Toda uma Vida

July 7, 2017 | Autor: Henrique Monteiro | Categoria: GUERRA CIVIL ESPAÑOLA, Velhice, Século XX
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Toda uma vida              135   

          À  geração  dos   meus  pais  e  dos  meus  sogros,  que  se  esforçaram  e  sofreram  para  nos  dar  um  mundo  melhor,  mais  decente, ignorando que nós o iríamos, em boa parte, estragar                                    135   

                   

Toda una vida,  Me estaría contigo,  No me importa en que forma,  Ni dónde ni como, pero junto a ti.  Toda una vida,  Te estaría mimando,  Te estaría cuidando,  Como cuido mi vida, que la vivo por ti. 

  Letra do bolero​  Toda Una Vida​ , de Oswaldo Farrés (1903­1985)           

I ­ Sul e Norte    Agora  perco   a vista na linha do horizonte, lá longe, num risco  azul  carregado  que  separa  o  mar  do  céu.  Olho  insistentemente  para  o  Sul,  para  o  oceano,  como  se  de  lá  viesse  algum  bem,  ou  qualquer boa surpresa.  Há  muito  mais  de  80  anos,  quando  vi  o  mar  pela  primeira  vez,  ele  estava  a  Norte  e  nestas  quase  nove  décadas  de  vida  serpenteei  até   me  confundir,  até  ver  o  mesmo  oceano  em  dois  pontos  cardiais  opostos,  perdendo  rastos  da  minha  vida aqui e ali,  levada  por  não  sei  que  destino  ou  fado,  nem  porque  vento  ou  estrada.  Nem  sempre  me  lembro do passado, mas ultimamente ele  surge­me  dentro  cabeça  como  se  estivesse estado todos estes anos  emboscado  à  espera  da  fragilidade  do  meu  corpo  de  velha,  tentando  cobrar  lembranças  terríveis  de  tempos  tão  longínquos  135   

para mim quanto próximos na história.   Dantes,  só  muito  raramente  me  vinham  à  cabeça  essas  recordações  e  então  fazia  um  enorme  esforço  para  não  chorar  convulsivamente,  mordendo  os   lábios,  as  mãos,  os  braços,  os  livros  que  estava  a  ler   ou,   de  noite,  as  almofadas  da  cama.  Agora   já  nem  vontade  de  chorar  tenho,  nem  tão­pouco  me  chego  a  entristecer.  Compreendo bem que a vida faz parte de um jogo cujo  sentido  ou  importância  raramente  captamos,  se  é  que  ele  existe;  entendo  que  não  foi  a  mim,  especialmente,  que  me  aconteceram  estas  coisas  terríveis  –  eu  sou  apenas  uma  parte  delas,  a  sua  imagem  viva,  a  sua   recordação  nos  outros.  Tudo  nos  aconteceu  a  todos;  todos  sofremos  pelas  mesmas  causas que eu sofri e aqueles  que  viverem  continuarão  a  penar  devido  aos  males  de  que  eu  fui  parte,  e agora sou testemunha, muito para lá destes tempos em que  ocorreram.  Ao  fim   e  ao  cabo,  talvez  Deus  ou  Algo  me  tenha  guardado  para  os  viver,  para  que  agora os possa interpretar, como  era  o  desígnio  dos  profetas   da  Bíblia  ou  dos  velhos  sábios  que  conheciam por pequenos sinais  as grandes desgraças que vinham a  caminho.  Agora  já  não  choro.  A  morte  tornou­se  para  mim  uma  simples  e  pura  trivialidade.  A  própria  desgraça  não  passa,  a  meu  ver,  de  uma  fatalidade  da  história  de  cada  um  –  que  em  conjunto  faz  a  nossa  história comum ­  e que afecta cada indivíduo de forma  diferente, pessoal, quase íntima.   Não  há  ninguém  feliz,  salvo  os  pobres  em  espírito, os loucos  e  os  inconsistentes.  Cada  um  de   nós,  pessoas  banais   e  normais,  carrega  uma  infelicidade  muito  própria,  ainda  que  tenha,  aqui  e  ali, lampejos de paixão, de alegria, de euforia, de satisfação…     Há  88  anos  eu  estava  em  El  Ferrol,  no  extremo  Norte  da  Península  Ibérica.  Nasci ali, junto ao mar e há­de ter sido ali que o  vi  pela primeira vez.  Não longe, havia uma praia, disso me lembro  bem,  onde  uma  avó  tinha  um  casarão  diante  do  mar.  A  casa,  enorme,  clara,  com  vidros  grandes  nas  janelas  por  onde  entravam  os  reflexos  do  sol  no  oceano,  é  talvez  a  minha  recordação  mais   antiga.  Apenas  lá  fui  algumas  vezes,  e  apesar  de  tudo  estar  tão   distante,  tão  confuso,  lembro­me do corredor e da porta e da cama  onde dormia minha avó e onde ela me aconchegava…  Vivi  em  Pontevedra.  Andei  lá  em  menina,  e  se  hoje  me  mostrassem  a  rua  onde brinquei  estou certa de que a reconheceria.  Ou  talvez  não.  Eu  olho  à  minha  volta  e  já  quase  não  conheço  nada…  Em  Pontevedra  fui menina pequena. O meu pai era militar  e  nós,  os  seus  filhos  –  cinco, uma irmã mais nova do que  eu e três  rapazes  mais  velhos  –  adorávamos  vê­lo  com  as  dragonas  e  a  espada  à  cintura.  Os  vizinhos  chamavam­lhe  então ​ Señor ​ Capitán  e  eu  tinha  orgulho  nele,  muito  mais  do  que  em  minha  mãe,  cujas  135   

determinação  e  coragem  só  conheci,  dramaticamente,  16  anos  depois, no final da guerra civil.  Também  vivemos  em Madrid, mas  durante  os quase três anos  que  durou  a  guerra  entre  republicanos  e  franquistas,  estive  separada  de  minha mãe, em Ayllón, na casa de uma amiga que me  levara  de  férias  com  ela.  Depois,  vivi em Biarritz, em Lisboa e no  Algarve,  e  em  Lisboa  e  outra vez no Algarve; e fugi uma vez  para  Madrid,  mas  voltei  a  Lisboa,  e  fui  outra  vez  para  o  Algarve.  Porém,  nunca  voltei  a   El  Ferrol,  que  me  viu  nascer,  nem  a  Pontevedra  onde  medrei   nas  ruas  sobranceiras  ao  mar.  E  por  estranho  que  isso  me  pareça,  é  desses  lugares  que  hoje  tenho  a  memória  mais nítida: da casa na praia e da ruazinha de Pontevedra  e o seu pequeno largo para onde abria a varanda de casa.    Hoje,  quando  me  perguntam  o  que  sou,   não  sei.  Dizem  que  sou  galega  e  ficam   muito  contentes,  porque  no  fundo  me  sentem  mais  portuguesa  do  que  espanhola,   como  se  os  galegos  fossem  mais próximos dos portugueses que vivem paredes meias com eles  do  que  os  leoneses,  os  estremenhos  ou  os  andaluzes.  Contraditoriamente,  isso  entristece­me.  Eu  nasci  espanhola  e  ainda  que  morra  sem  saber  a  que  terra  pertenço,  nunca  me  considerei  galega.   Era  espanhola,  porque  galegos  eram  os  pobrecitos  do  campo  que  ganhavam a vida a esfalfar­se na  terra, a  nela  meter  as  mãos  grossas,  para  tirarem  mais  calhaus  do  que  sustento.   Na  altura  da  minha  meninice,  Espanha  era  um  orgulho,  embora  estivesse  traumatizada  pela  perda de Cuba e das Filipinas,  segundo  nos  dizia  meu  pai.  Nós  éramos  e  queríamos  ser  espanhóis,  e  penso  que  o  mesmo  se  passava  com  os bascos e com  os  catalães,  esses  patriotas que nos querem agora abandonar – que  se  vão!  Que  se  vão e já! Não fazem a mínima falta! A política não  me  interessa,  falo  nisto   apenas  porque  me  fascina  ver  como  os  tempos  que  vivemos  desfazem  os  sonhos  que  tivemos.  Espanha  continua  a  ser  um  dos  grandes  países  da  Europa  e  do  mundo;  melhorou  extraordinariamente  em  relação  aquilo  que  era  quando  nasci.  Pois  é  agora  que  esses  senhores  querem  sair!  Quando  a  pobreza  se  espalhava  pela  península  como  um  manto  escuro,  quando  descalças,   rotas  e  subalimentadas  as crianças desmaiavam  nas  ruas  de  Pontevedra,  ou  nas  esquinas  de  Madrid  e  por  elas  passavam  senhores  de  chapéu  e  sobrecasaca  que  nem  lhes   dignavam  um  olhar,  antes  de  entrar  no  Hotel  Palace  para  discutirem  alta  política  ou  fazerem  farras  com  ciganas  andaluzes  –,  nesses  tempos  todos  queriam  ser  espanhóis!  E  os  bascos,  meu  Deus!  Que  radicais!  Até  na  religião  queriam  todos  ser  como  Inácio  de  Loyola,  que   aliás agora se chamariam Iñaki de Azpeitia,  porque  tudo  naquela  maldita  terra  há­de  ser  em  basco,  como  se  o  castelhano  –  a  língua  que  foi  sempre  de  todos  nós  ­  tivesse  135   

peçonha.  Valha­me  Deus,  vivo  bem sem essa gente a incomodar e  menos ainda com os radicais que deitam bombas…  Não,  não  sou  galega,  mas   infelizmente  não  sou  bem  espanhola.  A  minha  mãe  era  de  Vitória,  que  agora,  em  basco  se  chama  Gasteiz,  nome  que  infelizmente  me  faz lembrar um campo  de  concentração  alemão  –  ninguém  se  admiraria  que,  havendo  Auschwitz,  Birkenau  e  Treblinka,  por exemplo, houvesse também  um  campo  chamado  Gasteiz…  Já  meu  pai  era  de  El  Ferrol,  que  mais  tarde  se  chamou  El  Ferrol  del  Caudillo,  porque  lá  nasceu  também  Francisco  Franco,  El  Paco  (nome  pelo  qual  meu  pai  se  lhe  referia),  que  eu  cheguei a idolatrar, mas que me desfez família  e  vida.  ​ Madrecita  chamava­se  Consuelo  e  era  a  mulher  mais  apagada  que   conheci,  até  1939.  Depois,  como se tivesse guardado  para  esse  momento  toda  a  força  que  o  seu  pequeno  corpo  conseguira  armazenar  nos  anos  de  inacção,  tornou­se  de  uma   determinação  que  me  salvou  a  mim  e  a  Pilar,  minha  irmã  mais  nova.   Não  sou  galega,  nem  basca,  nem  espanhola,  nem  portuguesa…  Sou  um  pouco  de  tudo  e  em nenhuma  dessas terras,  quando  lá  passo,  me  reconhecem  como  sua  filha.  Em  Espanha  tenho  pronúncia portuguesa; na Galiza não sei falar galego; menos  ainda  sei  falar  basco  ou  catalão  (apesar de ser o idioma da família  de  meu  marido),  e  em  Portugal  sou  espanhola,  tanto  mais  que  nunca  consegui  utilizar  com  exactidão  a  complexa  fonética  do  português.  Fernando  Pessoa  disse  que a nossa pátria é a nossa língua. Eu  lamento  ter  de   assumir  que  tenho  uma  pátria  só  para  mim,  a  qual  não  partilho  com  ninguém.  Ninguém  fala  como  eu,  com  palavras  misturadas  do  português  e  do  espanhol,  além  de  alguns  plebeísmos  galegos.  Só  não  sou  estrangeira  no  meu  próprio  idioma,  uma  fala  que  não  é nenhuma em partícular, mas a mistura  de  várias;  só  me  reconheço  numa  salgalhada  de  línguas,  de  hábitos,  de  costumes,  para  os  quais  fui  empurrada  por  uma  mão  que  não  conheço   nem  senti,  por  um  desígnio  sem  lógica,  ao qual,  no entanto, me habituei e me resignei.   Dizem­nos  que  a  nossa  língua  é  aquela  com  que  fazemos  contas  de  cabeça,  ou  em  que  rezamos.  Pois  eu  rezo  em  latim  e as   contas  de  cabeça  são  feitas  como  calha,  na  minha  língua  própria.  Duas  más  trés  son  cinco​ .  Como  dizia  Pilar,  minha  irmã,  o  pior  é  chegarmos  a  esta  fase,  quando  já  dizemos  ​ fecha  la  puerta​ .  Para  aqueles  que  dizem  que  a  linguagem  é  uma  prisão,  tenho  eu  mais  grades do que a maioria das pessoas.   Sempre  rezei  em   latim.  As  missas  em  latim  eram  bem  mais  interessantes  do  que  as  que  se  celebram  actualmente  nos  idiomas  locais  e  abençoado  seja  o  Papa  Bento  XVI  que  as  permite  de  novo,  embora  eu  nunca  mais   as  ouvisse  sem  ser  em  português  ou  espanhol.  Se  os  mistérios  de  Deus  são  imperscrutáveis,  como  se  135   

diz,  por  que  razão  a  língua  há­de  ser  vulgar.  Em  latim  ninguém  entendia  o  que  se  estava  a  dizer.  Ao  fim  e  ao  cabo  era  como  os  termos  mágicos,  o  abracadabra  ou  a  algaraviada  das  ​ meigas  galegas  quando  fazem  a  queimada…  Para  mim  o  pai­nosso  é  pater  nostro  que  es  in  cielo  sanctificater  nomem  tuum  adeveniate  renhum  tuum  fiate  voluntas  tua  sicut  in  cielo  y  in  terra​ .  E  o  mesmo  se  for  a  Ave­maria,  de  que  gostava  particularmente  da  parte  ​ Dominus  tecum​ ,  pela  sonoridade  possessiva  da  palavra  tecum​ ,  bem  como  o  Credo  e   tudo  isso.  A  latinada  fazia  falta  e  conferia  aos  padres  um  particular  respeito.  Mesmo  quando  desviavam  os  seus  passos  do  caminho  da  rectidão  com  uma  apalpadela  furtiva  no  rabo  de  uma  paroquiana  –  e falo do mínimo  que  sei  ­,  logo  depois  diziam  algo   em  latim  que  perdoava  quase  tudo,  como  se  as  palavras  viessem   de alguém transcendentemente  antigo  que  falasse  pela  boca  do  pároco.  Curiosamente,  acabaram  por  ser  eles  os  primeiros  a   abdicar  do  poder  que  lhes  era  dado  através  de  palavras  mágicas;  nem  médicos  nem  advogados  o  fizeram.  Ainda  noutro  dia,  assisti  na  televisão  a  um  debate  entre  advogados  e  não  percebi  nada  do  que  eles  disseram. Fiquei, aliás,  com  a  sensação   de  que  o  mesmo  se  passava  com  os  próprios,  dizendo  palavras  estranhas,  apenas  para  as  dizer,  sem  sentido…  As  leis  em  Portugal,  aliás,  mudam  de  uma  forma  inacreditavelmente  rápida,  curiosamente  na  relação  inversa  com a  demora  dos  tribunais  e  isso  contribuirá  para  aquela  espécie  de  jogo de enganos que é o salsifré judicial.  Também  não  tenho   por objectivo dizer mal do país onde vivo  há  quase  70  anos  e  no  qual   vou   certamente  morrer.  É  mesmo  das  coisas  que  me  desgostam  ouvir  dizer  mal  de  Portugal…  aos  portugueses.  Chega­se  a  qualquer  lado,  a  qualquer  país,  e,  se  quiserem  ouvir  alguém   a  dizer  que  neste  país  tudo  corre  mal,  é  porem­se  ao  pé  de  portugueses.  Pelo  contrário,  se  há  locais  deste  país  de  que  não  gosto  é  por  más  recordações  que  lá  ganhei.  De  resto,  sempre  achei  este  país  maravilhoso,  cheio  de  Sol,  com  um  mar  majestoso  que  agora   se  estende  aos  meus  pés  e  para  o  qual  olho continuamente enquanto duram estas lembranças.    Eu, criança, com  um vestido de chita à espera do meu pai, nas  callecitas  de  Pontevedra;  eu  ao  colo  de  uma  criada  a  olhar,  admirada,  o  mar  de   El  Ferrol;  eu,  menina sem notícias da família,  a  chorar  baixinho  num  canto  de  uma  cozinha  escura,  com  fome,  com  frio,  com  medo  do  barulho  dos  aviões  e  das  bombas  ​ rojas  e  nacionalistas  a  explodir  ao  fundo  das  montanhas,  onde  pressentia  uma  mortandade  que,  de  facto,  existiu  e  –  vim  a  sabê­lo  mais  tarde  ­  a  dirigente  comunista  Dolores  Ibarruri,  ​ La  Passionara​ ,  gritava,  louca,  ​ No  Passaran!  Eu  triste,  amparada  por  minha  mãe,  na  praia  de  Biarritz,  ao  pé  de  uma  Virgem  em  cima  de   um  rochedo;  eu  tuberculosa,  à  espera  de  morrer,  encomendando  em  mau  latim  a  minha  alma  ao  Criador,  numa  terra  ao  pé  de  Sintra;  135   

eu,  ainda  fraca,  no  Bairro  Alto  em  Lisboa,  na  casa  da  minha  tia  Concepción;  eu  a  casar­me  com  um  espanhol  nascido  em  Portugal,  de  origem  catalã,  na  pequena  capela  da  ​ Beneficência  Española​ ;  eu,  em  Madrid  a  olhar  as  manifestações  contra  as  clínicas  que  faziam  abortos,  e  a  ver  as minhas filhas a favor dessa  lei  e  a  endeusaram  Felipe  González  e  os  ​ rojos​ ;  eu  no  Algarve,  a  olhar  o  mar  que  está  na  direcção  contrária  àquela  em  que  o  via  quando nasci…   Eu  que  nunca  me  conformei com o facto de este ser o mesmo  mar,  embora  a  terra  não  seja  a  mesma  terra.  É  aqui  que  sinto   que  tocarão  um  requiem  em  minha  homenagem,  no  caso  de  ainda  alguém por aqui saber o que é um requiem…  Não,  não  estou  fraca  nem  sentimental.  E  embora  me esqueça  amiúde  do  que  comi  ao  almoço,  sei  perfeitamente  os  passos  que  me  conduziram  aqui.  Os  passos  no  caminho  das  pedras  e  os  passos  nos  salões de dança  –  eu que dancei tão maravilhosamente,  transportada  no  ar   pelo  meus  pares  e  pelas  músicas  de  Lucho  Gatica  que,  vendo  de  hoje,  era  um  piroso  insuportável…  mas  eu  perdia­me  no  ​ Moliendo  Café  como  hoje  me  perco  no  mar,  só  de  olhar para ele.  Agora  perco   a  vista  na  linha  do  horizonte,  no  mar,  no  Sul,  mas  ainda  não  perdi  a   linha  que  fui  desenrolando até chegar aqui;  posso  enrolá­la  facilmente,  até  me  encontrar  muito  longe,  mais  longe  do  que  a  linha  do  horizonte,  no  outro  lado  da terra, no mar,  no  Norte,  ao  colo  de  não  sei  quem,  mas  de  alguém  que  me  quis  bem  e  me transportou pela praia até que um daqueles homens com  uma  enorme  máquina  fotográfica  de  madeira,  assente  num  elegante  tripé,  metendo  a  cabeça  dentro  de  um  pano  preto,  me  tirou  este  instantâneo  hoje   amarelecido  e  quase  rasgado  que  encontrei  dentro  de   um  livro  velho…  Sou  eu,  e  tal  como  então,  também hoje não faço a mínima ideia do que me vai acontecer.                     II – Juan Miguel    Sento­me  no  cadeirão   habitual,  frente  ao  mar  que  me  parece  135   

imóvel,  raso  como  um  campo  azul.  Vim  agora  do  pequeno  cemitério  onde   repousa  o  meu  falecido  marido.  Está  num  jazigo  alto  e  estreito  com  lugar  para  oito  caixões. O único lá encerrado é  o  dele,  mais  ninguém  da  nossa   família  repousa  ali.  Juan  Miguel  sempre  teve  a  mania  das  grandezas,  de  certo  modo  achava­se  um  patriarca,  e  esperava  sempre  reunir  todos,  mesmo  que  depois  de  mortos.  Mas  ali  está  ele,   soberbo  mas  só,  como  talvez  tenha  sido  toda  a  sua  vida;  num  lugar  espaçoso  e  luminoso,  porque  a porta é  de  vidro,  como  se  todos  nós  devêssemos  invejar   a  elegância  do  seu  repouso  eterno.  De  certa  forma,  ele  era  assim  –  distante,  elegante, distinto e, sobretudo, um pouco solitário.  Conheci­o  num  Verão, num baile da Beneficência Espanhola.  Era  um  janota  que  não  supunha,  sequer,  poder  passar­se  um  centésimo  do  que  eu  já  então  passara  na  vida.  Vinha  de  famílias  com  dinheiro  ganho  na  cortiça,  catalães  que  se instalaram ali para  Silves,  onde  hoje  é  a  Fábrica  do  Inglês.  Passava  temporadas  em  Lisboa,  para  onde  se   deslocara  num  automóvel  enorme  e com um  fato  espampanante   que  lhe  ficava  largo  no  seu  corpo  magro.  Era  um  fato  branco,  impecavelmente  branco,  que  rematava  com  um  chapéu  também  ele  branco,  com  uma  fita  azul.  A  camisa  era  de  um  azul­marinho  impressionante  e  usava  um  lenço  de  fantasia  no  lugar da gravata.   Estávamos  no  princípio  dos  anos  50  e  o  pior   do   mundo,  a  guerra,  a  infelicidade,  o  medo,  o  ódio,  parecia  já  ter  passado.  Eu   saíra  de  uma tuberculose que quase me matara e tinha a convicção  de  que  nada  mais me deitaria abaixo, que a quantidade de mal que  a  vida  me  destinara  estava  esgotada,  o  plano  cumprido,  já  exaurido  e,  portanto,  afastado  para  todo  o  sempre.  Os  tempos  eram  de  diversão  pura,  de  excessos,  de  confiança  interminável.  Quem sobrevivera, viveria para sempre.   Ao vê­lo no seu fato branco, dei uma cotovelada em Pilar.  ­ Mira, que hombre, hein?  A  Pilar  deu  uma  passa  –  ao  contrário  de mim, sempre fumou  muito  –  e  olhou­o  de  alto  a  baixo.  Depois,  mirou­me  muito  devagar,  como  se   medisse a possibilidade de o meu vestido barato  nunca  poder  encostar­se  àquele  fato  branco  esvoaçante,  e  disse­me:  ­  ​ Chica​ ,  ou  te  casas,  ou  te  quedas  para  tia.  E  para  te  casares  que  seja  com  um  ​ tio  assim,  todo  cheiroso, com  bom aspecto, com  vida desafogada, com quem vivas bem. Avança.  Fiquei  quieta.  Nem  um  músculo  mexi  com  medo  de  ser  mal  interpretada.  Não  sabia  o  que  fazer  e  só  Pilar  tinha  o  dom  de  me  ensinar.  Pilar fumava, flirtava, cortejava, bebia, fazia olhinhos, era  capaz  de   pôr  qualquer  homem  com  a  cabeça  a  andar  à  roda.  Eu  tinha  medo,  valha­me  Deus.  Tinha  uma  vergonha  danada,  só  de  saber  que  uma  espanhola  era,  nesse  tempo  em  Lisboa,  quase  135   

sinónimo de puta.   ­  Que  o  pensem!  Quase  gritava  Pilar,  de  pronto  saberão  que  não o somos.  Mas  eu  não  conseguia,  recatava­me.  Vais  para  freira,  dizia­me  ela,  enquanto  se  pendurava  nos  braços  do  cônsul  espanhol  para  dançar  aquelas  músicas  fatais  da  ​ hispanidad  –  os  tangos,  os  cha­cha­cha,  os  boleros…  E  ela  dançava,  flutuava pela  sala,  e  quando  voltou  trazia  o  cônsul  e  Juan  Miguel,  o  qual  me  apresentou  de  uma  forma  que  ainda  hoje  mal  consigo  reproduzir…  ­  Eis  Juan  Miguel,  que  me  diz   o   Cônsul  ser   quase  virgem  e  mártir...   Enquanto  o  Cônsul  se  desmanchava  a  rir,  Juan  Miguel  ficou  quase  tão  aflito  como  eu.  Pegou­me  na  mão,  fez  menção  de  a  beijar  e,  quando  a  orquestra  tocou  um  tango  de  Gardel,  o  ​ Tomo  y  Obligo​ ,  e  um  homem  que  parecia  caribenho  se  acercou  do  microfone,  ele  sussurrou­me  se  eu  dançava.  E  eu  fui  com  ele  e,  naquelas  coplas  dramáticas,  que  em  boa  parte  da  vida  me  perseguiram    E yo ao verla envilecida  En otros brazos entregada  Fue para mí una puñalada  Y de celos me cegué  Y les juro, todavía,  No consigo convencerme  Como pudo contenerme  ¡Y  ahí,  no  más,  no  la  maté!  ,  cruzámos  o  olhar,  ele  apertou­me  um  pouco  e   eu  não  sei  se  me  senti  envilecida  se  arrebatada,  mas  deixei­me  ir,  enleada,  embalada  por  ele.  Dançámos  ainda  mais  duas  ou  três  músicas  e,  sem  saber  como,  entrei  no  seu carro com o cônsul e Pilar e parámos na Benard para  beber  um  chá.  Falámos  de   tudo  na  vida  e,  ao  fim  da  tarde  eu  e  Juan Miguel tínhamos feito as juras secretas dos noivos  suspiradas  nos ouvidos um do outro.  Não,  a  vida  não  era  como  agora.  Bem  o  vejo  nas  minhas  netas,  embora  elas,  talvez  exceptuando  Madalena,  disfarcem  à  frente  da  avozinha.  Eu  e  Juan  Miguel  não  passáramos  de  uns  suaves  roçagares  pela  linha  da  cintura  e  pelos  seios,  de  toques  ligeiríssimos  de  lábios,  na  demora  ao  retirar  a  cara  de  um  beijo  casto  na  face.  Mas  era  o  suficiente  para  deixar  um  homem  e  uma  mulher  amarrados,  um  sussurrando  pelo  outro,  à  noite,  quando  imaginávamos o então inimaginável.   Terei  pena  de  não  ter  ido  mais  longe?  Às  vezes,  quero  crer  que  sim,  que  tenho!  Poderia  hoje  confessar  –  mas  a  quem? Não a  minha  filha  e  nem  à  minha neta Madalena. E nem minha ​ Madame  tenho,  que  tanta  falta  me  faz,  nem  mesmo  sequer  Pilar  que  hoje  135   

visitei  na  sua  campa  rasa,  no  mesmo cemitério onde ironicamente  está Juan Miguel…  Com a minha idade, sim, poderia confessar que tenho pena de  não  ter  feito  o  que  hoje  fazem,  de  ter  a  liberdade  que  agora  têm.  Não  sei  se  teria  construído  o  mesmo,  a  família,  o  amor  sereno  –  ainda  que  tudo  se  tenha  desmoronado  com  o  tempo  ­,  não  sei,  sequer,  se  teria   sido  mais  feliz,  ou  se  acabaria  como  minha  filha  Maria.  Sei  apenas  que  teria  havido  mais  fulgor  na  minha  vida,  mais  momentos  em que não teria querido saber de mais nada, nem  de  mais  ninguém,  mas  apenas  de  mim,  apenas  do pouco ou muito  que  me  faltava  para  me  entregar  a  um  prazer  só  meu,  sem  pensar  nas convenções, na família, no marido, nos filhos, no mundo.   Sinto  que  me  faltei,  que  me  desprezei,  que  me  subordinei  vezes  de  mais  –  eu  que,  ainda  assim  tive  a  minha  quota  de  rebeldia,  de  infidelidade,  de  subversão,  apesar  de  a  consciência  me  pesar  sempre   que  me  desviava  do  apertado caminho do dever,  traçado sabe­se lá por quem.   Ah,  se  minha  mãe  me  ouvisse,  lá  onde  está,  que  pensaria  ela  de  mim?  E  que  pensaria  das  netas,  das  bisnetas…  de  toda  esta  juventude  que  faz  o  que  faz,  à  vista  de  todos,  que  assistem  a  filmes  onde  homens  se  beijam  entre  eles  e  mulheres  se  despem,  sem  pudor, sem vergonha, sem respeito. Sei que estou muito  velha  e  que  a vida mudou. Mas, nesse  caso, que força me impediu tantas  vezes  de  fazer  o  que  o  meu  corpo  pedia?  E  que  força  é  essa  que  agora  as  impele  a   fazê­lo, que não lhes barra, como a mim barrou,  esse  caminho  estreito  entre  a  mulher  livre,  a  espanhola  amante,  a  puta e a senhora séria.    Juan  Miguel  era  um  cavalheiro.  Dois  dias  depois,  apresentou­se  na  casa  onde  vivíamos,  a  casa  de  minha  tia  Concepción,  no  Bairro  Alto.  Minha   mãe  tinha­nos  trazido,  a mim  e  Pilar,  para  este  refúgio,  já  que  a  sua  irmã  tinha  casado  com  um  médico  português.  Foi  este  meu  tio  que  me   diagnosticou  a  tuberculose, mal cheguei.   Não  gostei  dele  e  hoje,  por   muito  que  puxe  pela  memória,  não  me  lembro  do  seu  nome. Nunca me fez mal, mas era grande  e  gordo  e  eu  imaginava­o,   de  noite,  a  esmagar  a  minha  pobre  tia…   Por  outro  lado,  vivi  sempre  com  a  ideia  de  que a casa era dele – e   na  verdade  era  –  e  que  ele  nos  fazia  sentir  que  estávamos  ali  por  favor.  Olhando  agora  para  trás  acho  que  fui  muito  injusta.  O meu  tio  nunca  teve  filhos  e  quis  ver  na  cunhada  e  nas  sobrinhas  a  família que não pôde ou não quis constituir.   Hoje,  gostaria  de  ter  perguntado  à  tia  Concepción,  ou  até  a  minha  mãe,  que  o  deveria  saber  pela  certa,  por  que  razão  não  tinham  eles  filhos.  Mas  dessas  coisas,  à  época,  não  se  falava.  Os  casamentos  eram  e  pronto!  Uma  das  coisas  que  me  causa,  aliás,  135   

admiração  é  o  facto  de  esta  juventude,  em  nome  da liberdade  que  conquista,  estar  constantemente  a  perder  privacidade…  Enfim,  é  com eles. A mim, basta­me a que tenho agora.  Juan  Miguel  apareceu  acompanhado  do  cônsul  espanhol, que  a  tia Concepción  conhecia. Chamava­se, como ele, Juan, mas Juan  Luis,  e  ambos  se  tinham  conhecido  recentemente  através  do  todo­poderoso  Nicolás  Franco,  o  embaixador  de  Espanha,  irmão  do  El  Paco,  o  caudillo  de  El  Ferrol  e  ​ generalíssimo  em  Madrid.  Apresentaram  os  seus   cumprimentos,  enquanto  Pilar  me  compunha  à  pressa,  no  quarto  de  ambas.  Quando  entrei  na sala, o  meu  tio  já  estava  de  animada  conversa  com  ele,  enquanto  minha  tia  se  ria  com  as  histórias  do  Cônsul.  Eu  e   Pilar,  especadas,  descobrimos  que  não  havia  propriamente  lugar  para  nós  e  eu  fiquei absolutamente desiludida,  compreendendo que ele não tinha  vindo  por  minha  causa,  mas  por  outra  razão  qualquer  que  me  ultrapassava.  No  entanto,  terminada  a conversa, Juan Miguel aproximou­se  de mim e disse­me:  ­ Um destes dias, havemos de combinar ir a uma matiné…  Eu  corei,  sem  dizer   nada,  mas  acho  que  fiz  que  sim  com  a  cabeça.   Juan  Luís,  o  Cônsul,  passou  por   mim  e  apertou­me  o  braço  no  cotovelo,  desejando­me  felicidades  e  fez  uns  olhinhos  a  Pilar  que  só  eu  reparei.  Depois  de  saírem,  meu  tio  anunciou­me  com  certa  pompa  que  estava  autorizada  a  sair  com  Juan  Miguel,  desde  que  devidamente  acompanhada  de  minha  irmã.  Com  o  seu  tom desajeitado, acrescentou:  ­  Não  que  tivesse  de  ser  eu  a autorizar, mas manda a tradição  que  seja  o  homem  da  casa  e,  por  aqui,  homem  só me vejo a mim,  embora  a  sua  tia  tenha  tentações  dominadoras, que felizmente sua  mãe  não  tem.  Dito  isto,  riu­se  um  bocado  e  serviu­se  de  uma  bebida.   Acho  que  foi  a  partir  desse  dia  que  comecei  a  namorar  com  Juan  Miguel.  Por  estranho  que  pareça,  não  me  lembro  se  tivemos  relações  antes  de  casar,  apenas  do  momento  em  que  perdi  a  virgindade,  já  numa   idade  que  hoje  seria  considerada  avançada,  quando  minha  irmã,  mais  nova,  já  se  tinha  desenvencilhado  dela  há muito tempo. Sei o local – foi nesta casa, que era de sua família  ­,  mas  não  a  data.  Ficou­me  a  impressão  física  e  nunca  percebi  porque  se  endeusa  a  primeira  vez.  No  meu  caso  não foi a melhor,  nem  a  mais  terna,  nem  a  mais  desejada.  Foi  desajeitada,  rápida,  envergonhada.  E   sinceramente  não  me  recordo  se  já  era  casada  com  ele  ou  não.  É  um   pormenor  que  hoje  tanto  se me dá como se  me deu, mas na altura fazia a diferença entre o céu e o inferno… E  eu,  caso  céu  e  inferno  existam,  caso  a  virgindade  seja  mesmo  importante,  não  sei  neste  momento   de  quem  serei  inquilina  na  eternidade.  135   

  Penso  que  já  disse  que  Juan  Miguel  era  um   cavalheiro. Eu já  devo  ter  dito  muita  coisa  e  repetido  ainda  mais,  mas  que  hei­de  fazer?  Dizem­me  que  é  da  idade,  embora   eu  pense  que  os  velhos  repetem  as  coisas  porque  têm  a  certeza de que nunca são  ouvidos.  Se  o  fossem,  muitas  coisas  que  se  passaram  não  voltariam  a  passar­se…  mas,  a   verdade,  é  que  essas  coisas,  o  bem  e  o  mal,  acabam sempre por repetir­se.  Ele  era  um  cavalheiro,  Juan  Miguel,  e,  mais  do  que  namorar  comigo,  cortejou­me.  Pelo  menos   eu  entendo  que  assim  se  é  cortejada.  Ele  adivinhava  os  meus  desejos,  antecipava  as  minhas  aflições,  previa  os  meus  caprichos;  aplainava­me  o  caminho  e  eu  nada tinha de fazer senão deixar­me ir.  Até  então,  toda  a  minha a  vida fora deixar­me ir. Mas sempre  por  falta  de  outras  hipóteses.   Pela  primeira  vez  eu  ia,  mas  contente,  satisfeita,  convicta  de  que,  fossem  quais  fossem  as  alternativas  para  a  minha  vida,  nenhuma  seria  simultaneamente  tão  doce  e  agradável  como  esta.  Era  a  primeira  vez  que  um  caminho  diferente não seria fatal, miserável, famélico, degradante.  Eis  um momento da minha vida do qual  posso dizer que fui livre e  que  fui  feliz.  Fui  livre  e  feliz  com  Juan Miguel que me preencheu  o  ego,  me  elevou  a  auto­estima,  fazendo­me  sentir  bonita,  desejada, imprescindível. E que me fez mulher.  No  dia  em  que  me  pediu  em  casamento,  com  o  anel  com  o  pequeno brilhante, senti que tinha uma vida maravilhosa à frente.  Casámos  na  pequeníssima  capela da Beneficência Espanhola,  um  lugar  acanhado,  mas   mais  do  que  suficiente  para  os  poucos  que  éramos.  Os  pais  de  Juan  Miguel,   que  era  filho  único,  vieram  de  Silves  num  automóvel  preto,  severo.  Meu  tio,  que  ia  para  o  consultório  a  pé,  alugou  um  carro  com  motorista  para  não  fazer  má  figura,  um  BMW  onde cabiam  umas seis ou sete pessoas, para  além  do ​ chauffer​ . O Cônsul levou Nicolás Franco, que além de ser  da  minha terra, El Ferrol, se tornou o centro das atenções, como se  fosse  ele  a  noiva;  minha  irmã  Pilar,  que  por  essa  altura,  tal  como  eu,  trabalhava  no  Consulado,  levou  o  resto  da  legação  espanhola,  mais  uns  sócios  da Xuventude de Galicia e a Corte de Honor de la  Virgen  del  Pilar,  de  que  minha  mãe  era,  em  particular,  muito  devota,  tão  devota  como  só  os  bascos  sabem ser. Por sorte, estava  em  Lisboa  o  Arcebispo  de  Santiago,  que  sabendo  da  boda  e  da  presença  de  D.  Nicolás,  se  prestou  a  substituir  o  padre  Cuadrado,  oficiando  e  abençoando  ele  o  sacramento.  Tudo  correu  bem,  incluindo  o  copo  de  água  no  restaurante  de  um  galego  ali  para  os  lados do Lumiar.   Nesse  mesmo  dia,  depois  de  dormimos  num  espaçoso  quarto  do  Hotel  Avenida,  em  Lisboa  (onde  não  me  lembro  de  ter  tido  qualquer  contacto  íntimo  com   Juan Miguel), fomos para Silves no  135   

carro  enorme  de  Juan Miguel  e instalámo­nos nesta casa adorável,  junto  ao  mar. E foi aqui, com  o  barulho do mar por fundo  não sei  se  uma  semana  antes  do  casamento,  quando  estive  com  ele  e  minha  irmã,  além  dos  seus  pais  ,  se  já  casada  e  de  forma,  digamos,  legal,  que  Juan  Miguel  foi  o  primeiro  homem  que  tive  dentro de mim. E sê­lo­ia até à minha meia­idade.   É  daqui,  deste  casarão  suspenso  sobre  a  praia,  que  eu  hoje  miro  o  horizonte,  já  no  fim  do  dia  quando  a  linha  escura  desaparece  e  as  cores  se  esbatem,  como  se  esbateram  os  dias  felizes  do  encantamento,  do  namoro,  do  casamento,  dos  filhos,  dos  netos.  Todos  estes  dias  se  misturam  agora,  na  minha  cabeça,  com  os  dias  da  guerra,   da fome,  do  medo, da vergonha, da tensão,  da  angústia  e  juntos  constituem  esta  vida  que  eu  não  sei  se  me  mereceu  e  se  eu  a  mereci,  de  tal  modo  as  coisas  boas  e  más   se  anulam  e  me  deixam  com  o  sentimento  de  que  tudo  teve  um  desígnio  que  se  transformou,  depois,  numa  inutilidade  –  nem  o  sofrimento  me  faz  sentido,  nem  a  ventura.  Se  eu  tivesse  sido  apenas  feliz,  teria  a  felicidade  como  destino  e  viveria  no  melhor  dos  mundos;  se  tivesse  sido  apenas  desgraçada,  haveria  de  retirar  lições  e  talvez  me  sentisse  perseguida  por  uma  força  maléfica.  Mas  quando  tudo  se  mistura  e  nada  se  distingue,  a  sensação  de  uma  soma  zero  dá­nos   a  imagem  da  vacuidade,  da  ausência  de  propósito  de  uma  vida,  da  minha  vida,  e  mesmo  da  indiferença  dos  caminhos  do  bem  e  do  mal,  que  nos   escolhem  a  nós,  ou  que  nós  escolhemos.  A  menos  que  prolonguemos  a  nossa   vida  noutra…   Há  neste  vazio  um  sentimento  de  improbabilidade.  Por  que  não  morri  quando  morreram  meus  irmãos?  Porque  sobrevivi  à  tuberculose?  Porque  sobrevivi  aos  meus  filhos  Luís  e  Maria?  A  meu  marido,  que  hoje   fui  visitar  num  jazigo  exagerado,  alto  e  estreito,  luminoso e florido? A minha irmã Pilar? À minha querida  Madame​ ,  à  minha  pobre   Elena,  as  duas  maiores  amigas  que  jamais  tive?  Porque  sobrei,  depois  da  partida  de  tanta  gente?  Porque  fiquei,  porque  sou  ainda? Que sentido faço a outros, senão  dar­lhes  trabalhos,  tratarem  de  mim?  E  para  que  quero  viver, se o  fim  da  História  nunca  o  conhecerei,  nem  o  conhecerão  aqueles  que me seguem?  Só  ao  mar  tenho  a  certeza  de  que  não  sobreviveremos.  Ele  mantém­se  inalterado  e  majestoso  no  correr  dos  anos.  Do  mar,  sim,  podemos  apaixonar­nos  até  à  exaustão  da  entrega  total.  Jamais  nos  faltará  e  jamais  nos  fará  menos  do  que nos promete: a  presença  constante  e  ritmada,  a  força  total,  o  azul  imenso  e  um  ponto  para  olharmos,  lá  para  o  fim  de  onde  a  vista  alcança,  na  linha escura que o separa do céu.      135   

                          III – Raul     O  mar parece­me hoje um grande lago. O seu azul mantém­se  imperturbável,  mas   perdeu  os  pequenos  pontos  brancos  formados  pelas  ondas  que,  às  vezes,  o  pontilham.  Espraia­se  silenciosamente,  sem  qualquer escândalo, como se nas redondezas  alguém  estivesse  muito  doente  e  qualquer  incómodo  lhe  fosse  fatal.  É  um  mar   de  almirante,  como  dizia um amigo nosso, oficial  da Armada.  Crianças  brincam  lá  em  baixo  na  praia,  entrando  e  saindo  da  água, rindo­se muito alto. As pessoas atropelam­se, não há espaço,  não  há  um  milímetro  vago  na  areia,  como  se  o  que  tenho  à frente  já  não  pudesse  chamar­se  praia,  porque  já  não  o  é.  É,  quando  muito  uma  praça   movimentada,  de  chão  de  areia  e  à  beira­mar.  Uma  praia  não  é  isto,  uma  praia  é  uma  dádiva  da  natureza,   não  tem  altifalantes  com  músicas  brasileiras,  nem  rapazes em cima de  um  estrado  a  convidar  os  presentes  para  uma  aula  de  ginástica.  Não  tem  motas  de  água  a  quebrar  o  silêncio  do  vento e o piar das  gaivotas. Qual praia?    Quando  aqui  cheguei,  nos  anos   50,   a  praia  era  um  deserto.  Podíamos  andar  a  cavalo   ou   levar  um  barco  para  o  mar e, mesmo  no  pino  do  Verão,  como  agora,  não  havia  mais  de  meia­dúzia  de  banhistas,  além  de  pescadores  que  remendavam  as  suas  redes  e  a   quem  Juan  Miguel  comprava  peixe  fresco  que  assávamos  neste  quintal.  Como  tudo  mudou,  como  à  volta  de  minha  casa  se  construíram  estes  prédios  que  parecem  próprios  de  um  bairro  social,  como  agora  famílias  inteiras  passam  o  dia  debaixo  de  um  chapéu­de­sol,  a  alimentarem­se  de  porcarias  com  o  único  propósito  de  ficarem  tisnadas,  como  se  a  cor  bronze  da  pele  135   

pudesse ser um objectivo em si mesmo…  A  mulher  que  me  acompanha  e  ampara,  uma  espécie  de  empregada  e  simultaneamente  dama  de  companhia,  é  burra.  Eu  chamo­lhe  burra  cara­a­cara,  prerrogativa  que  me  dá  a  idade  avançada.   Ela  quer  à  força  que  eu  vá  tomar  banho,  diz  que  me  segura, insiste – a senhora gostava tanto de tomar banho no mar!   Eu  gostava  tanto  de  muita  coisa  que  já  não  posso  fazer,  Fátima.  Há  duas formas de morrer: ou de repente, quando estamos  cheios  de  saúde;  ou  aos  poucos,   como  me  vou  eu.  Deixo  de  ler  tanto,  porque  me  custa  imenso;   deixo  de  ver televisão, porque me  cansa  ler  as  legendas,  além  de  que  estou  a  ficar  surda  –  a  minha  filha  enche­me   de  aparelhos  auditivos,  mas  eu  prefiro  ouvir­me  a  mim  do  que  às  patetices  que  aí  se  dizem;  deixei  de  correr,  de  nadar,  de  viajar,  de  montar  a  cavalo,  de  comer  doces,  de  fazer  certas  coisas,  porque  não tenho  idade ­ como amar, por exemplo –  e  deixei  de  poder  ir   à  praia  sozinha porque uma pequena onda me  derruba,  porque  perco  o  sentido  de  orientação,  porque  tenho  momentos  em  que  não  me  lembro  onde  estou.  E  assim,  resumo­me  à  condição  de  ter  de  estar quase sempre acompanhada  por  uma  burra.  Coitada  da   mulher,  se  fosse  muito  inteligente  haveria  de  ter  arranjado  melhor  emprego  do  que  cuidar  de  uma  velha.  Disse­lhe  que  não  ia  tomar  banho,  que  fosse  ela.  E  ela  foi.  Abriu  o  pequeno  portão  da   casa  que  dá  directamente para a  praia,  passou  entre  as  toalhas,  com  um  biquini   que  mais  parece  um  conjunto  de  roupa  interior  garrido  para  o  qual  não  tem,  mesmo  ela,  idade  e  corpo,  e  entrou  na  água.  Invejei­a,  apesar  da  sua  enorme burrice.  O  mar  sempre  me  atraiu.  Em  Pontevedra,  que  é  donde  vêm  certas  recordações  mais  antigas,  via­o,  se  me  esticasse  em   bicos  dos  pés  na  varanda  de  nossa  casa.  Através  de  um  emaranhado  de  ruas  conseguia  ver  uma  nesga  daquele  azul,  que  no  Norte  é  acinzentado, por vezes de tons ameaçadores. No Verão íamos  a La  Toja  –agora  chama­se  A  Toxa,  como  a  minha  terra  se  chama  O  Ferrol  e  La  Coruña  passou  a  A  Coruña,  manias!  Direi  La  Toja,  que foi como a conheci.  Nesse  mar  frio,  se   eu  nadei,  meu  Deus!  Nas ​ Rías Bajas tinha  alguma  liberdade,  todos  conheciam  minha  família  –  os  pescadores,  os  donos  das  pequenas   tascas  de El Grove, os rapazes  que  mergulhavam  das  plataformas  de  madeira  –  as  ​ bateas  de  onde  pendiam  as  cordas  para  apanhar  o  mexilhão.  Podia  andar  pela  terra,  com   os  meus   irmãos,  ou  mesmo só  com Pilar enquanto  os  rapazes  se   entretinham  nos  seus  jogos  próprios,  sem  temer que  nada  de  mal  nos  acontecesse  nem  ter  de  cumprir à risca  as ordens  militares  de  meu  pai.  Dos  meus  períodos  breves  de  felicidade,  Pontevedra  e  La  Toja  podem  juntar­se  aos  dos  primeiros  anos  do  meu casamento.   Foi  em  La  Toja  que  pela  primeira  vez  me  senti  rapariga  135   

desejada.  Foi  um  quase  nada   que  me  acompanhou  toda  a  vida  e  que  hoje  recordo   com  pormenores  que  me  parecem incrivelmente  próximos,  se  pensar que passaram muito  mais de 70 anos. O rapaz  chamava­se   Carlos  e mergulhava muito elegantemente das ​ bateas​ ,  nitidamente  por  exibicionismo   –   sei­o  hoje  com  a  experiência  da  vida.  Mas  não  o  sabia  na  altura  e,  para ser totalmente honesta, ele  não  o  saberia,  também,  apenas  cumpria  a  sua  parte  do  destino  darwiniano,  tal  como   os  pavões abrem as caudas e certos pássaros  cantam particularmente bem na época do acasalamento.  Eu  tinha  cerca   de  13  anos  e  estava  com  Pilar.  Ele  já  deveria  andar  pelos  16.  Era   moreno,  alto  e  esguio  e  tinha  um  cabelo  incrivelmente  bonito  que  lhe   pendia  numa  ripa  que  parecia,  mas  não  era,  descuidada,  mais  sobre  o  lado direito do que sobre o lado  esquerdo.  Vestia  uns  calções  pelo  joelho  e  uma  espécie  de  camisola  interior,  que  molhada  se  colava  ao  corpo,  mostrando  os  seus  contornos.  Propôs­se  ensinar­nos a mergulhar com perfeição,  entrando  de  cabeça,  para  logo  fazer  um  golpe   de  rins  a  fim  de  imediatamente  voltarmos  à  superfície.  Assim  que  soubéssemos  bem  aquela  técnica,  ainda que atirando­nos de uma pequena rocha  apenas  um  palmo  acima  das  águas,  poderíamos saltar de qualquer  lado, mesmo de arribas a 10 ou 20 metros.   Eu,  infantil,  e  Pilar  ainda  mais,  aceitámos  imediatamente.  O  rapaz  começou  comigo e, vendo de hoje, sei que aproveitou bem a  situação,  colocando­se  atrás de mim, com a sua boca junto ao meu  ouvido  e enlaçando­me com os braços para me explicar o golpe de  rins, enquanto dizia a Pilar:  ­ Olha bem para a tua irmã, porque vais fazer o mesmo.  A mim os seios já tinham despontado, mas Pilar, apesar de ter  apenas  menos  ano  e   meio   do   que  eu,  continuava  a  parecer  uma  menininha,  que  aliás  se  ria,  talvez  dando  mostras  de  perceber  melhor  do  que  eu  o  que estava em curso. O rapaz insistiu bastante  no  meu  movimento  de  ancas  e  no  golpe  que  tinha  de  fazer,  esticando  o  peito  para  a  frente assim que entrasse na água. E,  com  estes  entretantos,  nunca   mais  dava  o  mergulho,  insistindo  Carlos  em mais uma vez, até o movimento estar perfeito.  Eu  gostei  de  o  sentir  assim,  encostado  a  mim,   a  camiseta  molhada  contra  o meu fato  de banho que, como todos os da altura,  era  praticamente  um  vestido  com  umas  calças  que  chegavam  ao  joelho.  Gostei  e  ainda   hoje  o  sinto,  embora não sinta exactamente  o que senti na altura, pois também a idade mo tirou…   Finalmente,  Pilar, já completamente  esclarecida, atirou­se  por  conta  própria.  Carlos  desaprovou  o  movimento,  mas  não  o  corrigiu  com  ela  directamente, aproveitando para  mais um ou dois  exemplos  praticados  comigo.  Depois,  atirei­me  eu  mesmo à água,  e  ele  –  aplaudindo  –  quis   explicar  um  pouco  melhor  a  técnica  e  voltou  a  enlaçar­me,  desta  vez  mais  forte.  Os  dois  corpos  135   

molhados  e  salgados  encontraram­se  e  eu  senti  o  que  jamais  esqueci.  Nessa  noite,  na  cama  da  nossa  casa  alugada  em  La  Toja,  dei  voltas  sobre  voltas,  até Pilar – com  quem partilhava o quarto – me  perguntar  o  que  se  passava.  Com  vergonha,  não  lhe  disse  que  pensava  em  Carlos.  E,  no  dia  seguinte,  olhando  aquele  horizonte  em  que  contrastava   a  calma  das  rías  com  a  tormenta  do  mar  aberto,  tive  vontade de regressar às lições de mergulho. Sem saber  como  dizê­lo  a  Pilar,  que  não  me  largava  um  minuto,  fomos  andando  na  direcção  da  reentrância  onde  estava  a  pequena  rocha  que nos servira de palco para as aulas. De Carlos, nem sinal.  Nunca  mais  o  vi  mas,  ao  longo  da  vida,  quando  olho  o  mar,  sinto  por  vezes  os  seus  braços   e  o  seu  corpo  no  meu.  Não  passa  disto,  nem  vale  mais  do  que isto a minha breve experiência com o  rapaz  mergulhador  de  El  Grove.  Porém,  o  facto  de  ter  ficado  tantos  anos  –  75  esta  recordação  dentro  de  mim,  que  pode  significar?  Que  estou  recalcada,  que  o  deveria   ter  procurado  insistentemente,  que  me  deveria  ter  oferecido?  Às  vezes  quando  ouvia  certos  psicólogos  na  televisão  ou  na  rádio,  era  essa  a  impressão  com  que  ficava.  Que nestes tempos modernos, todos os  desejos  têm  de  ser  consumados,  como   se  os  instintos  animais  do  nosso  corpo  devessem comandar a nossa razão; como se fôssemos  seres  desprovidos  de  pensamento,  apenas  revestidos  de  emoções  caprichosas  que  mandariam  em  nós,  desapiedadas,  levando­nos  a  becos  sem  saída,  a  vidas  desesperadas  que  trocaríamos  por  um  breve  momento,  um  breve  encosto,  uma  breve  troca  do  mar  que  havia  nele,  pelo  mar  que  em  mim  havia.  Não  posso  concordar  –  basta  lembrar­me   de  minha  filha  Maria  e  tenho­o  dito  muitas  vezes  a  Madalena  e  até  à  rapariga  que me acompanha. E ei­la que  agora  volta,  num  rali  entre  as  toalhas  de  praia, à minha frente! Eu  digo­lhe  sempre  que  a  vida não é feita de caprichos, a ela, Fátima,  que  é  burra  mas  quer  ser  moderna,  que se  divorciou com mais de  50  anos  e  tem  um  namorado  por  quem  me  troca  aos  fins­de­semana,  quando  aparece  a  minha  filha  e  o  meu  genro,  ou  as minhas netas com os seus maridos e as minhas bisnetas.  Mas  que  pode  uma  velha  fazer  para  convencer  o  mundo?  Nada!  Deixar­se  estar  a  ver  o  mar.  Quem  pode  explicar  que  a  hipocrisia  do  meu  tempo  era  o  cimento  da  sociedade,  quando  a  hipocrisia  é  vista  hoje  como   o   pior  dos   pecados?  Como  explicar  que  o  sentimento  que  na   altura  senti  pelo  mergulhador  Carlos  era  meu  e  só  meu,  não  partilhável  nem  com a minha irmã­confidente,  menos  ainda  com  meu   pai?  Como  explicar que um pai e uma mãe  não  existem  para  ser  amigos,  para  ser,  como  agora  se  diz,  uns  tipos  porreiros?  Como  explicar  que os pensamentos, sejam eles os  mais  vergonhosos,  os  mais  ousados,  os  mais  inexplicáveis,  são  nossos,  são  pessoais,  são  íntimos  e  não  são  bens  partilháveis  à  disposição de quem quer que seja?  135   

