeito de verdade desprovido de caráter de universalidade” (CANDIOTTO, 2010, p.58-59, grifo do autor). Foucault (1988) aponta que esta perspectiva sobre o corpo e o sexo, que é hegemônica, amplamente difundida e aparentemente universal, seria uma perspectiva. É entendida como verdade, mas não significa que seja ‘a verdade’, única e universal, ou mesmo que exista uma verdade última a ser desvelada. As verdades funcionam dentro de um regime de produção. E, por serem produzidas, há outras possibilidades de pensar estas verdades, materialidades, relações. 1.2 – Uma ‘descoberta’ prazerosa: o dispositivo da sexualidade Comecemos, pois, pelo século XVII: a confissão estabelece-se como técnica investigativa por excelência sobre o sexo. Há sempre algo a ser dito a respeito do sexo e isso precisa ser feito. Elemento fundamental da subjetividade que insiste em esconder-se, refugiarse, ludibriar. Para evitar os erros e enganos que suscita, é preciso dele falar segundo regras estabelecidas. Neste momento histórico, a sexualidade constitui-se como objeto de saber. Mais do que uma valorização, há uma ruptura na forma de se entender uma série de fenômenos dos corpos e das relações (FOUCAULT, 1985, 1988). Para Bacca, Pey e Sá (2004), trata-se de mudança nas regras de construção das verdades, ou seja, um acontecimento, pois é efeito de reorganização das relações de poder que sustentam essas verdades. Mudança não tanto sobre o que se fala, quanto de como e por que se fala. Além disso, constrói-se uma transformação dos regimes de verdade dos saberes centrados na taxionomia e classificação, para a explicação das funções – interessa, e muito, entender como acontece o sexo, seus modos de funcionamento em nosso viver. Com isso, ao contrário da censura, constrói-se uma aparelhagem para produção de discursos sobre o sexo,

na medida em que as técnicas de confissão são refinadas e se espalham por diversos territórios (FOUCAULT, 1979d). Os saberes elaboram práticas de produção do sexo: [...] nesse mesmo fim do século XVIII [...] nascia uma tecnologia do sexo inteiramente nova; [...] Através da pedagogia, da medicina e da economia, fazia do sexo não somente uma questão leiga, mas negócio de Estado; ainda melhor, uma questão em que, todo o corpo social e quase cada um de seus indivíduos eram convocados a porem-se em vigilância. (FOUCAULT, 1988, p.127).

Cada vez mais estratégias para falarmos sobre o sexo, carregado de marcações tão paradoxais como vergonha e prazer. É necessário ‘confessar’, para entender seu funcionamento e economia6. Seu, e de cada um de nós, posto que se toma o sexo como categoria universal, fundante de todos os sujeitos. Candiotto (2010) aponta que a constituição de um discurso científico (uma verdade) do sexo construiu a busca incessante da verdade sobre os indivíduos na cultura ocidental. Estratégia de produção de sujeitos, pois o “século XIX inventou um novo prazer sexual que não se limita ao fazer sexo, mas na enunciação exaustiva dos pensamentos, obsessões, desejos e imagens em torno dele” (CANDIOTTO, 2010, p.77, grifos do autor). Produção de registros, documentos, compreensões sobre o que é o sexo, e o que ele fala do sujeito. “Muito mais do que um mecanismo negativo de exclusão ou de rejeição, tratase da colocação em funcionamento de uma rede sutil de discursos, saberes, prazeres e poderes” (FOUCAULT, 1988, p.82). Produção de uma imensa ‘vontade de saber’ sobre o sexo e o sujeito, pois, “sendo natural e universal, a sexualidade seria a chave do sentido e da essência da população” (FARHI NETO, 2010, p.83). São estudadas relações sexuais, mas também a natureza da ‘sexualidade individual’. De acordo com Bozon (2004), neste mesmo período a ‘diferença sexual’ (critérios de diferenciação entre mulheres e homens) ganha um novo olhar, mais funcional e menos descritivo – feminino e masculino são naturezas diferentes, opostas, com argumentos biológicos que legitimam e naturalizam produções de subjetividade, construções históricas das relações sociais. Os novos saberes produzem corpos de conhecimento, corpos ‘naturais’ de indivíduos e uma variedade de outros corpos – crianças, loucos, mulheres, especialistas sobre o sexo. Moreno e Pichardo (2006) apontam que a palavra ‘sexo’ remete ao mesmo tempo à divisão entre homens e mulheres e às práticas sexuais. Esta associação produz uma

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Economia entendida aqui como “manifestação ou princípio de auto-organização em que com um mínimo de investimentos —de tempo, de recursos, de riscos, de afetos etc.— obtém-se os melhores resultados no governo das condutas” (VEIGA NETO, 2001, p.117).

invisibilidade estratégica, que tem por efeito a heterossexualidade compulsória e a dominação das mulheres como exercícios naturalizados e normativos de poder. Não é um mero incremento na quantidade dos discursos, mas toda uma complexa transformação qualitativa no sistema de regulamentação da sexualidade. A centralidade das normas desloca-se da prescrição do comportamento padrão (especialmente o sexo do casal mulher-homem), onde quaisquer transgressões eram igualmente condenadas, para uma proteção da ‘intimidade’ desse casal considerado ‘legítimo’ e a produção de visibilidade e confissão dos personagens ‘anormais’. Há diferentes exercícios do poder, e seus efeitos nas relações de visibilidade do mundo (FOUCAULT, 1988). O poder esquadrinha processos cada vez mais sutis, pois “sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam concernidos” (FOUCAULT, 1979d, p.49). A confissão sobre o sexo torna-se imposta por diversas forças, atravessa nosso existir. Assim, parece que há algo profundo em cada um de nós que precisa e demanda falar sobre sua existência escondida (a sexualidade), e se isso não acontece é por um silêncio repressor, obrigatório; precisamos afirmar algo da nossa ‘verdade’. Apenas a ‘verdade’ (do sexo) libertará, e através da confissão (que é sempre remetida a outra instância, material ou virtual). “Pela primeira vez, sem dúvida, uma sociedade se inclinou a solicitar e a ouvir a própria confidência dos prazeres individuais” (FOUCAULT, 1988, p.72). Para Farhi Neto (2010), a ideia de ‘sexualidade’ aponta para uma essência humana, com um funcionamento comum a todos que pode ser descrita através de um sistema de leis naturais-universais; a confissão, assim, garante a estratégia de individualização dos sujeitos, encerrando sua origem e sua história no corpo isolado. Proliferação de discursos, produção de saberes, esquadrinhamento de normas. Produção de uma imensa ‘vontade de saber’ a fim de revelar as leis da sexualidade e, em última instância, do humano (FOUCAULT, 1988; FARHI NETO, 2010). Arma-se, ao mesmo tempo, uma proteção em torno da pretensa ‘normalidade’ do sexo – relações heterossexuais, monogâmicas e com finalidade de reprodução. Se estes critérios já apareciam na organização da Igreja Católica, agora ganham uma nova dimensão, pois são calcados em argumentos biológicos e de saúde dos indivíduos e da espécie. Naturalização não mais divina, mas científica das normas morais. Para os modos de existência que não se adequam às normas, dedicam-se especialistas com seus conhecimentos. Produção de dados, hipóteses, categorias, origens e documentações; construção de um ente capaz de gerir e gerar a sexualidade, o Estado. Os saberes de gestão da vida que emergem operam uma transformação fundamental no Ocidente – os humanos aprendem o que é gerir e gerar a força

de sua própria vida, entendendo a si próprios como uma espécie, com forças a serem reguladas e repartidas em formas e espaços úteis, para maximização do viver e afastamento do morrer (FOUCAULT, 1988). O sexo é um dado natural destes corpos, que precisa ser regulado: [...] cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se. [...] Polícia do sexo: isto é, necessidade de regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição. (FOUCAULT, 1988, p.30-31).

Está em jogo, então, o sexo como critério de classificação e de verdade dos sujeitos. Esses saberes que se produzem na busca por uma verdade sobre o sexo (e do sexo como verdade). Poder-saber são processos produtivos relacionais e entrelaçados. O exercício de poderes se dá com a instalação de certas ‘verdades’ naquele momento histórico; por outro lado, esse mesmo exercício produz, legitima e reinventa verdades. Não se trata, portanto, da ‘verdade’ como finalidade metafísica; Foucault (apud BACCA; SÁ; PEY, 2004) aponta que a verdade é uma produção discursiva, que se estabelece em função das relações de poder. Tratase de política de verdades. Poderes e saberes se articulam em um encontro complexo de múltiplos elementos – o dispositivo (FOUCAULT, 1988). Para Deleuze (1990), o dispositivo opera tal qual um novelo ou emaranhado de diferentes linhas (de visibilidade, enunciação, força, subjetivação, ruptura, fissura, fratura) que se movem, entrecruzam, misturam, modificam, em um processo de permanente desequilíbrio. Ao falar sobre o dispositivo, Foucault tenta demarcar: [...] um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos [...] discursivos ou não, [em que] existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, que também podem ser muito diferentes. [...] O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. (FOUCAULT, 1979d, p.244).

Embora o dispositivo seja marcado por um objetivo estratégico em sua gênese, sua manutenção demanda um duplo processo. Por um lado, há a readaptação dos diversos pontos heterogêneos que se afetam e se transformam (sobredeterminação funcional); ao mesmo tempo, acontece a reorganização estratégica para que os múltiplos efeitos, por vezes inesperados, sejam tomados com finalidades diversas (preenchimento estratégico). Os

dispositivos se movem e se modificam, conservando e transformando as relações de poder (FOUCAULT, 1979d). A esta multiplicação de saberes discursivos e suas práticas correspondentes, que compõem uma complexa rede de saberes e poderes sobre o sexo desde o século XVIII, Foucault (1988) nomeia de ‘dispositivo da sexualidade’, uma estratégia potente e perversa de controle dos corpos, subjetividades e populações. Potente porque o poder avança cada vez mais fundo sobre os modos de existência; perverso porque provoca a existência de formas de experimentação e vivência da sexualidade como ilegítimas, não para exterminá-las totalmente, mas sim para a instituição de uma nova ‘ordem’ na sociedade. Para o exercício do dispositivo da sexualidade, a fabricação de um modo de existência: o indivíduo, um dado ao mesmo tempo natural e universal. Para Guattari, este processo hegemônico tem como consequência o esvaziamento de outras possibilidades de subjetivação (GUATTARI; ROLNIK, 1996). De que ordem nós estamos tratando? O estabelecimento e manutenção da burguesia como classe dominante. Foucault (1979d, 1988) aponta que a burguesia surge neste período histórico, a partir das transformações nos modos de produção e acumulação de bens, tributária da reorganização das cidades, dos campos e das populações7. Com o advento da burguesia urbana, faz-se necessária uma nova ‘pirâmide social’, que possibilite a ascensão de outros que não os nobres. Para estar no ‘topo’ é preciso um regime de verdade que dê legitimidade a esta relação de poder. A nobreza estabelecia seu status através do ‘sangue azul’, uma naturalidade imposta por um poder superior e mantida por linhagens mapeadas e delimitadas. Neste sentido, era de suma importância pensar na descendência a partir da ideia de alianças estabelecidas e na manutenção de sua pureza. A burguesia, por sua vez, aposta na saúde do sujeito e dos descendentes, através da sexualidade: delimitação de práticas patológicas (perversas) e, por consequência, daquelas outras sadias. Trata-se de um processo de segregação; para Guattari, isso produz a posição ocupada pelas ‘elites’ enquanto uma verdade, e constrói uma hierarquia social onde indivíduos devem se localizar e encaixar (GUATTARI; ROLNIK, 1996). Pelbart (2009) aponta que o sexo ocupa um papel tão importante na instauração desta organização social, vigente até hoje, que poderíamos dizer que passamos de uma sociedade do sangue para uma sociedade do sexo.

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Foucault (1987, 1988) cita dentre mudanças marcantes a redução das grandes mortandades a partir das pestes, incremento da produção agrícola, explosão demográfica e a consequente migração do campo para as cidades.

A burguesia entende que o seu sexo maximizaria o ‘vigor’ e a potência do indivíduo humano e da espécie, em oposição aos transgressores, que produziriam a degeneração do corpo e da prole. Assim, surge a vigilância e controle da sexualidade – das crianças (o perigo da masturbação infantil), das mulheres (histéricas e frágeis), dos perversos (agora considerados doentes), dos casais (produtores das novas gerações). Invenção da sexualidade, criação destas categorias, dispositivo de produção: de corpos, existências, experimentações, populações (FOUCAULT, 1988). Complexo jogo do poder, a sexualidade apoia-se em diversos pontos; ao mesmo tempo, organiza e legitima a estrutura social, assim como dá diretrizes para a compreensão que os sujeitos têm de si – as suas verdades. De acordo com Foucault (1988), a proliferação de tantos discursos e práticas sobre a sexualidade diz respeito a uma supervalorização do corpo e do sexo da burguesia, tendo a família como estratégia fundamental. Em um primeiro momento, não se trata da universalização da sexualidade. Pelo contrário, as normatizações sobre o sexo tornam-se preciosas para este grupo social. A burguesia detém algo que os torna únicos e importantes e, assim, produz uma série de saberes sobre si próprios (nós mesmos?). Este bem precioso que é o sexo precisa ser guardado, cuidado, vigiado, estudado; para geração de corpos e descendentes saudáveis – produtivos – tanto para a família quanto para a classe, em uma expansão da saúde e da vida ao infinito. A produção de normas sobre a sexualidade fala de um investimento político na vida, no sentido de maximizá-la, através de uma afirmação de si. Para o autor, “entre a estratégia que fixa, reproduz, multiplica acentua as relações de força e a classe dominante, existe uma relação recíproca de produção” (FOUCAULT, 1979d, p.252). A produção da sexualidade se deu para atender às necessidades estratégicas que emergiam. Assim, por algum tempo as classes populares estavam fora das normatizações do dispositivo da sexualidade, ainda que estivessem submetidas de diversas formas ao dispositivo das “alianças”8. Quando o controle da sexualidade difundiu-se posteriormente das classes burguesas (que o formularam enquanto verdade) para todo corpo social, é no sentido de uma política de controle dos modos de existência. “Se anteriormente o pecado da carne constituía infração à regra da união, agora habita o interior do corpo” (CANDIOTTO, 2010, p.83). A sexualidade deixa de ser um tesouro para se tornar a ameaça constante das populações mais pobres – respondendo “ao objetivo urgente de dominar uma mão-de-obra flutuante e vagabunda” (FOUCAULT, 1979d, p.259) – que, em seu sexo, seriam reprodutores 8

De acordo com Foucault (1988, p.117, grifo do autor), “as relações de sexo deram lugar, em toda sociedade, a um dispositivo de aliança: sistema de matrimônio, de fixação e desenvolvimento dos parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens. Este dispositivo de aliança, com os mecanismos de constrição que o garantem, com o saber muitas vezes complexo que requer, perdeu importância à medida que os processos econômicos e as estruturas políticas passaram a não mais encontrar nele um instrumento adequado ou um suporte suficiente”.

de doenças e degeneração e, por isso, precisariam da vigilância dos especialistas – médicos, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais. Muitos atores, diversas práticas, tudo pela proteção do recém-estabelecido corpo social burguês, adoecido pela ‘desordem da pobreza’ (FOUCAULT, 1979b, 1988). Há, nesta relação de poder, uma “diferença de potencial” (FOUCAULT, 1979d, p.250), com alguns grupos estabilizados em relação a outros; porém, para Foucault, não se trata de afirmar que existe um ‘sujeito’ ou ‘classe’ que dirige o dispositivo para este ou aquele fim. Os agenciamentos táticos se dão em função de problemas e necessidades, mas não uma ‘vontade’, enquanto uma finalidade única e fixa. Neste sentido, diferentes forças se articulam pontualmente, depois se opõem, correm em paralelos e em transversais. Como feixes sem início ou final9; o dispositivo da sexualidade funciona, então, de forma diferente na construção das classes. Esse aparelho administrativo atua na garantia de uma sexualidade de sujeição, como um perigo recorrente à identidade de classe operária. O dispositivo da sexualidade já está instituído pelo valor de verdade construído através do exercício de saberes-poderes com a burguesia. A expansão por outros grupos sociais irá, entretanto, potencializar seu poder de dominação e controle. Ao propor os moldes da burguesia para experimentação e existência da sexualidade, produz-se uma imensa massa de transgressores, sexualmente subversivos, potencialmente perigosos e, portanto, de necessária disciplinarização. Foucault conclui essa ideia apontando que “a sexualidade é originária e historicamente burguesa e que induz, em seus deslocamentos sucessivos e em suas transposições, efeitos de classe específicos” (FOUCAULT, 1988, p.139). Para Foucault, os efeitos do dispositivo da sexualidade são fundamentais para o desenvolvimento do capitalismo, na medida em que distribui corpos, organiza a reprodução e produz forças de uma forma ‘lucrativa’. “O investimento sobre o corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento” (FOUCAULT, 1988, p.154). Quando Farhi Neto (2010) aponta que o dispositivo da sexualidade começa a produzir lucros econômicos que reforçam sua constituição, identificamos um processo de preenchimento estratégico. A sexualidade é política e econômica. A universalização do dispositivo da sexualidade pauta-se através do corpo, que iguala todos enquanto indivíduos. São construídos cada vez mais aparelhos de vigilância dos corpos que, como efeito, produzem novos enunciados científicos (FOUCAULT, 1979b). Diferentes 9

Para processos produtivos que se dão em constante movimento, sem começo e final delimitados, onde apenas acompanhamos seus efeitos, Deleuze e Guattari (1995) chamam de rizoma. Este conceito será trabalhado no próximo capítulo.

tipos de ‘exames’, como técnica de visibilização, classificação e hierarquização dos indivíduos. No exame, fica clara a superposição da produção de saberes e o exercício de poderes sobre o sujeito (FOUCAULT, 1987). O exame dá destaque à visibilidade do sujeito; produz a individualidade documentada com categorias, comparações e classificações. Assim, o indivíduo é relatado em um ‘caso’, com história, descrição através de elementos isolados, e projeções. Os desvios se tornam foco do saber, e justificam o exercício de poderes de produção de sujeitos – mais especificamente, de corpos sujeitados. O elemento do poder para controle e fabricação do corpo como célula individualizada, ‘dócil’, é a disciplina. Essa estratégia opera na dissolução da multidão e na produção de ordem e regularidade sociais. Toma força na reorganização dos governos, dos territórios e diversos organismos sociais, da qual a invenção da sexualidade faz parte. A disciplina fabrica corpos dóceis, individuais, aumenta sua força, regula seu tempo, incrementa a produtividade. Trata-se de relações também econômicas, que se dão pela descrição, controle e gestão dos detalhes naturalizados. Mais uma vez, o poder aparece em sua dimensão produtiva10 (FOUCAULT, 1987). Ao estudarem a obra de Foucault, Bacca, Pey e Sá (2004) entendem que a maior eficácia da disciplina não está em produzir o indivíduo mais bem adaptado de acordo com as normas, mas fazer com que todos os sujeitos façam parte da instituição disciplinar, acreditando que precisam disso e que isso seja o melhor para si11. Candiotto (2010) aponta que assim os sujeitos reconhecem um conhecimento como sua própria verdade, tornando-se sujeitados. Produz-se o desejo pela disciplina, de forma sutil, reafirmando (e potencializando) as estratégias de poder. Para Foucault (1988), trata-se da produção da sexualidade, e não sua repressão. As normas não operam na coibição direta de modos de existir, ou melhor, não está nisso seu principal objetivo tático. As relações de poder se modificam e multiplicam através do exercício de saberes e poderes sobre as sexualidades produzidas como ‘periféricas’ (em relação à centralidade do casal mulher-homem, reprodutivo e monogâmico). Identifica, denomina e produz formas de experimentar o corpo, o sexo, o prazer.

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Como Deleuze (1990) aponta, Foucault analisa o poder em uma perspectiva positiva, o que não implica em julgamento de ‘bom’ e ‘mau’, mas que leva em consideração seu caráter produtivo. 11 Bacca, Pey e Sá (2004, p.89) tomam como exemplo a instituição escolar. Se até certo momento histórico a escola era para poucos, mas todos eram sujeitos com diferentes saberes, nos séculos XVIII e XIX a escola se estabelece no lugar de instituição de saber, e marca quem está fora dela como aquele que não sabe. “Não é a eficácia do aluno tirar nota alta. É a eficácia do aluno se construir enquanto aluno, enquanto escolar. [...] Isso tudo vai construindo-os como alunos, dóceis, submissos, aceitando tudo com normalidade. [...] Justamente por serem construídos como tal que a maioria das subjetividades se reafirma com a disciplina e desejam esses procedimentos disciplinares”.

Se há uma marcação do que é normal, é para potencializar o poder sobre os anormais. Ou seja, o dispositivo: “Não fixa fronteiras para a sexualidade, provoca suas diversas formas, seguindo-as através de linhas de penetração infinitas” (FOUCAULT, 1988, p.55). Isto porque o poder produz movimentos de retorno, adaptação e adequação; novos territórios são esquadrinhados, transformados em pontos de apoio para exercício do poder. Quando as ciências se debruçam sobre todas as sexualidades consideradas ‘dissidentes’, produzem as diferenças e falam sobre elas – com autoridade de verdade. Ora, o que é essa legitimidade de falar sobre o sexo senão o exercício de poderes, e ao mesmo tempo sua delimitação e controle? 1.3 – Biopoder: Fluxos e movimentos do dispositivo da sexualidade A partir do século XVIII, organizam-se diferentes práticas sobre a sexualidade. Observação da masturbação infantil, pelo seu perigo de degeneração do corpo e da espécie. Regulação do corpo da mulher, frágil e histérico, guardiã do lar e responsável pela próxima geração. Exame e delimitação das práticas sexuais perversas, ameaçadoras da ordem e da estrutura social (sexual?) ‘correta’ – em processo de construção. Manutenção do casal heterossexual, monogâmico e com finalidade de reprodução.Um esforço descomunal, que demanda a participação (e mesmo criação) de diferentes ciências e profissões. Médicos, psicólogos, pedagogos, assistentes sociais elaboram fórmulas, documentos, recomendações, manuais, instrumentos – enfim, uma série de estratégias que possibilitem vigilância e controle dos exercícios do corpo e do sexo (FOUCAULT, 1979b, 1979d, 1988). Mais que reprimir, o poder faz o corpo falar, produz a existência destas categorias, bem como das práticas que separam, dividem, classificam e constroem o ‘outro’ enquanto diferente do ‘mesmo’ (VEIGA NETO, 2001). O constante medo12 da sexualidade exige, assim, a adequação das diferenças para manutenção da sociedade e até mesmo da espécie humana. Ocorre, entretanto, um necessário fracasso na tentativa de eliminação das sexualidades ‘periféricas’. Pois, se fossem de fato ‘extintas’, esta relação de poder perderia sua razão de ser. É uma proliferação de discursos, investidos com práticas, preocupando-se cada vez mais com os detalhes dos modos de existir (FOUCAULT, 1988), a forma como nos produzimos sujeitos:

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Bacca, Pey e Sá (2004) apontam o medo como o ‘discurso que cala’, eliminando condições de possibilidade para sua emergência. Batista (2003) propõe entendermos o medo como uma produção social com fins estratégicos precisos. Travaremos esta discussão no capítulo 4.

Exclusão dessas milhares de sexualidades aberrantes? Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua disseminação, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo. (FOUCAULT, 1988, p.51).

