Toda uma Vida
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Toda uma vida 135
À geração dos meus pais e dos meus sogros, que se esforçaram e sofreram para nos dar um mundo melhor, mais decente, ignorando que nós o iríamos, em boa parte, estragar 135
Toda una vida, Me estaría contigo, No me importa en que forma, Ni dónde ni como, pero junto a ti. Toda una vida, Te estaría mimando, Te estaría cuidando, Como cuido mi vida, que la vivo por ti.
Letra do bolero Toda Una Vida , de Oswaldo Farrés (19031985)
I Sul e Norte Agora perco a vista na linha do horizonte, lá longe, num risco azul carregado que separa o mar do céu. Olho insistentemente para o Sul, para o oceano, como se de lá viesse algum bem, ou qualquer boa surpresa. Há muito mais de 80 anos, quando vi o mar pela primeira vez, ele estava a Norte e nestas quase nove décadas de vida serpenteei até me confundir, até ver o mesmo oceano em dois pontos cardiais opostos, perdendo rastos da minha vida aqui e ali, levada por não sei que destino ou fado, nem porque vento ou estrada. Nem sempre me lembro do passado, mas ultimamente ele surgeme dentro cabeça como se estivesse estado todos estes anos emboscado à espera da fragilidade do meu corpo de velha, tentando cobrar lembranças terríveis de tempos tão longínquos 135
para mim quanto próximos na história. Dantes, só muito raramente me vinham à cabeça essas recordações e então fazia um enorme esforço para não chorar convulsivamente, mordendo os lábios, as mãos, os braços, os livros que estava a ler ou, de noite, as almofadas da cama. Agora já nem vontade de chorar tenho, nem tãopouco me chego a entristecer. Compreendo bem que a vida faz parte de um jogo cujo sentido ou importância raramente captamos, se é que ele existe; entendo que não foi a mim, especialmente, que me aconteceram estas coisas terríveis – eu sou apenas uma parte delas, a sua imagem viva, a sua recordação nos outros. Tudo nos aconteceu a todos; todos sofremos pelas mesmas causas que eu sofri e aqueles que viverem continuarão a penar devido aos males de que eu fui parte, e agora sou testemunha, muito para lá destes tempos em que ocorreram. Ao fim e ao cabo, talvez Deus ou Algo me tenha guardado para os viver, para que agora os possa interpretar, como era o desígnio dos profetas da Bíblia ou dos velhos sábios que conheciam por pequenos sinais as grandes desgraças que vinham a caminho. Agora já não choro. A morte tornouse para mim uma simples e pura trivialidade. A própria desgraça não passa, a meu ver, de uma fatalidade da história de cada um – que em conjunto faz a nossa história comum e que afecta cada indivíduo de forma diferente, pessoal, quase íntima. Não há ninguém feliz, salvo os pobres em espírito, os loucos e os inconsistentes. Cada um de nós, pessoas banais e normais, carrega uma infelicidade muito própria, ainda que tenha, aqui e ali, lampejos de paixão, de alegria, de euforia, de satisfação… Há 88 anos eu estava em El Ferrol, no extremo Norte da Península Ibérica. Nasci ali, junto ao mar e háde ter sido ali que o vi pela primeira vez. Não longe, havia uma praia, disso me lembro bem, onde uma avó tinha um casarão diante do mar. A casa, enorme, clara, com vidros grandes nas janelas por onde entravam os reflexos do sol no oceano, é talvez a minha recordação mais antiga. Apenas lá fui algumas vezes, e apesar de tudo estar tão distante, tão confuso, lembrome do corredor e da porta e da cama onde dormia minha avó e onde ela me aconchegava… Vivi em Pontevedra. Andei lá em menina, e se hoje me mostrassem a rua onde brinquei estou certa de que a reconheceria. Ou talvez não. Eu olho à minha volta e já quase não conheço nada… Em Pontevedra fui menina pequena. O meu pai era militar e nós, os seus filhos – cinco, uma irmã mais nova do que eu e três rapazes mais velhos – adorávamos vêlo com as dragonas e a espada à cintura. Os vizinhos chamavamlhe então Señor Capitán e eu tinha orgulho nele, muito mais do que em minha mãe, cujas 135
determinação e coragem só conheci, dramaticamente, 16 anos depois, no final da guerra civil. Também vivemos em Madrid, mas durante os quase três anos que durou a guerra entre republicanos e franquistas, estive separada de minha mãe, em Ayllón, na casa de uma amiga que me levara de férias com ela. Depois, vivi em Biarritz, em Lisboa e no Algarve, e em Lisboa e outra vez no Algarve; e fugi uma vez para Madrid, mas voltei a Lisboa, e fui outra vez para o Algarve. Porém, nunca voltei a El Ferrol, que me viu nascer, nem a Pontevedra onde medrei nas ruas sobranceiras ao mar. E por estranho que isso me pareça, é desses lugares que hoje tenho a memória mais nítida: da casa na praia e da ruazinha de Pontevedra e o seu pequeno largo para onde abria a varanda de casa. Hoje, quando me perguntam o que sou, não sei. Dizem que sou galega e ficam muito contentes, porque no fundo me sentem mais portuguesa do que espanhola, como se os galegos fossem mais próximos dos portugueses que vivem paredes meias com eles do que os leoneses, os estremenhos ou os andaluzes. Contraditoriamente, isso entristeceme. Eu nasci espanhola e ainda que morra sem saber a que terra pertenço, nunca me considerei galega. Era espanhola, porque galegos eram os pobrecitos do campo que ganhavam a vida a esfalfarse na terra, a nela meter as mãos grossas, para tirarem mais calhaus do que sustento. Na altura da minha meninice, Espanha era um orgulho, embora estivesse traumatizada pela perda de Cuba e das Filipinas, segundo nos dizia meu pai. Nós éramos e queríamos ser espanhóis, e penso que o mesmo se passava com os bascos e com os catalães, esses patriotas que nos querem agora abandonar – que se vão! Que se vão e já! Não fazem a mínima falta! A política não me interessa, falo nisto apenas porque me fascina ver como os tempos que vivemos desfazem os sonhos que tivemos. Espanha continua a ser um dos grandes países da Europa e do mundo; melhorou extraordinariamente em relação aquilo que era quando nasci. Pois é agora que esses senhores querem sair! Quando a pobreza se espalhava pela península como um manto escuro, quando descalças, rotas e subalimentadas as crianças desmaiavam nas ruas de Pontevedra, ou nas esquinas de Madrid e por elas passavam senhores de chapéu e sobrecasaca que nem lhes dignavam um olhar, antes de entrar no Hotel Palace para discutirem alta política ou fazerem farras com ciganas andaluzes –, nesses tempos todos queriam ser espanhóis! E os bascos, meu Deus! Que radicais! Até na religião queriam todos ser como Inácio de Loyola, que aliás agora se chamariam Iñaki de Azpeitia, porque tudo naquela maldita terra háde ser em basco, como se o castelhano – a língua que foi sempre de todos nós tivesse 135
peçonha. Valhame Deus, vivo bem sem essa gente a incomodar e menos ainda com os radicais que deitam bombas… Não, não sou galega, mas infelizmente não sou bem espanhola. A minha mãe era de Vitória, que agora, em basco se chama Gasteiz, nome que infelizmente me faz lembrar um campo de concentração alemão – ninguém se admiraria que, havendo Auschwitz, Birkenau e Treblinka, por exemplo, houvesse também um campo chamado Gasteiz… Já meu pai era de El Ferrol, que mais tarde se chamou El Ferrol del Caudillo, porque lá nasceu também Francisco Franco, El Paco (nome pelo qual meu pai se lhe referia), que eu cheguei a idolatrar, mas que me desfez família e vida. Madrecita chamavase Consuelo e era a mulher mais apagada que conheci, até 1939. Depois, como se tivesse guardado para esse momento toda a força que o seu pequeno corpo conseguira armazenar nos anos de inacção, tornouse de uma determinação que me salvou a mim e a Pilar, minha irmã mais nova. Não sou galega, nem basca, nem espanhola, nem portuguesa… Sou um pouco de tudo e em nenhuma dessas terras, quando lá passo, me reconhecem como sua filha. Em Espanha tenho pronúncia portuguesa; na Galiza não sei falar galego; menos ainda sei falar basco ou catalão (apesar de ser o idioma da família de meu marido), e em Portugal sou espanhola, tanto mais que nunca consegui utilizar com exactidão a complexa fonética do português. Fernando Pessoa disse que a nossa pátria é a nossa língua. Eu lamento ter de assumir que tenho uma pátria só para mim, a qual não partilho com ninguém. Ninguém fala como eu, com palavras misturadas do português e do espanhol, além de alguns plebeísmos galegos. Só não sou estrangeira no meu próprio idioma, uma fala que não é nenhuma em partícular, mas a mistura de várias; só me reconheço numa salgalhada de línguas, de hábitos, de costumes, para os quais fui empurrada por uma mão que não conheço nem senti, por um desígnio sem lógica, ao qual, no entanto, me habituei e me resignei. Dizemnos que a nossa língua é aquela com que fazemos contas de cabeça, ou em que rezamos. Pois eu rezo em latim e as contas de cabeça são feitas como calha, na minha língua própria. Duas más trés son cinco . Como dizia Pilar, minha irmã, o pior é chegarmos a esta fase, quando já dizemos fecha la puerta . Para aqueles que dizem que a linguagem é uma prisão, tenho eu mais grades do que a maioria das pessoas. Sempre rezei em latim. As missas em latim eram bem mais interessantes do que as que se celebram actualmente nos idiomas locais e abençoado seja o Papa Bento XVI que as permite de novo, embora eu nunca mais as ouvisse sem ser em português ou espanhol. Se os mistérios de Deus são imperscrutáveis, como se 135
diz, por que razão a língua háde ser vulgar. Em latim ninguém entendia o que se estava a dizer. Ao fim e ao cabo era como os termos mágicos, o abracadabra ou a algaraviada das meigas galegas quando fazem a queimada… Para mim o painosso é pater nostro que es in cielo sanctificater nomem tuum adeveniate renhum tuum fiate voluntas tua sicut in cielo y in terra . E o mesmo se for a Avemaria, de que gostava particularmente da parte Dominus tecum , pela sonoridade possessiva da palavra tecum , bem como o Credo e tudo isso. A latinada fazia falta e conferia aos padres um particular respeito. Mesmo quando desviavam os seus passos do caminho da rectidão com uma apalpadela furtiva no rabo de uma paroquiana – e falo do mínimo que sei , logo depois diziam algo em latim que perdoava quase tudo, como se as palavras viessem de alguém transcendentemente antigo que falasse pela boca do pároco. Curiosamente, acabaram por ser eles os primeiros a abdicar do poder que lhes era dado através de palavras mágicas; nem médicos nem advogados o fizeram. Ainda noutro dia, assisti na televisão a um debate entre advogados e não percebi nada do que eles disseram. Fiquei, aliás, com a sensação de que o mesmo se passava com os próprios, dizendo palavras estranhas, apenas para as dizer, sem sentido… As leis em Portugal, aliás, mudam de uma forma inacreditavelmente rápida, curiosamente na relação inversa com a demora dos tribunais e isso contribuirá para aquela espécie de jogo de enganos que é o salsifré judicial. Também não tenho por objectivo dizer mal do país onde vivo há quase 70 anos e no qual vou certamente morrer. É mesmo das coisas que me desgostam ouvir dizer mal de Portugal… aos portugueses. Chegase a qualquer lado, a qualquer país, e, se quiserem ouvir alguém a dizer que neste país tudo corre mal, é poremse ao pé de portugueses. Pelo contrário, se há locais deste país de que não gosto é por más recordações que lá ganhei. De resto, sempre achei este país maravilhoso, cheio de Sol, com um mar majestoso que agora se estende aos meus pés e para o qual olho continuamente enquanto duram estas lembranças. Eu, criança, com um vestido de chita à espera do meu pai, nas callecitas de Pontevedra; eu ao colo de uma criada a olhar, admirada, o mar de El Ferrol; eu, menina sem notícias da família, a chorar baixinho num canto de uma cozinha escura, com fome, com frio, com medo do barulho dos aviões e das bombas rojas e nacionalistas a explodir ao fundo das montanhas, onde pressentia uma mortandade que, de facto, existiu e – vim a sabêlo mais tarde a dirigente comunista Dolores Ibarruri, La Passionara , gritava, louca, No Passaran! Eu triste, amparada por minha mãe, na praia de Biarritz, ao pé de uma Virgem em cima de um rochedo; eu tuberculosa, à espera de morrer, encomendando em mau latim a minha alma ao Criador, numa terra ao pé de Sintra; 135