Lá  vem  a  Fátima  enrolada  numa  toalha,  com  um  sorriso  estúpido  estampado  no  rosto,  a dizer­me – Venha! Venha! A água  está óptima! Eu seguro­a!  Não  percebe  que  eu  quero  que  Carlos  me  segure  e  me  diga  outra  vez  como  fazer  aquele  movimento,  afagando­me  com  os   braços  a  curva  dos  seios  que  então  nasciam.  Não  entende  que,  com  esta  idade,  ainda  é o mesmo motor – o pensamento – que nos  faz  seguir  viagem  e  que  decide  o  que  queremos  e  não  queremos.  Pensa  que  está  a  ser  boazinha  para  mim.  Pois  serei  má  para  ela,  em  recompensa.  Atribuirá  o  desvario  à  idade  avançada  e  eu  divertir­me­ei.  A  perversidade  não  é  coisa  que  passe  com   o   tempo!    Tomei  um  chá  frio,   que  a  Fátima  me  trouxe  com  umas  torradas,  e  ouço  agora  os  primeiros  sinais  do  fim  do  dia.  As  pessoas  fecham  as  inúmeras  cadeiras  de  praia  –  é  notável  a  quantidade  de  mobiliário  que  alguns  carregam,  em  contraste  com  outros  que  apenas  trazem  a  toalha  –  e  os  banheiros  começam  a  fechar  os  toldos.  O  Sol  inicia  a  queda  para  se  pôr  para  as  bandas  da  Senhora  da  Rocha,   projectando  na  minha  direcção  a  enorme  sombra  de  uma  palmeira.  Lá  para  as  10  da  noite,  comerei  um   prato  de  sopa  e  tentarei  que  a  burra  me  leia  qualquer  coisa,  mas  ela  lê  mal  que  se  farta;  acho  que  a  leitura  dela  consegue  tornar  Tchekov num escritor banal. E estúpido.  Que  falta  me  fazem as pessoas com quem discutia literatura  e  música.  Todas  mortas!  Não  vejo   a  minha  filha  senão de 15 em 15  dias  e  ela  preocupa­se demais comigo para me poder levar a sério.  As  conversas  comigo  não  passam  de  preocupações:  Tens  frio?  Tens  fome?  Não  queres  uns  sapatos  mais  confortáveis?  Fala­me  em  espanhol,  acho  que  convencida  de  que  eu  a  compreendo  melhor,  e  eu respondo­lhe na minha língua. Leva­me à missa, mas  eu nem sempre oiço o padre, o que tanto me faz porque eles dizem   sempre  o  mesmo,  embora  –  e   é  isso   que  me  interessa  –  eu  não  pense  sempre  o  mesmo.  E  eis  outra  coisa  difícil  de  explicar  aos  jovens – a religião. Também não vou tentar, é impossível…  De  súbito  tive  um  lampejo  da  pequena  igreja  de  El  Grove,  onde  me  ajoelhei  aos  pés  da  Virgen  del  Pilar.  Pedia  perdão  por  Carlos,  pelo  mal  que  lhe  fiz.  Fui  egoísta,   não  pensei  nas  más  consequências  que   a  minha  leviandade  poderiam  trazer  ao  rapaz.  Tinha  sabido  que  na  mesma  tarde  em  que  ele  me  ensinara  a  mergulhar,  o  meu  irmão  mais  velho,  Raul,  se  acercara  dele  e  lhe  dera  uma  sova  tão  grande  que  foram  precisos  dois  ou  três  pescadores  implorarem  para  que  ele  parasse,  para  que  se  acalmasse  e  deixasse  de  bater  no pobre mergulhador. Carlos ficou  tão mal tratado que não saiu de casa até nos irmos de La Toja.   Eu  odiei  Raul  e,  no  momento  em  que  soube   do   135   

espancamento,  desejei  a sua morte. Por isso também me ajoelhava  na  igreja  de  El  Grove;  e,  ainda  por  isso,  haveria  de  ter  anos  de  tormento,  quando  Raul  morreu,  sendo  a  primeira  tragédia  na  sequência  infernal  que  haveria  de  viver.  Na  altura,  achei  que  o  facto  de  ter  desejado  a  sua  morte  a  tinha  acelerado,  como  se  tivesse  poder de vida e de morte sobre alguém, que não sobre mim  própria.  Hoje,  o  que  sinto por esse meu irmão colérico e zangado com  o  mundo  são  apenas  cinzas.  Compreendo que o seu destino, como  o  meu,  estava  marcado  e  que  a  ideia  de  ter  sido eu a influenciar a  sua  morte  é  pretensiosa  e  tola.  Tão  tola  como  pensar  que  o  facto  de  este  mar  estar  calmo,  tem  a  ver  com  a  paz  com  que  eu,  hoje,  consigo  falar  de  Carlos  e  de  Raul  sem  me  sentir  culpada,  sequer  triste.  Apenas  resignada,  como  o  mar  que se espraia de mansinho,  sem escândalo, sem emoção, sem vida.                                                  135   

  IV – O jugo e as flechas    Mais  ou  menos  a  meio  deste  manto  azul  de  mar, o tom muda  de  ligeiro  para  carregado.  É  uma  linha  precisa, direita, que parece  dividir  em  dois  campos  distintos  a  massa  de  água   que  a  minha  vista  alcança.  Nunca  soube  a  que  se  deve  este  fenómeno,  e  acho  que  nunca  perguntei  a  quem  possa  explicá­lo.  Primeiro,  pensei  que  tal  se  devesse  à  profundidade  das  águas,  mas  essa  teoria  não  tem  consistência,  uma  vez  que  nem  sempre  os  dois  tons  existem,  ou  surgem  de  forma  nítida,  como  também  nem  sempre  estão  no  mesmo  sítio.  Hoje,  porém,  é  risca  ao  meio.  A  linha  divisória  reparte­me  em  três  o  campo  de  visão:  mais  claro  o  mar  perto  da  areia,  mais  escuro,  lá  ao  longe,  e  depois  o  céu,  com  o  azul  mais  claro de todos.  Estou  sentada  no  meu  habitual   posto,  depois  de  tratada  –  penteada,  escovada  como  os  cães  –,  por Fátima, que me prepara o  pequeno­almoço  com  a  sua  natural  e  estúpida  alegria  das  pequenas  coisas.  Veio  de  fim­de­semana  e  deve  ter  passado  bons  momentos  com  o  namorado,  parece  uma  pilha  recarregada  –  fala,  fala,  fala  e  sente­se  que  tinha  vontade  de  me  contar  com   pormenores  as  porcarias  que  fez  com  ele,  desse­lhe  eu  a  mínima  abertura  ou  confiança.  Um  dia  que  esteja  mais  enfadada,  e  sem  saber que fazer, dar­lhe­ei essa alegria…  A  minha  relação  com  as  pessoas  simples  sempre  foi  –  como  dizê­lo?  complicada.  Acho  que  me  posso  considerar  um  pouco  snobe, mas não excessivamente. Na verdade, nunca vi nos homens  e  mulheres  mais  simples  menos  malícia,  menos  oportunismo  ou  menos  ganância  do  que  nos  cultos  e  ricos.  Nisso,  valha­me Deus,  somos  iguais.  Iguaizinhos  como  as  gotas  de   água.  Também  não  me  parece  que  alguém  se  porte  melhor  ou  pior  consoante  a  necessidade  que   tem.   Esta  mulher  que  me  acompanha  há  anos,  além  de  ser  de  uma   fidelidade  canina  é  de  uma  honestidade  total,  disso  não  tenho  quaisquer  dúvidas.  Mas  tem  o  seu  lado  negro,  perverso  e  intriguista que me desagrada. Qual será o meu lado que  a  deixa  furiosa?  Talvez  este  distanciamento,  este  tratamento  desumano  a  que a submeto, chamando­lhe nomes como estúpida e  burra,  em  português,  ou  ​ cochina  marrana  em  espanhol,  que  é  aquele  que  mais  vezes  me  sai.  Esse  distanciamento  que me leva a   recusar a ideia de ela me contar histórias da sua vida:  ­ Quer saber que a minha filha está grávida outra vez..  ­  ​ Y  a  mi  qué​ ?  –  Respondo­lhe,  de  propósito,  frisando  não  ter  nada  com  isso  e  recusando­me  a  ouvir  a  história  da  filha,  que  no  entanto  conheço  de   trás  para  a  frente,  tantas  vezes  a  contou.  É  como  a  sua  história  com   o   namorado,  como  o  encontrou,  como  começou  a  namorar.  Sei  o  que  ela  me  quis  contar,  porque ouvi as  135   

suas  conversas  ao  telemóvel  com  amigas  –  ela  fala  tão  alto  que  mesmo  para  alguém  meia  surda  como  eu  é  fácil  ouvir.  Mas  sempre  recusei   que  fosse  ela  a  contar­mo  directamente.  Não  lhe  dou  essa  confiança,  e  ela  parece  não  se  importar.  Diz  sempre  coitadinha,  referindo­se  a  mim.  A  sua  mãe,  coitadinha,  está  tão  mazinha  para  mim…  Pobre  Fátima,  tenho  pena  dela,  mas  por  vezes invejo a sua simplicidade e a simplicidade da sua vida.    Muito  amiúde  passam  aviões.  A  praia  já  não  é  silenciosa  como  dantes  e  tiveram  de  inventar  três  coisas  que  são  a  desgraça  de  quem  quer  usufruir  o  mar:  a  música na praia, as motas de água  e as avionetas que passam com reclames. ​ Foam party não sei onde  dizia  uma  faixa  arrastada  por  um  desses  aeroplanos.  Nem  sei  o  que possa ser uma festa de espuma, mas enfim…  Às  vezes  estes  aviões,  só   com  um  motor e com o seu barulho  característico,  trazem­me  à  memória  os  aviões  em  Espanha.  Foram  um  terror…  Eu  sinto­me,   de  novo,  pequena  e  aterrada  a  querer a minha mãe e a recordar os anos terríveis.  Tudo começou com a queda de Alfonso XIII. Meu pai, depois  de  vir  do  Norte  de  África,  onde  prestara  serviço  como  oficial  do  Exército,  e  de  estar  uns  anos  colocado  em  Pontevedra,  foi  chamado  para  a  Casa  Militar  de  Sua  Majestade.  Foi  então  que  mudámos  todos  para  Madrid,  para um  apartamento num prédio de  uma  rua  estreita  perto  das  Puertas  del  Sol.  Em  1931,  o  rei  foi  afastado  pelos  republicanos,  mas  eu  pessoalmente  quase  não  dei  por  nada,  salvo  pelo  abrandamento  militar  do  meu  pai,  que  se  tornou  mais  próximo,  estando  mais  tempo  em  casa  e tornando­se,  talvez,  menos rígido. Continuámos, no entanto, a viver em Madrid  e  a  passar  férias  em  La  Toja  e  em  Pontevedra,  na  antiga  casa que  ainda  era  nossa,  e  na  tal  praia  que  me  escapa  o nome, ao pé de El  Ferrol, onde minha avó tinha um casarão enorme frente ao mar.   Aparentemente,  pelo  menos,  a  vida  continuava  como  até  então,  com  a  excepção,  nem  sempre  óptima  do  nosso  ponto  de  vista,  de  que  o  meu  pai   estava  mais  em  casa.  Porém,  um  dia,  talvez  uns  três  anos  passados  sobre  o  afastamento  do  rei,  uma  tensão  terrível  abateu­se  sobre  a  família.  Uma tensão que deixaria  marcas  profundas  em  todos   nós  e  seria  o  início  de  uma  série  desgraças  que  me  moldaram  e  endureceram  e   fizeram  de  mim  o  que  sou  hoje  –  uma  mulher  que  se  interroga  se  viveu,  ou  apenas  assistiu  a  um  drama  a  que  pode  pôr  um  fim,  mas  não  quer,  como  quando  vemos  um  filme  mau,  mas  resistimos  em  sair dele porque  qualquer  coisa  nos  diz  que  devemos  ficar  até  ao  fim,  para  conhecer em pormenor tudo o que desagradável tinha a história.  Nesse  dia,  Raul,  que  andava  pelos  19  anos,  chegou  a  casa  com um ar esgrouviado, o cabelo em desalinho e as faces coradas.  Tinha estado manifestamente  a beber e o meu pai iniciou uma  135   

discussão  com  ele.  Passados  que  eram  poucos  meses  sobre  o  incidente  com  o  mergulhador  de  El  Grove,  eu  torci  insistentemente  para  que  meu  pai  o  castigasse.  E,  pouco  depois,  foi  o  que  aconteceu:  fora  de  si,  tirou  o  cinto  do  seu  uniforme  militar  e  deu  com  ele  várias  vezes  no  corpo  de  Raul  que  apenas  gritava  não,  não,  não.  Ao  contrário,  o  meu  pai,  em  voz  baixa,  dizia­lhe:  não   te  quero  com  essa  gente,  com  esses  desordeiros.  Sobretudo não te quero com esse ​ pendenciero​  do Redondo1!  Esbaforido, Raul bateu com a porta de casa e saiu a correr. 

Meu  pai  tentou  acalmar­se  com  uma  bebida.  Era  a  primeira  vez  que  o  via  bater  num  dos   filhos  e  estava  manifestamente  descontrolado.  Depois  levantou­se,  foi  para  o  quarto,  onde  debateu  largamente  com  minha  mãe  um  assunto  qualquer.  Saiu  e  chamou­nos a todos para dizer:  ­  Meus  filhos,  não  têm  nada  que  perceber a estranha situação  que  vivemos  neste  país.  Como  sabem,  o  regime  Republicano  depôs  Sua  Majestade,  para  o  gabinete  de  quem  eu  trabalhava.  Como  oficial  espanhol,  sou  leal  ao  poder  legítimo  de  Espanha.  Não  me  agrada  este  Governo,  mas  menos  me  agradam  conspirações.  Não  posso  consentir  que  o  vosso  irmão  –  o  meu  filho  –  Raul ande metido com homens que  conspiram abertamente  contra  o  nosso  Governo,  que   tentam  golpes  de  Estado  como  o  de  Sanjurjo2,  e  que  têm por modelo os regimes alemão e italiano, que  são  desumanos  e  anti­cristãos.  Como  compreendem,  se  o  actual  Governo  apanha  Raul,   vai  relacioná­lo  comigo,  e  depois  que  será  de  nós?  Quem  ganhará  o  pão  que  vos  sustenta?  Por  isso vos peço  ajuda  e  colaboração:  façam  ver  a  Raul  o  mal  que  ele  nos  está  a  fazer  a  todos,  por  favor  e  dirijo­me  sobretudo  a  vocês  Enrique  e  Eduardo,  que  são  rapazes  e  têm  quase  a  idade  de  Raul,  não  se  metam  nisto,  os  tempos  estão  difíceis,  conturbados,  mas  com  a  ajuda  de  Deus  havemos   de  superar  esta  fase,  havemos  de  nos  rir  destes episódios.  Dito  isto,  chamou­nos  para  rezar,  o  que  fizemos,  pedindo  a  Deus  que  nos  livrasse do mal da guerra e das rebeliões de rua, que  eram cada vez mais e maiores.    Eu  nunca  quis  saber  de   política.  Mas  com  o  discurso do meu  pai  fiquei  a  odiar  a  Falange  e  o  tal  Redondo,  juntamente  com  o  Ledesma  e  o  Primo  de  Rivera  e  todos  aqueles  que  o  meu  pai  ia  nomeando  como  inimigos  de  Espanha,   incluindo  alguns  dos  ministros  dos  governos  de  então.  Tanto   quanto  me  lembro hoje, a  monarquia  caiu  numas  eleições  locais  de  que  nunca  se  contaram  1   Onésimo  Redondo  Ortega  (1905­1936)  Fundador  da  JONS   que  se  juntou  à  Falange.  Estudou  na  Alemanha  onde  terá  tido  contactos  com   o  Partido  Nazi  de  Adolfo  Hitler,   levando  para  Espanha algumas das suas ideias centrais. Natural de Vaiadollid, foi considerado o Caudillo de Castela.  2   José  Sanjurjo,  general  espanhol  que  tentou  um  golpe   de  Estado  em  Sevilha,  em  1931,  conhecido  por  ​ sanjurjada​ .  Teria  sido  ele   a  liderar  a  sublevação  1936,  mas  um  acidente  aéreo  em  Portugal tirou­lhe a vida, deixando Franco no comando. 

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todos  os  votos,  mas  em  que,  ao  contrário  do  que  se  passou  na  província,  em  Madrid  e  Barcelona  os  republicanos  venceram  largamente.  Seguiram­se  umas  constituintes  ganhas  pela esquerda  e  um  governo  com  muitos  socialistas  em  que   o   homem  forte  parecia  ser  Azaña  e,  dois  anos  depois,  em  1934,  o  centro­direita  conseguiu  vencer,   tornando­se  Gil  Robles  e  Lerroux  a dupla mais  poderosa.  Percebo  hoje  que,  estando  o  centro­direita  no  Governo,  o  pior  seria,  para   pessoas  moderadas  como  o  meu  pai,  deixar  a  extrema­direita  à  solta  e  permitir  provocações  que  seriam  bem  aproveitadas  pelos  anarquistas e pelos esquerdistas em geral. Mas,  na  época,  o  meu  ódio  nada  tinha  de  raciocino  político.  Eu  não  perdoara,  ainda,  a  Raul,  por  um  lado,  e  entre  ele  e o meu pai, que  eu  idolatrava,  não  podia  haver  escolha. Foi por estes dois motivos  que  um  dia levei a meu pai um crachá, um emblema que encontrei  num  sofá  caído  do  bolso  das  calças  de  Raul.  Nesse  emblema,  viam­se  cinco  flechas  e  um  jugo  (com  que  se  mantém  junto o par  de  bois que puxa um carro) – era o símbolo da Falange e que tinha  sido, no século XV, o símbolo dos reis católicos.   Meu  pai  agradeceu­me.  Chamou  Raul  e,  desta  vez  tudo  se  passou  em  voz  baixa.  Nessa  noite,  Raul  saiu  de  casa  e  a  partir  da  manhã  do dia seguinte,  meu pai disse que tinha menos um filho do  que  aqueles  que  Deus  lhe  tinha  dado.  Não  mais  se  falou  de  Raul  naquela  casa; mesmo com  minha  mãe, só muito mais tarde, depois  da  guerra,  ganhámos  coragem  para  falar  abertamente  dele.  Mas  tanto  se  passaria  ainda,   tanto,  tanto,  tanto,  que  meu  pai  nunca  soube  o  destino  de  Raul,  nem  Raul  soube  o  destino  de  meu  pai,  nem o meu, o de Pilar ou o de minha mãe.  A  sucessão  de  factos  que  faz  a  história,  apesar  de  ser  um  encadeado,   leva  direcções  inesperadas.  Quem  diria  que,  pouco  depois,  em  1936,  a  esquerda  voltaria  ao  poder,  sob  a  forma  de  Frente  Popular  e  que  Francisco  Franco,  que  se  celebrizara  na  repressão  dos  mineiros  das  Astúrias  e  estava  então  colocado  nas  Canárias  –  e  com  quem  o  meu  pai  estivera  no  Norte  de  África  ­  faria  um  pronunciamento?  Quem  poderia  apostar,  que  meu  pai,  que  sempre  tivera  um  enorme  desprezo  por  Franco,  a  quem  chamava  El  Paco,  seria  preso  preventivamente  pelos  vermelhos,  porque  só  o  facto  de  ter  servido  na  Casa  Real  e,  sobretudo  em  África,  ao  mesmo  tempo  que  o  Caudillo,  o  tornava  suspeito  aos  olhos  radicais  do  governo  da República? Quem diria que meu pai,  tão  forte,  sempre  cheio  de  saúde,  contrairia  na  prisão  uma  infecção  de  que  havia  de falecer, ainda em Agosto de 1936, muito   antes  de  se  saber  para  que  lado cairia o poder em Espanha? Quem  poderia  adivinhar que  um pouco antes, em Julho, no dia 24, o meu  irmão  Raul  seria  emboscado  por  soldados  anarquistas,  em  Labajos,  perto  de  Segóvia,  onde  caiu  morto, ao lado de Redondo?  Quem  poderia  supor,  que  nesse  mesmo  fatídico ano de 1936, com  apenas  15  anos,  eu  saberia  da  morte  de  meu  pai  e  de  meu  irmão  mais  velho  e  que  os  dois meus outros irmãos – Enrique e Eduardo  135   

–  se  poriam  em  marcha  para  irem  ter  com  as  tropas do Caudillo a  Ferrol,  oferecendo­se  como  voluntários  dos  nacionalistas?  Quem  se  atreveria  a  dizer  que  eu,  nesse  mesmo  mês,  aceitando   um  convite  de  uma  amiga  que  fora  nossa  vizinha  em  Pontevedra  e  o  era  de  novo,  agora  em  Madrid,  decidiria  ir  passar  duas  semanas a  Ayllón,  a  escassos  140  quilómetros  de casa, e que por ali acabaria  por  ficar  quase  três  anos,  separada  de  minha  mãe  e  de  Pilar,  que  aguentaram  a  guerra  na  capital,  do  lado  dos  ​ rojos​ ,  enquanto  eu  ficava  do  lado  dos  nacionalistas?  E  que não voltei a ver meu pai e  os  meus  três  irmãos,  e  que,  no  fim  da  guerra,  de  toda  a  família  sobrávamos três: eu, Pilar e ​ mamaíta​ ?   

Ao  longo  da  minha vida, muitas pessoas me vieram dizer que  tinham  problemas  graves.  Que  o  filho tinha papeira, ou que o gato  estava a morrer. Sempre  as ouvi com atenção e sempre as poupei à  ideia  do  que  era  um  problema.  Eu,  aos  15  anos,  perdi  metade  da  minha  família,  vivia  aterrorizada pelo barulho dos aviões italianos  (os  nossos,  os  nacionalistas)  e  russos  (os  ​ Rata​ ,  os  deles,  os  republicanos,  ou  ​ rojos​ ),  com  frio  na  serra  gelada,  com fome, com  medo,  sem  saber  se  minha  mãe  e  meus  irmãos  estavam  vivos  ou  não,  culpando­me  pelo  facto  de  em  Ayllón  não  haver  guerra,  apenas  aviões  a   passar,  vindos  de  Burgos,  os nossos, vindos sei lá  de onde, talvez de Sagunto, os deles. Isso foi um problema, sim!   Isso foi um problema!  O  mar  não  se  queixa,   como  eu  não  me  queixo.  A  risca  que o  divide  está  lá,  como  esteve  nos  mapas  da guerra civil, nos tempos  que  me  deixei  ficar  em  Ayllón,  à  espera de um nada. De um lado,  berrava  a  Pasionara  que  não  passariam;  do  outro  queriam  por  força  ir  a  Madrid.  Quem  se  preocupava  com  uma  miúda  que  apenas  queria   a mãe? Nas guerras não se pode dizer que queremos  a  nossa  mãe;  nas  guerras  somos  todos  crescidos,  sabemos todos o  que  fazer,  sabemos  todos  os  sacrifícios  que  nos  pedem;  nas  guerras  somos  maus,  não  somos  nós  próprios,  somos  egoístas,  ladrões,  anti­sociais  e  cobardes;  nas  guerras  não  nos  arrependemos,  porque  estamos  ocupados  em  viver;  e  não  pensamos  e  não  agimos,  ou  porque  não  podemos,  ou  porque  estamos transidos.   Nas  guerras  seremos  como  o  mar  –  flexíveis,  mas  fortes,  traiçoeiros,  mas  fortes,  imprevisíveis mas fortes. Fortes como só o  mar sabe ser.              135   

                                    V – Ayllón    O  vento  virou  para  Norte  e  sopra  agora  contra  a  vontade  do  mar,  provocando­lhe  pequenas  rugas,  aqui  e  ali,  ondas  que  inesperadamente   mostram  as  suas  minúsculas  cristas  de  espuma,  ainda  que  apenas  por  um  instante,  pois  logo  se  subjugam  ao  imenso manto de azul que persiste em ficar devidamente alisado.  Esta  noite  sonhei  com  um  mar  que  não  este, um mar que não  era  o  meu.  Tinha altas ondas que no seu refluxo me puxavam para  ele,  como  se  sugassem  os  meus  pés,  que  se  enterravam  cada  vez  mais  na  areia,  para  não  partirem  em  direcção  às  ondas  que  desabavam,  altas,  um  pouco  à  frente.  Mesmo  junto  ao  local  onde  estava,  havia  enormes  rochas  e,  no  cimo  de  uma  delas,  furada  a  meio,  estava  a  Virgem  dos  Rochedos.  No  entanto,  não  era  Biarritz,  nem  era  a  Praia  de  Santa  Cruz,  mas  sim  um  local  inexistente  onde  fosse  possível  a  fusão   das  duas  praias  tão  longe  uma da outra.  O  mar  insistia  em  ter­me  com  ele,  puxando  cada  vez  mais  forte,  e  eu  virava  para  terra,  para  minha  mãe  e  gritava­lhe  –  Por  favor,  puxa­me  para  ti,  eu  não  consigo  sair  daqui  –  mas  ela  parecia  distraída,  ausente,  a  falar  com  uma  senhora   e  eu  lutava  com  o  mar,  lutava,   lutava…  Até  que  lhe  disse,  aparentemente  de  135   

uma  forma  bastante  compreensível  para  o  mar,  uma  frase   que  me  ressoa  esta  manhã   na  cabeça:  Hei­de  ir  contigo,  mas  não  aqui,  chama­me numa praia que eu conheça.  Nunca  acreditei  que  os  sonhos  tivessem  significados  ocultos,  ou  revelassem  algo  de  especial.  Talvez,  isso  sim,  nos  levem  a  recordar  pessoas,  locais,  factos  que  tínhamos  esquecido  ou  enviado  para  locais   recônditos  da  memória,  mais  nada.  Ora,  se  o  objectivo  for  este,  meu  sonho  conseguiu­o.  Lembrei  Pilar  e  a  sua  casa  (ou  melhor,  a  casa  de  seu  marido)  na  Praia  de  Santa   Cruz,  onde  o  mar  é  assim  forte  e  nos  puxa  para  ele;  e  recordei  Biarritz,  para  onde  fui  com  minha  mãe  e  Pilar,  mal  nos  reencontrámos  no  fim da Guerra Civil, em 1939.   Biarritz  foi  a  nossa  América,  o  local  para  onde  sonhei  fugir  durante as agruras daqueles anos.   Perdida  em  Ayllón,  não  soube  da  sorte   de  minha  família  até  que  um  esquema  bizarro  e  tortuoso  nos  conseguiu  pôr,  de  novo,  em  contacto.  As  primeiras  notícias  foram  animadoras,  sobre  a  saúde  de minha mãe e de Pilar. A última foi terrível: Enrique tinha  sido morto em combate.   Mas arrumarei a memória, tanto quanto o conseguir.   Eu  tinha  ido  para  Ayllón  porque  esta  pequena  vila  medieval  era  a  terra  (ou  ele  apenas  teria  lá  uma  casa?)  de  Manuel  Blanco,  um  querido  amigo  de  meus  pais.  Manuel  e  Dolores  tinham  uma  filha,  chamada  Elena,  que  se  tornara  uma  das  minhas  mais  constantes  companhias  em  Pontevedra  e,  depois,  em  Madrid,  quando  também  Manuel   ali   foi  colocado  num  departamento  público.  Meu  pai  conseguira  alugar­lhe  um  apartamento  muito  próximo  do nosso, de modo que voltámos, como em Pontevedra, a  ser  vizinhos.  Passava  os dias em casa deles,  assim como Elena em  minha  casa,  as  nossas  brincadeiras  eram  constantes,  e  isso  agradava  aos  pais  de  ambas,  que  mantinham  uma  amizade  forte  que chegava à cumplicidade.  Pouco  antes  de  a  guerra  eclodir,  estava  combinado  que  eu  acompanharia  Elena  e  os  pais a Ayllón, para umas curtas férias de  15  dias.  Não  sabíamos,  claro,  que  o  dia  em  que  partimos  seria  a  véspera  da  mais  dramática  proclamação  da  história  moderna  de  Espanha.  Em  menos  de  três  dias,  depois  de  Franco  ditar  o  seu  famoso  telegrama,  Espanha  estava  dividida  em  dois.  As  províncias  da  Galiza,   de  Burgos,  de  Zaragoza,  de  Pamplona,  de  Valladolid  e  de  Salamanca  estavam  do  lado  dos  nacionalistas;  as  de  Madrid,  Valência  e  da  Catalunha  do  lado  dos  republicanos  e  a  Andaluzia, País Basco, Astúrias e Cantábria divididas. O resultado  foi  que  Ayllón,  que  se  situa  na  província  de  Segóvia,  a  meio  caminho entre esta cidade e Sória, estava do lado de Franco, mas a   poucos  quilómetros  da  frente  que  separava  os  dois  lados  da  guerra,  ou  se  quiserem,  que  separava  os  nacionalistas  de  Franco  135   

dos republicanos em Madrid.  Todos  os  dias  ouvíamos  o  rugir  dos  aviões,  o  estrondo  das  bombas,  os gritos dos soldados. Eu e Elena, 15 e 16 anos de  idade,  vivemos  esses  tempos  encolhidas,  abrigadas  por  Dolores  que  não  podia,  por  muito  que  quisesse,  substituir o papel tranquilizador de  minha  mãe;  eu  e  Elena  passámos  semanas  num  canto  da  cozinha,  primeiro  com  um  calor  mortal  e  o  medo  de  sequer  pôr  um  pé  na  rua;  depois,  no  Inverno,  sem  roupa  apropriada,  cheias  de  frio,  à  lareira.  Por  último,  já  habituadas  aos  azares da guerra, saíamos de  casa  para  tarefas  pouco  grandiosas  como  as  de  roubar  ovos  onde  os  havia,  ou  andar  quilómetros  para  nos  darem  leite,  para  mendigarmos  pão  e  o  que  fosse  necessário  aos  soldados  que  passavam.  A  fazer  o  que  nem  uma  nem  outra  jamais  poderíamos  confessar  com  esses  mesmos  soldados,  que na  altura me pareciam  pecados  inomináveis  e  hoje  sei  não  passarem  de  pequenas  faltas  pueris;  fazíamo­lo  em  troca  de  comida,  de  mantas,  por  vezes  de  um  simples  abraço,  porque  um  abraço  fechado  em  plena  guerra  faz­nos  chorar  e  o  choro  recorda  a  humanidade  que  há  em  nós,  mesmo nessas épocas em que a desumanidade nos rodeia.  Assim  passei  os  quase  três  anos  da  guerra.  Primeiro  sem  notícias  de  ninguém,  até   que  um  dia,  já  1937  um  magala  nacionalista  entregou  a  Manuel  Blanco  um envelope que vinha de  Lisboa.  Era  da  tia  Concepción,  irmã  de  minha  mãe,  de  quem  eu  nem  sequer  me  lembrava. A carta trazia uma notícia agradável: há  quatro  meses  a  minha  mãe  e  a  minha  irmãzinha  Pilar  estavam  boas  de  saúde,  em  Madrid.   Concepción  sabia­o  através  de  Henriette,  uma  tia  sua  e  de  minha  mãe,  portanto  minha  tia­avó,  que  vivia  em  Biarritz,   no   País  Basco  francês  e  que  conseguia  comunicar  com  Madrid.  O  trajecto  passou  a  ficar definido: minha  mãe  escrevia  a  Henriette,  que  escrevia  a  Concepción,  que  me  escrevia  a   mim.  E  eu  fazia  o  percurso  inverso,  escrevendo  a  Concepción,  que  escrevia  a  Henriette  que  escrevia  a  minha  mãe.  O  atraso  nunca  era  inferior  a  três  meses,  mas  era  melhor  do  que   nada.  Interrogo­me  como  hoje   alguma  menina  de  15  anos  aguentaria  –  neste   mundo  infernal  –  estar  três  meses  sem  saber  o  que  se  passa.  Toda  a  gente  anda  de  ouvido  encostado  a  um  telemóvel  e  não  me  parece  que  o  mundo  tenha  melhorado  substancialmente.  As  notícias,  sendo  instantâneas,  não  permitem  que  distingamos  entre  as  importantes  e  as  supérfluas…  Se  tivessem  apenas  uma  página  para  escrever  o  que  se  passou  nos  últimos  três  meses,  diriam  apenas   o   essencial.  Olho  para  uma  carta  de  minha  mãe  que  guardo  com fotografias numa caixa  velha  de cartão. Ela apenas me diz, numa letra irrepreensível:   Madrid,  14  de  Maio  de  1937.  Milha  filha  querida,  Eu  e  tua  querida  irmã  Pilar   vamos  bem,  com  a  Graça  de  Deus,  apesar   dos  horrores  que  se  vivem.  Amamos­te  muito  e  rezamos  muito  por ti.  135   

Sê forte! Da tua mãe e irmã que te adoram e anseiam por te ver.   Nenhuma palavra era desnecessária.    Hoje  canto  muitas canções que aprendi nessa altura. Algumas  de  índole política, nacionalistas, franquistas – estou certa que seria  presa  numa  rua  de  Madrid  se  as  cantasse  em  voz  alta,  como  aqui  no  meu  quintal  ­  outras  brejeiras  que  eu  e  Elena  cantávamos  a  pedido  dos  soldados  que  passavam  e  bebiam  grandes quantidades  de  álcool  para  afastarem  o  medo  e  continuarem  convencidos   de  que iam salvar a Espanha e a Hispanidade.   Tiene mi papá  Bajo su camisa  Dos pelotas gordas  Y una longaniza  ¡Dámelas, papá!  ¡No me da la gana!  Son para mamá  Cuando está en la cama3.   Eles  riam­se  alarvemente,  claro,  mas  eu  juro  que  só  mais  tarde  percebi  todo   o   significado  desta  cantiguinha.  Era  assim  a  nossa  vida,  sem  outra  escola  que  os  esforços  de Manuel Blanco e  de  Dolores  para  nos   educarem;  sem  regras,  como  se  a  nossa  educação,   o   nosso  desenvolvimento,  o  nosso  amadurecimento  tivesse  ficado  em  suspenso  e  fôssemos   obrigadas  a  improvisar  cada  momento.  Quase  tudo  em  nós  era  desenrascado  –  a roupa, a  comida,  a  água  ­,  por  isso  sempre  me  ri  do  conforto.  E  embora  boa  parte  da  minha  vida,  depois  da  guerra, tenha sido passada em  ambientes  requintados,   jamais  voltei  a  sentir  a  sinceridade  das  relações que a guerra nos dá.   Recordo  o  modo  como  Manuel  Blanco  nos  falava,  nos  rogava,  com  os  olhos  cheios  de  lágrimas   e  constantemente  a  pedir desculpa a  Deus,  para  roubar  o  que  pudéssemos,  aproveitando  o  nosso  ar  inocente;  nunca  como  na  guerra  vemos  a  fraqueza  e  a  força  juntas,  misturadas  numa  só.  Nunca!  Nunca!  Só  nestas  situações  extremas  sabemos  precisamente   o  que valemos, do que somos capazes, qual é a  verdadeira   dimensão  da  natureza  humana  e  a  real  força  que  nos  impele à sobrevivência.   Penso  que  desde  essa  altura  me  conheço e sei exactamente  o  que  valho como ser humano.   Minha  irmã  Pilar,  no  dia  em  que   me  reviu  em  Madrid  depois  da  entrada  triunfal  das   tropas  do  Caudillo,  agarrou­me  com  força  e  disse­me  uma  frase   que  nunca  esqueci  e  que  muitas  vezes,  ao  longo  da vida repetimos uma à outra:  ­ Quem sobreviveu a esta chacina, mana, sobrevive a tudo!  3   Tradução  literal:  «Tem o  meu  papá/Sob  a sua  camisa/ Duas  bolas  gordas/  E um  chouriço/  Dá­mos, papá! Não tenho vontade/ São para a mamã/ Quando estiver na cama» 

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Também  ela   roubou,  pilhou,  ameaçou,  fugiu,  escondeu­se.  Ela,  uma  rapariguinha  com  14  anos,  ocultava  à  nossa  mãe  que  alguns  alimentos  e  objectos  que  levava  para  casa  eram  roubados  ou  fruto de  chantagem  –  na  altura  bastava  ameaçar  dizer  à  CNT,  os  anarquistas,  que  um  qualquer  pacato  cidadão  não  revolucionário  era  agente  franquista para ele entregar tudo o que lhe pedissem.  Pilar  tinha,  aparentemente  um  especial  jeito  para  este  tipo  de  tarefa.  O  seu  ar  traquina  dava­lhe,  talvez,  um  ar  revolucionário  que  conferia  credibilidade às ameaças. Sempre pensei que minha irmã não  era  de  esquerda  por  uma  contingência  qualquer  da  vida.  Ela  nasceu  para  contestatária,  ao  contrário  de  mim  que  nasci  para me resignar. É  curioso,  como  a  modernidade  nos   veio  tentar  igualizar,  dizendo­nos  que  quase  tudo  dependia  da  educação.  Curiosamente,  toda  a  minha  vida  desmentiu  essa  ideia.  Nós  nascemos  como  nascemos  e  não  sou  eu  que  vou  explicar  porque  assim  nascemos.  Mas  somos  diferentes,  radicalmente  diferentes,  e  ainda  que minha irmã, tal como eu,  votasse  sempre  à  direita  –  no  Partido  Popular  de Espanha, fosse ele de Fraga,  de  Aznar,  ou  de  outro  qualquer,  o  que  nos  dava  igual  –  a  verdade  é  que  sempre  vi  qualquer  coisa  nela  de  profundamente desesperado, de  irremediavelmente  dissonante  em  termos  sociais.  O  seu  comportamento  leviano,   radical  e  destemperado,  provenientes  de  um  gene  que  minha  filha  Maria  parece  ter  herdado,  mas  que  a  mim  me  poupou,  trazer­nos­ia,  aliás,  alguns  dissabores  que  só  para  o  fim  da  sua vida ficaram resolvidos.     A  dor  da  perda   do   meu  pai  só  a  tive  muitos  meses  depois  de  estar  em  Ayllón,  minha  mãe  escondeu­me  a  essa  angústia  enquanto  pôde.  Mas  à  terceira  carta  em  que  lhe  pedia  novidades  de  ​ mi  papá,  ela  achou  por  bem  contar­me  a  verdade.  Talvez  por  pensar que as más notícias devem ir todas juntas, o seu bilhete, era  apenas isto:  Madrid,  14  de  Novembro  de  1937.  Querida  filha:  O  nosso  querido  pai  juntou­se  a  Deus,  depois  de  ter  sido  injustamente  preso  pelo  Exército  da   República.  Uma  infecção  contraída  na  prisão  levou­o,  assim  mo  disseram.  O  nosso  Raul  foi  friamente  assassinado  por  uma  coluna  anarquista  em  Labajos,  quando  acompanhava  o  tal  Redondo  que  teu  pai  abominava.  Quanto  aos  nossos  Eduardo  e  Enrique,  combatem  por  esse  país  fora  e  ainda  todas  temos  esperança  de  os  rever  sãos  e  salvos.  Rezamos  muito  por  todos,  os  vivos  e  os  mortos,  nas  nossas orações. Sei que fazes  o  mesmo  e  que  és  uma  mulher  com  suficiente  coragem  para  receber  estas notícias, tão tristes, de cabeça erguida e confiança no  destino que o Senhor nos deu.  Foi  a  primeira  vez  que  minha  mãe  se  referiu  a  mim  como  uma  mulher.  Eu  tinha  apenas  16  anos,  mas  com  estas  notícias  senti­me  mais  velha  do  que  sou  hoje.  Sentei­me  num  pequeno  135   

banco  perto  do  lume  da  cozinha,  apertei  os  braços  contra  o  meu  peito  até  arranhar as costas, deixei descair a cabeça sobre o peito e  chorei  convulsivamente.  Chorei  tanto  que  Dolores  e  Elena  choraram  comigo,  mesmo  antes  de  saber  porquê.  Chorei  tão  imensamente,  que   Manuel  Blanco  também  chorou  e  eu  pela  primeira  vez  vi  um  homem  de  meia­idade  chorar,  as  lágrimas  a  caírem­lhe  no  bigode,  a  boca  aberta,  a babar­se, o ranho a sair­lhe  do  nariz.  Dito  assim  parecerá  um  nojo,  mas  eu  abracei­o,  porque  tinha  pena  de  mim,  mas  tinha  igualmente  pena  dele,  de  Dolores e  de  Elena.  Todos  tínhamos  perdido  algo,  todos  tínhamos um nó na  garganta.  E  nesse   momento  algo  de  extraordinário aconteceu. Um  acaso  ou  um  sinal  da  Providência  que  jamais  esquecerei:  a  porta   de  casa  abriu­se  e  um  soldado  nacionalista  meteu  a  cabeça  pela  ombreira  e,  vendo­nos   todos  agarrados  a  chorar,  agarrou­se  também  e  disse  –  desconheço  porque  chorais,  mas  sei  que  toda  a  Espanha  está  a  chorar  por  causa  de  uns  poucos  que  se  estão  a  odiar.   Nunca  soube  quem  era  esse  soldado, mas muitas vezes penso  nele  e  nas  suas  palavras,  que  foram  a  mais  pura  verdade  sobre  a  nossa guerra civil.  Esta  seria  a  última  vez  que  um  choro  tão  convulsivo  me  alterou.  Poucos  dias  depois,  soube,  por  um  oficial  do  Exército  franquista,  que  meu  irmão  Eduardo  tinha  morrido  vítima  de  um  bombardeamento  que  a  aviação  italiana  fizera  por  engano.  Curiosamente,  ou  por  ser  demasiado  próximo,  no  tempo,  da  notícia  das  mortes de  meu pai e de Raul ­ ou sei lá se por qualquer  outro  motivo  ou  mecanismo  de  defesa  que  o  corpo  e  a  mente  colocam  à  nossa  disposição  ­  a  informação  apanhou­me  quase  indiferente  a  mais  esta  tragédia.  Já  em  meados  de  1938,  a  minha  tia  Concepción  enviou­me  uma  carta  cheia  de  requebros  e   cuidados,  pela  qual  percebi  a  última  notícia  terrível:  também  Enrique  tinha  morrido,  desta  vez  na  ofensiva  de  Teruel,  no  início  desse  ano.  Uma  ofensiva  que  foi  uma  vitória  de  Pirro  dos  republicanos  –  tomaram  a  cidade  em  Janeiro,  perderam­na  em  Fevereiro, definitivamente.  Esta  foi  a  última  carta  que  recebi  com notícias de minha mãe  e de Pilar, após o que se acabou  a correspondência, provavelmente  porque  as  vias  entre   Madrid  e  França  já  estavam  quase  todas  cortadas.  Depois  disso,  a  minha  tia  Concepción  continuou  a  escrever­me,  a  tentar  animar­me,  dizendo  que  minha  mãe  tinha  intenção  de  ir  connosco,   as  suas  filhas,  para  Biarritz  ou  para  Lisboa,  a  fim  de  que  pudéssemos  viver  em  paz,  longe  desta  terra  de  sanguinários,  mas  já  não  era  a  letra,  nem  as  palavras,  nem  os  beijos,  nem  os  sentimentos  de  minha  mãe  que  me  chegavam.  De  meados  de  1938,  até  ao  fim  da  guerra,  em  1939,  não  soube  mais  nada.  A  notícia  da  morte   de  Enrique  deixou­me  de  rastos. Ainda ia  135   

fazer  19  anos  quando  morreu…  Mas já não tinha lágrimas e dessa  vez  o  único a chorar, pois era de lágrima fácil, foi Manuel Blanco.  Felizmente,  Elena  tinha  conseguido surripiar umas três garrafas de  uma  zurrapa   alcoólica  que  parecia  aguardente.  Manuel  bebeu  sozinho  uma  delas.  Elena,  eu  e Dolores bebemos outra. No fim da  noite  estávamos  totalmente  embriagados,  não  dizíamos  coisa com  coisa e pela primeira vez ouvi da boca de Dolores uma ​ palabrota​ .  ­ ¡Mierda para la guerra, coño!    Com  as  notícias  do  cerco  nacionalista  a  Madrid  fomo­nos  animando  com  a  hipótese  de  revermos  minha  mãe  e  Pilar.  Estariam  vivas?  Claro,  dizia  Dolores,  vê  como  as  más  notícias  se  espalham  tão  depressa!  E Manuel Blanco todas as noites dizia que  era  menos  um  dia  que faltava. Mas a guerra ainda duraria um ano,  até acabar. E durante esse ano, Franco foi o nosso herói.  Hoje,  percebo  que  só  tínhamos  informação  de  um  lado,  o  nosso,  o  nacionalista.  Mas  isso  não  impede   que  seja  verdade  o  autêntico  morticínio  que  os  republicanos  fizeram.  Os  padres  e  freiras  que  fuzilaram  pelo  simples  facto  de serem padres e freiras,  os  homens  que  encostaram  ao  ​ paredón  pelo  simples  facto  de  não  serem  comunistas  ou  socialistas,  as  perseguições,  as  desumanidades.  Também  sei  que  nos  contaram  muitas  mentiras  sobre  os  comunistas  comerem  crianças  ou  matarem  os  velhos.  Mas,  do  mesmo  modo,  muito  do  que  socialistas  e  comunistas   vieram  mais  tarde  dizer  que  era  mentira, sei eu, porque vi, que foi  bem verdade.  Também  não  desconheço  a  barbárie  de  sinal  oposto.  Sei  o  que  os  mouros  de Franco fizeram em Badajoz e noutros locais, sei  dos  trabalhadores  sindicalistas  assassinados   sem  outra  culpa  do  que  pretenderem  defender  um  governo  legítimo,  sei  disso  tudo  e  por  isso  concluí  que  os  maus  somos  todos,  os  homens e mulheres  que  pretenderam  e  pretendem  impor  a  sua  razão  aos  outros.  Na  verdade,  os  soldados  franquistas  que  eu  vi  eram  tão  humanos  como  os  soldados  da  Brigada  Internacional  ou  os  homens  da  Coluna  Durruti.4  Foi  Primo  Levi  que  se  esforçou  nos  seus  livros,  sobretudo  em ​ Se Isto é um Homem, ​ para nos fazer crer que mesmo  os  nazis  eram  homens reais, que o mal está em nós, dentro de nós;  que  o  mal  existe!  Que  não   vale  a  pena  diabolizar  o  inimigo  ou  pensar que o mal não mais ocorrerá.   Pois  eu  entendi  perfeitamente  Primo  Levi  e  sei que os alertas  dele  fazem  todo  o  sentido.  São  homens  comuns  aqueles  que  nos  conduzem  à  desgraça,  não  são  bestas  travestidas  de  homens,  nem  4   Coluna formada  sobretudo  por  anarquistas  catalães, comandada por  Buenaventura Durruti,  que  teve um papel histórico do lado Republicano,  tendo sido ferozmente reprimida pelos comunistas.  Os  homens  de  Durruti   apoiaram  greves  e  sublevações,  instaurando   o  comunismo  libertário  e  a  reforma  agrária  radical. O próprio Durruti  faleceu em Madrid, de  forma nunca totalmente explicada, depois de se   ter dirigido para a capital, com os seus homens, a fim de a defender dos nacionalistas.  

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diabos  à  solta,  nem  sanguinários   psicopatas.  São  pais  de  família  que  querem  vidas  melhores,   ou   querem  segurança,  ou  querem  dinheiro,  ou  querem  tudo  e  que  não  pensam  na  mais  sensata  das  frases:  que  todas  as  acções  têm  consequências  e  que  a  maioria  dessas consequências, infelizmente não as sabemos prever.    Olhando  para  trás,  um  ano  na  minha  vida,  como  o  que  decorreu  entre  1938  e  1939,  é  pouco.  Mas  foi  muito,  quando  ansiava  por  alguma  coisa  que  mudaria  radicalmente  a   minha   vida  desgraçada  desses  tempos.  Biarritz,  onde  tinha  estado  em  muito  pequena,  e  da   qual  nada  me  recordava,  passou  a  ser  a  minha  América.  Era  para lá que iria, mal a guerra terminasse, com minha  mãe,  com  Pilar  e   com  Elena,  Dolores  e  Manuel,  porque  não?  Porque  não?  –  Repetia  Manuel,  se  afinal  sempre  fomos  vizinhos,  podemos  continuar  a  sê­lo.  Que  diabo  farei eu, um funcionário do  Estado  Espanhol,  em  Biarritz?  E  se  a  guerra  acabar  que   regime  teremos? Monarquia ou República? O que vai ser de nós? E, como  pressentindo  novas  tragédias,  Manuel  Blanco  suspirava,  comovia­se e chorava.  À  noite  ficava  a  sonhar  com  a  vida  de  Biarritz,  tendo  uma  vaga  ideia  de  que   era  um  local  privilegiado,  com  artistas  de  cinema  e  de  teatro,  com  pintores  e músicos, onde me sentiria bem  e me desforraria da vida miserável de Ayllón.  É,  pois,  natural  que,  na  época,  tenha  sonhado  com  o  mar  de  Biarritz.  E  que  ele  agora  me  regressasse  em  sonhos,  misturado  com  o  de  Santa Cruz, para que eu me lembrasse de minha mãe, de  Pilar,  de Elena, de Dolores  e de Manuel Blanco, e de Ayllón, onde  nunca mais fui.  O  mar  de  Biarritz  chama­me  e  faz­me  recordar,  mas  é  para  este  que  olho  e  é  este   que  me  verá  partir.  Disso  não  me  resta  qualquer  dúvida.  Tenho  na   minha  vida  mortos  mais  do  que  suficientes  para  poder  negociar  com  Deus  e com o Diabo a minha  própria  morte.  Será  aqui,   a  ver  o  mar.  De  preferência   discretamente, para não ter que ouvir a Fátima aos berros, como se  a  morte  de  alguém  com  88 anos  fosse um acontecimento digno de  incomodar alguém.                   135   