Foucault (1979b, 1987, 1988, 1999) analisa a mudança dos regimes (diagramas)13 de poder e de produção dos sujeitos a partir do século XVIII. De um sistema de poder soberano, que centra as relações no corpo do Rei enquanto materialização da lei (qualquer crime é contra a autoridade do Rei; a ele compete o poder sobre fazer morrer e deixar viver) para um biopoder. O corpo ‘investido’ de poder é composto pela sociedade de um determinado território, e o poder se exerce na produção e regulação de modos de viver, bem como criação de condições de possibilidade que algumas mortes aconteçam, desde que estrategicamente úteis: “Gerir a vida [...]. E quando exige a morte, é em nome da defesa da vida que ele se encarregou de administrar” (PELBART, 2009, p.56). Sutis e fundamentais transformações dos modelos, que não são opostos, mas se atravessam. Se o primeiro diagrama de poder é pautado pela lei e tem como estratégia o confisco (do direito a viver), o segundo estabelece-se com força pelo viés da normatização. Transforma-se a lei em norma, mediada por atores que ‘detém’ a verdade; são produzidas formas de viver que classificam todos os sujeitos, marcando alguns como passíveis de punição e, por isso, possíveis do exercício de práticas específicas. Foucault aponta, então, que a sociedade normalizadora estabelecida não se dá por acaso, mas “é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (FOUCAULT, 1988, p.157). Em nosso diagrama de poder, os instrumentos jurídicos tornaram-se critérios para definir quem é perigoso, pois se entende que o transgressor abre mão da igualdade dada pelas normas, e precisa ser corrigido – seu comportamento, seu corpo, sua ‘alma’. (FOUCAULT, 1988). Para Foucault (1999), é sempre necessário um processo para manutenção das normas; mais que um reforço (um modo de funcionamento que viabiliza uma estratégia), há um ‘enforço’ da lei – exercícios de poderes que tornam possível a emergência e a manutenção de determinada regra enquanto verdade. O dispositivo da sexualidade se estabelece através de uma série de normas, e os sujeitos ‘transgressores’ são identificados e punidos; têm seus corpos e subjetividades marcadas tanto pelo signo quanto por intervenções, produzindo assim novos saberes (sobre o indivíduo identificado como transgressor). A ‘pena’ é um mecanismo de exercício e alimentação das relações de poder, bem como estabelecimento de saberes. Uma estratégia que 13

Bacca, Pey e Sá (2004) e Deleuze (2005) chamam de ‘diagramas de poder’ estas organizações das relações de poder que produzem e mantém certo regime de verdade em determinado período histórico, apontando que cada época tem seu diagrama.

produz e delimita modos de existir, “um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo” (FOUCAULT, 1988, p.152); um dispositivo que faz crescer forças de forma ordenada, o que não significa interdição ou destruição. Relações de força sobre a vida, um poder sobre a vida, um biopoder14. Por que, então, o exercício desse poder aparenta estar marcado pelo signo da repressão – não faça, não seja...? Foucault traz mais algumas pistas, pois: [...] somente mascarando uma parte importante de si mesmo que o poder é tolerável. Seu sucesso está na proporção daquilo que consegue ocultar dentre seus mecanismos. [...] O poder, como puro limite traçado à liberdade, pelo menos em nossa sociedade, é a forma geral de sua aceitabilidade (FOUCAULT, 1988, p. 9697)

Se hoje esta estratégia está naturalizada (e estamos diretamente implicados em sua permanente produção), Foucault (1988) aponta que no século XVIII há muito mais visibilidade de duas dimensões diferentes de seu exercício na produção da sexualidade. São políticas que se entrecruzam e se alimentam no mesmo dispositivo: uma primeira que toma o corpo como máquina, em sua potência produtiva individual; a segunda trata do corpo como espécie, distanciando-se da perspectiva individual até apagar o corpo que existe ali. O corpo-máquina diz respeito à disciplina, enquanto estratégia de poder de produção de corpos dóceis e de saberes sobre o humano. Mas a disciplina também é fundamental na produção de uma ideia de sexualidade enquanto elemento natural, comum a todos os humanos em suas regras, diversa em seus funcionamentos dentro de um sistema ‘normal-anormal’. A partir do paradigma biológico (o corpo sendo organismo individuado), uma naturalização da sexualidade enquanto propriedade intrínseca dos corpos (pretensamente universais): a essência de cada um, ‘esperando’ ser revelada. Com a sexualidade tomada como medida de verdade, o dispositivo se estabelece (FOUCAULT, 1987, 1988). O corpo, enquanto dispositivo de sujeição, produziu a “intensificação dos desejos de cada um por seu próprio corpo...” (FOUCAULT, 1979b, p.147), em um processo de controle-estimulação. No começo desta pesquisa, pensamos o sexo como um dado prévio que era recoberto pela malha discursiva da sexualidade. Foucault (1979d, 1988), entretanto, explicita que, se o sexo nos parece um dado natural e muito bem-estruturado em suas regras e características intrínsecas, isso ocorre como um efeito do próprio dispositivo da sexualidade. A ideia de sexo 14

No livro História da Sexualidade I: A vontade de saber (FOUCAULT, 1988), as palavras ‘biopoder’ e ‘biopolítica’ foram grafadas com um hífen. Entretanto, no livro Nascimento da Biopolítica (FOUCAULT, 2008), a grafia aparece sem hífen, conforme o próprio título. Decidimos pela utilização da segunda forma, tanto por esta publicação ser mais recente no Brasil quanto por preferir esta estética em ambas palavras.

é criada posteriormente, como um elemento fundamental do funcionamento dessa estratégia que cobriu uma série de territórios heterogêneos – um “ponto fictício” (FOUCAULT, 1988, p.170). “Existe uma sexualidade depois do século XVIII, um sexo depois do século XIX. Antes, sem dúvida, existia a carne” (FOUCAULT, 1979d, p.259). Os corpos-indivíduos e suas existências dadas são tomadas como efeito de tecnologias de visibilidade (FOUCAULT, 1999). O sexo – nas duas acepções desta palavra, discutidas por Pichardo e Moreno (2006) – parece óbvio, dado e experimentado; é uma verdade do sujeito, e não por acaso: “Aquilo que entre as ciências do homem é convencionado como verdadeiro, para Michel Foucault configura a justificação racional de sistemas excludentes de poder que atuam nas práticas institucionais e científicas” (CANDIOTTO, 2010, p.50). Uma das principais naturalizações sobre o sexo no corpo-indivíduo é o sexo enquanto genitália-aparelho reprodutor, dividido em duas categorias: homem e mulher. Tomar os corpos femininos e masculinos como dados a priori, fazendo-os funcionar enquanto aparelho esquadrinhado em seus limites e funções é, para Butler (2010) parte do marco regulatório do dispositivo da sexualidade, produzindo existências determinadas. Moreno e Pichardo (2006) lembram que esta organização dicotômica do dispositivo se dá a custa de muito sofrimento aos corpos que não se adéquam à normatividade. Louro (2003) aponta ainda que as categorias de mulher e homem atravessaram os estudos de gênero como fórmulas únicas e permanentes, mas esta dicotomia é impossível nos estudos de Foucault, pois os corpos emergem enquanto tais como efeitos e resistências das relações de poder. O exercício de poderes produziu o corpo como um espaço delimitado e circunscrito, de gênese orgânica e fisiológica; essa relação deu origem e mantém os saberes biológicos como as ‘verdades’ sobre o corpo e a vida. Estratégias de docilização dos corpos, na medida em que definem e delimitam o potencial e o funcionamento do corpo de todos os humanos – uma “anatomo-política do corpo humano” (FOUCAULT, 1988, p.151, grifo do autor). Por outro lado, a produção do corpo-espécie está relacionada com os fenômenos populacionais do fim da Idade Média – os grupos hegemônicos tiveram que se haver com o crescimento de seu povo, a circulação e a concentração nas cidades, que vazava aos controles do poder do soberano e mesmo das regras da disciplina. Esses agrupamentos confusos, que provocam medo e desordem, eram passíveis de organização em coletivos úteis, regulando-se os nascimentos, o ‘nível de saúde’, as morbidades, as mortalidades. Interessa (muito) como esta população vive e morre, entendendo-a como um único corpo-coletivo, que é mais do que a soma dos corpos-indivíduos, mas de fato um destino unificado de nenhum, para todos: uma massa homogênea (FOUCAULT, 1988, 1999). Tecnologia que experimenta procedimentos

em parte planejados, em parte espontâneos, que deem conta de fenômenos produtivos relacionados ao viver – diagrama de poder de governo das massas homogêneas, uma biopolítica das populações: A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder [...]. A biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração. (FOUCAULT, 1999, p. 292-293).

A medicina, compreendida como saber verdadeiro das práticas a respeito do corpo, toma força na determinação das manifestações da sexualidade produzidas como sadias, e marca as ‘patológicas’ como ameaças para a reprodução: preservação da espécie. Os Estados criam sistemas de seguridade e previdência, que mapeiam e controlam o desenvolvimento da vida de seus partícipes, através de serviços e regras. Estratégias para prever, controlar e, quando necessário, modificar os acontecimentos das massas ou, pelo menos, compensar seus efeitos, como um equilíbrio global (FOUCAULT, 1999). Se a anatomo-política constituiu uma primeira incursão de poder nos corpos, produzindo o modo-indivíduo, a biopolítica opera como uma segunda tomada, recolocando uma dimensão maior, mas mantendo a exclusão das diferenças e a manutenção de um denominador mínimo comum entre os seres humanos, agindo sobre a população como tal. A anatomo-política dá suporte para a biopolítica, com incursões, integrações e modificações para dar conta de linhas produtivas que vazavam e ameaçavam o funcionamento desse diagrama (FOUCAULT, 1999). Difusão dos exercícios de poder: produção do ser humano, controle de seus movimentos micro e macroscópicos. O que há de igual entre todos seria a essência, natureza ou verdade; a partir daí se produziriam os mecanismos de organização social. Mas não se coloca em análise que as organizações de corpo-indivíduo e corpo-espécie são construções subjetivas, invenções que ganham estatuto de verdade. Mas por que a sexualidade ganha tamanho destaque como reveladora da verdade? Ora, a regulação do biopoder se dá através de inúmeros efeitos do sexo, na medida em que este “é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações” (FOUCAULT, 1988, p.159). Deste modo, Foucault (1999) aponta que o dispositivo da sexualidade torna-se um aparelho extremamente potente por operar em um ponto de intercessão da disciplina e da biopolítica, articulando corpo-indivíduo e corpo-população, borrando as fronteiras das tecnologias e potencializando

o biopoder. A construção dos corpos, regulação das práticas e delimitação dos gêneros se multiplicam no controle da reprodução e em rituais de concepção. Tanto a disciplina quanto a biopolítica vão utilizar como estratégia o estabelecimento de normas, para ‘enforço’ dos poderes. Desta feita, as normas sexuais são fundamentais na construção das tecnologias de poder em nossa sociedade, e os desviantes são produzidos enquanto categoria pela mesma estratégia que os pune constantemente. “No cerne deste problema econômico e político da população: o sexo [...]. Através da economia política da população forma-se toda uma teia de observações sobre o sexo” (FOUCAULT, 1988, p.32). Deste modo, não há uma verdade a ser descoberta sobre o sexo, da qual hoje estamos mais próximos; trata-se do estabelecimento de relações de poder que são produzidas, que nós produzimos e que nos produzem, até hoje. Para Foucault (1988), se ao longo do século XX a repressão em torno da sexualidade parece ‘afrouxar’ (em especial com a ‘Revolução Sexual’ dos anos 60), nós continuamos operando dentro do mesmo regime. Entendendo-se que a sexualidade está ‘reprimida’, o que seria um obstáculo para liberdade, plenitude ou – quiçá – a felicidade, a saída estaria em deixar de considerar práticas não-hegemônicas como antinaturais. Ora, desta forma, a sexualidade, “longe de ter sido reprimida na sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo permanentemente suscitada” (FOUCAULT, 1988, p.161). Apenas uma reversão tática, mas o mesmo jogo: a sexualidade seria algo essencial e intrínseco dos sujeitos, que precisaria ser revelado. Talvez o consultório do psicanalista vitoriano perca espaço para técnicas de auto-conhecimento e a ampliação dos instrumentos de comunicação e exposição de si, como mídias eletrônicas. Os discursos emergem em função de desejos que são produzidos e incitados. Uma necessidade de confissão, que fabrica os sujeitos enquanto tais: [...] o reconhecimento da identidade do sujeito a partir da enunciação de sua verdade constitui efeito de relações de poder, da obediência a outrem, tratando-se de processo em que a subjetivação é constituída de modo sujeitado. A produção da verdade sobre o sujeito prescinde da relação consigo, sendo dependente de tecnologias imanentes aos mecanismos do saber-poder. (CANDIOTTO, 2010, p.7273, grifos do autor).

O dispositivo da sexualidade produz fossos entre as normatizações das práticas, fantasias e expectativas por um sexo ‘ideal’ e ‘livre’ e prazeres experimentados. O sofrimento em relação ao sexo, ou “miséria sexual” (FOUCAULT, 1979c, p.232), não é o objetivo do dispositivo da sexualidade, mas um efeito que se prolonga. Acaba por ser agenciado por fins

estratégicos; circulam discursos para as pessoas falarem das angústias de ter o sexo proibido, com determinadas técnicas, espaços, especialistas: “Este tipo de discurso é, na verdade, um formidável instrumento de controle e de poder. Ele utiliza, como sempre, o que dizem as pessoas, o que elas sentem, o que elas esperam. Ele explora a tentação de acreditar que é suficiente, para ser feliz, ultrapassar o umbral do discurso e eliminar algumas proibições. E de fato acaba depreciando e esquadrinhando os movimentos de revolta e liberação...” (FOUCAULT, 1979c, p.233).

A sexualidade e a própria vida são tomadas como objeto político, objetivo das lutas, foco das disputas entre modelos de gestão da vida. Não significa, por outro lado, que as práticas de ‘liberação sexual’ (marcados especialmente pela contracultura) sejam simplesmente de controle. No campo de forças, Foucault (1979c) identifica que movimentos que discutem sexualidade o fazem do interior do dispositivo e, nesse sentido, há uma dimensão de ‘enforço’ de sua estrutura. Ao mesmo tempo, através de uma “inversão estratégica de uma ‘mesma’ vontade de verdade” (FOUCAULT, 1979c, p.234), provoca deslocamentos e aceleramentos dos fluxos, podendo até rachar o dispositivo, ultrapassá-lo e construir outros possíveis. Pois, se o poder é um exercício de relações, nunca está dado ou estabelecido de forma definitiva. Toda relação de poder produz, ao mesmo tempo, resistências, na medida em que ele só se exerce – e observamos seus efeitos – porque há resistências operando (FOUCAULT, 1987, 1988; BACCA; PEY; SÁ, 2004). Relações de poder acontecem nos movimentos, nas diferenças, transformando relevos através de fricções. De acordo com Candiotto, [...] [as resistências] quase sempre são lutas cotidianas que atravessam o tecido social e os próprios indivíduos. [...] Sem correlações de forças não há resistências e, na ausência destas últimas, impossível haver relações de poder, permanecendo somente escravidão e domesticação. (CANDIOTTO, 2010, p.90).

Esse enorme investimento da sexualidade também produz possibilidades inéditas de experimentação e de produção do próprio corpo, que talvez abra novas possibilidades. “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexodesejo, mas os corpos e os prazeres” (FOUCAULT, 1988, p.171, grifos nossos). Não existe um lugar de ‘fora’ do poder, que seria o ‘sexo livre’. Esta ideia insiste em uma construção e, por isso, aposta em certas estratégias de poder; mais especificamente, a linha hegemônica do dispositivo da sexualidade. Bozon (2004) aponta que, dentro desta compreensão, as últimas décadas foram marcadas por um aprofundamento do controle dos indivíduos, passando de

mecanismos externos de disciplina para estratégias internas, de auto-regulação. Isso não significa que as forças que nos movem sejam menos reais na experimentação de cada um; mas podemos construir relações de poder e processos de produção de subjetividade de outras formas. Para Pelbart (2009), por vezes, o modo de existir ‘transgressor’ ou ‘inovador’ se torna um capital lucrativo, de interesse dos diagramas contemporâneos de poder, sendo transformado em mais um recurso de produção e controle da vida. Por fim, Deleuze (1990) entende que todo dispositivo se define por sua potência de novidade e criação, marcando sua possibilidade de fissura e transformação em proveito de outro dispositivo futuro. O dispositivo articula tanto a dimensão histórica, do que deixamos de ser, quanto o atual, que é a produção do presente, no presente, apontando futuros. Esta dissertação se propõe a acompanhar algumas linhas do dispositivo da sexualidade; conhecer condições de possibilidades e efeitos e, talvez, apostar no que há de linhas de atualizaçãocriação, ao invés do estabelecimento hegemônico das linhas de estratificação-sedimentação (DELEUZE, 1990). Para isso, precisamos de uma estratégia, ou proposta metodológica, que será mapeada no próximo capítulo.

2 – “PARTIR, ANDAR”15: PERCURSOS POLÍTICO-METODOLÓGICOS “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?” “Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato. “O lugar não me importa muito...”, disse Alice. “Então não importa que caminho você vai tomar”, disse o Gato. “...desde que eu chegue a algum lugar”, acrescentou Alice em forma de explicação. “Oh, você vai certamente chegar a algum lugar”, disse o Gato, “se caminhar bastante”. (Alice no País das Maravilhas – por Lewis Carroll) Nesta pesquisa, apostamos na produção de diferença e singularidade. Desta forma, o caminho metodológico precisa se haver com critérios estéticos, imanentes, levando em conta as possibilidades e criações, para analisar os processos produtivos em curso, deixando de lado um juízo transcendente (DELEUZE, 1990). Nas próximas páginas, discutiremos o processo de construção desta proposta metodológica, bem como suas implicações políticas. De início, faz-se necessário apontar que não entendemos a díade sujeito-objeto de pesquisa como essências fixas e estruturadas, mas que a constituição do sujeito como tal se dá por construções sociais, localizadas historicamente, em suas relações com o mundo e suas apreensões da experiência de existir, atravessadas por diversos elementos. A este processo, Guattari chama de ‘produção de subjetividades’ (GUATTARI; ROLNIK, 1996). De acordo com Kastrup: O conceito de subjetividade é indissociável da idéia de produção. Produção de formas de sensibilidade, de pensamento, de desejo, de ação. Produção de modos de relação consigo mesmo e com o mundo. A subjetividade não é um dado, um ponto fixo, uma origem. O sujeito não explica nada enquanto não tiver sua constituição explicada com base num campo de produção de subjetividade. (KASTRUP, 2007, p.204).

O sujeito não existe como essência, mas sim em processos; processos de desejar, sentir, escolher, experimentar, produzir, sofrer, afetar, amar. Cada sujeito se constitui em sua singularidade, ou seja, é único, ainda que atravessado de forma comum a outros pelas produções sociais e culturais das quais faz parte. O passado é um atravessamento do sujeito, mas não determinação, posto que a história só faz sentido relacionada ao presente, que se 15

Título de música composta por Herbert Vianna e cantada pelo mesmo em parceria com Zélia Duncan, sobre a necessidade e o desafio de deixar um território confortável para seguir outros rumos.

transforma o tempo todo (FOUCAULT, 1984a). Kastrup (2007) aponta que este campo de subjetividades é indispensável à existência do sujeito; de fato, é nele que o sujeito se produz permanentemente. Kastrup e Barros (2009, p.76) complementam: “Os fenômenos de produção da subjetividade possuem como características o movimento, a transformação, a processualidade”. Falar de subjetividade é contrapor-se a um indivíduo transcendental, ou a uma estrutura psíquica universal. Trata-se de “uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida. [...] Ao invés de sujeito, [...] prefiro falar em agenciamento coletivo de enunciação” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.25-30, grifo dos autores). Esses autores rompem com o modo-indivíduo do poder disciplinar sem propor um polo oposto do ‘social’, origem indiferenciada de comportamentos. É uma aposta política no coletivo, nas relações e movimentados que atravessam corpos, linguagens, espaços, pensamentos. Produzir conhecimento nesta perspectiva é levar em consideração que uma pesquisa também é produção, e emerge a partir de múltiplas forças. Nesse sistema há máquinas tanto extra quanto infrapessoais, o que não significa que umas sejam individuais e outras sociais, mas que todas atravessam de forma transversal as dimensões da existência. A subjetividade está em todas as relações, sendo produzida e assumida nas existências individuais, sem esquecer que é uma produção coletiva, através de empréstimos, associações, aglomerados de diferentes linhas de subjetivação. Produzir conhecimento não é ‘revelar’ verdades que estavam anteriormente ocultas. Neste sentido, debruçar-se sobre o funcionamento do dispositivo da sexualidade não é para refutá-lo enquanto falso, mas interrogá-lo enquanto processo produtivo. Assim, não é possível apostar em uma neutralidade do pesquisador ou objetividade científica, na medida em que objeto, método, campo de análise, referencial teórico são escolhas, implicadas com relações de forças – inclusive desejantes (LOURAU, 1993; GUATTARI; ROLNIK, 1996; KASTRUP, 2008). O próprio lugar de pesquisador é uma construção, que funciona dentro de certo regime de verdade. Assim, o pesquisador não é o detentor de saber, que iluminará uma parte obscura do objeto, o que revelará conhecimento. Este projeto de busca da verdade é uma naturalização das relações de poder estabelecidas, que instituem alguns discursos como ‘verdadeiros’, mantendo outros no signo do erro e do falso (CANDIOTTO, 2010). Não se busca uma verdade final, nem se aposta em dicotomias. Pesquisador-campo se constitui em relação, em um processo de invenção de si e do mundo (KASTRUP, 2007).

Acompanhar os efeitos do dispositivo da sexualidade, entendendo seu caráter produtivo e não repressivo, é também construir outras formas de olhar o mundo e a nós mesmos – corpo, sexo, subjetividade, relações. Isso não é um problema ou uma falha da pesquisa; ao contrário, pode ser uma potência, pois se trata de reconhecer a importância da produção de conhecimento como um atravessamento do viver. Os efeitos dessa produção de conhecimento fazem parte do processo de pesquisa, através de uma análise das implicações. Para Lourau (1993), significa levar em consideração as condições da pesquisa e os lugares que ocupamos – implicações financeiras, políticas, de desejo, relações de poder. Se estes acontecimentos eram considerados erros de uma pesquisa, agora tornam-se importante material de análise (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008). É uma mudança no lugar tradicional da produção de conhecimento e também do cientista, pois aposta em um intelectual implicado, “cujo projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social, a partir de estratégias de coletivização das experiências e análises” (LOURAU, 1993, p.85). A análise das implicações é uma escolha metodológica coerente com a proposta de desnaturalização do dispositivo da sexualidade e de seus efeitos, além de apostar em processos de produção de subjetividade singulares, que rompam com as normativas do biopoder: Pensar a análise de implicações, enquanto um processo que nos possibilita perceber este devir constante que somos, é entendê-la como uma importante ferramenta de trabalho e de vida. É estranhar e recusar as essências, as naturalidades normalmente vinculadas ao eterno, à ahistoricidade. É, portanto, afirmar o diverso. (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008, p.147, grifo nosso).

Nesta perspectiva, a pesquisa é inseparável da intervenção. A análise de implicações coloca em evidência os processos interventivos na produção de conhecimento, a invenção de mundos. A pesquisa se dá sem distanciamento, no próprio plano de experiência. De acordo com Passos e Barros (2009, p.18), “se trata de transformar para conhecer e não de conhecer para transformar a realidade”. E acrescentam: [...] o que Lourau designa de implicação diz respeito menos à vontade consciente ou intenção dos indivíduos do que às forças inconscientes (o inconsciente institucional) que se atravessam constituindo valores, interesses, expectativas, compromissos, desejos, crenças, isto é, as formas que se instituem como dada realidade. A análise é, então, o trabalho de quebra dessas formas instituídas para dar expressão ao processo de institucionalização. (PASSOS; BARROS, 2009, p.19-20).