eu, ainda fraca, no Bairro Alto em Lisboa, na casa da minha tia Concepción; eu a casarme com um espanhol nascido em Portugal, de origem catalã, na pequena capela da Beneficência Española ; eu, em Madrid a olhar as manifestações contra as clínicas que faziam abortos, e a ver as minhas filhas a favor dessa lei e a endeusaram Felipe González e os rojos ; eu no Algarve, a olhar o mar que está na direcção contrária àquela em que o via quando nasci… Eu que nunca me conformei com o facto de este ser o mesmo mar, embora a terra não seja a mesma terra. É aqui que sinto que tocarão um requiem em minha homenagem, no caso de ainda alguém por aqui saber o que é um requiem… Não, não estou fraca nem sentimental. E embora me esqueça amiúde do que comi ao almoço, sei perfeitamente os passos que me conduziram aqui. Os passos no caminho das pedras e os passos nos salões de dança – eu que dancei tão maravilhosamente, transportada no ar pelo meus pares e pelas músicas de Lucho Gatica que, vendo de hoje, era um piroso insuportável… mas eu perdiame no Moliendo Café como hoje me perco no mar, só de olhar para ele. Agora perco a vista na linha do horizonte, no mar, no Sul, mas ainda não perdi a linha que fui desenrolando até chegar aqui; posso enrolála facilmente, até me encontrar muito longe, mais longe do que a linha do horizonte, no outro lado da terra, no mar, no Norte, ao colo de não sei quem, mas de alguém que me quis bem e me transportou pela praia até que um daqueles homens com uma enorme máquina fotográfica de madeira, assente num elegante tripé, metendo a cabeça dentro de um pano preto, me tirou este instantâneo hoje amarelecido e quase rasgado que encontrei dentro de um livro velho… Sou eu, e tal como então, também hoje não faço a mínima ideia do que me vai acontecer. II – Juan Miguel Sentome no cadeirão habitual, frente ao mar que me parece 135
imóvel, raso como um campo azul. Vim agora do pequeno cemitério onde repousa o meu falecido marido. Está num jazigo alto e estreito com lugar para oito caixões. O único lá encerrado é o dele, mais ninguém da nossa família repousa ali. Juan Miguel sempre teve a mania das grandezas, de certo modo achavase um patriarca, e esperava sempre reunir todos, mesmo que depois de mortos. Mas ali está ele, soberbo mas só, como talvez tenha sido toda a sua vida; num lugar espaçoso e luminoso, porque a porta é de vidro, como se todos nós devêssemos invejar a elegância do seu repouso eterno. De certa forma, ele era assim – distante, elegante, distinto e, sobretudo, um pouco solitário. Conhecio num Verão, num baile da Beneficência Espanhola. Era um janota que não supunha, sequer, poder passarse um centésimo do que eu já então passara na vida. Vinha de famílias com dinheiro ganho na cortiça, catalães que se instalaram ali para Silves, onde hoje é a Fábrica do Inglês. Passava temporadas em Lisboa, para onde se deslocara num automóvel enorme e com um fato espampanante que lhe ficava largo no seu corpo magro. Era um fato branco, impecavelmente branco, que rematava com um chapéu também ele branco, com uma fita azul. A camisa era de um azulmarinho impressionante e usava um lenço de fantasia no lugar da gravata. Estávamos no princípio dos anos 50 e o pior do mundo, a guerra, a infelicidade, o medo, o ódio, parecia já ter passado. Eu saíra de uma tuberculose que quase me matara e tinha a convicção de que nada mais me deitaria abaixo, que a quantidade de mal que a vida me destinara estava esgotada, o plano cumprido, já exaurido e, portanto, afastado para todo o sempre. Os tempos eram de diversão pura, de excessos, de confiança interminável. Quem sobrevivera, viveria para sempre. Ao vêlo no seu fato branco, dei uma cotovelada em Pilar. Mira, que hombre, hein? A Pilar deu uma passa – ao contrário de mim, sempre fumou muito – e olhouo de alto a baixo. Depois, miroume muito devagar, como se medisse a possibilidade de o meu vestido barato nunca poder encostarse àquele fato branco esvoaçante, e disseme: Chica , ou te casas, ou te quedas para tia. E para te casares que seja com um tio assim, todo cheiroso, com bom aspecto, com vida desafogada, com quem vivas bem. Avança. Fiquei quieta. Nem um músculo mexi com medo de ser mal interpretada. Não sabia o que fazer e só Pilar tinha o dom de me ensinar. Pilar fumava, flirtava, cortejava, bebia, fazia olhinhos, era capaz de pôr qualquer homem com a cabeça a andar à roda. Eu tinha medo, valhame Deus. Tinha uma vergonha danada, só de saber que uma espanhola era, nesse tempo em Lisboa, quase 135
sinónimo de puta. Que o pensem! Quase gritava Pilar, de pronto saberão que não o somos. Mas eu não conseguia, recatavame. Vais para freira, diziame ela, enquanto se pendurava nos braços do cônsul espanhol para dançar aquelas músicas fatais da hispanidad – os tangos, os chachacha, os boleros… E ela dançava, flutuava pela sala, e quando voltou trazia o cônsul e Juan Miguel, o qual me apresentou de uma forma que ainda hoje mal consigo reproduzir… Eis Juan Miguel, que me diz o Cônsul ser quase virgem e mártir... Enquanto o Cônsul se desmanchava a rir, Juan Miguel ficou quase tão aflito como eu. Pegoume na mão, fez menção de a beijar e, quando a orquestra tocou um tango de Gardel, o Tomo y Obligo , e um homem que parecia caribenho se acercou do microfone, ele sussurroume se eu dançava. E eu fui com ele e, naquelas coplas dramáticas, que em boa parte da vida me perseguiram E yo ao verla envilecida En otros brazos entregada Fue para mí una puñalada Y de celos me cegué Y les juro, todavía, No consigo convencerme Como pudo contenerme ¡Y ahí, no más, no la maté! , cruzámos o olhar, ele apertoume um pouco e eu não sei se me senti envilecida se arrebatada, mas deixeime ir, enleada, embalada por ele. Dançámos ainda mais duas ou três músicas e, sem saber como, entrei no seu carro com o cônsul e Pilar e parámos na Benard para beber um chá. Falámos de tudo na vida e, ao fim da tarde eu e Juan Miguel tínhamos feito as juras secretas dos noivos suspiradas nos ouvidos um do outro. Não, a vida não era como agora. Bem o vejo nas minhas netas, embora elas, talvez exceptuando Madalena, disfarcem à frente da avozinha. Eu e Juan Miguel não passáramos de uns suaves roçagares pela linha da cintura e pelos seios, de toques ligeiríssimos de lábios, na demora ao retirar a cara de um beijo casto na face. Mas era o suficiente para deixar um homem e uma mulher amarrados, um sussurrando pelo outro, à noite, quando imaginávamos o então inimaginável. Terei pena de não ter ido mais longe? Às vezes, quero crer que sim, que tenho! Poderia hoje confessar – mas a quem? Não a minha filha e nem à minha neta Madalena. E nem minha Madame tenho, que tanta falta me faz, nem mesmo sequer Pilar que hoje 135
visitei na sua campa rasa, no mesmo cemitério onde ironicamente está Juan Miguel… Com a minha idade, sim, poderia confessar que tenho pena de não ter feito o que hoje fazem, de ter a liberdade que agora têm. Não sei se teria construído o mesmo, a família, o amor sereno – ainda que tudo se tenha desmoronado com o tempo , não sei, sequer, se teria sido mais feliz, ou se acabaria como minha filha Maria. Sei apenas que teria havido mais fulgor na minha vida, mais momentos em que não teria querido saber de mais nada, nem de mais ninguém, mas apenas de mim, apenas do pouco ou muito que me faltava para me entregar a um prazer só meu, sem pensar nas convenções, na família, no marido, nos filhos, no mundo. Sinto que me faltei, que me desprezei, que me subordinei vezes de mais – eu que, ainda assim tive a minha quota de rebeldia, de infidelidade, de subversão, apesar de a consciência me pesar sempre que me desviava do apertado caminho do dever, traçado sabese lá por quem. Ah, se minha mãe me ouvisse, lá onde está, que pensaria ela de mim? E que pensaria das netas, das bisnetas… de toda esta juventude que faz o que faz, à vista de todos, que assistem a filmes onde homens se beijam entre eles e mulheres se despem, sem pudor, sem vergonha, sem respeito. Sei que estou muito velha e que a vida mudou. Mas, nesse caso, que força me impediu tantas vezes de fazer o que o meu corpo pedia? E que força é essa que agora as impele a fazêlo, que não lhes barra, como a mim barrou, esse caminho estreito entre a mulher livre, a espanhola amante, a puta e a senhora séria. Juan Miguel era um cavalheiro. Dois dias depois, apresentouse na casa onde vivíamos, a casa de minha tia Concepción, no Bairro Alto. Minha mãe tinhanos trazido, a mim e Pilar, para este refúgio, já que a sua irmã tinha casado com um médico português. Foi este meu tio que me diagnosticou a tuberculose, mal cheguei. Não gostei dele e hoje, por muito que puxe pela memória, não me lembro do seu nome. Nunca me fez mal, mas era grande e gordo e eu imaginavao, de noite, a esmagar a minha pobre tia… Por outro lado, vivi sempre com a ideia de que a casa era dele – e na verdade era – e que ele nos fazia sentir que estávamos ali por favor. Olhando agora para trás acho que fui muito injusta. O meu tio nunca teve filhos e quis ver na cunhada e nas sobrinhas a família que não pôde ou não quis constituir. Hoje, gostaria de ter perguntado à tia Concepción, ou até a minha mãe, que o deveria saber pela certa, por que razão não tinham eles filhos. Mas dessas coisas, à época, não se falava. Os casamentos eram e pronto! Uma das coisas que me causa, aliás, 135
admiração é o facto de esta juventude, em nome da liberdade que conquista, estar constantemente a perder privacidade… Enfim, é com eles. A mim, bastame a que tenho agora. Juan Miguel apareceu acompanhado do cônsul espanhol, que a tia Concepción conhecia. Chamavase, como ele, Juan, mas Juan Luis, e ambos se tinham conhecido recentemente através do todopoderoso Nicolás Franco, o embaixador de Espanha, irmão do El Paco, o caudillo de El Ferrol e generalíssimo em Madrid. Apresentaram os seus cumprimentos, enquanto Pilar me compunha à pressa, no quarto de ambas. Quando entrei na sala, o meu tio já estava de animada conversa com ele, enquanto minha tia se ria com as histórias do Cônsul. Eu e Pilar, especadas, descobrimos que não havia propriamente lugar para nós e eu fiquei absolutamente desiludida, compreendendo que ele não tinha vindo por minha causa, mas por outra razão qualquer que me ultrapassava. No entanto, terminada a conversa, Juan Miguel aproximouse de mim e disseme: Um destes dias, havemos de combinar ir a uma matiné… Eu corei, sem dizer nada, mas acho que fiz que sim com a cabeça. Juan Luís, o Cônsul, passou por mim e apertoume o braço no cotovelo, desejandome felicidades e fez uns olhinhos a Pilar que só eu reparei. Depois de saírem, meu tio anuncioume com certa pompa que estava autorizada a sair com Juan Miguel, desde que devidamente acompanhada de minha irmã. Com o seu tom desajeitado, acrescentou: Não que tivesse de ser eu a autorizar, mas manda a tradição que seja o homem da casa e, por aqui, homem só me vejo a mim, embora a sua tia tenha tentações dominadoras, que felizmente sua mãe não tem. Dito isto, riuse um bocado e serviuse de uma bebida. Acho que foi a partir desse dia que comecei a namorar com Juan Miguel. Por estranho que pareça, não me lembro se tivemos relações antes de casar, apenas do momento em que perdi a virgindade, já numa idade que hoje seria considerada avançada, quando minha irmã, mais nova, já se tinha desenvencilhado dela há muito tempo. Sei o local – foi nesta casa, que era de sua família , mas não a data. Ficoume a impressão física e nunca percebi porque se endeusa a primeira vez. No meu caso não foi a melhor, nem a mais terna, nem a mais desejada. Foi desajeitada, rápida, envergonhada. E sinceramente não me recordo se já era casada com ele ou não. É um pormenor que hoje tanto se me dá como se me deu, mas na altura fazia a diferença entre o céu e o inferno… E eu, caso céu e inferno existam, caso a virgindade seja mesmo importante, não sei neste momento de quem serei inquilina na eternidade. 135