                    VI – A vaga de fundo    Esta  manhã  o  mar  provoca  aquela  ilusão  óptica  da  vaga  de  fundo.  Aqui  há  uns  anos,  não  muitos,  na  capitania  do  porto  da  cidade  de  Portimão,   um  idiota  pôs  estas  terras  em  alvoroço  ao  fazer  um  aviso  de  maremoto. As pessoas fugiram das praias a sete  pés.  Lembro­me  de  estar  sentada  precisamente  neste  sítio,  a olhar  o mar, e a ver  que não havia qualquer novidade. Fátima queria que   eu  fugisse:  Venha  senhora,  olhe  o  que  os  banheiros  e  os  cabos­do­mar  estão  a  dizer,  temos  de  ir  embora…  Eu  disse­lhe  que  fosse  ela,  que  se a vaga, caso viesse, arrastar­me­ia da cadeira  para onde bem entendesse.  Tinha  a  certeza  que  nada  demais  se passaria. Mas as pessoas,  na  fuga,  bateram  com  os  carros  uns  nos  outros,  atropelaram­se,  gritaram,  fizeram  um  estardalhaço,  até  que  uma  ou  duas  horas  depois,  os  idiotas  da  capitania   compreenderam  o  logro  em  que  tinham  caído.  Nunca  entendi  como  é  possível  ter  alguém  responsável por um porto que nem sequer conhece o mar que vê.  Felizmente,  o  oficial  hoje   de  serviço  sabe  que  isto  se  forma  sempre  que  existem  determinadas  condições  atmosféricas,  pelo  que  não  accionou  qualquer  sistema  de  alarme, poderão as pessoas  ficar  descansadas  e  eu  aqui,  três  metros  acima  delas,  junto  ao  muro  do  quintal  de  minha  casa  que  confina  com  a  areia  da  praia.  Suponho  que  devo  ter  um  ar algo aristocrático, com o meu grande  chapéu  de  palha,  atado  com um lenço para não ir com o vento, e o  meu  vestido  de  seda  largo  e  fresco,  a  olhar  sobranceiramente  as  pessoas.  Tão  diferentes  daquelas  que  frequentavam  as  praias  quando eu era nova…  Juan  Miguel,  o  meu  marido,  dizia   que  o  mal  era  terem  dado  férias  ao  povo,  porque  o  povo  tornara  as  praias  sítios  infrequentáveis,  razão  pela  qual  as  pessoas  preferiam  ir  de  barco  para  praias  inacessíveis,  ou  de  avião  para  praias  tropicais,  de  países  que  o  povo  ainda  não  as  frequenta.  Acho  a ideia um pouco  135   

snob  de  mais,  mas  é  real.  As  praias  parecem  os  piqueniques  do  Campo  Grande  há  50  anos,  com  magotes  de  gente  aos  berros,  a  ouvir  música  ou  com  pequenos  cães  a  ladrar  amarrados  a  pífios  chapéus­de­sol. É um espectáculo deprimente…  Lembro­me  do  esplendor  de  Biarritz,  as  pessoas  elegantes,  com  os  seus  chapéus  e  vestidos,  acompanhadas  por  criadas  fardadas  que  levavam  para  a  praia  mesas  desarmáveis  e  talheres  de  prata.  Havia  muito  mais  espaço  e  havia  muito  mais  silêncio.  Claro  que  o  tempo  não  andará  para  trás,  mas  toda  esta  gente  que  se  estica numa toalha, no pequeno meio metro quadrado a que tem  direito,  e  que  o  faz   porque  um  conjunto  de  pessoas  começou  a  fazê­lo  no início do século passado, nunca saberá verdadeiramente  o  que  é  um  dia  de  praia,  porque  o  que  tem  é  isto  –  um  dia  de  sol  no meio de uma multidão insuportável e de um lixo apreciável.    A  minha  tia­avó  Henriette  não  era  rica.  Era  uma senhora que  tinha  uma  pequena  vivenda  numa  rua  não muito perto do mar. No  dia  em  que  chegámos  à  estação  de  comboio  da  cidade  balnear  francesa, no Verão de 1939, eu e Pilar ficámos desiludidas, porque  pensávamos  encontrar  um  casarão  como  o  da  minha  avó  na  praia  perto de El Ferrol.   A  guerra  tinha  acabado  nos  últimos  dias  de  Março  de  1939.  Dois  dias  depois  da  queda  de  Madrid,  Manuel  Blanco  levou­nos  de  Ayllón  e  pudemos  reencontrar  minha  mãe  precisamente  na  mesma  casa  onde  habitávamos.  Os  combates  haviam  terminado  em  Valência  e   Múrcia  por  esses  dias,  e  respirava­se  um  ar  de  vitória  por  todo  o  lado.  Lembro­me  de  uma  enorme  parada  feita  na  capital  espanhola  a  que  assistimos empunhando bandeirinhas –  já  não  a  da  República,  mas  a  tradicional  –  e  cantando  hinos  nacionalistas.   Minha  mãe,  por  eu  já  ter  completado  os  meus  18  anos,  tornou­me  sua  confidente.   E  a  triste  realidade  era  esta:  meu  pai  não  deixara  fortuna,  não  tínhamos  meios  de  subsistência,  o  que  poderíamos  fazer?  Havia  duas  hipóteses,  como  eu  já  sabia:  ou  rumarmos  a  Lisboa,  para  casa  da  sua  irmã,  a  tia  Concepción,  ou  para  Biarritz,  para  casa  da  sua tia Henriette. Afastadas  da situação  da  Europa,  não  tanto  pela  feroz  censura  –  sei­o hoje – que  Franco  impusera  em  Espanha  como  pelo  desinteresse  que  votávamos  a  questões  de  política  internacional,  escolhemos  –  mal  como  se  viu  –  ir  para  Biarritz.  O  marido  de  Henriette  tinha  um  pequeno  negócio  a  que nos poderíamos acomodar e, para mim e Pilar, seria  seguramente  mais  proveitoso  aprendermos  bem  francês  do  que  português.   As  horas  que  se  seguiram   a  esta  decisão  tornaram­se  dias  dolorosos.  Tivemos  de  decidir  o  que  venderíamos  do  pequeno  espólio  da  família,  já  muito   depauperado  pela  queima  de  135   

mobiliário  para  aquecer  um  Inverno  particularmente   rigoroso,  como  fora  o  de  38­39.  Das  condecorações,  espadas,  pratas,  talheres,  loiças  e  até  retratos  de  antepassados  que  tinham  feito  certa  carreira  na  América,  acho  que  no  Peru,  escolhemos  o  que  nos  pareceu  mais  rentável e vendemos como pudemos. Depois, de  comboio  – e tenho a certeza de que não em 1ª Classe – fomos para  Biarritz,  onde  chegámos,  salvo  erro,  em Junho ou Julho desse ano  de 1939.   A  nossa  ida  foi  muito  bem  recebida  pela  tia  Henriette,  cujos  filhos  já  crescidos  viviam  mais  longe,  em  Bordéus,  pelo  que  eu  e  Pilar  tivemos  tratamento  digno  de  netas.  Minha  mãe,  por  seu  turno,  era  alvo  das  maiores  atenções  da  tia,  que  não  parava  de  lamentar  a  sorte  da  sua  sobrinha  Consuelo,  a  quem  faltava  o  marido  e três filhos, a casa, os rendimentos, tudo. Isso, no entanto,  não  abalou  –  longe  disso  –  a  mulher  lutadora  em  que  a  guerra  transformara  minha  mãe.  Num  instante,  arranjou  emprego  numa  livraria  da  cidade,  como  vendedora  de  balcão,  de  modo  a  poder  contribuir,  com  pouco que fosse, para a casa que nos acolhia. Eu e  Pilar,  embora  estivéssemos  a  ponto  de  voltar  a  uma  escola,  assim  que  tal  fosse  possível,  passeávamos  pelas  ruas  de  Biarritz,  sobretudo  pelo  Quai  de  La  Grand  Plage,  embasbacadas  com  a  moda  e  os  modos  dos  ricaços.  Era  algo  que  nunca  víramos  naquela  triste  Madrid  que  conhecêramos  antes  da  guerra  –  e  eu  menos  ainda  nas  serranias  de  Ayllón  –  nem  sequer  na  requintada  La  Toja,  que  ficava  a  anos­luz  de  distância,  no  que  toca  a   elegância e riqueza, da cidade da tia Henriette.  Mas,  mal  nos  instaláramos  ainda,  começaram  os  problemas.  Milhares  de  espanhóis  que  tinham  combatido  pela  República  em  Espanha  refugiavam­se  em  França  e,  muito  embora,  nada  tivéssemos  a  ver  com  isso,  éramos  vistos  como  refugiados  anti­franquistas.  Minha  mãe  cedo  notou,  na  livraria  onde  trabalhava  para  um  senhor  de nome engraçado – Jojo Blanchinard   ,  que  era  assim  que  as   pessoas  comuns  a  olhavam. O próprio Jojo  lhe  dera  a  entender,  aliás,  que  ela  devia o emprego ao facto de ele  apoiar  de  alma  e  coração  os  republicanos  espanhóis  e  deplorar  a  atitude  neutralista  da  República  Francesa,  que  de  resto  contrastava,  pela   negativa,  segundo  a  sua  opinião,  com  o  apoio  activo que Alemanha e Itália tinham dado a Franco.   Porém,  se  a  confusão  do  livreiro  não  nos  era  prejudicial,  já a  de  outras  pessoas  ia  em  sentido  contrário.  Muitas  achavam­nos,  em  parte,  também  responsáveis  pela  perseguição  que  a  Igreja  sofrera  em  Espanha  e,  muito  embora  nós  fôssemos  mais  do  que  uma  vez  por  semana  à  missa,  na  bela  igreja  de  Sainte  Eugénie,  junto  ao mar, havia  quem olhasse para nós, espanholas, com muita  desconfiança.   Mas  íamos  vivendo,  como  podíamos.  A  tia  Henriette  tinha   contratado,  aliás  às  escondidas  da  minha  mãe  –  e  esse  fora  o  presente  pelos  17  anos  de  Pilar  –  uma  professora  de  francês  e  um  explicador  de  ciências  da  natureza,  matemática,  135   

rudimentos  de  física  e  tudo  o  que  com  isso  fosse  relacionado.  A  ideia  era  que  pudéssemos  ainda  recuperar  um  pouco  os  estudos  que  tínhamos  interrompido  por  três anos, de forma a não ficarmos  semi­analfabetas.   Curiosamente,  foi  essa  professora  de  francês,  Madame  –  como  ambas  lhe chamávamos ­ que despertou em mim  o  gosto  não  só  do  idioma,  como  da  filosofia  e   do   pensamento.  Com  ela  debati  muito  da  teoria  do  conhecimento  e  até  alguns  rudimentos  da  então recente teoria da linguagem, que a ​ Madame –  pouco  mais  velha  que  nós,  recém  saída  da  Universidade,  dominava.  Hoje,  recordo  que  nunca  expressei  assim  tão  claramente a Yannick este reconhecimento que lhe devia.  O  que,  porém,  mais  debati  com  ela  foi  a  convicção.  E  a  convicção  é,  para  mim,  o maior dos mistérios do cérebro humano.  Por  que  motivo  nos  convencemos,  por  que  motivo,  pessoas  diferentes,  com  a  mesma  informação,  provavelmente  até  com  a  mesma  experiência,  chegam  a  convicções  diferentes.  Pode  estar  mais  ou menos definido de que  modo os homens podem  chegar ao  conhecimento,  ou até de  que modo a linguagem baliza, condiciona  e  dificulta  a   transmissão  de  conceitos.  Mas  nada,  ou  quase  nada  sabemos  sobre  o  modo  como  se  formam,  na  cabeça  de  cada  ser  humano,  as  convicções.  Eu  vivi  a  fugir  de  convicções,  mais  ou  menos  profundas,  sobre  o  que   deveria  ser  o  mundo  e  o  que  deveriam  ser  homens, convicções essas que a meu ver se tornaram  e  tornam  cada  vez  mais  distantes  da  realidade  que  vivo,  daquilo  que  vejo  das  surpresas   boas  e  más  que  vou  tendo.  Nunca entendi,  e  nunca  irei  entender,  mas  admira­me  que  tão  pouca  gente  pense  nisso  e,  pelo  contrário,  tanta  gente  continue,  depois  de  um  século  de  tragédia  que  foi   o   meu,  a  querer  impor  as  suas  convicções  aos   outros.    Com  a  declaração  de  guerra  da  Alemanha  à   França,  logo  em  Maio  de  1940,  a  situação  deteriorou­se  para  nós.  O  país – parecia  sina  nossa  –  dividiu­se  em  dois.  A  França  ocupada,  onde  estávamos  –  e  a  França  de  Vichy, de Pétain, colaboracionista com  a  Alemanha,  no  sul  do  país.  A  isto  haveria  a  somar  ainda,  como  facto  histórico  hoje   já  quase  esquecido,  a  parte  que  foi entregue  à  Itália.  Felizmente,  desta  vez,  estávamos as três do mesmo lado, na  mesma  casa.  Mas  o  regime  de  ocupação não era nada brando para  os  espanhóis  –  eram  mais  de  100  mil,  segundo  mais  tarde  soube ­  que  os  boches  presumiam todos comunistas.  Na verdade, uma boa  parte  dos  espanhóis  em  França  colaborou  com  a  resistência  e  tiveram  o  orgulho  de  formar  uma  das  primeiras  divisões  a  entrar  na  Paris  libertada,  após  o  desembarque  da  Normandia.  Chamavam­se  Ebro,  do  nome  da  última  batalha  dos  republicanos  em  Espanha.  Apesar  de  terem  sido  meus  ‘inimigos’  na  guerra  civil,  ainda  sinto como espanhola orgulho  no  seu contributo para a  derrota de Hitler.  135   

Muitos  amigos  meus, nos anos 50 e 60, quando lhes dizia que  tinha  apoiado  o  lado  de  Franco  na  guerra  civil,  presumiam­me  pró­nazi  na  II  Guerra.  Não  foi  assim.  Se  de  início  eu  tendia  para  os  alemães,  à  medida  que  fui  tendo mais informação fui mudando  de  campo.  Sei  que  é  para  muita  gente  um crime mudar de campo,   mas  não  percebo   porquê.  Todos  nós  funcionamos  com  as  informações  que  temos  à   nossa  disposição  e  que  processamos  no  nosso  cérebro.  Por  que  motivo  não  havia  de  ter  mudado,  quando  entendi  que  o  lado  alemão  era  um  pavor  –  sem  regras,  sem Deus,  sem  piedade,  sem  nada   que  não  fosse  destruição  e  alterações  brutais de comportamento? …       Depois  da  ocupação  alemã,  o  marido  de  Henriette,  comerciante  prudente,  foi­nos  dando  sinais  de  que  a  situação  podia  não  ser  a  melhor  para nós.  Sobretudo, após sabermos, ainda  que  com  poucos pormenores,  que muito perto de ali, em Hendaye,  Hitler  e  Franco  tinham  estado  reunidos  e  se  falava  da  possibilidade  de  a  Espanha  entrar  na guerra, ao lado da Alemanha  e da Itália.   De  Portugal,  chegavam  as  cartas  de  Concepción  elogiando  o  governo  português  de  Salazar,  que  mantinha  o  país  afastado  do  conflito,  e  falando  da  barbárie  da  guerra  por  toda  a  Europa,  onde  incluía,  em  tom  de  crítica,  a  teimosia  de  Churchill  e  dos ingleses.  Perante  tudo  isto,  mais  uma  vez,   minha   mãe  me  tomou  como  conselheira, desta vez juntando­se­nos Pilar. Que faríamos?  Descemos  as  ruas  íngremes  de  Biarritz  na  direcção  da  igreja  de  Sainte  Eugénie,   perto  da  Virgem  do  Rochedo.  Ali  parámos  para  rezar.  Depois,  descemos  a  longa  escadaria  até ao porto onde,  fustigadas  pelo  vento  nos  abraçámos.  Minha  mãe  pôs  o  seu braço  por  cima  de  mim  e  afagou­me  o  cabelo.  Ali  estivemos  o  que  me  parece  hoje  ter  sido uma eternidade, em silêncio, as três abraçadas  e  minha  mãe  afagando­nos  como  se  nos  pedisse  desculpa  pela  vida  que  levávamos,  por  termos  nascido,  pelo  mundo  ser  assim.  Nesse  abraço  cabia  o  universo,  o  nosso  universo  que  era  constituído  por  três  mulheres,  sobreviventes  da  família,  as  que  nunca  tinham  tido  que  tomar  decisões,  porque  ​ papaíto​ ,  Raul,  Eduardo,  Enrique,  sendo  homens,  decidiam.  Esse  abraço,  cujo  significado  jamais  esqueci,  uniu­nos,  fundiu­nos.  Não  precisámos  de falar para saber que estávamos de acordo.  Mamaíta  era,  então,  uma   mulher  forte,  devia  ter  os  seus  50  anos,  mais  nova  do  que  é  hoje  minha  filha,  mas  com um peso em  cima  dos ombros como nem eu  sequer alguma vez tive. Continuou  a  afagar­nos  o  cabelo,  uma  mão  em  cada  cabeça,  puxando­nos  para ela e sussurrando ​ queridas mías, queridas mías…    Ao  fim  desse  tempo que não sei medir, quando já voltávamos  135   

a  casa  da  tia  Henriette,  parecera­nos  óbvio  às  três  que  a  balança  pendia  para  irmos  para  Portugal.  Não  tanto  por  nos  sentirmos  inseguras,  embora  o  senhor  da  livraria  estivesse  sempre  com  o  credo  na  boca,  com  medo  de  que  os  alemães  descobrissem  as  toneladas  de  livros  proibidos  que   tirara  dos  escaparates  mas  mantivera  num  armazém  –  e  pedindo  muito  o  silêncio  de  minha  mãe,  recordando­lhe  que  a  ajudara  –  mas,  sobretudo  porque  sentíamos  a  incomodidade  que  o  nosso  tio,  progressivamente,  vinha tendo connosco.     Esta  incomodidade  só  a   entendi  muito  depois  da  guerra.  O  marido  de  Henriette,  o  tio  George  Pardiac,  tinha imensas relações  com  a  Resistência   e  a  nossa  presença  atrapalhava  as  suas  conspirações.  Ainda  para  mais  como  éramos  na altura – já o disse  sem  qualquer  problema  ­,   apoiantes  de  Franco  e  suspeitamente  pró­alemãs  ou  pelo  menos  não   anti­fascistas,  uma  vez  que  identificávamos  os  ​ rojos  como  o  nosso  grande  inimigo.  O  senhor  Pardiac,  comerciante  prudente,  era  lá  no  fundo  um  corajoso  homem  de  convicções  e,  embora  muito  tolerante,  não  podia  ter  o  inimigo  dentro  de  casa.  Depois  da  guerra  mostrou­me  com  orgulho uma caderneta que o identificava como resistente e – mais   do  que  isso  –  lhe  atribuía  uma  pequena  pensão  da  República  Francesa pelos seus préstimos.  A  despedida  não  foi  dolorosa.   À  excepção  de  Yannick,  a  Madame​ ,  de  quem  fiquei  genuinamente  amiga  e cuja longa e bem  sucedida  carreira  na  Universidade  de  Bordéus  acompanhei  no  pós­guerra.  Passou  muitas  férias  comigo,  aqui  nesta  casa  e,  ao  longo  dos  anos,  tivemos  oportunidade  de  discutir  muitos  dos  assuntos  que  iniciáramos  em   Biarritz.  Ao  longo  da  vida,  e  apesar  de  só  ser  sete  anos  mais  velha  do  que  eu,  sempre  lhe  chamei,  respeitosamente, apenas ​ Madame​ .  Enquanto  os  homens  se  matavam  pela  Europa  fora,  interrogava­me,  juntamente  com  ​ Madame​ ,  que  razões  levavam   a  tanto  ódio  e  desamor  à  vida.  Hoje,  pelas  notícias  que  sigo  com  distanciamento,  não  compreendo  ­  confesso­o  –  a cobardia que se  apoderou  da Europa. Talvez pelo seu passado de guerras, ou quem  sabe  se  pelo  seu  bem­estar  excessivo,  nós  europeus  tornámo­nos  um  bando  de  cobardes.   O  que  antes  pecámos  em  excesso,  pecamos  hoje  por  défice.  Andamos  a  pedir  desculpa  pelo  mundo,  de  sermos  como  fomos;  somos  atacados  e   quase  pedimos  desculpa;  queimam­nos   a  bandeiras,  cospem­nos  em  cima  e  nós  aceitamos.  Talvez  fosse  isto  a  que  Jesus   Cristo  se  referia  quando  disse  que  devemos  dar  a   outra  face.  Talvez,  afinal,  sejamos   mais  cristãos  do  que  nunca…  Ou  será  que  vivemos  da  pura  cobardia,  daquela  cobardia  que  dá  cabo  dos  impérios,  dos  costumes,  das  civilizações.   De  outras  paragens,  vêm  para  nossa  casa  e  recusam  135   

comportar­se  de   acordo  com  as  nossas  tradições,  pelo  contrário,  impõem  as  suas.  Ninguém  mais  do  que  eu  odeia  a  guerra,  que  a  vivi  na  sua forma mais dramática, que é a da guerra civil.  Mas não  consigo  perceber  por  que  razão,  hoje  em dia, ninguém se dispõe a  lutar  por  nada,  por  nada  que  não  seja  bem­estar  ou  dinheiro,  férias,  feriados,  pontes.  Não  há  uma  ideia  –  já  nem  o  comunismo  que  sempre  odiei,  leva  um  homem  a  bater­se  de  peito  aberto.  É  a  total  dissolução,  uma  decadência  moral  só  comparável  à  descrita  por  Gibbon  nesse  livro  fabuloso de que  tanto  falei com ​ Madame e  que  tão  pouca  gente,   infelizmente  leu5.  O  mal  dos  livros  novos  é  que  nos  tiram  o  tempo  para  ler  os  clássicos,  dizia  ela.  E  tinha  razão,  a  minha  querida  amiga,  ​ Madame​ ,  que  Deus também já tem  com Ele.  Hoje,  os  homens,  depois  de  um  século  em  que  se  mataram  por nada, não vêem nada  que valha a sua vida – nem a sua família,   nem  a  sua  liberdade,   nem a sua casa. Entregam­se como cordeiros  para  o  holocausto,  sem  entender  que,  aos  poucos,  vão  perdendo o  que  a  humanidade  tão  dificilmente  construiu  e  conquistou.  Que  falta  nos  faz  alguém  que  nos congregue numa causa, numa ideia e  com isso nos despertasse.   E  volta­me  à  cabeça  a  confusão  provocada pela falsa vaga de  fundo  de  há  uns  anos:  tudo  o  que  sabemos,  nestes  tempos   de  abundância  –  em  contraste  com  os  anos  de  escassez  que  vivemos  nas  guerras  de   Espanha  e  da  Europa ­, tudo o que sabemos fazer é  fugir.            VII – Pilar    O  mar  voltou  a  fazer  carneirinhos,  aquelas  pequenas  ondas  provocadas  pelo  vento,  e  eu voltei a lembrar­me da Praia de Santa  Cruz.  Foi  coisa  pouca o que pude dedicar às minha reflexões, pois  Fátima  está  completamente insuportável, insistindo para que eu vá  para  o  duche.  Ora  eu  sentei­me  aqui  a  tomar  o  pequeno­almoço e  não  me  apetece  ir  para  a  casa  de  banho  para  ser  esfregada  e  escovada  como uma cadela. Compreendo, até, que isto pudesse ter  uma  carga  erótica,  se  eu  tivesse  menos  30,  ou  mesmo,  20  anos.  Mas hoje em dia não sinto nenhuma vontade de me lavar.  Mas  fui  obrigada  –  literalmente  –  a  entrar  em casa outra vez,  5

  A História  do Declínio e Queda do  Império Romano, de Edward Gibbon, escrita entre 1776 

e 1778 

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deixar­me  despir  e  meter­me  no  duche,  com  uma  touca  ridícula,  com  florezinhas  de  plástico.  Fui  esfregada  pela  imbecil,  que  fala  comigo  como  se  eu  tivesse   cinco  anos,  e  a  quem  eu  respondo  como  se  tivesse  10,  de  forma  impertinente  e  mal­educada.  É  uma  espécie  de  jogo que eu também jogo, porque me dá a vantagem de  não  ter  de  fazer  nada.  Descobri  isso  há  pouco  tempo,  quando  a  idiota disse à minha filha – coitadinha (eu) já nem a mesa levanta.   Ora,  sempre  me  irritaram  as  tarefas  domésticas  e  se  as   fiz  durante  toda  a  vida  foi  com  a  mesma  resignação  que  reuni  para  fazer  e  tratar  de  tantos  assuntos  diferentes.  Por  isso,  deixo­me  ir,  faço­me  de   mais  desmiolada  e  esquecida  do  que na realidade sou.  No  fundo,  utilizo  a  mesma  estratégia  do  que  as  crianças  –  posso  ser  mais  ou  menos  responsável  consoante  me  apetece;  se  quero  humilhar  a  desgraçada  que  me  atura,  sobretudo  quando  ela  me  vem  com  as  conversas   do   namorado,  sou  uma  senhora;  se  não  quero  tomar  banho  ou  fazer  a  cama,  sou  uma  criança.  As  constantes  conversas  de  Fátima  sobre  o  namorado,  sem  ela  o  suspeitar,  magoam­me  mais  do  que  as  da  idade  ou  as  que  começam  por  coitadinha.  Foi  essa  capacidade  de  amar,  de   ter  prazer,  de  ter  sexo,  o  bem  mais  precioso  que  já  perdi.  Assim  quando  me  dá  para  a  humilhar,  não  faço  nada,  não  tomo conta de  nada,  nem  das  minhas  necessidades.  Transformo­a naquilo que eu  imagino  ser  uma  escrava  de  Cleópatra  ou de Agripina… Deus me  perdoe,  mas  sinto­me  melhor  enquanto  o  faço,  embora  depois  possa ter remorsos. Mas não era assim com o sexo?    Esta  visão  utilitária  –  digamos  assim,  para  não  lhe  chamar  profundamente  egoísta  –  do  sexo   e  do  prazer  aprendia­a,  ou  melhor  dizendo,  tomei­a  primeiro  de  Pilar  e  depois  de  Artur,  que  foi  meu  psiquiatra.  Ah,  sim  eu  era  ingénua  quando  me  casei  e  penso  que  Pilar  também.  Mas  ela  cedo  aprendeu  a viver, não teve  outro remédio senão fazê­lo, em parte para meu desgosto. E agora,  que  estou  sentada  de  novo  em   frente  ao  mar  e  que  a  memória  de  minha  irmã  me  chegou  repentinamente,  lembro­me  outra  vez  de  Santa  Cruz,  onde  o  meu  cunhado   tinha  comprado  uma  casa,  mesmo  em  frente  ao mar, numa subida íngreme da estrada que vai  na direcção do Vimeiro.  O  mar  de  Santa  de  Cruz  é  como  o  mar  aberto  de La Toja, ou  o  mar  de  El  Ferrol.  É  forte,  bate  com  estrondo  na  areia  e de noite  faz  um  rugido  cavo,  como   um  baixo  contínuo  numa  obra  musical  renascentista.  A  espuma  das  ondas,  depois  de  estas  baterem  nas  rochas,  eleva­se  muitos  metros  provocando  uma  chuva  fina,  salgada,  muito  refrescante  –  pese  o  facto  de  naquela  praia  raros  serem os dias em que precisamos mesmo de nos refrescar.  A  casa  era  simples,   pintada  de  azul,  com  dois  pisos.  E  como  Juan  Luís  me  disse  a  mim  e  ao  meu   marido  no  dia  em  que  nos  mostrou  a  casa  recém­comprada  –  um  dos  quartos  estava  sempre   135   

reservado para nós os dois.  Ali  passámos  muitos  fins­de­semana,  primeiro  os  quatro,  depois  já  com  os  nossos  miúdos.  Pilar  tinha  casado  pouco  depois   de  mim,  numa  cerimónia  ainda  mais  despretensiosa  e  simples.  A  grande  diferença  é  que  minha  mãe  chorou  a  sua  solidão,  embora  tivesse  o  encosto  da  mana  Concepción  e  –  por  pouco  tempo,  é  certo  –  do  seu  cunhado   e  nosso  tio,  o  médico  com quem embirrei  tanto e com o qual só fiz as pazes no dia do seu enterro, quando de  mim  para mim me chamei injusta por querer mal a quem nos tinha  feito tanto bem.  Pilar  e  Juan  Luís  pareciam  um  par  ideal.  Ambos  eram  divertidos, desprendidos, aventureiros,  vivos, rápidos, inteligentes.  Eu  e  Juan  Miguel  –  ​ mi  Juanito  –  chegámos  a  invejá­los.  Mas  passados  uns  anos,  num  dos  fins­de­semana  que  passámos  em  casa  deles,  comecei  a  entender  que  talvez  não  fosse bem assim. E  foi  num  desses  dias  que,  passeando  as  duas  na  praia  –  lhe  perguntei  directamente  o  que  se  passava.  Pilar  nada  me  disse.  Apenas que não era nada, que eram coisas sem importância.  Quem  conhece   o   que  é  a  intuição  feminina  sabe,  porém,  que  nós  sentimos  fisicamente  a  dor  de  outra pessoa, se a amarmos. Eu  sentia  essa  dor  em  Pilar  e  não  lhe  dei  descanso  até  que  ela  me  revelasse tudo o que lhe ia na alma, o que a apoquentava.   Com  a  velhice  podemos  aprender  que  não  vale  a  pena  sabermos  tudo;  que  há  coisas  sobre  as  quais  é  preferível  mantermos  a  ignorância.  Naquela  idade,  no  entanto  –  com  pouco  mais  de  30 anos –, esperamos sempre consertar o mundo, como se  ele  girasse  há  milhões  de  anos  e  fosse  habitado  por  homens  há  centenas  de  milhares  com  o  único  fito  de  esperar  o  nosso  nascimento,  ou  o  nascimento  da  nossa  geração  para  o emendar. E   foi  movida  por  esse  entendimento,  de  que  eu  poderia  ajudar  a  curar  o  mal  que  afligia  minha  irmã,  que  nos  nossos  passeios  pela  areia  grossa  da  praia  em  Santa  Cruz  insisti  diversas  vezes  em  saber  o  que  tinha  ela.   Até  que  um  dia,  sem  mais,  diante  de  uma  torre  patética  ali  construída  não  se  sabe  bem  por  quem,  ela   me  disse,  primeiro  de  forma  que   nem  percebi,  depois  com  a  cara  virada  para   o   mar  e  não  para  mim,  como  se  tivesse  uma  imensa  vergonha das suas próprias palavras:  ­ Ele é invertido.  ­ O quê? – Perguntei eu ­ ​ Que va​ , estás a gozar comigo… 

­  ​ Sabes  que  dice  el  marica  –  que  cada  uno  se rasca donde le  pica…​ .  E,  como  que  recomposta,  Pilar  fitou­me  nos  olhos,  subitamente.  Os  seus  grandes  olhos  verdes,  com  um  misto  de  desprezo,  gozo  e  sofrimento.  E  repetiu  o  refrão:  Cada  uno  se  rasca donde le pica. Así és, mana!   Fiquei  literalmente sem palavras e fui andando na direcção de  uma  grande  rocha  furada pela água do mar, parecendo um enorme  135   

arco  do  triunfo  natural,   que  ali  chamam penedo do Guincho. Pilar  sentou­se  na  areia,  atirando  pedras  para  a  água.  Passados  uns  instantes voltei para junto dela.  ­ E então?    ​ Pues,  nada​ .  Nada  mesmo,  não  desenvolve.  É  fachada,  percebes,  fachada.  Não  lhe  permitem  subir  na  carreira  se  ele  não  casar, se não der o ar de não ser homossexual…   ­ E achas que ele não se cura? – Perguntei ingenuamente…  ­  Que  cura,   mana!  Ele  é  assim.  Assim  mesmo,  invertido.  É  uma  mulher,  gosta  de  homens,   não  tem  cura.  Mas  é  tão bom para  mim – digo como amigo. Falou­me longamente…  ­ Mas enganou­te quando se casou contigo…  ­  Não  sei,  ele  sempre  me disse que não estava interessado em  sexo,  mas  eu  achei  que  era  de  cavalheiro,  caramba  ele  tem  quase  mais  15  anos  do  que  eu  e  pensava  que  era  da  idade…  que  lhe  estava  a  passar  o  fulgor.  Afinal  gosta  de  rapazinhos.  E  não  se  importa que eu os tenha.  ­ E tu alinhas nisso, Pilar? Eu estava perplexa…  ­  ​ Cada  uno  se  rasca  donde  le  pica​ .  E  a  mim  pica­me,  mana.  Tenho vontade, tenho sonhos, que hei­de fazer, falo com quem?  ­ Não digas à mãe!  ­  Estás  louca,  à  mãe,   nunca!  A  sério,  eu  gosto  de  Juan  Luís,  ele  é  um  amor.  Mas  também  não  quero  dar  escândalo,  não  sei  o  que fazer. Se me confesso, o padre recomenda­me abstinência…  ­ A menos que te queira para ele – disse eu com um sorriso…  ­ Só me faltava essa – rematou Pilar.  E  voltámos  a  caminhar, agora no outro sentido, como se nada  mais  tivéssemos  para  dizer  sobre  aquela  revelação  cujas   ondas de  choque  não conhecia ainda inteiramente, mas que me provocariam  muitos mais dissabores do que no momento avaliei.  Ninguém,  no  entanto,  sobretudo  no  princípio   dos  anos  50  do  século  passado,  estava   preparado  para  uma  verdade,  que  não  obstante  é  tão  simples,  como  a   que  Pilar  me  disse.  Ele  é  assim,  não  tem  cura,  nem  emenda.  É  uma  mulher,  gosta  de  homens  e  anda  comigo  para  disfarçar,  por  causa  da  carreira,  por  causa  do  Nicolás  Franco  e  dos  colegas  todos  da  diplomacia,  onde  aliás  a  mariquice, dizia Pilar, é quase uma vulgaridade.  Só  comentei  esta  história  com Juan Miguel,  mas até disso me  arrependi  pois  notei  que  a  sua  atitude  para  com  Juan  Luís  mudou  um  pouco,  tornando­se  relativamente  mais  distante,  mais  reservado  –  embora  ele  não  o  quisesse  admitir.  Depois  contei  a  Yannick,  numa  altura  em  que  nos  veio  visitar, para celebrarmos a  sua  entrada  no  quadro  de  professores  da  Universidade.  Foi  135   

Yannick quem, uma vez  mais, me deu os melhores conselhos. Não  deves  ser  intolerante,   disse  ela. Afinal o teu cunhado não escolheu  ser  como  é.  Se  o  esconde,  é  porque  o  facto  de  o  ser  –  incrivelmente  –  prejudica  a  sua  carreira.  Não  faz  sentido  que  o  persigam  ou  impeçam de fazer o que gosta pelo simples facto de o  seu corpo ou a sua cabeça preferir homens a mulheres.  ­ Mas ele enganou Pilar, objectei­lhe.  ­  Não  querida,  Pilar  quis  ser   enganada,  ela  própria  to  disse.  Pilar  achou  que  podia  ser  uma  boa  troca  –  uma  boa  vida,  com  o  pequeno  senão  de  o  marido  ser  homossexual,  com  a  vantagem  de  ela  manter  toda  a  liberdade.  É  claro  que  pode  estar  arrependida,  podem  fazer­lhe  falta  determinados  condimentos  essenciais  do  casamento, como, por exemplo, ter filhos.   Foi  com  ​ Madame  que  percebi  a  diferença  e  até  a   dignidade  que  pode  existir  na  homossexualidade.  Foi  com  ela  que  a  aceitei  como  um  facto  a  que  temos  de  nos  resignar  como  natural,  ainda  que  nos  possa  causar  inicialmente  repulsa.  Durante  grande  parte  da  minha  vida,  em  todas  as  conversas  a  que  assisti  sobre  o  assunto,  ocultando  embora  a  história  privada  de  meu  cunhado,  defendi  a  liberdade  de  os  homossexuais  terem os mesmos direitos  que  os  heterossexuais.  Lembro­me  bem de, após o 25 de Abril em  Portugal,  ter  defendido  com  vigor  que  essa  era  uma  questão  privada,  com  a  qual  o  Estado,  as  empresas,  a  sociedade  em  geral  nada  tinha  a  ver.  E   mantive  esse  ponto  de  vista,  contra  a  opinião  da  Igreja  Católica  à  qual  nunca  deixei  de  pertencer.  Porém,  a  banalização   actual da homossexualidade irrita­me. Por que motivo  hão­de  eles  ter  orgulho  nisso,  como   se  eu  tivesse  orgulho  heterossexual e fosse para rua – refiro­me a quando ainda era nova  –  beijar homens e exigir que respeitassem esse meu beijo? Por que  motivo  aqueles  que  queriam  direitos iguais, querem agora direitos  diferentes,  como  por  exemplo  forçarem uma alteração abstrusa  do  significado  do  casamento,  que  é  obviamente  um  assunto  de sexos  diferentes,  que  se   podem  reproduzir,  e  não  de  pessoas  do  mesmo  sexo? Por que motivo nos exigem mais e mais?  Como  os  republicanos  que  na  república  exigiram  o  fim  da  Igreja  e  com  isso  desencadearam  um  movimento  de  reacção  estrondoso  em Espanha, também os homossexuais de hoje esticam  a  corda.  Espero que a intolerância – nem a deles, nem a dos outros  –  venha  a  vencer.  Mas  a  minha  experiência  pessimista  leva­me   a  crer  que,  ou  uma   ou   outra  acabará  por  impor­se.  A  vida  parece  odiar a moderação e o bom senso…    Minha  irmã  foi  mudando  de   atitude,  à  medida  que  o  seu  marido  deixava  mais  clara  a  sua  orientação.  Passou  a  aparecer,  mesmo  à  minha  frente, com namorados ou amantes, coisa que não  me  agradava  nada.  Houve  um  tempo  que,  das  pessoas  que  nos  135   

eram mais próximas, apenas minha mãe e a minha tia Concepción,  para  além  dos  meus  filhos,  como  é  óbvio,  pareciam  não conhecer  o  segredo  de  Juan  Luís.  Uma  noite,  em  Santa  Cruz,  em  que  tínhamos  todos  bebido  demasiado  e  que   Pilar  estava  com  um  dos  seus  amigos,  Juan  Luís  atirou­lhe  à  cara  algumas  palavras  desagradáveis.  Eu,   que  estava  sozinha,  pois  ​ mi  Juanito  tinha  ido  ao  Algarve  (coisa  que  nesse  tempo era quase uma aventura)  tentei  chamá­lo  à  razão.  Pilar  e  ele  estavam  casados  ia  para  10  anos  e,  bem  ou  mal,  o  segredo  existia  e  estava guardado. Pilar divertia­se  com  os  seus  amigos  e  as  conveniências  estavam  salvaguardadas.  No  fundo,  nem  eles,  nem  eu,  nem   ninguém  que  fosse  seu  amigo,  pretendíamos  mais  ou  menos  do  que  isto.  Era  a  hipocrisia,  dirão,  mas  a  hipocrisia  é  um   dos  cimentos   da  sociedade.  O  contrário  da  hipocrisia  é  atirarmos  com  as  nossas  convicções,  os  nossos  pensamentos  mais  profundos,  os  nossos  vícios  e  os  nossos  desvarios  à  cara  dos  outros  e  tornar  a  vida  em  comum impossível  para todos.  Tentei  acalmá­lo,  mas  não  consegui.  Ele  chamou  vários  nomes  à  minha  irmã  e  disse  claramente  que  sabia  da  relação  dela  com  o  amigo  –  mais  tarde  vim  a  saber  que  o  amigo  de  baixa  extracção  estivera  também  na  mira  dele  e  acabava  por  ser  esta  tragicomédia barata a origem da discussão.  Em  qualquer  ponto,  Pilar  chamou­lhe  paneleiro.  És  um  paneleiro  velho,  não  tens  préstimo,  não  agradas  nem  a  homens  e  menos  ainda  a  mulheres  –  foram  estas  as  suas  palavras  impiedosas.  Caiu  um  silêncio  pesado  sobre   a  casa.  Juan  Luís  bebeu  um  copo de uísque até ao fundo e saiu porta fora. E não voltou.  De  manhã,  já  um  pouco  acalmados  por  uma  noite  mal  dormida,  tivemos  a  notícia:  Juan  Luís  atirara­se  do  alto  da  Riba  Amarela  para  a  praia,  uma  queda  de  20  ou  30  metros.  Estavam  à  espera  do  delegado  de  Saúde  lhe  passar  o  atestado  de  óbito  e  o  retirarem  das  rochas  onde  tinha  caído,  segundo  nos  disse  um  agente da polícia.  Consegui  telefonar  para  o  Algarve,  dando a notícia horrível a  Juan  Miguel.  Este  teve  a  maior  calma  do  mundo.  Telefonou  ao  embaixador,  Nicolás  Franco,  que  teve  artes  de  encobrir  o  sucedido.  Vivia­se, na altura, em Portugal, um período conturbado  –  um  general,  Humberto  Delgado,  ex­adepto  do  salazarismo  candidatava­se  para  acabar  com ele.  A imprensa estava entretida e  a  polícia  local,  bem  como  o  Delegado  de  Saúde  e  o  Hospital  de  Torres  Vedras,  onde  foi  feita  a  autópsia,  receberam  ordens  para  abafar o caso.   No  Portugal  de  então  não  havia homossexuais, nem suicídios  nem  nenhuma  dessas  vergonhas…  tudo  era  falsamente  limpo  e  perfeito. E assim ficou.  135   

Pilar  teve  um  longo  período  de  depressão,  responsabilizando­se  pelo  suicídio  de  Juan  Luís.  Eu,  enquanto  pude,  tentei  contrariar  essa  ideia,  mas  os  acontecimentos  haviam  de  evoluir  para  nos  separar  ainda  mais…  Pilar,  viúva,  sem  filhos,  aos  35  anos,  tinha todas as condições para ter uma vida complexa,  difícil. E assim foi, infelizmente.  Às  vezes  penso  que  há  locais  no  mundo  onde  temos  como  destino  ser  infelizes,  como  haverá  aqueles  em  que  temos  como  destino  ser  felizes.  Nesta  casa,  aqui,  em  frente  ao  mar,  fui  quase  sempre feliz e, mesmo agora, que contemplo os carneirinhos que o  vento  de  norte  provoca  no  mar,  não  posso  dizer  que  sou  infeliz.  Sou  limitada, um pouco surda, emperrada, incapaz de fazer muitas  coisas  de  que  tanto  gostei.  Mas se atender ao longo período que já  vivi  –  88  anos  –  não  me  posso  queixar  demasiado  das  marcas  do  tempo.  Já  em  Ayllón, recordo­me de ser infeliz, por estar longe de  minha  mãe,  como  me  recordo  da  infelicidade  de  Biarritz  na  despedida  de  Yannick  e  na  tristeza  profunda que vi no abraço que  nos  enrodilhou,  às  três  sobreviventes  da  família.  No  entanto,  de  um  e  de  outro  local,   tenho  saudades,  não  pelo  que  vivi,  mas  pelo  facto  de  então  ser  jovem,  ter  ilusões  e  pensar  que  o  mundo  melhoraria.  Se  há  um  sítio,  porém,  onde  nunca  fui  feliz, foi Santa  Cruz,  onde  se  matou  o  meu  cunhado  e  onde  morreria  o  meu  querido  filho  Luisito  –  por  sinal  afilhado  de  Pilar e do seu marido  Juan  Luís,  como  se  o  nome  comum  os  destinasse  a  uma  morte  a  poucos  metros  um  do  outro.  Mas  Luisito  morreu  num  repente,  inocente  e  criança,  quando  eu  nem  sequer  estava  presente.  Não,  não  tenho  a  menor  saudade  daquela  praia,  nem  daquele  mar.  E  talvez  por  isso há dias, num sonho, eu tenha gritado àquelas ondas  que não seriam elas a levar­me.                               135   

      VIII – Neblina    Hoje  caiu  uma  triste  neblina  sobre  o  azul  do  mar.  Tudo  se  tornou  cinzento,  sem  distinção;  as  cores  mescladas,  fundidas  e  os  elementos  esmagados  uns  nos  outros,  como  a  plasticina  quando  é  misturada.  Daqui,  de  onde  estou,  apesar  de  não  distar mais de um  quilómetro,  não  consigo  ver   com  clareza  o  contorno  da  capela  da  Nossa  Senhora  da  Rocha.   E,  curiosamente,  ao  pensar  nesta  dificuldade  em   ver  a  capela,  lembro­me  que  esta  Nossa  Senhora  portuguesa,  que sempre  morou aqui ao pé de minha casa, é, ao fim  e  ao  cabo,  a   mesma  ​ Vièrge  du  Rocher  que  tanto  me  marcou  em  Biarritz.  É  interessante  como  os  idiomas  podem  afastar  os  conceitos,  ou  aproximá­los,  consoante  o  nosso  estado  de  espírito.  Com  um  dia  cheio  de  luz,  esta  Nossa  Senhora  parece  tão  distante  daquela  virgem  solitária,  no  alto  de  uma  rocha  em  Biarritz,  como  a  terra  dista  da  lua.  Mas  num  dia  de névoa, em que o mistério das  sombras  substitui  a  luz  viva  natural  do  Algarve,  não  restam  dúvidas  de  que  são  não  só  fruto  da mesma crença, como a mesma  Nossa  Senhora,  o  mesmo  fenómeno,  o  mesmo  temor  dos   naufrágios que estará na sua origem.  A  névoa incomoda­me, traz­me à memória tempos diferentes,  não  os  da  guerra  em  que  a  incomodidade  era  exterior  a mim, mas  os  da doença em que a ameaça vinha do meu interior – são tempos  piores,  porque  toda  a  reacção  se  torna  penosa,  lutamos contra nós   próprios, contra o nosso corpo, contra o nosso destino.  Cheguei  a  Lisboa  no  Inverno de 1940, depois de uma viagem  interminável  num  comboio  proveniente  de  Madrid  cheio  de  fanfarrões  portugueses  que  tinham  ido  endeusar  Franco  em  mais  uma  manifestação  ao ​ generalíssimo e diziam ter combatido ao seu  lado, na guerra  civil. À  medida que a noite cobria as carruagens da  composição,  uma  tosse  violenta   abalava­me,  um  cansaço  inexplicável  abatia­me  e  um  frio  que  me  gelava  até  aos  ossos  entranhava­se  em  mim,  tão  violentamente  que  me  impedia  de  fazer  outra  coisa  que  não  fosse  encolher­me  contra  o  banco  de  pau, que era o conforto da altura.  O  frio  era  diferente  daquele  que  passara  na  serra,  um  frio  de  dentro  para  fora,  intenso  e  irremediável  que não saía do corpo por  mais  mantas  e  camisolas  com  que  nos  cobríssemos.  A  viagem foi  penosa  e  chegámos   à  capital  portuguesa,  eu  minha  mãe  e  Pilar   sem  que  eu  tivesse  qualquer   noção  temporal  ou  espacial.  Na  verdade,  não  tive  consciência  da  viagem,  nem  da  chegada  a  casa  de  minha  tia  Concepción.   Apenas  que  ela  me  recebera  dizendo  135   

que  eu  fizera  mal  em  não  ter  ido  para  Lisboa  mais  cedo,  acolhendo  os  seus  conselhos  que  me  chegavam  por  carta  à  serra  de Ayllón.  Em  casa,  fui  observada  por  meu  tio,  que  me  encostou  um  estetoscópio frio às minhas costas e me  auscultou demoradamente.  A  primeira  coisa  que  disse  foi   que  eu  necessitava  de  estar isolada  de  minha  mãe  e  de  minha  irmã, pois padecia, quase de certeza – e  o  diagnóstico  veio a confirmá­lo – de tuberculose. As causas eram  diversas,  da  má  alimentação  ao  frio  da  serra,  a  sabe­se  lá  o  quê  (vim  a  saber,  depois,  que  a  minha  amiga  Elena,  em  Madrid,  padecera do mesmo mal, mas que, tal como eu, ficara curada).  Talvez  fosse  este,  inconscientemente,  o  motivo  por  que  injustamente  achei   que  meu  tio  não  nos  recebera  bem.  Em  retrospectiva,  tenho  de  reconhecer que a forma como procedeu foi  de  modo  a  salvar­me.  A  tuberculose  ainda  hoje  é  uma  doença  grave,  mas  há  70  anos  era­o  bem  mais,  tanto  assim  que  os  antibióticos  não  existiam  ou  não  estavam  disseminados.  Meu  tio  colocou­me  numa  casa  em  Vale  de  Lobos,  perto  de  Sintra,  onde  uma  senhora  muito  religiosa  tomou  conta  de  mim  e  restringiu  as  visitas  de  minha  mãe,  de  minha  irmã  e  de  minha  tia.  Para  mim,  aquilo era o Inferno.  A  doença,  provocava­me  uma  fraqueza  extrema   e  uma  tosse  cada  vez   mais  cava  e  incomodativa,  já  acompanhada  de  expectoração  com  sangue.  O  isolamento  e  o  meu  débil  conhecimento  da  língua  portuguesa,  que  me  impedia  de  perceber  muitas  coisas  que  a  senhora  da  casa  me  dizia  (acho  que  o  seu  nome era Noémia, mas  tal  como o nome de meu tio se me escapou  e  já  não  tenho  ninguém  a  quem  perguntar,  assim  se  foi  o  desta  senhora),  tudo  isso  me  desesperava.  Comecei  a  empreender  que  iria morrer em breve.   Nesses  dias  difíceis  de  Vale  de  Lobos  convenci­me  profundamente  de  que  a  minha  hora  estava  a  chegar  –  hoje  acho  irónico  que  tenham   passado  quase  70  anos,  o  tempo  de uma vida,  sobre esse meu desespero.  A  convicção  da   morte  trouxe­me  reflexões  cinzentas,  nevoentas.  Para  que   tinha   eu  sobrevivido  a  meu  querido  pai  e  irmãos,  para  tão ingloriamente  falecer quando, finalmente,  parecia  ter  alguma  segurança  na vida? Por que razão não tinha, apesar dos  meus  quase  20  anos,  conhecido  um  homem  de  quem  gostasse,  salvo  a  meninice   com  Carlos,  se  o  meu  destino  era  acabar  ali,  naquele  buraco  por  detrás  de  um  monte,  numa  zona  então  erma  e  afastada,  e   ao  que  dizia  o  meu  tio  com  muito  bons  ares?  Que  propósito  poderia  haver  na  minha  vida,  se  nada  tinha  feito  de  valioso,  ou  mesmo  de  ignominioso  –  nada,  apenas  um  nulo  absoluto  de  vida,  em  que   comecei  por  andar  de  um  lado  para  o  outro,  atrás  da família, estive três anos de frio e guerra em Ayllón,  e terminei a fugir, para Biarritz e depois para Lisboa?  135   

Rezava  muito  por  esses dias, e  de então me ficou a convicção  de  que  cada   um de nós tem o seu modo de chegar a Deus. Embora  meu  tio  providenciasse   para  que  eu  fosse  visitada  por umas irmãs  de  caridade  que  me  levavam  –  como  elas  diziam  –  o  conforto  da  palavra  do  Senhor,  a   verdade  é  que,  no  âmbito  da  minha  introspecção  ​ ante­mortem  chegara  a  algumas  conclusões que hoje  reconheço  bastante  heréticas,  embora  continuem  a  ser,  desde  então, o farol da minha vida.   Comecei justamente por  me interrogar por que motivo Deus –  no  meio  da  tragédia  que  percorria  o mundo – estávamos em plena  II  Guerra  Mundial  –  se  havia  de  preocupar  particularmente  comigo.  Porquê?  Quem  era  eu  no desígnio universal para merecer  um  único  átimo  de  atenção  de  Deus  Todo­Poderoso?  Mas,  se  Deus  não  me  podia  dar   atenção,  tendo  em  conta  o  que  então  se  passou,  de  Inglaterra  ao Norte de África, da Ásia ao Pacífico, qual  o  sentido  de  eu  lhe  fazer  qualquer  pedido,  como  por  exemplo  me  recomendavam  as  irmãzinhas?  Não  estaria  –  caso  Ele   desse  atenção  aos pedidos humanos – a desviar, até, a Sua vigilância dos  assuntos  bem  mais  importantes,  como  o  de  decidir  que  mundo  teríamos  doravante?  E  cada  soldado  que  caía  ferido  –  e  quantos  cairiam  naquele momento? – e cada judeu deportado – e quantos o  estariam  a  ser  naquele  momento?  –  e  cada  criança  famélica  na  Europa  central,  e  cada  família  com  o  lar  destroçado  por   uma  bomba,  e  cada  mãe  sem  notícias  do  filho  ou  do  marido,  e  cada  resistente  torturado  –  e  quantas  pessoas  seriam  ao  todo,  senão  quase  toda  a  população  do  mundo?  –  não  teriam  o  mesmo direito  do  que  eu,  a  um  átimo  da  atenção  de  Deus  para  Lhe  pedir  que   olhasse  por  eles  e  pela  sua  causa,  desde  que  estivessem convictos  –  como  eu,  por  mim  estava  ­  de que o sofrimento que lhes estava  a ser infligido era injusto, senão inútil?  Deus,  tal  como  comummente   olhamos  para  ele,  não  será  apenas  um  prolongamento  do  nosso  ego?   Digo   mais  ­  do  nosso   interesse  mesquinho?  Do  facto  de  acharmos  normal  teremos  direito  a  um  demiurgo  que  se  preocupe  com  o  nosso  pequeno  problema,  com  o  nosso  modesto  desígnio?  Que  Deus   seria  este  que,  apesar  de  Omnipotente,  Omnipresente  e  Omnisciente  estaria  atento  à  minha  tuberculose,  ao  problema  da  minha  tuberculose  numa  pequena  casa  perto  de  Sintra,  quando  todo  o  Mundo  estava  em  jogo?  E  que  sentido  teria  dirigir­me eu, em cânticos e em mau  latim,  a  ele  e  à  Virgem  Maria,  sua  nora,  ou  sua  mãe – facto que a  doutrina  não  deixa  entender  claramente  –  ​ Salve  Regina  mater  misericordiae, vita dulcedo et spes nostra​ , etc?  Comecei  nessa  altura a pensar – e mais tarde, com Yannick, a  minha  ​ Madame​ ,  reforcei  essa  convicção  –  que  Deus  não  era  Alguém,  mas  Algo.  Algo que não necessitava de orações precisas,  nem  de  intermediários  claros.  Era  Algo  que  faz  parte  da  nossa  consciência  individual.   Se   eu  resistir  à  tuberculose,  em  nome  135   

desse  Algo  individual,  faço­o  porque  entendo  que  vale  a  pena  eu  viver  e  dar  testemunho  desse  milagre  que  é  a  vida.  E  não  porque  rezei  a  Alguém  sobrenatural  e,  de  forma  egoísta,  lhe  pedi  que me  salvasse  para  eu  lhe  pagar  depois  em  devoção.  O  Algo  –  que  eu  não  sei  explicar  devidamente  o  que  é  –  faz parte do mundo, não é   do  Outro  Mundo.  Faz  parte  de  nós,  mas  é­nos  exterior  porque  talvez  haja  um  pouco  desse  Algo  em  cada  um  de  nós,  só  o  conjunto  do  que  há  em  todos  faz  sentido  e  se  completa.  Esse  pedaço  que  cada  um  de  nós  tem – a alma, se quiserem chamar­lhe  assim  ,  a  parte  imaterial  do  nosso  ser,  é  a  motivação  da  existência,  da  vida.  Eu  penso  assim,  mas  há  quem  pense que nem  esse pedaço existe. Estou tão longe desses, como dos beatos…   A religião passou, para  mim, a ser uma coisa muito séria, mas  muito  pessoal.  Deixei  de  acreditar  na  Igreja  como  intermediária  entre  mim  e  Deus  e  na   parte  do  Credo  que  se  diz  ​ sanctam  Ecclesiam  catholicam  ainda  hoje  entaramelo  a  língua, porque não  gosto de jurar, perante ninguém, acerca de coisas que não cumpro.  De  qualquer  modo,  para  desespero  da  minha  filha,  que  se  sente  na  obrigação  de  me  levar  todos  os  Domingos,  não  perco  uma  missa.  Aceito­a  como  se  aceitam  os  rituais  de  comunidade,  onde  quer  que  se  esteja.  Se  eu  vou  passar  um  fim­de­semana  a  uma  casa  onde  se  janta às sete da tarde, é a essa hora e não a outra  que  janto.  Da  mesma  forma  que  se  eu  vivo  numa  sociedade  em  que  se  aceita  que  Deus  é  encontrado  entre  quatro  paredes  e  se  come  a  sua  carne  através  da  transubstanciação  da  hóstia,  eu  participo  nessa  cerimónia,  embora  com  o  meu  entendimento  próprio daquilo que o acto significa.  Além  de  Yannick,  apenas  Juan  Miguel  e  mais  recentemente  talvez  Madalena,  entenderam  inteiramente  o  que  queria  dizer  o  meu  Algo,  em  vez  do  Alguém.  E  apenas  Yannick  me  fez  uma  objecção profunda à minha estranha teoria.  ­  Tu  podes  –  dizia  ela  –  pensar  assim,  porque  és  uma santa e  Deus  perdoa­te.  Mas,  para  a  maioria  das  pessoas,  se  Deus  não  existe, tudo é possível, todas as barbáries. Lê Niestche.  Eu  concordei.  Eu  sei  que   o   agnosticismo  é  um  luxo  dos  ilustrados,  que  infelizmente,  ao  espalhar­se  pela  sociedade,  tem  feito  muito  mais  mal  do  que  bem.   Se   é  certo  que  acabaram  as  beatices  que  também  a  mim me incomodavam, com isso acabou o  respeito  pelo  próximo,  o  medo  de  proceder  mal,  o  medo  do  fogo  eterno.  A  própria  Igreja  pede  hoje  desculpa  pelo  que  fez  no  passado  –  e  não  sabe  quem  pedirá  desculpa  aos  tantos  que,  no  passado,  fizeram   coisas  erradas  por  pensarem  que  elas  eram  certas,  uma  vez  que  a  Igreja  o  recomendava.  Quem  perdoa  ao  carcereiro,  ao  torturador,  ao  carrasco  que   acendia  a  fogueira  da  Inquisição  com  a  convicção  de  que  obedecia  com  escrúpulo  à  vontade  de  Deus? Estas  pessoas, que  foram reais, que foram como  nós,  são  esquecidas.  Mais uma vez falamos de instituições, não de  135   

pessoas,  e  como  sempre  esquecemos  que  foi  gente  real,  com  os  defeitos e qualidades da gente real, quem fez as instituições.  Presentemente,  a  Igreja  passa  por  uma  crise  imensa  e  eu  modestamente  penso  que  é  melhor  ela  existir  do  que  não  existir.  Se  me  querem  identificar, ainda que de forma não precisa, que me  confundam  com  uma  crente  da  Igreja  Católica  e  não  com  uma  agnóstica ou uma ateia, que não sou – longe disso.    Assim,  nesses  tempos  de  Vale  do  Lobo,  à  medida  que o meu  corpo  vencia  a  tuberculose,  eu  rezava  em  mau  latim  a  esse  meu  Algo  interior,  talvez  parte  de  um  algo  comum  que  todos  temos,  que  me  desse  a  coragem  e  a  vontade  de  sobreviver,  de  casar  e  de  ter  filhos.  De  amparar  minha  mãe  de  guiar,  quanto  possível  os  passos  de  minha  irmã  mais  nova,   as  três  sobreviventes  da  recente  carnificina  da   guerra  espanhola.  As  irmãzinhas  admiravam  o meu  fervor  e  eu  –  já  nessa  altura – não me importava nada de as deixar  enganadas.  A  pouca  gente  confessei  este  meu  íntimo  convencimento.  Mas  mais   difícil  é  explicar  às  pessoas  novas,  à  minha  filha  –  a  única  que  me  sobra  –  à  minha  Madalena,  a  meus  netos  e  a  meus  genros  a   necessidade  de  termos  um  Deus, que nos  guia  nos  momentos de aflição, que nos dá  forças quando sofremos  e  que  nos  ensina  a  resignarmo­nos  quando  já não nos resta nada a  fazer.   A recorrer a esse suplemento de energia, a esse Algo de quem  agora  depende  a  minha  vida  nesta  idade  avançada   e  que  não  é  outro  Ser  senão  aquele  que  nos  leva  a  ser  melhores,  a  ser  mais  perfeitos  e,  por  fim,  nos  ensina  a  morrer, que é o objectivo último  de todos os grandes pensamentos, o objectivo último da filosofia.    Menos  de  três  meses  depois  de  ter  ido  para  Vale  do  Lobo,  curei­me.  Meu  tio pareceu entusiasmado pelas melhorias rápidas e  deu  ordem  para   que  pudesse  voltar  a  casa,  onde  estavam  acomodadas Pilar e minha mãe.   Voltei  para  partilhar o quarto com minha irmã. Era um quarto  que  dava  para  uma  das ruas do Bairro Alto, perto de casas de fado  e  de  pensões  de  má­nota.  Mas  aquele  prédio  era  simpático,  as  divisões  amplas  e  a  luz,   apesar  de  tudo,  entrava  sem  restrições.  Fazia­nos  lembrar  a  casa  de  Madrid  e  acabámos  por  dispor  o  quarto  tal  e  qual   o   tínhamos  em  Espanha,  de  tal  forma,  que  às  vezes  pensava  que  meu  pai, ou um irmão meu, poderia entrar pela   porta  para  nos  falar,  como  se  pudéssemos  andar  para  trás  no  tempo.  Para  nos  instruir  e  para   nos  apresentar  à  sociedade,  como  então  se  dizia,  a  minha  tia  fez­nos membros da ​ Corte de honor de  la  Virgen  del  Pilar  algo  que  minha  mãe  e  ela  própria  levavam  muito  a  sério  e  para  a  qual  pagavam  uma  quota  relativamente  135   

grande.  Nós  aceitámos  de  bom  grado  esse  encargo,  embora  pelo  meu  lado  houvesse  alguma  hipocrisia,  depois da minha conversão  de  Vale  de  Lobo,  a  que  Pilar,  sempre  muito  mais  prática,  respondia:  ­  Olha,  não  vejo  diferença  nenhuma  entre  isso  que  dizes,  o  que  eu  penso  e  o  que  diz  o  padre  na  missa.  Trata­se  de  acreditar  ou não. Tu acreditas, não é? É isso que preciso!  Passámos,  pois,  a  frequentar  as  missas  da  Beneficência  Espanhola e movimentar­nos no pequeno círculo de espanhóis que  então existia em Lisboa.   Aos  poucos,  tal  como  acontece  com  o dia de hoje, o cinzento  ia­se dissipando e o azul voltava aos céus.   Mas  eu  já  era  outra – tão longe da criança de Pontevedra e da  menina da Ayllón, como a lua está distante da terra.                                    IX – Luisito    Para  lá  dos  sulcos  dos  pequenos  barcos  de  recreio e daqueles  de  pesca  que  um  pouco  a  nascente  de  minha  casa  apontam  as   proas  ao  areal  e  investem  contra  ele  até  encalharem,  para  depois  um  tractor  os  puxar  praia  acima,  onde  um magote de gente rodeia  e observa o peixe  recém pescado, bastante mais longe do que estas   pequenas  embarcações,  avisto  na  linha  do  horizonte  um  enorme  navio.  Tenho  dúvidas  de que seja, realmente, um navio, ou apenas  135   

a  forma  de  um  navio  que   caprichosamente  algumas  nuvens  tomam.  Não  é  o  ​ Holandês  Voador6  que  ganha  forma  à  minha  frente.  Este  navio  que  eu  vejo  nas  brumas  do  mar  não  é  um  veleiro, mas  sim  uma  enorme  nave  de  guerra,  com  a  proa  e  a  ré   a  desfazerem­se  nas  brumas,  mostrando,  porém,  os  seus  canhões  apontados  para  terra.  Pensando  melhor,  não  pode  ser  verdadeiro,  não  me  consta  que  nenhuma  marinha  do  mundo  tenha  barco  tão  grande,  maior  do  que  os  maiores  petroleiros  que  por  aqui  passam…  Pode  ser,  de  facto,  um  navio­fantasma,  não  me  custa  a  crer.  Quase  todos   os  dias   eu  própria  dialogo  com  um  fantasma,  que  me  assombra  há  quase  50  anos  e  do qual nunca pude nem me  quis despedir.  Não  gosto  de  pensar  nisso,  não  gosto  de  falar  nisso,  não  gosto, sequer, de debater o seu significado. O que melhor descreve  o  meu  sentimento  sobre  o  episódio  são  os  versos  de  Machado  Caminante  no  hay  camino  sino  estelas  en  la  mar​ .  E  eis   porque  a  palavra  ​ estelas,  que  em  espanhol  ­  ou  no  meu  espanhol!  –,  significa  os  sulcos  de  espuma  que  os  barcos  deixam  na  água,  me  lembra  sempre  o  meu  filho  Luisito.  Ele  não  teve  caminho,  nem  passos,  nem  quase  deixou  marcas,  sulcos  ou  traços  da  sua  passagem,  senão  em  mim,   que vivo por ele e lhe mostro o mundo,  as  suas  belezas  e  as  suas  misérias,  e  o  deixo  conhecer­me  a  mim  própria  como  mais  ninguém  me   conhece…  provavelmente  nem  eu.   Foi  na  maldita  –  maldita  para  mim,  Deus  me  perdoe  porque  será  abençoada  para tantos –, Praia de Santa Cruz. Tudo se passou  naqueles  dias  terríveis  em  que  o  mundo  parece  conspirar  maldosamente  de   modo  a  que  uma  sucessão  de  desgraças  nos  aconteça.  Sucessão  de  desgraças  é,  porém,  uma  expressão   suave  para descrever os dias horríveis que na época vivi.   Tinha  discutido  com  Juan  Miguel.  Na  altura,  rodeada  pelos  meus  três  filhos,  Anita,  Luisito  e  Maria,   tinha   uma  vida  muito  ocupada  com  as  crianças.  Anita  teria  11  anos,  Luisito  9  e  Maria  uns  seis  ou  sete.  Meu  marido  tinha  negócios  aqui  e  ali  e  nem  sempre  estava  em  casa.  Ora,  foi  nessas  circunstâncias  que  eu  descobri  –  embora  a  palavra  suspeitei  seja  mais  honesta,  gosto de  me  convencer  de  que  descobri  –  que  Juan  Miguel  me  enganava  com alguém. Mal sabia, então…  Não  há  qualquer  sentido  em   tentar  confirmar  uma  suspeita  que,  a  ser  verdade,  não  nos  trará  nada  de  bom  e  sobre  a  qual  já  nada  poderemos  fazer.  Na  altura,  lembro­me  de  me  questionar  muito  sobre  isso.  Para  que  queria  eu   ter  a  certeza  se  Juan  Miguel  me  tinha  traído  no  passado   recente?  Que  poderia  eu  fazer  a  esse  respeito?  Que  remédio,  que  defesas  poderia  erguer  para  evitar  o  6   Barco  fantasma  lendário  que  jamais  pode  chegar  ao  porto,  destinado  a  vaguear   pelos  oceanos, recorrentemente avistado por marinheiros. 