Bacca, Pey e Sá (2004) lembram-nos que os pesquisadores não são neutros, mas sim sujeitos mergulhados no mundo, atravessados por sua história, seu presente, e diretamente interessados (ou não) com os efeitos de sua produção de conhecimento no mundo. Entretanto, a implicação não é simples produto desse interesse. De acordo com Coimbra e Nascimento (2008), a implicação faz parte do mundo, está nas relações que estabelecemos com as diversas instituições que atravessam e constituem nossos corpos, nossas existências. Foucault (1979c) diz sonhar com o intelectual que se ocupe de mapear as forças para possibilitar os combates sociais, e construir assim outras relações de poder. Por isso, faz-se necessária a análise das implicações – com quais efeitos que surgem no processo você está de fato comprometido? Em quais possibilidades você aposta? Coimbra e Nascimento (2008, p.147) apontam que “utilizar a análise das implicações é tornar visível e audível as forças que nos atravessam, nos afetam e nos constituem cotidianamente”. Perguntar quais mundos pretende inventar, sem garantia nenhuma de que se concretizarão. Falar sobre análise de implicações e produção de subjetividade faz pensar sobre os muitos papéis do pesquisar. De acordo com Kastrup e Barros (2009, p.78), o método de pesquisa não ilumina uma realidade dada a priori, pois “a realidade é feita de modos de iluminação e de regimes discursivos. O saber é a combinação dos visíveis e dizíveis de um estrato, não havendo nada antes dele, nada por debaixo dele”. Pesquisar atravessa esses estratos, produzindo conexões e mudanças. Não por acaso, Kastrup (2009, p.33) coloca que “não há coleta de dados, mas, desde o início, uma produção dos dados de pesquisa. A formulação paradoxal de uma ‘produção de dados’ visa ressaltar que há uma real produção, mas do que, em alguma medida, já estava lá de modo virtual”. O dispositivo da sexualidade produz corpos, histórias, experimentações. Produz o pesquisador e suas interrogações. Neste sentido, esta pesquisa se propõe a colocar em análise os percursos, as forças, as afetações – o pesquisador compõe o ‘campo’, é um dado em análise. Entendendo sujeito-mundo como processos produtivos, não cabe falar de divisão ou dicotomia entre pesquisador-objeto do conhecimento. E mais: a pesquisa produzirá efeitos nesta díade, posto que se constitui como mais um regime de discursos e práticas que atravessa os agenciamentos coletivos. Em cada momento histórico existem camadas de coisas-formas e palavras-discursos (DELEUZE apud KASTRUP; BARROS, 2009) que serão atravessados pelos efeitos da pesquisa, divididos em pelo menos quatro níveis: no pesquisador, no processo estudado, na questão da pesquisa e no campo do conhecimento (KASTRUP, 2008). Tais efeitos não dependem da intencionalidade do pesquisador, nem se organizam de forma linear ou hierárquica. Trata-se da produção do múltiplo, do diverso. Pois os efeitos são

menos peças de um quebra-cabeça (com uma imagem delimitada que precisa ser encaixada da maneira correta) e mais pistas de um – bom – romance policial (onde cada pista muda a história, e mesmo a conclusão não dá certeza de uma verdade). De acordo com Deleuze e Guattari (1995), fazer o múltiplo significa retirar a centralidade de uma origem, gênese ou ponto fundante de qualquer processo produtivo. “Subtrair o único da multiplicidade a ser construída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995: 15). Em um rizoma, não há uma única entrada ou saída; entra-se sempre pelo meio de algo em movimento. Pesquisar, então, é contar um conto de uma história sem fim. Para esses autores, o rizoma não se opõe ao modelo tradicional, hierárquico e linear (por eles chamado de arborescente), mas se constitui no meio desse, no entre. Então, técnicas investigativas que representam objetos estáticos (operando como uma fotografia) não registram a multiplicidade dos movimentos. Deleuze e Guattari (1995) dizem que a opção metodológica consiste em fazer um mapa, que não tem um ponto central, mas acompanha movimentos, se transforma. Uma topografia dos processos de produção de subjetividade, de realidade. Construir mapas, e não decalques. Kastrup (2009, p.32) discorre que: “A cartografia é um método [...] que visa acompanhar um processo, e não representar um objeto. Em linhas gerais, trata-se sempre de investigar processos de produção”. Passos e Barros (2009, p.17) complementam que “a cartografia reverte o sentido tradicional de método sem abrir mão da orientação do percurso da pesquisa [...] o primado [é] do caminhar que traça, no percurso, suas metas”. De início, a metodologia nada mais é que uma aposta. O cartógrafo segue em uma viagem sem saber onde chegará; neste percurso, constrói instrumentos, produz dados, faz análises, desenha mapas, escreve registros. A construção da pesquisa se dá em diferentes momentos; para Kastrup (2009, p.21), “trata-se [...] de obedecer às exigências da matéria e de se deixar atentamente guiar, acatando o ritmo e acompanhando a dinâmica do processo em questão. [...] Mais que domínio, o conhecimento surge como composição”. Não segue uma linearidade de etapas, mas (con)fusão desses processos. A experimentação e a análise das implicações marcarão o encerramento da pesquisa. Aí então é possível retomar o percurso e descrever a metodologia que foi forjada e utilizada na pesquisa. Não se trata de um processo simples. A cartografia não é uma habilidade ou competência técnica, mas uma “performance” (KASTRUP, 2009, p.48, grifo da autora) – precisa ser desenvolvida e produzida pelo pesquisador como uma forma de experimentação

do mundo. O que define o cartógrafo não é um procedimento, mas uma forma de produzir sua sensibilidade (ROLNIK, 1989). De acordo com Passos e Barros (2009), o cartógrafo acompanha o processo de construção de um objeto, lado a lado, o que sempre produz intervenção, pois intervêm nos eixos estabelecidos de organização do pensamento e da sociedade (hierárquica, individualizante e estanque). Rolnik (1989, p.66) aponta que o importante é o cartógrafo estar “atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe perscrutar”. Desta maneira, o mais importante é encontrar estratégias que potencializem as intensidades (fluxos de forças) que atravessam seu corpo no encontro com os territórios experimentados, desestabilizando seus mapas. Deleuze (1990), por sua vez, discorre que a cartografia vai acompanhar e desfazer o emaranhado de linhas que forma um dispositivo, sendo necessário estar instalado nelas e atravessá-las, arrastá-las. Em certa medida, é preciso enrolar-se. Mapas que acompanham planos (ou platôs) processuais, que apresentam uma “espessura processual” (BARROS; KASTRUP, 2009, p.58), produzida pelos movimentos e pulsações. Não se trata de um campo para representação; o cartógrafo deve habitar este território de intensidades para fazer falar os afetos e forças circundantes – uma atitude que não pode ser aprendida nos livros, mas na prática da cartografia. Ora, para habitar um território não basta ‘observá-lo’; é preciso mergulhar com processos de produção de subjetividade já em curso. Para o cartógrafo, não há explicações transcendentais ou essências a serem desveladas. “O que há em cima, embaixo e por todos os lados são intensidades buscando expressão” (ROLNIK, 1989, p.67). Deste modo, é uma entrada sempre pelo meio, e um caminhar conjunto com os processos, em passos sucessivos, deixando uma série de pegadas no caminho (BARROS; KASTRUP, 2009). Bacca, Pey e Sá (2004), por sua vez, afirmam que o

método

cartográfico

investiga

instituições

que

não

precisam

corresponder

a

estabelecimentos físicos, mas também construções subjetivas, lógicas e modos de funcionamento. Romper com o modelo arborescente de compreensão do mundo não é uma tarefa fácil. Não há trajetórias pré-estabelecidas, nem fórmulas ou receitas prontas. À primeira vista, um processo inseguro. Mas com o passar do tempo, se torna deliciosamente desafiador: ser ator no processo de construção de outras relações sociais e formas de estar no mundo. Pois a cartografia pretende desenhar os fluxos de forças que produzem agenciamentos (composições produzidas por afecção mútua), dando conta de seus movimentos permanentes (POZZANA DE BARROS; KASTRUP, 2009). Não se trata de um trabalho estático, monótono e

repetitivo, mas sim um processo dinâmico, de criação. Vale destacar ainda que a escrita tem um papel fundamental na cartografia de apontar a dimensão coletiva da pesquisa, posto que o cartógrafo é atravessado pelas múltiplas forças que compõem o campo e a ele próprio. Para esta forma de produção de conhecimento, a experimentação do pesquisador precisa ser diferente do modelo tradicional. Além da análise de implicações, Kastrup (2009) afirma que um certo regime de atenção é fundamental para o trabalho inicial do pesquisador. Neste sentido, deve estar aberta a diferentes momentos, de ‘voos’ e ‘pousos’, compondo um movimento complexo. Como fazer cartografia não significa representar objetos, o corpo do pesquisador deve se preparar para o desenho de mapas móveis. Para tanto, Franco e Merhy explicam que o cartógrafo se valerá de um ‘olho vibrátil’: O olho do cartógrafo não deve ser só o olho fisiologicamente concebido, o retina, mas também o olho vibrátil de um corpo que vibra com as intensidades, abre-se para afecções e afetamentos, e por isso pode percebê-las como expressões do mundo da produção [...] O cartógrafo é afetado pela realidade a qual ele está observando, e isso aguça sua sensibilidade em perceber a dinâmica dos processos relacionais e subjetivos presentes no processo de produção. (FRANCO; MERHY, 2008, p.8).

A experiência de investigação marca o corpo do cartógrafo pois, como afirma Kastrup (2007, p.153), “o corpo não é apenas uma entidade biológica, mas é capaz de inscrever-se e marcar-se histórica e culturalmente”. É mais que o corpo esquadrinhado do indivíduo, representado pela fisiologia; um corpo vibrátil, sensível aos desejos que circulam e a tensão entre fluxos produtivos e representações instituídas. Mas pelo que será marcado? Por processos de produção de subjetividades, efeitos de relações de saber-poder. De acordo com Deleuze (2005), os estratos históricos são atravessados por linhas de dizibilidade (regimes discursivos) e de visibilidade (regimes de organização). Para o autor, o cartógrafo se debruça sobre diagramas, que consistem na “exposição das relações de forças que constituem o poder” (DELEUZE, 2005, p.46). Um mapa (ou genealogia) das relações de poder que atravessam as microrrelações, que produzem as instituições e organizações sociais. O diagrama tem histórias que a cartografia mapeia. Neste sentido, Foucault (1979a) aponta que a genealogia deixa de lado a busca das origens e de uma verdade, e acompanha os fluxos de acontecimentos e acasos que compõem a história. O presente não é o desenrolar do passado, com um objetivo específico traçado na origem (metafísica); não há um direcionamento evolutivo, uma intencionalidade na passagem do tempo. A produção de saber é perspectiva. Logo, a questão de pesquisa não é o ‘para que’, mas de fato ‘o que’ produz –

efeitos de um processo. E essa história é rizomática, sem uma origem ou linearidade; entra-se sempre pelo meio. As relações de poder passam pelos próprios agenciamentos que produzem, como uma causa imanente, ou seja, que se integra, se diferencia e se atualiza com uma origem nãodefinível. As relações de poder são potenciais e instáveis, ao mesmo tempo em que se integram progressivamente; por isso, os seus efeitos se atualizam constantemente. A produção de novidade se dá no sentido de novas formas e novas funções, divergindo formas discursivas e não-discursivas, e produzindo um ‘entre’ onde o diagrama está instalado, atualizando causas e efeitos (DELEUZE, 2005). De acordo com Kastrup e Barros (2009), a cartografia precisa de dispositivos que façam ver e falar discursos e forças que operam no campo. Assim, todo o dispositivo mistura os regimes de visibilidade e de enunciação: o saber se sustenta no poder, mas também se exerce através desse, de maneira co-adaptativa e indissociável (DELEUZE, 2005). Ao mesmo tempo, os dispositivos podem se conectar uns aos outros, serem internos ou externos a outros dispositivos, e mesmo se deslocarem nesses processos (KASTRUP; BARROS, 2009). Deste modo, o dispositivo desempenha um papel fundamental na cartografia. O dispositivo faz ver e falar as visibilidades e dizibilidades, as lutas de cada época, o que revela o diagrama e os acontecimentos de suas transformações. Acompanhar histórias não é representar um passado imutável, mas fazer emergir forças não tão visíveis, que colocam em análise nosso próprio presente (FOUCAULT, 1979d; DELEUZE, 2005; KASTRUP; BARROS, 2009). Coimbra e Nascimento (2008) apontam a análise das implicações como um destes dispositivos de pesquisa, pois fazem ver e falar atravessamentos (afetos, forças, saberes) que são silenciados no modo tradicional de pesquisa. Usar os dispositivos para promover crises, desestruturações, que permitam pensar sobre o mundo e, assim, inventar novos mundos. A crise, para Baremblitt (1994), significa desequilíbrio em um processo de funcionamento mais ou menos regular, ocorrido pelo desgaste de um dispositivo e/ou a interferência de forças e acontecimentos, sendo um espaço fecundo para a análise dos instituídos. De acordo com Lourau (2004), se a crise não está estabelecida, deve-se usar o dispositivo para fazê-la emergir; por outro lado, se está instaurada, é necessário acompanhar os analisadores, “que fazem aparecer, de um só golpe, a instituição ‘invisível’” (LOURAU, 1993, p.35) – as relações de poder. Nesta perspectiva, a crise é fecunda: “a análise de implicações retira-nos dos portos seguros, dos caminhos lineares e conhecidos, da paz das certezas, jogando-nos em alto mar, no turbilhão das dúvidas, da diversidade e dos contornos indefinidos” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008, p.148).

Analisadores podem operar como um dispositivo dentro do dispositivo; em sua estranheza, naquilo que incomodam, fazem emergir linhas de força e de enunciação (KASTRUP; BARROS, 2009). Através da pesquisa, produzir crises e fazer desta dissertação uma intervenção no mundo. De acordo com Lourau (1993), produzir uma análise social coletiva das relações de força instituídas. Sobre o instituído, Lourau (1993:90) aponta que “é o que se impõe como uma verdade não produzida. Corresponde à ideia de universalidade e é, como tal, aparentemente abstraída de concretude material”. O dispositivo da sexualidade é, então, um instituído, que está dado como verdade naturalizada (CANDIOTTO, 2010). O instituído se encontra neste lugar graças às relações de poder; é, portanto, estratégico: [...] sempre cumpre um papel histórico importante porque vigora para ordenar as atividades sociais essenciais para a vida coletiva. [...] o instituído tem uma tendência a permanecer estático e imutável [...] tornando-se assim resistente e conservador (BAREMBLITT, 1994, p.178).

A cartografia utiliza analisadores para problematizar o instituído, pois esses dispositivos (metodológicos) movimentam-se, produzindo fissuras e rachaduras no instituído. A presente dissertação coloca o dispositivo da sexualidade em análise. Para isso, o analisador eleito foi a ‘homofobia’, que permitiu fazer ver e falar diversos processos de produção e manutenção do dispositivo da sexualidade enquanto instituído. Esta pesquisa cartografou a construção histórica do analisador ‘homofobia’, seguindo a proposta genealógica de produzir análises a partir do presente. Além disso, foi possível acompanhar os efeitos desse analisador nos processos de produção de subjetividade e nas relações com o espaço urbano. Os diferentes mapas são atravessados pela análise das implicações, apostando em intervenções que construam possibilidades singulares de existência. A direção da pesquisa é a produção de diversidades, e os materiais foram colhidos a partir de afetações que atravessavam o corpo do cartógrafo. Uma produção de dados diferente da forma instaurada de se fazer pesquisa, já que: [...] quem quer tratar, através da genealogia, de um problema surgido em um dado momento, deve seguir outras regras [diferente de quem estuda um período ou instituição]: escolha do material em função dos dados do problema; focalização da análise sobre os elementos suscetíveis de resolvê-lo; estabelecimento das relações que permitem essa solução. E, portanto, indiferença para com a obrigação de tudo dizer, mesmo para satisfazer o júri dos especialistas convocados. (FERREIRA NETO, 2010, p.131).

O primeiro mapa tem como disparador a violência que é chamada de homofobia. Para isso, foi eleita uma situação ocorrida a um jovem no Rio de Janeiro, em 2010, a partir da qual pergunta-se: que forças produzem este evento que tanto se repete? Este mapa é alimentado por experiências do pesquisador como psicólogo, professor, aluno, cartógrafo, morador do Rio de Janeiro, mestrando, militante de movimentos sociais sobre diversidade sexual. Estas experiências dão uma direção para o mapa, que utiliza como instrumentos produções academias, notícias de jornal, campanhas informativas, reflexões e memórias diversas. Caminhar por estes espaços trouxe múltiplas afetações que guiavam o percurso. Estes dados foram paulatinamente organizados pelo cartógrafo em um mapa rizomático, que segue diferentes percursos e se propõe a abrir múltiplas possibilidades de compreensão sobre o analisador – homofobia. O segundo mapa emergiu a partir de um acontecimento específico – uma agressão contra homossexuais em São Paulo que ganhou os noticiários em todo o país e produziu grande visibilidade em torno da homofobia. O cartógrafo acompanhou suas repercussões experimentando fluxos e afetações em viagens a São Paulo, tendo como guia para este caminhar o medo. O sufixo ‘fobia’ remete a um medo patológico; entretanto, será com esse medo que estamos lidando? Em análise, como os efeitos da homofobia se integram na manutenção do dispositivo da sexualidade. A escrita do texto deste capítulo foi inspirada na estética utilizada por Baptista (2000). Um mapa feito a partir dos estranhamentos de quem não habitava aquele território, que se compôs com imagens, textos e livros, informações, notícias de jornal e da internet e todo um contexto de cultura pop em que está imerso o cartógrafo. Esta dissertação não propõe uma ‘verdade’ a respeito da homofobia. O analisador serve para interrogar movimentos instituídos, naturalizados. Os mapas não são guias: quem tentar segui-los literalmente, não encontrará as mesmas coisas. Os mapas são pistas para construção de outros sentidos possíveis sobre a homofobia, o medo, a sexualidade, as ruas, os corpos, as lâmpadas fluorescentes e os arco-íris.

3 – HOMOSSEXUALIDADE: PRODUZINDO TRANSGRESSÕES ESPERADAS Melissa acredita que temos uma alma de travesti, de viado, de bicha, de gay, de homossexual; ela não perde o programa da mulher que conversa com o papagaio; repete sem pensar o que assiste na TV. Outro dia assistiu no programa que gay não é opção e sim orientação; perguntou se eu concordava, desejava saber a minha resposta. Mandei ela ir à merda. (Oração de um nenhum a Nossa Senhora dos Desvalidos – por Luis Antônio Baptista)

Em 14 de Novembro de 2010, um jovem gay recebeu um tiro no abdômen, disparado por militares em serviço, em uma área pública próxima a um quartel e ao local de encerramento da 15ª Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, ocorrida poucas horas antes na Praia de Copacabana. O rapaz sobreviveu ao fato e relatou que seus agressores vociferavam xingamentos em torno de sua homossexualidade, que seria razão do ocorrido16. Durante alguns dias, a mídia nacional bombardeou noticiários com discussões sobre o caso, acompanhando ‘agressores’ e ‘vítimas’, seus advogados, suas famílias e seus históricos pessoais. Peritos judiciais e psicossociais apresentam suas interpretações. A ‘homofobia’ tornou-se pauta da vez; pelo menos até ocorrer uma imensa invasão policial no Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, que foi acompanhada ao vivo pela imprensa17. Armase o circo em outro picadeiro: em jogo, a garantia da ordem e de uma cidade asséptica18 (BAPTISTA, 2010; COIMBRA, 2010). O tiro que atingiu o jovem produziu desdobramentos. Disparos que atravessaram o cartógrafo, e reverberaram como perguntas: o que está em jogo quando um agente do Estado, em serviço, tenta matar alguém por conta de sua experimentação sexual? Por que uma determinada categoria é ‘eleita’ para eliminação? O que transforma um território ocupado pela diversidade em um espaço de perigo? O que é a ‘homofobia’ e quais relações de poder a produzem? O dispositivo da sexualidade, ao instituir uma ‘verdade’ do sexo que estaria inscrita nos corpos-indivíduos, constrói categorias de classificação e delimitação dos sujeitos, a partir de normas instituídas pelas relações de saber-poder. Este capítulo acompanha a constituição de processos produtivos que se enrolam no dispositivo: a ‘homofobia’ enquanto fenômeno, a 16

Cf , 17 Cf . 18 “[...] no Alemão e na Vila Cruzeiro, a pacificação é comemorada junto aos detritos humanos e inumanos deixados após o combate. Na TV a zona norte não fedeu. Saúde e paz ocupam o Rio de Janeiro” (BAPTISTA, 2010: s/p).

homossexualidade como uma categoria, e as relações de saber-poder com a complexa estratégia da sexualidade. 3.1 – A ‘invenção’19 da homossexualidade e seus efeitos De acordo com Foucault (1988), o final do século XVIII marca o estabelecimento do dispositivo da sexualidade como modo hegemônico de produção de formas de compreensão dos corpos, dos prazeres e da existência humana. Entretanto, não se trata de uma estratégia homogênea, única ou uniforme. É preciso entender os múltiplos efeitos e as diferentes relações produzidas em um dispositivo. A este respeito, Foucault diz que: [...] parece possível distinguir, a partir do século XVIII, quatro grandes conjuntos estratégicos, que desenvolvem dispositivos específicos e de poder a respeito do sexo [...] [que] atingiram certa eficácia na ordem do poder e produtividade na ordem do saber, que permitem descrevê-los em sua relativa autonomia. (FOUCAULT, 1988, p.114-115).

Estes conjuntos estratégicos são: a histerização do corpo da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a socialização das condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso. Trata-se da fabricação de quatro figuras como “objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação de empreendimentos do saber. [...] De fato, trata-se, antes, da própria produção da sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p.116). Sobre o prazer perverso, Foucault aponta a realização de diferentes intervenções que entendem a sexualidade como um instinto autônomo, donde condutas e manifestações patológicas demandam normalização e correção. Desta forma, constrói-se um aparelho tecnológico de correções, mas também um compêndio infinito sobre as possíveis anomalias. Dentre as perversões, ganha grande destaque uma experimentação que hoje chamamos de homossexualidade – as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo. No Ocidente, desde a Antiguidade até o século XIX, houve uma certa tolerância às práticas sexuais entre homens desde que limitadas a um simples e breve encontro físico. Ao mesmo tempo, as relações entre mulheres não ganhavam visibilidade na medida em que faziam parte de uma relação íntima já esperada entre mulheres. Mesmo que ‘transgressoras’, estas práticas (entre homens ou entre

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Segundo a discussão feita por Kastrup (2007), a invenção aparece como um processo de criação de novas possibilidades. Na história genealógica construída neste item, a homossexualidade em alguns aponta para um caminho inovador, mas se desenha hegemonicamente como uma estratégia de controle exercida pelo biopoder. Uma fabricação disfarçada de inventividade e, por isso, uma invenção entre aspas.

mulheres) raramente eram utilizadas para definir os sujeitos, sendo entendidas como excessos dos instintos da ‘carne’ e não ‘verdades’ ou ‘essências’ (FOUCAULT, 1994a). Ao estudar a Antiguidade grega, Foucault (1985) aponta que as escolas filosóficas apresentavam diferentes interpretações e análises sobre este tipo de relações sexuais. Não se trata de uma compreensão única, e sim disputas no espaço público. De qualquer modo, os apetites do Homem20 (por comida, por bebida, por sexo) deveriam ser objeto de reflexão, para produção de uma ‘dietética’ dos prazeres, tendo a razoabilidade como medida. As relações sexuais entre homens poderiam e deveriam acontecer, configuradas de acordo com certos jogos de sedução e de relações de poder. A forma como cada Homem se relacionava com seus apetites era material de questionamento, mas não significava atribuir uma única ‘verdade’ àquele sujeito. O sexo era efeito das escolhas, e não sua causa (FOUCAULT, 1985). O que está em jogo é a razoabilidade do sujeito no controle dos seus apetites (FOUCAULT, 1985; SEDGWICK, 2007). A verdade hegemônica do ser humano como racional, que deve sempre evitar os erros da ‘desrazão’ (e não mais ser razoável em suas diferenças) se estabelece apenas no final do século XVIII (FOUCAULT, 1984a). Mott (2002) aponta que a perseguição às práticas sexuais entre dois homens com pena de morte existe desde a Antiguidade entre povos judeus, nações muçulmanas e européias, pois são práticas consideradas pecados em diferentes religiões. O autor chama este processo de ‘homofobia’, afirmando que existe até hoje, de múltiplas formas. Entretanto, a punição descrita na antiguidade se dá pela desobediência de uma autoridade superior (seja ao soberano de um território e/ou do Reino dos Céus); é um castigo exemplar, donde a morte é a exibição do poder, pois “um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte” (FOUCAULT, 1988, p.147). Entretanto, o que o século XIX traz de novidade é a regulação da vida. É a partir de então que a sociedade ocidental passou a ver as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo “como uma função de definições estáveis de identidade (de tal modo que a estrutura da personalidade de alguém pode marcá-lo como homossexual mesmo na ausência de qualquer atividade genital)” (SEDGWICK, 2007, p.42). Nesse período, o comportamento sexual torna-se importante na produção da individualidade, e as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo ganham estatuto de anormalidade (FOUCAULT, 1994b). Mudança no regime de visibilidade, pois “o homossexual do século XIX torna-se uma personagem [...] nada do que ele é, no fim das

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Na Grécia Antiga, o cidadão, pleno de seus direitos era o homem livre adulto. As mulheres e crianças gregas e todos os escravos ocupavam diferentes papéis sociais, submetidas à vontade e à ética do cidadão (FOUCAULT, 1985). Para marcar isso, a grafia da palavra foi feita iniciada por letra maiúscula.

contas, escapa à sua sexualidade” (FOUCAULT, 1988, p.50). O ‘amor que não ousa dizer o nome’21 ganha um nome próprio, dado pela psiquiatria22. A homossexualidade surge como uma categoria médico-psiquiátrica “quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie” (FOUCAULT, 1988, p.51). Objeto de estudo/intervenção das ciências, o sujeito categorizado como homossexual não tem mais uma fala legítima sobre si, e passa a ser mediado pelo que era chamado de sua ‘doença’. Nesta organização produtiva, o comportamento sexual é entendido na superposição de desejos naturais (advindos da ‘verdade’ do sujeito, revelada pela ciência) com as regras que delimitam o que se pode ou não fazer. Entretanto, Foucault (1994a) aponta que há muito mais; também se trata da maneira como se entende a experiência, sua valoração e consciência. A sexualidade é objeto de confissão: Saber “quem se é”, desde então, se tornou sinônimo de conhecer a ‘verdadeira’ natureza do seu desejo sexual, e a identidade sociomoral do sujeito se tornou, progressivamente, um apêndice de seu sexo. Esse foi o trajeto histórico que nos faz achar “natural” e “intuitivo” identificar a si ou aos outros como heterossexual, homossexual, “qualquer-coisa-sexual” etc. (COSTA, 1999, p.10).