Penso que já disse que Juan Miguel era um cavalheiro. Eu já devo ter dito muita coisa e repetido ainda mais, mas que heide fazer? Dizemme que é da idade, embora eu pense que os velhos repetem as coisas porque têm a certeza de que nunca são ouvidos. Se o fossem, muitas coisas que se passaram não voltariam a passarse… mas, a verdade, é que essas coisas, o bem e o mal, acabam sempre por repetirse. Ele era um cavalheiro, Juan Miguel, e, mais do que namorar comigo, cortejoume. Pelo menos eu entendo que assim se é cortejada. Ele adivinhava os meus desejos, antecipava as minhas aflições, previa os meus caprichos; aplainavame o caminho e eu nada tinha de fazer senão deixarme ir. Até então, toda a minha a vida fora deixarme ir. Mas sempre por falta de outras hipóteses. Pela primeira vez eu ia, mas contente, satisfeita, convicta de que, fossem quais fossem as alternativas para a minha vida, nenhuma seria simultaneamente tão doce e agradável como esta. Era a primeira vez que um caminho diferente não seria fatal, miserável, famélico, degradante. Eis um momento da minha vida do qual posso dizer que fui livre e que fui feliz. Fui livre e feliz com Juan Miguel que me preencheu o ego, me elevou a autoestima, fazendome sentir bonita, desejada, imprescindível. E que me fez mulher. No dia em que me pediu em casamento, com o anel com o pequeno brilhante, senti que tinha uma vida maravilhosa à frente. Casámos na pequeníssima capela da Beneficência Espanhola, um lugar acanhado, mas mais do que suficiente para os poucos que éramos. Os pais de Juan Miguel, que era filho único, vieram de Silves num automóvel preto, severo. Meu tio, que ia para o consultório a pé, alugou um carro com motorista para não fazer má figura, um BMW onde cabiam umas seis ou sete pessoas, para além do chauffer . O Cônsul levou Nicolás Franco, que além de ser da minha terra, El Ferrol, se tornou o centro das atenções, como se fosse ele a noiva; minha irmã Pilar, que por essa altura, tal como eu, trabalhava no Consulado, levou o resto da legação espanhola, mais uns sócios da Xuventude de Galicia e a Corte de Honor de la Virgen del Pilar, de que minha mãe era, em particular, muito devota, tão devota como só os bascos sabem ser. Por sorte, estava em Lisboa o Arcebispo de Santiago, que sabendo da boda e da presença de D. Nicolás, se prestou a substituir o padre Cuadrado, oficiando e abençoando ele o sacramento. Tudo correu bem, incluindo o copo de água no restaurante de um galego ali para os lados do Lumiar. Nesse mesmo dia, depois de dormimos num espaçoso quarto do Hotel Avenida, em Lisboa (onde não me lembro de ter tido qualquer contacto íntimo com Juan Miguel), fomos para Silves no 135
carro enorme de Juan Miguel e instalámonos nesta casa adorável, junto ao mar. E foi aqui, com o barulho do mar por fundo não sei se uma semana antes do casamento, quando estive com ele e minha irmã, além dos seus pais , se já casada e de forma, digamos, legal, que Juan Miguel foi o primeiro homem que tive dentro de mim. E sêloia até à minha meiaidade. É daqui, deste casarão suspenso sobre a praia, que eu hoje miro o horizonte, já no fim do dia quando a linha escura desaparece e as cores se esbatem, como se esbateram os dias felizes do encantamento, do namoro, do casamento, dos filhos, dos netos. Todos estes dias se misturam agora, na minha cabeça, com os dias da guerra, da fome, do medo, da vergonha, da tensão, da angústia e juntos constituem esta vida que eu não sei se me mereceu e se eu a mereci, de tal modo as coisas boas e más se anulam e me deixam com o sentimento de que tudo teve um desígnio que se transformou, depois, numa inutilidade – nem o sofrimento me faz sentido, nem a ventura. Se eu tivesse sido apenas feliz, teria a felicidade como destino e viveria no melhor dos mundos; se tivesse sido apenas desgraçada, haveria de retirar lições e talvez me sentisse perseguida por uma força maléfica. Mas quando tudo se mistura e nada se distingue, a sensação de uma soma zero dános a imagem da vacuidade, da ausência de propósito de uma vida, da minha vida, e mesmo da indiferença dos caminhos do bem e do mal, que nos escolhem a nós, ou que nós escolhemos. A menos que prolonguemos a nossa vida noutra… Há neste vazio um sentimento de improbabilidade. Por que não morri quando morreram meus irmãos? Porque sobrevivi à tuberculose? Porque sobrevivi aos meus filhos Luís e Maria? A meu marido, que hoje fui visitar num jazigo exagerado, alto e estreito, luminoso e florido? A minha irmã Pilar? À minha querida Madame , à minha pobre Elena, as duas maiores amigas que jamais tive? Porque sobrei, depois da partida de tanta gente? Porque fiquei, porque sou ainda? Que sentido faço a outros, senão darlhes trabalhos, tratarem de mim? E para que quero viver, se o fim da História nunca o conhecerei, nem o conhecerão aqueles que me seguem? Só ao mar tenho a certeza de que não sobreviveremos. Ele mantémse inalterado e majestoso no correr dos anos. Do mar, sim, podemos apaixonarnos até à exaustão da entrega total. Jamais nos faltará e jamais nos fará menos do que nos promete: a presença constante e ritmada, a força total, o azul imenso e um ponto para olharmos, lá para o fim de onde a vista alcança, na linha escura que o separa do céu. 135
III – Raul O mar pareceme hoje um grande lago. O seu azul mantémse imperturbável, mas perdeu os pequenos pontos brancos formados pelas ondas que, às vezes, o pontilham. Espraiase silenciosamente, sem qualquer escândalo, como se nas redondezas alguém estivesse muito doente e qualquer incómodo lhe fosse fatal. É um mar de almirante, como dizia um amigo nosso, oficial da Armada. Crianças brincam lá em baixo na praia, entrando e saindo da água, rindose muito alto. As pessoas atropelamse, não há espaço, não há um milímetro vago na areia, como se o que tenho à frente já não pudesse chamarse praia, porque já não o é. É, quando muito uma praça movimentada, de chão de areia e à beiramar. Uma praia não é isto, uma praia é uma dádiva da natureza, não tem altifalantes com músicas brasileiras, nem rapazes em cima de um estrado a convidar os presentes para uma aula de ginástica. Não tem motas de água a quebrar o silêncio do vento e o piar das gaivotas. Qual praia? Quando aqui cheguei, nos anos 50, a praia era um deserto. Podíamos andar a cavalo ou levar um barco para o mar e, mesmo no pino do Verão, como agora, não havia mais de meiadúzia de banhistas, além de pescadores que remendavam as suas redes e a quem Juan Miguel comprava peixe fresco que assávamos neste quintal. Como tudo mudou, como à volta de minha casa se construíram estes prédios que parecem próprios de um bairro social, como agora famílias inteiras passam o dia debaixo de um chapéudesol, a alimentaremse de porcarias com o único propósito de ficarem tisnadas, como se a cor bronze da pele 135
pudesse ser um objectivo em si mesmo… A mulher que me acompanha e ampara, uma espécie de empregada e simultaneamente dama de companhia, é burra. Eu chamolhe burra caraacara, prerrogativa que me dá a idade avançada. Ela quer à força que eu vá tomar banho, diz que me segura, insiste – a senhora gostava tanto de tomar banho no mar! Eu gostava tanto de muita coisa que já não posso fazer, Fátima. Há duas formas de morrer: ou de repente, quando estamos cheios de saúde; ou aos poucos, como me vou eu. Deixo de ler tanto, porque me custa imenso; deixo de ver televisão, porque me cansa ler as legendas, além de que estou a ficar surda – a minha filha encheme de aparelhos auditivos, mas eu prefiro ouvirme a mim do que às patetices que aí se dizem; deixei de correr, de nadar, de viajar, de montar a cavalo, de comer doces, de fazer certas coisas, porque não tenho idade como amar, por exemplo – e deixei de poder ir à praia sozinha porque uma pequena onda me derruba, porque perco o sentido de orientação, porque tenho momentos em que não me lembro onde estou. E assim, resumome à condição de ter de estar quase sempre acompanhada por uma burra. Coitada da mulher, se fosse muito inteligente haveria de ter arranjado melhor emprego do que cuidar de uma velha. Disselhe que não ia tomar banho, que fosse ela. E ela foi. Abriu o pequeno portão da casa que dá directamente para a praia, passou entre as toalhas, com um biquini que mais parece um conjunto de roupa interior garrido para o qual não tem, mesmo ela, idade e corpo, e entrou na água. Invejeia, apesar da sua enorme burrice. O mar sempre me atraiu. Em Pontevedra, que é donde vêm certas recordações mais antigas, viao, se me esticasse em bicos dos pés na varanda de nossa casa. Através de um emaranhado de ruas conseguia ver uma nesga daquele azul, que no Norte é acinzentado, por vezes de tons ameaçadores. No Verão íamos a La Toja –agora chamase A Toxa, como a minha terra se chama O Ferrol e La Coruña passou a A Coruña, manias! Direi La Toja, que foi como a conheci. Nesse mar frio, se eu nadei, meu Deus! Nas Rías Bajas tinha alguma liberdade, todos conheciam minha família – os pescadores, os donos das pequenas tascas de El Grove, os rapazes que mergulhavam das plataformas de madeira – as bateas de onde pendiam as cordas para apanhar o mexilhão. Podia andar pela terra, com os meus irmãos, ou mesmo só com Pilar enquanto os rapazes se entretinham nos seus jogos próprios, sem temer que nada de mal nos acontecesse nem ter de cumprir à risca as ordens militares de meu pai. Dos meus períodos breves de felicidade, Pontevedra e La Toja podem juntarse aos dos primeiros anos do meu casamento. Foi em La Toja que pela primeira vez me senti rapariga 135
desejada. Foi um quase nada que me acompanhou toda a vida e que hoje recordo com pormenores que me parecem incrivelmente próximos, se pensar que passaram muito mais de 70 anos. O rapaz chamavase Carlos e mergulhava muito elegantemente das bateas , nitidamente por exibicionismo – seio hoje com a experiência da vida. Mas não o sabia na altura e, para ser totalmente honesta, ele não o saberia, também, apenas cumpria a sua parte do destino darwiniano, tal como os pavões abrem as caudas e certos pássaros cantam particularmente bem na época do acasalamento. Eu tinha cerca de 13 anos e estava com Pilar. Ele já deveria andar pelos 16. Era moreno, alto e esguio e tinha um cabelo incrivelmente bonito que lhe pendia numa ripa que parecia, mas não era, descuidada, mais sobre o lado direito do que sobre o lado esquerdo. Vestia uns calções pelo joelho e uma espécie de camisola interior, que molhada se colava ao corpo, mostrando os seus contornos. Propôsse ensinarnos a mergulhar com perfeição, entrando de cabeça, para logo fazer um golpe de rins a fim de imediatamente voltarmos à superfície. Assim que soubéssemos bem aquela técnica, ainda que atirandonos de uma pequena rocha apenas um palmo acima das águas, poderíamos saltar de qualquer lado, mesmo de arribas a 10 ou 20 metros. Eu, infantil, e Pilar ainda mais, aceitámos imediatamente. O rapaz começou comigo e, vendo de hoje, sei que aproveitou bem a situação, colocandose atrás de mim, com a sua boca junto ao meu ouvido e enlaçandome com os braços para me explicar o golpe de rins, enquanto dizia a Pilar: Olha bem para a tua irmã, porque vais fazer o mesmo. A mim os seios já tinham despontado, mas Pilar, apesar de ter apenas menos ano e meio do que eu, continuava a parecer uma menininha, que aliás se ria, talvez dando mostras de perceber melhor do que eu o que estava em curso. O rapaz insistiu bastante no meu movimento de ancas e no golpe que tinha de fazer, esticando o peito para a frente assim que entrasse na água. E, com estes entretantos, nunca mais dava o mergulho, insistindo Carlos em mais uma vez, até o movimento estar perfeito. Eu gostei de o sentir assim, encostado a mim, a camiseta molhada contra o meu fato de banho que, como todos os da altura, era praticamente um vestido com umas calças que chegavam ao joelho. Gostei e ainda hoje o sinto, embora não sinta exactamente o que senti na altura, pois também a idade mo tirou… Finalmente, Pilar, já completamente esclarecida, atirouse por conta própria. Carlos desaprovou o movimento, mas não o corrigiu com ela directamente, aproveitando para mais um ou dois exemplos praticados comigo. Depois, atireime eu mesmo à água, e ele – aplaudindo – quis explicar um pouco melhor a técnica e voltou a enlaçarme, desta vez mais forte. Os dois corpos 135