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que  já  acontecera, o que já era passado, salvo a impossibilidade de  remontar  no  tempo  e  fazê­lo  andar  para  trás?   Não  seria  mais  sensato  calar  e  tomar  medidas,  sim,  mas  para  evitar  que  ele   o   pudesse  fazer  no  futuro,  deixando  inconclusiva  a  suspeita  sobre o  passado?  Que  razão  nos  leva  a  querer  saber o que nos magoa, nos  violenta,  nos  amesquinha  e  nos   desilude?  Que  masoquismo  estranho  se  apodera  de  nós,  para  nos  ferirmos  quase  até  à  exaustão.   Os  franceses  têm  um  provérbio  que  me  agrada:  se  os  velhos  pudessem  e  se  os  novos  soubessem…  Pois  eu  ainda  era  relativamente  nova  e  não  sabia.  Corri  atrás  da  suspeita,  quase  torturei  o meu marido com  perguntas, com pequenas armadilhas e,  no  fim,  exausto,  ele  confessou  o  pecado  passado  e,  como  bom  marido, prometeu solenemente, não o repetir.   Para  selar  o  acordo  e  renovar  o  amor  ­  a  tragicomédia  a  que  sempre  se  recorre  nestas  alturas  ­  decidimos  ir  os  dois  de  férias  sozinhos.  Minha  irmã  prontificou­se  a  ir  para  Santa  Cruz  com  nossa  mãe  e  levar  os   meus  três  filhos  com  ela.  Nós  próprios  os  fomos  instalar  nesse  fim­de­semana,  posto  o  que  partiríamos  de  carro  para  a  Catalunha,  numa  viagem  de  quase  um  mês  durante  a  qual  visitaríamos  a  Andaluzia,  Valência,  Barcelona  para,  finalmente,  chegarmos  a  Palamós,  terra  de  onde  era  originária  a  família  de  Juan  Luís  e  onde  ficaríamos  uns  dias,  naquela  praia  quente e agradável do Mediterrâneo.  Em  face  do  sucedido,  a  traição  de  Juan  Miguel  parece­me  hoje  tão  insignificante  como  uma  gota  de  água  que  se  deixa  cair  ao  chão.  Mas  nessa   altura,  esquecida  das  brutalidades  que  foram  na  minha  vida  a  guerra  e  a  doença,  afigurava­se­me  aquela  pequena  traição  como o cerne da minha existência. Ia  confiante na  reconquista  de  Juan  Miguel,  como  se  isso  fosse  verdadeiramente  importante.  A  nossa  primeira  etapa  seria  em  Badajoz  e  foi  no  hotel  que  tínhamos  reservado  que  Juan  Miguel,  depois  de  falar  com  o  recepcionista,  se  virou  para  mim  com  um  ar  que  nem  consigo descrever, e disse:  ­  Parece  que  aconteceu  algo  muito  grave  com  o  nosso  Luisito!  Nunca  mais  vi  meu  filho.  Voltámos  para  trás,  no mesmo dia,  na  mesma  hora.  Quando   chegámos,  minha  mãe, com aquela força  que  ganhava  nos  momentos  mais   complicados,  tinha  resolvido  quase  tudo,  uma  vez  que  Pilar,  atarantada,  não  fizera mais do que   atrapalhar e cuidar de Anita e de Maria.   A  cena  fora terrível. Uma bola com que os miúdos brincavam  passou  por  cima  do  murro  do  quintal   e  caiu  na  estrada.  Luisito,  correu  atrás  dela,  Anita  ainda  lhe  gritou  para  ter  cuidado,  mas   nesse  mesmo  momento  uma  camioneta  de  passageiros  embateu  contra  o  corpo  do  meu  querido  filho.  Anita  foi  para  dentro,  135   

chamar  a  tia,  aflita  porque  Luisito  não  se  mexia,  parecia   morto,  gritando que tinha sido a camioneta.  Pilar  e  minha  mãe,  já   alertadas  pelo  barulho  da  travagem  e   pela  algazarra  histérica  dos  passageiros,  temeram  o  pior  –  o  que  aconteceu.  Minha  mãe,  em  comunicação  com  Juan  Miguel  tratou  do  funeral.  Só  vi  o  pequeno  caixão  que  levou  o  seu  corpo  para  sempre.  Nada  mais.  No  final,  o  gato­pingado  da  agência  deu­me  uma  pequena  chave,  que  penso  era  do  próprio  caixão  –  não  consigo  convencer­me  que  os  caixões  precisem  de  chaves  –  e  eu  deitei­a  fora.  Nunca  mais  visitei  a  sua campa rasa no cemitério de  Lisboa  onde  foi  enterrado,  sempre  entendi  que  não  era  lá  a   sua  casa.  Como  o  não  era  a  minha  casa,  pelo  que  pedi  a  Pilar  que me  tirasse  da  vista  tudo  o  que  fazia  recordar  Luisito:  as fotografias, a  sua  roupa  das  gavetas,  os  seus  brinquedos,  os  seus  pequenos  desenhos, as suas lembranças.    Mas,  desde  então,  nunca  mais  deixei  de  falar  com  ele!  Luisito  representa  o  meu  filho  perfeito,  aquele  que  seria  exacta  e  completamente  o  que  eu  desejava  ter  como  filho.  Dentro  de  mim  nunca morreu e viverá comigo enquanto eu tiver memória.  Senti  uma  imensa  dor,  uma  tristeza  profunda,  mas  não  verti  uma  lágrima.  As  minhas  filhas  Anita   e  Maria  choraram  por  mim.  Nas  lágrimas  delas  vi  as  minhas,  nas  suas  expressões  de  dor,  fez­se  a  minha.  Eu  tinha de ser forte nos momentos difíceis, como  minha  mãe.  E  fui­o,   como  ela,  e  tantas  vezes  pensei  nela,  que  perdeu  três  filhos  em  menos  de   um  ano,  para  se  dedicar  às  duas  sobreviventes  –  eu  e  Pilar  –  de  alma e coração. Também eu fiquei  com  as  minhas  duas  filhas,  numa   repetição  irónica  e  dolorosa  da  nossa história familiar.  Há  dois  ou  três anos fui ao funeral do filho de uma conhecida  minha,  uma  vizinha  um  pouco  mais  nova   do   que  eu.  Apesar  do  filho ter cerca de 60 anos, a senhora, desconhecendo a minha vida,  entre  lágrimas,  perguntou­me:  Por  que  razão  chego  eu  a  velha,  para  ver  o  meu   filho  morrer?  Mais  valia  ter  ido  antes.  Dei­lhe  razão,  mas  não   lhe  quis  contar  que tinha passado por isso – ó sim,  passado  e  mais  do  que  uma  vez,  como  se  o destino de minha mãe  se  repetisse  em  mim.  De  facto,  não  há  e  não  é  possível  conceber   dor  maior  do  que  a  da  perda  de  um  filho.  Há  uma  canção  brasileira  em  que  se   diz,  precisamente,  que  saudade  é  arrumar  o  quarto  do  filho  que  já  morreu.  Foi  para  não  passar  por  essa  saudade,  por  essa   tremenda  consciência  da  perda, que eu  pedi que  desmanchassem  todos  os  sinais  de  Luisito,  ficando  apenas  com  eles na minha memória.  Às vezes, neste hábito corrosivo de pensar, que a mim própria  me  imponho,  imagino  como  seriam  as  mulheres  do  passado;  que  sentiriam  elas  quando   a  morte  de um  filho era um facto normal da  vida.  De  sete,  oito,  nove  filhos,   a  doença,  a  guerra,  o  que  fosse  levava  cinco  ou  seis.  E  as   mulheres,  por  muita dor que sentissem,  135   

continuavam  a  parir,  a  viver,  a dar e a receber amor àqueles filhos  que,  contra  todas  as  hipóteses  chegavam  a  crianças,  adolescentes,  adultos.  A  nossa  sociedade  não  está  preparada  para  esta  adversidade  que  é a morte de um ser que, em princípio, está destinado a morrer  depois  de  quem  o  gerou.  E,  no  entanto,  um  dia,  há  mais  de  20  anos,  em  Madrid,  na  calle Soror Angela de la Cruz, onde num dos  seus  raros  intervalos  de  estabilidade  vivia  minha  filha  Maria,  dei  comigo  a  defender  –  contra  a  opinião  dela, a de minha filha Anita  e  a  do meu genro – a manifestação de católicos pró­vida que ali se  juntara  para  protestar  contra  a  abertura  de   uma  clínica  ginecológica  que  iria  aplicar  a  recente  lei  do  aborto  aprovada  nas  Cortes espanholas.  As  minhas  filhas  não queriam acreditar que eu me pusesse do  lado  dos  católicos.  Para  elas,  as mulheres têm o direito de abortar,  caso  não  queiram  ou  não  tenham  condições  para  ter  os  filhos.  Eu  poderia  concordar  com  isso,  mas  o  fantasma  de  Luisito  impediu­me.  Um  filho  é  sagrado,  dizia­me  ele,  é  um  ser  autónomo,  não  pode  depender  da  vontade  de  alguém  que  lhe  é  exterior, ainda que  seja a mãe, aquela que o gera.  E foi Luisito que  falou  pela  minha   boca,  como na Bíblia se diz que o Espírito Santo  falou  pelos  profetas, ainda que ninguém acredite nisso, era Luisito  quem  falava.  E  o  que   ele  dizia,  ainda  que  eu  não  consiga  reproduzir  integralmente  –  a  minha  memória  esvai­se  aos  poucos  – era totalmente lógico.  Dizia  Luisito  que  a  vida  começa,  como  diz  a  Igreja,  no  acto  de  concepção.  Que colocar 10, 12 ou 20 semanas de gestação para  dizer  que,  então aí começou a vida, seria como afirmar  que um ser  só  é  autónomo  quando  começa  a  falar.  Sabiam elas que em Roma  um  pai  tinha  direito  de  vida  e   de  morte  sobre  um  filho  até  ao ano  de  idade?  Não   sei  sequer  se  isto  é  verdade  (digo  eu),  mas  Luisito  afirmou­o  pela  minha  boca,  com  toda  a  autoridade  do  mundo.  E  achavam  eles,  Maria,  Anita  e  o idiota do marido desta, Humberto,  que  isso  era  civilização?  Por  que  razão  podemos  terminar  com  algo  que  não  sabemos  fazer  ou  criar,  como  a  vida? Estou certa de  que  este  argumento  era  mais  credível  há  20  anos do que hoje. Por  que  razão  basta  uma  vontade,  ainda  que  a  da  mãe,  para  terminar  uma  vida,  se  qualquer  sentença  de  morte  –  dando  de  barato  que  uma  sentença  de morte, fosse ela qual fosse, poderia ser humana –  tinha sempre recursos e mais do que uma pessoa a decidir?  Por  que  razão  acharemos que a vida vale tão pouco, quando  é  do  nosso  pequeno  interesse  egoísta  que  ela  não  exista?  Por  que  nos  colocamos  a  nós  próprios  e  aos  de  que  gostamos  e  conhecemos,  como  centro  de  tudo?  Por  que  só  conta  o  nosso  ponto  de  vista?  Por  que  seria  a   minha  mãe  a  decisora  da  minha  viabilidade,  caso   decidisse  cortar  o  meu  desenvolvimento  quando  eu  era  um  embrião   de  10  semanas?  Eu  sou  quem  sou,  devido  135   

essencialmente  aos  genes?  Se  sim,  o  meu  projecto  com  10  semanas  é mais do que um esboço,  é uma planta a crescer, por que  razão não lhe damos qualquer hipótese? Porquê?   Eu  berrava  com  as  duas  e  com  Humberto,  embora  este  já  tivesse  desistido  de  discutir,  sempre  foi   um  tipo  apagado  e  vergado  à  vontade  da  mulher,  mas  era  Luisito  a  comandar­me.  E  elas,  as  minhas  próprias  filhas,  gesticulavam  e  gritavam  comigo  que  eu  estava  louca,  que  nada  do  que  eu  dizia  fazia  sentido, se eu  por  acaso  achava  melhor  nascerem  desgraçados  indesejados  que  seriam  maltratados  a  vida  toda,  sem  condições  de  desenvolvimento  harmonioso  e  patati   patátá,  repetindo  os  argumentos  de  Felipe  González  e  dos  socialistas  espanhóis,  que  elas  aliás  apoiavam  com  armas  e  bagagens.  E eu esganiçava­me a  dizer  que  sem  condições  tinha  vivido  eu  em  Ayllón,  exagerando  muito  a  falta  de  condições  reais  em  que  vivera,  e  quem  nem  por  isso  me  arrependia  de viver. Gritando, por fim, que pior tinha sido  Luisito  ter­me  morrido,  e  terem  morrido  os  meus  irmãos  e  o  meu  pai  e  que,  mesmo assim, com todas essas mortes a atormentar­me,  nunca  me  tinha  arrependido  de  estar  na  terra,  apesar  de  todos  os  males  que  me  aconteceram.  Fiz  de  mim  uma  mártir,  um  Cristo,  uma  desgraçada.  E  elas  suplicaram  que  me  calasse,  porque  achavam  que  nada  do  que  eu  dizia  tinha  a  ver  com  a  questão   do   aborto.  E  eu  calei­me,  porque  Luisito  me  sussurrou  que  não  valia  a  pena  discutir  a  vida  e  a  morte  com  quem  só  sabia  e  conhecia  o  que  era  a  vida…  e  que  esse  era  o  mal  das  pessoas  que  se  empenham tanto na defesa do aborto.  Elas  acharam  esta  última  tirada  absolutamente  demagógica  e  teatral  e  disseram que punham fim à conversa só pelo respeito que  me  tinham.  Durante   toda  essa  tarde  e  no  dia  seguinte, incluindo o  regresso  a  Lisboa,  no  carro  do  meu  genro  (vim  com  Anita,  uma  vez  que  Maria   ficava  lá)  falámos  um  pouco  de  lado,  como  os  amigos  que  se  zangam  por  um  episódio  qualquer  sem  muita  importância.  Hoje,  não  conseguiria  discutir  com  tanta  convicção.  Penso  que,  mesmo  na  altura,  se  não  fosse  a  ajuda  de  Luisito,  não  teria  dito  tantas  coisas.  Mas,  se  procurar  dentro  do  meu  coração,  a  verdade  é  que  quem  não  passou por perto da morte e da perda não   a compreende.   Eu  passei.  E,  como  sempre,  continuo  a  falar  com  Luisito.  Talvez  estas  recordações  sejam  também  as  dele.  Talvez  ele  continue  a  pensar  por  mim.  Passei  por  muitas  mortes,  por  demasiadas  e  sei  precisamente  que  a  minha  se  aproxima,  conheço­lhe  o  cheiro  e  o  sabor,  os  modos,  os  passos,  os  sinais  precursores.  E   por  isso,  também,  sou­lhe  quase  íntima,  tenho  por  ela  uma  quase  amizade,  como  aqueles  inimigos  que  de  tanto  combater  se  respeitam  e,  de  tanto  se  respeitar,  se  admiram.  É  por  isso  que,  quando  vejo  o  navio­fantasma  na  linha  do horizonte, sei  135   

que  um  dia  embarcarei  nele  e  que  lá  estará  Luisito  para  me  guiar  os  passos  nessa  derradeira   viagem,  de  que  apenas  ficam  ​ estelas​ ,  sulcos no mar.         X– Mamaíta    Passou  mesmo  à minha frente uma dessas  pranchas com vela,  daquelas  que  se  chamam,  salvo  erro,  de  ​ windsurf.  Parecem  muito  rápidas  e  delicadas,  sulcando  as  águas  sem  esforço,  apenas  guiadas  pelo  vento.  Por  momentos,  pareceu  ir  de  encontro  a  um  pequeno  iate  que estava na enseada, mas era pura ilusão de óptica.  Passou  muito mais perto de terra, ligeira, manobrada por um rapaz  que  puxava  a  vela  com  grande  perícia.  Atrás  de  mim  tocaram  os   sinos da Igreja, e não  tenho dúvidas que dobraram a finados, como  se  me  quisessem  dizer  que  o  contrário  do  mar  é  a  terra,  a  terra  onde  se colocam os mortos, mesmo  que eles  tenham falecido aqui,  à  beira  do  mar.  Sempre  me  interroguei  por  que  razão,  tão  perto  desta  imensidão  azul, não se fariam os funerais como nos barcos –  levando  os  corpos  para  o  mar  alto  e  atirando­os  para  o  fundo  do  mar.  Provavelmente,  porque  isso  impediria  o  culto  dos  antepassados,  algo  que  de  resto já não existe. Ainda noutro dia fui  ao cemitério e pude contar o número de campas ao abandono…  Fátima  está  insuportável,  mas  manda  a  honestidade  que  tenho  comigo  própria  dizer  que  eu  também  estou  inaturável.  Estou  cada  vez  mais  esquecida,  cada  vez  mais  descuidada,  cada  vez  mais  desleixada,  cada  vez  mais  sem  vontade  de  comer.  A  idade  é inexorável; minha mãe, que morreu bem mais nova do que  sou  hoje,  dizia  sempre  que  a  velhice  é  uma  porcaria  –  só  agora  a  compreendo inteiramente.    Fátima  preocupa­se  imenso  comigo  e  ou  não  compreende  a  minha  decadência  ou  disfarça  a  compreensão  tratando­me  como  se  eu  estivesse  na  flor   dos  meus…   poderia  dizer  70  anos, embora  isso  possa  parecer   ridículo  um  exagero  àqueles  que  pensam  que  ter  70  anos  é  ser  velho.   Aqui   há  dias,  minha  filha,  num  dos  fins­de­semana  que  veio  passar  comigo,  trazendo  o  seu  inseparável Humberto, disse­me:  ­ Mãe, em que está a pensar?  Eu respondi que estava a pensar na vida, e ela insistiu:  ­ Queria ter 30 anos, não?  E  eu  respondi­lhe:  30  têm  as  tuas  filhas,  a  mim  bastava­me  70.  Ela  riu­se  e  sei  que  contou  este  diálogo  à  família  toda.  Ninguém  pode  entender  a  decadência  que  há  entre  os  80  anos  e a  135   

idade  que  tenho  hoje,  88.  Só  quem  os   viveu.  E  eu  estava  impreparada  para  esta  aventura,  só  ​ Madame  se  queixava  dos  males  depois  dos  80,  além de  minha  mãe, que também sobreviveu  a  esse  cabo  da  vida.  Quatro  vintes  como  se  diz  em  francês,  frase   que  ​ Madame  tantas  vezes  sublinhou  para  agradar  a minha mãe na  festa  em  que  ela   completou  80  anos. Quatro vintes  dizia  é igual  a  quatro  raparigas  felizes!  E  ​ mamaíta  acrescentava:  ou  a  uma  velha tonta, como eu.   Mamaíta,  como  eu  e  Pilar  sempre lhe  chamámos, viveu a sua  vida  em  Portugal  –  cerca  de  40  anos  –  na casa da tia Concepción.  Mesmo  depois  da  morte  da  irmã,  ela  ficou  lá,  voltando a arrendar  a  casa  ao  senhorio.  Ali  ficou  sozinha, relativamente longe da casa  de  Pilar  e da nossa, uma vez que nós vivíamos perto uma da outra,  na  linha  do  Estoril.  ​ Mamaíta  nunca  se  retirou  do  Bairro  Alto,  no  centro  de  Lisboa,  perto   do   Chiado  e ali esteve enquanto aquilo foi  viveiro de putas, de casas de fado e de jornais.  Ali  foi  definhando,  dia  para  dia,  até  que  se  deixou  ir  para  minha  casa,  onde  faleceu  de  uma  infecção  pulmonar  qualquer.  Estávamos  em  1982 e, nessa altura, ainda não havia esta coisa que  eu  considero  ridícula  de  se  informar  de  que  morre  uma  velha.  Mamaíta  tinha  85  anos  e  faleceu  porque  essa  é  uma idade normal  para  uma  mulher  morrer,  sobretudo  uma  mulher  que  teve  a  vida  complicada  que  ela  teve.  Foi­se, devagarinho, sem queixas, com a   enorme  força  ainda  bem  impregnada  nela,  a  força  que  a  fez  pedir  que  Pilar  fosse  lá  a  casa  e  prometesse  que  iríamos  ser  –  como  verdadeiramente nunca acabámos por ser – unidas até ao fim.   Eu  fui  sempre  mais  chegada  a  meu  pai  do  que  a  minha  mãe,  pelo  menos  foi  o  que  sempre  pensei,  de  mim  para  mim.  A  morte  do  meu  pai  foi  uma  tragédia  imensa  e  quase  diariamente  ela  me   vinha  à  memória.   Foi,  até   à  morte  de  Luisito,  a  pior coisa que me  acontecera  em  toda  a  vida.  Assim,  sempre  supus  que  a  morte  de  minha  mãe,  sobretudo  quando  a  via  com  mais  de  80  anos,  fosse  por  mim  encarada   como  um  facto  normal  da  vida.  Ora,  ora  –  pensava  eu  –  com  o  treino   que  infelizmente  tenho  de  pessoas  queridas  a  morrer­me,  estarei  por  certo  à  altura  dos   acontecimentos.   As  minhas   filhas,  que  me  ajudaram na doença da  avó  –  e  que  estavam  com  ela,  no  quarto,  quando  pela  última  vez  mamaíta​  fechou os olhos, deram­me a notícia com todo o cuidado.   ­ Mãe, ​ abuelita​ … 

A  mim,  bastaram­me   aquelas  palavras.  Soube  imediatamente  que o esperado tinha acontecido. E confortei­as – coitadinha (vejo,  agora,  que  a  pobre  Fátima  utiliza  esta  palavra  para  falar  de mim),  já  era  velhinha.  Eu  tinha  61  anos,  a  idade  que  tem  hoje  a  minha  filha  Anita,  já  estava  longe  de  ser  uma  jovem,  pelo  que achei que  deveria  ter  a  presença  de  espírito suficiente para tratar de todos os  assuntos.  Peguei  no  telefone  e  disquei  o  número  do  escritório  de  Juan  Miguel  –  que  tinha  então  uma  empresa  de  importações.  135   

Quando  a  sua  secretária  me  passou  o  meu  marido,  disse­lhe  calmamente:  ­ Juan, querido, ​ mamaíta​  morreu. 

Do  outro  lado,  ele  perguntou  se  eu  estava  bem.  Achei  a  pergunta  um pouco pueril, claro que estava bem. Só queria que ele  viesse para casa e me ajudasse nos preparativos necessários.  Depois,  desliguei  o  telefone  e,  de  súbito  caí  nas  minhas  palavras  –  ​ mamaíta  morreu.   Não  era  uma  pessoa  qualquer,  era  aquela,  precisa,  sincera,  forte  ​ mamaíta  com  quem  eu  tinha  vivido  toda  a  minha  vida.  Aquela,  que  me  punha  na  cama  quando  trovejava  em  Pontevedra,  a  que  me  lera  histórias  quando  eu  não  conseguia  dormir  ou  estava   doente.  A  que  me  pegava  ao  colo,  na  varanda  de  casa,  para  vermos  o  meu  pai  chegar,  quando  vinha do  quartel.  A  que  brincava  comigo  nas  arcadas  da  Plaza  Mayor  de  Madrid,  a  que  me  escreveu  a  dizer  que  eu  era  uma mulher  e a dar  a  notícia  da  morte  do  meu  pai.  A  que  foi  comigo  para  Biarritz  e,  depois,  para  Portugal, quando o emprego em Biarritz e o ambiente  para  os  espanhóis  se  tornou  irrespirável.  A  que  tratou  de  mim  quando  estive  doente,  a  que  me  aconselhou  no  casamento,  a  que  me cuidou dos filhos quando eu não pude, a que foi incondicional.  Compreendi  que,  ao  passo  que  o  profundo  amor  que  sentia  pelo  meu  pai  era  racional  fruto  da  sua  imagem,  do  que  ele   próprio  projectava  e  era  nas  breves  conversas  que  teve  comigo  ,  tudo  o  que  sentia  por  minha  mãe  era  do  domínio  contrário,  totalmente  emocional.  Não  era  nada  em concreto, não era fruto de  grandes  frases,  ou  de  grandes  tiradas,  ou  de  ela  ser  uma  figura  excepcional.  Era,  sim,  fruto  de  ser  minha  mãe,  de  ser  incondicional  de  ser  o  calor  quando  eu  precisava  de  calor,   a  companhia,  quando  precisava  de  companhia,  a  comida,  quando  tinha  fome,  a  cama  se  tinha  sono.  De  ser  tudo  e  de  me  ter  transportado  dentro  dela   –   era  fruto  de  uma  ligação  que  não pode  haver com mais ninguém salvo entre mãe e filhos.  E  quando  Pilar  chegou,  exagerada  como  sempre,  dizendo  ai  que desgraça com grandes gestos, eu abracei­me a ela e disse­lhe:  ­  Quando  nos  morre  a   nossa  mãe,  somos  outra  vez  pequeninas.  Mantivémo­nos  tanto  tempo  abraçadas,  tanto  tempo...  Pela  minha  cabeça  passavam instantâneos do que fora até então a nossa  vida  e  confesso  que  senti  nostalgia  pelos  tempos  de  Biarritz  e  da  nossa  chegada  a  Lisboa,  quando  eu  e  Pilar  éramos  tão  unidas,  inseparáveis.  Prometi  a  mim  própria  que  assim  voltaríamos  a  ser,  que  haveríamos  de  caminhar  as  duas  na  praia,  fazendo  confidências,  como  naqueles  tempos.  Por  que  razão  fora  necessária  a  morte  de  nossa  mãe  para  que  nos  abraçássemos  assim,  de  novo?  Por  que  não  soubéramos   que  isso   era  o  mais  importante  –  sobretudo  para  nós  próprias?  Por  que  motivo  nos  135   

tínhamos  deixado  enredar  numa  série  de  episódios  sem  qualquer  importância?  Vou  tentar  deixar  estas  recordações,  Fátima  já  berra  ao  telefone,  falando   com  minha  filha,  –  ela grita, como se a distância  tivesse  de  ser  vencida  à  custa  de  decibéis  –  que  eu  ando  estranha  porque  me  lembro  da  guerra.  Não  sei  como  ela  o  sabe,  ela  nem   deve  saber  que  houve  uma  guerra,  provavelmente  é  minha  filha  que  adivinha,  Anita  tem  uma  espécie  de  sexto  sentido  para  os  meus assuntos… É boa filha e foi boa para a irmã, enquanto Maria  deixou  que  a  ajudassem  e   se  mais  não  fez  foi  porque  não  pôde.  Foi  também  muito  boa  para  a  avó,  para  a  minha  querida  mãe  e  nunca  se  conformou  com  o  que  me  separou  de  Pilar,  que  ela  também sempre adorou.  Na  verdade,  minha  filha  Anita  –  agora  que  penso  nela  a  esta  luz, nesta perspectiva ­, apesar de sempre a considerar  quase como  inexistente,  porque  nunca  deu  problemas,  é  a  mulher  mais  parecida  com  minha  mãe,  talvez  seja  daquele  tipo  de  pessoas  a  quem só damos verdadeiro valor quando nos faltam, talvez…   Tenho  de  reconhecer  que  eu  estou  viva  devido  a  ela,  que  me  arranjou  esta  Fátima  insuportável  para  me  fazer  companhia  e  tratar  de  mim,  quando  fiquei  viúva.  Anita  é  verdadeiramente  o  prolongamento  de  minha  mãe  e  de  mim  própria  noutra  geração.  Curiosamente,  entre  os meus cinco  netos, três raparigas de Anita e  dois  rapazes  de  Maria,  só  vejo  uma  delas  que  pode  ser  deste  timbre.  E  digo  com  sinceridade  que  nem  sei  se  isso  será  bom  ou  mau.  Também  nunca  reconheci  em  Pilar  essa  força. Reconheci­lhe  a  alegria,  a  insolência,  o  desprezo  pelas  convenções  que  vi   em  Raul,  o  meu  malogrado  irmão   mais  velho  que  se  juntou  as  fascistas  da  JONS7.  Mas  não  a  persistência,  a  tranquilidade  e,  mesmo,  a  inamobilidade  que  foram  características  de  minha  mãe   e,  reconheço  hoje,  são  igualmente  minhas.  Pilar,  a  minha  querida  mana,  como  desde  a  morte  de minha mãe passei a referir­me a ela  –  como  se  isso  nos  desse  de  volta  os  maus  e  bons tempos em que  éramos  novas  e  infelizes,  mas  de  uma  infelicidade  diferente,  porque  feita  de  esperança  de  deixarmos  de  ser  ­,  Pilar,  dizia,  não  era  constante,  era  volúvel  e  irresponsável,  como  o  foi  a  minha  pobre  filha  Maria.  Chegou  a  roubar­me  o  marido,  a  ter  um  caso  com  ele  –  e  foi  isso  o  que  nos  afastou   durante  tanto  tempo  e  que  muito  preocupou  minha  mãe,   que  nunca conheceu o motivo de tal  afastamento  –  para  depois  me  pedir  desculpa  humilhando­se  e  falando de si própria como uma miserável puta.   Eu  não  lhe  perdoei,  porque  não  podia  perdoar  a  Juan  Miguel  o  facto  de  ele  se  ter  deixado  enredar  pela  minha  irmã,   nem  a  7

 ​ Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista​ , em 1934 juntou­se à  Falange. Actualmente ainda  existe como  partido político, embora sem  expressão, de extrema­direita,  com a  designação de ​ Falange   Española de las JONS 

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minha  irmã  por  se  ter  envolvido  com  ele  (e  passados  tantos  anos,  honestamente,  nem   consigo  discernir  quem teria maior culpa, mas  inclino­me  para  que  fosse  ela).  Hoje  em  dia,  esse  facto,  que  consumiu  anos  de  minha  vida  –  descoberta  que  fiz  já  depois  da  morte  de  Luisito  –  não  se  me  afigura sequer digno de ser pensado  ou  recordado.  É  um  facto  enterrado  na  minha  memória,  sobre  o  qual  nunca  falei  com  ninguém  –  jamais  o  referiria  a  minha  mãe,  nunca  a  minhas  filhas.  Ressalvo  apenas  as  conversas  fantasmagóricas  com   Luisito  que,  de  certa  forma,  desculpou  ambos  –  tia  e  pai  –  descrevendo  o  perdão  como  o  mais  supremo  de  todos  os  sentimentos  que  foram  dados  à  espécie  humana.  Dizia­me  ele,  que  nada  separava  tanto  um  ser  humano  de  um  animal  do  que  essa  possibilidade  infinita  de  perdoar,  de  receber  com  elegância  e  mesmo  satisfação  aqueles  que  nos  tinham  ofendido.  Afinal,  não  era  essa  a  mensagem  essencial  do  cristianismo,  o  que  fez da nossa  civilização o que ela é, que fez de  nós  pessoas  tolerantes?  Saber  perdoar  é  o  cúmulo  da  tolerância,  palavra  que  no  seu   étimo  latino  significa  resistência  à  dor,  resistência  ao  que  nos  faz  sofrer  – Luisito sempre teve queda para  as latinadas e para o estudo da civilização romana, acho eu…  Por  isso,  eu  perdoei  a  Pilar,  mas  foi  um   falso  perdão.  Perdoei­lhe  formalmente,  disso  mesmo  me  acusou  o  meu  filho  morto,  mas  nunca  a  recebi  como  a  recebia  dantes,  de  braços  abertos  e  confidências  plenas.  Ah,  isso  não!  Não  o  fiz,  a  não  ser  depois  da  morte  de  ​ mamaíta  me  ter  feito  entender  que  há,  nas  famílias  os  continuadores   e  os  fracos.  E  que  a  continuadora  de  minha  mãe  e  tudo  o  que  ela  representava  de  serenidade,  saber  estar,  decisão  na  hora  certa,  não  era  nenhum  dos  meus  irmãos   –   todos  mortos  que  estavam  –  nem Pilar com o seu feitio leviano. A  continuadora  era  eu  e  as  minhas  filhas.  As  três,  como três éramos  as  que  no  tempo  de  ​ mamaíta  nos  agarrámos  numa  praia  em  Biarritz, na hora de decidirmos a nossa vida.  E  assim  perdoei,  como  agora  perdoo  tão  facilmente  a Fátima  as  suas  imbecilidades  e  perdoo  a  mim  própria  as  minhas  fraquezas, as minhas desventuras de velha. Só, em frente ao mar, a  ver  passar  os  banhistas,  a  tarde  a  cair  e  o  Sol  a  pôr­se,  como  sempre,  à  minha  direita,  que  já  só  sei  que  é  direita  por  ser  nessa  mão  que  uso  as  duas  alianças,  a  minha  e  a  de  Juan  Miguel,  e  que  deveria  usar  também  algo de Maria, que me deixou, de Luisito, de  Pilar,  de ​ mamaíta​ , de meu pai  e de meus  irmãos, e de todos os que  se foram.   O  toque a finados na Igreja cessou. O cortejo saiu na direcção  do  cemitério,  que   fica  do  outro  lado  da  terra,  no  ponto  mais  afastado  do  mar,  como  se  a  morte  fosse  da  terra  e  a vida  da água.  É da água que gosto, eu sou do lado do mar…      135   

                  XI – Corpus delicti    Levantou­se  um  vento  gélido,  estranhamente  gélido  para  a  altura  do  ano,  que  mergulha  no  mar,  diante  mim.  Fátima  socorreu­me  com   um  casaquinho  de  malha  que,  por  sinal,  é  de  minha  filha.  Enxotei­a.   Trato­a  cada  vez  pior,  com  medo  de  me  aproximar  de  mais,  de  lhe  dar  confiança,  de  lhe  contar  segredos  que  não  quero,  revelar­lhe  fraquezas  que  são  minhas,  apenas  minhas,  ainda  que  cruéis,  incomodativas,  por  vezes  recordadas  com  asco  ou  vergonha,   mas que não  posso partilhar porque não as  sei sequer explicar.   Recordo  o  meu  passado  de   forma  cada  vez  mais  extenuante,  como  se  alguém  exterior  e  superior  a  mim  me  obrigasse  a rever a  vida,  e  a  fazer­lhe  o  balanço,  para  depois  lhe  pôr   fim.  Chegarei  a  Deus  com  as  contas  já  feitas?  Saberei,  perante  Ele  –  ou o que Ele  representar – qual o mal e o bem que fiz. Terei essa consciência?  O  meu  corpo  encolhe­se  com  o  frio,  olho  os  meus  braços,  cavados  por  sulcos  de  pele  –  tão  velhos.  As  veias  saltam­me  das  costas  das  mãos,  como  se  quisessem  libertar­se  delas.  As  minhas  pernas  são  magras  e  cheias de manchas e sinais, como todo o meu  corpo  e,  para cúmulo do meu próprio vexame, agora tenho de usar  uma  discreta  fralda  para  evitar  –  como  dizem  na  televisão  –  aqueles  pequenos  acidentes.  O  meu  corpo  não  presta,  por  que  razão  hei­de  preocupar­me  com  ele?  Apenas  porque  alberga  o  meu  espírito,  o  qual,  aliás,  também  já  não  vale  grande coisa. Para  quê o casaco? Para quê o cuidado?  O  meu  corpo  jamais  foi,  para  mim,  objecto  de  grande  preocupação.  Sim,  às  vezes  fiz dietas curtas que logo abandonava,  assim  como  tive  um  período  em  que  me   dava  para  a  mania  das  termas  e  dos tratamentos com lamas  e essa parafernália toda. Nem  consigo  recordar­me  porquê…  Talvez  porque queria parecer bem,  quando  me  via  ao  espelho,  porque  queria  que  Juan  Miguel  me  achasse  bonita  e  interessante…  Porque  queria  que  outros  homens  também  me  achassem  digna  de  um  olhar;  até,  talvez,  porque  135   

queria  despertar  inveja  em  mulheres  da  minha  idade,  que  me  consideravam bem conservada.  Nunca  fui,  no  entanto,  muito  vaidosa.  Nunca  fui  muito  –  e  esta  palavra  só  mesmo  em  espanhol  existe,  curiosamente  –,  pinturera​ ,  alguém  que  se  presume  bonita,  elegante,  distinta.  Nunca  fui.  Mas  tive  os  meus  dias,  como  toda  a  gente.  Antes  de  casar  com  Juan  Miguel  fazia  torcer  pescoços  na  rua  e,  mesmo  depois,  bem  reparava  nos  olhares  de  cobiça  dos  seus  amigos.  Sabia  que  mesmo  o  meu  marido  me  achava  muito  interessante  e  bonita  e  muitas  pessoas  reparavam  que  eu  era  parecida  com  uma  actriz de cinema cujo nome não recordo.   Porém,  mal  tive  os  meus  filhos,  o  meu  aspecto  –  e  serei  honesta  se  dizer  que,  com  ele,  o  sexo  ­  desinteressou­me  totalmente.  Anita,  Luisito  e   Maria  ocuparam  o  meu  corpo  e  a  minha  mente  durante  10  anos,  pelo  menos.  Desde  que  fiquei  grávida  de  Anita,  há  mais  de  60  anos,  até à altura do acidente que  me  levou  Luisito,  quando  eu  já  rondava  os  40  anos.  Por  essa  época,  tinha  descoberto  que  Juan  Miguel  me  traía  e  isso  acicatou­me  para  o  trazer  de  volta,  foi  o  tempo  das  dietas.  Mas  a  morte  de  Luisito  deixou­me  totalmente  desregulada.  Acho que fiz  uma  menopausa  precoce,  por  volta  dessa  idade,  que  se  prolongou  por  imenso  tempo,  com  imensas  preocupações  que  me  tornaram  naquela espécie muito vulgar que são as senhoras doentes.  Arrastei­me  entre  médicos  e  exames  e  termas  e  mais  exames  e  mais  médicos  e  mais  termas. A minha vida, sob o ponto de vista  sexual,  tinha  morrido  em  absoluto.  Juan   Miguel  preocupava­se,  mas  não  excessivamente  e  as  minhas  filhas  ajudaram­me  muito,  mas  tinham  os  seus  namorados,  as  suas  vidas.  Entre   os  meus   40   anos  e  os  53  ou  54,  fui  uma  freira  estúpida;  um  ser  assexuado,  desinteressante,  conflituoso,  confuso.   As  raparigas cresceram e eu  mirrei­me;  Juan  Miguel fazia a sua vida e eu tinha pena dele, pena  que  não  pudesse  contar  comigo  para  os seus sonhos e fantasias de  homem maduro.  Até  que  um  dia  –  e  sempre   me  custou  esta  revelação,  ainda  que  feita  a  mim  própria  –,  soube  que  entre  as  amantes  do  meu  marido  figurava,  em  lugar  de destaque, minha irmã Pilar. Soube­o  da  pior  forma  que  se   pode  saber  uma  notícia  –  e  juro  que  não  consigo  imaginar  uma  pior:  denúncia anónima, mas precisa. Dizia  a  carta  recebida  que  se,  acaso  fosse  a  um  hotel  dos  arredores  de  Lisboa,  às  tantas  horas  de  um  certo  dia,  encontraria  o  idílio  dos  dois. E eu – estúpida! – fui. E encontrei­os.  Se  olhar  em retrospectiva tenho de reconhecer que o facto em  si,  embora  horrível,  pode  ter  ironicamente  contribuído  para  uma  melhoria substancial da minha vida.   Os  dias  que  se  seguiram  à  descoberta  da  traição  foram  periclitantes.  Por  diversas  vezes  estive  para  me  divorciar,  para  135   

abandonar  Juan  Miguel,  para  dizer  às  minhas  filhas  –  claro  que  à  excepção   de  Luisito,  nas  minhas  fantasmagóricas  conversas,  nenhuma  delas  o  soube  ou sabe – e até de minha mãe estive quase  a  fazer  confidente,  apesar  de  a  sua  idade  já  avançada.  Mas  acho  que  consegui  fazer  prevalecer  o  bom  senso.  Era  um  daqueles  temas  em  que  não  contribuiria  para a felicidade de  ninguém  –  não  sei  o  que  pensaria  minha  mãe  desta  disputa  (palavra  apropriada)  entre  suas  filhas,  nem  o  que  diriam  minhas  filhas de um triângulo  envolvendo  pai,  mãe  e  a  tia  mais  chegada  das  raparigas, que aliás  adoravam.  Assim,  calei  o  que  soube,  recalquei,  pisei,  escondi  debaixo  do  tapete  –  afastei  minha  irmã,  embora discretamente, da  minha  vida,  resistindo  às  suas  constantes  humilhações,  que  começavam  por  se  chamar  puta  a  si  própria.  Ao  fim  de  uns  tempos,  acabei  num   psicanalista  por  insistência  de  Yannick,  a  minha  ​ Madame​ ,  única  pessoa  no  mundo  que  soube  –  além  do  anónimo  denunciante  que  continuo  sem  saber  quem  foi  (a  menos  –  e  tanto  me  ocorreu   essa  hipótese  –  que  fosse  a  própria  Pilar,  já  tolhida  pela  vergonha,  com  o  intuito  de  acabar  ou  de  oficializar  a  relação incestuosa com o meu marido).    O  psicanalista,  que  era  também  psiquiatra,  um  tipo  da  minha  idade,  passados  os  50,  vaidoso,  com  uma  auto­estima  elevadíssima  e  com  a  mania  incontrolável  de  dizer  piadas,  curou­me.  E  curou­me  pela  menos  deontológica  das  formas  que  um médico tem de curar uma paciente: fazendo amor com ela.  Artur fê­lo.  Pegou  em  mim,  virou­me  do  avesso,  e esteve dentro de mim.  Compreendeu  o  que  eu  própria  não  podia  ter  compreendido.  Que  eu,  com  a  vida  que  levava,  tinha  direito  ­  um  direito  divino  e  inquestionável  –  a ser mimada, animada, endeusada. Precisamente  o  contrário  do  que  a  família,  e  o  bom  do  Juan  Miguel  à  cabeça,  pretendiam  de  mim,  invertendo  os  papéis  e  a  ordem  divina  que  Artur decretava.  A  ideia  fazia  todo  o  sentido,  do  meu  ponto  de  vista.  Todo  o  sentido!  E  por  isso,  e  também  porque  a  conversa  me  agradava,  deixei­me  ir.  E   este  corpo que eu pensava morto para os combates  do  sexo,  renasceu;  e  renasceu  de  uma  forma  que  a  mim  me  assustou.  Apetecia­me, sobretudo uma parte (e não o dizia a ele de  outra  forma  que  não  fosse  esta:  a nova sensação que Basílio deu a  sua  prima  Luísa,  na  obra  de  Eça)  em  que  Artur  era  exímio.  E  apetecia­me  coisas  fantásticas,  algumas que nem sabia existirem e  tinha  um  prazer  ordinário  e  simultaneamente  extraordinário,  que  me deixava arrasada e com um ar beatificamente apalermado.   Não  foi  a  única vez que  atraiçoei os votos de fidelidade feitos  no  casamento.  E,  olhando  em  retrospectiva,  só  tenho  pena  de  não  ter  começado  mais  cedo.  Até  porque  Luisito  concordou  135   

inteiramente  com   Artur no que diz respeito aos meus direitos a ser  mimada  e  endeusada.  Passei  o  que  passei  e  não  seria  uma  vida  verdadeira   se  apenas  a  dedicasse  aos  outros,  esquecendo­me  de  mim  própria,  arrumando­me  para  o  fundo  de  um  armário  ou  de  uma  arrecadação,  quando  não  fosse  mais  necessária como  mãe ou  como mulher ou como máquina de arrumar a casa.  Felizmente,  Juan  Miguel  sempre  ganhou  bem  e  sempre  tivemos  possibilidades  de  ter  empregada  e  uma  série  de  apoios  que  me  deixavam  o  tempo  livre.  Que  raiva  me  dá  não  ter  aproveitado  esse  tempo  também  comigo. É certo que é preciso ser   maduro  e  adulto.  Não  falo   de  paixões  nem  de  amor,  nem  sequer  de  grandes  amizades.  Falo  de  companhia,  de  tempo  que  dedicamos  a  nós  próprios  e  que  outros  nos   dedicam.  Artur  nem  sequer  era  o  meu  tipo  de  homem:  não  era bonito, não era atlético,   não  era  elegante,  mas  era  um  cavalheiro  culto  e  atencioso.  Não  precisava de mais.   E  assim,  passado  Artur,  como  tudo  passa  nestes  episódios,  outros  senhores  atenciosos  me  ajudaram  a  passar  o  tempo,  por  assim  dizer.  Devo  registar  que Yannick foi sempre a única a saber  e  tinha  certo  orgulho  em  ter  contribuído  para  a  minha  decisão  tardia de me satisfazer…    Sim,  diverti­me,  durante  uma  fase  da  minha  vida.  Depois  o  tempo  fez  o  seu  serviço  e  a  vontade  foi  passando,  assim  como  a  paciência  e   o   impulso.  Deixei­me  de  coisas  de  gente  nova.  Mas  aprendi  que  o  essencial  está  em  não  magoar  o  outro.  Luisito  disse­mo  claramente  que  era  isso  que meu marido pretendia – não  ser  magoado,  que  o  caso  não  se  soubesse…  e  que  eu não andasse  com  pessoas  que  não  pudesse  apresentar  como  amigo  –  o  que  excluía  os  gigolôs  –  porque  lembro  hoje,  que  estou  para  confissões,  várias  vezes  imaginei­me  a  chamar  um  daqueles  que  punham  (ou  põem?  É  coisa  que  não  consulto)  anúncios  nos  jornais.  Um  que  me  satisfizesse  e  pelo  qual  não  tivesse  o mínimo  cuidado  ou  respeito,  que  apenas  existisse  naqueles  breves  momentos em que me era dado apetecer que ele existisse.  Demais  agradava­me  o  perigo,  numa  vida  que  tendo  começada  cheia  deles,  aos  poucos  se  tornara  banal,   vida  de  uma  senhora  da  linha,  com  as  suas  amigas  hipócritas,  a  beber  um  chá  aqui,  a  trocar  impressões  sobre  receitas  e  a  frescura  do  peixe  nas  bancas  das  praças  onde  mandávamos  as  empregadas.  Agradava­me  o  perigo,  o  coração a disparar, os olhares furtivos,  o   medo  de  ser  apanhada…  Ainda  hoje,  quando  relembro  esses  tempos tenho pena de serem tempos idos.  Às  vezes  penso  que  o  modo  como  trato  Fátima  é  um  traço  deste  carácter  que  acabei  por  revelar  na  meia­idade.  O  apetecer­me  ser  mimada,  como  ela  o  faz,  para  depois  me  mostrar  135   

desagradada  e  insultá­la,  como  se  ela  fosse  um  objecto  ou  uma  coisa  sem  sentimentos;  fazer­me  muito  pior  do  que  estou,  forçando­a  a  trabalho  mais degradante, tudo isso é uma face negra  da  minha  personalidade  que  ninguém  conhece,  só  mesmo  o  meu  filho, a quem nada escondo e que tudo compreende e perdoa.  Mesmo agora deixei cair propositadamente o casaco de malha  para  que  ela  o  apanhe  do  chão  e  o  volte  a  colocar  sobre  os  meus  ombros.  Então,  dir­lhe­ei  qualquer  coisa  desagradável  –  fá­lo­ei  como  se  estivesse  louca,  dizendo  algo sem sentido, acusando­a de  fazer  porcarias  com  o  namorado  cá  em  casa  –  o  que   sei  ser  mentira  –  só  para  a  atrapalhar.  E  nessa  humilhação,  quando  ela   tentar  negar,  dizer­lhe  que  ela  não  tem  capacidade  para  atrair  homem  nenhum  e  vê­la  dizer  que  eu  estou maluca, que eu não sei  o  que  digo.  E  eu  fingir  que  não  sei,  de  verdade,  o  que  digo,  para  que possa dizer tudo…   Ou  talvez  não  saiba  mesmo o que digo.  Ou talvez não saiba e  ela  tenha  razão.  Ou  talvez  nada  disto  tenha  acontecido  e  eu  seja  aquela  que  toda  a  gente viu – a mulher sofrida, compreensiva para  o seu marido, que perdoou a infâmia deste com a sua própria irmã;  que  sobreviveu  à  família  e  que,  hoje,  com  uma  resignação  assinalável  vê  o  mar,  todo  o  santo  dia  vê  o  mar  do  quintal  de  sua  casa,  e  aguenta  o  frio  do  vento  sem  um  queixume,  até  que  a  empregada  descuidada, sempre agarrada ao telemóvel, aos berros  dá  por  isso  e  lhe  vai  colocar  um  casaco  de  malha  nas  costas,  mas  sem  cuidado,  de  modo  que  o  casaco  volta a cair e a senhora – que  sou  eu  –  nem  dá  por  isso,  enquanto a empregada, de costas para o  mar,  a  proteger  o  telemóvel  do  vento,  também  não  repara   no   casaquinho  que  vai  pelos  ares,  a  não  ser  um  bom  pedaço  depois,  quando  lhe  pega,  de  novo  e  o  coloca  nas  costas  da  senhora.  E  a  senhora,  que  com  a   sua  idade  avançada  já  não  tem  os  sete  alqueires  bem  medidos,  diz­lhe uma  ou  duas coisas que não fazem  o  menor  sentido,  o  que  leva  a  empregada  a  sorrir  um  pouco,  com  consideração   pela  idade  da  senhora  e  repetindo  palavra  por  palavra,  à  pessoa com quem falava ao telemóvel, a cena que acaba  de  acontecer,  mas  rematando­a:  coitadinha,  com  88  anos.  Tomáramos nós lá chegar.  E o vento continua, a entrar gélido no mar.                   135   