A ‘vontade de saber’ sobre o sexo constrói um território para a homossexualidade emergir enquanto conceito e o homossexual enquanto modo de existir: os saberes científicos passam a descrever estas práticas e, principalmente, estes indivíduos, que seriam diferentes em sua natureza ou essência, sua sexualidade. A transgressão é delineada, esperada, produzida, incitada. O poder avança na definição dos modos de existir associados às práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, produzindo assim processos de subjetivação homogêneos, normatizados. Isso porque o dispositivo da sexualidade não delimita apenas a ‘regra do jogo’, mas explora cada vez mais as transgressões (FOUCAULT, 1994a). Todas as possibilidades em torno das relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, sua imensa diversidade de possíveis, é alocada dentro de um signo, carregado de estigmas (SEDGWICK, 2007). Os homossexuais são delimitados como ‘anormais’ por uma estratégia da modernidade, que produz normas e alimenta relações de poder na medida em que tenta 21

Frase de Lorde Alfred Douglas, de 1894, para se referir a si próprio enquanto homossexual (SEDGWICK, 2007, p.30). 22 “Os primeiros médicos que escreveram sobre relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo inventaram duas palavras que vão ser usadas subseqüentemente como sinônimos: o homossexual e o uranista. A primeira foi usada pela primeira vez em 1869 por um médico húngaro, Karoly Maria Benkert. O segundo surgiu do trabalho de um alemão, Karl Heinrich Ürichs, que escreveu fartamente entre os anos de 1860 a 1890” (FRY; MACRAE, 1983, p.62).

‘purificar’ o mundo: “os anormais não são, em si ou ontologicamente, isso ou aquilo; nem mesmo eles se instituem em função do que se poderia chamar de desvio natural em relação a alguma suposta essência normal” (VEIGA NETO, 2001, p.106). A diferença é, portanto, fabricada. Para além da proibição da homossexualidade, há uma incessante busca por indícios e sinais que apontem para esta vivência, bem como estratégias para sua ‘correção’ e normatização. Deve-se falar sobre a homossexualidade. Os desvios à norma do dispositivo da sexualidade não só são esperados como necessários, posto que através deles a produção hegemônica de poder avança, se bifurca e opera sutilmente em novos territórios: O necessário fracasso, a extrema obstinação numa tarefa tão inútil [vigilância da sexualidade infantil] leva a pensar que se deseja que ele persista e prolifere até os limites do visível e do invisível, ao invés de desaparecer para sempre. Graças a esse apoio o poder avança, multiplica suas articulações e seus efeitos, enquanto o seu alvo se amplia, subdivide e ramifica, penetrando no real ao mesmo ritmo que ele. (FOUCAULT, 1988, p.50)

O corpo desviante passa a ser investigado, estudado, classificado, para explicação de sua ‘verdade’ e então enquadrado, delimitado, corrigido em sua diferença. O avanço do poder se dá na regulação dos corpos enquadrados na norma, mas também na visibilização daqueles que escapam, desviam, subvertem – para além da experimentação, o desvio torna-se um território ocupado pelo diagrama estabelecido pelo dispositivo da sexualidade. O suposto ‘fracasso’ da eliminação dos desviantes é, de fato, um sucesso na manutenção das relações de poder estabelecidas. O sujeito homossexual é descrito com características específicas; sintomas associados à representação de indivíduo degenerado. Foucault (1994a) discute que, em certa medida, os sujeitos precisavam esconder suas relações sexuais com pessoas do mesmo sexo no século XIX, através de guetos e mentiras. Não se trata de um efeito da homossexualidade ‘em si’ (enquanto uma verdade e/ou natureza inscrita em um corpo-indivíduo), mas muito mais uma estratégia para lidar com diversos códigos penais europeus que incriminavam as relações homossexuais23. A homossexualidade é construída como um segredo, a ser mantido no ‘armário’ (SEDGWICK, 2007). O esquadrinhamento do sujeito homossexual como o mentiroso patológico desconsidera o caráter coletivo dos processos de produção de 23

Os primeiros grupos organizados de homossexuais, no começo do século XX, lutavam pela mudança nos códigos penais europeus, que previam punições para quem tivesse práticas sexuais com pessoas do mesmo sexo. Estes movimentos conseguiram uma série de avanços até a década de 30, marcada por duros retrocessos e o extermínio de homossexuais pelo regime nazista na Alemanha e o advento do stalinismo na União Soviética (FRY; MACRAE, 1983).

subjetividade (GUATTARI; ROLNIK, 1996), que também produzem o que identificamos como doenças (FOUCAULT, 1984a). Condutas consideradas anormais e patológicas são relegadas a um indivíduo doente, portador de uma síndrome – o homossexual. A delimitação da homossexualidade enquanto uma manifestação patológica produz investigações e intervenções terapêuticas para compreender o que seria sua ‘origem’ e ‘tratamento’. O diagrama de poder investe estes corpos, por conta de sua suposta ‘irregularidade’, produzindo saberes-poderes que reafirmam uma mesma lógica do dispositivo da sexualidade



uma

sexualidade

única,

universal,

natural,

inquestionável.

A

homossexualidade é um desvio do esperado, pois “também o anormal está na norma, está sob a norma, ao seu abrigo. O anormal é mais um caso, sempre previsto pela norma” (VEIGA NETO, 2001, p.115). Junqueira (2007) preocupa-se com as estratégias de reconhecimento social da homossexualidade através dos crivos médico-psicológicos, por conta da produção de ‘verdades’ universalizadas sobre a existência humana. Assim, o autor entende que os saberes tidos como científicos podem limitar compreensões, mudanças e garantia de novos direitos, bem como desconsiderar as relações de poder que instituem essas verdades. Os corpos passam a ser circunscritos a uma história individual, linear, origem das experiências humanas. A sexualidade seria produto desse corpo natural, previsível, necessário para espécie. A homossexualidade seria, então, transgressão do desenvolvimento sadio e normal. Vivida como uma identidade essencializada, a homossexualidade opera como ‘enforço’ do biopoder. Em um primeiro momento, reafirma a heterossexualidade compulsória; posteriormente, aperfeiçoa essas tecnologias de produção do sexo: Historicamente, a prescrição da heterossexualidade como modelo social pode ser dividida em dois períodos: um em que vigora a heterossexualidade compulsória pura e simples e outro em que adentramos no domínio da heteronormatividade. Entre o terço final do século XIX e meados do século seguinte, a homossexualidade foi inventada como patologia e crime e os saberes e práticas sociais normalizadores apelavam para medidas de internação, prisão e tratamento psiquiátrico dos homoorientados. A partir da segunda metade do século XX, com a despatologização (1974) e descriminalização da homossexualidade, é visível o predomínio da heteronormatividade como marco de controle e normalização da vida de gays e lésbicas, não mais para que se ‘tornem heterossexuais’, mas com o objetivo de que vivam como eles. (MISKOLCI, 2007, p.6).

Sedgwick (apud MISKOLCI, 2007) entende que a homossexualidade se constitui como objeto de saber para priorizar a heterossexualidade enquanto compulsória, natural – ou seja, instituí-la enquanto verdade. O Estado tornou-se heterossexualizado, pois a procriação é prerrogativa da formação de uma nação moderna; neste sentido, as relações homossexuais são

ameaçadoras do instituído (TEIXEIRA FILHO, 2010). É com a figura de um ‘outro’, oposto e dicotômico, que a norma pôde se estabelecer: Em resumo, a ordem social do presente tem como fundamento o que Michael Warner denominaria, em 1991, de heteronormatividade. [...] A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade. (MISKOLCI, 2007, p.4-5).

Para

Miskolci,

mais

do

que

uma

heterossexualidade

compulsória,

a

heternormatividade é “uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do [desse] modelo” (MISKOLCI, 2007, p.5-6). A heteronormatividade regula as produções dos corpos-indivíduos, qualquer que seja a orientação sexual identificada. Este dispositivo estabelece mecanismos de coerção, controle, interdição e produção de sexualidades, estéticas e existências normatizadas. Os corpos são moldados continuamente. A heteronormatividade indica que os meios de confinamento da sociedade disciplinar estão em crise; para além da anatomo-política dos corpos, um novo diagrama se instaura: São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. [...] Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, que funcionam com uma lógica diferenciada. (DELEUZE, 1992, p.220-221).

A homossexualidade não é necessariamente confinada em hospitais ou prisões, já que foi descriminalizada e despatologizada em grande parte do mundo ocidental. Entretanto, não significa um desinvestimento de poder; este diagrama se vale do controle a céu aberto. A heteronormatividade é uma estratégia de controle (MISKOLCI, 2007); há uma convergência para modos de vida hegemônicos, economicamente úteis. Sedgwick (2007) diz que o desafio de ‘sair do armário’ (‘acting out’ em inglês), ou seja, revelar-se homossexual, ainda não foi superado. O dispositivo da sexualidade produz a expectativa de uma heterossexualidade compulsória; em outras palavras, todos são, a princípio, heterossexuais. A identificação da homossexualidade se dá através de uma revelação, que ganha um caráter de confirmação quando o suposto homossexual já transgride as expectativas de gênero – heteronormatividade:

Cada encontro com uma nova turma de estudantes, para não falar de um novo chefe, assistente social, gerente de banco, senhorio, médico, constrói novos armários cujas leis características de ótica e física exigem, pelo menos da parte de pessoas gays, novos levantamentos, novos cálculos, novos esquemas e demandas de sigilo ou exposição. Mesmo uma pessoa gay assumida lida diariamente com interlocutores que ela não sabe se sabem ou não. É igualmente difícil adivinhar, no caso de cada interlocutor, se, sabendo, considerariam a informação importante. (SEDGWICK, 2007, p.22).

O ‘armário’ não precisa de um estabelecimento físico para restrição. Ele acompanha uma sexualidade naturalizada, atravessando corpos e regendo suas performances. O corpomáquina, produtivo e disciplinarizado, é também corpo-modulado. O ‘armário’ produz controle porque uma ‘verdade’ sobre o sexo está instituída, e deve ser confessada; uma vontade instituída de ‘saber quem se é’ pela sexualidade. A heteronormatividade não necessariamente produz correção de indivíduos às normas, mas sim uma reafirmação das mesmas. O ‘armário’ só existe por conta da invenção da homossexualidade; as relações de poder precisam de pontos de apoio móveis para seu exercício. Esta ‘transgressão’ às normas do dispositivo é necessária, esperada e útil, pois “as incoerências e contradições da identidade homossexual na cultura do século XX respondem a – e, portanto, evocam – as incoerências e contradições da heterossexualidade compulsória” (SEDGWICK, 2007, p.40). E a heteronormatividade se materializa em “mecanismos de interdição e controle das relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo” (MISKOLCI, 2007, p.6), agrupados sob a nomenclatura ‘homofobia’. 3.2 – Homofobia e processos de criminalização da sexualidade As transgressões às normas do dispositivo da sexualidade produzem diversos efeitos punitivos: intervenções de ‘readequação’ do desejo sexual à heteronormatividade (terapêuticas científicas e/ou religiosas), exclusão dos processos de garantia de direitos, vulnerabilidade a agressões e violências. Frente a esse quadro, na última década, observa-se um crescimento de políticas públicas brasileiras que têm como foco a população LGBT. Ao mesmo tempo, o Brasil foi o primeiro país a ter uma conferência nacional para discutir os direitos desta população, convocada pelo Presidente da República24. São produtos de décadas de luta dos movimentos sociais, pressionando diferentes níveis da gestão pública.

24

A 1ª Conferência Nacional de Políticas Públicas para a População GLBT foi convocada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2008, e produziu o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT. A 2ª Conferência Nacional LGBT, realizada no final de 2011, integrou 90 novas propostas ao plano original.

Uma das maiores justificativas destas políticas é o alto índice de violências físicas e assassinatos contra a população LGBT, como ocorrido também em Quatorze de Novembro de 2010. Entre os principais indicadores de assassinatos estão os dados advindos do Grupo Gay da Bahia25, que aponta um crescimento do número de mortes de homossexuais por ano, atingindo a marca de 260 casos em 2010, contra 198 em 2009, 190 em 2008 e 122 em 2007 (GRUPO GAY DA BAHIA, 2009; TOTAL..., 2011). Conforme aponta Junqueira (2007, p.2), atores de diversos setores sociais “vêm apontando os dedos para a questão, denunciando ou finalmente admitindo: a homofobia é um grave problema social”. O que é, então, homofobia? A homofobia pode ser definida como hostilidade geral, psicológica e social contra aquelas e aqueles que, supostamente, sentem desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo. Forma específica de sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, todos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado para seu sexo biológico. (BORRILLO, 2010, p.34).

A Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA) complementa: “A Homofobia é o medo, a aversão ou a discriminação à homossexualidade ou aos homossexuais. É o ódio, a hostilidade e a desaprovação contra as pessoas homossexuais” (ILGA, 2009, p.4). Atravessada por significados muito sutis, a homofobia pode ser usada como um nome – referindo-se ao sentimento de hostilidade – mas também trata da qualidade de comportamentos, práticas, instituições, e leis que restringem a garantia dos direitos humanos de homossexuais – discriminação, exclusão, violência (JUNQUEIRA, 2007). Borrillo (2010) lista alguns processos considerados homofóbicos, como as intervenções terapêuticas para uma suposta reversão da homossexualidade (patológica) para a heterossexualidade (saudável)26; estudos que investigam as causas da homossexualidade, tomando a heterossexualidade como dado natural; garantias jurídicas da homossexualidade 25

Facchini (2003) aponta que o Grupo Gay da Bahia (GGB) surgiu em 1980, mas caracteriza-se como parte da ‘segunda onda’ do movimento homossexual brasileiro, porque se preocupou com uma maior institucionalização e com a construção coletiva de uma resposta à epidemia de Aids. O GGB realizava um registro documentado sistemático de assassinatos de homossexuais – através de denúncias e notícias veiculadas na mídia –, onde o motivo direto ou indireto desta morte foi a condição homossexual da vítima (RAMOS; CARRARA, 2006). Este registro foi interrompido no final de 2011 para, segundo o presidente da instituição, responsabilizar a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República no enfrentamento desta situação. Cf . 26 A este respeito, o Conselho Federal de Psicologia promulgou a Resolução nº001/1999, que proíbe os psicólogos de proporem em seu trabalho ou em falas públicas qualquer forma de ‘cura’ ou transformação da homossexualidade, posto que esta não constitui doença, desvio ou perversão. Em 2009, a psicóloga Rozângela Alves Justino, do Rio de Janeiro, ganhou repercussão na grande mídia pelo julgamento, no Conselho Federal de Psicologia, de uma infração à referida Resolução. Cf: , . Uma discussão deste caso é encontrada em CASSAL; GARCIA; BICALHO, 2011.

apenas no registro do segredo e do espaço privado do lar; garantia de acesso a direitos do consumidor, desde que possuindo poder de compra.27 A homossexualidade está para além das práticas sexuais, pois a criação desta categoria no século XIX inventou um complexo personagem com características físicas e psíquicas. A homofobia, por sua vez, trata da hostilidade com esse conjunto de desejos, comportamentos e representações, que não significam apenas práticas sexuais. De acordo com Borrillo (2010), a palavra ‘homophobia’ foi inventada em 1971 por K. T. Smith nos Estados Unidos da América, em um estudo para encontrar características comuns à personalidade ‘homofóbica’, ou seja, que possui essa repulsa. Junqueira (2007, p.3), por sua vez, conta que este termo foi criado pelo psicólogo clínico George Weinberg em 1972, e “agrupou dois radicais gregos ὁμός (semelhante) e φόβος (medo) – para definir sentimentos negativos em relação a homossexuais e às homossexualidades”. De acordo com Lacerda (apud RAMOS; CARRARA, 2006, p.191), o termo homofobia aparece pela primeira vez no Brasil em 1992, no jornal carioca O Globo, “para designar ‘horror ao homossexual’”. Dentre as múltiplas interpretações da homofobia, a que ganha maior destaque atualmente refere-se às agressões (inclusive assassinatos) relacionadas a uma orientação sexual não-normativa. Foi no final dos anos 90 do século XX que os movimentos homossexuais brasileiros passaram a construir propostas no campo da segurança pública para enfrentamento dos sistemáticos assassinatos de homossexuais. A abordagem sensacionalista da mídia28, a vitimização e discriminação contra homossexuais por parte da polícia, da justiça, da imprensa e dos próprios militantes; os assassinatos pareciam um problema impossível de ser resolvido. Um quadro curioso frente à potência criativa empregada dos movimentos homossexuais utilizadas nas campanhas da saúde da época, especialmente de prevenção à Aids (RAMOS; CARRARA, 2006). Mott (2002) entende que a homofobia atravessa toda a história como repressão e eliminação das pessoas que mantinham práticas sexuais com outros do mesmo sexo. Entretanto, consideramos a homossexualidade como uma construção histórica datada no século XIX, que instituiu uma forma absolutamente inédita de se relacionar com tais práticas sexuais ao investi-las e incitá-las como parte de um dispositivo. Neste sentido, a homofobia só faz sentido a partir da categoria ‘homossexual’ e é, portanto, seu efeito. Em outras palavras: a 27

Borrillo (2010) descreve estas diferentes processos utilizando subclassificações da homofobia (‘homofobia institucional’, ‘homofobia liberal’, etc.). Entretanto, por entender que são categorias que dividem efeitos específicos de um processo comum e complexo do dispositivo da sexualidade, não as considerei necessárias para o desenvolvimento desta pesquisa. Assim, escolhi utilizar apenas o termo ‘homofobia’ de forma geral. 28 Exposição dos cadáveres e de pormenores das mortes, como ainda hoje ocorre em alguns meios de comunicação.

homofobia só foi inventada porque a homossexualidade já se estabeleceu enquanto uma ‘verdade’ dos sujeitos. Desta maneira, a palavra homofobia, neste texto, nomeia o modo de funcionamento do dispositivo da sexualidade que de diversas formas produz a eliminação dos transgressores à heteronormatividade. Atualmente, o conceito de homofobia passa por vários debates, dos quais destacamos dois. Primeiro, a homofobia é frequentemente remetida à experiência masculina, principalmente pela invisibilização do feminino em nossa sociedade, além de uma interpretação errônea do prefixo ‘homo’ como relativo a ‘homem’ (masculino). Neste sentido, foram cunhados os termos ‘lesbofobia’ e ‘transfobia’ para afirmar as especificidades e vulnerabilidades da experiência de lésbicas e de travestis e transexuais, respectivamente. De fato, as questões de gênero são um importante atravessamento na construção da violência. Além disso, como o sufixo ‘fobia’ remete a uma aversão patológica e incontrolável, critica-se a desconsideração de processos sociais complexos subjacentes à homofobia (JUNQUEIRA, 2007; BORRILLO, 2010). Conforme discute Veiga Neto (2001, p.111), as dificuldades em relação às categorias ‘anormais’ não são efeitos de diferenças ‘óbvias’ ou ‘naturais’; “ao contrário de ontologicamente necessárias, aquelas dificuldades são contingentes”. É por conta dos marcadores de diferenciação que as violações emergem, mas as lógicas que dividem sujeitos são estratégias que colocam e mantém a própria norma em funcionamento (VEIGA NETO, 2001). Se a homossexualidade não fosse construída e experimentada como uma questão, não haveria o processo que chamamos de homofobia. É um dispositivo que produz o sexo, as sexualidades, a homofobia, ao mesmo tempo em que se alimenta destas categorias. A homofobia é fundamentada pela heteronormatividade e a manutenção dos gêneros delimitados, dicotômicos (JUNQUEIRA, 2007; SEDGWICK, 2007). O dispositivo da sexualidade, enquanto uma estratégia de biopoder, também opera através do estabelecimento de normas. Há algo em comum entre o genocídio de homossexuais no Regime Nazista, as propostas ‘científicas’ para ‘tratamento’ da homossexualidade (que surgem desde o século XIX até os dias de hoje) e o tiro do dia Quatorze de Novembro de 2010. Estes acontecimentos elegeram sujeitos segundo o mesmo critério – os desviantes da norma heterossexual. São exercícios de poder que funcionam como ‘enforço’ do dispositivo da sexualidade, pois se mantém e reafirmam a mesma‘verdade’ instituída enquanto norma dos corpos. O diagrama se aprofunda. Sobre a criação de sistemas normativos que, uma vez transgredidos, provocam ações de punição, Dornelles (1988) chama de processos de criminalização. Para o autor, as regras de

uma sociedade estão materializadas em um código penal, que legisla sobre o que é crime, mas não se restringe a isto. Estas normas tornam-se critérios para definir quem é perigoso, e que práticas são inaceitáveis para o grupo social. Porém, Dornelles aponta que as leis e normas são culturalmente construídas e, na mesma sociedade, atinge de diferentes formas os sujeitos, sendo atravessado por questões de gênero, poder aquisitivo, local de moradia, idade, raça/etnia, capital cultural, dentre outros. Vale destacar que, quando as normas emergem enquanto discursos, produzem necessariamente o território proibido. Neste diagrama de poder, as normas precisam do desviante para se sustentarem. Para as produções dos desviantes enquanto tais pelo dispositivo da sexualidade, bem como as relações de poder que tentam sua eliminação e/ou correção, chamaremos de ‘processos de criminalização das sexualidades’ (CASSAL, LAMEIRÃO, BICALHO, 2009). O esquadrinhamento da homossexualidade em diversas categorias serve de ponto de apoio para este poder sobre a vida: [...] a defendida diversidade vai retroalimentando processos de criminalização da sexualidade. Afinal, os processos de criminalização necessitam de contornos bem definidos àquilo que é criminalizado, e a política identitária nos ilude de que esses contornos são definitivos, essenciais, imutáveis. (CASSAL; GARCIA; BICALHO, 2011, p.467).