molhados e salgados encontraramse e eu senti o que jamais esqueci. Nessa noite, na cama da nossa casa alugada em La Toja, dei voltas sobre voltas, até Pilar – com quem partilhava o quarto – me perguntar o que se passava. Com vergonha, não lhe disse que pensava em Carlos. E, no dia seguinte, olhando aquele horizonte em que contrastava a calma das rías com a tormenta do mar aberto, tive vontade de regressar às lições de mergulho. Sem saber como dizêlo a Pilar, que não me largava um minuto, fomos andando na direcção da reentrância onde estava a pequena rocha que nos servira de palco para as aulas. De Carlos, nem sinal. Nunca mais o vi mas, ao longo da vida, quando olho o mar, sinto por vezes os seus braços e o seu corpo no meu. Não passa disto, nem vale mais do que isto a minha breve experiência com o rapaz mergulhador de El Grove. Porém, o facto de ter ficado tantos anos – 75 esta recordação dentro de mim, que pode significar? Que estou recalcada, que o deveria ter procurado insistentemente, que me deveria ter oferecido? Às vezes quando ouvia certos psicólogos na televisão ou na rádio, era essa a impressão com que ficava. Que nestes tempos modernos, todos os desejos têm de ser consumados, como se os instintos animais do nosso corpo devessem comandar a nossa razão; como se fôssemos seres desprovidos de pensamento, apenas revestidos de emoções caprichosas que mandariam em nós, desapiedadas, levandonos a becos sem saída, a vidas desesperadas que trocaríamos por um breve momento, um breve encosto, uma breve troca do mar que havia nele, pelo mar que em mim havia. Não posso concordar – basta lembrarme de minha filha Maria e tenhoo dito muitas vezes a Madalena e até à rapariga que me acompanha. E eila que agora volta, num rali entre as toalhas de praia, à minha frente! Eu digolhe sempre que a vida não é feita de caprichos, a ela, Fátima, que é burra mas quer ser moderna, que se divorciou com mais de 50 anos e tem um namorado por quem me troca aos finsdesemana, quando aparece a minha filha e o meu genro, ou as minhas netas com os seus maridos e as minhas bisnetas. Mas que pode uma velha fazer para convencer o mundo? Nada! Deixarse estar a ver o mar. Quem pode explicar que a hipocrisia do meu tempo era o cimento da sociedade, quando a hipocrisia é vista hoje como o pior dos pecados? Como explicar que o sentimento que na altura senti pelo mergulhador Carlos era meu e só meu, não partilhável nem com a minha irmãconfidente, menos ainda com meu pai? Como explicar que um pai e uma mãe não existem para ser amigos, para ser, como agora se diz, uns tipos porreiros? Como explicar que os pensamentos, sejam eles os mais vergonhosos, os mais ousados, os mais inexplicáveis, são nossos, são pessoais, são íntimos e não são bens partilháveis à disposição de quem quer que seja? 135
Lá vem a Fátima enrolada numa toalha, com um sorriso estúpido estampado no rosto, a dizerme – Venha! Venha! A água está óptima! Eu seguroa! Não percebe que eu quero que Carlos me segure e me diga outra vez como fazer aquele movimento, afagandome com os braços a curva dos seios que então nasciam. Não entende que, com esta idade, ainda é o mesmo motor – o pensamento – que nos faz seguir viagem e que decide o que queremos e não queremos. Pensa que está a ser boazinha para mim. Pois serei má para ela, em recompensa. Atribuirá o desvario à idade avançada e eu divertirmeei. A perversidade não é coisa que passe com o tempo! Tomei um chá frio, que a Fátima me trouxe com umas torradas, e ouço agora os primeiros sinais do fim do dia. As pessoas fecham as inúmeras cadeiras de praia – é notável a quantidade de mobiliário que alguns carregam, em contraste com outros que apenas trazem a toalha – e os banheiros começam a fechar os toldos. O Sol inicia a queda para se pôr para as bandas da Senhora da Rocha, projectando na minha direcção a enorme sombra de uma palmeira. Lá para as 10 da noite, comerei um prato de sopa e tentarei que a burra me leia qualquer coisa, mas ela lê mal que se farta; acho que a leitura dela consegue tornar Tchekov num escritor banal. E estúpido. Que falta me fazem as pessoas com quem discutia literatura e música. Todas mortas! Não vejo a minha filha senão de 15 em 15 dias e ela preocupase demais comigo para me poder levar a sério. As conversas comigo não passam de preocupações: Tens frio? Tens fome? Não queres uns sapatos mais confortáveis? Falame em espanhol, acho que convencida de que eu a compreendo melhor, e eu respondolhe na minha língua. Levame à missa, mas eu nem sempre oiço o padre, o que tanto me faz porque eles dizem sempre o mesmo, embora – e é isso que me interessa – eu não pense sempre o mesmo. E eis outra coisa difícil de explicar aos jovens – a religião. Também não vou tentar, é impossível… De súbito tive um lampejo da pequena igreja de El Grove, onde me ajoelhei aos pés da Virgen del Pilar. Pedia perdão por Carlos, pelo mal que lhe fiz. Fui egoísta, não pensei nas más consequências que a minha leviandade poderiam trazer ao rapaz. Tinha sabido que na mesma tarde em que ele me ensinara a mergulhar, o meu irmão mais velho, Raul, se acercara dele e lhe dera uma sova tão grande que foram precisos dois ou três pescadores implorarem para que ele parasse, para que se acalmasse e deixasse de bater no pobre mergulhador. Carlos ficou tão mal tratado que não saiu de casa até nos irmos de La Toja. Eu odiei Raul e, no momento em que soube do 135
espancamento, desejei a sua morte. Por isso também me ajoelhava na igreja de El Grove; e, ainda por isso, haveria de ter anos de tormento, quando Raul morreu, sendo a primeira tragédia na sequência infernal que haveria de viver. Na altura, achei que o facto de ter desejado a sua morte a tinha acelerado, como se tivesse poder de vida e de morte sobre alguém, que não sobre mim própria. Hoje, o que sinto por esse meu irmão colérico e zangado com o mundo são apenas cinzas. Compreendo que o seu destino, como o meu, estava marcado e que a ideia de ter sido eu a influenciar a sua morte é pretensiosa e tola. Tão tola como pensar que o facto de este mar estar calmo, tem a ver com a paz com que eu, hoje, consigo falar de Carlos e de Raul sem me sentir culpada, sequer triste. Apenas resignada, como o mar que se espraia de mansinho, sem escândalo, sem emoção, sem vida. 135
IV – O jugo e as flechas Mais ou menos a meio deste manto azul de mar, o tom muda de ligeiro para carregado. É uma linha precisa, direita, que parece dividir em dois campos distintos a massa de água que a minha vista alcança. Nunca soube a que se deve este fenómeno, e acho que nunca perguntei a quem possa explicálo. Primeiro, pensei que tal se devesse à profundidade das águas, mas essa teoria não tem consistência, uma vez que nem sempre os dois tons existem, ou surgem de forma nítida, como também nem sempre estão no mesmo sítio. Hoje, porém, é risca ao meio. A linha divisória reparteme em três o campo de visão: mais claro o mar perto da areia, mais escuro, lá ao longe, e depois o céu, com o azul mais claro de todos. Estou sentada no meu habitual posto, depois de tratada – penteada, escovada como os cães –, por Fátima, que me prepara o pequenoalmoço com a sua natural e estúpida alegria das pequenas coisas. Veio de fimdesemana e deve ter passado bons momentos com o namorado, parece uma pilha recarregada – fala, fala, fala e sentese que tinha vontade de me contar com pormenores as porcarias que fez com ele, desselhe eu a mínima abertura ou confiança. Um dia que esteja mais enfadada, e sem saber que fazer, darlheei essa alegria… A minha relação com as pessoas simples sempre foi – como dizêlo? complicada. Acho que me posso considerar um pouco snobe, mas não excessivamente. Na verdade, nunca vi nos homens e mulheres mais simples menos malícia, menos oportunismo ou menos ganância do que nos cultos e ricos. Nisso, valhame Deus, somos iguais. Iguaizinhos como as gotas de água. Também não me parece que alguém se porte melhor ou pior consoante a necessidade que tem. Esta mulher que me acompanha há anos, além de ser de uma fidelidade canina é de uma honestidade total, disso não tenho quaisquer dúvidas. Mas tem o seu lado negro, perverso e intriguista que me desagrada. Qual será o meu lado que a deixa furiosa? Talvez este distanciamento, este tratamento desumano a que a submeto, chamandolhe nomes como estúpida e burra, em português, ou cochina marrana em espanhol, que é aquele que mais vezes me sai. Esse distanciamento que me leva a recusar a ideia de ela me contar histórias da sua vida: Quer saber que a minha filha está grávida outra vez.. Y a mi qué ? – Respondolhe, de propósito, frisando não ter nada com isso e recusandome a ouvir a história da filha, que no entanto conheço de trás para a frente, tantas vezes a contou. É como a sua história com o namorado, como o encontrou, como começou a namorar. Sei o que ela me quis contar, porque ouvi as 135
suas conversas ao telemóvel com amigas – ela fala tão alto que mesmo para alguém meia surda como eu é fácil ouvir. Mas sempre recusei que fosse ela a contarmo directamente. Não lhe dou essa confiança, e ela parece não se importar. Diz sempre coitadinha, referindose a mim. A sua mãe, coitadinha, está tão mazinha para mim… Pobre Fátima, tenho pena dela, mas por vezes invejo a sua simplicidade e a simplicidade da sua vida. Muito amiúde passam aviões. A praia já não é silenciosa como dantes e tiveram de inventar três coisas que são a desgraça de quem quer usufruir o mar: a música na praia, as motas de água e as avionetas que passam com reclames. Foam party não sei onde dizia uma faixa arrastada por um desses aeroplanos. Nem sei o que possa ser uma festa de espuma, mas enfim… Às vezes estes aviões, só com um motor e com o seu barulho característico, trazemme à memória os aviões em Espanha. Foram um terror… Eu sintome, de novo, pequena e aterrada a querer a minha mãe e a recordar os anos terríveis. Tudo começou com a queda de Alfonso XIII. Meu pai, depois de vir do Norte de África, onde prestara serviço como oficial do Exército, e de estar uns anos colocado em Pontevedra, foi chamado para a Casa Militar de Sua Majestade. Foi então que mudámos todos para Madrid, para um apartamento num prédio de uma rua estreita perto das Puertas del Sol. Em 1931, o rei foi afastado pelos republicanos, mas eu pessoalmente quase não dei por nada, salvo pelo abrandamento militar do meu pai, que se tornou mais próximo, estando mais tempo em casa e tornandose, talvez, menos rígido. Continuámos, no entanto, a viver em Madrid e a passar férias em La Toja e em Pontevedra, na antiga casa que ainda era nossa, e na tal praia que me escapa o nome, ao pé de El Ferrol, onde minha avó tinha um casarão enorme frente ao mar. Aparentemente, pelo menos, a vida continuava como até então, com a excepção, nem sempre óptima do nosso ponto de vista, de que o meu pai estava mais em casa. Porém, um dia, talvez uns três anos passados sobre o afastamento do rei, uma tensão terrível abateuse sobre a família. Uma tensão que deixaria marcas profundas em todos nós e seria o início de uma série desgraças que me moldaram e endureceram e fizeram de mim o que sou hoje – uma mulher que se interroga se viveu, ou apenas assistiu a um drama a que pode pôr um fim, mas não quer, como quando vemos um filme mau, mas resistimos em sair dele porque qualquer coisa nos diz que devemos ficar até ao fim, para conhecer em pormenor tudo o que desagradável tinha a história. Nesse dia, Raul, que andava pelos 19 anos, chegou a casa com um ar esgrouviado, o cabelo em desalinho e as faces coradas. Tinha estado manifestamente a beber e o meu pai iniciou uma 135
discussão com ele. Passados que eram poucos meses sobre o incidente com o mergulhador de El Grove, eu torci insistentemente para que meu pai o castigasse. E, pouco depois, foi o que aconteceu: fora de si, tirou o cinto do seu uniforme militar e deu com ele várias vezes no corpo de Raul que apenas gritava não, não, não. Ao contrário, o meu pai, em voz baixa, dizialhe: não te quero com essa gente, com esses desordeiros. Sobretudo não te quero com esse pendenciero do Redondo1! Esbaforido, Raul bateu com a porta de casa e saiu a correr.