          XII – ​ Madame      Continuo  em  frente  ao   mar,  sentada  neste  cadeirão  de  verga.  Cada dia passo menos tempo acordada. Durmo, durmo, durmo. Há  uma  canção  antiga  de  Jacques  Brel,  ​ Les  Vieux, que agora me vem  muitas vezes à cabeça e que diz que os velhos não morrem, apenas  dormem  ​ trop  longtemps​ .  É  interessante  como  traduzir  esta  expressão  se  torna  quase  inútil.   Demasiado  tempo  é  redutor;  mas  se  for  um  demasiado  longo  tempo,  talvez  fique  a  parecer  mais  poético  do  que  é,  na realidade; em francês diz­se, por exemplo, eu  estou  aqui  à  tua  espera  há  ​ longtemps​ .  É  a  palavra  adequada  para  dizer  há  muito  tempo.  Mas  se  lhe  acrescentarmos  demasiado  ou  excessivo,  que  é  o  que   quer  dizer  ​ trop​ ,  fica  demasiado  muito  tempo  e  perde o sentido. É por isso que certas coisas só podem ser  ditas  em  determinados  idiomas,  e  a  tradução  é  sempre  uma  traição.   Mas  logo  a  mim,  que  baralho   o   português  e  o  espanhol,  me  havia de dar para estas reflexões parvas…  Recordo  Yannick,  a   minha   ​ Madame  querida,  que  misturava  português,  espanhol  e  francês.  Os  dois  primeiros  idiomas,  aprendera­os  comigo  e,  depois,  praticando.  ​ Madame  ​ faz­me  falta,  como  muita  falta  me  fazem,  desde  há  anos,  tantas  outras  pessoas.  O  meu  Luisito,  cuja  falta   é  apenas  física  e  não  espiritual,  meu  filho,  meu  único  filho.  Maria,  a  minha  filha  Maria,  a  minha  filha  querida.  Minha  mãe,  minha  irmã,  meu  marido,  meu  pai,  minha  Madame  Yannick,  minha  amiga  Elena.  Pergunto­me  se  Fátima,  a  minha  empregada,  minha  estimada  embirração,  me  faria  também  falta caso me desaparecesse subitamente. Talvez…  Yannick  era  a  minha  mais constante, senão única, companhia  intelectual.  Juan  Luis  era  muito virado para os negócios e, quando  eu  era  muito  nova,  achava  isso  o  mais  importante  num  homem  com  quem  vivesse  –  que  sustentasse  a   sua  casa.  Luisito  acompanha­me  intelectualmente,  dentro  de  mim,  mas  falta­me  a  sua  presença  física,  é  como  alguém  que  conhecemos  apenas  por  correspondência,  como  quando  a  minha  filha  Anita  era  nova  e  se   correspondia  com  amigas   que  nunca  conheceu  pessoalmente.  Eu  apoiava­a  nessa  tarefa,  cheguei  a  estudar  alemão  com  ela  apenas  para  que  pudéssemos  responder  a  uma  amiga  austríaca  que  lhe  escrevia  em  inglês,  mas  confessava  ter  dificuldade de dizer coisas  bonitas  nessa  língua,  preferindo   o   alemão.  Logo  o  alemão,  que  135   

não  parece  talhado  para  que  se  diga algo de verdadeiramente belo  ou  sublime  salvo  lógica  ou  matemática,  embora  isto  possa  ser  preconceito meu.  Yannick  era  uma mulher prática, mas ao mesmo tempo muito  voltada  para  os  cortes  radicais  no  pensamento.  Um  dia,  nesta  mesma  casa,  no  Verão,  já  éramos  as  duas  bem  entradotas  e  eu  tinha  acabado  de   sair  da  minha  aventura  arturiana,  ela  desafiou­me  até  ao  limite  do  meu  próprio  pensamento.  Disse­me,  pura e simplesmente:  ­  Agora  que te libertaste do psiquiatra, porque não fazes amor  comigo?  Eu  achei  que  ela  estava  a  brincar  e  respondi­lhe  à  letra.  Mas  ela insistiu.   ­  Olha,  vamos  pensar  –,  como   dizia  tantas  vezes,  desafiando­me  –  Que  nos  impede,  duas  mulheres  feitas,  de  nos  amarmos?  De  nos  fazermos  o  que  sempre  pedimos  aos  homens  e  eles nos fazem sempre sem jeito? Que nos impede?  Eu  fui  ensaiando  respostas:  O  nojo?  O  facto  de  eu  não  ser  capaz?   O  facto  de  eu  não  ver  qualquer  erotismo  no  corpo  de uma  mulher?  O  facto  de  eu  não  considerar  que  isso  me desse qualquer  prazer  ou  recompensa  emocional?  O  facto  de  isso  me  provocar  mais  problemas  de  consciência  e  de  identidade  do  que  qualquer   eventual bem que me fizesse?  Yannick  sorria  e  ia  dizendo  que  não,  que  era  pura  e  simplesmente  uma  construção  social.  Que  nós  não  nos  agarrávamos  e  esfregávamos  uma  na  outra porque fôramos ambas  ensinadas,  treinadas  para  pensar que isso era errado. Mas o que de  errado  pode  haver  em  duas  pessoas  que,  manifestamente,  precisavam  que  as  agarrassem  e  acariciassem,  se  cada  uma  delas  fizesse  o  que  a  outra  precisamente queria que lhe fizessem? Pensa  em ti, não penses em mim, dizia­me ela com o seu ar trocista.  ­  Não  posso,  ​ Madame​ .  Torna­se  impossível  para  mim  –  ripostava­lhe  eu.  E  eu   sabia  que  sim, que era impossível. Mas não  sabia  expressar  ao  certo  porquê.  Por  que  razão  não era totalmente  cultural,  por  que  haveria  de  desmentir  que  a  razão  da   minha   renúncia  a  ser  acariciada  por  ela,  se  fundava   tão  claramente  –  assim  mo  parecia  –  numa  construção  do  que  era  o  bem  e  do  que  era  o  mal,  que  ancestralmente,  homens  e  mulheres,  igrejas  e  correntes  filosóficas  tinham,  mais  ou  menos  decretado.  Ora,  se  nós  tínhamos  –  como  sublinhava  ​ Madame​ ,  quebrado  o  tabu  da  fidelidade  nas  relações  estáveis  (ela  conhecia  o  meu  caso  com  Artur  e  eu  sabia  de  casos  dela),  se  nós  tantas  vezes  tínhamos  verberados  atitudes  e  manias  que  eram  pura  tradição  errada,  que  detestávamos  –  incluindo  o  tabu  da religião, uma vez que eu, pelo  menos,  tinha  um  Deus  muito  próprio  –  que  barreira  nos  impedia  de  quebrar  este  derradeiro  interdito,  que  era  o  de   fazer  amor  –  e  135   

não  necessariamente  amar,  como  ela  sublinhava  –  com  uma   pessoa do mesmo sexo?  Felizmente,  nenhuma  de  nós  estava  na  flor  da  sua  idade,  juntas  passávamos  largamente  os  100  anos,  pelo  que  o  ardor  do  desejo  não  se  sobrepôs  nunca ao  fulgor do raciocínio. Dei voltas à  cabeça,   tentando  encontrar  uma  resposta  que  fosse  absolutamente  racional  e  destruísse  a ideia de haver uma conspiração  de homens,  mulheres,  igrejas  e  pensadores  contra  a  homossexualidade,  pelo  menos  contra  a  minha  possível homossexualidade.  Concentrei­me  na  seguinte  questão:  eu  rejeito  o  mesmo  sexo,  porque  há  tempos  imemoriais  todos  nós  assim  somos ensinados? Os homossexuais e  bissexuais  acabam  por  ser  mais  livres  do  que  eu,  ao libertarem­se  desse  desígnio  culturalmente imposto?  Ou há uma razão exterior a  mim  para  a  homossexualidade  me  causar  repulsa?  Será  que  os  homossexuais  são  apenas  diferentes,  nem  mais  nem menos livres,  e fazem parte de uma pequena minoria que não age de acordo com  os padrões normais do ser humano?  Yannick ria­se dos meus esforços e picava­me:  ­  Não  tens  resposta.  Vais  ver que a conclusão só pode ser que  se  trata  de  uma  escolha.  Se  quiseres  ser  homossexual,  ou  se  quisesses  ter  sido,  quando eras nova, podias tê­lo sido ao longo da  vida, com toda a naturalidade.  ­  ​ En  Ayllón  no  me  cuadraba  ​ ­  disse  eu,  rindo­me  da  possibilidade…  ­  Olha,  se  tivesses  vontade,  ​ cuadraba,   y  volvíate  a  cuadrar  disse­me  ela  num  péssimo  espanhol.  Se  tu  fosses  homossexual,  que alternativa terias?  Se  eu  fosse! Respondi eu. Mas a  questão é  por que não sou. E  com  ar  triunfante,  virei­me  para  ​ Madame​ .  Yannick  concedeu­me  o  ponto,  dizendo  que  nesse  aspecto  eu  tinha  razão,  e  deixou­me  continuar a pensar na resposta que lhe havia de dar.   Muitas  das  nossas  conversas  decorriam  assim,  desde  que nos  conhecemos  em  Biarritz,  tinha  ela  pouco  mais  de  20  anos  e  era   recém­licenciada.  A  ideia  era  estimularmos o raciocínio, acho que  na  época  estava  na  moda  a  possibilidade  de podermos estimular e  desenvolver  o  cérebro  através  destes  exercícios.  De  modo  que  as  nossas  conversas  se  tornaram  muito  características,  começando,  no  geral,  por  uma  pergunta,  que  até  podia  ser  de  algibeira,  como:  por  que  razão  os bebés masculinos se vestem de azul e as meninas  de cor­de­rosa?  Mas  à  questão  da  homossexualidade  latente não consegui dar  resposta.  Ela  foi  simpática,  concedendo­me  mais  e  mais  tempo,  mas  eu  nunca consegui responder. Foi ela, pois, quem ganhou esta  guerra,  avançando  com  uma  explicação  que  é,  ainda  hoje,  a  melhor que tenho.  135   

Dizia  Yannick  que  a  heterossexualidade  é,  de  facto,  uma   construção,  mas  uma  construção  natural.  É  darwinista,  dizia  ela   totalmente  convencida  da  sua  razão.  O  problema  destas  correntes  modernaças  da   antropologia  e  da  sociologia  é  que  funcionam  por  chavões,  por  meras  frases  feitas,  por  estruturas  em  cima  de  estruturas,  desligadas  da  crua  realidade  e,  como  resultado,  percebem  tudo  mal;  chamam  a  tudo  construções,  sem  mais.  Mas  há,  a  meu  ver,  dois  tipos  de  construção:  a  construção  social  e  a  construção  natural.  As   construções  sociais  são  aquelas  que,  na  realidade,  são  feitas por necessidade ou convenção – como o facto  de  andarmos  vestidos  e  não  nus,  daí decorrendo o facto de termos  vergonha  de  mostrar   a  nossa  nudez  a  desconhecidos.  Mas  as  construções naturais devem­se  a necessidades absolutas da espécie  que  nos  transcendem.  É  o  caso  da  família,  que  não  é  obviamente  uma  célula  ou  um  conjunto  de  pessoas  que  tenha  sido  decretado  por  alguém  ou  algo,  mas  uma  necessidade  evolutiva.  No  mesmo  plano  está,  claramente,  a  heterossexualidade,  uma  vez  que  a  homossexualidade  é  irreprodutiva.  Isso  levará  um  organismo,  digamos,  sem  defeito  de   fabrico,  a  rejeitar  qualquer  homossexualidade.  Eu,  inicialmente,  indignei­me  um  pouco e apontei­lhe o facto  de  estar  a  acusar  os  homossexuais  de  serem  anormais  ou coisa do  estilo.  Mas  ela  recusou  essa  crítica  dizendo  que  não  se  tratava  de  os  discriminar,  mas  de  compreender  por  que  razão  havia  diferenças  e  por  que  razão  estando  ambas  carentes  de  carícias  e  abraços,  não  dávamos  o  passo  para  as  fazermos  uma à outra, para  além do que é a relação não sexual própria entre duas amigas.  ­  Somos,  então,  normais?  –  Perguntei­lhe  eu  provocatoriamente.  Ela  apenas  me  fez  um  olhar  de  fúria,   para  desatar  a  rir,   agarrando­se a mim. Eu abracei­a e, quando o abraço  se desfez, eu, a rir, disse­lhe:  ­  Como  podemos  estar  tão  perto  de  ser,  sem  na  realidade  o  sermos.  Este  abraço   foi  a  prova  de  que  não  temos  mesmo  tendência para a fufice.  Madame  concordou,   e  rindo­se  lembrou  que  tinha  ganho  a  contenda comigo.    Recordo  este  episódio,  porque  nos  sonhos  eróticos  que  tive  depois  desta  conversa,   ​ Madame  entrou  sempre  neles.  É  curioso  olhar  para  trás   e ver como nunca suspeitei de que, com mais de 80  anos,  pudesse  ainda  ter   sonhos  eróticos.  Não  são  iguais  aos  dos  20,  nem  aos  dos  40  anos.  São  brandos  e  confusos  em  certos  pontos,  no meu caso mais desavergonhados, mas ao mesmo tempo  mais ternos.   O  certo  é  que,  ainda  recentemente  – mas não sei se ontem, se  na  semana  passada,  se  há  mais  tempo,  porque  a  minha  memória  135   

para os assuntos recentes vai­se perdendo, o que é normal segundo  os  médicos  –, ainda recentemente, dizia, sonhei com ​ Madame. Foi  um  sonho  estranho,  brando  como  são  os  meus  sonhos  agora,  de  uma  cor  sépia,  ou  talvez  seja  eu  que  assim  os  imagino.  Entrava  Artur, o meu psiquiatra­amante, entrava Yannick e Juan Miguel. E  os  três  davam­se  bem  e tinham apenas por objectivo tratar bem de   mim.  Abraçar­me,  beijar­me,  massajar­me.  Eu  tinha  um  enorme  prazer  e  mandava  Fátima  servir­lhes  bebidas.  Fátima  andava  –  sabe­se  lá  porquê  –  com  aquele  fato  de  banho  que  lhe  fica  mal  e  que  noutro  dia  lhe  vi  na   praia.  Todos  os  outros  estavam  nus,  os  corpos  já  não  muito  novos,  sobretudo  o  de  Juan  Miguel  –  talvez  porque  esse  fosse  o  único   corpo  de  homem  velho  que  conheci.  Mas  Yannick  também  tinha  os   seios   descaídos,  e  a  sua  carne  era  branca,  totalmente  branca  e  flácida,  de  tal   modo  que,  quando  levantava  os  braços  lhe  caíam  umas peles. O próprio Artur tinha a  sua  barriga  maior  do  que  o  costume,  quase  lhe  tapando  o  pénis,  que estava flácido, sem desejo.   Fátima  servia  champanhe,  tostas  com  caviar,  ostras  e  fruta  diversa.  De  um  modo  geral,  tudo  o  que  poderia  ser  associado  ao  erotismo.  E  o  sonho  era  daqueles   que  parecem  reais  e,  pensando   bem,  foi  a  vez  que  mais  perto  estive  de  um  bacanal.  Os  convivas  serviam­se,  mas  o  seu  principal  objectivo  era  servir­me.  E  eu  sentia  um  ardor  a  subir  por  dentro  de  mim  e,  de  todos  os  corpos  olhando  a  barriga  protuberante  de  Artur  e  o  ar  velho  de  Juan  Miguel  –  aquele  que  me  dava  mais  prazer,  apesar  da  alvura  exagerada  da  carne  e  das  peles  que  lhe  caíam  dos  braços  e  das  pernas,  não  obstante  o  duplo  queixo  visível  e  o  cheiro  a  champô  barato  (que  na   realidade  era  uma  sua  característica),  o  que  mais  me  entusiasmava  era  Yannick.  Quando  acordei,  tive  pena  de   não  ser  verdade  e,  quando  vi  Fátima,  quase  tive  vontade  de lhe contar  o  sonho,  mas  preferi,  uma  vez  mais,  não  lhe  dar  confiança.  Não   sei  se  fiz  bem,  se  não  for  a  ela,  não  tenho  mais  ninguém  a  quem  contar  estas  coisas.  À  minha  filha,  está  fora  de  causa,  só  se  for  através  de  metáforas  enormes  para  as  quais  me  falta  a  paciência.  Acho  que  se  lho  contasse  Anita  ficava  em  estado  de  choque  três  dias.  Não  por  achar  mal,  ou  qualquer coisa dessas, é uma rapariga  desempoeirada,  mas  por  eu  ser  sua  mãe.  Também  já  não  tenho  Yannick  e  nunca   mais  vi  Artur,  acho  que  ele  está  num  lar  para   velhos  ricos,  para  as  bandas  de  Cascais.  Juan  Miguel  também  me  faz  falta e Luisito, que  me compreende tão bem, sobre estas cenas,  curiosamente,  nada   me  diz.  Talvez  se  envergonhe  do  facto  de  a  sua própria mãe, com 80 e muitos anos, ainda ter libido.   Talvez  se torne inconveniente ter libido, em vez de – como se  diz  –  ter  arrumado  as  botas  e  passar  a  viver  assexuadamente.  No  entanto,  e  ainda  que  seja  só  a  dormir,  esta  octogenária  sente  alguma coisa. É verdade, ainda que possa ser também triste…    135   

Esperei  que  Fátima   fosse  tomar  banho,  para  ficar  sozinha  nesta  cadeira  em  frente  ao  mar  e,  discretamente,  fiz  avançar  a  minha  mão  entre   as  minhas  pernas,  como  algumas  vezes  fizera  noutros  tempos,  muito  antigos.  Queria  conhecer  o  toque,  pois  há  muito  que  é  a  própria  Fátima  a  lavar­me  e  há  muito  que  não  me  toco  no  sexo.  A  mão  seguiu  por entre as minhas pernas, que estão  ásperas e esbarrou com uma fralda.  A ideia esfumou­se!   É  triste,  quando  nos  vemos confinadas a isto. É triste que não  morramos  de  uma  vez,  mas   aos  poucos.  E  a  parte  mais  triste  é  sempre  aquela  que  persiste  em  viver.  A  minha  cabeça  mantém­se  fora  do  mar,  mas  quase  todo  o  corpo  já  se  afogou  –  tal  qual  vejo  agora  Fátima  quando  uma  pequena  onda  passa  por  ela.  Sou,  pois,  uma  náufraga   de  mim  própria,  a  qual,  já  não  podendo  retirar  o  resto  do  corpo  da  água,  lhe  resta  esperar  que  a  maré  suba,  de  modo a afogar­lhe o que falta. Ou ter a ousadia de mergulhar…                                        XIII – Vida além    Sinto  que  só  aqui  sou  eu,  só  a  olhar  o  mar  sou  eu.  Não  me  conheço  nem  reconheço  noutra  parte  da  casa,  nem  noutra  135   

circunstância.  Tudo  me  distrai,  tudo  me  é  diferente  e  novo.  Se  olho  para  a  sala,  aquela  grande  sala  da  minha  casa,  não  a  reconheço.  Minha   filha  Anita  mudou­a  muito.  Colocou  sofás  diferentes,  umas  cadeiras  novas,  uma  mesa  oval,  uma  televisão  estreitinha.  A  princípio,  perguntava­me  a  opinião,  mas  depois,  como  eu  mostrasse  desinteresse  e  lhe  respondesse  cantando,  cantando,  cantando   –   sobretudo  as  canções  da  minha  juventude  ­,  ela deixou de me informar.   Os  retratos  de  Juan  Miguel  ainda aqui estão, mas ao longo da  mesa  onde  só  estava  eu  e  ele  a  princípio,  juntou­se  depois  Anita,  depois  Luisito,  depois  Maria.  Com  o  acidente,   por  vontade  expressa  minha,  desapareceu  o  retrato  de  meu  filho,  não  quero  mais  recordações  do  que  as  que  tenho  e essas são de outra ordem.  Mais  tarde,  a  galeria  voltou  a  aumentar;  as três filhas de Anita, os  dois  filhos  de  Maria,  meus  netos,  e  o  inefável  Humberto,  meu  genro,  com  cara  sorridentemente  idiota.  E  ainda  outras  caras,   cujas  baralho,  ou  mal  conheço.  Um  Manuel  que  casou  com  a  minha  neta  mais  velha,   um  José   que  casou  com  a  segunda,  um  namorado da terceira, uma noiva do neto mais velho e, finalmente,  os  bebés,  as  minhas  bisnetas,  duas  meninas  encantadoras  que  se  riem das minhas palhaçadas de velha.   Ao  lado  da  mesa,  em  cima  do  meu  velho  piano,  que  já  ninguém  toca,  vêem­se  ainda  minha  mãe,  meu  pai  com  seu  uniforme,  e  a  minha  irmã  Pilar  –  que  faz ela aqui, na minha casa?  Se  minha  filha  soubesse  não  exporia  assim  a  tia  aos  olhos  de  sua  velha mãe… E ainda estão os meus sogros, os catalães imponentes  e  ricos  que  fizeram  este  palacete  à  beira­mar,  e mais uma série de  gente  de  quem  não  me  lembro  já  que  parentesco  ou  amizade  lhes  devo.  Dentro  de  casa  sinto­me  estranha,  como  se  nada  –  nem  o  território,  nem  a   paisagem  –  já  fosse  meu.  Sinto­me  estranha,  estrangeira  como  sempre  fui.  Por  isso  canto,  adormeço  a  despropósito,  finjo ver televisão – ainda que às vezes um filme me  prenda.   Já  não  tenho  barreiras,  acho  que  isso  é  também  normal,  pelo  menos  é  o  que  diz  o  médico. Digo palavras feias e sou, por vezes,  ordinária em excesso. Gosto de chocar.   Aqui  sentada  a  ver   o   mar,  porém,  o  panorama  não  se  altera:  há,  como  sempre,  o  grande  oceano  à  minha  frente  que  se  deita na  estreita  faixa  de  areia  em  que  no  Verão  se  estendem  as  pessoas  que  quase  se  atropelam.  Nada  muda,  se  exceptuarmos  o  tamanho  dos  fatos  de  banho  e  as  marcas  dos  produtos  anunciados  nos  chapéus­de­sol.  Aqui  reconheço­me,  sou  eu,  como  era  há 10 anos  e  como  era  há  20.  O  que  fez  Anita  a  minha  casa  não  fez  Deus ao  mundo, e por isso Lhe agradeço.    135   

Há  dias, num malfadado momento em que  dei atenção e troco  às  conversas  da  Fátima, ela perguntou­me se eu acreditava  na vida  depois  da  morte.  Acho  que  tinha  visto  qualquer  coisa  num  programa  de  televisão.  É  curioso  como  os  programas de televisão  agradam  sobretudo  às   empregadas  domésticas,  talvez  o  país  seja  um  enorme  armazém  de  empregadas  domésticas,  caso  contrário  não fariam os programas assim.   Eu respondi­lhe que não. Mas ela quis discutir.  É  triste  pensar  que  a  evolução  da  humanidade  não  chega  harmoniosamente  a  toda  a  gente.  Talvez  os  iluministas  e,  sobretudo,  os  positivistas  pensassem  que  o  conhecimento  se  espalhava  como  uma mancha de óleo, mas tal não é verdade. Hoje  quase  toda  a  gente  depende  do  telemóvel  –  não  eu,  que  só  ouço  com  dois  aparelhos  auditivos  que  interferem  e  soltam  um  desagradável   apito.   As  pessoas  dependem  do  telemóvel,  que  não  faço  a  menor   ideia  como  funciona,  tal  deve  ser  a  sua  complexidade  técnica.  Mas  é  possível que um ser humano como a  Fátima,  com  um telemóvel  na mão e a televisão diante dos olhos –  lembro­me  do  espanto  quando  assisti,  pela  primeira  vez,  a  uma  emissão  em  França,  numa  viagem  que  fiz  com  Juan  Miguel  ­,  apesar  de  tudo  confie  que  há  vida  depois  da  morte.  E  como  seria  essa  vida  depois  da  morte,  perguntei­lhe  eu.  Teria  televisão  e   telemóvel?  Daria  uma  novela  sobre  a  vida  antes  da  morte,   ou   a  intriga  seria  já   sobre  a  vida  depois  da  morte?  E  nesse  caso  o  que  haveria  como  desfecho  trágico?  Não,  seguramente,   a  morte,  pois  já estavam mortos, talvez nascimentos. Imagino um diálogo:  ­  Sabes  quem  nasceu?  O  Henrique  Lacerda  de  Vasconcelos  (as  telenovelas,  como  sabem  têm  sempre personagens com nomes  a puxar para o sangue azul).   Ao que respondia a outra personagem:  ­ Não me digas, ele que ainda era tão novo aqui…  Bem,  isto  não  fará  sentido,   mas  sinceramente  revolta­me que  as  pessoas não entendam  o  óbvio sobre a vida depois da morte. De  modo  que,  para  a  esclarecer  cabalmente,  ainda  que  uma  cabeça  como  a  dela  não  possa  nunca  ser esclarecida, porque é obscura de  sua  natureza,   pedi  que  me  ajudasse a levantar, o que ela fez, e que  fosse  comigo  à  sala.  Ela  veio  atrás  de  mim,  porque  se  há  uma  coisa  que  a  idade  ainda  pouco  me  marcou  foi  nas minhas funções  motoras. Mexo­me lindamente.  Na sala, apontei para a fotografia de Anita e perguntei­lhe:   ­ Sabes quem é?  ­ Claro, minha senhora, é a sua filha.  Depois  apontei  os  meus  netos  e  as  minhas  bisnetas  e  perguntei  o  mesmo.  E  ela,  obviamente,  que  sabia  os  nomes  de  todos,  melhor  do  que  eu,  que  me  baralho,  e  foi  respondendo,  135   

rindo­se,  com  a  complacência  que  se  deve  a  uma  velha  meia  maluca.  E  então  eu  disse­lhe.  Todos  esses,  que  aí  vês,  são  eu  depois  da  morte.  E são Juan Miguel depois da morte. Alguns  são também  Anita  depois  da  morte  e  Maria  depois  da  morte.  As  duas  bisnetas  serão  as  minhas  netas  depois  da  morte.  Toda  a  gente  vive  depois  da  morte.  Só  o  meu  Luisito  tem  de  se  contentar em viver a minha  vida, enquanto falar com ele.  A  idiota  desatou  a  rir­se.  E   eu  vi  que  era  impossível  uma  conversa  decente  com  ela.  A  idiota  achou  que  eu  estava  a  disparatar, e eu então disparatei:  ­ ¿De que te ríes, coño? ¡Carcajeas cochina! ¿Serás tonta?   Com  a  asneirada,  a  mulher  ainda  mais  se  riu  e  eu,  para  continuar  o  espectáculo  aproveitei para dizer mais uns palavrões e  insultá­la  de  tudo  o  que  me  fui   lembrando.  Pensou,  então Fátima,  que  a  situação  tinha  voltado  ao  normal  e,  pegando­me  no  braço,  reencaminhou­me   para  o  meu  cadeirão  de  verga  frente  ao  mar  e  foi à sua vida.  Mais  tarde  Luisito  repreendeu­me  brandamente  pelo  facto de   eu ter dito aquelas asneiras mas, pior do que isso, perguntou­me se  seria  ele  o  único,  como  eu  tinha  dito,  a  não  ter  vida  depois  da  morte.  Eu  respondi­lhe  que,  enquanto  falasse  comigo,  enquanto  o  lembrasse,  ele viveria. Mas ele quis saber mais: e se tu morreres, o  que  vai  ser  de  mim,  que  sou  teu  filho?  Quem  vai  cuidar  de  me  responder?  Fiquei  embatucada.  Na  verdade,  na  teoria  que  eu  tinha  exposto,  apenas  tinham  vida  depois  da  morte  aqueles  que  têm  filhos. Todos os outros, as crianças que  morrem, os casais inférteis  e  os  homossexuais  não  teriam  direito  a  uma  vida  posterior.  Porquê?  Perguntava­me  Luisito.  E  a  resposta  brutal  era  apenas  uma,  que  eu  não  lhe  queria  dar.  Porque  não  fica  ninguém  no  mundo  para  os  recordar.  Uma  pessoa  só  morre,  quando  morre  a  última  pessoa  que  dela  se  lembra.  E  de  súbito  recordei  que  meu  pai  não  tinha  morrido,  nem  minha  mãe.  Nem sequer – imagine­se  –  a  Pilar,  que  tantas  vezes  recordo  e  cuja  sepultura  visito,  por  estar,  ironicamente,  enterrada  no  mesmo  cemitério  que  Juan  Miguel,  aqui  perto,  mas  no  sentido  oposto  ao  mar.  No  sentido  da  terra…  Que  injustiça há, porém, neste pensamento e que peso para os  meus  ombros.  A  minha  morte  implica  a  morte  de  Luisito  e  implica,  de  certa  forma,  a  morte  de Pilar e de Juan Luis, de minha  mãe,  de  meu  pai,  dos  meus  manos  Raul,  Enrique,  e  Eduardo…  e  de  Elena,  que  esteve  comigo  em  Ayllón,  e  de  seus  pais,  o  bom  Manuel  Blanco  e  Dolores…  E de Yannick a minha ​ Madame​ … Só  de  repente  contei  uma  dúzia  de  pessoas  que morrem comigo, cuja  memória  se  apaga,   ou   quase.  Que  poderá  fazer  Anita?  Pode  135   

lembrar­se  de   mim  e  do  pai,  certamente  o  fará, porque sempre foi  boa  e  sempre  gostou  de  nós.  Poderá,  talvez,  recordar  a ​ tita Pilar e  o  ​ tito  Juan  Luís.  Pode,  com  esforço,  ter  vagas  lembranças  de  Elena,  que  conheceu  em  Madrid,  sobretudo  na  época  em  que  Maria  lá  esteve.  E   de  Yannick,  que  viu  algumas  vezes.  E  da  abuelita  que  morreu  quando  era  já  crescidinha.  Mas  já  nada  poderá  fazer  pelo  avô,  que  nunca  viu,  a  não  ser  nestas fotografias  sépia,  nem  pelos  três  tios  que   morreram  antes  de  ela  nascer.  E  é  triste  interrogar­me:  para  que  viveram  Raul,  Enrique  e  Eduardo?  Para  que  vive  uma  flor  que  é  arrancada  à  nascença?  Para  que  viveste, Luisito?  E  não  há  uma  resposta.  Se  Raul,  Enrique e Eduardo vieram a  este  mundo  só  para  morrer  numa  guerra  estúpida,  sem  outro  desígnio,  é  porque  não  há  desígnio.  Nada  nem  ninguém  teria  como  destino  uma  coisa  tão  sem   sentido.  Mas,  por  outro  lado,  se  não  há  desígnio,  por  que  digo  eu  que   a  minha  vida  depois  da  morte  são  a  minha  filha,  os  meus netos e as minhas  bisnetas? Que  sentido  tem  isso?  Quem  me  assegura  que  não  lhes  sobrevivo,  como sobrevivi ao resto da família toda?   Afasto  este  último  pensamento  com  um  gesto  que faço no ar.  Um  gesto  largo  que  me derrubou o chapéu. E penso no horror que  seria passar por mais uma experiência dessas…   Não  sei  responder   a  Luisito  e  nem  sei  que  lhe  dizer.  Salvo  o  que  aprendi  num  bolero  antigo  que  dizia  assim:  ​ Toda  una  vida  te  estaría  mimando,  te  estaría  cuidando  como  cuido  mi  vida,  que  la  vivo por ti​ .8  E  será  este,  ao   fim  e  ao  cabo  a  minha  ​ raison  de  vivre​ .  Vivo  por  causa  daqueles  que  não  vivem  de  outro  modo.  Porém,  se  assim  for,  eu  tenho  um  desígnio  que   é  este,  e  não posso dizer que  não  há  desígnios.  Que  falta  me  faz  ​ Madame  para  resolver  estas  charadas…  Os  católicos  –  que eu também me considero, apesar da minha  heterodoxia  –  resolvem  este  problema  com  a  ideia  de  que  os  caminhos  do  Senhor  são  imperscrutáveis. Devem ser. Se o são, de  facto,  não  vale  a  pena  perder  tempo  em  tentar  compreendê­los,  mas  esta  ideia  gera  outro  paradoxo:  se  não  perdemos  tempo  a  tentar  compreendê­los,  como  podemos  saber  se  são  imperscrutáveis, misteriosos, insondáveis?   Não  se  tratará,  ao  fim  e  ao  cabo,  de  erro  nosso?  De  não  tentarmos  perscrutar os caminhos Dele? De sabermos, se o Luisito  que  fala  é  o  meu  filho  ou  se  a  sua  voz  sou eu, porque eu vivo por  ele?  E  se  eu  vivo  por  ele  foi  porque  alguém  o determinou? Quem  fez com que uma estúpida camioneta passasse precisamente à  hora  em  que  ele  saiu  atrás  de  uma  bola?  Foi  o  acaso?  Mas  o  que  é  o  8   Toda uma vida  te estaria mimando, te estaria cuidando  como cuido a  minha vida, que  a vivo  por ti. Bolero dos anos 40 cantado por António Machín, da autoria do cubano Oswaldo Farrés 

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acaso?  Será  também  imperscrutável,  ou  poder­se­á  prever,  ainda  que  com  a  margem  de  erro  de  uma  previsão  meteorológica.  E  mais  importante  do  que  isto  tudo: onde entra a minha culpa nisto?  Por  que  tive  de  sofrer  tanto?  Por  que  nasci  num país que havia de  fazer  uma   guerra,  que  havia  de  me  separar  de  meus  pais,  que  havia  de  matar  os  meus  três  irmãos  e  o meu pai? Por que razão vi  morrer  dois  filhos?  Por  que  razão,  no  mesmo  ano,  nesse  preciso  mesmo  e  horrível  ano,  meu  marido,  primeiro,  a  minha  adorada  Madame,  depois,  minha irmã a seguir, minha querida amiga Elena  e  por  último a minha filha Maria morreram? Todos entre Janeiro e  o  Verão,  porquê?  É  isto   o   acaso,  ou  é  a  vontade  de  Alguém,  de  Algo?  E  essa  vontade  tem  um  propósito,  tem  uma  razão,  ou  é  imperscrutável?  Como  eu  odeio  a  palavra  imperscrutável.  Como  eu  me  resignei  a  aceitá­la  e  como  me  resigno  a  não  ter  respostas  para  as  perguntas  que  faço,  embora  quase  sempre  tenha  para  as  perguntas que me fazem.  Fátima  apanhou  o  chapéu  e pôs­mo na cabeça. Perguntou­me  em  que  estava  eu  a  pensar  e  eu  respondi­lhe,  como sempre,  numa  mistura  de  espanhol  e  português:  na  ​ morte  de  la  bezerra​ .  E  a  bezerra,  depois  de  morrer,  tem  vida,  minha  senhora?  –  Perguntou  ela a sorrir.  Eu  virei­lhe  as  costas,  olhei  para  o  mar  e  tive  vontade  de  lhe  responder  que  a  bezerra  vivia  nela, que era uma grande vaca. Mas  Luisito  já  me  repreendera  pelos  meus  modos  ordinários,  pelas  palabrotas  que  agora  dizia,  de  modo  que  me  reprimi  e  apenas  o  sussurrei  às  ondas,  que  ao  princípio   da  noite  formavam  manchas  brancas  como  fantasmas.  Espero  que  elas  tenham  sido  complacentes para o meu humor cáustico e mal­educado.            XIV – A viagem      Nunca  passei naquele fio que  marca o horizonte; nunca! E, de  todo  o  espaço do mundo, de todo este planeta imenso, talvez fosse  o  local  onde  mais  gostava  de  ir  um  dia.  Chegar  aquele risco onde  os  azuis  se  tocam e olhar­me de lá para cá; apurar a vista e  ver­me  a  mim  própria  sentada  neste  cadeirão,  defronte  ao  mar.  Não  seria  como  um  espelho;  não  quero  apenas  ver­me,  quero  ter o ponto de  vista  de  mim  a  partir  daquilo  que   vejo.  As  casas,  as  pessoas,  a  agitação  da  praia  vistas  lá  do  fundo,  como  serão?  Como  será  este  meu  quintal,  que  parece  uma  grande  varanda  sobre  o  mar  com  135   

duas  palmeiras  antigas  e  retorcidas  e  entre  elas  um  cadeirão  de  verga  onde  está   sempre  uma  velha  a  olhar  para  esse  ponto   indefinido que é, justamente, a linha do horizonte?   Há  barcos  que   se alugam – e eu poderia facilmente alugar um  e  fazer­me  essa  vontade.  Mas  falta­me  o  ânimo.  A  cada  dia  que  passa,  a  vontade  de   fazer  é  menor  do  que  a  vontade  de  estar.  Dizem que é normal, o médico diz que é assim…  Há  anos,  porém,  no  fatídico  ano  de  tantas  mortes  na  minha  vida,  fui  de  barco.  Minha  filha levou­me com ela, com o marido e  com as suas filhas.   Fomos  de avião para Florença e ela obrigou­me a calcorrear a  cidade,  atrás  de  uma  guia  idiota  que  nos  explicava  o  que  eu  já  sabia,  embora  só  lá  estivesse   estado  uma  vez,  já  há  muito  tempo  com  Juan  Miguel.  O  que  mais  me   estonteou  foi  a  quantidade  de  turistas  por  tudo  o  que  era  praça  e  igreja;  diante  de  ​ Santa  Maria  del  Fiore  ou  nos  ​ Uffizi​ ,  como  se  toda  aquela  gente  estivesse  verdadeiramente  interessada  no  Renascimento  italiano,  na  estatuária  de  Michelangelo,  nas  pinturas  de  Giotto.  Em  todo  os  lados  me  acotovelavam  hordas  de  japonesas,  bandos  de  nórdicos,  magotes  de  gauleses  como  se   os  bárbaros  invadissem  de  novo  a  península  itálica  mas,  desta  vez,  com  fins  culturais.  Era  impossível,  insuportável.  Sobretudo  quando  queria  recordar  a  paz  e  a  tranquilidade  das  ruas,  da  ​ Ponte  Vecchio​ ,  da  pequena  esplanada  junto  ao  baptistério,  locais  que  me  vinham  à  memória  do  tempo  em  que,  de  braço  dado  com  meu  marido  –  e  sem  as  hordas  –  ele  me  mostrou  Florença,  a  mais bela pequena cidade da  Europa, como dizia muitas vezes.  Depois,  partimos  para  Veneza.  Lembro­me de ter ido à missa  na  Catedral  de  São  Marcos  e  de  a  ter  visitado  sem  nada  pagar,  enquanto  uma  fila   de  turistas  aguardava  que  o  serviço  religioso  terminasse  para  poderem,  então,  entrar  em  rebanho  e  visitar  o  templo.   Impressionou­me  muito  esta  forma  de  fazer  turismo.  Por que  razão  as  pessoas  estão  tão  interessados  numa  igreja  e  tão  desinteressados  daquilo  que  para  ela  serve  –  meditar,  realizar  eucaristias  ou  missas, que no étimo da palavra significa partilhar a  graça,  o  carisma?  O que leva tanta gente a querer  conhecer o local  sem  se  aperceber  do  significado  das  duas  colunas  que  ficam  à   porta  da  Catedral?  Ou  da  sua  arquitectura  bizantina?  Ou  do  leão,  que  é  o  símbolo  da  cidade?  Digo  isto com a  certeza de ter viajado  com  um  par  de  pessoas,  minha  filha  e  Humberto,  para  não  falar  das meninas, então ainda todas solteiras, que, como se diz em bom  português, eram bois a olhar um palácio…  Convencionou­se  que  o  turismo  cultural  tem algo de superior  ao  turismo  de  praia  ou  de  montanha.  Roma,  Florença,  Atenas,  Paris,  Londres,  Madrid  –  todas  essas  cidades  têm  os  museus  135   

cheios  de  basbaques  que  não  entendem  nada  do  que  vêem,  apreciando  tantas   vezes  coisas  que  não  passam  de  enganos  e  mentiras. Logros, fraudes, embustes.  Yannick,  a  minha  ​ Madame  –  mas  ela  já  não  estava  cá  para  mo  dizer  –  diria  que  o  turismo  é  isso  mesmo  –  coleccionar  locais  em  que  se  esteve  e  dizer  duas  patacoadas  sobre  a  arquitectura,  os  museus,  o  modo  de  vida  e  a  gastronomia.  E que, no fundo, aquilo  a que chamamos cultura não passa disto mesmo.  E  eu  contraporia  que  o  argumento  dela  não  faz  qualquer   sentido,  porque  a  cultura  tem  de  aspirar  a  ser  mais  do  que  patacoadas  e  que,  se  as  pessoas  estivessem  deveras  interessadas  em  cultura,  interessar­se­iam  por  missas, porque a própria missa é  uma  clara  forma  de  arte  e  uma  chave  para  entendermos  a  nossa  cultura.  Sei  que  palavras  trocaríamos  as  duas,  por  vezes sob o sorriso  brando  e  talvez  displicente  de  Juan  Miguel,  que  pensaria  lá  com  ele:  para  que  discutem  estas  mulheres coisas tão sem importância,  tão  irrelevantes? Mas é precisamente por se ter perdido este hábito  de  começar  por  debater  as  ninharias,  que não se chegam a debater  as coisas verdadeiramente relevantes.   A  missa  é  uma  arte,  disso  tenho  a  certeza.  E  mais:  se  por  acaso  não  se  realizasse  uma  missa  desde  o  século  XVI ­ e através  de  uma  pista  entretanto  descoberta  se  conseguisse  refazê­la  na  actualidade  ­  os  turistas  compareceriam  em  massa  e  pagariam  bilhetes  caros  para  ver  essa  relíquia  do  passado.  Mas,  como  essa  relíquia  do  passado se realiza – com certas transformações, é certo  –  há  cerca  de  2000  anos,  ninguém  se  interessa  por  ela,  salvo  os  crentes  e  as  pessoas  como  eu  e  Yannick,  que  debatíamos  os  pequenos temas, os pequenos mistérios da vida e da morte.  A  praça  de  São  Marcos  é  tão  magnífica  quanto  inesquecível.  Na  esplanada  do  Florian,  enquanto  se tocavam valsas, deu­me um  impulso  quase  irresistível  de  dançar  e  depois  andar  de  gôndola,  como  se  tivesse  um  amante,  um  namorado.  Mas não tinha par que  não  fosse  o  idiota  do  Humberto  e,  depois,  tive  medo  de  me  desequilibrar  fosse  nas  voltas da valsa, fosse ao entrar no pequeno  barco;  já  tinha   mais de 80 anos e tinha muito mais medo da minha  idade,  mais  medo  da   doença,  das  quedas  e  da  morte  do que tenho  hoje.  Talvez  fosse  mais  sensata,  ou  talvez  tenha  aprendido,  não  sei.  Apanhámos  um  paquete  em  Veneza.  Um  barco  com  sete  ou  oito  andares,  inacreditavelmente  grande,  com  piscinas, campos de  basquetebol,  ginásios,  cabeleireiros,  lojas,  casino  e  tudo  o  que  se  possa  imaginar  lá  dentro.  Parecia  um  arraial  constante,  repleto  de  famílias  felizes  e  tontas,  que  me  deixaram  totalmente  alheia.   Na  viagem  passámos  por  Bari,  por  Santorini,  por  Atenas,  por  Katakolon,  por  Dubrovnick  e   voltámos  a  Veneza.  O  meu  genro  135   

deve  ter  gasto  bastante,  pois  alojámo­nos  em  três  camarotes  simpáticos  com  grandes  varandas  de  onde  se  via  o mar, tão perto,  tão  prateado,  que  fiquei  fascinada  e  passei  os  dias  quase  inteiros  naquela  varanda  a  ver  o  mar  Mediterrâneo,  as  suas  pequenas  ondas,  as  variações  da  sua  cor,  os  reflexos  de  prata  que  o  Sol  lhe  provoca.  Apenas   me  levantava  para  as  refeições  e  pouco  mais.  Minha  filha  comprou­me  revistas  e livros em português e também  em  espanhol  para  afastar  de  mim  as más lembranças. Mas eu, que  me recorde, não tive lembranças. Que lembranças poderia eu ter?   A  morte  é  um  torpor,  não  é  uma  recordação  nem  uma  saudade.  É  um  torpor,  um  torpor absoluto que nos deixa com uma  força  que  não  supúnhamos  ter  para  sermos  capazes  de  superar  a  perda.  Um  torpor  que  nos  vai   guiando  os  passos,  sem  que  disso  tenhamos  consciência,  como  se  os  passos  já  não  nos  pertencessem,  não  fossem  os  nossos,   mas  os   passos  que  damos  porque  não  temos  outra  hipótese,  ou porque não sabemos fazer de  outra forma, ou porque já nada nos interessa.   Por isso não li. Apenas olhei o mar.      A  viagem  teve,  entretanto,  outro  objectivo  que  para mim não  fora  claro  desde  o  início.  Minha  filha  tinha  decretado  que  eu  não  poderia continuar a viver sozinha.   Há  já  muitos  anos  que  eu  e  Juan  Miguel  tínhamos  escolhido  esta  casa  frente  ao  mar  para  vivermos  todo  o  ano. De férias  vinha  o  resto  da  família,   por  vezes  também  minha  irmã,  e  juntávamo­nos  aqui  uns  dias.  De  resto,  o  Algarve  de  Inverno  é  uma  maravilha.   Mas  aquele  ano  de  todas  as  mortes  deixou­me  sozinha  com  Fátima  neste  casarão,  o  que  preocupou  Anita.  Foi  assim  que  ela  e  Humberto  resolveram  que  eu  iria  para  Lisboa,  viver com eles e com as minhas netas.   Na  verdade,  durante  a  doença  de  Juan  Miguel,  que  foi  seguida  por  um  médico  de  Lisboa,  eu  já  vivia  praticamente  em  casa  deles.  Mas  na  Páscoa  voltei  a  minha  casa,  com  a  diligente  mas ineficaz Fátima, que vivia então um processo de divórcio – há  anos  assim,  que  parecem  desenhados  para  concentrarem  tudo  o  que de mau e de complicado possa acontecer.   Soube  mais  tarde,  mais pelo que ouvi  e tirei pelo sentido, que  Fátima  se  sentia,  por  alguma   razão,  insegura  a  viver  no  casarão  sozinha  comigo, como se Juan Miguel com 80 anos nos valesse de  muito…  Sempre  fiquei  desconfiada  de  que  ela  tinha  um  arranjo  em  Lisboa  e  quis  mudar­se,  mas  não  posso  ter  a  certeza.  De  qualquer  modo, o que aconteceu é que ela foi uma poderosa aliada  de minha filha para que eu ficasse em casa dela.   Consegui  uma  moratória  para depois  do  Verão. Sinceramente  preferia  morrer  imediatamente  nesta  casa  do  que  viver  mais  sete  anos  (como  já  vivi)  estando  a maior parte do tempo longe do mar.  135   

A  casa  deles  é  confortável,  mas  é  a  casa  deles.  Não  é  a  minha  casa,  embora   até  esta,  pelo  menos  no  que  toca  ao  mobiliário,  esteja progressivamente, também, a deixar de ser minha…  A  viagem  foi  uma  forma  de  estarmos  mais  juntos  e  de  me  convencerem,  com  bons  modos,  a  viver  com  eles.  A  minha  neta  mais  velha  ia  casar­se  e  deixar  a  casa  para  ir  para  os  Estados  Unidos,  como  foi,  e  a  segunda  foi  para  casa  do  namorado mesmo  antes  de  casar.  Por  isso,  com   muito  menos  gente  no  prazo  de  um  ano  –  argumentava  Anita  –  deitava­se  por  terra  a  ideia  de  que  eu  ia  dar  muito  trabalho  a todos.  Ao mesmo tempo, a solidão que por  vezes  sentia  neste  casarão  do  Algarve,  empurrava­me   para  um  lugar  que,  mais  do  que  casa,  era  um  lar.  O lar de minha filha, que  sempre  foi  resignada,  dócil,  amiga,  meiga  mas  com  a  qual  nunca  me preocupei, exactamente porque era assim.  Os  dias do cruzeiro, tão  perto do mar que quase parecia poder  tocar­lhe  com  as  mãos,   foram  dedicados  a  pensar  se  aceitaria  ou  não  viver  com  eles.  Por  um  lado,  nunca  escondi  isso  de  forma  eficaz,  Humberto  sempre  me  irritou.  É  correcto,  tem  boas  maneiras,  trata  bem  a  mulher  e  as  filhas,  ganha  um  bom  salário  e  reúne  uma  série  de  outras  qualidades  de  que  seguramente  nunca  me  apercebi.  Mas  é  um  gestor.  Apenas  centrado  na  gestão  da  sua  equipa  e  em  coisas  que   se  dizem  em  inglês  e  que eu nem percebo  o  que  são.  A  diferença  entre  ele  e  Juan  Miguel,  que  também  tratava  de  negócios,   é  que  meu  marido  nunca  me  maçava  com  essas  questões,  ao  passo  que  Humberto,  mal  se  senta  à  mesa  dispara  sobre  Anita problemas que têm a ver com a Bolsa, ou com  o  orçamento  não  sei  de   quê  e  a  contabilidade  de  qualquer  coisa.  Minha  filha  ouve­o  como  se  percebesse  –  e  se  calhar  percebe,  porque  eu  um  dia  perguntei­lhe,  à  sorrelfa,  se  ela  percebia  e  ela  respondeu­me, para minha enorme surpresa, que sim.  Enfim,  Humberto,  pensava  eu,   não  é  magnífico,  mas  não  é  insuportável.  Era  um  ponto  negativo  na  decisão,  mas  não  era  um  ponto impeditivo.   Já  de  Anita  eu  gosto  muito.  É  a  minha  filha  mais  velha  e  a  mais  serena.  Tal  como  eu,  já  é  uma  sobrevivente  –  morreram­lhe  os  dois  irmãos,  ambos  em  circunstâncias  estranhas,  trágicas.  Tratou,  sempre  com  grande  devoção,  as  filhas  e  o  marido,  com  quem  era  casada,  na  altura,  há  28  anos  (farão  este  ano 35 anos de  casados  e  haverá  festa,  segundo  me  disseram, por serem as Bodas  de  Coral,  de  que eu nunca tinha ouvido falar. Mas a verdade é que  nunca  tinha  ouvido  falar  do  dia  dos  namorados,  nem  no do dia da  avó,  nem  da  maior  parte  dos  dias  que  agora  se  comemoram).  Talvez  por  ter  sido  sempre  tão  certinha,  boa  aluna,  boa  filha,  boa  mulher,  boa  mãe  e,  agora,  boa  avó,  nunca eu lhe prestei a  atenção  devida.  Anita  era  um ponto positivo, não decisivo, mas positivo…  Talvez pudesse refazer com ela as longas conversas com Yannick.  Depois,  havia  as  meninas,  em  quem  depositei  algumas  135   

esperanças.  Mas  logo  no  barco  percebi  que  as  meninas  de  agora  não  são  –  de  todo  –  semelhantes  às   meninas  do  tempo  de  minha  filha.  As  meninas,  no  barco,  levantavam­se  ao  meio­dia,  para  almoçar,  e  deitavam­se  depois  de  noites  de  festa,  sem  que  os pais  quisessem  saber  delas,  às  quatro  e  cinco  da  manhã.  Muitas  vezes  dei  pela  mais nova,  que dormia no meu  camarote, deitar­se já com  o  Sol  a  raiar,  não  disfarçando  o  cheiro  a  álcool  e  a  tabaco. Fiquei   convencida  de  que  as  três  fumavam  e  bebiam  à  vontade,  não  à  minha  frente,  talvez  por  decoro,  mas  seguramente  à  frente  dos  pais.  A  verdade  é  que  duas  delas  se  preparavam  para  casar  ou  juntar­se  ou  qualquer  coisa  assim,  o  que  fazia  delas,  mais  do  que  adultas.  As  meninas  eram  um  ponto  neutro. É certo que gostavam  de  mim e me mimavam. Eu era uma avó ​ fixolas como dizia a mais  nova.  E  era – dava­lhes dinheiro, contava­lhes histórias, sobretudo  acerca  dos  hábitos  do  meu  tempo,  como  conheci  e  como  dancei   com  o  avô  e  elas  riam­se  e  achavam  fascinante  o  modo  como  o  mundo  mudou,  desde  esse  agora   tão  longínquo  ano  de  1921,  em  que nasci, até hoje…  Viver  sozinha  com  Fátima  era  um ponto negativo, preferia as  amarguras  orçamentais  de  Humberto…  E  este  era  um  ponto  a  favor da mudança. Mas a casa – a casa era um ponto contra.   Ao  fim  de  seis  ou  sete  dias  de  viagem  desisti  de  pensar.  E  pensei  que  seria  como  uma  pequena  garrafa  de plástico que vi em  pleno  mar  –  deixar­me­ia  ir, deixar­me­ia ir até onde me levasse o  acaso.   Há  quase  oito  anos  que  vivo  em  Lisboa,  salvo  durante  o  Verão,  quando,  entre  semanas  a  sós  com  Fátima  e  outras  com  a  minha  filha  ou  com  as  minhas  netas,  aqui  estou  a  fitar  o  mar.  Sentada  neste  cadeirão  de  verga,  que  afinal  é  o  mesmo  sítio  do  que  a  varanda  do  camarote  –  uma  cadeira  virada  para  o  oceano,  tão  perto  que  quase  lhe   toco,  e  onde  penso,  penso,  penso  e  nunca  chego  a  qualquer  conclusão  ­,  a  não  ser  que,  como  então  pensei  naquele  enorme  barco,  gostaria  de  estar  naquela  linha  do  horizonte  para  de  lá  me  ver  a  mim  –  não  como  nos  vemos  num  espelho, mas talvez da maneira que Deus nos olha.      XV – As bodas      Nunca  me  apaixonei   verdadeiramente,  salvo  nestes  últimos  dias.  Apaixonei­me  por  este   mar.  Não  é  paixão  à  primeira,  nem à  segunda  vista,  mas  é  uma  paixão  repentina,  de  quando  o  comecei  a  ver  com  outros  olhos,  quando  o  imaginei  envolver­me  e  abraçar­me.  Foi,  talvez,  uma  ternura  antiga  que  se  tornou  paixão,  135   