O segredo do ‘armário’ pode simular uma proteção contra a homofobia para um homossexual. Mas é, mesmo assim, um processo de criminalização da sexualidade. O ‘assumir-se’ passa a ser uma fantasia, um desafio, quando não uma cobrança (SEDGWICK, 2007) direcionada a alguns. O ‘armário’ é um desafio colocado apenas para os sujeitos transgressores às normas29. É uma punição por ‘diferir’ do esperado, normatizado. De acordo com Baptista (1999), há discursos hegemônicos tomam a diferença e a existência fora da norma como negativos, transformando sujeitos em carentes de cuidado e dignos de pena, que podem vir a ser eliminados pela sua condição ‘menos que humana’. Diversas práticas discursivas desqualificam grupos e, portanto, são genocidas, pois destroem modos de existência e potências de vida. Neste sentido, o autor fala dos ‘amoladores de facas’ – atores sociais que, com seus discursos, constroem condições de possibilidade para a eliminação de determinados grupos, pois atuam como ‘enforço’ das normas. Atrizes, padres e psicanalistas, dentre outros, falam em nome do amor e da vida sobre como a homossexualidade é uma condição infeliz e, assim, menos humana. 29

Sedgwick (2007) relaciona também a experiência do ‘armário’ a vivências de etnias perseguidas como judeus e ciganos, que passam pela insegurança frente possíveis efeitos de ‘assumir-se’ publicamente.

Baptista não se preocupa, em seu texto, em determinar quais e tais formas de homofobia operam. De fato, o autor nem mesmo utiliza esta nomenclatura. O conceito de amoladores de facas coloca em uma mesma rede discursos de desqualificação, práticas de exclusão, atos de agressão. A violência30 é estratégia de eliminação das diferenças. Um genocídio fascista, pois busca uma ‘pureza’ na organização do mundo, sem espaço para diferenças (BAPTISTA, 2010). Materializa-se na destruição de corpos, mas está atravessando diferentes dimensões do viver: O ódio e a intolerância ao que é diferente, ao que foge às normas instituídas, sacralizadas e, por isto, consideradas as únicas e verdadeiras formas de viver e de estar no mundo são adubados por diferentes dispositivos sociais, em especial pelos grandes meios de comunicação de massa hegemônicos presentes em cada um de nós (COIMBRA, 2010, s.p).

Coimbra não fala de ódio individualizado contra uma manifestação específica. Tratase muito mais de uma forma de estar no mundo que é produzida constantemente: um modo hegemônico de subjetivação. A violência é também uma fabricação, constantemente investida. Em Quatorze de Novembro de 2010, o Arpoador, ponto turístico do Rio de Janeiro, foi território de mais uma violência contra a diferença. O militar, agente do Estado, gritava: “’viado tem que morrer’, ‘se matar você, faço um favor para a sociedade’ e ‘você é uma vergonha para sua família’” (COIMBRA, 2010, s.p). O tiro comporta duas dimensões diferentes de genocídio; além de (tentar) matar um sujeito pela sua identificação com um determinado grupo social, elimina (talvez mais eficazmente) seu modo de existência. O rapaz baleado tem medo de sair na rua a noite31. O tiro reafirma a ilegitimidade da diferença, a ilegalidade que deve ser controlada: O corpo do humilhado torna-se um tipo, um índice, uma diferença formatada na imagem pronta para ser reconhecida e consumida. A força política da humilhação é domesticada perdendo o ímpeto aniquilador do seu ato. Desta outra pele não encontraremos vestígios das nossas histórias. Dos espaços perigosos não encontraremos o passado e o futuro do nosso corpo. Os humilhados serão reduzidos a vítimas ou condenados por atos que só a eles dizem respeito. A diferença brilha solitária, sempre em dívida, comovida ou não com o que extrapola as suas bordas,

30

Minayo (2006, p.14-15) distingue três definições de violência: física (que atinge a integridade corporal); econômica (desrespeito e/ou apropriação indevida de propriedades e bens) e moral e simbólica (dominação cultural, desrespeitando a dignidade e os direitos do outro). Entretanto, entendemos que o conceito de ‘amoladores de facas’ vem na contramão destas divisões, ao pensar a sistemática produção coletiva das ‘vítimas’ da violência. 31 Cf. . Acesso em: 12 jan. 2012.

mas irremediavelmente imaculada . Nada de misturas ou contágios. (BAPTISTA, 2010, s.p.).

A agressão é mais que uma violência individual, uma humilhação localizada. A homossexualidade como vergonha para a família, e o assassinato como favor para a sociedade; a morte, aqui, trata do poder sobre a vida. O sujeito homossexual está ligado à família pela sua relação consanguínea, mas a vergonha fala de um corpo ‘degenerado’, um sangue ‘apodrecido’. A degeneração, um dos maiores medos dos médicos do século XIX (FOUCAULT apud BATISTA, 2003, p.153) continua presente e mancha a orla carioca. A morte (anunciada pelo militar) não tinha um fim nela própria, com a punição do indivíduo transgressor. Morrer era útil, matar era ‘em defesa da sociedade’ (e talvez por isso executada por um funcionário público32, agente de segurança). Esses clamores advindos do pânico cobram sempre o seu preço no corpo dos oprimidos e transformam-se rapidamente em discursos que matam [...] Parece que esse discurso se faz obra, nesse sentido da eficiência: confiança para uns e terror para outros. (BATISTA, 2003, p.192).

O extermínio faz parte da estratégia de biopoder. Ainda que paradoxal, encontra-se assegurado pelo que Foucault (1999) chama de racismo de Estado33. A biopolítica sustenta-se em embasamentos científicos essencializantes do humano. A eliminação dos considerados ‘diferentes’ se dá pelo argumento do fortalecimento biológico da espécie; apenas os mais aptos sobrevivem aos conflitos sociais. Esse processo ocorre em relação a etnias, classes econômicas e também grupos identitários, inclusive em função da orientação sexual e manifestações de gênero. Para Foucault, foi a emergência do biopoder que inseriu o racismo nos mecanismos de Estado; o racismo como um corte entre o que deve viver e o que deve morrer. [...] É o racismo que permitirá decidir quem morrer e quem vive. O que morre faz com que o bom viva mais puro e mais sadio através de uma relação biológica, de eliminação de perigos internos e externos. (BATISTA, 2003, p.156-157).

Os militares foram, naquele dia, guardiões da pureza biológica. Podemos analisar como um ato racista, se entendermos como Veiga Neto (2001, p.107) o racismo enquanto 32

“Entenda-se aqui por funcionários os agentes direta ou indiretamente encarregados pela operacionalização das funções de Estado, não importando o grau de formalização institucional de seu estatuto de funcionário público” (MONTEIRO; COIMBRA; MENDONÇA FILHO, 2008, p.9). 33 “Foucault, ao trabalhar a guerra como ‘gabarito de inteligibilidade dos processos históricos’, afirma que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi a ‘assunção da vida pelo poder’, uma ‘estatização do biológico’ que se diferencia das soberanias anteriores: se o soberano exercia seu poder pelo direito de matar, uma das revoluções do direito político do século XIX seria ‘o poder de fazer viver e de deixar morrer’” (BATISTA, 2003, p.155).

“não apenas a rejeição do diferente, mas, também, a obsessão pela diferença, entendida como aquilo que contamina a pretensa pureza, a suposta ordem, a presumida perfeição do mundo”. Um corpo fora do lugar foi marcado, eliminado na diferença que se produzia. A homofobia é transversal; não mata simplesmente indivíduos ou grupos, mas coletivos. Uma produção fascista que elimina a diferença, a diversidade e a possibilidade de invenções para além das normas. A zona bucólica vista através do vidro despedaçava-se. O bairro seguro foi atravessado por modos de vida fascistas desprovidos de um único autor. O fascismo individualiza, produz espaço e aniquila qualquer diferença que ouse turvar a paisagem. [...] humilhado, assim como todos os que portam em seus corpos a presença encarnada da cidade produzindo a impertinência do desejo. Chamado de animal perdia a posse em seu corpo da história de outros corpos. Aos animais só restariam os limites da natureza [...] e tudo tem que estar no seu devido lugar. (BAPTISTA, 2010, s.p.).

A eliminação de corpos e modos de existência homossexuais não se dá para extinção de toda essa população, pois o biopoder perderia um de seus pontos estratégicos de apoio. A homofobia marca os sujeitos como desviantes, e a cada um que é eliminado há outros tantos a serem identificados, procurados, assassinados. Foucault (1999) discorre sobre o genocídio nazista como um processo que chegou a um ponto próximo da eliminação dos transgressores: colocar toda a população em absoluto risco de vida, pois os mais fortes e aptos sobreviveriam. Assim, neste diagrama de biopoder, a eliminação total da diferença só se dará quando (e se) ocorrer o fim da vida humana na Terra. A produção de diferenças é necessária para o funcionamento do dispositivo da sexualidade. A manutenção deste diagrama de poder mantém também a necessidade da homossexualidade enquanto categoria e da homofobia enquanto processo de eliminação. Uma eliminação que nunca atinge o objetivo a que aparentemente se propõe. A homofobia é o analisador escolhido para entender como o dispositivo da sexualidade se articula e produz relações de saber-poder que o alimentam. Esta estratégia funciona com normas; mesmo assim, os desvios são esperados e até mesmo necessários para a manutenção das relações de poder. A delimitação da homossexualidade em um conceito que nomeia corpos, relações, práticas, estéticas é a construção de mais pontos de apoio para o biopoder. Neste sentido, a homossexualidade é necessária e até ‘esperada’ para o dispositivo da sexualidade. O enfrentamento da homofobia pela naturalização da homossexualidade é limitada, pois alimenta o próprio diagrama de poder que se propõe a enfrentar. A ideia de uma existência natural, diferente das outras ‘anormais’ legitima e justifica eliminações. Se a

homossexualidade é natural, há aqueles que não são e, por isso, não têm garantida sua sobrevivência. A homofobia fabrica subjetividades, corpos, modos de existir. E também produz resíduos, que são incorporados ao funcionamento do dispositivo. A homofobia regula mais do que a homossexualidade; este mapa será explorado no próximo capítulo.

4 – MAPAS DE MEDO, CARTOGRAFIAS DA HOMOFOBIA

(Quadrinhos dos anos 10 – Por André Dahmer) A sexualidade opera como um dispositivo de produção e regulação dos corpos, das subjetividades, das populações, das relações, conforme discutido no primeiro capítulo. No terceiro capítulo, vimos que a homofobia, tomada como um dado natural e a-histórico, mantém e estimula este dispositivo. Apresentamos ‘o que está em jogo’; e agora? Um dispositivo que se relaciona com diversos processos de produção de subjetividade, mantendo estruturas instituídas mas também produzindo bifurcações: esta é a sexualidade. Em sua complexidade, o dispositivo cria possibilidades. Através de um dispositivo, com ele, podemos experimentar processos produtivos, por seus efeitos em nossos corpos. Somos agenciados por cheiros, cores, sabores, sons e toques. E, como uma criança conhecendo o mundo, não basta receber passivamente as informações: nós pegamos esses processos e esticamos até rasgar; colocamos na boca; batemos no chão e acertamos outros movimentos. Fazer esses mapas é também destruir, reconstruir, apontar novos significados. Consideramos

o

dispositivo

da

sexualidade

uma

construção

que

opera

estrategicamente. Podemos usar esse dispositivo para outros fins que não a naturalização da sexualidade como uma ‘essência’ do humano. O funcionamento do dispositivo permite dar visibilidade a este como uma invenção; relaciona-se a uma história, funciona de acordo com políticas, opera em táticas. Para os processos que reúne e organiza, há outros caminhos possíveis. Não se configura como uma verdade universal. A afirmação de certas relações enquanto um dogma inquestionável torna-se algo ridículo se pensarmos que a verdade se constitui como uma organização estratégica, mutável e construída coletivamente. O ridículo é uma forma de produzir paródias; estas, para Louro (2004), configuram-se como a estratégia mais efetiva de crítica na pós-modernidade, pois se dão através da apropriação de marcas e códigos do que se parodia, realizando uma exposição extrema que

subverte, critica e desconstrói. “Por tudo isso, a paródia pode nos fazer repensar ou problematizar a idéia de originalidade ou de autenticidade – em muitos terrenos” (LOURO, 2004, p.86). A paródia é entendida como tal porque não se preocupa em ser uma ‘cópia fiel’ ou retorno a um original. Assim, evidencia o caráter construído de objetos naturalizados em nossa sociedade, como a experimentação das sexualidades. Um mapa pode ser uma paródia, ao reinventar dados tomados como óbvios. Pois a repetição do óbvio é apenas decalque; reproduz mundos quando poderia inventá-los (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Mapa construído em encontros singulares, que podem parecer desinteressantes ou pouco importantes. Através dos afetos, mover alguns pontos estratégicos e promover outras composições. O dispositivo da sexualidade nos servirá para ‘perverter’ a compreensão hegemônica da homofobia enquanto um dado sem história, seja como fruto de relações sociais ‘conservadoras’ ou resultado de uma psique ‘doentia’. A aposta aqui é entender a homofobia como nem individual, nem social: produção estratégica, coletiva, agenciada. Aproveitemos a força do dispositivo da sexualidade, que também produz atritos, resistências, fissuras, diferenças. Com isso, produzimos mapas de alguns efeitos. 4.1 – O cartógrafo sai para passear: a Avenida Paulista Em março de 2011, após participar de um seminário de psicologia e políticas públicas com algumas difíceis discussões, o cartógrafo aterrissa em São Paulo. Não havia mais voo direto para o Rio de Janeiro àquela hora da noite; a melhor solução encontrada foi descer na capital paulista e estender a parada por 24 horas. O cartógrafo acreditava que este seria um dia de folga, sem ter de pensar em militância e pesquisa-intervenção. Aquele cartógrafo que fui34 estava equivocado; por um momento, pensou que era possível ‘sair’ do campo, ‘deixar’ o dispositivo. Não percebeu o que aqui fica registrado: o cartógrafo está ligado afetivamente ao dispositivo. É assim que a pesquisa se produz. O corpo tem uma memória que rumina, digere, retorna, regurgita. Quando menos se espera, os afetos te atravessam e atropelam, produzindo o conhecimento por composição (KASTRUP, 2009). 34

A construção deste capítulo produziu uma questão: como descrever a experiência de caminhar pela cidade sem remeter a um 'eu' subjetivista e individualizado? Decidimos pela construção de uma identidade, o 'cartógrafo', que agenciava as afetações daquele momento com as demandas de uma pesquisa em curso. Esta identidade foi estratégica e útil para a dissertação, ao mesmo tempo que se apresentou provisória; findada sua utilidade, se desfez abrindo espaço para outros significados. A discussão sobre identidades estratégicas e provisórias retornará no final deste capítulo.

Após chegar em São Paulo que a viagem começou. Já conhecia a cidade de muitas outras viagens, mas não sabia quais seriam os ritmos, rumos e percursos daquele final de semana. Era semelhante à metáfora de Louro para uma viagem em que o sujeito, tal qual seu caminho, é “dividido, fragmentado e cambiante. É possível pensar que esse sujeito também se lança numa viagem, ao longo da sua vida, na qual o que importa é o andar e não o chegar” (LOURO, 2004, p.13). Para Louro, a distância de uma viagem pode ser cultural, representada pela diferença e pelos estranhamentos. Permite, assim, analisar movimentos, partidas, chegadas, encontros, desencontros, misturas e transformações. Ora, a viagem inaugura novos territórios, que podem ser descritos em mapas. Naquele dia, o cartógrafo não pensava sobre mapas – estava com alguns amigos, moradores de São Paulo, que serviam como guias. E assim eles foram para um bar marcado pela cor verde de suas luzes, entre a Rua Frei Caneca e a Rua Augusta. Esta área concentra, de noite, baladas ‘alternativas’, pontos de ‘entretenimento sexual’ e um sem-número de residências e estabelecimentos comerciais já fechados pelo adiantado da hora. No fim da noite, já sozinho, o cartógrafo sobe a Rua Augusta em direção a estação de metrô da Consolação, na Avenida Paulista. De acordo com o serviço de visualização de mapas da empresa Google, o bar fica a 13 minutos de caminhada do metrô. Um percurso pequeno. O site avisa: seja cuidadoso! O visualizador não garante caminhos para pedestres. Por outro lado, esse mapa não avisa de outros perigos que circundam o espaço e podem se interpor à caminhada curta. Mas há outros mapas disponíveis, circulando na internet.

Figura 1 – Visualização de mapa da Avenida Paulista com rota a pé. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011.

Na mesma Avenida Paulista, próximo a estação de metrô Brigadeiro, três jovens foram atacados por supostamente serem homossexuais35 no dia 14 de novembro de 2010. Este caso ganhou repercussão nacional na mídia impressa, televisa e digital, com fotos dos ferimentos e principalmente imagens gravadas por uma câmera de segurança que registram o uso de uma lâmpada fluorescente na agressão36. Mesmo dia do disparo feito por um militar contra um jovem no Arpoador, no Rio de Janeiro, discutido no capítulo anterior. A enciclopédia virtual livre Wikipédia registra este acontecimento no verbete “Ataques contra homossexuais em São Paulo em 2010”37. A prefeitura de São Paulo, em um ‘mapa da homofobia’, identifica que a área do Centro (incluindo os arredores da Avenida Paulista) concentra metade das denúncias de violências38. Outra notícia revela o ponto exato do fato39, próximo a estação de metrô Brigadeiro.

35

Para esta pesquisa, interessa-nos que a violência tem um alvo pré-determinado, materializado como um inimigo no corpo agredido, independente do sujeito agredido identificar-se ou não como homossexual. 36 Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011. 37 Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011. 38 Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011. 39 Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011.

O mapa do Google não marca o local onde a lâmpada se tornou arma. Entretanto, indica com precisão a distância do lugar onde o cartógrafo se encontrava e o ponto da agressão: dois quilômetros, bem mais distante que o metrô da Consolação. O Google recomenda novamente o cuidado, e traz ainda uma sugestão: utilize o metrô.

Figura 2 – Visualização de mapa da Avenida Paulista com rota a pé. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011.

O cartógrafo não tinha acesso a internet, nem mapas. Naquele momento, só havia a caminhada sozinho, rua acima, rumo à estação de metrô. Ele entendia, como o Google, que o metrô era a melhor forma de chegar a sua hospedagem – onde as lâmpadas fluorescentes eram utilizadas para iluminação, antes de seguirem para o lixo. O corpo do cartógrafo sentia os passos, o frio da noite, o escuro. A Avenida Paulista logo acima o lembrava das lâmpadas que, após se apagarem, poderiam apagar também modos de existência não-hegemônicos. O cartógrafo sentiu medo. No limiar entre o [século] XX e o XXI, o medo não é só uma conseqüência deplorável da radicalização da ordem econômica, o medo é um projeto estético, que entra pelos olhos, pelos ouvidos e pelo coração. Referimo-nos anteriormente ao que Gizlene Neder denominou produção imagética do terror, em que as bancas de jornais e a tela da televisão reproduzem o que foi a praça pública para os autos-defé. (BATISTA, 2003, p.75).

O medo era resposta a uma ameaça? O cartógrafo não registrava a presença de nenhum perigo imediato. Naquele instante, sozinho, o medo parecia algo individual. Mas o medo emergiu por uma produção fabril de subjetividades (GUATTARI; ROLNIK, 1996). De acordo com Bauman (2010), insegurança e instabilidade são marcas do sistema capitalista contemporâneo e de suas múltiplas expressões. Entretanto, este medo é tão difuso e escorregadio quanto suas possíveis causas, tornando-se uma experiência constante. Batista (2003) descreve momentos em que o Brasil viveu um forte clima de insegurança, tendo como consequências políticas intervencionistas na organização da cidade e dos grupos sociais. Todavia, a autora constata que tais situações são fantasias imaginárias de terror, ameaças à ordem estabelecida de abissal desigualdade social. E complementa: “Sociedades assombradas produzem políticas histéricas de perseguição e aniquilamento. [...] a consciência do exagero dos rumores não diminuiria a intensidade da repressão” (BATISTA, 2003, p.26-27). Aquela era uma rua escura como tantas outras. Mas tornou-se um território de medo, um temor específico relacionado a um marcador sobre a sexualidade. Há também uma sensação de estranheza. A Avenida Paulista é uma área nobre da cidade de São Paulo, habitualmente frequentada por homossexuais, local da maior Parada do Orgulho LGBT do Brasil40, e com alguns estabelecimentos abertos durante a noite. Estes elementos poderiam oferecer segurança para esta situação. Mesmo assim, o cartógrafo sentia-se desprotegido. Ser transgressor das normas sexuais é uma marca que não se apaga facilmente; assim, nota-se: [...] a estranheza com que os ‘diferentes’ são recebidos, fora de sua zona. É como se houvesse um zoneamento invisível, inconsciente, em que os deslocamentos humanos causassem mal-estar e perplexidade, ‘causa má impressão’. [...] Essa quebra do encanto proporcionado pelo projeto estético consumista causa profundo mal-estar, causa angústia, causa apreensão. (BATISTA, 2003, p.108-109).

De acordo com Facchini (2011), as Paradas são uma das principais formas de manifestação política do movimento LGBT, apostando na visibilidade massiva como estratégia de reivindicação. Este modo de operar conseguiu uma série de avanços nas políticas públicas e no reconhecimento de identidades. Ao mesmo tempo, observamos um refluxo de

40

Em 2011, a 15ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo reuniu cerca de 4 milhões de pessoas, segundo os organizadores do evento. Cf. < http://www.paradasp.org.br/noticias.php?id=256>. Acesso em: 16 jan. 2012.

movimentos conservadores: restrição de produções culturais41, ações de parlamentares contra políticas de diversidade sexual42, marchas religiosas43 e as situações de violência e agressão. Na noite de final de verão, o corpo do cartógrafo movimentava-se alerta para, em caso de necessidade, reagir. Após alguns minutos de caminhada, chegou à estação de metrô, aliviado porque nenhuma violência física se materializou. O corpo estava aparentemente intacto. Apesar da experiência, naquele momento não se percebia a violência experimentada, que não agredia diretamente o corpo. Viver a homofobia como uma virtualidade constante já era uma violência. Após a viagem de metrô, o cartógrafo caminha por ruas desertas antes do amanhecer. Vira uma esquina, sobe uma rua e vê um grupo de homens na direção oposta, em sua direção. Passaram por um posto de gasolina. Eram jovens, velhos? Skinheads, marginais? Não dava para saber. Mais uma vez, a lembrança da Avenida Paulista. A única reação possível foi preocupar-se com a performance do corpo: um andar tenso, endurecido, sem ‘dar pinta’. Adequar-se à normatividade do gênero, correspondendo às expectativas dadas pelo sexo biológico. Sexo masculino, comportar-se como um ‘macho’ e, assim, talvez evitar uma possível agressão física. De certa forma, significava proteger bem a porta do ‘armário’. Ali, a preocupação com a homofobia estava na questão de gênero: [...] a noção de homofobia pode ser estendida para se referir a situações de preconceito, discriminação e violência contra pessoas (homossexuais ou não) cujas performances e ou expressões de gênero (gostos, estilos, comportamentos etc.) não se enquadram nos modelos hegemônicos postos por tais normas. (JUNQUEIRA, 2007, p. 8-9, grifos do autor).

A homofobia está articulada ao dispositivo da sexualidade, com suas normatizações de corpos e prazeres. O corpo é instrumento político, e produz efeitos no mundo. As normas se materializam nos corpos através de ‘programações de gênero’ que consistem em: Uma tecnologia psicopolítica de modelização da subjetividade que permite produzir sujeitos que pensam e atuam como corpos individuais, que se autocompreendem como espaços e propriedades privadas, com uma identidade de gênero e uma sexualidade fixa. A programação de gênero parte da seguinte premissa: um indivíduo = um corpo = um sexo = um gênero = uma sexualidade. (PRECIADO apud PERES, 2011, p.103).

41

Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2012. 42 Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2011. 43 Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2012.