Meu pai tentou acalmarse com uma bebida. Era a primeira vez que o via bater num dos filhos e estava manifestamente descontrolado. Depois levantouse, foi para o quarto, onde debateu largamente com minha mãe um assunto qualquer. Saiu e chamounos a todos para dizer: Meus filhos, não têm nada que perceber a estranha situação que vivemos neste país. Como sabem, o regime Republicano depôs Sua Majestade, para o gabinete de quem eu trabalhava. Como oficial espanhol, sou leal ao poder legítimo de Espanha. Não me agrada este Governo, mas menos me agradam conspirações. Não posso consentir que o vosso irmão – o meu filho – Raul ande metido com homens que conspiram abertamente contra o nosso Governo, que tentam golpes de Estado como o de Sanjurjo2, e que têm por modelo os regimes alemão e italiano, que são desumanos e anticristãos. Como compreendem, se o actual Governo apanha Raul, vai relacionálo comigo, e depois que será de nós? Quem ganhará o pão que vos sustenta? Por isso vos peço ajuda e colaboração: façam ver a Raul o mal que ele nos está a fazer a todos, por favor e dirijome sobretudo a vocês Enrique e Eduardo, que são rapazes e têm quase a idade de Raul, não se metam nisto, os tempos estão difíceis, conturbados, mas com a ajuda de Deus havemos de superar esta fase, havemos de nos rir destes episódios. Dito isto, chamounos para rezar, o que fizemos, pedindo a Deus que nos livrasse do mal da guerra e das rebeliões de rua, que eram cada vez mais e maiores. Eu nunca quis saber de política. Mas com o discurso do meu pai fiquei a odiar a Falange e o tal Redondo, juntamente com o Ledesma e o Primo de Rivera e todos aqueles que o meu pai ia nomeando como inimigos de Espanha, incluindo alguns dos ministros dos governos de então. Tanto quanto me lembro hoje, a monarquia caiu numas eleições locais de que nunca se contaram 1 Onésimo Redondo Ortega (19051936) Fundador da JONS que se juntou à Falange. Estudou na Alemanha onde terá tido contactos com o Partido Nazi de Adolfo Hitler, levando para Espanha algumas das suas ideias centrais. Natural de Vaiadollid, foi considerado o Caudillo de Castela. 2 José Sanjurjo, general espanhol que tentou um golpe de Estado em Sevilha, em 1931, conhecido por sanjurjada . Teria sido ele a liderar a sublevação 1936, mas um acidente aéreo em Portugal tiroulhe a vida, deixando Franco no comando.
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todos os votos, mas em que, ao contrário do que se passou na província, em Madrid e Barcelona os republicanos venceram largamente. Seguiramse umas constituintes ganhas pela esquerda e um governo com muitos socialistas em que o homem forte parecia ser Azaña e, dois anos depois, em 1934, o centrodireita conseguiu vencer, tornandose Gil Robles e Lerroux a dupla mais poderosa. Percebo hoje que, estando o centrodireita no Governo, o pior seria, para pessoas moderadas como o meu pai, deixar a extremadireita à solta e permitir provocações que seriam bem aproveitadas pelos anarquistas e pelos esquerdistas em geral. Mas, na época, o meu ódio nada tinha de raciocino político. Eu não perdoara, ainda, a Raul, por um lado, e entre ele e o meu pai, que eu idolatrava, não podia haver escolha. Foi por estes dois motivos que um dia levei a meu pai um crachá, um emblema que encontrei num sofá caído do bolso das calças de Raul. Nesse emblema, viamse cinco flechas e um jugo (com que se mantém junto o par de bois que puxa um carro) – era o símbolo da Falange e que tinha sido, no século XV, o símbolo dos reis católicos. Meu pai agradeceume. Chamou Raul e, desta vez tudo se passou em voz baixa. Nessa noite, Raul saiu de casa e a partir da manhã do dia seguinte, meu pai disse que tinha menos um filho do que aqueles que Deus lhe tinha dado. Não mais se falou de Raul naquela casa; mesmo com minha mãe, só muito mais tarde, depois da guerra, ganhámos coragem para falar abertamente dele. Mas tanto se passaria ainda, tanto, tanto, tanto, que meu pai nunca soube o destino de Raul, nem Raul soube o destino de meu pai, nem o meu, o de Pilar ou o de minha mãe. A sucessão de factos que faz a história, apesar de ser um encadeado, leva direcções inesperadas. Quem diria que, pouco depois, em 1936, a esquerda voltaria ao poder, sob a forma de Frente Popular e que Francisco Franco, que se celebrizara na repressão dos mineiros das Astúrias e estava então colocado nas Canárias – e com quem o meu pai estivera no Norte de África faria um pronunciamento? Quem poderia apostar, que meu pai, que sempre tivera um enorme desprezo por Franco, a quem chamava El Paco, seria preso preventivamente pelos vermelhos, porque só o facto de ter servido na Casa Real e, sobretudo em África, ao mesmo tempo que o Caudillo, o tornava suspeito aos olhos radicais do governo da República? Quem diria que meu pai, tão forte, sempre cheio de saúde, contrairia na prisão uma infecção de que havia de falecer, ainda em Agosto de 1936, muito antes de se saber para que lado cairia o poder em Espanha? Quem poderia adivinhar que um pouco antes, em Julho, no dia 24, o meu irmão Raul seria emboscado por soldados anarquistas, em Labajos, perto de Segóvia, onde caiu morto, ao lado de Redondo? Quem poderia supor, que nesse mesmo fatídico ano de 1936, com apenas 15 anos, eu saberia da morte de meu pai e de meu irmão mais velho e que os dois meus outros irmãos – Enrique e Eduardo 135
– se poriam em marcha para irem ter com as tropas do Caudillo a Ferrol, oferecendose como voluntários dos nacionalistas? Quem se atreveria a dizer que eu, nesse mesmo mês, aceitando um convite de uma amiga que fora nossa vizinha em Pontevedra e o era de novo, agora em Madrid, decidiria ir passar duas semanas a Ayllón, a escassos 140 quilómetros de casa, e que por ali acabaria por ficar quase três anos, separada de minha mãe e de Pilar, que aguentaram a guerra na capital, do lado dos rojos , enquanto eu ficava do lado dos nacionalistas? E que não voltei a ver meu pai e os meus três irmãos, e que, no fim da guerra, de toda a família sobrávamos três: eu, Pilar e mamaíta ?