contrariando  a  ideia  comum  de  que  são  as  paixões  a  transformarem­se  em  ternura.  Eu  nem  sabia  o que era  uma paixão  antes  desta,  se  é  possível  que  uma  mulher  com  88  anos  se  apaixone por um mar inteiro.  Toda  a  vida  ouvi  pessoas  a  dizer  que  tinham paixões por isto  e  por  aquilo.  Se  ter  paixão  é  gostar  muito  –  e  não  é  mais  do  que  isso  ­,  então  tive  as  minhas  paixões:  por  Juan  Miguel,  por  meus  filhos,  por  meus  netos,  por  ​ Madame​ ,  por  música,  por  cinema, por  livros,  por  paisagens,  por  cidades,  por  montanhas,  por  países,  por  cheiros,  por  cores,  por  assuntos,  por  debates.  Agora,  porém,  que  eu  entendo  que  paixão   é  algo  que  nos  prende  de forma irracional,  que  nos  faz  ficar,  que  nos  atrai  contra  a  nossa  vontade,  que  contraria  o  bom  senso,  que  faz  pouco  de  nós,  que  derroga  e  subverte  as nossas crenças e convicções – e tudo isso eu sinto pelo  mar – então nunca senti nada assim, como sinto hoje.  Eu  olho  o  oceano  horas  por   dia, as ideias fluem­me enquanto  o  olho  e  nada  me  faz  sair  do  seu  lado,  apesar  de  ele  se  manter  imperturbável  e  majestoso, como sempre, desconhecendo sequer a  minha  presença.  Amar  alguém  que  nos  ama  é  fácil. Amar alguém   que  nos  ignora  é  outra  coisa  a  que  poderemos,  de  facto  chamar  paixão.  Acredito  que  um  pianista  possa  ter  esse  sentimento  pelo  seu  piano.  Uma  jovem  pode  ter  esse  sentimento  por  alguém  mais  velho,  pelo  seu  amor  secreto  impossível,  como  eu,  aos  13  anos,  tive  por Carlos, o mergulhador que me  ensinou a entrar na água de  forma  elegante   e  que  tão  mal  tratado  acabou  às  mãos  de  meu  irmão  Raul.  Mas  não  quando  se  é  adulto, não quando se casa, não  quando se constitui uma família.  Acredito  que  a  baboseira  do  amor e da paixão, inventadas em  grande  parte   no   século  XIX,  segundo  creio,  é  responsável  por  muitos  males  e  equívocos  por  que  passam  os  casais  actualmente.  Dantes  as  pessoas  casavam­se  por  dois  motivos:  porque  tinham  interesses  comuns  e  porque   queriam  ter  filhos  para  ajudar  nos  trabalhos  e  na  subsistência  e  tratar  deles  na  velhice.  Depois,  passaram  a casar  por amor. Mesmo os reis e os príncipes quiseram  casar  por  amor  –  vejam  Carlos  e  Diana...  Deu  sempre  mau  resultado,  porque o amor esgota­se  e ou se transforma em amizade  ou  em  desprezo.  Os  casais  enamorados  são,  agora,  demasiado  próximos.  Eles  não  representam  uma  parte,  como  nos  contratos,  mas  ambos  pretendem  ser  um  todo  –  e  partilham  segredos,  como  partilham  a  nudez,  os  casos,   as angústias e as misérias. Quando se  partilha  a  roupa  suja,  só  uma  grande  amizade  ou  um  enorme  sentido  do  dever  pode  salvar  uma  vida  em  conjunto.  Se  não  há  uma  nem  outra,  afunda­se  o  casamento.  No  geral, se perguntarem  aos  jovens  por que razão se  querem casar, a maioria deles dirá que  é por amor. Que tragédia!  Minha  filha  Maria  casou sempre por paixão – dizia ela. Viu o  seu  primeiro  marido e apaixonou­se! Viveu intensamente com ele,  135   

teve  dois  rapazes  e  separou­se.  Acabou  o  encantamento ao  fim de  dois filhos. Quando eu lhe perguntava porquê, apenas respondia:  ­ Ele deixou de me achar graça.  Tirando  eu,  ninguém  achava  estranho.  Não  o  podia  dizer,  claro,  mas  fariam   as  minhas  filhas  ideia  de  há  quantos  anos  eu  deixara de achar graça a Juan Miguel? Embora tivesse por ele uma  enorme  amizade, desde há muito, desde as suas primeiras traições,  que eu lhe deixara de achar graça.  Maria  conheceu  outro  homem  pouco  depois  e  –  zás!  –  apaixonou­se.  Conheceu­o  em  Madrid  por  ele  ser  de  alguma  forma  relacionado  com  a  minha  amiga  Elena. Acho que o homem  ficou  fascinado  por   uma  menina  que  vivia  em  Portugal  e  falava  um  espanhol  impecável.  Ela  voltou  a  Lisboa,  mas  tinha  sempre  a  cabeça   em  Madrid.  Telefonavam­se  horas  a  fio,  até  as  orelhas  arderem  aos  dois.  Até   que  um dia, minha filha me comunicou que  ia  para  Espanha  para  viver  com  ​ su  novio​ .  E  queria  partir  imediatamente  para  a  capital  espanhola.  Mas,  como  ​ del  dicho  a  hecho,  hay  gran  trecho  ​ não   foi  assim  tão  simples  partir.  O  seu  ex­marido  iniciou  uma  longa  querela  pela  tutela  dos  dois  filhos,  foram  mobilizados  advogados  e  especialistas  e  –  como  era  de  supor,  logo  no  início  –  ele  ganhou  e  ficou  com  as  crianças.  Até  hoje  pago  este  litígio  vendo  os meus netos muito menos do que as  minhas  netas. São­me distantes, viveram com o pai e estão agora a  iniciar  as  suas  vidas.  Visitam­me  quando  estou  em  Lisboa,  vêem­me  pelo  Natal  e  pelos  meus  anos.  Comunicaram­me  dados  importantes  –  acabei  o  curso,  vou  para  Inglaterra  estudar,  vou  fazer  isto  e  aquilo,  arranjei  um  emprego,  estou  a  pensar  casar  –  mais nada.  Voltando  a  Maria,  depois  de  perder  os  filhos,  ainda  mais  vontade  tinha  de  ganhar  o  homem.  O  que  fez.  Partiu  definitivamente  para  Madrid  e  ali viveu dois ou três anos com ele.  Acontece  que,   depois  de  conhecermos  melhor  o homem, que nem  era  antipático,  Juan  Miguel  engraçou com ele. Combinámos ir dar  uma  volta  por  Espanha  e  que  eles  nos  acompanhariam.  Porém,  assim  que  chegámos  a  Madrid  descobrimos  que  estávamos  a  navegar  con  bandera de tonto​ . A relação deles estava mais do que  acabada.   Tão  acabada  que  –  em  nome  da  sacrossanta  transparência  e  não  menos  sagrado  combate  à  hipocrisia  –  nos  comunicaram  que  não  iam  connosco.  Ora,  nós  só  íamos  porque  eles  vinham  connosco,  de  maneira  que  voltámos  para  trás,  fingindo que íamos em frente. Paciência…  Mas  Maria  não  se  ficou  por  aqui.  Depois  de  uma  longa  temporada  sozinha,  que   passou  em  Madrid,  onde  tinha emprego e  –  menos  mal  –  o apoio da minha querida amiga Elena, acabou por  se  apaixonar  pela  terceira  vez.  Quando  mo comunicou eu  avisei­a  que  uma  vida  serena  não  era  assim.  Ela  não  acreditou  e  foi  em   frente.  Foi­lhe  fatal.  Fatal  de  um  modo  inacreditável  e  que  ainda  135   

hoje me arrepia.  Já Anita se parece muito mais  comigo.  Namorou o Humberto,  casou  com  o  Humberto,  vive  com  o  Humberto.  Não  sei  se  traiu o  Humberto  e  o  se  o  Humberto  a  traiu  a  ela.  Nem  quero  saber.  É,  aparentemente,  feliz.  E  toda  a  felicidade  que  Maria  perseguiu  em  nome  da  sua  liberdade   pessoal  para  amar  quem  queria,  no  momento  que  queria,   não  vale  uma  semana  da  sossegada  felicidade  de  Anita.  Mas  os   românticos  que  empestaram  o  nosso  pensamento  continuam  a  querer  libertar  não  o  ser  iluminado  que  há  em  nós,  mas  o  animal  que  está  dentro  de  nós.  E  o  animal  é  estúpido,  ou  pelo  menos  não  é  tão  inteligente  como o ser racional  e  iluminado.  Por  isso  persegue  o  que  não  há:  pretende  expandir  um  momento  de  felicidade  –  o  momento  do  primeiro  beijo,  do  primeiro  encontro,  de  uma  boa  relação  sexual  e  fazer  desse  instante,  desse  lampejo,  toda   uma  vida.  É  mentira.  Escrevei  isto  com  letras de ouro na vossa consciência, como dizia o padre daqui  da  terra  na   missa  da  semana  passada.  Escrevei,  de  facto  que  é  mentira, porque é das mentiras mais mentirosas que existem!  O  momento,  a  felicidade  que  se  sente,  nos  inunda  num  momento  não  é  prolongável  pela  vida.  Do  mesmo  modo  que  não  se  pode  correr  ou  andar  infinitamente  e  se  tem  de  parar ao fim de  um  tempo,  a  felicidade  toma­se  em  pequenas doses, entrecortadas  por  outras  doses  –  de  preferência  também  pequenas  –  de  infelicidade.   A  mim,  que   tudo  me   aconteceu, da guerra às mortes,  do  casamento  à  traição,  do  amor  à  velhacaria,  eu  que  tive  tanta  infelicidade   por  parceira,  mentiria  se  não dissesse que também fui  feliz.   Maria  só  queria  ser  feliz,  ao  passo  que  Anita,  mais  sábia,  também queria ser feliz. A diferença parece pouca, mas é imensa.  Anita  casou­se  discretamente,  tal  como  eu,  numa  pequena  Igreja  com  menos  de  50  convidados.  Maria,  no  seu  primeiro  casamento,  casou­se  na  Igreja  do  Estoril,  com  mais  de  400  convidados.  Anita  foi  aprendendo  a  gostar  do  seu  marido,  ao  mesmo  tempo  que  Humberto  aprendeu  a  gostar  dela.  Maria  pensava  que não podia gostar do marido mais do que aquilo que já  gostava.  Anita,  na  primeira  pequena  crise  que  teve,  não  a  valorizou; Maria, na primeira crise quase deitou a casa abaixo. Por   isso,  eu  e  Juan  Miguel  vivemos as crises de Maria, todas de perto,  e  deixámos  que  Anita  se  desenvencilhasse.  Se  Anita  alguma  vez  pensou  que  nós  a  colocávamos  em  segundo  plano,  nunca  o  disse,  mas Maria sempre se queixou que nós gostávamos mais de Anita.   Por  isso eu rio­me sempre que nos jornais e nos programas de  televisão  ouço enfatuados a explicarem a importância da educação  na  formação   do   carácter.  Anita  pedia  desculpa  mesmo   antes  de  fazer  algo   mal,   Maria  achava  sempre  que  a   culpa  não  tinha  sido  dela.  Não  pôde  haver  educações  mais  iguais,  não  pôde  haver  pessoas  mais  diferentes.  Já   eu  e  Pilar  foi  o  que  se  viu  –  mas  no  135   

nosso  caso tínhamos estado quase três anos separadas, numa idade  fundamental  para   o   desenvolvimento.  Anita  e  Maria  viveram  na  mesma  casa,  com  a   mesma  cultura,  com  os  mesmos  padrões  e  as  mesmas  exigências.  Se  alguma  coisa  houve  de  diferente  nas  suas  vidas, foi que Anita viu Luisito morrer…  Devo  dizer  que  foi   Luisito,  já  há  muitos  anos,  o  primeiro  a  falar­me  desta  diferença  e  a  mostrar­me   que  eu  não  dava  a  Anita  tanta atenção e amparo como a Maria.    Seja  como  for,  Maria  teve  sempre  as  suas  paixões  desmedidas,  enormes,  disformes,  grandiosas.  Em  tudo  era  exagerada,  mesmo  nos  ciúmes,  ameaçando  à  toa  os homens que a  traíssem.  Minha  tia  Concepción   –   disse­me  minha  mãe  já  eu  era  mais  do  que  adulta  –  tinha  sobre  este  assunto  uma  grande  sabedoria.  Dizia  ela,  referindo­se  à  eventualidade de o seu marido  a  trair,  que  ​ no  ​ es  jabón  que  se  gaste​ .  E  tinha  toda  a  razão,  desde  que  feito  com  classe  e  sem  ferir  parceiros,  não  é  de   facto  sabão.  Eu  preferia   dizer,  do  meu  Juan  Miguel  –  mesmo  depois  do  infausto  caso  de  Pilar  –  uma  frase que aprendi de uma amiga: não  sei,  se  souber  não  me  importo  e  se   me  importar  não  digo.  Ainda  hoje  penso  que  não  há  outra  forma.  Se  há  algo  que  aprendi  com  Juan  Miguel  é  que  as  pessoas não mudam. Podemos dar­lhes todo  o  amor  do  mundo,  fazer por elas  o  que não faríamos por ninguém,  mas na essência, elas não mudam.   Quando  era  nova  e  gostava  de  dançar,  havia uma música  que  meu  marido  me  cantava  ao  ouvido,  para  me  provocar,  e  que  eu  hoje  me  recordo  bem,   como  recordo  tudo  o  que  é  velho  e  inútil.  Dizia  assim,  e  a  fala  era  de  um  homem,  a  quem  chamavam  Corazón Loco por amar duas mulheres ao  mesmo tempo: ​ una es  el  amor  sagrado/  compañera  de  mi  vida/  esposa  y  madre  a la vez/ y  la  otra  es  el  amor  vivido/  complemento  de  mis  ansias/  al  que  no  renunciaré/  y  ahora  ya  puede  saber/  como  se  pueden  querer/  dos  mujeres a la vez​ .  Quero  crer  que  Juan  Miguel  era  assim,  precisou  sempre  de  um  complemento  para  as  suas  ânsias,  coisa  de  que  só  necessitei  muito  mais  tarde,  passados  já  os  50,  quando  o  meu  psiquiatra  Artur  as  acalmou.  E  também,  então,  percebi,  quanto  vale  o  amor  vivido  de  que  fala  a  canção,  amor  por  amor,  sem  qualquer  construção  a  partir  dele,  apenas  para  ser,  apenas  para  sentir,  para  ter os momentos de felicidade que não se podem prolongar.    Tudo  isto  para  dizer  que   não,  que  nunca  estive  propriamente  apaixonada.  Vivi  momentos  entusiasmantes  com  Juan  Miguel,  tivemos  instantes  em  que  eu daria a  vida por ele – e mais do que a  minha  vida,  a  vida  de  todos  os  que  amava  para  ficar  só  com  ele.  Mas  como  disse,  eram  momentos  únicos,   milésimos  de  segundo,  135   

um  minuto  que  fosse…  e  embora  pudesse   querer  que  o  tempo  parasse,  que  o  tempo  ficasse  sempre  naquele  momento, nunca me  iludi.  O  tempo  passa  –  e  lembro­me   de  outra  canção,  esta  mais  recente  e  mais   apropriada  à  minha  circunstância:  ​ El  tiempo  pasa,  nos  vamos  poniendo  viejos/  y  el  amor  no  lo  reflejo  como  ayer/  Y  en  cada  conversación/  cada  beso, cada  abrazo se impone siempre  un  pedazo  de  razón/  Pasan  los  años  y  como  cambia  lo  que  yo  siento/  lo  que  ayer  era  amor  se  va  volviendo  otro  sentimiento/  Porque  años  atrás  tomar  tu  mano,  robarte  un  beso/  sin  forzar  un  momento formaron parte de una verdad.  Na  verdade,  o  amor  não  se  mostra  aos  30  como  quando  se  tem  15  anos.  Foi  esse  o  mal  de  Maria  e  foi  essa  a  sabedoria  de  Anita.  E eu, tão boa a classificar minhas filhas, como fiz? Bem, eu  deixei­me  ir,  como  sempre.  Casei  quase  sem  dar  por  isso,  tive  momentos  de  grande  felicidade  e  momentos  de  grande  amargura.  Amei­o  em  muitos  diferentes  momentos  da  minha  vida,  como  noutros  –  como  naquele  em  que  cheguei  a  ir  para Madrid ter com  Elena  (fingindo  que  ia  ver  Maria,  mas  com  a  intenção  de fugir) ­,  noutros  quase  o  odiei.  Porém,  no  momento  em  que  ele  adoeceu,  quando  ficou  claro  que  se  ia  para sempre, reconheci que o amava.  Mas  não  estava  apaixonada  como  estou  pelo  mar.  Não  conseguia  estar  um  dia  a  olhar  para  ele,  sem  que  ele,  sem  forças  nada  me  dissesse, apenas sussurrasse aquele sussurro dos moribundos e que  tem  o  som  cavo  das ondas a bater na areia. Agora sim, agora ouço   o mar e amo o mar.   Não quero outra coisa que não seja o mar.        XVI – Deriva    O  mar  parece­me,  também  hoje,  um  lago.  Quase  não ondula,  não  tem  variações   de  tom  na  cor;  está  parado, quieto e silencioso,  como  se  preparasse  alguma  coisa  em  segredo,  algo  que  jamais  poderia  partilhar  com  o  magote  de  pessoas,  milhares  de banhistas  que  se  amontoam  na  areia  à  sua  frente,  de  ano  para  ano  mais  carregados  com  farnéis  e  merendeiras,  autênticos   frigoríficos  ambulantes,  de  onde  mulheres  com  banhas  a resvalar dos biquínis  retiram  a  água   fresca  para  os  filhos  e  as  cervejas  para  os  maridos  barrigudos,  os  quais  exibem,  em  geral,  uma  tanga ridícula sobre a  qual  lhes  cai  a  protuberância  estomacal  como  uma  papa  derramada de um boião.   São  visões  do  inferno,  parecem  pormenores  de  quadros  de  Bosch  onde  se  vêem  os  ventres   proeminentes  dos  pecadores,  135   

alguns  repletos  de  chagas,  a  serem  atacados  por  quimeras,  seres  simultaneamente  bichos  e  homens.  Meu  Deus!  Sinto,  em  doses  relativamente  iguais,  nojo  pelo  que  vejo  e  prazer  por  estar   aqui,  uns  metros  acima  do  Inferno,  desfrutando  o mar que eles só vêem  entre os folhos dos chapéus­de­sol.  Fátima  estava  insuportável   hoje.  Acho  que  já  telefonou  duas  vezes  para  Lisboa  a  fazer  queixa  de  mim.  De  uma  delas,  ouvi­a  claramente  referir  que  estava  preocupada  com  o  facto  de  eu  não  comer…  achava  que  podia estar doente. Da outra, não  sei que terá  sido,  mas  aposto  que  falava  com  minha  filha.  Imagino  a  desgraçada  da  Anita  no  seu  emprego,  na  sua  pequena  secretária  num  ministério,  num  gabinete  pequenino,  a  ter  de  ouvir,  com  a  sua  atitude  pachorrenta,  as  queixas  desta  mulher.  Quando  começava  a  respirar,  com  as  filhas  encarreiradas,  duas  fora  de  casa  e  uma  que  já  pouco  tempo  lá  passa,  caio­lhe  eu  como  uma  menina  pequena,  a   precisar  de  cuidados  de  empregada  e  de  preocupações  com  o  que  como.  A  pobre  deve  ficar  angustiada,  sei­o  perfeitamente.  Tanto  mais  que  acompanhou  comigo  –  mas  foi  ela,  sobretudo,  porque  eu  já  estava  velha  e  a  cidade  atrapalhava­me  os  passos  –  a  morte  do  pai,  cujo primeiro sinal de  doença foi, exactamente, não comer.  Eu não como, não porque me  sinta mal, ou porque não queira,  mas  porque  roubo  muita  comida  às  escondidas.  Todas as manhãs,  Fátima  dá­me  seis  comprimidos  (a  dose  passa  para  oito  ao  almoço,  seis  ao  lanche  e  mais  uns  oito  ao  jantar),  mas antes disso  mede­me  a glicemia e aponta num livrinho. É Anita que a obriga a  fazer isto. Quando aponta, diz sempre:  ­ Ai, minha senhora, que tem tanto. Por que será?  Eu  não  lho  digo;  apenas  ajo  como  as  crianças  traquinas,  e  faço­o  apenas  porque – como se diz em espanhol – ​ me da la gana​ .  O  que  faço é roubar bolachas e sobretudo batatas fritas. Se apanho  chocolates  também  os  como,  mas  neste  particular  tenho  de  ser  rápida  porque  a   própria  Fátima,  no geral, antecipa­se. Sempre que  me  leva  a  dar  um  pequeno  passeio,  que  ultimamente  tenho  recusado,  tomamos  café  numa  pastelaria  que  serve  uns  pequenos   chocolates  a  acompanhar  as  bicas.  Pois  ela  guarda  sempre  os  chocolates  –  e  às  vezes  o  senhor  dá­lhe  mais  do  que  um,  chega  a  dar­lhe  molhos  de cinco ou seis – e eu, quando a apanho entretida,  roubo­lhos  e  como.  Como  todos,  como  acabo  sempre  os  pacotes  de  batata  frita.  Porque  me  apetece.  Anita  já  me  apanhou  muitas  vezes  nestas  actividades  subversivas  e  ralha­me.  E  eu  digo­lhe,  que  interessa,  filha,  que   interessa  que  me faça mal agora. Já tenho  88  anos  e  posso  morrer  disto  ou  daquilo.  E  ela,  sem  resposta,  apenas me diz:  ­ ¡Que va, mamaíta, no digas tonterías!   Juan  Miguel  deixou  de  comer  com  apetite  a  meio  de  um  135   

Verão,  há  sete  ou  oito  anos,  não  consigo  já  recordar­me  com  precisão.  Coincidiu  virem  cá  a  minha  filha  e  o  meu  genro,  que  acharam  estranho  ele  não  querer  comer  nada  e  fazer  um  grande  sacrifício  para  ingerir  o  que  quer  que  fosse.  Telefonaram  a  um  médico  amigo,  de  Lisboa,  que  o  mandou  fazer  umas  análises.  Aparentemente, estaria tudo bem.  Anita  e  Humberto  voltaram  para  Lisboa,  mas  Juan  Miguel  não  melhorava.  Anita  dizia  a  Humberto  (disse­me,  mais  tarde  Fátima)  que  achava  que  o  pai  estava  deprimido,  por  qualquer  motivo.  Mas  ele  não  melhorava,  comia  cada  vez  menos  e  eu  preocupei­me seriamente.   Maria  passou  cá  por  casa,  vinda  de  Madrid,  onde  continuava  a  viver  com  o  seu terceiro homem – com o qual, aliás, lá se casara  num  acto  simples  de  Cartório  a   que  nenhum  de  nós  foi  –  e  ficou,  igualmente  preocupada.  Como  sempre  fez  na  vida,  quando  se  preocupava  com  qualquer  coisa,  mas  sobretudo  com  um  de  nós,  telefonou à irmã e pediu­lhe que ela viesse ao Algarve. Entretanto,  desapareceu  com  o  seu  homem,  que  nem  por  acaso  era  um   médico,  embora  ​ traumatólogo9  –  não  sei  como  se  diz  em  português – tendo ambos voltado para Madrid.   Anita  e  o  marido  lá   vieram  um  fim­de­semana  findo  o  qual  decidiram,  depois  de  muitos  telefonemas  para  Lisboa,  levar­nos  com  eles.  Foi  também  a  último  dia  em  que  vivi  nesta casa, com o  meu  marido,  como  vivia  então.  À  saída,  o  carro  teve  uma  complicação  qualquer  e  tivemos  de  chamar  um  reboque.  Juan  Miguel  sentou­se numa pedra da beira da estrada, olhou­me com o  ar mais triste que o vi fazer em toda a sua vida, disse­me:  ­ Vês, ​ cariño​ , alguém não quer que a gente se vá embora.  Eu respondi­lhe apenas: 

­ Ora, ​ my rey,​  voltaremos muy pronto!  

Juan Miguel nunca mais viu este mar, esta casa.    Em  Lisboa  teve  quatro  ou  cinco  meses  de  sofrimento,  internado  num  hospital  onde  eu  e  a  minha  Anita  o  visitávamos  duas  vezes  por  dia.  Também  as  minhas  netas,  Humberto  e  minha  irmã  Pilar  estiveram  muito  tempo  à  sua  cabeceira,  e  até  os  meus  netos  e  o  meu  ex­genro,  correctíssimo  como  sempre,  apareciam  todas  as  semanas.  Maria   também  veio  de  Madrid  três  ou  quatro  vezes, visitar o pai.   O  diagnóstico  não  podia  ser  pior:  cancro  no  pâncreas.  Fatal,  sem remédio, sem cura. Implacável.  Juan  Miguel  fez  todos  os  tratamentos e teve todo o apoio que  é  possível  um  homem  nas  suas  circunstâncias  ter.  Anita  e  9

 Ortopedista 

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Humberto  fizeram  tudo  o  que  lhes  foi  possível,  tanto  mais  que  Juan  Miguel,  à  medida  que  a  doença  o  tomava,  ficava  a  maior  parte  do  tempo  inconsciente,  ao  mesmo  tempo  que  eu  ia  caindo  num  torpor,  não  permitindo  que  alguém  pudesse  contar  comigo  para tomar uma decisão ou para agir.    Não  era,  de  facto,  capaz de ter qualquer iniciativa. Foi,  aliás,  nesse  momento  que  descobri quanto dependia dele. Nem sabia em  que  bancos  tínhamos  dinheiro   –   nem,  a  bem  dizer  –  se  havia  dinheiro.  Eu  não  tinha  cheques  e  nunca  soube  os  códigos  dos  meus  cartões  bancários.  Eu  já  não  guiava,  não  tinha  carro,  não   tinha autonomia. Eu dependia dele e estava a ficar sem ele.  Foram  tempos  de  muita  angústia,  até   que  um  dia  de  Janeiro,  um  dia  frio  como  a morte, o meu Juan Miguel faleceu no hospital.  O  médico  perguntou  claramente  a  minha  filha  se  achava  bem  aumentar  as  doses  de   morfina,  o  que  lhe  abreviaria  a  vida.  Anita  não  quis  tomar  a  decisão  sem  me  consultar  e  eu  –  que  Deus  me  perdoe  –  não  me  opus.  Apenas  disse  a  Anita:  acho  que  a  decisão  sobre  a  sua  vida  já  foi  tomada.  Deste  modo,  todo  o  dia  a  dormir,  inconsciente,  não  é  ele.  Anita  não  acrescentou  mais  nada  e   as  doses  foram  aumentadas  até  que  Juan  Miguel  dormiu  ​ trop  longtemps​ , como diz a canção de Brel.   Eu  acredito  que  a   medicina,  hoje  em  dia,  impede  a  dor.  Mas  creio  que  a  eutanásia  é,  na  maior  parte  dos  casos,  uma  falsa  questão.  Os  médicos  sabem  bem  o  que   fazer  e  se  não  confiamos  neles,  abrimos  uma  brecha  terrível  na  nossa  sociedade.  Utilizar  o  tema  da  eutanásia  como  conceito  político  é  perigoso,  porque  dá  a  possibilidade  de  se  matar  alguém  legalmente.  Proibi­la  é  criminoso,  porque  se  obriga  alguém  a  uma  degradação  física  e  moral,  contra  a  sua  vontade.  Se  querem  opiniões  honestas  e  desapaixonadas  sobre  o  assunto,  perguntem­me  a  mim  que  sou  velha,  ou  a  outros  como  eu…  Porque  se  há­de  deixar  garotos  de  40 anos brincar com temas que são mais próprios de velhos?     Por  essa  altura,  ainda  eu  não  sabia  que  se  iria  abrir  o  mais  negro  período  da  minha  vida,  pior  do  que  aquele  que  se  abateu  sobre  mim  no  tempo  da  guerra  civil.  Tinha,  na  altura,  81  anos  –  Juan  Miguel,  mais  novo  do  que  eu,  ainda  só  tinha 79. E eu estava  guardada  por  Deus  –  ou  por  quem  fosse  –  para  os  piores  dias  da  minha vida.   A  morte,  como  já  disse,  é  um   torpor.  Fiquei   atordoada,  não  fiquei  com  pena  de  mim,   porque estava preparada para  a morte de  meu  marido.  Quando  soube  da  notícia  –  tinha  acabado  de  chegar  ao  hospital  com  a  minha  empregada,  enquanto Anita fora arrumar  o  carro  ­  Fátima  agarrou­se  a  mim  a  chorar.  Nem  me  deu  a  possibilidade  de  poder amparar a minha filha Anita, que, apareceu  pouco  depois,  e  ficou  visivelmente  em  baixo,  quase  a  cair  de  135   

tristeza,  de  cansaço,  de  pena,  de  medo.  Penso  que  Anita,  nesse  momento,  chorou  tão  convulsivamente  como  eu  chorei  em  Ayllón,  abraçado  a  Dolores,  Elena  e  Manuel  Blanco,  quando  soube  que  meu  pai  e  meu  irmão  Raul  tinham  ambos  morrido.  Desta  vez,  apenas  fiquei  atordoada,  mas  resisti  sem  me  ir  abaixo;  já Anita parecia que lhe tinha desabado o mundo em cima.  Juan  Miguel  foi  para  uma  Igreja  perto de casa de Anita, onde  foi  velado  por  muitos  amigos  dos  meus filhos, sobretudo. Depois,  organizámos  o  enterro  para  o  Algarve,  para  perto  da  casa  onde  vivíamos,  para  um  jazigo  que  ele  próprio  mandara  fazer  e  onde  queria  –  por  convicção  que  eu  não  entendo,  mas  respeito  –  juntar  toda  a  família.  Esse  desejo,  ainda  que  muitas  vezes  relembrado  por  Anita,  nunca  foi  consumado,  pois  nunca  trasladámos  nem  o  nosso  Luisito  nem  a  nossa  filha  Maria   para  o  pé  do  pai.  Apesar  disso, no alto da porta do jazigo lê­se:    JUAN MIGUEL TRILL SANTIAGO E SUA FAMÍLIA    E  toda  a  sua  família  esteve  presente;  Pilar  deu­me  muito  a  mão  e  o  braço  e  chorou  muito  no  meu  ombro,  dizendo­me  que  metade  do  seu  choro  era  pena  e  o  resto  era  a  remorso  que  ainda  sentia  pelo  que  me   tinha   feito.  Como  remorso  em  espanhol  é  remordimiento  eu  cheguei  a  brincar  com  ela,  em  pleno  funeral,  dizendo­lhe: então, Pilar, no ​ seas perra​  não te mordas mais!  Maria  e  o  seu  novo  marido  médico  vieram  de  Madrid,  de  carro,  numa  correria  louca,  para  Sevilha  e  depois  para  aqui.  Chegaram  já  o  cortejo  tinha  saído  da  Igreja  para  o  cemitério.  Maria  apertou­me  muito  um  braço,  até  doer­me  –  e  foi  essa  a  última  vez  que  a  vi  e  que  a  senti  –  mas  não  quero  falar  disso  agora.  Quase   toda  a  vila  compareceu,  afinal  Juan  Miguel  era  um  benemérito,  um  entusiasta   e,  de  certa  forma,  um  filho  daquela  terra,  ali  nascido  a  poucos  quilómetros,  onde  sua  família  tivera  o  negócio da cortiça.  Já  viúva,  voltei  para  Lisboa.  Voltei  convencida  de  que  iria  viver  pouco  mais  tempo.  Esse,   aliás,  era  o  convencimento  de  Pilar,  que  agarrando  Anita  lhe  disse  num  tom  de  voz  que  julgou  que eu não ouviria:  ­  Agora  tens  de  tomar  bem conta de tua mãe. Sem teu pai, ela  não se aguenta nem seis meses…  Não  lhe  levei  a  mal  porque  pensava  o  mesmo.  O  que  nunca  pensei  foi  que  Pilar  me   faltasse  logo  a  seguir…  Mas  o  torpor que  nos  invade  reúne  forças  sabe­se  lá  de  onde…  E  aqui  estou,  viva,  passados  sete  anos  de  tormentos,  a  roubar  batatas  fritas  como  projecto  ousado  de  vida,  a   enganar  uma  empregada  e  a  minha  própria  filha,  fingindo  que  não  como,  quando  o  meu  mal  é  ter  135   

comido.  E  agora,  que  faço?  Para  que  vivo?  Que  préstimo  tenho?  A  que  me  destino?  Estas  foram  as  questões  que  coloquei  a  mim  própria.  Como  sempre,  quando  tinha  decisões  difíceis  a  tomar,  escrevi  a  ​ Madame​ .  Mesmo  na  época  dos  telemóveis,  nunca  perdemos  este  vício  antigo  de  comunicarmos  por  carta.  E  ela  respondeu­me  com  a  sua  sensatez  proverbial  e  os  seus  conselhos  mais  simples  e  encantadores:  vai  para  onde  te  levarem  –  aconselhou­me. Deixa­te ir, vive cada dia. ​ Carpe diem​ .  Foi  esta,  também,  a  última  carta  que  recebi  de  Yannick,  a  minha ​ Madame​ . Passadas nem duas semanas, recebi uma outra, de  um  primo  afastado,  cujo   nome  nem  conhecia,  informando­me  do  falecimento   de  Yannick  Gradignan,  professora  jubilada  da  Universidade  de  Bordéus,  actualmente  Universidade  Bordeaux  3,  Michel  de  Montaigne  (pensador  de  que  ela  gostava  tanto).  Tinha  88 anos, a idade que eu tenho hoje…  Mas  o  seu  conselho  ficou  gravado  em  mim.  Tenho­me  deixado  ir.  Fiz  um  cruzeiro,  fui  passar  férias  ao  Norte,  à  casa  de  família  de  Humberto,  fiquei  a  conhecer  os  pais  de  Humberto  e  uma  sua  tia  simpática  que  aqui  já  esteve  comigo  umas  semanas;  levaram­me  para  aqui  e  para  ali,  a  festas  de  fim­de­ano,  de  Carnaval  a  Natais  em  casas  de  pessoas  que  eu  mal  conheço,   mas  que  parece  que  são  da  família  das  minhas  netas,  a  jantar  com  os  pais  do  genro  da  minha  filha,  que  é  pai  de  uma  bisneta  minha…  eu  sei  lá.  Eu  fui,  tenho   ido…  tenho   seguido  à  risca  o  conselho de  Madame​ .   Por  isso  aqui  estou  com  Fátima,  neste  casarão.  A  tentar  roubar­lhe  os  chocolates  e  as  bolachas,  as  batatas  fritas  e   ainda  mais  uma  coisa  que  eu  descobri  que  é  óptima:  manteiga  salgada  comida  às  colheres.  Faço  o  que  me  apetece,  chateio­a  à  exaustão,  só  para  me  divertir,  finjo  que  não  consigo  fazer  determinadas  coisas,  desligo  os  aparelhos  do  ouvido  e  ponho  a   televisão  no  máximo até ela se exasperar.  E  ela,  coitada,  não  distingue  o  que  é  comédia  do  que  é sério,  mas  felizmente  acede  à  única  exigência  que  lhe  faço  e  que  lhe  levaria  a  mal  se  não  cumprisse:  que  se  afaste  de  mim  durante   as  longas  horas  em  que  aqui  me  sento  a  ver  o  mar,  e  me  deixe  sozinha com os meus pensamentos.               135   

  XVII – Madalena    Olho  para  nascente,  onde  o  mar  tem  uma  planura  chã,  parecendo  um  espelho,  como  que  continuando,  em  tons de azul, a  verdura  da  vegetação  rasteira  que  rodeia  um   pequeno  estuário  da  ribeira que ali desagua; depois, olho para poente, onde a terra cai a  pique  sobre  o  mar  e  este  lhe  faz  grutas  fundas,  escuras  e  labirínticas  nas  entranhas  das  arribas.  Apesar  de  o  mar  ser  o  mesmo,  sempre  preferi  este  lado,  o  poente,  o  que  me  fica  à  mão  direita.  Há  ali   movimento,  as  ondas  batem  e  refluem  formando  novas  pequenas  ondas  que,  indo  de  terra  para  o  mar,  em  sentido  contrário  às  outras,  com  elas  esbarram,  provocando  uma  pequena  agitação  de  espuma.  Um  dia  li  qualquer  coisa  sobre as ondas, não  me  lembro  em  que   revista.  O  autor  do  texto  escrevia  que  muitas  delas  se  formam  no  mar  dos  sargaços, lá para o Golfo do México.  Deve  ser  uma  mentira  romântica,  penso que será a atracção da lua  a  fazer  as  marés  e  o vento a formar as ondas em qualquer parte do  mar e não apenas lá para as Caraíbas.   Seja  onde  for  que  as  ondas  surjam,  gosto  do  mar  movimentado.  Bem  sei  que  o  mar  é  o  mesmo, mas eu prefiro este  lado  agitado,  o  mar   que  me  fica  para  poente,  junto  à  Senhora  da  Rocha,  aquela  que  às  vezes  confundo  com  a  Virgem  do  Rochedo  de  Biarritz  –  e  que,  pensando  bem,  há­de  ser  a  mesma,  ou  não  fosse o catolicismo religião de uma só virgem.   Escolho  claramente  o  meu  lado  do  mar,  e  digo­o  a  toda  a  gente,  incluindo  a  Fátima,  que  não  entende  a  razão  de  eu   afirmar  sem  rodeios:  olha,  gosto  mais  do  mar  daquele  lado.  Ela,  claro,  responde o previsível ­ então e do outro?   Uma  das  coisas  que  me  irrita,  desde  há  muito,  é  a  ideia  de  que  tudo  deve  ser  igual,  amado  por  igual,  estimado  por  igual.  Quando  eu  era  pequenina,  perguntava­se  muito  aos  meninos:  gostas  mais  do  papá  ou  da  mamã,  na  esperança  que  a  criança  respondesse  que  era  dos  dois  por  igual.  Agora,  se  alguém  fizer  essa pergunta acho que vai preso.   Mas  eu  gostava  mais  do  papá!  E  sempre  tive  um  filho  preferido!  E  tenho  uma  neta  de  quem  gosto  mais!  Pode  parecer  cruel,  mas  eu  não  disse  que  não  gostava  de  minha  mãe,  que  não  gostava  de  minhas  filhas  ou  que  não  gosto  de  todos  os  netos.  Apenas  que  tenho  preferências  e  que  não  as  escondo,  pelo  menos  de mim mesma e daqueles que me estão muito próximos.  Claro que se alguém que eu mal conheço me perguntasse qual  dos  meus  filhos  é  o  meu  preferido,  eu  jamais  responderia.  Não  é  pergunta  que  se  faça,  nem  é  resposta  que  se  dê  a  qualquer pessoa  que passe por nós na rua.   135   

Mas,  e  ao  fim  de  88  anos  de   vida,  a  minha  experiência  pode  dizê­lo,  há  sempre  um  filho  que  preferimos.  O  meu,  confesso­o,  era  Luisito.  Ele  era  o  meu  filho  perfeito,  e  há­de  ser  porque  vive   em  mim,  com  os meus gostos, mas com os seus conselhos serenos   e,  por  vezes,  severos.  Minha  filha  Anita  diz  que  ele  é  perfeito  porque  morreu,  não  teve  de  se  pôr à prova. E eu respondo­lhe que  talvez  ela  tenha  razão,  mas  que  era  justamente  por  esse  motivo  que  todos  os  meninos  que  morrem  se  consideravam  anjinhos  –  belos,  puros  e  até  louros,  sendo  que   louro  foi  coisa  que  Luisito  nunca foi.  Depois  de  meu  pobre  filho  morrer  foi  –  e  continua  a  ser,  agora,  porque  é  a  única  –  Anita  a  minha  preferida.  Claro  que  também  gostei  muito  de  Maria,  mas  nunca  a  pus  no  topo  da lista.  Sempre  a  achei  inferior  à  sua  irmã,  não  tanto  em  inteligência,  criatividade   ou   esperteza,  mas  sobretudo  em  sensatez.  Deu­me  sempre  muito  mais  trabalho  do  que  alegrias,  justamente  ao  contrário  da  irmã  que  me deu muitas alegrias e me poupou muitos  trabalhos.  O  mesmo  se  passa  com  meus  netos.  São cinco,  três raparigas  de  Anita  e  dois  rapazes  do  primeiro  casamento  de  Maria.  Estes  mal  os  conheço,  tão  pouco  apareceram  na  minha  vida.  Viveram   quase  sempre  com  o  pai,  que  se  voltou  a  casar,  e  apesar  da  correcção  deste  meu  genro  (acho  que  estes  parentescos  nunca  se  perdem)  desligaram­se  um  pouco  de  minha  família.  Só  Anita  insiste  em  telefonar­lhes,  em  convidá­los  para  casa dela, para esta  casa  na  praia.  São  rapazes  atilados,  e  penso  que  ambos  já  acabaram  um  curso.  Um  deles  já  trabalha,  lembro­me  de  ele  mo  ter  dito  um  dia  em  que  me  foi  visitar.  Aqui  no  Algarve  quase  nunca  aparecem,  nem  mesmo  quando  eram  rapazes  o  faziam,  porque  preferiam  ir  para  outra  zona,  lá  para  o  pé  de  Vila  Real  de  Santo António, com os outros avós.  As  meninas,  ao  contrário,  sempre  passaram férias aqui. E das  três, a de que eu  gostei mais foi, desde que nasceu, Madalena. Não   sei  se  já  tinha  referido  o  nome  delas,  mas  também  não  faz  diferença.   Eu  própria  as  confundo  e  lhes  chamo  Anita,  Maria,   Elena sem já distinguir bem presente de passado.   À  Madalena,  porém,   nunca  confundi.  Ela  é  igual  a  mim,  e  parecida  com  a  mãe,  salvo  ser  muito  mais  alta.  E  é  um  mar,  uma  onda,  um  vento,  uma  inquietude.  É  a  mais  nova,  deve  ter  agora  uns  27  ou  28  anos,  e  faz  uma  certa  diferença  das  irmãs;  Anita  costumava dizer que tinha aparecido de surpresa…  Humberto  e  Anita  têm   todo  o  ar de  ter planificado os filhos –  algo  que  eu  e  Juan  Miguel  nunca  fizemos.  E  quando  veio  Madalena  penso  que   não  tinham  planificado  nada  –  isto  deve  ter  deixado  o  meu  genro  desesperado,  ele  que  é  doentiamente  organizado  e  prevenido.  Mas  Madalena  nasceu  porque  tinha  de  135   

nascer.  Madalena,  quero  crer,  nasceria  mesmo  de  uma   virgem, de  um  rochedo,  de  um  homem   infértil  ou  pura  e  simplesmente  surgiria;  é  daquelas  pessoas  que  têm  mesmo  de  viver,  de  estar  no  mundo, dê por onde der.  Chama­me  avó  ​ fixolas​ ,  palavra  que  deriva  de  fixe  e  é,  das  três,  a  única que conseguiu fazer verdadeiramente cabelos brancos  à  mãe  e  ao  pai.   Logo  que  nasceu  foi muito mimada, pelas irmãs –  que  são  cinco  e  sete  anos  mais  velhas  ,  pela  mãe  e  devo  confessá­lo  que  também,   ou   talvez  sobretudo,  por  mim.  Eu  tinha  60  anos,  tinha  encerrado  os  meus  casos  e  não  me  apetecia  fazer  nada,  ler  nada,  pensar  em  nada.  Acho  que  estaria  o  que  se  chama  deprimida.  Toda  a  vida  li  muito,  li   sempre.  Li  romances,  mas  li  sobretudo história e filosofia.  Mas nessa época não me apetecia ler  e  por  isso  Madalena  foi  a  minha  pequena  boneca.  Ajudei  Anita  a  criá­la,  uma  vez  que  ela  tinha  o  emprego  e  tudo  isso  e,  na  altura,  não  havia  os  cuidados  com as mães que há agora. Nos nossos dias  criaram  condições  magníficas  para  os  casais  jovens  terem  filhos,  penso  que  na  esperança  de  que  os  tenham,  mas  eles  não  têm.  Temos  uma  geração  em  que  muita  gente  há­de  chegar  ao  fim  da  vida  solitária,  misógina,  azeda,  sem  conhecer  o  sorriso  de  um  bebé,  a  traquinice  de  uma  criança  e a histeria de  uma adolescente.  Arrepender­se­ão,  como  se  arrependeram  todos  os  meus  conhecidos  que  não  tiveram  filhos.  Arrepender­se­ão  por  isto  ou  por  aquilo.  Bem  o  sei,  foi  essa, também, uma das grandes mágoas  de Pilar.  Quando  alguém  se  torna  avó,  coisa  de  que  eu  já  tinha  vasta  experiência  quando  nasceu  Madalena,  é  uma  alegria  quase  tão  grande  como  ser  mãe,  com  a  vantagem  de  não  ter  as  dores  de  parto.  Os  avós conseguem usufruir do melhor das crianças, sem se  preocuparem   com  o  pior  que elas têm e com a prisão que elas são.  Vêem  as  gracinhas,  os  sorrisos,  a  primeira vez que se sentam, que  se  põem  de  pé,  a  primeira  papa  que  comem,  os  primeiros  passos  que  dão,  as  primeiras  palavras  que  dizem.  Mas  não  têm  de  aturar   as  noites  sem  dormir,  as  febres,  o  choro  dos  dentes  a  irromper.  É  magnífico!  Juan  Miguel  dizia,  com  piada,  que  ser  avô  era  como  ser  pai  em  diferido. É como um jogo de futebol de que já sabemos  o  resultado  –  repetia  ­   vêem­se  as  boas  jogadas,  mas  não  há  a  nervoseira do resultado.  Fui  eu  –  por  uma  qualquer  coincidência  –  quem  levou  Madalena  ao  seu   primeiro  dia  de  escola.  Ainda  ia  de gravatinha  e  farda  para  um  colégio  de  freiras  em  Lisboa.  Pergunto­me  se  isso  hoje  ainda  será  assim.  Não  o  creio.  A  educação  mudou  tanto  que  as  minhas  bisnetas  –  e  já  tenho  duas     vão  ser  ainda  mais  radicalmente  diferentes  das  mães  do  que  suas  mães  foram  das  mães  delas  e  estas  de  mim.  Às  vezes,  quando  reúno  estas  quatro  gerações  na  nossa  casa,  penso  no  que  é  feito  do  respeito  que  eu  tinha  por  meus  pais…  ou  mesmo  na  privacidade  que  eu  tinha,  perante  eles.  Hoje  em  dia,  as  filhas  discutem  com  a  mãe  –  e  até  135   

com  o  pai  –  a  perda  da  virgindade,  o  tabaco  que  fumam  ou  a  marca de vodka preferida. Meu Deus!   Pode  ser  que  assim  seja  melhor,  mas  a  maior  parte  dos  pais  reciclou­se  a  tentar  ser  amigo  dos  filhos,  em  vez  de  educadores.  Felizmente,  Anita  não  é  muito  assim,  mas  também  tem  a  sua  costela  de  modernice.  Quer  ser  companheira  das  filhas,  porque  acha  sinceramente  que  mais  vale  saber  o  que  elas  fazem,  do  que  não  saber  de  todo  por  onde  andam  e  o  que pensam. O seu sentido  prático  dar­lhe­á  razão,  mas  como  é  evidente,  a   autoridade  paternal  e  maternal  fica  minada.  Como  escreveu  Rimbaud,  ​ on  n’est  pas  sérieux  quand  on  a  dix­sept  ans  ​ e   esse  é  um  problema.  Ninguém  é  sério  quando  não  tem  idade  para  o  ser,  embora  Rimbaud  deva  ter  escrito  isto   com  cerca  de  17  anos.  Mas os pais,  com  35,  40  ou  50  anos,  quando  se  querem  colocar  ao  nível  dos  filhos de 17, 20 ou 22, perdem a toda autoridade, porque perderam  a seriedade.  Que  mãe  pode  achar  bem  que  uma  criança  de   16   ou   17   anos  tenha  relações  sexuais  com  parceiros  diferentes  e   que  a  única  coisa  que  lhe  importe  é  se  toma  a  pílula  e  se  usam  protecção  contra doenças? … Onde chegámos!  E,  se  olharmos  para  trás,  qual  é  a  grande  vantagem  disto  em  relação  ao  passado?  Em  relação  ao  meu  tempo?  Coloco  esta  questão,  porque  a  resposta  mais  costumeira  de  minhas  netas  aos  meus  reparos  era:  ó  avó,  estamos  no  século  XX  (ou  XXI,  mais  recentemente).   E  eu  perguntava:  e   isso  que   interessa?  O  século  XXI  é  forçosamente  melhor   do   que  o  XX  e  o  XX  foi  melhor  do  que  XIX?  Esta  ideia  louca  de  que  o  novo  é  melhor  do  que  o  velho  é  extraordinária,  mas   é  falsa.  Muitos  tempos  vivemos  em  que  o  novo  foi  pior  do  que  o  velho.  Mas  hoje  todos  pensam  o  contrário  e,  talvez  por  isso,  os  velhos,  salvo  excepções  como  eu,  vivam  armazenados.   Houve  um  tempo  em  que  eu  tinha  tantos  amigos  e  conhecidos  armazenados,  pelos  próprios  filhos,  nos  lares  mais  soturnos…  Quando  ia  visitá­los  tinha  náuseas…  Aqueles  velhos  tinham  deixado  de ser humanos, eram seres engaiolados, passivos,  sem  alma.  Tremiam   enrolados  em  cobertores  e rodeados de flores  de  plástico,  acompanhados  por  gente  que  só  parecia  vagamente  simpática  porque  ali  estava  alguém  de  fora  –  no  caso,  eu,  que era  também uma potencial cliente!   De  resto,  todos  os  velhos  pareciam  estar  drogados,  para  não  falar  do  facto  de  quase  todos  eles  terem,  pura  e  simplesmente,  desistido  de  viver.  Via­se  no  seu  olhar que não queriam nem mais  uma  hora  de  vida.  E  se  sorriam  quando  eu  chegava  era  por  essa  faculdade  hipócrita  em  que os velhos estão treinados pela vida. Se  eu  me  tinha deslocado para lhes dar uma alegria, não seriam eles a  tirar­me  as  ilusões.  Alguns  devem  ter  chegado a pensar: não tarda  muito, estás cá.  135   

  Nesta  sociedade   os  velhos   não  servem,  a  sua  sabedoria  foi  afastada,  o  seu  lugar  na  família  foi  desprezado…  Um  velho  é  um  pária  que  vai  morrendo  sem  que  dele  fique  exemplo,  experiência,  sabedoria, conhecimento. É triste, bem triste!  Mas  deixemos  estas  mágoas,  para  voltar  a  Madalena  e  a  minhas  netas.  A  preferência  que  tenho  por  ela  deve­se  sobretudo  ao  facto de, tentando fazer tudo da forma mais difícil, ela aprender  depressa.  Neste   particular  do  arrependimento  honra  bem  o  seu   nome. Às vezes convenço­me de que é necessário ir até ao  fim dos  caminhos  para  perceber  e  não  ter  mais  dúvidas  de  que  esse  é  o  caminho  errado.  Não  sei  se  poderemos  adoptar  este  princípio  em  relação  a  todas  as  pessoas,  mas  sei  que  minha  filha  Maria  nunca  fazia  os  caminhos  até  ao  fim  porque  eu  e  o  pai  sempre  a  íamos  buscar,  mal  ela  entrava  naquilo  que  parecia  um  beco  sem  saída.  Talvez  por  isso,  quando  voltou  a  Madrid, vinda  do  funeral do pai,  tenha  encontrado  um  beco  e  não  soube  voltar  atrás.  Nunca  lhe  tinha  sido  necessário  dar  o  braço  a  torcer.  Foi um período em que  nem  eu  nem  Anita  tínhamos  ânimo  ou  disponibilidade  para  entender  o  que  ela  queria,  para  entender  os  seus  problemas.  E  assim  ela  fez  o  caminho  todo  e  mesmo  depois  de  chegar  ao fim e  ver  que  era  o  errado,  insistiu  até  não  poder  mais.  Foi­lhe  fatal.  Maria  também  foi   sempre  rebelde,  mas ao contrário de Madalena,  nunca conheceu limites, nunca reconheceu erros.  O  lado  que  me  anima  em  Madalena  é  a  rapidez  com  que  ela  aceita  o  facto  de  ter  errado  e  a  velocidade  com  que  promete  mudar.  Poderá  ser  só  para  me  enganar,  ou  para  me  fazer  crer  que  as  lições  de  vida  que  lhe  dou  não  são  vãs.  Não  sei, e já não tenho  idade  para  resolver  este  enigma.  A  própria  Anita  ou  não tem uma  opinião  ou  nada  me  diz  sobre  as  filhas,  porque  não  me  quer  preocupar.  E  tantas  vezes  lhe  pedi  que  me  falasse  de  Madalena,  que  sendo  a  minha  favorita,  me  preocupa  tanto,  por  sair  demasiadamente  a  mim  e  não  ter  –  porque  a  vida,  a  sociedade  actual, não as tem – as minhas barreiras.  Às  vezes  interrogo­me  como  seria  eu  sem as convenções que  no  meu  tempo  havia.  Quantos   homens  teria  eu  amado?  Quantas  vezes  teria  partido  o  meu  coração?  Quantas  vidas  teria  eu  destroçado?   Como  já  disse,  invejo  a  liberdade  de  que  gozaram  minhas  filhas  e  netas,  mas  teria  sido  mais  ou  menos  feliz  se  eu  própria  tivesse  toda  essa  liberdade?  Sei  que  é  um  paradoxo  –  Yannick  sempre  me  alertou  para  isso – confundir liberdade com felicidade.  A  liberdade  é  um  bem  socializável,  que  só  pode e deve ser vivido  em  comum;  a  felicidade  é  um  bem  íntimo,  pessoal,  por  vezes  inextrincável.   Porém,  eu  conheço­me  bem,  sei  como  seria e o que  faria,  caso  toda  a  liberdade  me  tivesse  sido  concedida.  Teria  corrido  para  os  braços  de  Carlos,  quando  era  nova;  não  teria  tido  vergonha  quando  ele  me  agarrou  para  me  explicar  como  se  135   

mergulha  no  mar,  nem  teria  feito  o  gesto  de  me  esquivar.  Ter­me­ia  vingado   das  afrontas  de  Juan  Miguel  com  as  suas  conquistas,  onde  incluiu  minha  irmã  Pilar;  ou  melhor,  tê­lo­ia  feito  muito mais cedo e com muito menos classe. Aos 30 e poucos  anos  ninguém  consegue  ter  um  caso  tão  discreto  como  o  que  eu  tive  com  Artur  aos  50.  Aos  30  anos  também  ainda  ninguém  é  suficientemente  sério  para  poder  ter  um  caso  com  classe  e  menos  ainda  para  poder  sofrer  uma  traição  sem  alvoroço…  Faria  um  escândalo;  as  minhas  filhas  ficariam  ainda  mais  perturbadas  e,   provavelmente,  não  usufruiria  hoje  do  apoio  que  me  dá  Anita…  Estaria  num  depósito  com  o  mesmo  ar  bovino  e  as mesmas flores  de  plástico  que vi nos lares. Ou melhor, estaria morta. Nenhum lar  tem um paciente tanto tempo a ocupar­lhe uma cama…  É  sempre  difícil  especular  como  seria  uma  vida  –  toda  uma  vida  –  se  os  seus  pressupostos  fossem  diferentes. E se Franco não  tivesse  feito  o  pronunciamento?  E  se  meu  pai  e  meus  irmãos  não  tivessem  morrido?  Teria  vindo  parar  a  Lisboa?  Ter­me­ia  casado  com  Juan  Miguel?  Teria  estas  filhas,  estes  netos?  Está  tudo  predestinado?  É  tudo  obra   do   acaso?  É  um  acaso  eu  ter  sobrevivido  a  todos  os  meus  irmãos,  a  dois  filhos  meus,  ao  meu   marido?  Estarei  guardada  para  alguma  coisa  ou  é  apenas  –  como  dizia  um  médico  amigo  de  Juan  Miguel  que  passou  dos  100  anos  – fruto da nossa constituição animal?   Vá­se lá saber…  Ocorre­me  uma  pergunta:  se  de  geração  para  geração  os  hábitos  vão  mudando  tão  rapidamente,  para  onde  iremos?  Até  onde  chegaremos?  As  minhas  netas  dizem  que  miúdas  com  15  e  16  anos  já  ficam  na  rua  até  às  cinco  da  manhã  –  isto  quando  eu  lhes  dizia  alguma  coisa  sobre  as  horas  a  que  chegavam  a  casa.  Mas,  se  as  miúdas  de  15  anos  já  vão   neste  ritmo,  como  será  com  as  filhas  delas?  Iniciarão  a  vida  de  festas,  copos  e  sabe­se  lá  que  mais  aos  10?  Ou,  entretanto,  a  vida,  o  Alguém  ou  Algo  que  é  exterior  a  nós,  porá   um  travão  a  tudo  isto?  Um  travão  terrível,  como  o  que  a  Idade  Média  colocou  às  desbragadas  festas  do  fim  do  Império  Romano,  que  Gibbon  tão   bem  descreve  no  seu  livro?  Um  dia,  seremos  todos  muçulmanos?   Vestiremos  burka  ou  chaddor?  Não  haverá  direitos  para  as  mulheres,  que  não  poderão  sequer  sair  à  rua?  O  álcool  será  proibido? Os pais poderão bater à  vontade  nos  filhos?  Os  casamentos  far­se­ão  por  alianças  de  famílias,  por  interesses  de  negócios?  Será  esse  o  nosso  futuro?  Parece  impossível,  mas  a  história  já  recuou  muitas  vezes  e  a  demografia  joga  contra  nós.  Nem  temos  filhos,  ao  passo  que  os  islâmicos os têm aos montes…   Segundo  li  e  muitos  amigos  me  diziam,  há  já   vários  anos,  os  arredores   de  Paris,  de  Londres  e  até  de  Madrid  estavam  repletos  de  árabes,  de  famílias  que  no  seu  interior,  na  sua  casa,  nas  suas  relações  com  outras  famílias  de  mesma  origem,  aplicam  a ​ sharia​ .  135   