Butler (2010) entende o gênero como uma estratégia de reafirmação das normas que delimitam os corpos e criam condições de possibilidade para a emergência e nomeação do humano enquanto tal, ao mesmo tempo em que marca algumas existências como impossíveis e inaceitáveis. Toda a organização para uma heterossexualidade compulsória produz um desejo de adequar-se às normas, que enfrenta as materialidades e possibilidades dos corpos, atravessados também por diversas outras forças. O corpo é tomado como natural. “A ordem ‘funciona’ como se os corpos carregassem uma essência desde o nascimento; como se corpos sexuados se constituíssem numa espécie de superfície pré-existente, anterior à cultura” (LOURO, 2004, p.81). Para suportar a ordem heterossexual e manter seu funcionamento, são necessários investimentos contínuos. A normatização dos corpos é um esforço, uma produção de si marcada por violência e sofrimento. Entretanto, a eliminação do modo de existir, naquele momento, foi sentida como aceitável frente uma possível supressão física do corpo. A lâmpada de Quatorze de Novembro deixou marcas no corpo do cartógrafo, mesmo sem atingilo diretamente; produziu um corpo docilizado, que quando circulava no espaço público era de acordo com as normas que tanto insistiu em transgredir. A homofobia opera como: [...] um sistema binário, disciplinador, normatizador e normalizador graças ao qual a heterossexualidade só poderia ganhar expressão social mediante o gênero considerado naturalmente correspondente a determinado sexo (genitalizado, tido como “natural”, “dado”, “pré-discursivo” e, portanto, “evidente” e anterior à cultura – como se existisse corpo avant la lettre). [...] [Há a] crença de que a determinado sexo deva corresponder, de modo bi-unívoco, um determinado gênero, o qual, por sua vez, implicaria um determinado direcionamento do desejo sexual. (JUNQUEIRA, 2007, p.9-10).

Conforme apontam Moreno e Pichardo (2006), há uma ‘homonormatividade’ enquanto produção de um território normatizado para as dissidências sexuais, mantendo um sistema binário, dicotômico, hierárquico e naturalizado. Pita (2011) descreve ainda uma delimitação dos modos de existência considerados ‘legítimos’ para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – uma formatação ‘higienizada’ (de acordo com os padrões ditos ‘saudáveis’) das performances de gênero. Em outras palavras, “ser homossexual é possível, contanto que o sujeito siga a cartilha. [...] no caso, troca-se o modelo normativo heterossexual por um modelo normativo homossexual completamente infectado pela misoginia e pelo machismo” (DODSWORTH, 2008, p.16,22). As experimentações da sexualidade são produzidas de forma delineada: lideranças do movimento LGBT não deveriam assumir relacionamentos que não correspondam aos ‘padrões morais’, posto que isso poderia

desfavorecer a militância e fortalecer o argumento de oposições conservadoras (CASSAL, 2011).

Assim,

a

homonormatividade

assegura

hierarquias

estabelecidas

pela

heteronormatividade: Se asegura la hegemonía heterosexual y se construye la homonormatividad hipervisibilizando y seleccionando ciertos comportamientos realizados por un grupo específico de personas calificadas como homosexuales. El pensamiento homonormativo, asocia desde la hegemonía heterosexista, los comportamientos homosexuales a una clase social y a un estilo de vida determinados. (MORENO; PICHARDO, 2006, p.152).

Travestis são alvos prioritários de violência, agressão, discriminação e exclusão do espaço público. Dão visibilidade às transgressões das normatizações de gênero mas, quando assassinadas, são ignoradas pela polícia (CARRARA; VIANNA, 2006). Sujeitos que se identificam como bissexuais, e também aqueles que experimentam práticas sadomasoquistas são invisibilizados nas bandeiras e militâncias hegemônicas em diversidade sexual (MORENO; PICHARDO, 2006). Estes corpos transgressores ‘ofendem’ às normas, subvertem modos de existência. À sua maneira, fazem paródia do instituído, pois afrontam sua naturalidade e provocam a pensar em outros possíveis. Mas são relegados ao silêncio da anormalidade e excluídos do debate como modos legítimos de existência. São eliminados de maneira genocida (BAPTISTA, 1999). De fato, a homonormatividade opera como um processo de ‘enforço’ da heteronormatividade, pois reafirma e legitima os padrões, qualificando todas outras performances como transgressões. Esquadrinha a homossexualidade em um único registro de experimentação possível, do sujeito que atende à expectativa de corresponder sexo biológico e performance de gênero (homem masculino ou mulher feminina), mas também de acordo com o padrão de comportamento social – educado, bem vestido, dotado de poder aquisitivo e capital cultural, honesto, com atividade sexual regular, trabalhador, monogâmico, limpo, com corpo saudável, sem pelos, queimado de praia, com roupas da moda... Àqueles que não se encaixam, o estigma de culpados por seu próprio sofrimento, por perseguições, por discriminações, por violências físicas. A causa da violência é produzida como individual, tanto na vítima quanto no agressor. Culpabilização e individualização (GUATTARI; ROLNIK, 1996) são mecanismos deste dispositivo da sexualidade. Se o comportamento fosse adequado, as roupas certas, a postura; aliás, se nem estivesse naquele lugar, nada aconteceria. Talvez uma das surpresas das agressões da Avenida Paulista é que borra as fronteiras da vítima e do indivíduo ‘protegido’. A homonormatividade é uma

construção que formata os indivíduos com promessas de segurança e aceitação, sem nem ao menos fazer isso de fato. “The cake is a lie”44. De acordo com Deleuze (1992, p.225), o controle deste diagrama de poder se dá a céu aberto, pois neste diagrama “o que conta não é a barreira, mas [...] a posição de cada um, lícita ou ilícita, [que] opera uma modulação universal”. Em uma sociedade de controle, ‘sair do armário’ não é mais a liberdade, pois o controle funciona através de cifras que se modificam, podendo ou não ser aceitas. No caso da homofobia, temos senhas homonormativas em jogo; às vezes, atender a estes códigos instituídos fará deste sujeito alguém lícito e protegido. Em algumas ocasiões, estar nas áreas de lazer noturno para homossexuais, de acordo com as regras, será uma proteção. Mas nem sempre. Esta ficção constrói corpos, produz subjetividades, compõe relações de poder. Por um lado, esquadrinha as transgressões possíveis e retira seu potencial político, marcando sujeitos enquanto vítimas de sua própria existência (BAPTISTA, 1999, 2000). E para além disso, organiza a visibilidade do sistema de normatizações sobre o sexo. Conforme indica Foucault (1987), a construção de códigos penais, mais do que eliminar as ilegalidades, faz seu gerenciamento: dá maior visibilidade a algumas transgressões, mantendo outras quase esquecidas. Da mesma forma, a homonormatividade chama atenção de alguns comportamentos realizados por grupos de pessoas identificadas como homossexuais. A identidade homossexual é atravessada pela afirmação ou rejeição destes comportamentos, enquanto a heterossexualidade passa ‘desapercebida’ nestes mesmos territórios existenciais. Moreno e Pichardo explicam: [...] se crean relatos míticos que prestan gran atención a espacios públicos y privados gays dedicados al sexo casual que van desde el desenfreno de los bares gays, pasando por los cuartos oscuros, las saunas, los parques, hasta la corrupción de menores en prostíbulos gays. Sin embargo se minimiza la atención prestada a las discotecas como lugares de encuentro sexual heterosexual, a las orgías planificadas por los hombres en ‘pisitos de solteros’, el aumento de los prostíbulos repletos de mujeres menores de edad… Se estigmatiza el hedonismo, la promiscuidad, la exaltación de la juventud, el consumismo de los lugares concretos de ambiente gay, cuando esas mismas prácticas en los lugares difusos de marcha heterosexual son igualmente comunes, y en muchas ocasiones, signo de prestigio para los hombres heterosexuales. (MORENO; PICHARDO, 2006, p.152).

44

Frase do jogo “Portal”, desenvolvido pela empresa Valve e lançado em 2007. Esta frase se popularizou no circuito de nerds, geeks e outros interessados por videogames. Neste game, o jogador é uma cobaia que precisa realizar diversos testes propostos por uma inteligência artificial, tendo um bolo como recompensa prometida. Durante o jogo, o personagem encontra paredes onde outras cobaias escreveram “The cake is a lie” (“O bolo é uma mentira”). Assim, a recompensa prometida pode ser apenas um estímulo falso para forçar um comportamento normatizado. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2011.

A visibilidade da homossexualidade, o enfrentamento do estigma de ‘promiscuidade’ ou transgressão, a necessidade de se provar como um sujeito ‘de bem’, a culpabilização e individualização das agressões; gestão das ilegalidades para manutenção do sistema. Transformação dos corpos, modelação das subjetividades. O medo é uma estratégia potente. Naquela noite, em São Paulo, o pequeno grupo de homens passa ao lado do cartógrafo, sem dar-lhe a menor atenção. Seria exato dizer que esta forma de ‘proteção’, ao alterar sua performance, evitou uma violência física? Talvez seja confortável pensar assim; mas seria ignorar o fato de que, ‘agindo como um viado’, o cartógrafo poderia pelo menos ganhar uma ‘cantada’ naquela noite. O prazer da construção de performances singulares perdeu lugar para o medo. 4.2 – Medo, delinquência e a construção do homofóbico O que produzia a sensação de insegurança nos dois tempos dessa história45? Talvez a ausência de um agente de Estado, fazendo vigilância e proteção, para manutenção da Ordem. Quem garantiria o cumprimento das leis e a proteção dos indivíduos? Afinal, a lâmpada não se moveu sozinha na estação Brigadeiro; na verdade, ela estabeleceu relações entre dois corpos transgressores. Um primeiro desobedecia leis penais para atingir um segundo, violador das normas sexuais. De acordo com um jornal de grande circulação46, os agressores de Quatorze de Novembro eram jovens de famílias de classe média e não se enquadravam como skinheads (hipótese levantada por meios de comunicação logo após o ocorrido). Alguns destes jovens estudavam em um colégio particular próximo ao local da agressão – ou seja, habitantes do território. A mãe de um deles não entendia como isso pôde acontecer, nem acreditava na versão das vítimas – afirmava que houve alguma provocação. Seria este um novo perfil de agressor, diferente do ‘tradicional’ skinhead, que precisaria ser vigiado e contido? O diagrama de poder disciplinar concentra-se na fabricação delimitada de corpos que não surpreendam e, assim, não cometam transgressões. Esta estratégia se vale de algumas tecnologias

específicas,

como

a

vigilância

constante,

a

organização

de

corpos

individualizados e serializados, o controle minucioso do tempo e do espaço (FOUCAULT, 1987). Foucault aponta que, embora a prisão seja uma organização exemplar do

45

Batista (2003) estuda dois tempos separados por mais de um século; sua análise inspirou alguns destes mapas. Disponível em: . Acesso em: 04 out. 2011. 46

funcionamento deste diagrama, ela também potencializa a operação do poder disciplinar de forma difusa em toda sociedade. O desejo de que um agente do Estado regule o funcionamento do espaço e do tempo no entorno da Avenida Paulista, garantindo que lâmpadas ocupem seus lugares e corpos exerçam as funções devidas é o pedido pela garantia da disciplina. Conforme indicam Bacca, Pey e Sá (2004), o desejo e a compreensão da disciplina como forma ideal de exercício da vida humana (inclusive da sua própria vida) é um ‘enforço’ do poder disciplinar: este diagrama torna-se um dado a priori da existência, naturalizado nos processos de subjetivação. Ainda que a disciplina se espraie por todo o corpo social, seus exercícios são marcados pelas relações de poder. A cadeia, por exemplo, é um espaço reservado apenas a alguns, pois a definição do que é crime e os mecanismos jurídicos para sua punição são diferentes em cada sociedade – são estratégias que produzem desigualdade. Por conta de nossa organização histórica e atendendo a um modo internacional de funcionamento social, os eleitos para a prisão são majoritariamente homens negros, pobres, moradores de favelas e/ou periferias, com baixa escolaridade (DORNELLES, 1988; RAUTER, 2003)47. No caso da rua escura e do medo, o agente da lei poderia servir para evitar uma transgressão penal, encaminhando alguns indivíduos para uma instituição de sequestro – a cadeia – ao mesmo tempo em que permite um controle a céu aberto das legalidades/ilegalidades. Ora, a intervenção nos corpos só se dá com sua categorização. Reprimir a agressão homofóbica implica, necessariamente, na identificação do sujeito homofóbico que circula pelo mesmo território que os homossexuais, suas vítimas. Há características que permitiriam identificar o possível agressor, de acordo com estudos que “conseguiram demonstrar que alguns fatores – tais como idade, sexo, nível de estudos, meio social, além de filiação religiosa ou política – constituem variação do problema [de hostilidade com os homossexuais]” (BORRILLO, 2010, p.97-98). Essas características apontam quais grupos são mais propensos à produção de violência homofóbica. Mas o fator determinante para este acontecimento seria a personalidade individual, já que a homofobia “é apenas a manifestação do ódio [...] da parte homossexual de si que o indivíduo teria vontade de eliminar. A homofobia seria uma disfunção psicológica, resultado de uma projeção inconsciente” (BORRILLO, 2010, p.97, grifo nosso). Junqueira (2007) aponta que é muito 47

“Esta nova ordem prevê a magnificação do sistema penal e o conseqüente aumento vertiginoso das taxas de encarceramento, bem como da indústria carcerária (polícia, tribunais, advogados, fornecedores de equipamentos prisionais). [...] Se nos últimos 25 anos aumenta constantemente a população de encarcerados e a infra-estrutura prisional, aumenta também o número de trabalhadores sem emprego, excluídos do consumo e conseqüentemente da vida social. Paira no ar uma sensação difusa de insegurança. (BATISTA, 2003, p.82, grifo nosso).

recorrente uma interpretação clínca e medicalizante da homofobia, associando emoções individuais negativas de contra a homossexualidade a uma psicopatologia. Em entrevista para uma revista dedicada exclusivamente à sexualidade e erotismo, um psicanalista afirma: A homofobia responde a uma necessidade de reprimir uma parte da sexualidade, mas não significa necessariamente que essa pessoa seja homossexual. É alguém que está reagindo neuroticamente a traços de homossexualidade que estão em cada um. (HAMA, 2011, p.83).

A ciência consegue mapear os desejos mais ocultos que movem corpos; os saberes transformam suas características em confissão, pois, com o dispositivo da sexualidade, “o novo foco do interrogatório é o próprio corpo do penitente, seus gestos, sentidos, prazeres, pensamentos e desejos” (CANDIOTTO, 2010, p.82). Assim, a Avenida Paulista tornar-se-ia uma via de acesso aos conflitos inconscientes e à verdade do indivíduo. Estas descrições lembram outra, feita por uma psicanalista que explica questões sobre homossexualidade na televisão. Conforme conta Baptista: No programa juvenil, [...] aprendemos a compreender uma frágil e carente existência, vítima de uma trágica fatalidade narrada em uma historinha grega. O jovem de classe média poderá agora alterar seu olhar sobre esse estranho personagem, fadado a viver na falta, no passado e na tragédia grega. (BAPTISTA, 1999, p.47-48).

Entretanto, esta história refere-se à homossexualidade enquanto uma parada no desenvolvimento psicossexual. Como aponta Foucault (1984a), a premissa de uma direção pré-delineada para a libido, com etapas e suas possíveis falhas, constrói um potencial virtual de morbidade sempre presente – o estacionamento ou não fechamento de algum ciclo de forma adequada. Um mesmo jogo, com mudanças de cenário. A homossexualidade precisa ser reconhecida enquanto modo legítimo e ‘normal’ de existência, mas é necessária a delimitação de um outro corpo transgressor, o homofóbico. De acordo com De La Espriella Guerrero, a homofobia é uma construção social tal qual a homossexualidade, mas aquela, diferente desta, demanda uma intervenção psiquiátrica individual no seu enfrentamento: “La homofobia debe ser considerada um transtorno mental. La homofobia requiere tratamiento” (DE LA ESPRIELLA GUERRERO, 2007, p.727). A delimitação de um sujeito homofóbico, seja por uma ‘natureza’ ou por construção social reafirma a homossexualidade como categoria dada em nossa cultura. Um ajuste na mesma estratégia de regulação do dispositivo da sexualidade:

[...] seja para considerar a sexualidade como originariamente ‘natural’, seja para considerá-la como socialmente construída, esses discursos não escapam da referência à heterossexualidade como norma. [...] A afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como diferença” (LOURO, 2004, p.45, grifo nosso).

Além disso, Sedgwick entende que a homofobia produz novas normatizações sobre a construção do homem heterossexual masculinizado. Quando a homofobia é indicada como uma ‘insegurança’ do próprio sujeito, isto “complementa a ilusão implausível e necessária de que poderia existir uma versão segura da masculinidade [...] e um modo estável e inteligível de que os homens se sintam em relação a outros homens no moderno patriarcado heterossexual capitalista” (SEDGWICK, 2007, p.44). Ora, a homossexualidade e a homofobia são construções que hoje estão instituídas e, portanto, precisam ser interrogadas. A criação de categorias psicológicas ou psiquiátricas serve para a naturalização do corpo-homofóbico, com efeitos estratégicos de poder. De tantas possibilidades de enfrentamento à homofobia, esta se torna a mais óbvia e estabelecida. Instituída como verdade, estabelece uma ordem o que, para Candiotto (2010), desloca quaisquer outros discursos para o território da ilusão e do erro. Isso significa que é instrumentalizada pelos diagramas de poder, operando em seu ‘enforço’. A homofobia produz medo porque é imprevisível. Pode acontecer a qualquer hora, em qualquer lugar, com qualquer pessoa; não é possível identificar previamente quem será o 'homofóbico'. Nas palavras de Minayo (2006, p.37): “A violência incomoda, [...] porque ninguém escapa do seu raio de influência”. Há apenas a suspeita, e a produção de uma insegurança constante. Quando Foucault (1987) fala sobre as prisões, aponta que, apesar do aparente fracasso desta instituição, há um sucesso sempre presente: o sistema carcerário produz a figura do delinquente, criminoso em potencial. Sempre há mais pessoas perigosas do que presas, o que suscita um endurecimento cada vez maior do sistema de vigilância e punição: mais prisões, redução da maioridade penal, maior proteção nas ruas, restrição da circulação. Nesse sentido, o corpo-homofóbico materializa um inimigo não muito claro, em parte fantasioso, que precisa ser enfrentado. Tanto Bauman quanto Wacquant falam das funções desempenhadas pelos crimes sexuais, em especial a pedofilia, para “dar uma realidade corpórea que poucos medos possuem: mesmo sem ser visto, ele (o pedófilo) ainda pode ser construído como um objeto sólido, que pode ser manuseado, amassado, trancado, neutralizado, até destruído...” (BATISTA, 2003, p.96).

O medo induz e justifica políticas repressoras para controle social das diferenças e manutenção da ordem instituída; os “clamores advindos do pânico cobram sempre o seu preço no corpo dos oprimidos e transformam-se rapidamente em discursos que matam” (BATISTA, 2003, p.192). Através do medo, a violência movimenta um imenso mercado financeiro; o serviço de segurança privada é um negócio lucrativo para inúmeras pessoas e empresas (MINAYO, 2006). Em um mundo contemporâneo marcado pela insegurança difusa, elege-se um inimigo interno, próximo a nós, passível de ser localizado, enfrentado e destruído pelo Estado (COIMBRA, 2008). Um Estado que, “cada vez mais, amplia sua função policial repressiva, transformando-se em um Estado penal que, em nome da vida, encarcera e deixa morrer todas as expressões de vida consideradas improdutivas e impróprias” (MONTEIRO, COIMBRA, MENDONÇA FILHO, 2008, p.10). O medo torna-se algo individual e problema de polícia, enquanto ignora-se a complexidade das situações que se apresentam no contemporâneo. Ou seja, o medo da homofobia agencia outros genocídios. O medo funciona como uma tecnologia política, que movimenta uma economia desejada; o medo produz um grande controle com um mínimo de esforço. Parece não haver alternativa na administração do medo privatizado que leve às suas causas reais, que são difusas e globalizadas. [...] A transferência das inseguranças globais para o campo da segurança privada tem a vantagem de tornar as ameaças à segurança em seres palpáveis, corporificados. [...] só restam os discursos de lei e ordem contra os sinais visíveis do caos e da desordem: camelôs, flanelinhas, prostitutas, corruptos, drogados, pedófilos etc. [...] Interessa à classe política desviar a atenção das causas mais profundas da incerteza. Estas classes políticas pouco podem fazer contra elas. (BATISTA, 2003, p.97-99).

Estranhamos que a homossexualidade seja um critério para produção de agressões como aquela do dia Quatorze de Novembro. Entretanto, não é a única coisa curiosa naquele caso. A área entre a Rua Frei Caneca e a Rua Augusta é um espaço de sociabilidade homossexual; deste modo, entende-se que nesse território essas pessoas estariam seguras. Só há demarcação de um território como seguro porque os outros territórios são dados como perigosos. O perigo que ronda este espaço é a reafirmação dos homossexuais como corpos transgressores das normas instituídas sobre sexualidade: [...] homofobia e zonas perigosas são denominações utilizadas para designar atitudes e áreas da cidade. Na mídia, assim como nos textos acadêmicos, a psicopatologia da alma humana e a topografia urbana explicariam a origem das mazelas da atualidade. Em determinadas áreas da urbe e da alma estariam alojadas as razões da violência. Em certos corpos, psiquismos ou cantos da cidade, impermeabilizados por suas

individualidades, residiria o mal passível de cuidado ou extirpação. (BAPTISTA, 2010, s.p.).