Ao longo da minha vida, muitas pessoas me vieram dizer que tinham problemas graves. Que o filho tinha papeira, ou que o gato estava a morrer. Sempre as ouvi com atenção e sempre as poupei à ideia do que era um problema. Eu, aos 15 anos, perdi metade da minha família, vivia aterrorizada pelo barulho dos aviões italianos (os nossos, os nacionalistas) e russos (os Rata , os deles, os republicanos, ou rojos ), com frio na serra gelada, com fome, com medo, sem saber se minha mãe e meus irmãos estavam vivos ou não, culpandome pelo facto de em Ayllón não haver guerra, apenas aviões a passar, vindos de Burgos, os nossos, vindos sei lá de onde, talvez de Sagunto, os deles. Isso foi um problema, sim! Isso foi um problema! O mar não se queixa, como eu não me queixo. A risca que o divide está lá, como esteve nos mapas da guerra civil, nos tempos que me deixei ficar em Ayllón, à espera de um nada. De um lado, berrava a Pasionara que não passariam; do outro queriam por força ir a Madrid. Quem se preocupava com uma miúda que apenas queria a mãe? Nas guerras não se pode dizer que queremos a nossa mãe; nas guerras somos todos crescidos, sabemos todos o que fazer, sabemos todos os sacrifícios que nos pedem; nas guerras somos maus, não somos nós próprios, somos egoístas, ladrões, antisociais e cobardes; nas guerras não nos arrependemos, porque estamos ocupados em viver; e não pensamos e não agimos, ou porque não podemos, ou porque estamos transidos. Nas guerras seremos como o mar – flexíveis, mas fortes, traiçoeiros, mas fortes, imprevisíveis mas fortes. Fortes como só o mar sabe ser. 135
V – Ayllón O vento virou para Norte e sopra agora contra a vontade do mar, provocandolhe pequenas rugas, aqui e ali, ondas que inesperadamente mostram as suas minúsculas cristas de espuma, ainda que apenas por um instante, pois logo se subjugam ao imenso manto de azul que persiste em ficar devidamente alisado. Esta noite sonhei com um mar que não este, um mar que não era o meu. Tinha altas ondas que no seu refluxo me puxavam para ele, como se sugassem os meus pés, que se enterravam cada vez mais na areia, para não partirem em direcção às ondas que desabavam, altas, um pouco à frente. Mesmo junto ao local onde estava, havia enormes rochas e, no cimo de uma delas, furada a meio, estava a Virgem dos Rochedos. No entanto, não era Biarritz, nem era a Praia de Santa Cruz, mas sim um local inexistente onde fosse possível a fusão das duas praias tão longe uma da outra. O mar insistia em terme com ele, puxando cada vez mais forte, e eu virava para terra, para minha mãe e gritavalhe – Por favor, puxame para ti, eu não consigo sair daqui – mas ela parecia distraída, ausente, a falar com uma senhora e eu lutava com o mar, lutava, lutava… Até que lhe disse, aparentemente de 135
uma forma bastante compreensível para o mar, uma frase que me ressoa esta manhã na cabeça: Heide ir contigo, mas não aqui, chamame numa praia que eu conheça. Nunca acreditei que os sonhos tivessem significados ocultos, ou revelassem algo de especial. Talvez, isso sim, nos levem a recordar pessoas, locais, factos que tínhamos esquecido ou enviado para locais recônditos da memória, mais nada. Ora, se o objectivo for este, meu sonho conseguiuo. Lembrei Pilar e a sua casa (ou melhor, a casa de seu marido) na Praia de Santa Cruz, onde o mar é assim forte e nos puxa para ele; e recordei Biarritz, para onde fui com minha mãe e Pilar, mal nos reencontrámos no fim da Guerra Civil, em 1939. Biarritz foi a nossa América, o local para onde sonhei fugir durante as agruras daqueles anos. Perdida em Ayllón, não soube da sorte de minha família até que um esquema bizarro e tortuoso nos conseguiu pôr, de novo, em contacto. As primeiras notícias foram animadoras, sobre a saúde de minha mãe e de Pilar. A última foi terrível: Enrique tinha sido morto em combate. Mas arrumarei a memória, tanto quanto o conseguir. Eu tinha ido para Ayllón porque esta pequena vila medieval era a terra (ou ele apenas teria lá uma casa?) de Manuel Blanco, um querido amigo de meus pais. Manuel e Dolores tinham uma filha, chamada Elena, que se tornara uma das minhas mais constantes companhias em Pontevedra e, depois, em Madrid, quando também Manuel ali foi colocado num departamento público. Meu pai conseguira alugarlhe um apartamento muito próximo do nosso, de modo que voltámos, como em Pontevedra, a ser vizinhos. Passava os dias em casa deles, assim como Elena em minha casa, as nossas brincadeiras eram constantes, e isso agradava aos pais de ambas, que mantinham uma amizade forte que chegava à cumplicidade. Pouco antes de a guerra eclodir, estava combinado que eu acompanharia Elena e os pais a Ayllón, para umas curtas férias de 15 dias. Não sabíamos, claro, que o dia em que partimos seria a véspera da mais dramática proclamação da história moderna de Espanha. Em menos de três dias, depois de Franco ditar o seu famoso telegrama, Espanha estava dividida em dois. As províncias da Galiza, de Burgos, de Zaragoza, de Pamplona, de Valladolid e de Salamanca estavam do lado dos nacionalistas; as de Madrid, Valência e da Catalunha do lado dos republicanos e a Andaluzia, País Basco, Astúrias e Cantábria divididas. O resultado foi que Ayllón, que se situa na província de Segóvia, a meio caminho entre esta cidade e Sória, estava do lado de Franco, mas a poucos quilómetros da frente que separava os dois lados da guerra, ou se quiserem, que separava os nacionalistas de Franco 135
dos republicanos em Madrid. Todos os dias ouvíamos o rugir dos aviões, o estrondo das bombas, os gritos dos soldados. Eu e Elena, 15 e 16 anos de idade, vivemos esses tempos encolhidas, abrigadas por Dolores que não podia, por muito que quisesse, substituir o papel tranquilizador de minha mãe; eu e Elena passámos semanas num canto da cozinha, primeiro com um calor mortal e o medo de sequer pôr um pé na rua; depois, no Inverno, sem roupa apropriada, cheias de frio, à lareira. Por último, já habituadas aos azares da guerra, saíamos de casa para tarefas pouco grandiosas como as de roubar ovos onde os havia, ou andar quilómetros para nos darem leite, para mendigarmos pão e o que fosse necessário aos soldados que passavam. A fazer o que nem uma nem outra jamais poderíamos confessar com esses mesmos soldados, que na altura me pareciam pecados inomináveis e hoje sei não passarem de pequenas faltas pueris; fazíamolo em troca de comida, de mantas, por vezes de um simples abraço, porque um abraço fechado em plena guerra faznos chorar e o choro recorda a humanidade que há em nós, mesmo nessas épocas em que a desumanidade nos rodeia. Assim passei os quase três anos da guerra. Primeiro sem notícias de ninguém, até que um dia, já 1937 um magala nacionalista entregou a Manuel Blanco um envelope que vinha de Lisboa. Era da tia Concepción, irmã de minha mãe, de quem eu nem sequer me lembrava. A carta trazia uma notícia agradável: há quatro meses a minha mãe e a minha irmãzinha Pilar estavam boas de saúde, em Madrid. Concepción sabiao através de Henriette, uma tia sua e de minha mãe, portanto minha tiaavó, que vivia em Biarritz, no País Basco francês e que conseguia comunicar com Madrid. O trajecto passou a ficar definido: minha mãe escrevia a Henriette, que escrevia a Concepción, que me escrevia a mim. E eu fazia o percurso inverso, escrevendo a Concepción, que escrevia a Henriette que escrevia a minha mãe. O atraso nunca era inferior a três meses, mas era melhor do que nada. Interrogome como hoje alguma menina de 15 anos aguentaria – neste mundo infernal – estar três meses sem saber o que se passa. Toda a gente anda de ouvido encostado a um telemóvel e não me parece que o mundo tenha melhorado substancialmente. As notícias, sendo instantâneas, não permitem que distingamos entre as importantes e as supérfluas… Se tivessem apenas uma página para escrever o que se passou nos últimos três meses, diriam apenas o essencial. Olho para uma carta de minha mãe que guardo com fotografias numa caixa velha de cartão. Ela apenas me diz, numa letra irrepreensível: Madrid, 14 de Maio de 1937. Milha filha querida, Eu e tua querida irmã Pilar vamos bem, com a Graça de Deus, apesar dos horrores que se vivem. Amamoste muito e rezamos muito por ti. 135
Sê forte! Da tua mãe e irmã que te adoram e anseiam por te ver. Nenhuma palavra era desnecessária. Hoje canto muitas canções que aprendi nessa altura. Algumas de índole política, nacionalistas, franquistas – estou certa que seria presa numa rua de Madrid se as cantasse em voz alta, como aqui no meu quintal outras brejeiras que eu e Elena cantávamos a pedido dos soldados que passavam e bebiam grandes quantidades de álcool para afastarem o medo e continuarem convencidos de que iam salvar a Espanha e a Hispanidade. Tiene mi papá Bajo su camisa Dos pelotas gordas Y una longaniza ¡Dámelas, papá! ¡No me da la gana! Son para mamá Cuando está en la cama3. Eles riamse alarvemente, claro, mas eu juro que só mais tarde percebi todo o significado desta cantiguinha. Era assim a nossa vida, sem outra escola que os esforços de Manuel Blanco e de Dolores para nos educarem; sem regras, como se a nossa educação, o nosso desenvolvimento, o nosso amadurecimento tivesse ficado em suspenso e fôssemos obrigadas a improvisar cada momento. Quase tudo em nós era desenrascado – a roupa, a comida, a água , por isso sempre me ri do conforto. E embora boa parte da minha vida, depois da guerra, tenha sido passada em ambientes requintados, jamais voltei a sentir a sinceridade das relações que a guerra nos dá. Recordo o modo como Manuel Blanco nos falava, nos rogava, com os olhos cheios de lágrimas e constantemente a pedir desculpa a Deus, para roubar o que pudéssemos, aproveitando o nosso ar inocente; nunca como na guerra vemos a fraqueza e a força juntas, misturadas numa só. Nunca! Nunca! Só nestas situações extremas sabemos precisamente o que valemos, do que somos capazes, qual é a verdadeira dimensão da natureza humana e a real força que nos impele à sobrevivência. Penso que desde essa altura me conheço e sei exactamente o que valho como ser humano. Minha irmã Pilar, no dia em que me reviu em Madrid depois da entrada triunfal das tropas do Caudillo, agarroume com força e disseme uma frase que nunca esqueci e que muitas vezes, ao longo da vida repetimos uma à outra: Quem sobreviveu a esta chacina, mana, sobrevive a tudo! 3 Tradução literal: «Tem o meu papá/Sob a sua camisa/ Duas bolas gordas/ E um chouriço/ Dámos, papá! Não tenho vontade/ São para a mamã/ Quando estiver na cama»
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Também ela roubou, pilhou, ameaçou, fugiu, escondeuse. Ela, uma rapariguinha com 14 anos, ocultava à nossa mãe que alguns alimentos e objectos que levava para casa eram roubados ou fruto de chantagem – na altura bastava ameaçar dizer à CNT, os anarquistas, que um qualquer pacato cidadão não revolucionário era agente franquista para ele entregar tudo o que lhe pedissem. Pilar tinha, aparentemente um especial jeito para este tipo de tarefa. O seu ar traquina davalhe, talvez, um ar revolucionário que conferia credibilidade às ameaças. Sempre pensei que minha irmã não era de esquerda por uma contingência qualquer da vida. Ela nasceu para contestatária, ao contrário de mim que nasci para me resignar. É curioso, como a modernidade nos veio tentar igualizar, dizendonos que quase tudo dependia da educação. Curiosamente, toda a minha vida desmentiu essa ideia. Nós nascemos como nascemos e não sou eu que vou explicar porque assim nascemos. Mas somos diferentes, radicalmente diferentes, e ainda que minha irmã, tal como eu, votasse sempre à direita – no Partido Popular de Espanha, fosse ele de Fraga, de Aznar, ou de outro qualquer, o que nos dava igual – a verdade é que sempre vi qualquer coisa nela de profundamente desesperado, de irremediavelmente dissonante em termos sociais. O seu comportamento leviano, radical e destemperado, provenientes de um gene que minha filha Maria parece ter herdado, mas que a mim me poupou, trazernosia, aliás, alguns dissabores que só para o fim da sua vida ficaram resolvidos. A dor da perda do meu pai só a tive muitos meses depois de estar em Ayllón, minha mãe escondeume a essa angústia enquanto pôde. Mas à terceira carta em que lhe pedia novidades de mi papá, ela achou por bem contarme a verdade. Talvez por pensar que as más notícias devem ir todas juntas, o seu bilhete, era apenas isto: Madrid, 14 de Novembro de 1937. Querida filha: O nosso querido pai juntouse a Deus, depois de ter sido injustamente preso pelo Exército da República. Uma infecção contraída na prisão levouo, assim mo disseram. O nosso Raul foi friamente assassinado por uma coluna anarquista em Labajos, quando acompanhava o tal Redondo que teu pai abominava. Quanto aos nossos Eduardo e Enrique, combatem por esse país fora e ainda todas temos esperança de os rever sãos e salvos. Rezamos muito por todos, os vivos e os mortos, nas nossas orações. Sei que fazes o mesmo e que és uma mulher com suficiente coragem para receber estas notícias, tão tristes, de cabeça erguida e confiança no destino que o Senhor nos deu. Foi a primeira vez que minha mãe se referiu a mim como uma mulher. Eu tinha apenas 16 anos, mas com estas notícias sentime mais velha do que sou hoje. Senteime num pequeno 135