Os  atentados  de  Atocha   são  outro  sinal  que  nos  pode  confirmar  que  nem  tudo  será  tão  bom  como  sonhámos.  Quem  colocou  as  bombas  que  mataram  indiscriminadamente  homens,  mulheres  e  crianças  que   iam   para  os  empregos,  gente  humilde  dos  subúrbios  de  Madrid,  foram  espanhóis,   espanhóis  como  eu,  mas  com  uma  cultura que não é a minha, nem será a da minha família.   Animo­me  pensando  que,  seja  qual  for  o  futuro,  não  será  nada  comigo.  Só  que  me  interrogo:  nesse  caso,  porque  me  preocupo  eu?  E   só  tenho  uma  resposta:  acho  que  o  faço  porque  uma  parte de mim – os meus netos e os seus sucessores – cá estará  para a viver… e nenhum deles vai, com certeza gostar do que vê.  Eis  o  ponto  em  que  Madalena  me  entende.  É  a  única  com  quem  podia  falar  destes   temas.  Não  hoje  em  dia,  em  que  já  me  cansa  o  desacordo  e  o  estímulo intelectual. Mas tenho a certeza de  que,  se  eu  conseguisse  viver  sã  da  cabeça  mais  uns  cinco  ou  seis  anos,  Madalena  tornar­se­ia  na  minha  nova ​ Madame​ , ou será para  uma  qualquer  ​ Madame   actual  o  equivalente  a  que  eu  fui  para  Yannick.   É  por  isso  que  gosto  tão  profundamente  de  Madalena  e é por  isso  que  me  lembro  dela   quando  olho  para  a  minha  direita,  para  Ocidente,  onde  o  sol  se  põe  e  o  céu  fica  avermelhado,  para  onde  estão  as  ondas  e  para  onde  está  a  minha  morte  e  a  vida  dela.  Dentro  de  séculos  as  nossas  vidas   confundir­se­ão,  fundir­se­ão  numa  só,  como  as  gerações  antes  de mim se fundiram para que eu  tivesse esta cultura, esta forma de pensar, esta liberdade.   Nem  para  mim  o  sei  dizer melhor, é daquele lado do mar que  havemos ambas de estar.       XVIII – Cara ao sol    De  noite,  pela  fresca,  o  barulho  do  mar  costuma  ser  mais  intenso.  A  praia  fica  silenciosa  e  o  som  das  ondas,  mesmo  por  baixo  do  meu  quintal,  torna­se  mais  nítido.  Por  vezes  –  nem  sempre,  porque  ultimamente  tenho  tido  um  frio  que  até  agora  jamais  sentira,  um  frio  de  morte,  ou  mesmo  o  frio  da  morte  –  às  vezes,  dizia,  peço  a  Fátima  que  me  traga  até  aqui  ao  cadeirão,  depois  do  jantar,  se  posso  chamar  assim   a  uma  sopa,  um  copo  de  vinho  e  uma  peça  de   fruta  –  eu  que  sempre  comi  bem  e  requintadamente.   E  aqui  fico,  a  contas  com  a  escuridão  e  com  as  estrelas  da  noite,  a  qual,  se  estiver  ventosa,  me  lança  à  cara  uns  salpicos  de  mar.  Para  ouvir  as  ondas  tenho  de   apurar o ouvido, melhor dissera  os  aparelhos  que  tenho  no  ouvido.  Não  é  fácil  escutá­lo,  hoje  em  135   

dia,  pois  até  os  ruídos  naturais  se  perderam.  Perderam­se  os  pássaros,  os  rios,  as  ondas  do  mar,  o  vento   nas  canas,  as  folhas  secas  a  cair.  Já  quase  nada  disso  se  escuta.  Por  aqui,  todas  as  noites,  do  lado  de  terra,  existem  barulhos  aterradores.  É  uma  carrinha  que   percorre  as  ruas  a  anunciar  uma   tourada  –  para  gáudio  dos  turistas  estrangeiros  que  pensam que esta coisinha que  se  vê  em  Portugal  é  uma  tourada e sentam­se nesta pequena praça  de  touros  desmontável  com   a  mesma  atitude  que  teriam  em  ​ La   Maestranza  de  Sevilha  ou  em  ​ Las  Ventas  de  Madrid…  É  um  circo,  ao  longe;  são  uns  carrinhos  de  choque  e  são,  sobretudo,  milhares  de  pessoas  aos  gritos,  aos  guinchos,  os  bebés  a  chorar  e  os  pais  desesperados,  já  a  preferir  que  as  férias  acabem  rápido  e  eles  possam  voltar  ao  sossego  das  repartições  ou  dos  seus  pequenos escritórios.   Tanto  me  lembro das  noites de Verão aqui passadas ­ só, com  amigos,  ou  ainda  muito  nova,  abraçada  a  Juan  Miguel  ­,  quando  nada  mais  se  ouvia que não  fosse o mar e as gaivotas a disputar os  restos de peixe que os pescadores deixavam na praia.  Esta  noite,  a  somar  a  todos   os  barulhos  que  abafam  o  ruído  cavo  das  ondas  do  mar,  existe  o  de  um  comício.  Não  sei  bem  de  que  partido  é,  nem  qual  a  personalidade  que  fala,  mas  ouço  vagamente  um orador  a ser entusiasticamente aplaudido e saudado  por  uma  pequena  multidão  –  ou  talvez  não  sejam  muitos,  mas  apenas  pessoas  disciplinadas  e  uníssonas  na  sua  crença  num  líder  ou num programa.  Houve  um  tempo  em  que  também  eu  me  preocupei  com  a  política,  pensando  que   ela  mudava  o  destino  do  mundo.  Apoiava  causas,  achava  que  os  impostos  deviam  subir  ou  descer,  ou  que  a  segurança  social  devia  ser  isto  ou  aquilo.  Preferia  uns  políticos  a  outros,  tinha  opções firmes e claras sobre as grandes questões. Era  o  tempo  em  que  ainda  discutia  com  minhas  filhas  o  problema  do  aborto,  não  nos  termos  em  que  ele  deve  ser  discutido,  penso  eu  agora,  mas  como  questão  política,  separadora,  definidora  de  campos…  Hoje  acho,  pura  e  simplesmente,  que  o  aborto  é  um  acto  médico.  Talvez  como  a  eutanásia.  Os governos e os políticos  nem sequer se deviam meter nestas coisas...   Se  algo  aprendi  ao  longo  dos  anos  foi  que   os  homens   mais  perigosos  são  aqueles  que  têm  soluções  para  tudo.  É  gente  assim  que  altera  demasiadamente  os  equilíbrios  naturais  que  vão  sendo  estabelecidos  ao  longo  das gerações, as quais vão pactuando umas  com  outras.  Os  mais  perigosos são sempre  adeptos de  rupturas, de  cortes,  de  grandes  programas.  Basta  pensar  nas  pessoas  que  mais  danos  causaram  à humanidade para encontrarmos esse padrão. Foi  assim  Hitler,  foi  assim  Estaline  –  e  de  certo  modo  foram  também  assim Franco e Salazar, Fidel e Pinochet, Pol Pot e Mao…    135   

Em  nova  também eu tinha convicções bravas, radicais. Sentia  que  podia  morrer por  um estranho, caso lhe desse razão num caso,  como  se  a  minha  morte  redimisse  o  mundo  ou, sequer, resolvesse  o  problema  em  concreto.  Havia  uma  frase  que  alguém  dizia  quando  eu  era  nova,  frase  que  me  irritava  profundamente  e  que  hoje  dou  em  pensar  muitas   vezes  na  sua  sabedoria.  Era  assim:  há  apenas  dois  tipos  de  problemas:   os  que  o  tempo  resolve  e  os  que  nem  o  tempo  resolve.  A  conclusão,  óbvia,  é  que  para  uns,  como  para outros, nada há a fazer.  Ainda  sinto,  por  vezes,  falta   de  uma  crença,  da  crença  num  mundo  melhor,  mais  perfeito,  menos   injusto.  O mundo em que eu  acreditei,  quando  tive  idade  de  acreditar.  Em miúda, a única coisa  que  sabia  era   que  odiava  as  JONS  e  a  Falange,  porque  meu  pai  dissera a Raul que o não queria ver por lá.   Mais  crescida  aderi  entusiasticamente  a  Franco,  sobretudo  porque  Manuel  Blanco  dizia  que  era  ele  quem nos ia salvar a nós,  perdidos  em  Ayllón  no  meio  de  uma  guerra  sangrenta,  e  a  Espanha  que  se  esvaía  em  ódios  sem  sentido.  Por  outro  lado,  minha  mãe  tinha  sempre,  mais  ou  menos  abertamente,  responsabilizado os republicanos  pela morte de meu pai, o que nos  fez  pender  para  o  campo  nacionalista,  de tal modo que me lembro  de  ter  ido com ela e Pilar ao enorme desfile que se fez em Madrid,  aclamando  o  ​ generalíssimo  e  a sua guarda moura, vinda de Ceuta.  Foi  com  essa  convicção,  que   se  misturava,  então,  com  o  agradecimento  à  Alemanha  de  Hitler  e  à  Itália   de  Mussolini,  por  nos  terem  salvo  dos  bárbaros  vermelhos,  como  então  lhe  chamávamos,  que  cheguei  aos  meus  18  anos.  Se  na  altura  houvesse  eleições,  como  hoje,  teria  votado  convictamente  em  Franco.   Nem  a  chegada  à  França  democrática,  quando   fomos   para  Biarritz,  mudou  grandemente  as  minhas  convicções;  porém  o  convívio  com  o  tio  George   Pardiac,  o  comerciante  prudente,  que  mais  tarde  se  revelou   membro  da  Resistência,  casado  com  minha  tia­avó  Henriette,  foi  de  certo  modo  responsável  por  ir  formando  uma  opinião  não  muito  favorável  aos  alemães.  Depois  da  ocupação,  o  modo  como  eles  se  referiam  aos  espanhóis,  bem  como  tudo  o  que  me  contava  ​ Madame  sobre  o  que  se  passava  no  mundo  e,  sobretudo,  acerca  da  maneira  como  tratavam  judeus,  apenas  por  serem  judeus,  fez­me  pender  definitivamente  para  o  lado  dos  aliados.  Em França, cheguei a odiar os alemães e a torcer  por  Churchill  e  pela   Inglaterra,  sem  sequer  perceber  toda  a  envolvência  internacional  da  guerra.  No  entanto,  ao  chegar  a  Portugal,  deparei  com  meu  tio  –  mais   uma  razão  para  não  me  lembrar  do  nome  dele,  e  de  ter  uma  opinião  vagamente  negativa  da  sua  personalidade  –  que  era  claramente  germanófilo,  e  com  a  minha  tia  Concepción  ­  tão  boa  para  nós  ,  que  acompanhava  o  marido  nessa  preferência.  Minha  mãe  também  adoptou  esse  135   

posicionamento  e  assim  fiquei  eu,  uma  vez  mais  baralhada  e  do  lado  errado  de   uma  barricada familiar. Lia propaganda aliada, que  por  vezes  me  chegava,  ao  passo  que  meu  tio  lia  umas  revistas  lindíssimas com material de propaganda alemão.  Foi  Juan  Luís,  já  bastante  depois  da  guerra,  aquele  que  haveria  de  ser  meu  cunhado,  que  me  arranjou  emprego   no   Consulado  de  Espanha,  na  altura  em  que  o  Embaixador  era  Nicolás  Franco,  o  irmão  do  ​ generalíssimo​ .  O  senhor  foi  tão  simpático  para  mim,  que  eu,  na  minha  ingenuidade  dos  20  e  poucos,  pensei  que  o  seu  irmão  não  poderia  ser  má  pessoa.  Porque,  se  bem  me  recordo,  todos  nós  temos uma fase da vida em  que  pensamos  que  os  bons  são  bons  em  tudo,  em  toda  a  extensão  do  bem;  e  os  maus,  igualmente,  maus  em   tudo  e  em  toda  a  extensão  do  mal.  Aceitamos  mal  a  duplicidade,  a  diversidade  e  a  contradição.   Curiosamente,  o  debate  ideológico  do  século  XX  nunca  se  afastou  muito  disto,  e  estamos  a  entrar  no  século  XXI  da  mesma  forma:  intolerantes,  radicais,  a  querer  fazer  prevalecer  uma  única  opinião  sobre  uma  multiplicidade  delas.  Aquilo  a  que  entretanto  se  passou  a  chamar  politicamente  correcto  chega­me  a  ser  doloroso fisicamente.  Mas  adiante:  a  minha  opinião  sobre  Franco,  que  nunca  fora  totalmente  negativa,  voltou  a  melhorar  por  via  de  D.  Nicolás.  Sobretudo,  depois  do  fim  da  guerra,  quando  ele  aceitou  a  nova  ordem dos aliados e eu pude compatibilizá­lo com os vencedores.   Assim,  no  brevíssimo  tempo  em  que  trabalhei  no Consulado,  pertenci  à  Falange  para  não  destoar.  Na  altura,  a  Falange  era  apoiante  de  Franco  (mais  tarde  ele  deu­lhe  um  pontapé)  e  eu   gostava  de  Franco  e   queria  ter  um  emprego  onde  quem  mandava  era  o  seu  irmão.  E  por  isso  cantei  o  ​ Cara al Sol que era o hino do  movimento.  É  curioso,  como  a  ideia   de  virar  a  cara  para o sol me  atinge  numa  noite,  apesar  de  passar  o  dia  com  a cara ao  sol, neste  mesmo  cadeirão.  Mas  assim  é   a  nossa  memória,  repleta  de  pequenas  surpresas,  as  quais  nunca  sabemos  se  são sinais. Porque  o  movimento,  a  Falange,  era, ao fim  e ao cabo, uma noite sombria  e mortal.  Ainda  me  lembro  do  hino:  ​ Cara  al  sol  con  la  camisa  nueva/que  tu  bordaste  en  rojo  ayer/  me   hallará  la  muerte  si  me  lleva/  y  no  te  vuelvo  a  ver​ .  E  a  canção  ia  por  aí  fora,  cheia  de  arrebiques patrióticos, para acabar com muitos ​ ¡Arriba España!​ .  Era  um  hino  ridículo,  cantado  por  jovens  que  marcharam  direitinhos  para  a  morte  e  por  meninas  tontas,  como  eu  era  na  altura,  que  achavam  extraordinário  dar­se  uma  vida  –  uma  vida,  meu  Deus!  –  por  um  ideal  qualquer.  Fardavam­nos  como  soldadinhos,  todos  de  igual,  todos  com  o  mesmo  gesto,  todos  como se fôssemos um.  135   

    À  medida  que  ia  conhecendo  Portugal  e  Salazar,  e  também  sob  a  influência  do  meu  Juan  Miguel,  que  era  muito  mais  esclarecido  do  que  eu,  fui  percebendo  que  Franco estava longe de  ser  um  santo  patriótico  e  que  a  guerra  civil  tinha  sido  muito  mais  do  que  um  conflito  apenas  em  Espanha.  Salazar,  em  Portugal,  sendo  muito  diferente   de  Franco,  tinha  coisas  muito  semelhantes.  Assim,  à  medida  que  me  desiludia   com  um,   desiludia­me  com  o  outro…  Penso  aliás  que  Franco  e  Salazar  representam  bem  como  os  portugueses  são,  simultaneamente  tão  diferentes  e  semelhantes  dos  espanhóis.  Onde  de  um  lado  há  orgulho,  do  outro  há  falsa  modéstia;  a  bravata  troca­se  pela  inveja;  a  excitação  e  o  barulho  pelo  comedimento;  o  sangue   e  a  peleja  pelo  compromisso  e  a  conciliação.  Porém,  são,  ao  mesmo  tempo,  tão  parecidos  que  nenhum  espanhol  em  Portugal  se   sente  no  estrangeiro,  como  nenhum português se sente estrangeiro em Espanha…  Muito  mais  tarde,  ainda,  já   mulher  madura,  li  muito  sobre  as  barbaridades  de  Franco,  mas  também  sobre  as  da  esquerda  republicana espanhola. O resultado foi este: desiludi­me de todos.     Hoje,  acho  a  minha  memória  um  bom  retrato  do  século  XX,  que  alguns  patetas  acham  ter  sido  um  século  fabuloso.  Este  foi  o  século  que  destruiu  as  identidades  singulares  em  nome  de utopias  colectivas.  O  franquismo,  o  fascismo  de  Mussolini,  o  nazismo  de  Hitler,  o  comunismo  de Lenine,  Estaline e Mao e de tantos outros.  Arrepio­me  hoje  ao  ver  jovens  ter  como  ídolos  personagens  sinistras  como  Fidel  ou  Che.  Fidel,  digo­o  num  parêntesis,  era  primo  de  meu  pai,  embora  afastado.  Também  ele  é  de  famílias  galegas  e  também  está  velho,  parece  que  em muito pior estado do  que  eu,  apesar  de  eu  ter  mais  quatro  ou  cinco  anos.  Minha  mãe,  quando  lhe  diziam  que  tinha  casado  com  um  primo  de  Fidel,  contestava sempre:  ­  De  um  taxista  de  Lugo  –  referia­se  a  outro  parente  que   tinha, ao que parece, uns táxis naquela cidade galega.    Arrepia­me  Pinochet,  como  me  arrepia  a  ETA.  Arrepia­me,  aliás,  o  apoio  de  que  a  ETA  e  os  separatistas  de  um  modo  geral  gozam  em  Portugal;  o  beneplácito  com  que  os  portugueses  pensam  que  a  implosão  de  Espanha  seria  uma  coisa  boa  para este  país.  Que  enganados  estão,  tornando  Portugal  em  apenas  um  dos  quatro  ou  cinco  estados  ibéricos,  destruiriam  a  sua  importância  e  desequilibrariam   ainda  mais  a  Península  para  o  lado  da  Europa  e  menos  para  o  Atlântico,  ao  qual  está  a  história dos dois países tão  135   

ligada.   Arrepiam­me  os  suicidas  árabes,  os  talibãs.  Arrepiam­me  os  bascos  que  vestem  os  miúdos  de  farda  para  lhes  ensinar  o  amor  por  Euskadi,  como  a  JONS  nos  ensinava  o  ​ Cara  al  Sol  –  numa  memorização  repetitiva,  sem  verdade,  sem  razão.  Arrepia­me que  nada  tenhamos  aprendido,  que tenhamos vivido o século XX   100  anos  de  guerras   inúteis  com  milhões  de  mortos  –  sem  quase nada  progredir  no  essencial  do  pensamento.  Sem  saber  muito  mais  do  que sabíamos nos finais do século XIX.  Temos,  é  certo,  muito  mais  tecnologia,  sabemos  fazer  bombas  que  dão  cabo  do  mundo,  comunicamos  instantaneamente  com  qualquer  ponto do globo. A minha neta mostrou­me o mundo  no  seu  computador;  nós  escolhemos  um   ponto,  uma   terra,  uma  vila,  uma  rua  e  aquilo  vai  aproximando  até  vermos  as  casas,  os  automóveis.  Tudo  está  fotografado,  vigiado;  temos  informação  como  nunca  tivemos. Eu sei disso tudo, mas tento entender para lá  disso.  Como  formamos  uma  convicção?  Porque  somos  diversos?  Por  que,  apesar  de  processarmos  os  mesmos  dados,  chegamos  a  conclusões tão diferentes?   Sobre  isto,  que  é  matéria  essencial  do  modo  de  proceder  dos  homens,  nada  avançámos.  Pelo   contrário,  perdemos  a  ideia  da  diversidade  e  queremos  ser  todos  iguais.  Todos  os  programas  políticos  falam  de  igualdade,  todas  as  modas  são  uniformes,  todo  o mundo quer ser igual ao vizinho.  Nas  ideias,  não  andamos  longe  deste padrão. Todos apelam à  coerência,  como se a coerência fosse um valor. Quando eu  conto o  percurso  dos  meus  pensamentos,  perguntam­me:  como  podias  apoiar  o  Franco  e   o   Churchill  ao  mesmo  tempo?  E  eu  respondia,  porque  o  Franco  me  parecia  melhor  para  Espanha  e  o  Churchill  para  o  mundo.  E  fartei­me  de  Franco,  como  nos  fartamos  de uma  mousse  de  chocolate  que   nos  sabe  bem  ao  princípio,  mas  da  qual  enjoamos  ao  fim  de  pouco  tempo.  E  acrescentava:  por  que  havemos  de  ser  coerentes?  Por  que  razão  teremos  de  ser   prisioneiros de uma ideia?   Se  eu  ficasse  presa para sempre ao facto de ter estado do lado  dos  nacionalistas  na  guerra  civil,  nunca  poderia  pensar  o  que  penso,  porque  nada  do  que  penso  é  sequer  coerente  com  o  que  pensei.   Eu  pensei  que  havia  uma  ideia  que  explicava  o  mundo,  uma  teoria  que  explicava  a  relação  entre  as  pessoas,  um  livro  apenas  por ler.   Mas  a  vida,  se  formos  honestos  connosco  próprios,  ensina­nos  que  não  é  nada  disto.  Muito  pelo  contrário,  quanto  mais  sabemos,  quanto  mais  lemos,  quanto  mais  debatemos,  mais  tendência  temos   para  ser  incoerentes,  para  pensar coisas distintas,  não  ligadas.  Para  sermos  verdadeiramente  livres,  como  eu  me  135   

sinto,  para  decidir  o  que  é  melhor  para  nós  em  cada  momento,  e  para  pensarmos  no  que  será  melhor  para  a  sociedade  a  cada  momento.  Hoje  é  impossível  meter  uma  menina  de  15  anos  na  cama  às  11  da  noite,  se   estiver  de  férias.  Deveria  eu   ter  ficar  agarrada  à  coerência  do  que  me  ensinou  minha  mãe   e  obrigá­la  a  ir contra vontade?   A  ideia  da  coerência  parece­me  uma  ideia  religiosa  para  prevenir  a  heterodoxia – e que falta me faz ​ Madame para eu poder  colocar  isto  numa  das  nossas  discussões  e   dar­lhe  profundidade.  Não  sei,  sinceramente,  o  que  diria  ela  desta diatribe. Mas eu sinto  que não tenho de ser coerente.  Se  fizesse  depender  o  que  sou  daquilo  que  fui,  seria  uma  mulher  triste,  desesperada,  vivendo  nas  sombras  da  terra.  A  verdade  é  que  o  mundo  vai  mudando  e  nós,  como  seres  adaptativos,  temos  de  o  acompanhar.  É  assim  e  não  pode  ser  de  outra  maneira,  por  isso  há  muito  que  não  quero  saber  de  ideologias,  de  partidos,  de   programas,  de  coerências,  de  amarras,  de  prisões.  As  minhas  opções  são  casuísticas,  pontuais  e  motivadas,  no  geral,  por  problemas  que  não  são  debatidos  nos  grandes  comícios  e  nos  grandes  debates.  Coisas  por  vezes  pequenas,  sem  importância…  Sou  um  navio  desarvorado,  como  dizia  Vitorino  Nemésio,  com  quem  tantas  vezes  tive  o  prazer  de  falar.    No  comício  aqui  não  muito  longe,  o  orador  continua  a  discursar  e  a  ser  aplaudido.  Deve  estar  a  falar  de  ideias   muito  coerentes,  a   deduzir  umas  coisas  a  partir  de  outras,  a  fazer  retórica,  como  faziam  os  jesuítas,  ou  séculos  antes  deles  os  sofistas  peripatéticos.  Não,  não   avançámos  muito  neste  domínio,  apenas  na  tecnologia…  e  no  barulho  que  fazem  os megafones em   cima dos carros. Uns anunciam touros; outros, um político; outros,  um  circo.  E  eu  nem  com  os  melhores  aparelhos  auditivos  do  mundo conseguiria ouvir o mar como dantes.   Como  o  ouvia  com  Juan  Miguel,  quando  ainda   não  havia  traições;  ou  como  o  ouço  com  Luisito,  quando  a  minha  solidão  é  quebrada pelas suas palavras sempre tão sensatas.        XIX – O meu tempo    Cada  vez  passo  mais  tempo  aqui,  sentada  em  frente  ao  mar,  porque  o  tempo  já  não  tem  significado  para  mim.  O  meu  tempo  acabou,  como  as  ondas   acabam  na  areia,  depois  de  tantos  quilómetros  percorridos.  Perguntará  uma  onda  qual  é  o  seu  135   

objectivo,  senão  o  de  desfazer­se  contra  uma  praia,   contra  uma  rocha?  Ou  saberá  ela  que  é  parte  de  um  plano  maior,  que  depois  dela  virá  outra  e  outra e outra, e todas juntas, ano após ano, século  após  século,  configurarão  o  perfil  das  praias  e  das  rochas, abrirão  sulcos  na  pedra  e  fendas  na  terra,  de  tal  forma  que  cada  uma  dessas  ondas  se  poderia   orgulhar  de  ter  contribuído  para  moldar  todo  um  planeta?  De  quando  em  vez  há  um  maremoto,  ou  um  tsunami  que  provoca  uma  mudança  radical  no  ramerrame  que   as  ondas  vão  fabricando, assim como surgem pessoas extraordinárias  de  quem  poderemos  dizer  que  sozinhas,  ou  quase,  mudaram  o  mundo.  Ramsés,  Alexandre, Júlio César, Carlos Magno,  Carlos V,  Churchill,  ou,  para  quem   como  eu  prefere  pensadores,  Sidharta,  Sócrates, Platão, Aristóteles e tantos outros…  E  assim  somos  nós,  pessoas  vulgares,  que  não  deixarão  na  história  mais  do  que  os  seus  filhos  e  netos,  como  as  ondas  vulgares  não  deixam  mais  que  uma  vaga  lembrança  que  logo  se  apaga  quando  outra  igual  ou  semelhante  lhe  segue.  Não  temos  outro  desígnio senão o de dizer  que em conjunto – e não por nosso  mérito  individual  –  moldámos  o  mundo  em  que  vivemos.  Moldámos  a  arquitectura,  a  moda,  a  arte,  as  cidades,  as  praias,  os  campos  para  a   agricultura,  as  árvores  da  nossa  paisagem.  No  mundo  já  há  muito  pouco  de  original.  Na  Amazónia  e  em  ilhas  remotas  do  pacífico  ainda  se  encontra  vegetação  que  ali  nasceu  espontânea,  natural.   Mas  as  nossas  florestas, os nossos montes,  os  nossos  rios  têm  mão  humana  há  milhares  de  anos.  Ali  estão  porque  homens  trouxeram  sementes,  secaram  nascentes,  cavaram  outras,  fizeram  grutas  para extrair minério, colocaram barreiras ao  mar  ou  fabricaram  enseadas  para  o  poder  amansar. E tudo  isto foi  feito por todos nós, pelos nossos antepassados, pessoas vulgares.  Lembro­me que o tio  George Pardiac, um dia, quando alguém  referiu que um fulano qualquer era de famílias antigas, respondeu:   ­  Porquê?  Desceram  das  árvores  há  mais  tempo  do  que  as  outras?  A  ideia  de  que  todos  nós  descendemos  de  alguém,  que  por  sua  vez  descende  de  alguém,  que  é  descendente  de  outro  –  numa  corrente  que   chega  aos  primeiros  homens  sobre  a  terra  ­,  foi  para  mim  uma  quase  epifania.  Na  verdade,  aquele  homem  coberto  de  peles  a  caminhar   na  Europa  sobre  a  neve,  tolhido  pelo  frio  à  procura  de  alguma  comida  para  os  seus  filhos  – ou a visão que eu  tenho  dele  através   da  televisão  –  é  necessariamente um nosso avô  longínquo   e nós existimos porque ele se esforçou.   Não  sei  –  e  acho  que  esse  é  um  dos  segredos bem guardados  da  vida  –  se  temos  uma  estratégia  enquanto  espécie.  No  caso  de  termos,  somos  obrigados  a  reconhecer  que  essa  estratégia  não  deve  ser  condizente  com  o  mundo  que andamos a fazer; ou com o  que andamos a fazer do mundo… nem sei!  135   

Hoje  ninguém  se  sacrifica  por  nada,  não  há  padrões  morais  que  valham  um  sacrifício,  nem  uma  ideia  que  valha  uma  linha de  discussão  séria.  Não  sei  se  são,  como  alguns  dizem,  sintomas  de  decadência  da  humanidade,  mas  não  quero  crer   que  façam  parte  de qualquer estratégia.  Por outro lado, se não há estratégia, para quê tantas mudanças  como  as  que  assisti  ao  longo  da  minha  vida? Se não  há propósito,  por  que  razão  as  coisas  não  são  imutáveis?  Ou,  como  dizia  alguém,  por  que  não  é  o  mundo  composto  de  pessoas  que  não  nascem  nem morrem? Por  que motivo desenvolvemos a técnica de  andar  em  duas  patas,  de  opor  o  polegar  aos  outros  dedos,  de  pensar,  de  falar?  Apenas  para  ser uma espécie bem sucedida? E já  seremos  uma  espécie  bem  sucedida,  ou  apenas  pensamos  que  o  somos?  Nesse  caso,  que  surpresas  nos   trará  a  estratégia  de  desenvolvimento da espécie…  Vou  parar  de   pensar  nisto.  É  complicado,  dá­me  a  volta  à  cabeça   e  chego  sempre  à  mesma  conclusão: o meu tempo acabou,  este tempo já não  é o meu. Eu sou como a avó macaca, que apenas   guincha,  e  os  meus  netos  macaquinhos  já  falam  entre  si. Eu sou a  macaca  que  ainda  anda de quatro, a ver os meus netos andar sobre  dois pés.   O  meu  tempo!  Por  que  raio  dizemos  o  meu  tempo,  referindo­nos  ao  tempo  em  que  tínhamos  20,  30,  40  anos?  Era  esse o nosso tempo?    Dizem  que  podemos  escolher  a  nossa  vida;  que  apenas  não  podemos  escolher  como  vamos morrer… Nem sempre será assim,  uma  vez  que  o  suicida  escolhe  a  morte,  mas  a  frase  soa  bem.  O  maior problema é que não se pode escolher a nossa vida, acho eu.  Olho  para  trás  e  que  vejo?  Que  escolhas  poderia eu ter feito?  Poderia ter impedido meu pai de ser preso? Ou meu irmão Raul de  ir  para  a  JONS?  Ou  minha  irmã  de  me  ter  traído  como  o  meu  marido?  –  É  curioso  porque  esta  traição  sendo  dupla,  cada  vez   mais me parece que foi minha irmã, e não meu marido a trair­me.   A  algumas  coisas  direi  que  não   –   não  tinha  idade  para  impedir  meu  pai  de  ser  preso,  ou  de  ter  entrado  para  a  Casa  Militar  de  ​ El  Rey​ ,  não  podia  ter  evitado  que  meu  irmão  fizesse  a  opção  de  seguir  loucamente  Onésimo  Redondo  e  a  sua  organização  radical,  mas  talvez  pudesse  ter  evitado  a   traição  de  minha irmã…  Talvez,  se  o  mundo  fosse diferente do que era, eu pudesse ter  falado  calmamente  com  ela  e  com  seu  marido.  Talvez… talvez…  Mas  nessa  altura  quem  tinha  coragem  de  enfrentar  um  homem  e  dizer­lhe:  meu caro Juan Luís és homossexual, ​ pierdes aceite​ , mas  nós  amamos­te  à  mesma,  o  que  era  verdade.  Vê  se  consegues um  135   

acordo  de  divórcio  com   Pilar,  de  modo  a  que  cada  um  possa  seguir  a  sua  vida  sem  constrangimentos.  E  o  mundo  cairia  em  cima  de  nós…  Não  havia  divórcio,  quando  alguém  se  casava  religiosamente,  como  eles,  ou  como  eu…  Nenhum  homossexual  era  aceite  nos  empregos,  nas  festas  de  sociedade,  em  qualquer  local  eram  hostilizados.   O  homossexual  era  um  ser  perseguido,  solitário,  disfarçado.  Nem  à  mulher  confessava  directamente,  apenas por subentendidos, meias­palavras.  Nesse  aspecto,  a  sociedade  era  bárbara  e  evoluímos.  Mas  da  mesma  forma  que  me  chocava  o  ostracismo,  o  gueto  em  que  colocavam  desgraçados  como  Juan  Luís,  me  incomoda  hoje  o  orgulho  ​ gay​ ,  o  casamento  ​ gay   e todas essas patetices que andam a  apregoar  por  aí.  Provavelmente,  estou  a  fazer  o  mesmo  papel  que  minha  mãe,  a  recusar  algo  que  não  sei  digerir.  Deve  ter  sido  por  isso  que  ​ mamaíta  nunca  quis  falar,  ou  sequer  admitir  que  poderia  suspeitar,  daquilo  que  se  ia  tornando  evidente:  que  Juan  Luís  gostava  muito  de  Pilar,  mas  deixava­a  sexualmente  insatisfeita.  E  que,  pelo  contrário,  ele  se  satisfazia  com  rapazes e  homens, como  nos iam deixando saber com meias palavras.  Às  vezes  penso:  se  um  neto  meu  viesse  dizer  que  vivia  com  alguém  do  mesmo  sexo,  aceitá­lo­ia  como  aceito  os  maridos  de  minhas  netas,  ou  as  futuras  mulheres   de  meus  netos?  Ou  faria  como  fez  minha  mãe  com  Juan  Luís?  Ignoraria  o  facto  e  não  os  reconheceria como reconheço os outros.   Porém,  se  o  mundo  é  assim,  para  que  lado  estamos  a  forçá­lo?  Para  onde  estamos  a  exagerar?  Para   o   lado  da repressão  aos  homossexuais,  ou  para  o lado do seu  reconhecimento? Haverá  equilíbrio,  haverá  meio­termo,  ou  a  vida  é  feita desta tensão entre  novo  e  velho,  em  que  os  velhos,  condenados  como  estão  a  desaparecer,  perdem inexoravelmente? Mas, nesse caso, porque se  diz  –  como  dizem  os  franceses  –  se  os  novos  soubessem,  e  se  os  velhos  pudessem…?  Não  é  esta  frase  popular  o  reconhecimento  implícito  de  que,  ao  fim  e  ao   cabo,  os velhos têm razão? Será que  eu  estou  a  dar  razão  à  minha  mãe,  faço­o  apenas  noutro  patamar,  porque  é  noutro  patamar  que  estamos?  Ou  seja,  se  o  estado  de  coisas  fosse  igual  ao  do tempo de minha mãe, procederia eu como  ela? E vice­versa?  Que falta me faz ​ Madame​  para estas e outras questões… 

Não  é  apenas  em  questões sexuais e morais que o meu tempo  acabou.  Acabou  igualmente  nas  comportamentais.  O  modo  como  se fala, o modo como se veste,  o  modo como  se actua socialmente.  Não  posso  deixar  de  reparar  como  ninguém  se  levanta  para  dar   o   lugar  a  uma  senhora.  Caramba!  Nem  nos  restaurantes  mais  refinados  a  que  nos  leva  Humberto.  Não  me  queixo  por  mim, por  mim  –  que  tenho  o  ar  frágil  dos  88  anos  –  ainda  há  quem  se  levante…  mas  por  Anita  não.  Poderia  estar  manifestamente  afogueada, no auge da sua crise menopáusica – que a teve violenta  135   

–  e  quase  ninguém  lhe  dava  o  lugar.  As  excepções  eram  cavalheiros  fora  de  moda:  ou  velhos,  ou  bem  vestidos,  ou  com  qualquer  toque  que  os  tirava  deste  tempo,  fosse  o  bigode ou a cor  e  o  nó  da  gravata.  As  mulheres  passaram  a  trabalhar,  aos  poucos  tornaram­se  homens,  como  dizia  Pilar  –  que  acrescentava  com  graça que os homens se estavam a transformar em mulheres.  ­  Já  viste  a  quantidade  deles  que  se  interessa  por  cozinha?  –  repetia  ela  como  se  estivesse  escandalizada.  Referia­se  sempre  a  Humberto  que  gasta  horas   a  fazer  refeições  elaboradas,  aos  fins­de­semana.  Minha  mãe  apenas  trabalhou  episodicamente,  na  livraria  de  Biarritz.  Eu  mesmo  só  tive  emprego  poucos  anos,  uma  meia­dúzia,  no  Consulado   de  Espanha.  Minhas  filhas  sempre  trabalharam.  Horas  a  fio,  lado  a  lado  com  homens,  a  chefiar   homens…  Claro  que  é  melhor  assim.  Se  eu  trabalhasse,  se  eu  tivesse  a  minha  subsistência  garantida,  teria  saído  de  casa  na  grande  traição  de Juan  Miguel. Ou talvez a traição de Juan  Miguel  não  tivesse  existido,  porque  antes  disso   teria  saído  de  casa  Pilar,  por causa do comportamento de Juan Luís.   Se  eu tivesse saído de casa, teria feito bem ou mal? Teria sido  mais  feliz?  Anita teria sido mais feliz? Maria teria sido mais feliz?  Que me dizes Luisito? Que me dizes, que eu não sei responder.  Fiz  bem  em  ter  deixado  passar  a  tempestade,  ou  terei  vivido  toda  a  vida,  até  Juan  Miguel  falecer,  condicionada  por  isso?  E  se  eu  tivesse  fugido,  como  fugi  para  Madrid,  muito  depois,  quando  ele,  já  nos  60  anos,  arranjou  uma  sirigaita  –  o  que  eu  gosto  desta  palavra!  –  e   eu  pedi  a  Humberto  e  Anita  que  me  levassem  para  casa  de  Maria?…  Arrependi­me  a  meio  e  tudo  o  que  arranjei  foi  uma discussão por causa do aborto!  Teria  feito  bem?  Não,  responde­me  Luisito,  não  teria…  foi  melhor  assim.  Por  cada  porta que abres, deixas milhares por abrir.  Quando  escolhes  entre  resistir  à  traição  e  fugir,  estás  a  escolher  entre  dois  males.  Por  que  não  te  interrogas,  se  não  devias  ter  ido  viver com Artur, que te dava o dobro do prazer?  ­  Não  podia,  Luisito  de  ​ mi  vida​ !  Era  um  arroubo,  não  teria  dado nada, nada, nada, nada…  ­  Tiveste  medo,  mamã!  Tiveste  medo  de  perder  o  pai  e  de  perder Artur. Por cada porta que abres, deixas tantas por abrir…  Não  podia,  já  expliquei  a  Luisito  que  não  podia.  Artur  só  significou  luxúria,  nada   mais…  E  ainda que Luisito o questione, é  porque ele não sabe o que diz…  Não  sei  o  que  é  melhor,  como   não  sei  se  o  facto  de  as  mulheres  trabalharem  não  está  a  dar  cabo da família e, portanto, a  exigir  uma  família  diferente,  com  padrões  diferentes,  responsabilidades  diferentes,  divisões  de  trabalho  diferentes.  Sei  135   

apenas  que  me  conforto com a ideia de que esse tempo já não será  o meu.   Que  o  meu  tempo  é  o  que  vem  do  fim  dos  tempos;  que  sou  descendente  –  e  não tão distante – daquele homem que, vestido de  peles,  caminhando  sobre  a  neve,  tentava  encontrar  comida  para  levar  à  mulher  e   aos  filhos  que  estavam  numa  caverna,  a  aquecer­se  junto  a  uma  fogueira,  uma  lareira,  um  lar... E que esse  homem  tinha  necessidades,  e  que  podia  encontrar  uma  mulher  cujo  homem  tinha  morrido  às  mãos  de  um  mastodonte  ou  de  um  urso  e  possuí­la, talvez levá­la para a caverna  e pô­la  junto da  mãe  dos  filhos,  que  nada  podia  dizer,   talvez  porque  achasse  normal,  talvez  porque  não  pudesse  ir  ela  para  o  meio da neve com os seus  filhos  e  encontrar  comida,  ao  mesmo  tempo  que  tratava  das  crianças.  Se  calhar  o  que  estou  a pensar é um disparate pegado. Talvez  as  tribos  já  tivessem  uma  espécie  de  infantário,  alguém  que  cuidasse  dos  meninos,  enquanto  as  mulheres  ajudavam  no  trabalho,  a  esfolar  os  animais,  a  guardar  a  sua  gordura,  a  cozer  roupas de pele… Quem sabe?  Apenas  sei  que  esse   tempo   me  parece  próximo  dos  meus  conceitos,  ao  contrário  deste  tempo  que  agora  vivemos  –  o  qual  me  parece,  este  sim,  a  milhares  de  anos  de  distância,  a  muitos  séculos de mim.  Eu  sou  do tempo das ondas, que vêm, uma após outra, fazer o  seu  trabalho,  moldar  o  seu  pedacinho  de  mundo.  De  vez  em  quando  surge  uma  com  escândalo  que  arrasa,  mas  a  maioria  são  como  eu,  passam  pelo  mundo  e  não  deixam  outra  marca,  senão  outras  ondas…  e  outras  e  outras  e  outras.  Eu  vivi  a  vida  que  é  o  produto  de tantas vidas e de tantos esforços. E o que me aconteceu  –  e  foi  tanto  e  tão   doloroso  –  ao longo destas quase nove décadas,  há­de  deixar   a  sua  pequeníssima  marca  em  muita  gente.  E   espero  que  as  minhas  lições,  as  lições  que  eu  tirei  da  vida,  e  que  tentei  passar  para   Anita,  para  Luisito,  para  Maria  e  para  os  meus  netos,  sirva  de  alguma  coisa,  ainda  que  insignificante.  E  que  dessa lição  faça  parte  ter  orgulho,  mas  saber  engoli­lo;  ter  audácia,  mas   ser  prudente;  ter  rasgo,  mas  ser  discreto;  ter  princípios,  mas  ser  tolerante. E muitos outros conceitos que a mim me deixaram e que  eu  tentei  deixar,  para  ser  como  estas  ondas  atrás  de  umas  vêm  outras  e  todas  juntas  é  que  são  lindas  e  todas  juntas  é  que  fazem  sentido.  E eu estou quase a chegar à areia.      XX – Cinco meses    135   

O  que  eu  gostei  de  nadar!  O  que  gostava  de  mergulhar  nas  ondas  e  sentir­me  envolvida   pela  água,  acariciada,  o  corpo  sem  peso,  flutuando  ao  sabor  das  oscilações  da  maré,  puxada  por  uma  vaga,  levada  por  outra,  os  olhos  abertos  a  olhar  o  céu,  como  olho  agora,  não  mais  do  que  a  vinte  metros  do  mar,  mas  já  sem   forças  para  me  defrontar  com  ele.   Estou  fraca.  Se  entrasse  agora neste mar manso, lá ficaria e… não me importava. Talvez  seja  insuportável  o  momento  da   aflição,  quando  nos  falta  o  ar  ou quando a  água  nos  invade  os  pulmões;  talvez  nos  pareça  uma  eternidade,  talvez  nos  arrependamos.  Porém,   se  fosse  apenas  um  segundo…  se  fosse  apenas  um  segundo  gostaria  de  me  sentir  outra  vez  enredada,  enleada,  abraçada  como  Carlos me abraçou naquela ria de El Grove, ao pé de La Toja.  A  última  vez  que  estive  totalmente  submersa  pela  água  foi  na  piscina  de  casa  de  Anita,  mas  já  lá  vão  uns  anos  largos.  Ainda  tinha  força,  nessa   altura,  embora  amparada,  para  entrar  e   mergulhar  e  dar  uma  braçada  ou  duas.  Agora  nem  isso  posso  já  fazer. O corpo vai morrendo antes do desejo  e  é  essa  a  tragédia  da  velhice.  E,  ainda  que  uma  piscina  não  possa  comparar­se  com  o  mar,  lembro­me do prazer físico que para mim era estar  dentro  de  água,  horas  a  fio,  até  ter  frio,  a  pele  dos  dedos  engelhada  e  os  olhos  a  picar  do  sal.  Esse  prazer  prolongava­se,  depois,  quando  secava  o  corpo ao sol e me estirava na areia ou numa cadeira  em frente ao mar, como  agora estou, mas lá em baixo, na praia.   Anita  quis  fazer  uma  piscina  nesta  casa,  quando  as  minhas  netas eram  pequeninas,  mas  eu  tive  uma  fúria  qualquer  e  não  a  deixei.  Ela  insistia,  vá  lá,  ​ mamaíta​ ,  é  para  ​ las  meninas​ .  Ora,  disse­lhe  numa  das  minhas  habituais  frases  desconcertantes,  então  pede  a  piscina  a  Velázquez!.  Juan  Miguel,  já  se  vê,  bastava­lhe  eu  ter  dito  que  não  para  jamais  me  desautorizar.  Ele  sofreu  bastante  as  minhas  amarguras  e  repentes  porque,  lá  no fundo, sentia  que  não  se  tinha  portado  muito  decentemente  comigo.  Mas, vendo de hoje,  reconheço  que  ele  foi  muito  correcto,  admitindo sinceramente – aliás como  eu,  na  altura,  pensava  –  que  o  facto  de  eu  saber  que  ele  me  tinha  traído  o  desqualificara para sempre a meus olhos e aos olhos de todos.   Mal  sabia  ele  que  a   traição  fora  mútua.  A  minha  vantagem   foi  a  descrição,  que   não  lhe  deu  motivos  de  suspeita, e a minha intuição, que me  levou  a  descobrir  aquilo  que,  caso  eu  soubesse  o  que  sei  hoje,  jamais  pretenderia  sequer  ter  querido  saber.  Hoje,  fugiria  dessa  descoberta  desagradável, pois sei que há coisas que é preferível não saber.  Arrependo­me,  agora,  que  Anita  não  tenha  feito a piscina; nessa altura  seria  simples  enchê­la  de  água  do  mar  e  eu  poderia,  pelo  menos,  refrescar­me  um  pouco,  pondo  lá  os  pés  sem  ter  de  passar  pela  turbamulta  que  está  na  praia.  Agora  é  uma  obra  impossível  de  se  fazer,  jamais  a  aprovariam…  Houve   muitos  momentos  na  vida  em  que  ganharia  mais  se  ficasse  calada,  mas  um  impulso  momentâneo  qualquer  instigou­me  muitas  vezes  a  dizer  o  que  não  queria  e,  depois,  sem  ter  jeito  para  pedir  desculpa,  fiquei sempre presa à maldita coerência.  Raramente  encarei  os  meus  defeitos,  salvo  com  Artur.  Com  ele,  a  minha  vida  e  os  meus  pensamentos  íntimos  abriram­se  e  terá  sido  essa,  135   

aliás,  a  causa  profunda  para  me  ter  envolvido  com  ele.  Artur   foi  a  única  pessoa  que  soube  realmente  quem  sou  eu…  Mesmo  ​ Madame​ ,  que  me  conhecia  tão  bem,  só  desvendava  o  meu  lado  racional,  lógico,  dedutivo.  Essa  parte  da  nossa  inteligência  dou­a  a  conhecer  sem  problemas  e  para  Yannick  nem  sequer   tinha   segredos.  Mas  a  parte  emocional,  a  minha  lista   de  sentimentos,  de  hierarquias,  de  preferências,  quanto  gosto de cada filho,  o  que  senti  por  meu  marido,   por  minha  irmã,  por  meu  pai,  por minha mãe,  sempre  o  escondi,  até dos próprios, quanto mais dos outros. Não fui talhada  para  grandes  manifestações  de amor. Provavelmente, o facto de ter vivido a  infância  e  a  juventude  na  turbulência  de  uma  Espanha  dividida,  e  depois,  com  a  guerra,   de  ter  estado  separada  daqueles  que  mais  amava,  contribuiu  para  essa  ausência  na demonstração de afectos. E, no entanto,  eu tenho­os e  seria capaz dos maiores feitos em nome deles…   Mas,  desde  o  abraço  que  dei  a  Pilar  e  a  minha  mãe,  no  porto  de  Biarritz,  a  olhar  a  Virgem  dos  Rochedos,  quando  as  três,  como  náufragas  sem  destino  nos  apertámos  docemente  umas  contra  as  outras,  desde  então  não  sinto  a  beatitude  que  senti  nesse  momento.  Claro  que  tive  outros  instantes,  com  Juan  Miguel  e  até  com  Artur.  Mas,  ali,  vivi o sentimento de  estarmos  sós  contra  o  mundo,  de  sermos  as   únicas  três  que  podíamos  valer­nos,  de  estarmos   tão  unidas,  que  a  vontade de uma seria a vontade de  todas  e  que  a  vontade  de  todas  seria  indestrutível. Esse sentimento, que é o  sentimento  da  mais  profunda  partilha,  da  comunhão…  é  triste  dizê­lo  com  esta  idade  e  quase  me  comovo  ao pensar nisso, esse sentimento nunca mais  o tive!  Quando penso nesse momento, quase  sempre o afasto da cabeça. E isso  ­ sei­o desde que tive as consultas com Artur ­ relaciona­se com a traição de  minha  irmã.  Até  ao   momento  em   que  soube  da relação secreta entre Pilar e  Juan  Miguel,  minha  irmã  era  tudo  para  mim.  Era  a  sobrevivente  da  minha  juventude,  coisa  que  ​ mamaíta  não  poderia  ser.  Pilar  era  o  testemunho  da  minha  vida,  aquela  que  me  podia  ajudar  a  remontar  os  cacos  da  minha  existência  passada.  De quem falar sobre Raul, Enrique, Eduardo e meu pai?  Com  quem  recordar  Carlos,  o  mergulhador  de  El  Grove?  Com  quem  comentar  as  palermices  de  Juan  Miguel,  as  filhas  a  crescer,  os  netos,  depois?  Pilar  não  só  me  traiu  como  me  fugiu  da  vida.  Depois  da  traição,  falou­me  como  se  falam  duas  amigas  que  se  conhecem  há  muito,  mas  que  se  conhecem  mal.  E  não  era  assim  que  eu  pensava  em  Pilar,  quando  pensava  no  abraço  em  Biarritz.  Era como parte de mim e não como  alguém  que escolheu um caminho, apesar de mim…  Restava­me  Elena,  a  minha  amiga  de  Ayllón.  Essa  viveu  sempre  em  Madrid,  depois  da  guerra.  Casou­se  e  teve  cinco  filhos,  raramente  nos   víamos.  Só  nalgumas  viagens  em  que,  com   Juan  Miguel  passava por lá, ou  em  breves  momentos  em   que  ela  vinha  a  Portugal,  sobretudo  aqui  ao  Algarve,  passar   uns  dias   com  o  seu  marido,  Francisco.  Nessa  altura,  falámos  disto  e  daquilo,  da  guerra,  sobretudo.  Dos  três  rapazes  dela,  dois  têm  os  nomes  de  meus  irmãos  –  Eduardo  e  Enrique. O terceiro é Francisco  e  as  filhas  chamam­se  Manuela  e  Isabel.  Foram  muito  amigos  de  minha  filha Maria, enquanto ela deixou que fossem…   135   

Elena, querida Elena a quem eu tão pouco liguei, sobretudo porque não  tinha  muita  conversa  para  ela.  Era  uma  dona  de  casa,  não  tinha  grandes  rendimentos  e  não  tinha estudado mais do que  o  trivial. Nesse aspecto, uma  vez  que  coincidiu  no  Algarve  com  ​ Madame​ ,  sentiu­se  totalmente  deslocada.  A  culpa  foi  minha,  porque  pensamos  sempre  que  haverá   oportunidade  para  emendar  o que está mal, e depois o tempo passa e jamais  o  fazemos.  As  mágoas  ficam,  resistem e envenenam… Claro que nunca  me  zanguei com Elena, mas  foi, precisamente quando tinha concluído que tinha  de ver Elena uma última vez, que ela me falhou.  Elena  tinha  estado  aqui  no  Algarve,  já  viúva,  no  início  do  Verão  em  que  surgiu  a  doença   de  Juan  Miguel.  Um  filho  meteu­a  no  AVE10  em  Madrid  e  Humberto  foi  buscá­la  a  Sevilha,  um  trajecto  que  já  utilizara  várias  vezes.  Esteve  cinco  ou  seis  dias  e  partiu  com  um  dos  filhos,  salvo  erro Eduardo, que a veio buscar de carro…  Nesses  dias  falámos  imenso.  E  eu  senti,  quando  ela  partiu,  que  ainda  ficara  tanto  por  dizer.  O  significado  daquilo  que  fazemos  na  adolescência  marca­nos  de  forma  tão  definitiva  na  velhice…  por  que  será?  Eu  e  Elena  tínhamos  a  história  dos  soldados  nacionalistas,  para  quem  cantávamos  canções  brejeiras  e  a quem demos beijos e deixámos que nos mexessem em  certas  partes   –   para lhes dar sorte, como eles diziam… O modo como isso a  afectava,  passados  mais de  60  anos sobre o sucedido, constitui um mistério.  Mas  a  verdade  é  que  esse  episódio  foi  outro que varri da cabeça… Embora  eu  saiba  –  e  digo­o  com  custo  –  que  a  troco  de  comida  deixei  um  jovem  soldado  roçar­se  nas  minhas  nádegas  até…  ainda  hoje  me  custa  a  confissão…  ainda  hoje,  sendo  que  o  soldado  foi  gentil  e  que  nunca  lhe  passou  pela  cabeça  violar­nos  ou  desvirginar­nos  –  isso  era  uma  coisa  importante  na  altura, um assunto sério, a  mulher manter a virgindade para o  casamento,  e  nós  éramos  garotas  de  17  anos.  Mas  nós sabíamos que aquilo  estava  errado,  porque  o  conceito  de  bem  e  de  mal  existe  para  nos  atormentar  toda  a  vida.  Eu  acredito  que  muita  gente  que  finge  não  ter  tormento  nenhum  é  porque  não  se  quer  conhecer.  Quem  se  olhar,  quem  pensar,  quem  se  interrogar,  terá  sempre  um  armário repleto  de esqueletos e  de momentos de que se envergonha, ou que preferia não os ter vivido. Artur   nunca  valorizou  grandemente  este  facto,  dizia­me  que  tinha  pouca  importância,  ou  melhor que a importância que eu, particularmente, lhe  dava  é  que  fazia  dele  um  facto  importante.  Mas,  quando  tentei  falar  disso  com  Elena,  a  única  pessoa  que  eu  conhecia  no  mundo  a  saber  o  que  se  tinha  passado  nesse  dia,  verifiquei  que  ela  –  que  tinha  tido  um  comportamento  semelhante,  com   outro  soldado  amigo  do  meu  –  também  dava  importância  ao  sucedido.  Disse­me  que   era  o  dia  em  que  menos  gostava  de  pensar  de  todos os dias da guerra.  Ora,  numa  guerra  onde  morreram  milhares  de  pessoas,  onde  vimos  cadáveres  amontoados  no  chão,  meninos  esmagados  por  tanques  e  por  pedregulhos  que  resultavam   das  explosões;  onde  vimos  crianças  agarradas  às  mães  –  todos  mortos,  toda  uma  família  –  dizer  que  um  soldado  a  esfregar­se  nas   pernas  de  uma jovem é o pior dia da guerra é dizer muito. E  10