Então, a violência que se afirma originada no corpo-homofóbico precisa, tal qual o dispositivo da sexualidade, ser localizada historicamente e mergulhada em sua dimensão política, posto que são condições de possibilidade para os acontecimentos. Foucault (1984a) lembra-nos que a eleição de algumas manifestações como morbidades psíquicas se dá pela construção daquela própria cultura. Além disso, a interpretação de fenômenos precisa ser feita no próprio presente, pois é sempre neste que os acontecimentos se produzem. Se há corpos que produzem violências consideradas como homofóbicas, a resposta (e a desejada solução) sobre este acontecimento não está circunscrita em um indivíduo. Está em jogo o dispositivo da sexualidade e, mais especificamente, a heteronormatividade do presente, que produz a categoria homossexual, seus processos de criminalização e a identificação dos ‘algozes’. A homofobia é, portanto, fundamental para a sustentação do dispositivo da sexualidade e das estratégias de biopoder. A violência compõe processos de produção de subjetividade que produzem o espaço urbano de determinadas formas. Conforme aponta Batista (2003, p.204), “os discursos do medo têm conseqüências estéticas, criam monumentos, transformam a cidade”. A Avenida Paulista torna-se um museu da violência homofóbica ao céu aberto, enquanto as notícias da mídia são guias turísticos, pretensamente neutros e desinteressados que apenas retratam o que está ali. Cumprindo seu papel, reafirmam o funcionamento dos diagramas de poder. Neste diagrama, a lâmpada é um instrumento de suplício, marcando a fundo a carne do jovem homossexual. O suplício, como aponta Foucault (1987), é uma tecnologia de punição com ápice nos regimes de Poder Soberano. Nesta organização do poder de punir, toda transgressão às leis é descumprimento da palavra do Rei e, consequentemente, uma afronta ao seu corpo, símbolo de sua regência. O suplício atua como uma vingança, em que o ‘superpoder’ do Rei se manifesta em todo seu esplendor. Por ordem do Rei, o corpo do supliciado é marcado; ele é um inimigo vencido, eliminado, massacrado, servindo de exemplo a todos que o Rei seria a ‘origem’ do poder, e que a ordem continuaria estabelecida. Desta maneira, os corpos-agressores não atuaram na Avenida Paulista por simples capricho; se assim fosse, tais situações de violência não se repetiriam cotidianamente, naquele território e em muitos outros. A homofobia acontece em nome de um Rei. Talvez não mais o monarca que reinava o Estado, mas o ‘sexo-Rei’ (FOUCAULT, 1979c), tomado como fundador e regente da experiência humana no dispositivo da sexualidade. Sexo este que regula

as existências, de forma inquestionável, mas muito mais sutil. Se há um suplício na homofobia, somente acontece porque é estrategicamente útil. Um reinado extremamente dissimulado, presente à luz do dia nos monumentos e nas frestas, na produção dos corpos e das relações. O sexo-Rei, naturalizado nos corposindivíduos, reina de forma submissa ao biopoder, em um diagrama de poder que não precisa de muros para captura: a sociedade de controle (DELEUZE, 1992). Um reinado sombrio que modula as subjetividades, inclusive a construção das relações. Na noite em que o cartógrafo andava pela Avenida Paulista, não havia nenhuma lâmpada solta no chão da Rua Augusta ou na mão de qualquer pessoa. Ainda assim, ela era o símbolo do medo; de um poder soberano que poderia se exercer pela transgressão das regras de um sexo-Rei caprichoso e arbitrário, naturalizado e asséptico, aparentemente senhor, no entanto súdito de um complexo dispositivo. O pedido de proteção e vigilância do Estado, em um espaço público considerado perigoso, é um modo sutil (porque naturalizado) de operação do biopoder. Se o acontecimento de Quatorze de Novembro em São Paulo ganhou imensa repercussão na mídia, não é por sua agressividade ou excentricidade. Esta difusão de informação funciona como estratégia de gestão da vida, ao fazer viver de determinadas formas e permitir outras agressões e mortes que ocorrem segundo o mesmo critério – a homossexualidade – sem ganharem as manchetes de jornais. Território de classes com maior poder aquisitivo e capital cultural e cartão postal da cidade de São Paulo, a Avenida Paulista assiste indiferente às remoções de favelas, aos assassinatos por ação/omissão de agentes do Estado, às agressões cotidianas nas periferias. A cada lugar, cabe a sua ordem, e o que escapa produz medo. Na Avenida Paulista, o medo está misturado com indignação: local da maior Parada do Orgulho LGBT do Brasil, ponto de concentração de estabelecimentos comerciais direcionados para esta população. A Avenida Paulista deveria ser um território protegido, já que nenhum outro o é. A indignação aparece na divulgação dos jornais. Mas Batista (2003, p.119) afirma que o medo se difunde na mídia por questões estratégicas, produzindo um “olhar cotidiano indiferente à miséria e às torturas e mortes violentas dos pobres [...] [, que] precisa de um discurso que explique e naturalize o macabro espetáculo global”. A visibilidade dos corpos-homofóbicos aumenta o medo, posto que não é possível controlá-los nem eliminálos – uma situação aparentemente sem saída e, por isso, emergencial e angustiante. A urgência do medo de uma sociedade retira da pauta e esvazia politicamente outros debates. Os processos de privatização da saúde pública, a inquirição de crianças e

adolescentes, a remoção de favelas para distantes periferias, a precariedade do transporte público, as terríveis condições do sistema carcerário... Como se estas e tantas outras violências/violações, por serem consideradas comuns, pudessem esperar diante da Avenida Paulista. Nossa história nos aponta não para o fim desses atos, mas para a reedição e aperfeiçoamento dessas mórbidas estratégias. [...] as ruas de São Paulo, as praias do Rio de Janeiro, são espaços que estilhaçam os espelhos de uma burguesia que se deseja ver asséptica, segura e feliz. São espaços que estilhaçam uma ética que se diz universal, mas que necessita da ação da polícia e das grades dos condomínios fechados para o seu bom funcionamento. (BAPTISTA, 1999, p.47).

Desde Quatorze de Novembro de 2010 até o fim desta pesquisa ocorreram diversas agressões similares na região da Avenida Paulista48. Não são notícias inventadas, nem irrelevantes. São marcas em corpos transgressores à normativa heterossexual, que mutilam existências e reforçam os medos e os ‘armários’. A fim de “romper o silêncio, desnaturalizar o extermínio dos pobres, desbanalizar o olhar dos nossos tempos, temos que recorrer à memória, à história de nossa cidade” (BATISTA, 2003, p.120). Falar sobre nossa história de forma crítica, entendendo seus efeitos políticos. Demos visibilidade a estas violências para pensarmos que seu enfrentamento precisa escapar a um dispositivo de regulação das vidas a partir do sexo. Louro (2004) e Butler (2010) nos lembram que romper com a organização estabelecida em nossa cultura significa colocar em análise as categorias de gênero e sexualidade, mas não só estas. Há outras igualmente importantes, tais como: classe social, raça, etnia, nacionalidade, regionalidade, local de moradia, religião, geração. Miskolci (2007) complementa que as normalizações operam interseccionalmente, formando conjuntamente identidades hegemônicas e marginais através de vários marcadores de diferença/desigualdade. Enfrentar a homofobia porque ela atinge espaços reservados para homens homossexuais com maior poder aquisitivo é reafirmar que estes podem aceder ao direito de ir e vir, mas somente ‘estes’. Já para inúmeros outros homossexuais, transgressores à homonormatividade, que sigam morrendo por conta da violência, da precariedade do sistema público de garantia de direitos, da omissão de mulheres e homens extremamente assustados com seus amigos homossexuais em perigo, com seus filhos homofóbicos, rebeldes e agressivos:

48

Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 11.

Fala-se em justiça social, no oprimido, mas nossas práticas cada vez mais compactuam com as violências simbólicas e concretas. Compactua-se através do silêncio, através de atos de amor ao próximo, um próximo sem rosto, sem cheiro, sem sexo, sem cor ou país. Um amor ao invisível e ao espelho. Um narcísico e cínico ato de amor. (BAPTISTA, 2000, s.p.)

Mais do que indivíduos considerados transgressores, grupos inteiros são chacinados; ora pela eliminação dos corpos pulsantes, ora pelo genocídio do silêncio e da invisibilidade. Atualmente, o critério para demarcação de anormalidade é menos o corpo transgressor e mais “o grupo social ao qual esse corpo está indissoluvelmente ligado” (VEIGA NETO, 2001, p. 107). Os corpos transgressores agredidos são vistos (de forma focal e pontual), mas o mesmo não pode ser dito das populações eliminadas. O medo é estratégico na manutenção deste sistema, pois o “olhar cotidiano indiferente à miséria e às torturas e mortes violentas dos pobres [...] precisa de um discurso que explique e naturalize o macabro espetáculo global. É por isso que esses discursos do medo se difundem pelas telas, pelas bancas” (BATISTA, 2003, p.119). Um estado democrático dos direitos de alguns. A cartografia de março trouxe importantes pistas para a problematização da homofobia, mas para pensar em outras possibilidades no seu enfrentamento, será necessário seguir para o mapa de uma nova viagem. 4.3 – “É hora da Virada”: o retorno a São Paulo As situações de agressão homofóbica se repetem na mídia, especialmente na Avenida Paulista. A indignação ultrapassa o movimento LGBT: há uma mudança no regime de visibilidade. Bauman (2010) usa a ideia de ‘histórias de camponês’ para se referir àqueles contos do cotidiano, que passam desapercebidos, e ‘histórias de pescador’ sobre lugares longínquos, com figuras míticas e contos fantásticos. O autor usa situações que parecem distantes para dar visibilidade às produções de nossa sociedade. Neste sentido, talvez o deslocamento da homofobia seja um pouco diferente: do cotidiano não-visível e ignorado, ganha com tom de horror e indignação as manchetes da imprensa, notícias nos telejornais de horário nobre e mesmo as pequenas conversas entre amigos. Na internet, um pequeno texto anônimo se espalha: “A homossexualidade foi encontrada em mais de 450 espécies. A homofobia só em uma. Qual é a antinatural? Coloque isso no seu mural se você é contra a homofobia!”49. Uma política de enfrentamento da 49

Texto largamente disseminado na rede social Facebook em abril de 2011, como uma ‘corrente’. Muitos amigos publicaram e comentaram este texto em seus próprios murais de mensagens. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2011.

homofobia calcada na dicotomia natural-antinatural. A sexualidade é natural, orgânica, fenômeno comum a diferentes espécies e, portanto, deve ser respeitada. A homofobia, por sua vez, é antinatural – uma função errônea do corpo. Frente à urgência das agressões, uma estratégia igualmente emergencial e supostamente indiscutível. A violência é naturalizada como algo dado, que ocorre independente de um presente que a produz. Em 15 de abril de 2011, o cartógrafo retorna a São Paulo, angustiado com a ausência de outras estratégias possíveis para o enfrentamento à homofobia. Ainda que a viagem seja de lazer, a experiência na Avenida Paulista um mês antes produziu reflexões. Além disso, está hospedado muito próximo ao bar do relato anterior. Na balada de sexta-feira, as músicas da cantora pop americana Lady GaGa fazem sucesso, seja no Rio ou em São Paulo. A artista afirma sua militância em defesa dos direitos LGBT com manifestações públicas, clips e músicas. Nas festas de abril de 2011, seu novo sucesso – “Born this way” – é cantado como um hino no enfrentamento à homofobia: “No matter gay, straight or bi Lesbian, transgendered life I’m on the right track, baby I was born to survive [...] I’m beautiful in my way ‘Cause God makes no mistakes I’m on the right track, baby I was born this way”50

Na Avenida Paulista, vemos a produção de uma homossexualidade já dada, nascida desta maneira: processos de subjetivação em que o dispositivo da sexualidade se reafirma. Nas Paradas do Orgulho LGBT que acontecem na região, a principal bandeira é a ‘criminalização da homofobia’51; ou seja, a tipificação destas agressões como um crime específico52. Segundo o presidente do Grupo Gay da Bahia, “É preciso que a homofobia seja punida severamente pela polícia e pela Justiça” (TODOS..., 2011, s.p).

50

“Não importa se você é gay, ‘hétero’ ou ‘bi’ / Lésbica ou transexual / Eu estou no caminho certo / Nasci para sobreviver [...] Eu sou linda do meu jeito / Porque Deus não comete erros / Eu estou no caminho certo, baby / Eu nasci desse jeito”. Tradução livre, adaptada da internet. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2011. 51 A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, tem a homofobia como principal bandeira desde 2006 – mesmo ano de criação do PLC 122. Cf , , . Acesso em: 15 fev. 2012. 52 Durante o desenvolvimento desta pesquisa, tramitava o Projeto de Lei da Câmara Federal nº 122 de 2006, que ‘criminaliza a homofobia’, propondo a equiparação da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ao racismo.

Punir o agressor: encarceramento (exclusão do espaço público, dos encontros), tanto para que ele aprenda a não repetir estes comportamentos quanto para servir de exemplo àqueles que quiserem cometer a mesma transgressão. Delimitação de um ‘inimigo’ passível de localização, porém produção de medo da figura do delinquente. Definição clara do que é, de fato, homofobia. Não só a criminalização se estabelece como política de enfrentamento da homofobia, produzindo ‘enforço’ do dispositivo da sexualidade e das estratégias de biopoder, como ganha um estatuto de verdade que não pode ser debatido. Ser contrário à criminalização da homofobia significa estar ‘contra’, logo, ser um dos inimigos – os 'homofóbicos'53. O medo ganha estatuto de verdade relegando, portanto, outros discursos à sombra (CANDIOTTO, 2010); e o medo é, por si só, o ‘discurso que cala’ (BACCA; PEY; SÁ, 2004). O medo com estatuto de verdade é um discurso totalitário, que não aceita discussões nem questionamentos. Prática de controle, de esvaziamento político e eliminação das diferenças. O medo como verdade é uma política genocida da multiplicidade: A fragmentação e a dispersão do desamparo fazem com que o espaço público seja construído sobre o discurso do medo. A solução é encontrar um inimigo comum e ‘unir forças num ato de atrocidade comunitária’. O que não pode constar no script é alguma pessoa que não queira ‘participar do clamor público e cuja recusa lance dúvidas sobre a correção e justeza do ato’. (BATISTA, 2003, p.97)

Atravessado pelo medo e pelos movimentos sociais, o cartógrafo insiste em perguntar: que outras saída são possíveis? Kastrup (2007) propõe que, para dar conta da complexidade da modernidade, é preciso considerar a construção das perguntas que fazemos e das verdades que estabelecemos, que por vezes nos conduzem a becos sem saída. Neste sentido, a autora aponta a diferença como possibilidade de construção de novos modos de existência que rompam com o que já instituido. Não significa que a resposta está em toda e qualquer novidade; o contemporâneo nos exige um consumo cada vez maior de escolhas préfabricadas. O que está em jogo é “fazer algo de novo com a informação, criar para ela novos sentidos que concorram para a transformação da cartografia coletiva, é criar, nesse esforço, novas formas de subjetividade” (KASTRUP, 2007, p.226): Modos inéditos de subjetivação que são efeitos dos encontros e afetações e interessam naquilo que podem inventar rupturas do instituído. Não qualquer rupturas, mas aquelas em que acreditamos e investimos nosso sangue.. 53

Pelo posicionamento contrário ao PLC 122/2006, o cartógrafo foi chamado de ‘homofóbico’ três vezes no ano de 2008.

É no encontro do que está instituído com a diferença que surge a novidade, pois “a invenção de novas formas é sempre resultado da tensão entre as formas antigas e as afecções que ocorrem no plano molecular dos agenciamentos” (KASTRUP, 2007, p.217). Tomar a diferença não como medo da capacidade de comprometer a ordem instituída (BATISTA, 2003), mas justamente por causa dessa capacidade de inventar. Kastrup (2007) ainda afirma que não é necessário um agente externo ao coletivo para trazer novidade, mas o próprio sistema (grupo, instituição, organismo etc.) tem elementos que podem lhe afetar, perturbar e, assim, lhe pôr problemas. A invenção de novos problemas sobre a homofobia tomou forma na noite de 16 de abril de 2011, quando da realização da 7ª edição da Virada Cultural de São Paulo54. Um grande evento, que transforma a rotina do Centro da cidade, território de concentração de grande parte das atividades. Os pontos, os caminhos, os trajetos, os meios de transporte, a circulação de pessoas, tudo está modificado. O Centro está ocupado, e seu mapa é transformado, conforme indica a imagem que se segue:

54

Evento anual, com 24 horas de duração, organizado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Durante este período, acontecem mais de 1000 atividades culturais gratuitas, com diferentes linguagens artísticas em diversos pontos da cidade. O evento demanda colaboração de diversos outros órgãos públicos de segurança, transporte e comunicação para sua efetiva realização. Cf. . Acesso em: 01 dez. 2011.

Figura 3 – Visualização de mapa da empresa Google marcado com locais de atividades da Virada Cultural 2011. Disponível em: . Acesso em: 01 dez. 2011.

O Centro da cidade é considerado um território perigoso para circulação na madrugada. Na noite da Virada, quando o cartógrafo por lá circulava, foi uma experiência diferente. Além de muitos palcos, uma quantidade imensa de pessoas circulando por estes espaços, ocupando as ruas interditadas, dançando, cantando, fazendo barulho. Diversos estabelecimentos comerciais permanecem abertos, enquanto vendedores instalam barracas e transformam aquela noite em um momento privilegiado de trabalho. O metrô funciona durante toda a madrugada, com intervenções artísticas inesperadas. Linhas de ônibus especiais circulam pelo evento. No show que marca a abertura da Virada, ao entardecer do dia 16, em um palco montado ao lado da estação de trem Júlio Prestes, a cantora Rita Lee xinga o descaso de autoridades públicas – inclusive promotoras do evento – com a cidade de São Paulo. Aplausos efusivos emergem de uma platéia que não é homogênea nem disciplinada, mas sim composta por movimentos, fluxos, afetos, intensidades. Logo após o show, há uma grande dispersão. O público se dirige para as muitas outras atividades que acontecem concomitantemente. Algumas pessoas distribuem materiais de politização. Um adesivo chama a atenção do cartógrafo.

Figura 4 – Adesivo de “Movimentos contra a Homofobia” para a 7ª Virada Cultural de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 01 dez. 2011.

O adesivo era um dispositivo de enfrentamento à homofobia. Poderia ser analisado como mais um de muitos materiais produzidos para distribuição naquele evento. Mas produziu uma ruptura no cartógrafo. Diferente dos materiais amplamente divulgados em eventos e espaços de sociabilidade LGBT, o adesivo não traz logomarcas nem de órgãos públicos, nem explicita o nome de movimentos sociais instituídos. Aliás, não traz referência nenhuma, apenas um nome e um correio eletrônico. Uma imagem simples: o arco-íris tingindo a cidade de São Paulo, ou qualquer outra metrópole. Marcado por essa imagem, o cartógrafo segue pela noite de São Paulo. Avenida Duque de Caxias, Avenida Rio Branco. Alguma coisa acontece na Avenida Ipiranga com Avenida São João. Largo do Paissandu, Largo de São Bento, até o Vale do Anhangabaú. Em todo esse percurso, multidões seguindo para todos os lados. Muitas vozes, muitos sons. Acrobatas fazem peripécias aéreas, DJs fazem a festa em frente à Galeria do Rock, uma banda toca músicas dos ‘Beatles’ durante vinte e quatro horas, e seu público lota toda a rua. Prédios históricos iluminados, com cores diferentes. A cidade vista de noite, com suas sombras e mistérios. Espaços considerados perigosos e vazios, cheios de pessoas; mas a sensação de segurança era menos pelas poucas patrulhas policiais cobrindo um grande perímetro, e mais porque havia uma ocupação de múltiplos corpos, cores, estilos, estéticas, gostos, cheiros, movimentos. Algumas pessoas usavam o adesivo com o arco-íris dos ‘Movimentos contra a Homofobia’ (que não são os já instituídos e às vezes não muito conhecidos ‘movimentos-contra-a-homofobia’). Certamente, a Virada Cultural está implicada com interesses político-econômicos. Tal qual um dispositivo, é engendrada por diferentes linhas produtivas, produzindo efeitos arquitetônicos, regulamentares, subjetivos... Entretanto, interessa pensar que todo dispositivo produz também linhas de ruptura e de fuga. A ocupação da população reconstruiu a geografia de um bairro, ainda que por vinte e quatro horas. E talvez por mais, se pensar no corpo do cartógrafo que saiu afetado pela experiência. Luzes, estéticas e músicas remetem a outra situação. Um arco-íris ocupa a Avenida Paulista todo ano, no feriado de ‘Corpus Christi’. A Parada do Orgulho LGBT de São Paulo produz imensa visibilidade às principais bandeiras dos movimentos pela diversidade sexual e de gênero. O território, ao mesmo tempo, é reinventado, possibilitando experimentações de homossexualidades

que

não

sejam

necessariamente

produzidas

no

silêncio

da

heteronormatividade. Conforme aponta Teixeira Filho (2011), as manifestações afetivas na Parada LGBT afirmam o direito a existir à luz do dia: “Se nessa parada há pessoas transando

nas ruas, não é senão para sinalizar onde é que reside a nossa opressão” (TEIXEIRA FILHO, 2011, p.63). Por outro lado, as agressões na região da Avenida Paulista apontam a insuficiência dessa ação no enfrentamento à homofobia. Facchini (2011) aponta que, além da visibilidade massiva, outra principal estratégia de intervenção do movimento LGBT brasileiro nas últimas duas décadas é a ‘incidência política’ em órgãos centrais de governo, para indução de políticas públicas específicas. Essa atuação produziu um movimento LGBT submisso ao financiamento de projetos e ONGs, refém da agenda de partidos políticos de esquerda que hoje ocupam a gestão pública. As políticas públicas são construídas de forma centralizada, a partir de lideranças que não necessariamente representam as demandas diversificadas da população LGBT (TREVISAN, 2010). A distribuição de material dos ‘Movimentos contra a Homofobia’ durante a Virada Cultural rompeu com esta forma instituída de militância LGBT. Não foi nem uma ocupação massiva em um território delimitado, nem uma atuação em níveis centrais de gestão. Na imagem utilizada para intervenção, a homofobia não tem um rosto, seja da vítima, seja do agressor. A rua, por sua vez, não recebe a marca de ‘território perigoso’. Entretanto, a figura da cidade remete a toda uma população vivendo, circulando, pulsando. A homofobia não é um espetáculo a ser exibido e explorado. Ao invés do enfrentamento pela via jurídica, uma batalha estética, da produção de uma cidade diferente. O arco-íris tinge a cidade,vindo do alto, ou a cidade que arremessa suas cores para cima? Onde é início e final? Talvez estas categorias não caibam, pois este não é um modelo arborescente. São fluxos que se comunicam, se transformam, sem direção definida ou hierarquia estabelecida. A Virada Cultural opera como um rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 1995). O evento ocupava o Centro de São Paulo, e os ‘Movimentos contra a Homofobia’, à sua maneira, ocupavam a Virada. Ainda que um adesivo não seja o bastante para ‘evitar’ a homofobia, isso nos ajuda a olhar os acontecimentos de outra forma e construir novas possibilidades. O medo é deslocado, reinventado e, quiçá, desnaturalizado. 4.4 – Corpos, prazeres, relações e amizades: pistas de um mundo diverso A constituição da homossexualidade enquanto um complexo dispositivo passa pela naturalização dos corpos como entidades puramente orgânicas, individuais, dotadas de uma ‘verdade’. Enquanto uma identidade, a homossexualidade tem diversos serviços. Primeiramente, podemos destacar a marcação de corpos ‘transgressores’ para normatização e

consequente eliminação destes modos de existência: “A produção de subjetividades identitárias atua na construção da sexualidade como um vetor que atravessa e constitui essas vulnerabilizações”. (CASSAL; GARCIA; BICALHO, 2011, p.471). A identidade homossexual cumpre ainda o papel de tirar de cena o entrecruzamento de marcadores de opressão (PRECIADO apud CARILLO, 2007), como acontece com a discussão da homofobia que ganha força enquanto problema individualizado, deixando de lado tantas outras violações. O debate pode tornar-se fragmentado: Del mismo modo, los programas institucionales de lucha contra la llamada “violencia de género” contribuyen a una naturalización de la relación entre violencia y masculinidad, enmascarando la violencia propia a la estructuras conyugales y familiares (que son además reforzadas por las demandas de matrimonio gay). (PRECIADO apud CARILLO, 2007, p.377).

Além disso, os processos de criminalização das manifestações não-heteronormativas se articulam em argumentos valorativos, onde estas experimentações dos corpos e prazeres são negativas, ruins, maléficas, prejudiciais. Donde se constrói uma ‘verdade’ que legitima as eliminações da homossexualidade, seja dos corpos e/ou dos modos de existência (BAPTISTA, 1999). Tendo a homossexualidade como dispositivo, a heteronormatividade se afirma enquanto natural. Abrir mão desta suposta ‘verdade’ da qual somos constantemente lembrados, desse imaginário de ‘naturalidade’ é um desafio político cotidiano. A homofobia serve aqui como analisador para pensarmos as relações que estabelecemos com nossas performances. Centrar o debate no ‘combate’ e na oposição à homofobia é manter a mesma lógica que produz e captura sujeitos no lugar de ‘vítimas’. Precisamos romper com a lógica dicotômica e individualizante que opera. Importa aqui trazer uma dimensão política e coletiva ao debate, para apontar outras possibilidades. Não significa ficar ‘fora’ desse sistema de produção; fazemos parte dele, operando em diferentes forças. Todo exercício de poder é também produção de resistências, de outros múltiplos pontos móveis que reorganizam as localizações táticas das relações instituídas: [...] onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. (FOUCAULT, 1988, p.105-106).