banco perto do lume da cozinha, apertei os braços contra o meu peito até arranhar as costas, deixei descair a cabeça sobre o peito e chorei convulsivamente. Chorei tanto que Dolores e Elena choraram comigo, mesmo antes de saber porquê. Chorei tão imensamente, que Manuel Blanco também chorou e eu pela primeira vez vi um homem de meiaidade chorar, as lágrimas a caíremlhe no bigode, a boca aberta, a babarse, o ranho a sairlhe do nariz. Dito assim parecerá um nojo, mas eu abraceio, porque tinha pena de mim, mas tinha igualmente pena dele, de Dolores e de Elena. Todos tínhamos perdido algo, todos tínhamos um nó na garganta. E nesse momento algo de extraordinário aconteceu. Um acaso ou um sinal da Providência que jamais esquecerei: a porta de casa abriuse e um soldado nacionalista meteu a cabeça pela ombreira e, vendonos todos agarrados a chorar, agarrouse também e disse – desconheço porque chorais, mas sei que toda a Espanha está a chorar por causa de uns poucos que se estão a odiar. Nunca soube quem era esse soldado, mas muitas vezes penso nele e nas suas palavras, que foram a mais pura verdade sobre a nossa guerra civil. Esta seria a última vez que um choro tão convulsivo me alterou. Poucos dias depois, soube, por um oficial do Exército franquista, que meu irmão Eduardo tinha morrido vítima de um bombardeamento que a aviação italiana fizera por engano. Curiosamente, ou por ser demasiado próximo, no tempo, da notícia das mortes de meu pai e de Raul ou sei lá se por qualquer outro motivo ou mecanismo de defesa que o corpo e a mente colocam à nossa disposição a informação apanhoume quase indiferente a mais esta tragédia. Já em meados de 1938, a minha tia Concepción envioume uma carta cheia de requebros e cuidados, pela qual percebi a última notícia terrível: também Enrique tinha morrido, desta vez na ofensiva de Teruel, no início desse ano. Uma ofensiva que foi uma vitória de Pirro dos republicanos – tomaram a cidade em Janeiro, perderamna em Fevereiro, definitivamente. Esta foi a última carta que recebi com notícias de minha mãe e de Pilar, após o que se acabou a correspondência, provavelmente porque as vias entre Madrid e França já estavam quase todas cortadas. Depois disso, a minha tia Concepción continuou a escreverme, a tentar animarme, dizendo que minha mãe tinha intenção de ir connosco, as suas filhas, para Biarritz ou para Lisboa, a fim de que pudéssemos viver em paz, longe desta terra de sanguinários, mas já não era a letra, nem as palavras, nem os beijos, nem os sentimentos de minha mãe que me chegavam. De meados de 1938, até ao fim da guerra, em 1939, não soube mais nada. A notícia da morte de Enrique deixoume de rastos. Ainda ia 135
fazer 19 anos quando morreu… Mas já não tinha lágrimas e dessa vez o único a chorar, pois era de lágrima fácil, foi Manuel Blanco. Felizmente, Elena tinha conseguido surripiar umas três garrafas de uma zurrapa alcoólica que parecia aguardente. Manuel bebeu sozinho uma delas. Elena, eu e Dolores bebemos outra. No fim da noite estávamos totalmente embriagados, não dizíamos coisa com coisa e pela primeira vez ouvi da boca de Dolores uma palabrota . ¡Mierda para la guerra, coño! Com as notícias do cerco nacionalista a Madrid fomonos animando com a hipótese de revermos minha mãe e Pilar. Estariam vivas? Claro, dizia Dolores, vê como as más notícias se espalham tão depressa! E Manuel Blanco todas as noites dizia que era menos um dia que faltava. Mas a guerra ainda duraria um ano, até acabar. E durante esse ano, Franco foi o nosso herói. Hoje, percebo que só tínhamos informação de um lado, o nosso, o nacionalista. Mas isso não impede que seja verdade o autêntico morticínio que os republicanos fizeram. Os padres e freiras que fuzilaram pelo simples facto de serem padres e freiras, os homens que encostaram ao paredón pelo simples facto de não serem comunistas ou socialistas, as perseguições, as desumanidades. Também sei que nos contaram muitas mentiras sobre os comunistas comerem crianças ou matarem os velhos. Mas, do mesmo modo, muito do que socialistas e comunistas vieram mais tarde dizer que era mentira, sei eu, porque vi, que foi bem verdade. Também não desconheço a barbárie de sinal oposto. Sei o que os mouros de Franco fizeram em Badajoz e noutros locais, sei dos trabalhadores sindicalistas assassinados sem outra culpa do que pretenderem defender um governo legítimo, sei disso tudo e por isso concluí que os maus somos todos, os homens e mulheres que pretenderam e pretendem impor a sua razão aos outros. Na verdade, os soldados franquistas que eu vi eram tão humanos como os soldados da Brigada Internacional ou os homens da Coluna Durruti.4 Foi Primo Levi que se esforçou nos seus livros, sobretudo em Se Isto é um Homem, para nos fazer crer que mesmo os nazis eram homens reais, que o mal está em nós, dentro de nós; que o mal existe! Que não vale a pena diabolizar o inimigo ou pensar que o mal não mais ocorrerá. Pois eu entendi perfeitamente Primo Levi e sei que os alertas dele fazem todo o sentido. São homens comuns aqueles que nos conduzem à desgraça, não são bestas travestidas de homens, nem 4 Coluna formada sobretudo por anarquistas catalães, comandada por Buenaventura Durruti, que teve um papel histórico do lado Republicano, tendo sido ferozmente reprimida pelos comunistas. Os homens de Durruti apoiaram greves e sublevações, instaurando o comunismo libertário e a reforma agrária radical. O próprio Durruti faleceu em Madrid, de forma nunca totalmente explicada, depois de se ter dirigido para a capital, com os seus homens, a fim de a defender dos nacionalistas.
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diabos à solta, nem sanguinários psicopatas. São pais de família que querem vidas melhores, ou querem segurança, ou querem dinheiro, ou querem tudo e que não pensam na mais sensata das frases: que todas as acções têm consequências e que a maioria dessas consequências, infelizmente não as sabemos prever. Olhando para trás, um ano na minha vida, como o que decorreu entre 1938 e 1939, é pouco. Mas foi muito, quando ansiava por alguma coisa que mudaria radicalmente a minha vida desgraçada desses tempos. Biarritz, onde tinha estado em muito pequena, e da qual nada me recordava, passou a ser a minha América. Era para lá que iria, mal a guerra terminasse, com minha mãe, com Pilar e com Elena, Dolores e Manuel, porque não? Porque não? – Repetia Manuel, se afinal sempre fomos vizinhos, podemos continuar a sêlo. Que diabo farei eu, um funcionário do Estado Espanhol, em Biarritz? E se a guerra acabar que regime teremos? Monarquia ou República? O que vai ser de nós? E, como pressentindo novas tragédias, Manuel Blanco suspirava, comoviase e chorava. À noite ficava a sonhar com a vida de Biarritz, tendo uma vaga ideia de que era um local privilegiado, com artistas de cinema e de teatro, com pintores e músicos, onde me sentiria bem e me desforraria da vida miserável de Ayllón. É, pois, natural que, na época, tenha sonhado com o mar de Biarritz. E que ele agora me regressasse em sonhos, misturado com o de Santa Cruz, para que eu me lembrasse de minha mãe, de Pilar, de Elena, de Dolores e de Manuel Blanco, e de Ayllón, onde nunca mais fui. O mar de Biarritz chamame e fazme recordar, mas é para este que olho e é este que me verá partir. Disso não me resta qualquer dúvida. Tenho na minha vida mortos mais do que suficientes para poder negociar com Deus e com o Diabo a minha própria morte. Será aqui, a ver o mar. De preferência discretamente, para não ter que ouvir a Fátima aos berros, como se a morte de alguém com 88 anos fosse um acontecimento digno de incomodar alguém. 135
VI – A vaga de fundo Esta manhã o mar provoca aquela ilusão óptica da vaga de fundo. Aqui há uns anos, não muitos, na capitania do porto da cidade de Portimão, um idiota pôs estas terras em alvoroço ao fazer um aviso de maremoto. As pessoas fugiram das praias a sete pés. Lembrome de estar sentada precisamente neste sítio, a olhar o mar, e a ver que não havia qualquer novidade. Fátima queria que eu fugisse: Venha senhora, olhe o que os banheiros e os cabosdomar estão a dizer, temos de ir embora… Eu disselhe que fosse ela, que se a vaga, caso viesse, arrastarmeia da cadeira para onde bem entendesse. Tinha a certeza que nada demais se passaria. Mas as pessoas, na fuga, bateram com os carros uns nos outros, atropelaramse, gritaram, fizeram um estardalhaço, até que uma ou duas horas depois, os idiotas da capitania compreenderam o logro em que tinham caído. Nunca entendi como é possível ter alguém responsável por um porto que nem sequer conhece o mar que vê. Felizmente, o oficial hoje de serviço sabe que isto se forma sempre que existem determinadas condições atmosféricas, pelo que não accionou qualquer sistema de alarme, poderão as pessoas ficar descansadas e eu aqui, três metros acima delas, junto ao muro do quintal de minha casa que confina com a areia da praia. Suponho que devo ter um ar algo aristocrático, com o meu grande chapéu de palha, atado com um lenço para não ir com o vento, e o meu vestido de seda largo e fresco, a olhar sobranceiramente as pessoas. Tão diferentes daquelas que frequentavam as praias quando eu era nova… Juan Miguel, o meu marido, dizia que o mal era terem dado férias ao povo, porque o povo tornara as praias sítios infrequentáveis, razão pela qual as pessoas preferiam ir de barco para praias inacessíveis, ou de avião para praias tropicais, de países que o povo ainda não as frequenta. Acho a ideia um pouco 135
snob de mais, mas é real. As praias parecem os piqueniques do Campo Grande há 50 anos, com magotes de gente aos berros, a ouvir música ou com pequenos cães a ladrar amarrados a pífios chapéusdesol. É um espectáculo deprimente… Lembrome do esplendor de Biarritz, as pessoas elegantes, com os seus chapéus e vestidos, acompanhadas por criadas fardadas que levavam para a praia mesas desarmáveis e talheres de prata. Havia muito mais espaço e havia muito mais silêncio. Claro que o tempo não andará para trás, mas toda esta gente que se estica numa toalha, no pequeno meio metro quadrado a que tem direito, e que o faz porque um conjunto de pessoas começou a fazêlo no início do século passado, nunca saberá verdadeiramente o que é um dia de praia, porque o que tem é isto – um dia de sol no meio de uma multidão insuportável e de um lixo apreciável. A minha tiaavó Henriette não era rica. Era uma senhora que tinha uma pequena vivenda numa rua não muito perto do mar. No dia em que chegámos à estação de comboio da cidade balnear francesa, no Verão de 1939, eu e Pilar ficámos desiludidas, porque pensávamos encontrar um casarão como o da minha avó na praia perto de El Ferrol. A guerra tinha acabado nos últimos dias de Março de 1939. Dois dias depois da queda de Madrid, Manuel Blanco levounos de Ayllón e pudemos reencontrar minha mãe precisamente na mesma casa onde habitávamos. Os combates haviam terminado em Valência e Múrcia por esses dias, e respiravase um ar de vitória por todo o lado. Lembrome de uma enorme parada feita na capital espanhola a que assistimos empunhando bandeirinhas – já não a da República, mas a tradicional – e cantando hinos nacionalistas. Minha mãe, por eu já ter completado os meus 18 anos, tornoume sua confidente. E a triste realidade era esta: meu pai não deixara fortuna, não tínhamos meios de subsistência, o que poderíamos fazer? Havia duas hipóteses, como eu já sabia: ou rumarmos a Lisboa, para casa da sua irmã, a tia Concepción, ou para Biarritz, para casa da sua tia Henriette. Afastadas da situação da Europa, não tanto pela feroz censura – seio hoje – que Franco impusera em Espanha como pelo desinteresse que votávamos a questões de política internacional, escolhemos – mal como se viu – ir para Biarritz. O marido de Henriette tinha um pequeno negócio a que nos poderíamos acomodar e, para mim e Pilar, seria seguramente mais proveitoso aprendermos bem francês do que português. As horas que se seguiram a esta decisão tornaramse dias dolorosos. Tivemos de decidir o que venderíamos do pequeno espólio da família, já muito depauperado pela queima de 135