 ​ Alta Velocidad – comboio de alta velocidade  

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é,  provavelmente,  não  dar  razão  a  Artur.  O  facto  em  si  é  importante,  não  apenas  pela  importância  que  lhe  damos,  mas  pelo  que  revela   de  nós.  Se  a  necessidade aumentasse muito, ter­me­ia prostituído?   ​ ¡Que  va! – dizia Elena – ​ ¡no hay que ser dramática! ¿Y se fuéramos?  Viviríamos de puta madre…   Para  Elena,  todos  os  acontecimentos  de  uma  vida se ficavam a dever a  uma  qualquer  fatalidade.  O  destino  –  dizia  ela  ­  está  marcado,  traçado,  se  acaso  fôssemos  putas  éramos  putas,  teria  sido  esse  o  nosso  destino  e quem  sabe  se  não  poderíamos,   até,  ter  sido  mais  felizes  do  que  fomos.  Era  a  sua  opinião  simples,  ao  passo  que,  para  mim,   a  questão  era  do  tamanho  do  mundo.  Porque,  ao  contrário  de  Elena,  eu  penso  que  se  fosse  puta  isso  significaria  ou  uma   coisa  com  a  qual  nunca  concordei  que  a  conduta  é  apenas  fruto  das  circunstâncias  e  não  de  escolhas morais de um indivíduo ­  ou,  pior  hipótese,  que  se  eu  tivesse  feito  uma  escolha  moral  em  circunstâncias  adversas,  tê­la­ia  feito  de  um  modo  oportunista,  guiada  apenas pela vantagem imediata e não pela convicção do bem.  Naturalmente,  não  seria  com Elena que eu discutiria isto. Infelizmente,  ela  não  mostrava  qualquer  propensão  para  um  debate  desta  natureza.  E,  como  ela  teve  de  se  ir  embora,  o  assunto  acabou  por  morrer  naturalmente.  Porém,  na  minha  cabeça,  ele continuou a ser alvo de atenção. Pode dizer­se  que  é  uma  questão  de  ociosos  –  pode  ser!  Finalmente  que  me  importa, aos  88  anos  se  fiz  as  coisas por um motivo ou outro – mas por cada vez que me  tentava  convencer  com  este  argumento,  surgiam­me  mil  outros  que  me  diziam que se eu resolvesse esta questão, poderia resolver outras.  O  pensamento  funciona  por  plataformas. Quando passamos uma porta,  ou  melhor  dizendo,  uma   parede, porque na maioria das vezes a  questão não  se  apresenta  com  a  facilidade  de  transpor  uma  porta,  chegamos  a  um  local  onde  há  mais  uma  multiplicidade  de  portas.  É  um  jogo  infinito  e  desesperante,  mas   completá­lo  tem  sido  até  agora  o  meu  alento  para  viver,  sobretudo depois do meu ano fatídico.  Estou,  justamente,  a  referir­me  a  esse  ano  fatídico,  o  ano  em  que  se   declarou  a  doença  de  Juan  Miguel,  a  qual  o  havia  de  conduzir   à  morte  em  cinco  meses;  o  ano  em  que  faleceu  ​ Madame​ ,  a  minha  querida  Yannick,  poucos  dias  depois  de  meu  marido.  O  ano   em  que  eu  disse  a  Anita  que  queria  ver  Elena,  que  tinha  algo  para  falar  com  Elena  que  era  tão  importante  que  o  fizesse  antes  de  morrer,  que  ela  me  trouxesse  Elena  para  estar  comigo…  e  Anita,  com  o  seu  ar  bondoso,  a  ajudar­me  a  sentar  para  me dizer:  ­  ​ Mamaíta​ ,  não  queríamos  que  sofresses  mais,  mas  os  primos  de  Madrid  (chamaram  sempre  primos  aos  filhos de Elena, a quem eu chamava  mana, muitas vezes), telefonaram a dizer que a mãe…  Não  foi  preciso  dizer  mais.  Vi­lhe  nos  olhos  o  que  ela  não  viu  nos  meus:  lágrimas;  e  soube  que  o  destino   de  Elena  fora  igual ao de Yannick e  ao  de  Juan  Miguel.  Lembrei­me  das  cenas  bíblicas,  de  Job  a  rasgar  as  roupas  e  a  revoltar­se  com  Deus.  É  isto  que  queres?  É isto? Levar­me toda  a gente que amo ao mesmo tempo?  135   

Acho,  porém,  que  não  dei  mostras  de  revolta.  Não  vale  a  pena  –  eis  algo  que  aprendemos.  Sabemos  que  vamos  a  seguir.  Minha  irmã  tinha  decretado  que  era  preciso cuidado comigo, que não resistiria muito tempo à  morte  de  Juan  Miguel.  Pois  bem,  Pilar:  resisti  à  de  Juan   Miguel,  à  de  Yannick,  à  de  Elena,  à  tua  e  à  de  Maria  –  todas  as  mortes  no  mesmo  ano,  como se Deus me quisesse testar. Como se a morte estivesse à solta entre os  seres  que  eu  amo,  como  se  ela  me  rondasse  e,  depois,  inexplicavelmente  parasse  à  minha  porta  e  não  me  levasse,  para  eu  ter   tempo   suficiente,  sete  anos,  para  pensar  nisso   e  para  pensar  no  que  ando  a  fazer  e  para  pensar na  responsabilidade  que  tive  em  algumas  dessas  mortes.  Afinal  fui  eu  quem  disse  ao  médico  para  aumentarem  a  dose  de  morfina  quando  Juan  Miguel  não tinha esperança – só dores.  No  dia  em  que  soube  da  morte   de  Elena,  estávamos  em Fevereiro, um  Fevereiro  frio,  de   um  frio  terrivelmente  aguçado  e  húmido,  que  me  penetrava  os  ossos.  Eu  tive  forças  para  abrir  a  janela  do  meu   quarto,  em  casa  de  Anita,  e  deixar  o  frio  entrar.  Estendi  os  braços  e  apanhei  a  chuva,  lavei  a  cara,  molhei  o  cabelo.  Como se estivesse dentro de água,  só voltei a  fechar  a  janela  quando  senti  tanto  frio  que  estava  capaz  de  paralisar,  os  dedos  engelhados  e  simultaneamente  rígidos  da água fria. Não sei porque o  fiz,  já  não  tinha   idade  nem  desejo para perguntar a Artur e nunca  o  contei a  ninguém.  Tinha  81  anos  e  a  única  pessoa  que  me  sobrava  da  infância  era  Pilar.  Não  escondo  que  a  minha  relação  com  Pilar  era  estranha.  Desde  a  traição  ficámos  distantes  e  no dia do funeral de Juan Miguel ela sentou­se a  meu  lado  e  talvez  só  eu  soubesse  que  a  sua  presença  ali  tinha  um  significado  maior  do  que   o   facto  de  ela  ser  minha  irmã.  Anita  e  Maria  nunca  perceberam  inteiramente  a  razão   de  não  sermos  assim  tão próximas,  mas  não  faziam  muitas  perguntas,  porque  também  não  se  lembravam  do  tempo  em  que  fôramos  íntimas.  De  qualquer  modo,  depois  da  morte  de  Juan  Miguel  –  e  das  notícias  de  Yannick  e  de  Elena,  a  cujo  funeral  Anita  não  quis  que  eu  fosse,  ao  que  eu  me  sujeitei  –  Pilar  ensaiou  uma  aproximação.  ­  Mana,  somos  velhas,  não  vamos  encerrar nossos dias com as mágoas  do  passado  –  disse­me  ela,  sempre  dada  a  frases  diplomáticas  que  lhe  ficaram do marido falhado.   Concordei.  E  ela  passou  a  visitar­me  amiúde,  em  casa  de  Anita,  tanto  mais  que  vivia  num  apartamento  não  muito  longe.  Já  se  sabe  que  as  relações  não   voltaram  ao  que  eram  dantes,  mas  sempre  rimos  um  pouco  com as histórias de que nos lembrávamos do tempo em que éramos crianças  e,  depois,  adolescentes.  E   um  dia  de  sol,  em  Março,  estávamos  ambas  tão  sentimentais  numa  esplanada  à  beira  Tejo que tentámos refazer o abraço de  Biarritz,  tomando  a  Torre  de  Belém  pela  Virgem  do  Rochedo,  mas  já  não  foi a mesma coisa.  A  minha  boa  relação  com  Pilar  esvair­se­ia,  porém,  em pouco mais de  dois  meses.  Na  Páscoa  fomos  para  o  Algarve  e  decidimos  ficar  por  lá uma   semana.  Fátima  foi  também  para  nos  acompanhar, de modo que ficámos as  135   

três  neste  casarão.  Correu  tudo  lindamente  até  à  véspera   do   Domingo  de  Páscoa.  Na  noite  desse  sábado  Pilar  e  eu  bebemos  um  pouco  mais  do  que  seria  normal.  Fátima  tinha  feito  uma  refeição  bastante  boa  e  estávamos  muito  animadas.  O  problema  começou,  penso  eu, devido a um equívoco de  Pilar:  na  sua  imaginação,  a  traição  dela  com  Juan  Miguel  era  do  conhecimento  de  toda  a  família  –  de  minhas  filhas,  de  minhas  netas  e  sabe­se  lá  de  quem  mais.   De  modo  que,  no  meio  de  uma  questiúncula  qualquer  ela  atirou­me  à  cara  que  teria  sido  mais  prudente  se  o  assunto  ficasse  só  entre  nós,  como   ficara  o  de  Juan  Luís,  o  seu  marido  frouxo.  Eu  respondi­lhe à letra:  ­  ​ ¡Para  mi,  Pilar,  todo  se  ha  quedado  entre  nosotras,  solamente entre  nosotras! ¿Que te crees tu? ¿Que lo estuve pregonando por las calles?   Pilar  não  reagiu  bem.  Desatou  a  fumar um cigarro – ela sempre fumou  pela  vida  fora.  Tinha  a  pele enrugada do tabaco, era mais magra e mais alta  do  que  eu,  mas  tinha  um  porte  que  lhe  ficara  da  curta  e  infértil  vida  diplomática  e  que  lhe  dava  sempre  um  ar  de  grande  dama.  Atirou­me  uma  baforada  de  fumo  e  depois,  com  um  ar  absolutamente  impiedoso, disse­me  que  por  ela  o  podia  apregoar.  Que  Juan  Miguel  se  tinha  divertido  e  ela  também.  E  que  eu,   se  quisesse  e  não  fosse  tão  convencional,  me  podia  ter  divertido o dobro.  Ela  acertou  em  cheio.  E  foi  por  isso  que  eu  deixei  a  minha  razão  afundar­se   na  desorganização  mental  que  era  a   minha  emoção.  Disse­lhe  o  que  nunca  devia  ter  dito,  acusei­a  de  tudo  e  mais  alguma  coisa.  Em  boa  verdade,  não  me  lembro  do  que  disse.  Só  me  lembro  de  Fátima  entrar  a  gritar:  ­ Minhas senhoras! Minhas senhoras!   Eu  retirei­me  para  o  quarto.  Fechei  a  porta,  despi­me  –  na  altura,  sem  fraldas  e  com  os  movimentos   mais  soltos,  fazia­o  ainda  sem  dificuldade.  Depois,  vesti  a  camisa  de  noite  e  deitei­me.  Acordei  – pareceu­me que não  mais  de  uma  hora  ou  duas  depois  –  com  a  Fátima  aos  murros  na  porta  do  meu quarto.  A  mulher  estava  branca,  lavada  em  lágrimas.  E  eu  pressenti  que  o  impossível  se  tornara  verdade.  Pilar  tinha  morrido.  Estava  morta  em  cima  da  sua  cama,  impecavelmente  vestida,  como  sempre  andava,  apenas  com  um sapato tirado. O copo de leite, que bebia todas as noites antes de dormir,  estava  cheio,  na  mesa­de­cabeceira. A sua face, apesar da discussão terrível  da noite anterior, era serena.  Tive  de  acalmar  Fátima,  tal  era  o  seu  desespero,  que  entre   o   pobre  senhora,  referindo­se  a  Pilar,  e  o  meu  Deus, referindo­se a ela própria, e de  novo  um  pobre  senhora,  agora  referindo­se  a  mim,  chorava  baba  e  ranho.  No  meio  de  toda  aquela convulsão disse­me que estivera a falar com  minha  irmã na noite anterior, depois de eu ir para a cama. Interrompi­a:  ­ A falar de quê?  E talvez tenha sido um pouco brusca, pois a mulher assustou­se.   ­ De nada de especial, sei lá, do tempo, da casa dela, desta casa…  135   

Fiquei  mais  descansada,  e  ela  continuou. Assim estiveram até cerca da  meia­noite  e   meia.  Posto  isto,  Fátima  aqueceu­lhe  um  pouco  de  leite,  deu­lhe  o  copo  ainda  na sala e foi para o seu quarto. Hoje de  manhã, depois  de  se  levantar,  tinha  reparado  na  porta  entreaberta  e  na  luz  do  sol  que  iluminava  o  quarto  de  Pilar.  Quando  espreitou  viu­a  vestida  sobre  a  cama.  Quando lhe tocou, percebeu o sucedido.  Mandei­a telefonar a Anita.  O  óbito  foi  passado – ataque cardíaco súbito. Não é caso comum numa  mulher  de  79  anos,  como  ela,  mas  acontece,  disse­nos  o  médico.  Nos  pertences  de   Pilar  encontrámos  uma  nota  em  que  ela  dizia  querer  ser  enterrada  onde caísse. Por esse bilhete fiquei a saber que  ela tinha uma série  de  doenças  e  de  alergias  que  eu  desconhecia  – e pela primeira vez me senti  culpada  de,  sendo  a  sua  irmã  mais  velha  e  sabendo  que  ela  não  tinha  ninguém  no  mundo,  salvo  eu  e  as  minhas  filhas,   não  lhe  tivesse  prestado  atenção.  Felizmente,  o  remorso  foi  um  pouco  ofuscado  quando  soube  que  Anita  sabia  perfeitamente de tudo. Também sabia que a ​ tita Pilar tinha feito  testamento  a  favor  dela  e  da  irmã,  o  que  a  nota  confirmava  e  que  ela  costumava dizer que devia ser enterrada onde caísse.   ­ ​ Donde me caiga me quedo.  E  assim  foi  ela  enterrada  no  mesmo  cemitério  de  Juan  Miguel.  Não  sem  antes  eu  ter  feito  uma  pequena  cena  com  Anita  por  não  a  querer  no  mesmo  jazigo  que  meu  marido,  apesar  de  ter  oito  lugares  e  de  ele  lá  estar  sozinho.  Não  iria  permitir  que  a  traição  fosse  também  ​ post­mortem​ ,  mas  não  o  podia  dizer  a  minha  filha,  que  não  conhece  a  história.  Felizmente,  Humberto,  na  sua pachorrenta paciência, parece ter entendido que havia um  caso  de  ciúmes,  embora  para  ele  não  totalmente  esclarecido,  e  conseguiu  convencer  minha  filha  a  sepultar  a  tia  noutro  local  que  não  no  jazigo  da  família.  E  assim,  o  funeral  foi  o  mais  simples  possível.  Eu,  Anita,  Humberto,  Fátima  e  três   ou   quatro  almas  piedosas  da  terra,  entre  as  quais  uma  prima  afastada  de  meu  marido.  Maria  não  estava  em  Madrid,  estava  em  Itália. As minhas netas estavam muito atarefadas, presumivelmente com  namorados  (na  altura).  E  Anita,  sempre  complacente  dizia  –  coitadinhas,  ainda  noutro  dia  foi  o  avô…  E  eu  pensava  que,  para  mim,  era  a  quarta  morte em pouco mais de dois meses.   Comecei  a inculcar  qual a minha parte da culpa nesta coincidência. Por  estranho  que  pareça,  sentia­me  algo  culpada  por ter autorizado a dose extra  de morfina para Juan Miguel, como se ele sentisse outra coisa que não fosse  o  alívio da dor, como me sentia culpada pela discussão com Pilar. No fundo  da  minha  consciência  ainda  estava,  também,  por  resolver  ­  mais  remoto,  mas  muito  mais doloroso – o caso de Luisito, cujo remorso de o ter deixado  em  casa  de  minha  irmã  quando  ele,  pequenino,  foi  a  correr  atrás  de  uma  bola  e  eu  nem  sequer  estava  com  ele, porque andava a tentar  fazer as pazes  com  pai…  Essa  culpa…  esse  remorso  nunca  me  passou,  apesar  das  tentativas  de  superar.   Nem  Artur  nem  ninguém  puderam  arrancar  esse  sentimento do local fundo, mas bem presente, onde está incrustado.  A  morte  de  Pilar,  após  a  enorme  discussão  que  eu  tivera  com  ela,  135   

turva­me  o  espírito  e  faz­me  sentir  culpada,  apesar  de  o  próprio Luisito me  dizer que é um remorso idiota, sem sentido, quase anedótico:  ­  Tu  és  mais  velha.  E tu  discutiste com  ela porque ela discutiu contigo.  Se  fosses  tu  a  morrer,  a  culpa  seria  dela?  E  se  morressem  as  duas,  o  remorso  deveria  ser também igualmente repartido? Faz algum sentido achar  que tens culpa?  Não  fará…   Mas  eu  sinto  a  culpa  que  meu  filho  diz  que  não  tenho.  E  tanto  mais  a  sinto,  quanto  nem  sequer  me  importo  com  o  facto  de  a  poder  ter.  É  o  tipo  de  culpa  que  se  sente  quando  se  bate  devagarinho  num  carro  parado.  Saímos  e  dizemos,  até  com  sinceridade:  olhe,  a  culpa  é  minha!  Eu  mando  o  meu  seguro  tratar   disto.  E vamos à nossa vida. Porém, mais tarde,  quando  nos  lembramos,  ou  porque  passámos  no  local,  ou  por outro motivo  qualquer, sabemos inapelavelmente que a culpa foi nossa.  Sinto o mesmo. Que é algo que poderia ter evitado, mas que não trouxe  grande  dano,  e  talvez  este  pensamento  me  provoque  ainda  mais  culpa  do  que o acontecimento em si.   E,  porém,  o  mais  curioso é que Pilar me faz falta! A sua ausência corta  o  único  elo  que  me  ligava  ao  passado,  é  um  pedaço  de  uma  corrente   que  desapareceu.  Doravante  estou  entregue  à  minha  própria  memória  que  sinto  que vai desaparecer antes que eu consiga ter respostas para tudo.   E  no  dia  em  que  já   não  tiver  memória,  serei  toda  presente  e  futuro.  Sendo que o meu futuro é breve – é a morte.  Vivi  esses  dois  meses  tristes  como  se  levada  por  uma  força  externa  a  mim,  como  se  os  meus  passos,  gestos,  pensamentos,  acções  fossem  doutra  pessoa.  Vivi­os  talvez  com  pena  de  mim.  Porém,  o  golpe  mais  radical  e  fundo,  aquele  que  me  derrubaria  as  barreiras  e  os  sentimentos   –   se  algum  ainda  tinha  por  derrubar  –  veio  depois,  três  meses  depois  da  forma  mais  inesperada e bruta que um deus raivoso poderia conceber.  Não  sei  se  um  deus  nos comanda,  como já disse. Não sei precisamente  o  que  é  esse  Algo  ou  Alguém.  Há  momentos  em  que  lhe  chego  próximo,  quase  lhe  toco,  mas  há  outros  –  como  este  em  que  me  lembro  da  morte  de  Maria  –  em  que  ele   me  é totalmente estranho. Fico imersa numa espécie de  ar  denso,  em  que  os  meus movimentos  se tornam lentos, pesados e a minha  cabeça   vazia,  estranha  ao  meu  corpo.  Fora  eu  nova,  e  tudo  o  que  poderia  fazer  era  nadar,  nadar  violentamente  até  à  exaustão,  para  concentrar  todas  as  minhas  forças  no  desejo   de  viver,  de  flutuar,  de  voltar  a  terra.  Agora  já  não  posso,  já  não  disfarço.  Já  não  tenho  sequer  forças  para  apenas  flutuar  ao  sabor  das  ondas,  a   força  exterior  a  mim  já  não  faz  com  que  ande,  com  que  me  mexa,  com  que sequer flutue. Resta­me estar sentada, inútil, a  ver o  mar e a imaginar­me nele, a ser levada pelas ondas.    XXI – Maria    Cai  o  sol  na  Senhora  da  Rocha,  à   minha  direita.  Nem  preciso de olhar  para  saber  o  tom  alaranjado  do  horizonte.  A  cor  espalha­se  pela  água  e  135   

ganha  um  aspecto  ameaçador,  lembrando  aquelas  frases  bíblicas  terríveis  sobre o mar tingir­se de sangue. E o sangue lembra­me morte.  Não  tenho  pavor da morte, nem penso na minha morte. O medo é a dor  que  a  morte  inflige  nos   vivos, a desorientação que lhes causa, o nunca mais  há­de  vê­lo.  Nunca mais – ​ Nevermore – como parecia dizer o corvo de Poe.  Nunca  mais…  E  a  dor  da  morte  senti­a  tantas  vezes  e de tantas formas que  não  sei  descrever  o  que  senti  quando  soube  que  minha  filha  Maria  tinha  sido levada para sempre, que nunca mais a veria.  A  notícia  chegou  até  mim  num  repente,  mas,  ao  que  vim  a  saber  depois,  muito  adocicada.  Maria  tivera  um  desastre  de  automóvel  brutal  na  M­30  em  Madrid,  quando  seguia  de  carro  com  o  seu  ​ traumatólogo​ .  Numa  noite  de  chuva,  o  homem  não  aguentou  o  carro  num  viaduto  e  ambos  sofreram  um  acidente  brutal,  caindo  de  sete  ou  oito  metros  noutra  rua  por  cima  da  qual  o  viaduto  passava.  Estavam  ambos  no  hospital  e,  até  pelo  facto de o marido ou companheiro de Maria ser médico, tudo fariam para os  salvar. Foi assim que Anita me disse.  Eu deixei­me cair num torpor.   Maria  tinha  sido  sempre  uma  filha  difícil.  Tinha  feito  o  catálogo  das  asneiras,  casara­se  porque  sim,  divorciara­se  por  nada,  fora  para  Madrid  para  fugir  de  tudo,  mas  claro  que  nunca  fugiu dela, porque era apenas ela a  origem  do  seu  problema.  Não  sei   se  foi  mimada  de  mais,  não  sei  o  que  se  passou  com  ela,  mas  teve,  certamente,  a  mesma  educação  que  Anita  e  não  podia haver duas raparigas e depois duas mulheres mais diferentes.  Porém,  nos  momentos  de  aflição  como  o  que  eu  passava,  releva­se  todo  o  mal.  Que  me  importava   os  berros,  as  ameaças  –  confesso  que,  até  uma  vez,  um safanão – que Maria me dera? Que me ralava agora o dinheiro  que  ela  roubou  para  comprar  sei  lá  o  quê?  Droga, certamente! Nem o facto  de  ela  ter  abandonado  os  filhos  ao  marido,  o  que  me custou a presença  dos  meus  netos  na  minha  vida,  nem  nada.  Nessas  alturas  recordamos  os  momentos  pequenos,  a  Maria  na   minha  cama,  aos  pulos  no  colchão,  contente  pela  boneca  que  lhe  tinha  trazido  não  sei  de  onde…  A  Maria  agarrada  a  mim,  com medo de uma cave escura na  nossa casa no Algarve…  A  Maria  a  pedir­me  desculpa  de  uma  asneira  que  fizera… A Maria a posar  para  uma  fotografia,  com  ar  de  vampe,  aos  16  ou  17 anos, juntamente com  a  desajeitada  Anita,  que  parecia  um gafanhoto… A Maria, a minha Maria e  a  notícia  do  seu  acidente  ainda  nem  cinco  meses  tinham  passado  sobre  a  morte  de  seu  pai,  sobre  o  enterro  a  que  ela  chegara  atrasada,  o  dia  em  que  me  dera  um  aperto   tão  grande  no  braço  que  me  magoara.  O  que  passara  desde então, com a morte de Yannick e de Pilar…  Num  repelão,  manhã  seguinte,  decidi­me  a  ir  para  Madrid,  mas  Anita  foi  inflexível.  Eu  e  Humberto  vamos,  tu  ficas  cá  em  casa,  alguém  tem  de  ficar  cá   em  casa.  Meia  drogada,  cheia  de  comprimidos,  mal  aguentando  a  pé,  não  tive  forças  para  me  opor.  Queria  fazê­lo,  mas  não   sabia  como.  E  além  disso,  Anita  e  Humberto   tinham  os  bilhetes  de  avião  e  insistiram  muito  que  seriam  os  únicos  a  ir…  Fiquei  com  Fátima,  com  outra  empregada  que  Anita tem e com as minhas netas, na altura todas a viver em  135   

casa.  Passei  vários  dias  a  dormir,  e  se  hoje   me  perguntarem  quanto  tempo  estiveram  Anita  e Humberto em Espanha, no hospital, ao lado de Maria que  –  segundo  os  telefonemas – se batia entre a vida e a morte, eu não sei dizer.  Pode  ter  sido  uma  semana,  um   mês…  ou  um  dia.  E  eu  dormia,  dormia,  dormia…  Sabia  que  algo   de  grave  estava  a  acontecer   de  que  a  minha  cabeça   se  recusava  a  tomar conhecimento. Via­o pelo ar das meninas, via­o  pelo  ar  de  Fátima,   pelo  ar  das  pessoas  que  me  telefonavam  a  perguntar  como estava, como me sentia.  Anita voltou. E não foi preciso dizer­me nada. Absolutamente nada. Eu  soube  nesse  momento  que  ela  era  a filha que me restava dos três que  dera à  luz.  Ela,  o  patinho  feio,  a  mais  velha,  talvez  a  mais  desprezada,  porque  Luisito  era  perfeito,  porque  Maria  carecia  de  atenção,  de  discussão,  de  drama  e  de  afectos  constantes.  Anita  era  a  solidez,  mas  nesse  dia  foi­se  abaixo.  E  de  novo  chorou,  como   quando  da  morte  de  seu  pai,  como  eu  chorara  há  muitos  anos  em   Ayllón…  E  eu,  velha  de  81  anos,  consolei­a  como pude… é a vida, dizia eu. É a vida...   Mas é a morte.  Durante  um  tempo  parecemos  viver  um  ambiente  fúnebre,  até  Humberto  ter  comprado  os  bilhetes  para  uma  viagem  de  barco,  nesse  Verão.  Íamos  todos  –  ele,   Anita,  eu  e  as  três  meninas. Três camarotes. Um  para  o casal,  outro para as meninas mais velhas e o terceiro  para mim e para  Madalena.  Foi  nessa  viagem  que  aprendi  a  gostar  desta  minha  neta  simultaneamente  rebelde  e  carinhosa.  Madalena  foi  a  primeira  a  proceder  comigo  –  depois  de  todas  as  mortes   que  me  afectaram  nesse  ano  –  não  como  a  coitadinha  da  senhora,  como  Fátima  costuma  referir­se  a  mim,   ou   como  aquela  de  quem  se  diz:  deixa­a  estar,  deve  estar  cansada,  como fazia  Anita,  mas  sim  como  uma  pessoa  inteira,  que  apesar  da  idade  e  das  contingências,  tinha  todas  as  suas  capacidades  intelectuais.  Ou  quase,  porque  os  medicamentos  de  que  me  encharcaram  davam­me  uma  sonolência  constante  que  contrastava,  em  certas horas, com uma espécie de  alegria pateta e artificial.   Se não fosse Madalena eu não saberia o que tinha acontecido a Maria.   Há  um  certo  masoquismo  no  modo  como,  por  vezes,  queremos  saber  aquilo  que  nos  vai  magoar.  Sabemos  a  verdade  por  alto,  pelo  essencial,  como  eu  sabia  de  Maria  –  estava  morta,  nada  havia  a  fazer,  jamais  a  veria  de  novo,  ​ Nevermore  –  mas  queria  pormenores  que  sabia  estarem  a  esconder­me. Eu  fazia testes e mais testes, como perguntar onde se tinha ela  ferido,  mas  Anita  e  Humberto   teriam  a  lição  bem  estudada,  respondiam  o  mesmo,  com  os  mesmos  pormenores.  O  nome  do  hospital,  do  médico,  o  tipo  de  ferimentos,  o  facto  de  ter  entrado  em  coma  e  não  ter  saído  mais,  a  ideia  transmitida  pelos  especialistas  de  que  não  deveria  ter  sofrido…  tudo  isso!  Mas  comecei  a  suspeitar que algo na história não batia bem através de  Fátima.  Não  que  ela  mo  tenha  dito.  Nunca!  Mas  quando  falava  com  ela  sobre  o  assunto  havia  como  que  uma   incomodidade  na  mulher  que  era  manifestamente  exagerada,  sobretudo  tratando­se  de  Maria  que  ela,  ao  fim  135   

e ao cabo, mal conhecera.  Quando  soube  a verdade jurei que Anita me teria de pedir desculpa por  ma  ter  escondido.  A  mim,  que  era  sua  mãe  e  mãe  de  Maria  e  portanto  a  primeira  a  ter  de  saber.  Ainda  ensaiei  uma  séria  discussão  com ela, por me  ter  roubado  a  consciência  da  trágica  morte  de  minha  filha  e  sua  irmã,  mas  percebi  subitamente  como  para  Anita  a  tranquilidade  é  superior  à  verdade,  razão  pela  qual  o  que  ela  fez  era,  do  ponto  de  vista  dela,  o  certo.  Percebi,  igualmente,  que  a  minha  raiva  não  era  tanto  por  me  terem  ocultado  os   motivos,  mas sobretudo pelos motivos em si, os quais não poderia alterar. E  entendi  que  eu  própria   teria  feito  o  mesmo,  caso  soubesse  primeiro  do  que  ela.  Era  demasiado,  e  os  próprios  filhos,  os  meus  netos,  deveriam  ter  sido  poupados a tão estúpida verdade.  Madalena  contou­me   porque  eu  lhe  jurei  que  jamais  diria  que  ela  o  tinha  feito  –  e  esse  foi  o  terceiro  e  decisivo  motivo  para  esconder de Anita  que  já  era  possuidora   de  toda  a  verdade.  Mas  há  um  pormenor  no  qual  de  vez  em  quando  penso  e  que  tolda  o  raciocínio:  por  que há­de ser verdade a  história  que  me  contou  Madalena?  Apenas  porque  é  demasiadamente  cruel  para  ter  sido  inventada  por  uma  rapariguinha  de  20  anos?  E  assim  fico  a  pensar  sobre  qual  era  a  verdadeira  verdade,  sobre  o  que  realmente  aconteceu  nessa  noite em Madrid em que um carro se despenhou da M­30 e  Anita me disse que Maria estava muito mal, num hospital.  Foi  à noite, a meio da noite, no camarote do barco. Navegávamos entre  Santorini  e  Katakolon  e   Madalena  chegara  da  discoteca  do  navio.   Talvez  viesse  tocada,  talvez  não, mas desatou a falar comigo acerca de uns rapazes  que  andavam  perigosamente  no  ​ deck  superior,  em  risco de cair ao mar. Eu,  armada  em  boa  avó,  dei­lhe  conselhos  piedosos,  sérios,  prudentes  e  referi­lhe   que  as  pessoas  nessas  idades  fazem  disparates  de  que  se  arrependem   toda  a  vida.  E  ela,  esperta  como  sempre,  perguntou­me  de  imediato  se uma pessoa  não faz disparates de que se arrepende toda a vida a  qualquer idade.  ­ Bem., sim, faz…   disse­lhe eu hesitante.  E  ela  concordou.  Na  nossa  família,  continuei,  já  havia  disparates  suficientes.  O  do tio­avô Raul,  que foi com a JONS; o do tio Luisito que foi  a  correr  atrás  de uma bola; o do namorado da tia Maria que  não soube guiar  num dia de chuva e iria provavelmente demasiado depressa.  E ela, rápida, respondeu: ­ Provavelmente, não! Ia mesmo!  Apurei  o  ouvido,  como  sabia  ela  tão  peremptoriamente  que  ele  ia  em  excesso  de  velocidade.  Como  sabia.  Ela  foi  evasiva,  mas  a  sua  vontade  de  mostrar  que  conhecia  o  segredo  prevaleceu.  E  foi  com  muita  surpresa  minha que ela, de repente, me disse:  ­  A  avó  quer  saber  a  verdade?  Jura  que  não  diz  a   ninguém   que  eu  lha  contei?  Se  tivesse  juízo  teria  dito  que  não.  É  daqueles casos em que não sei se  me  arrependo,   mas  isso  é  agora  indiferente.  O  que  ela  me  contou   foi  horrível, sem descrição, sem piedade.  135   

Maria  estava  em  casa  com  o  seu  homem,  o  ​ traumatólogo​ .  Começou  uma  discussão  feroz.  Eu   imaginei  a  cena  facilmente,  as  discussões  com  Maria  tornavam­se  ferozes  num  fósforo.  Ela  era  exasperante,  terrivelmente  exasperante   quando  se  lhe  metia  na  cabeça  uma  ideia,  uma  vontade,  um  capricho.  Isso  sabia­o  eu  muito   bem.  A  certo  momento,  a  discussão  degenerou  numa  cena  de pancada e o médico, com as suas mãos habituadas  a tratar os ossos do corpo humano, apertou o pescoço de Maria até a matar.  ­ Foi estrangulada! – disse Madalena.    E o desastre?     perguntei eu, incrédula.  O desastre aconteceu, disse­me a miúda. Depois dessa cena, ele meteu­a  no  carro.  Ia  levá­la  ao  hospital  onde  trabalhava  e  entregar­se  à  polícia,  sabia  que  ela  estava  morta,  mas  esperava  qualquer  coisa,  um  milagre,  que  o  compreendessem,  que  lhe  dessem  uma  atenuante por estar fora de si. No carro,  a  grande  velocidade,  numa  noite  de  chuva,  despistou­se  na  M­30,  galgou  a  protecção  do  viaduto  e  foi  parar  lá  abaixo,  numa  queda  de  oito  metros  de  altura.  ­ E o cabrão sobreviveu!   Nem  fiz  o  reparo  obrigatório  pelo  facto  de  Madalena  ter   dito  um  palavrão.  Estava  sem   fala.  Só  me  ocorria  perguntar  se  era  verdade.  Madalena  dizia  que  era a versão da autópsia. O corpo de Maria estava no carro, mas ficou  estabelecido  no  exame  médico­legal  que  tinha  sido  estrangulada  antes  do  acidente.  Ele  ficou  todo  partido,  internado  e,  simultaneamente,  preso  no  hospital,  no  mesmo hospital onde tinha sido médico. Só três ou quatro semanas  depois  conseguiu  falar  e  confirmou  todas  as  suspeitas  da  polícia.  Assim  que  estiver  em  condições,  o  que  ainda  vai  demorar  meses,  vai  a  julgamento.   Não  apanhará  menos  do  que uns 30 anos, segundo  o  advogado que Anita contratara,  por sinal um dos filhos de Elena…  Quem  mais  sabe  isso,  Madalena,  perguntei­lhe.  Toda  a  gente,  menos  a  avó.  Veio  nos  jornais;  no ​ El País​ , no ​ El Mundo​ , no ​ ABC​ , em todos! Até  a TVE  deu  notícia,  andámos   uns  dias   a  ver  se  a  avó  não  via  as  notícias  de  Espanha,  tivemos  medo que chegasse às  portuguesas. É do tipo de notícias que os jornais  adoram – uma história com sangue e drama conjugal.   Eu  enterrei  a  cara  na  almofada  e  mordi­a,  como  sempre  fazia  quando  não  queria  chorar.  Fiquei  com  raiva  por  me  terem  escondido  e  com  raiva  por  ter  ainda  esta  provação.  Lembrei­me  de  perguntar   a  Deus  o  que  queria  ele  de  mim,  lembrei­me  de  Job  e   no   Domingo  seguinte,  depois  de atracarmos sábado  em  Veneza,   pusemo­nos  a  caminho  de  Pádua  e  na  basílica  de  Santo  António  desafiei­O  completamente!  Que  queres?  Que  queres?  Raul,  Eduardo,  Enrique,  Luisito,  Juan  Luís,  Juan  Miguel,  Yannick,  Elena,  Pilar   e  Maria.  Foram  10  pessoas  que  podiam  estar  tão  vivas   quanto  eu,  dois  filhos  e  uma  irmã  mais  nova que me levaste e que queres que eu faça?  Eu  sei  que  foi  irracional.  Mais  tarde  achei  que  me  estava  a  armar  em  importante,  como  se  Deus  se  preocupasse  com 10 mortes, quando tem milhões  por  ano,  por  mês.  Ouço  falar  de  desastres  em  que  morrem  cinco  e  seis  membros  de  uma  família   ao  mesmo  tempo,  como  se  sentirão  essas  mães?  135   

Como  se  sentirão  essas  mulheres?  Bem  pior  do  que  eu,  que  estou  aqui  num  casarão,  numa  posição superior, com uma empregada chata, mas que faz tudo o  que  lhe  mando…  Aqui  estou  a  ver   o   pôr­do­sol,  à minha direita, o mar tingido  de  sangue,  como  eu  tenho  a  minha  alma  tingida  de  morte.  Espero  ser  a  próxima,  porque  sinto  que  sou  eu  a causa de tudo… Desde que desejei a morte  de  meu  irmão  Raul por  ele ter batido no meu mergulhador, aquele Carlos rapaz  de El Grove, que à minha volta se fez uma tragédia.  Às  vezes  faço  contas  de  cabeça,  disseram­me  que  era  bom  para  o  Alzheimer.  E  penso  que,  em  88  anos,  10  mortes  de  entes queridos, me dá uma  morte  de  8,8  em  8,8  anos.  E  depois  pergunto­me:  que  merda  é  esta?  Porque  razão  faço  esta  média?  E  não  me  lembro  de  nenhuma  razão  para  a  fazer.  Em  poucos  meses,  quando  tinha  15  anos,  morreram­me  três  irmãos  e  meu pai. Em  cinco  meses  exactos,  meu marido, minhas duas melhores amigas, minha irmã e  minha  filha.  Não  há  média  nenhuma!  Houve  dois  momentos  negros  na  minha  vida,  um  vivido  há  73  anos, outro há sete. De então para cá, nasceram­me duas  rapariguinhas  pequeninas,  duas  bisnetas,  a  família  recompõe­se  e  eu  posso  ir   em paz.   É  nestes  pensamentos  positivos  que  tenho  de  me  concentrar.  Não  fora  aquele  pôr­do­sol  que   deixa  o  mar  da  cor  do  sangue  e  aqui  estaria  feliz  e  contente a pensar na vida de outra forma. Mas o mar não me deixa.        XXII – Ocaso    Ocorreu­me  que  eu  e  o  mar  somos  a  mesma  substância,  embora  em  estações  desencontradas.  O  mar  vive  agora  o  seu  verão  esplendoroso,  de  azul  forte  com  reflexos  prateados.  Eu  vivo  uma  breve  tarde  daquele  Outono  de  Dezembro  que  todos  sabem  ser  já  Inverno.  As  tardes  cinzentas  escuras  que,  num ápice, se transformam em noites tenebrosas.  Como  eu,  o  mar  é  impassível  às  tragédias,  os  seus  movimentos  raramente  se  alteram  ou  ajustam,  repetindo­se  uma  infinidade   de  vezes.  É  majestoso,  como  dizem  os poetas e como sei que pode ser o meu aspecto altivo  nesta  casa  única  rodeada de prédios banais, com os seus muros sobre a praia de  onde  saem  os  últimos  resistentes,  os  que  querem  sol  até  ele  desaparecer  atrás  das  arribas  da  Senhora  da  Rocha,  da  Virgem  do  Rochedo.  O  meu  destino  deveria  ser  diluir­me  no  mar,  voltar  ao  seu  ventre,  onde  os  movimentos  são  vagarosos,  precisos  e   sem  esforço,  como  os  movimentos  de  um  feto  no  ventre  da mãe.   Mas  o  meu  destino  está  longe  de  mim.  A  invalidez  que  é  a velhice não  permite  sequer  que  cumpramos  o  que  o  destino  nos  deu,  afasta­o  de  nós,  impede­nos  que  lhe  cheguemos,  que  lhe  digamos  docemente:  aqui  estou  para  me  cumprir,  para  me entregar. Foi a guerra que me levou uns, a  doença que me  levou  outros,  um  acidente  estúpido   e  um  crime hediondo levou­me dois filhos,  mas  o  mar  –  a  única  forma  gloriosa  de  abandonar  o  mundo  –  sempre  nos  poupou  e  sempre  me  fascinou.  Talvez  seja  eu  que lhe esteja destinada, nascida  135   

em  terra  de  mar,  vivendo  em  terra  de  mar,  morrendo  em  terra  de  mar…  Do  mesmo mar.  Eu  sou  a  vida  que  resta  de  um   século  de  progresso  e morte. Sinto­me a  testemunha  final,  derradeira,  das  ideologias  em  choque  numa  guerra  sem  quartel  que  colocou  pais  contra  filhos  e  irmãos  contra  irmãos.  Nesse  tempo,  morria­se  por  uma  ideia,  morria­se  por  uma  causa,  morria­se  por  um  amanhã.  Hoje  ninguém  o  faz.  Poderei   ainda  orgulhar­me  de  Raul,  de  Enrique,  de  Eduardo?  Terão  eles  lutado  porquê?  Quem  queria  que  o  mundo  fosse   assim,  tão  desinteressante  como  é?  Que  sonhos  tinha  o  senhor  Pardiac  quando  em  Biarritz  dava  guarida  aos  resistentes?  Em que sociedade pensava Churchill  nos  seus  discursos vibrantes? Que  tinha  em mente D. Nicolás, o irmão de Francisco  Franco, quando me punha a cantar o ​ Cara al Sol​ ?   O  mundo  que  a  minha  geração  quis  construir  desmoronou­se,  caiu  aos  poucos  até  se  tornar   num  amontoado  de  ideias  superficiais,  contraditórias  e  intolerantes.  Hoje  vivemos  mais  –  quem  tinha  88  anos  quando  eu  era  nova?  Duas  ou  três  múmias  que  seriam  notícia  num  jornal  local!  Mas  vivemos  mais  com  esperança  em  nada!  Nada!  Não  há  um  gesto  grandioso,  um  ​ beau  geste11  como  o  daqueles  homens  da  Legião  Estrangeira.  Vivemos  num  mar  à  deriva,  sem  farol,  sem  objectivo,  sem  carta  de  navegação.  Hoje  é  tão   perigoso  ter  ideias  livres  como  o  era  na  minha  juventude.  Quem  ousar  contra  a  cartilha  do  momento  já  não  leva  um  tiro  pelas  costas,  nem  é  preso  –  pelo  menos  na  maioria  das  latitudes  –  mas  passa  mal.  Os  centros  de  pensamento,  que  foram  em  determinado   momento  as  Universidades,  tornaram­se  em  centros  de  vigilância  sobre  a  linguagem  utilizada.  Yannick  bem  me  dizia  que  o  controlo  da linguagem tinha sido o nosso fim.   E  os  velhos  não  fazem  parte  deste  mundo.  Vivem  de  mais.  Alguns,  como  eu,  têm  a  sorte  de  ser  acarinhados,  de  ter  condições  excelentes  para  poderem  continuar  a   vegetar.  Mas  ninguém quer conhecer a nossa experiência.  Porém, sempre que isso acontece, têm uma surpresa.  Foi  o  caso  de  Madalena  depois  de  me  contar  o modo como minha filha  Maria  tinha  sido  assassinada.  Passado  o  choque  dessa  noite  –  e  talvez  de mais  algumas  noites  –  disse­lhe:  sabes,  Madalena, tua tia Maria era impossível de se  aturar.  Acredito  que  esse  pobre  homem  que  vai  pagar  na  prisão  por  longos  e  merecidos  anos,  tivesse  perdido   completamente  o  controlo  de  si…  Seria  necessário gostar muito mais de Maria do que ele – e qualquer homem normal ­  provavelmente gostaria, para não lhe bater.  Madalena ficou como que petrificada.  ­ Ó avó, tu dizes isso da tua própria filha.  Pois  é  o  que  a  velhice  nos  traz.  Quando  nascem  os  nossos  filhos,  expliquei­lhe  eu,   eles  são  totalmente  dependentes  de  nós.  E  durante  alguns  anos  são  o  que  queremos  que  eles  sejam.  Na  adolescência  vão  ganhando  uma  personalidade  e  é  nesse  momento  que  começamos  perceber  neles  defeitos  que  11   Referência ao filme (de William Wellman) e  romance (Percival Wren, 1924) com o  mesmo  título, descrevendo a fraternidade dos homens da legião Estrangeira.   

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preferiríamos  que  não  tivessem.  Tudo  isso  se  acentua  quando  são  adultos  e  as  relações  alteram­se  quando  os  nossos  próprios  filhos  são  maduros  suficientes  para  compreender,  também  eles,  os  defeitos  dos  pais. Comigo e com Maria foi   assim.  Eu  compreendi­lhe  os  defeitos  como  pessoa  e  ela  entendeu  os  meus;  soube  que  eu  não  era  uma  mãe  carinhosa  como  outras,  culpou­me,  achou  que  talvez  eu  pudesse  ter  feito  mais.  Por  isso,  Madalena,  o  que  eu  digo  não  significa  que  gostasse  menos dela do que tua mãe ou do teu tio Luisito. Apenas  que reconhecia nela mais defeitos… E Madalena contra­atacou:  ­ Mas tu gostas mais da minha mãe…  ­  É  verdade  –  disse­lhe  eu  –  mas  não  posso  dizer,  porque  ninguém  o  compreenderia.  Todos  diriam:  olha  aquela  velha,  que  assume  gostar   mais  de  uma filha do que doutra. Não,  Madalena, um dos problemas da nossa sociedade  –  se  calhar  de   todas,  mas  eu  só  vivi  nesta  –  é  que  a  verdade  é  muito  perigosa.  Sobretudo  quando  a  verdade  é  indelicada.  Por  isso não poderia dizer a tua mãe  que  Luisito  é  para  mim  o  filho  perfeito,  porque  nunca  deixou  de  ser  o  que  eu   supus  que  ele  era.  Nunca  chegou àquela fase de amadurecimento em que lhe vi  os  defeitos.  E  ele  hoje  vive  dentro  de  mim,  fala  comigo  como  eu  acho que ele  falaria  e  como   eu  acho  que  ele  me compreenderia caso tivesse crescido e fosse  hoje  um  homem  à  volta  dos  60  anos…  Ainda  que o imagine de boné e calções  e  com  o corpo que tinha da última vez que o vi, há já tantos anos, mais de meio  século…  Madalena  abraçou­me  e  nesse  momento  quase  repeti  a  sensação  de  Biarritz. Mas ela quebrou o instante perguntando:   ­ E das netas, avó. Quem preferes?  Eu  disse­lhe  a  verdade,  a  verdade  daquele  momento  e  a   verdade  de  então  para  cá:  és  tu!  E  ela  voltou  a  abraçar­me  e  eu  fiz­lhe  prometer  que  ela  nunca  o  diria  a  ninguém.  Mas dessa hora em diante, há já mais de sete anos, eu  soube  que tinha alguém  na terra que me continuaria; alguém que poderia, como  eu,  ter  um  amigo,  ou  amiga,   para  continuar  as  conversas  que  deixara  interrompidas  com  a   minha   ​ Madame​ .  E essa sensação de continuidade, do meu  prolongamento  em  Madalena  criou  em mim, desde então, a ideia da inutilidade  do prolongamento da minha vida. Uma inutilidade total e provada.  Meu  pai  viveu  para  cumprir  um  dever.  Minha  mãe  para  mim  e  Pilar.  Raul  para  endireitar  o  mundo.  Eduardo  e  Enrique  para  vingar  nosso  pai  e  o  nosso  irmão.  Juan  Luís  para  esconder  o  seu  segredo  íntimo.  Pilar  para  se  divertir  e  me  atormentar.  Maria  para  levar  a  sua  própria  infelicidade ao limite,  na  busca  de  uma  felicidade  impossível.  Juan  Miguel  para  me  agradar  e  para  relaxar  serenamente  nos  braços  de  qualquer  mulher.  Mas  Luisito  para  que  viveu?  Eis  a  pergunta  que  me escapa. Eis o mistério que me atormenta. Porque  se  Anita  vive  para  servir  os  outros  e  é  da  cepa  de  uma  santa,  embora  com  os  seus  defeitos,  e  se  eu  vivi,  como  penso,   para  testemunhar  este  quase século de   loucura  e de vertigem, Luisito nos seus curtíssimos nove anos  de vida, para que  viveu? Para que nasceu?   Talvez  eu  tenha  perseguido  este  mistério  desde  esse  dia.  Talvez  tenha  sido  este  mistério  que  me  manteve  de  pé,  quando  tanta  coisa  me  aconteceu.  Talvez  eu  tenha  vivido  a  vida  por  ele,  porque  todos  os  dias  pensava  nele,  135   

porque  sempre  que  via  algo  de  belo,  de  bom,  de  sublime  –  a  catedral   de  Chartres,  os  corredores  do  Louvre,  os  telhados  de  Praga,  as  estátuas  de  Florença  ou  a  silhueta  de  Nova  Iorque  quando  se  apanha  o  barco  em  Ellis   Island  –  eu  dizia­lhe:  vês,  Luisito?  Aqui  estamos.  Aqui  viemos,  vê  como  é  lindo.  E  lá  de  onde  ele  está  há­de  ter  visto  comigo.  Talvez  isso explique o que  me  fez  viver,  a  mim  que  nunca tive um emprego fixo, salvo o pequeno período  do  Consulado,  que  nunca  tive  fome  ou  frio,  salvo  nos  dias  da  guerra  em  Ayllón,  que  nunca  me  faltou  comida  na  mesa  nem  motivos  de  alegria  na vida.  Eu,  que  comparada com tanta gente que vejo passar pelas estradas, vergadas ao  peso  de  responsabilidades  e  de  tragédias  pessoais,  não  tenho  assim  tanto  para  me  queixar,  e  que,  não  obstante,  passei  por  tantas  privações,  desilusões  e  desenganos,  sinto  que  não  vivi  senão  para  poder  deixar  em  alguém,  em  Madalena  a  quem  conto  a  minha  vida,  os frutos que fui colhendo das sementes  desta caminhada.  Vivi pelo Luisito e para a Madalena. Eis o que me consola. Tudo o resto  que  se  passou  foram  acidentes  que  ocorreram  neste  longuíssimo  desígnio  que  foi  toda  a  minha  vida.  As  mortes  teriam  de  acontecer.  Se  nos  pusermos de um  ponto  de  vista  cósmico,  todos  morreram  apenas  um pouco antes do que eu vou  morrer.  Mesmo  eu,  parto   apenas  instantes  antes  de  minha  filha,  netas  e  bisnetas…  O  que  interessa  à  história,  o  que  interessa  a  Deus,  a  esse  Algo  que  eu  tentei  explicar  o  que  era,  é  a  corrente,  a   sequência.  Para  quem  –  e não para  quê  ­  estás  tu  a  viver?  Eis   a  pergunta  que cada ser humano deveria colocar a si  próprio.  Eu,  desde  o  exacto  momento  em  que  o  compreendi,  deixei  de  me  importar  com  a  morte.  Agora  já  não  choro,  já  não  me  entristeço,   nem  tenho  medo  nem  ansiedade.  Sei  bem  o que fica de mim – aquilo que eu sou – e o que  de  mim  parte  –  este  corpo  velho  e  sem  préstimo,  envolto  em rugas e com uma  fralda  para  os  pequenos  acidentes.  É  ridículo  querer  mantê­lo,  absolutamente  despropositado.  Um  corpo  assim  não  serve  a  um  espírito  como  o  meu,  que  se  tem  de  prolongar  no  corpo  de  uma  jovem,  capaz  de  ter  os lampejos de paixão,  de  alegria, de euforia, de satisfação. E de carregar, também ela, e também o seu  corpo, a infelicidade muito própria que toca a cada um de nós.  A  nossa  história  é  uma  sucessão  de  episódios  tristes.   Quem  disser  o  contrário  é  louco.  Eu  sei­o  bem!  Eu  sei  bem  o  que  pensam  esses  sempre­em­festa  que  no  fundo  têm  medo  de  envelhecer,  têm  medo   do   nada.  São  gente  que  nada  construiu,   que não tem futuro na vida de ninguém, que não  têm  uma  só  pessoa  a  quem  servir   de  modelo  ou  de  guia.  A  catedral  de  Notre  Dame, em Paris, demorou mais de 100 anos a ser construída. E uma vida – toda  uma  vida  –  demorará   muito  mais. Eu apenas deixei um episódio, que se seguiu  ao  episódio  de  meu  pai   e  de  meus  irmãos,  de  quem  sou  a  única  familiar  viva.  Deixo­a  acrescentada  de  tristeza,  mas  também  de  alegrias  e  de  ideias  em  discussão,  aos  que  me  seguem,  que a ela hão­de juntar novos episódios até que  um  dia  possamos ter  quem sabe? – uma vida completa, que reúna em si toda a  alegria  e  toda  a  tristeza  do  mundo;  todos  os  sentimentos,  todas  as  paixões  e  todas as virtudes.  Esta  foi  a  lição   da  minha  vida.  Amanhã  de  manhã,  Fátima  há­de  acordar­me  de  mansinho,  como  sempre  faz.  Depois,  levar­me­á  até  à  mesa  e  medir­me­á  a  glicemia.  Põe  o  pequeno­almoço  e  esperará  que  eu  o coma, para  depois  ir  lavar­me  com  uma  esponja.  Enquanto  ponho  o  meu  fato  de  banho  135   

velho  e  uma  saída  de  praia,  tirará  do  barracão  do  jardim  o  cadeirão  de  verga  onde  me  sento  a  ver  o mar. E, suavemente, pelo braço, enquanto tagarela sobre  o  que  encontrou  e  não  encontrou  na  praça,  levar­me­á  até  ao  meu  local  predilecto.  Mas haverá um momento em que serei eu a quebrar a rotina. Dir­lhe­ei:  ­  Fátima,  há  tanto  que  me   pedes…  hoje  é  que  me  apetecia  ir molhar os  pés no mar.  Ela sorrirá. Há muito que quer ir comigo molhar os pés.   Iremos as duas. E, se não me faltar coragem, eu não volto.   

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