As relações de poder podem se instituir, parecendo estáveis e naturais; ainda assim, são exercícios constantes, permeadas por diversos vetores. Quanto mais pontos de apoio, mais

o poder se estabelece; mas quanto mais pontos de apoio, também mais fricções e possíveis instabilidades. Se o poder se exerce na medida em que há resistências, vamos apostar nelas até rachar este dispositivo e sua forma bem-estruturada de funcionamento. Ou seja, uma organização tão complexa, móvel e eficaz como o dispositivo da sexualidade já produz, por si só, inúmeras resistências. O poder não é uma simples amarra: “Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 1979c, p.241). Mesmo encontrando-se com o medo, o cartógrafo saiu para as ruas de São Paulo. Ele não se sentia um transgressor. Foucault (1985; 1988) aponta uma possibilidade de enfrentamento na construções dos corpos, dos prazeres, das relações que rompem com as normas, subvertendo seus princípios fundamentais sem necessariamente transformar-se em capturas. Foucault (1994b) surpreendese com as relações sadomasoquistas, porque a relação não é entre quem sofre e quem inflige o sofrimento, e sim entre quem tem a autoridade e em quem se exerce: “O que interessa aos adeptos do sadomasoquismo é o fato de que a relação é ao mesmo tempo submissa às regras e aberta. Ela lembra um jogo de xadrez, onde um pode ganhar e o outro perder” (FOUCAULT, 1994b, p.330). A relação parte de uma tensão, de uma não-resposta sobre o final: será possível atender às demandas do papel que se assume? Quais instrumentos e partes do corpo serão necessários? 55 Eu não penso que o movimento das práticas sexuais tenha a ver com colocar em jogo a descoberta de tendências sadomasoquistas profundamente escondidas em nosso inconsciente. Eu penso que o S/M é muito mais que isso, é a criação real de novas possibilidades de prazer, que não se tinha imaginado anteriormente. (FOUCAULT, 1984b, p.3).

Para Foucault (1984b), as relações estabelecidas no sadomasoquismo, por exemplo, são fluídas; mesmo que haja um papel fixo de dominação ou submissão, o jogo funciona como forma de produção de prazeres físicos. A estratégia não objetiva a dominação de um sobre outro, mas a produção de prazeres, onde o corpo está diretamente implicado. Pois bem, e o dispositivo da sexualidade continua operando, produzindo mundos. No presente, a homossexualidade é tomada como critério para práticas de eliminação. Há um embate necessário, que precisa ser feito sem reafirmar a heteronormatividade e a essencialização da homossexualidade. Como traz Veiga Neto (2001), a argumentação a favor 55

Experimentando as fronteiras criadas entre produção dos corpos, dos gêneros e dos prazeres, ver o curtametragem “Sob Plumas e Véus”, com direção de Fernanda Robusti e roteiro de Fernanda Robusti, Luan Cassal e Vanessa Marinho (10min, 2012).

da ‘inclusão’ baseada em um ‘direito a vida’, tomando a vida como natural, não dá conta da construção histórico-social das normas. O corpo, quando entendido como unidade individual com determinações biológicas e essencializantes, permite a delimitação da homossexualidade e da homofobia como fenômenos naturais. Ora, o corpo de que Foucault (1984b, 1994b) nos fala tem outro significado. É um corpo produzido e investido de relações de poder. Um corpo que, ao invés de ser o que torna todos os humanos, indivíduos serializados, é um ponto de resistência para construção de singularidades. Cada vez mais, o corpo é produzido e transformado por diversas tecnologias. Por um lado, temos as programações de gênero (PRECIADO apud PERES, 2011) e as diversas tecnologias de disciplinarização (FOUCAULT, 1985, 1988). Mas também a fabricação de corpos atravessados pelos avanços tecnológicos da informática, da robótica, das comunicações, da genética, da biologia molecular. Haraway (2009) usa a figura do ‘ciborgue’, um ente híbrido entre humano e máquina, para pensar como as identidades que usamos são artifícios fragmentados, enquanto nossos corpos são atravessados por melhoramentos tecnológicos: vacinas, medicamentos, hormônios, próteses, exercícios. Uma imensa variedade de intervenções para produção de corpos que depois vêm reivindicar sua pretensa ‘naturalidade’. Para pensar a imagem do ciborgue, é preciso levar em consideração mais do que as categorias gênero e sexualidade. A produção dos corpos é complexa, atravessada por vetores sociais, econômicos, geográficos. O ciborgue questiona um sistema globalizado de produção, entendendo as corporificações como estratégia de enfrentamento: O gênero ciborguiano é uma possibilidade local que executa uma vingança global. A raça, o gênero e o capital exigem uma teoria ciborguiana do todo e das partes. Não existe nenhum impulso nos ciborgues para a produção de uma teoria total; o que existe é uma experiência íntima sobre fronteiras – sobre sua construção e desconstrução. Existe um sistema de mito, esperando tornar-se uma linguagem política [...] a fim de poder agir de forma potente. (HARAWAY, 2009, p.98).

Não se trata de um retorno a uma suposta ‘pureza’ perdida dos corpos; é a aposta no que os corpos produzem de múltiplo, de diverso e de inesperado. Os corpos são instrumentos políticos para cartografias, posto que “são mapas de poder e identidade. Os ciborgues não constituem exceção a isso. O corpo do ciborgue não é inocente; [...] Ele assume a ironia como natural.” (HARAWAY, 2009, p.96). Os corpos não só fazem parte da paisagem de uma

cidade; estão igualmente investidos com arquiteturas e urbanismos que moldam, definem, aprimoram seu funcionamento. Ora, são ciborgues que ocupavam as ruas de São Paulo na Virada Cultural. Alguns seguiam mapas acessados imediatamente na internet, através de celulares multifuncionais que se tornam quase vitais. Outros faziam acrobacias aéreas no céu noturno, pendurados por um cabo de aço. Técnicos de som e de vídeo acoplavam-se a equipamentos para melhoria de sua acuidade visual e auditiva, ajustando o funcionamento de instrumentos musicais. Uma banda canta sobre relacionamentos na internet. O encontro daqueles sujeitos não se dava por uma identidade, baseada em uma experimentação sexual e associada a uma vivência natural dos corpos. Os corpos não reivindicam para si o estatuto de naturalidade. Talvez entendessem a si próprios como híbridos. O corpo é atravessado por relações e experimentações que produzem prazeres diversos, valendo-se de intervenções tecnológicas. Para Foucault (1984b), as práticas de sadomasoquismo revelam a utilização de situações, partes do corpo e objetos a princípio estranhos para prazeres. Rompe-se com a ideia de que todos os prazeres físicos estão no ato sexual. Diz Foucault (1984b, p.3): “A possibilidade de utilizar nossos corpos como uma fonte possível de uma multiplicidade de prazeres é muito importante”. O prazer é, então, uma forma de criação, e deve ser valorizada enquanto tal. Quando o prazer torna-se o mediador das relações, sem ser ligado a genitalidade, nós enfrentamos a heteronormatividade, que se baseia na divisão ‘natural’ de dois sexos e no cerceamento da prática sexual às genitálias. Também apostamos por uma via que não marque os incluídos em função daqueles ‘anormais’ que são excluídos (VEIGA NETO, 2001). Conforme aponta Costa (1999, p.12-13): “Foucault, de modo semelhante, vai buscar, sobretudo, nos prazeres corporais o mínimo denominador comum do sujeito plural e em constante estado de renovação. [...] Os prazeres são [...] sempre abertos à redefinições”. O que moveu o cartógrafo para as ruas de São Paulo, mesmo com medo? Neste regime produtivo que aposta nos corpos e nos prazeres, pensar as identidades de forma não essencializada pode ser estratégico, pois “se a identidade é apenas um jogo, apenas um procedimento para favorecer relações, relações sociais e as relações de prazer sexual que criem novas amizades, então ela é útil” (FOUCAULT, 1984b, p.4). Ainda que um furor revolucionário busque encaixar experimentações múltiplas em identidades restritas, há que se reconhecer as articulações políticas que o jogo identitário permite (CASSAL; GARCIA; BICALHO, 2011). E os corpos ‘transgressores’ à heterossexualidade estão atravessados por uma potência de invenção que não se liga à questão identitária, já que estes corpos “trazem

consigo como resíduo a história das tecnologias de normalização dos corpos, eles também detêm a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual” (DODSWORTH, 2008, p.20). Assim, as identidades servem como forma de organização; mas é necessário não se estabilizar aí, e ao mesmo tempo em que agregar, mover-se para a desconstrução identitária. Ao invés de descobrir-nos homossexuais, produzir um modo de vida gay; instauração de novos modos de existência; afirmação da diversidade enquanto potência criativa; subversão dos corpos, dos prazeres, dos desejos, das relações (FOUCAULT, 1981, 1984b; TEIXEIRA FILHO, 2011). Trata-se de “um ‘ser gay’ que se constrói, inventa-se, um ‘ser’ enquanto verbo atuante em nosso tempo” (DODSWORTH, 2008, p.17, grifo nosso). Os espaços que nos reunimos porque nos consideramos lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são fecundos para discutir o quanto somos e não somos todas essas coisas, e quantas outras queremos, desejamos, tentamos ser, vamos sendo e deixando de ser56. Ao sair de casa para as ruas de São Paulo, a identidade do cartógrafo não era a sua principal performance: Se devemos nos posicionar em relação à questão da identidade, temos que partir do fato de que somos seres únicos. Mas as relações que devemos estabelecer conosco mesmos não são relações de identidade, elas devem ser antes relações de diferenciação, de criação, de inovação. É muito chato ser sempre o mesmo. Nós não devemos excluir a identidade se é pelo viés desta identidade que as pessoas encontram seu prazer, mas não devemos considerar essa identidade como uma regra ética universal (FOUCAULT, 1984b, p.10)

Foucault (1981) entende que a soma de todas as múltiplas formas por meio das quais pessoas se dão prazer pode ser chamada de ‘amizade’, especialmente nas relações que não são favorecidas por normativas instituídas (como o casamento heterossexual, por exemplo, que dá um estatuto diferenciado a uma certa forma de organização de corpos). Neste sentido, o que torna a homossexualidade perturbadora é a formação de alianças: pessoas que se amam em desacordo com as normas, fora da regulação das instituições. Pois os relacionamentos são também o estabelecimento de alianças, traçando imprevisíveis linhas de força, modificando os códigos instituídos. “Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito” (FOUCAULT, 1981, p.2). O cartógrafo não andava sozinho pelas ruas de São Paulo. Não estava naquela cidade por acaso. 56

Neste sentido, vale destacar a relevância do Encontro Nacional Universitário de Diversidade Sexual (ENUDS), realizado anualmente com participação de grupos de estudantes de várias partes do Brasil. Os debates são marcados por uma análise política das relações de poder-saber, além de ser evidente o intercâmbio entre áreas de conhecimento, corpos, vestimentas, espaços, prazeres.

A homofobia tenta eliminar corpos e existências homossexuais. Enquanto ato de violência física, produz uma rede de medo. Frente este grave sofrimento, o cartógrafo se perguntava: como sobreviver? Quais as possibilidades, que estratégias inventar? Foucault (1981) aponta que, para compreender a sobrevivência em situações de extremo desespero, de experimentações cercadas de morte como as guerras, os massacres, e os campos de prisioneiros, é preciso considerar a trama afetiva que ali se estabeleceu. A relação de amizade, atravessada por sentimentos como coragem, honra, dignidade e sacrifício, era uma das condições para suportar tais violências e sobreviver. O cartógrafo foi ao bar com iluminação esverdeada para encontrar amigos. Experimentou a noite, o medo e a rua escura porque entendeu que valia a pena. Mesmo só, o cartógrafo era muitos. Seguiu pelas ruas culturalmente viradas, mas não foi sozinho que experimentou uma cidade diferente. A amizade produziu encontros que moveram o cartógrafo até São Paulo e o mantiveram lá, mesmo com o espetáculo midiático de terror. A relação de amizade marcou o corpo do cartógrafo, subverteu um mapa de medo e produziu uma reinvenção. Como toda a relação de poder está a produzir resistências, a amizade torna-se o analisador final deste mapa sobre a homofobia. A amizade favorece produção de relações singulares, enquanto o prazer opera como ponto de suporte para a invenção de estratégias. Se a homofobia fortalece laços e vínculos entre estes sujeitos entendidos como ‘vulneráveis’, a identidade por vezes atua como uma potência inventiva: produz múltiplas relações de amizade. A exclusão da família ao ‘sair do armário’ é enfrentada em redes de apoio; torna-se mais comum a formação de grupos de adolescentes homossexuais dentro das escolas; nas situações de discriminação, são acionados militantes e profissionais. Os encontros das amizades ressignificam existências marcadas como subumanas, infelizes, apavoradas. A amizade possibilita que entender-se lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual e muitas outras coisas como mais do que um estereótipo construído e disseminado de infelicidade eterna. O medo produziu uma cidade de São Paulo perigosa, solitária, hostil e homofóbica. Essa é uma verdade. Mas nós conhecemos uma outra cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS [...] só o movimento é capaz de garantir algum equilíbrio ao viajante. (LOURO, 2004, p.13).

A sexualidade, tomada frequentemente como uma experimentação natural do corpo, ganha um novo sentido quando se investiga sua emergência na história. Conforme aponta Michel Foucault (bem como alguns de seus comentadores), a sexualidade opera como uma complexa estratégia, que produz de forma regulada corpos e populações. O biopoder – poder de produção regulada da vida – é um jogo político, relacional, exercido em práticas, estabelecido como verdade. Porém, Foucault não é um pessimista; o autor aposta que todas as relações de poder produzem também resistências. Os exercícios de poder deformam, transformam, escapam. E este foi o ponto de partida deste trabalho. Os dispositivos, como o da sexualidade, são passíveis de fissuras e rachaduras, que não vêm de um lugar externo, mas do deslocamento de seus pontos internos estratégicos. Ou seja: para desconstruir o dispositivo da sexualidade, foi necessário mergulhar nele, experimentando seus fluxos e facilitando movimentos não instituídos. Um mergulho que precisava de um equipamento, trazendo alguma proteção e dirigindo um trabalho ético-político. A cartografia foi uma aposta para encontro e produção com resistências, não só do dispositivo da sexualidade, mas do fazer de uma pesquisa. Marcada fortemente por paradigmas das ciências biológico-naturais, a psicologia muitas vezes reproduz relações de poder instituídas sobre o humano e a produção de conhecimento. Fazer uma cartografia dentro da instituição ‘psicologia’, com toda sua autoridade e pompa, foi uma tentativa de balançar algumas verdades sobre o método, a escrita e a implicação do pesquisador. Mais ainda, a cartografia foi a possibilidade de produzir uma pesquisa de forma prazerosa em uma academia hegemonicamente endurecida, meritocrática, produtivista e despreocupada com o papel estratégico do pesquisador na transformação do mundo. A cartografia não propõe um caminho a priori, mas desenha-o com o caminhar. Ao longo de dois anos, o mestrado foi um dispositivo para a realização de múltiplas viagens. Algumas cidades eram desconhecidas até então, como Brasília, Salvador, Petrópolis, Teresópolis, Itaboraí, Ouro Preto e Curitiba. Mas outras foram reinventadas, como a já familiar São Paulo e o lar Rio de Janeiro. Os processos produtivos valem-se do corpo do cartógrafo para tornarem-se um mapa. Trata-se um esforço estético para não registrar fluxos

como representações endurecidas; há que se manter a potência do que é múltiplo e inesperado. A cartografia não é uma metodologia simples, e nem barata. Um caderno de anotações é de fácil aquisição; um computador para registro e a internet para contato são coisas acessíveis, mesmo que a bolsa de mestrado não receba reajustes. Mas o corpo não sai incólume desta experiência. Atravessado por forças, marcado por experiências, disciplinado pelo exercício da escrita, desorganizado por afetos – o mestrado não é apenas um título: o corpo que conclui esta pesquisa é muito diferente daquele que a iniciou. O corpo do cartógrafo encontrou-se com a homofobia ao circular na cidade, ao navegar na internet, ao notar notícias e nas conversas. Afinando sua escuta, percebeu que uma homossexualidade inventada no século XIX para marcar algumas práticas como associadas a um ‘tipo’, uma personalidade e uma forma de viver no mundo, mostra-se cada vez mais presente no cotidiano. A homofobia, ainda que polissêmica, está sempre ligada a esta homossexualidade, como sua repulsa, que resulta na violência. O dispositivo da sexualidade opera na eliminação destes corpos ‘transgressores’ às suas normas. Mas a violência é mais que um ato individual; é produção coletiva de corpos como subumanos, destruídos em nome da proteção, em defesa da sociedade. O Rio de Janeiro, de beleza exuberante, está marcado pela violência como experimentação cotidiana. O corpo do cartógrafo não sofreu uma violência física, materializada, que caracterizasse a homofobia. O encontro com a homofobia se deu pelos seus efeitos, mais particularmente o medo. São Paulo deu visibilidade a este medo, fabricando corpos, delimitando trajetos na cidade, restringindo formas de relação. De forma potente, o medo se estabelece como verdade. Imprevisível, a homofobia coloca todos os sujeitos em xeque: marca o mundo ‘bárbaro’ e ‘impuro’ em que vivemos, demandando correções. Reafirma a ‘limpeza’ das diferenças como solução, enquanto justifica eliminações silenciosas dos indesejados. O medo não só produz controle: faz com que imploremos por ele. Mas os exercícios de poderes também produzem as resistências; através da arte, a cidade de São Paulo tem suas ruas ocupadas. A diversidade não precisa da ‘ordem’ conferida pelas identidades; os corpos reinventam as ruas e possibilitam uma outra cidade no mesmo espaço, tal qual uma performance. Mesmo atravessado pelo medo, o cartógrafo retorna a São Paulo e tem prazer em suas ruas. Ao longo dessas viagens, construímos mapas na tentativa de quebrar a naturalização cada vez maior da homofobia, para que outros sentidos possam competir com a noção hegemônica. Com isso, intervenções instituintes tornam-se possíveis, rachando o

funcionamento do dispositivo da sexualidade. Nossa aposta está em caminhos alternativos à produção de medo, posto que este produz esvaziamento dos espaços públicos, dos encontros e das pluralidades, além de reforçar políticas de eliminação e exclusão. É possível construir outros sentidos para a cidade, que não precisem passar pelo controle e pela ordem. Como a cartografia trabalha com territórios em constante transformação, que são os processos subjetivos, o mapa não se pretende completo. É um instrumento processual de análise, produzido ao mesmo tempo em que se fabrica o cartógrafo. Espaços vazios, incongruências e linhas de fuga interessam, pois deixam abertura para outras interrogações e novos mapas. Aberturas que angustiam. Enquanto termino este trabalho, minha avó faz promessa para que eu não viaje mais a São Paulo, pelo perigo da violência dirigida a homossexuais, conforme aparece nos noticiários. Respondi que achava improvável que tal promessa se cumprisse. Ela me pede, então, que eu não a avise quando viajar para lá. Andando de noite nas ruas de Ipanema, próximo à Rua Farme de Amoedo, área nobre do Rio de Janeiro com grande concentração de estabelecimentos para homossexuais, vejo alguns sacos de lixo. Ao lado, lâmpadas fluorescentes usadas. O que enxergo ali não é apenas o descarte de um objeto considerado inútil; é uma possível arma, dependendo do contexto. Um instrumento útil na eliminação de corpos considerados inúteis. Vejo ali as fotos e vídeos do noticiário, vejo ali as cicatrizes nos corpos e nas cidades. Ou seja, esta dissertação não ‘resolve’ o problema posto pela homofobia. O texto não conseguiu ‘exorcizar’ meus próprios medos, e nem poderia fazê-lo. A homofobia é uma produção histórica e social, estratégica para o funcionamento de relações de poder em nosso cotidiano. Ações individuais ou individualizadas não são suficientes para desconstruir esta lógica. O tão desejado e necessário enfrentamento da homofobia não avança pela individualização das questões, ou pela produção do medo. Uma possibilidade está numa luta pela transformação dos encontros e das relações. A homofobia aparece como uma ‘fatalidade’ de uma cidade caótica e desordenada. Mas o que fazer com esta cidade? A Virada Cultural de São Paulo apontou para uma cidade ocupada, múltipla, diversa. Uma população desorganizada, e por isso mesmo potente. Atualmente, a ocupação da cidade tem um caráter de um confronto jurídico e uma guerra militar. A homofobia é, então, enfrentada com a criminalização penal e a vigilância policial. Um dos argumentos para o enfrentamento da homofobia: a homossexualidade é natural e, por isso, precisa ser garantida em seus direitos. Enquanto isso, diversas comunidades são removidas para obras de revitalização urbana no Rio de Janeiro. Tanto a

capital carioca, quanto a paulistana têm intervenções de recolhimento de população em situação de rua para internação compulsória. Em São José dos Campos, interior de São Paulo, uma imensa operação policial expulsa centenas de famílias que ocupavam uma região chamada de ‘Pinheirinho’. Enquanto isso, a mídia é terrivelmente silenciosa, talvez intencionalmente omissa. Essa a diretriz da segurança pública: em nome do medo, a eliminação de grupos que são ‘pretos de tão pobres, ou pobres de tão pretos’ (BATISTA, 2003). Não por coincidência, a homofobia segue o mesmo caminho, tornando-se tão naturalizada quanto a sexualidade. A redução da violência urbana a uma questão de segurança pública tornou-se uma estratégia de opressão e eliminação das diferenças. A homofobia serve como analisador para pensarmos a construção de uma cidade que seja marcada por encontros que não pedem o título de ‘naturais’. Neste sentido, a transformação do espaço urbano tem fortes relações com a possibilidade de circulação de pessoas, a democratização do espaço da rua como produção artística e cultural, o posicionamento estratégico de equipamentos públicos para enfrentamento de vulnerabilidades sociais. Ou seja: enfrentamento da homofobia é uma questão de políticas públicas de cultura, saúde, educação, assistência social, transporte, habitação, dentre outros, mesmo que não apareça nomeado como ‘questão LGBT’. Porque a homofobia não é uma questão restrita a uma população; diz respeito a toda uma sociedade. E como pensar estas políticas? A construção de relações de amizade, que Foucault tanto preza, retira o medo de sua hegemonia inabalável. Mais ainda, atua na desconstrução do dispositivo da sexualidade, que institui a homossexualidade como verdade e a homofobia como consequência. A amizade (construção de relações de afeto não-institucionalizadas) traz pistas para outro modo de se fazer política, mesmo em tempos de biopoder. A amizade levou o cartógrafo até São Paulo; sustentou o esforço e as dificuldades de discutir um tema doloroso; construiu vias de acesso para que percorresse vários anos de escola, faculdade, pósgraduação; acolheu a experiência de ser diverso num mundo contraditório, de desigualdades e normatizações. Da amizade vem a tinta que materializa estas páginas e dá sentido a estas palavras. O desafio posto é fazer políticas que se comovam pela diferença, deixando-a entrar em nosso cotidiano e valorizando-a em diretrizes e ações de Estado. Políticas que sejam construídas de forma coletiva (diferente do modelo centralizador assumido por diversos movimentos sociais, especialmente o LGBT). Políticas investidas de desejo e de prazer.

Políticas onde corpos fabriquem modos autônomos de existir, transformando-se de acordo com as necessidades. A identidade, neste sentido, pode ser estratégica para construção destas políticas de amizade. Produzem encontros, possibilitam resistências em processos cotidianos de eliminação. Neste sentido, esta dissertação não pretendeu eleger um inimigo – a homofobia, o indivíduo-homofóbico, a identidade homossexual, o que quer que seja. A questão é o uso estratégico, não-naturalizado, de todos estes conceitos. Nesta pesquisa, a homofobia teve um papel fundamental de problematização das relações de poder instituídas. De certa forma, foi ‘pervertida’ dos sentidos geralmente atribuídos para um outro uso, considerado mais potente. A aposta é na desconstrução de relações instituídas e naturalizadas, deixando-se levar pelo movimento. Acreditar que a homossexualidade é histórica e que a homofobia é um efeito contemporâneo, estratégico; é apostar que os diagramas de poder são finitos. A transformação social não é apenas uma utopia; é um desejo possível. Há diversas construções de cidades, inúmeras possibilidades de viver os prazeres e as relações. Na viagem que fiz ao longo desta dissertação, a mudança foi uma companheira bemvinda. Com o término desta etapa, desta parada, sigo adiante, sem muitas certezas, mas nunca sozinho. Há outros encontros por vir, inéditos, singulares, inesperados. As transformações ocorrem, querendo ou não. Conceitos mudam de sentido, corpos mudam suas performances, vivem e morrem. A amizade é uma linha de fuga deste mapa, da qual não sabemos a rota, o percurso, o destino. Agora, cabe segui-la, ser afetado e produzir novas cartografias, se você assim desejar.

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