mobiliário para aquecer um Inverno particularmente rigoroso, como fora o de 3839. Das condecorações, espadas, pratas, talheres, loiças e até retratos de antepassados que tinham feito certa carreira na América, acho que no Peru, escolhemos o que nos pareceu mais rentável e vendemos como pudemos. Depois, de comboio – e tenho a certeza de que não em 1ª Classe – fomos para Biarritz, onde chegámos, salvo erro, em Junho ou Julho desse ano de 1939. A nossa ida foi muito bem recebida pela tia Henriette, cujos filhos já crescidos viviam mais longe, em Bordéus, pelo que eu e Pilar tivemos tratamento digno de netas. Minha mãe, por seu turno, era alvo das maiores atenções da tia, que não parava de lamentar a sorte da sua sobrinha Consuelo, a quem faltava o marido e três filhos, a casa, os rendimentos, tudo. Isso, no entanto, não abalou – longe disso – a mulher lutadora em que a guerra transformara minha mãe. Num instante, arranjou emprego numa livraria da cidade, como vendedora de balcão, de modo a poder contribuir, com pouco que fosse, para a casa que nos acolhia. Eu e Pilar, embora estivéssemos a ponto de voltar a uma escola, assim que tal fosse possível, passeávamos pelas ruas de Biarritz, sobretudo pelo Quai de La Grand Plage, embasbacadas com a moda e os modos dos ricaços. Era algo que nunca víramos naquela triste Madrid que conhecêramos antes da guerra – e eu menos ainda nas serranias de Ayllón – nem sequer na requintada La Toja, que ficava a anosluz de distância, no que toca a elegância e riqueza, da cidade da tia Henriette. Mas, mal nos instaláramos ainda, começaram os problemas. Milhares de espanhóis que tinham combatido pela República em Espanha refugiavamse em França e, muito embora, nada tivéssemos a ver com isso, éramos vistos como refugiados antifranquistas. Minha mãe cedo notou, na livraria onde trabalhava para um senhor de nome engraçado – Jojo Blanchinard , que era assim que as pessoas comuns a olhavam. O próprio Jojo lhe dera a entender, aliás, que ela devia o emprego ao facto de ele apoiar de alma e coração os republicanos espanhóis e deplorar a atitude neutralista da República Francesa, que de resto contrastava, pela negativa, segundo a sua opinião, com o apoio activo que Alemanha e Itália tinham dado a Franco. Porém, se a confusão do livreiro não nos era prejudicial, já a de outras pessoas ia em sentido contrário. Muitas achavamnos, em parte, também responsáveis pela perseguição que a Igreja sofrera em Espanha e, muito embora nós fôssemos mais do que uma vez por semana à missa, na bela igreja de Sainte Eugénie, junto ao mar, havia quem olhasse para nós, espanholas, com muita desconfiança. Mas íamos vivendo, como podíamos. A tia Henriette tinha contratado, aliás às escondidas da minha mãe – e esse fora o presente pelos 17 anos de Pilar – uma professora de francês e um explicador de ciências da natureza, matemática, 135
rudimentos de física e tudo o que com isso fosse relacionado. A ideia era que pudéssemos ainda recuperar um pouco os estudos que tínhamos interrompido por três anos, de forma a não ficarmos semianalfabetas. Curiosamente, foi essa professora de francês, Madame – como ambas lhe chamávamos que despertou em mim o gosto não só do idioma, como da filosofia e do pensamento. Com ela debati muito da teoria do conhecimento e até alguns rudimentos da então recente teoria da linguagem, que a Madame – pouco mais velha que nós, recém saída da Universidade, dominava. Hoje, recordo que nunca expressei assim tão claramente a Yannick este reconhecimento que lhe devia. O que, porém, mais debati com ela foi a convicção. E a convicção é, para mim, o maior dos mistérios do cérebro humano. Por que motivo nos convencemos, por que motivo, pessoas diferentes, com a mesma informação, provavelmente até com a mesma experiência, chegam a convicções diferentes. Pode estar mais ou menos definido de que modo os homens podem chegar ao conhecimento, ou até de que modo a linguagem baliza, condiciona e dificulta a transmissão de conceitos. Mas nada, ou quase nada sabemos sobre o modo como se formam, na cabeça de cada ser humano, as convicções. Eu vivi a fugir de convicções, mais ou menos profundas, sobre o que deveria ser o mundo e o que deveriam ser homens, convicções essas que a meu ver se tornaram e tornam cada vez mais distantes da realidade que vivo, daquilo que vejo das surpresas boas e más que vou tendo. Nunca entendi, e nunca irei entender, mas admirame que tão pouca gente pense nisso e, pelo contrário, tanta gente continue, depois de um século de tragédia que foi o meu, a querer impor as suas convicções aos outros. Com a declaração de guerra da Alemanha à França, logo em Maio de 1940, a situação deteriorouse para nós. O país – parecia sina nossa – dividiuse em dois. A França ocupada, onde estávamos – e a França de Vichy, de Pétain, colaboracionista com a Alemanha, no sul do país. A isto haveria a somar ainda, como facto histórico hoje já quase esquecido, a parte que foi entregue à Itália. Felizmente, desta vez, estávamos as três do mesmo lado, na mesma casa. Mas o regime de ocupação não era nada brando para os espanhóis – eram mais de 100 mil, segundo mais tarde soube que os boches presumiam todos comunistas. Na verdade, uma boa parte dos espanhóis em França colaborou com a resistência e tiveram o orgulho de formar uma das primeiras divisões a entrar na Paris libertada, após o desembarque da Normandia. Chamavamse Ebro, do nome da última batalha dos republicanos em Espanha. Apesar de terem sido meus ‘inimigos’ na guerra civil, ainda sinto como espanhola orgulho no seu contributo para a derrota de Hitler. 135
Muitos amigos meus, nos anos 50 e 60, quando lhes dizia que tinha apoiado o lado de Franco na guerra civil, presumiamme prónazi na II Guerra. Não foi assim. Se de início eu tendia para os alemães, à medida que fui tendo mais informação fui mudando de campo. Sei que é para muita gente um crime mudar de campo, mas não percebo porquê. Todos nós funcionamos com as informações que temos à nossa disposição e que processamos no nosso cérebro. Por que motivo não havia de ter mudado, quando entendi que o lado alemão era um pavor – sem regras, sem Deus, sem piedade, sem nada que não fosse destruição e alterações brutais de comportamento? … Depois da ocupação alemã, o marido de Henriette, comerciante prudente, foinos dando sinais de que a situação podia não ser a melhor para nós. Sobretudo, após sabermos, ainda que com poucos pormenores, que muito perto de ali, em Hendaye, Hitler e Franco tinham estado reunidos e se falava da possibilidade de a Espanha entrar na guerra, ao lado da Alemanha e da Itália. De Portugal, chegavam as cartas de Concepción elogiando o governo português de Salazar, que mantinha o país afastado do conflito, e falando da barbárie da guerra por toda a Europa, onde incluía, em tom de crítica, a teimosia de Churchill e dos ingleses. Perante tudo isto, mais uma vez, minha mãe me tomou como conselheira, desta vez juntandosenos Pilar. Que faríamos? Descemos as ruas íngremes de Biarritz na direcção da igreja de Sainte Eugénie, perto da Virgem do Rochedo. Ali parámos para rezar. Depois, descemos a longa escadaria até ao porto onde, fustigadas pelo vento nos abraçámos. Minha mãe pôs o seu braço por cima de mim e afagoume o cabelo. Ali estivemos o que me parece hoje ter sido uma eternidade, em silêncio, as três abraçadas e minha mãe afagandonos como se nos pedisse desculpa pela vida que levávamos, por termos nascido, pelo mundo ser assim. Nesse abraço cabia o universo, o nosso universo que era constituído por três mulheres, sobreviventes da família, as que nunca tinham tido que tomar decisões, porque papaíto , Raul, Eduardo, Enrique, sendo homens, decidiam. Esse abraço, cujo significado jamais esqueci, uniunos, fundiunos. Não precisámos de falar para saber que estávamos de acordo. Mamaíta era, então, uma mulher forte, devia ter os seus 50 anos, mais nova do que é hoje minha filha, mas com um peso em cima dos ombros como nem eu sequer alguma vez tive. Continuou a afagarnos o cabelo, uma mão em cada cabeça, puxandonos para ela e sussurrando queridas mías, queridas mías… Ao fim desse tempo que não sei medir, quando já voltávamos 135
a casa da tia Henriette, pareceranos óbvio às três que a balança pendia para irmos para Portugal. Não tanto por nos sentirmos inseguras, embora o senhor da livraria estivesse sempre com o credo na boca, com medo de que os alemães descobrissem as toneladas de livros proibidos que tirara dos escaparates mas mantivera num armazém – e pedindo muito o silêncio de minha mãe, recordandolhe que a ajudara – mas, sobretudo porque sentíamos a incomodidade que o nosso tio, progressivamente, vinha tendo connosco. Esta incomodidade só a entendi muito depois da guerra. O marido de Henriette, o tio George Pardiac, tinha imensas relações com a Resistência e a nossa presença atrapalhava as suas conspirações. Ainda para mais como éramos na altura – já o disse sem qualquer problema , apoiantes de Franco e suspeitamente próalemãs ou pelo menos não antifascistas, uma vez que identificávamos os rojos como o nosso grande inimigo. O senhor Pardiac, comerciante prudente, era lá no fundo um corajoso homem de convicções e, embora muito tolerante, não podia ter o inimigo dentro de casa. Depois da guerra mostroume com orgulho uma caderneta que o identificava como resistente e – mais do que isso – lhe atribuía uma pequena pensão da República Francesa pelos seus préstimos. A despedida não foi dolorosa. À excepção de Yannick, a Madame , de quem fiquei genuinamente amiga e cuja longa e bem sucedida carreira na Universidade de Bordéus acompanhei no pósguerra. Passou muitas férias comigo, aqui nesta casa e, ao longo dos anos, tivemos oportunidade de discutir muitos dos assuntos que iniciáramos em Biarritz. Ao longo da vida, e apesar de só ser sete anos mais velha do que eu, sempre lhe chamei, respeitosamente, apenas Madame . Enquanto os homens se matavam pela Europa fora, interrogavame, juntamente com Madame , que razões levavam a tanto ódio e desamor à vida. Hoje, pelas notícias que sigo com distanciamento, não compreendo confessoo – a cobardia que se apoderou da Europa. Talvez pelo seu passado de guerras, ou quem sabe se pelo seu bemestar excessivo, nós europeus tornámonos um bando de cobardes. O que antes pecámos em excesso, pecamos hoje por défice. Andamos a pedir desculpa pelo mundo, de sermos como fomos; somos atacados e quase pedimos desculpa; queimamnos a bandeiras, cospemnos em cima e nós aceitamos. Talvez fosse isto a que Jesus Cristo se referia quando disse que devemos dar a outra face. Talvez, afinal, sejamos mais cristãos do que nunca… Ou será que vivemos da pura cobardia, daquela cobardia que dá cabo dos impérios, dos costumes, das civilizações. De outras paragens, vêm para nossa casa e recusam 135
comportarse de acordo com as nossas tradições, pelo contrário, impõem as suas. Ninguém mais do que eu odeia a guerra, que a vivi na sua forma mais dramática, que é a da guerra civil. Mas não consigo perceber por que razão, hoje em dia, ninguém se dispõe a lutar por nada, por nada que não seja bemestar ou dinheiro, férias, feriados, pontes. Não há uma ideia – já nem o comunismo que sempre odiei, leva um homem a baterse de peito aberto. É a total dissolução, uma decadência moral só comparável à descrita por Gibbon nesse livro fabuloso de que tanto falei com Madame e que tão pouca gente, infelizmente leu5. O mal dos livros novos é que nos tiram o tempo para ler os clássicos, dizia ela. E tinha razão, a minha querida amiga, Madame , que Deus também já tem com Ele. Hoje, os homens, depois de um século em que se mataram por nada, não vêem nada que valha a sua vida – nem a sua família, nem a sua liberdade, nem a sua casa. Entregamse como cordeiros para o holocausto, sem entender que, aos poucos, vão perdendo o que a humanidade tão dificilmente construiu e conquistou. Que falta nos faz alguém que nos congregue numa causa, numa ideia e com isso nos despertasse. E voltame à cabeça a confusão provocada pela falsa vaga de fundo de há uns anos: tudo o que sabemos, nestes tempos de abundância – em contraste com os anos de escassez que vivemos nas guerras de Espanha e da Europa , tudo o que sabemos fazer é fugir. VII – Pilar O mar voltou a fazer carneirinhos, aquelas pequenas ondas provocadas pelo vento, e eu voltei a lembrarme da Praia de Santa Cruz. Foi coisa pouca o que pude dedicar às minha reflexões, pois Fátima está completamente insuportável, insistindo para que eu vá para o duche. Ora eu senteime aqui a tomar o pequenoalmoço e não me apetece ir para a casa de banho para ser esfregada e escovada como uma cadela. Compreendo, até, que isto pudesse ter uma carga erótica, se eu tivesse menos 30, ou mesmo, 20 anos. Mas hoje em dia não sinto nenhuma vontade de me lavar. Mas fui obrigada – literalmente – a entrar em casa outra vez, 5
A História do Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, escrita entre 1776
e 1778
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deixarme despir e meterme no duche, com uma touca ridícula, com florezinhas de plástico. Fui esfregada pela imbecil, que fala comigo como se eu tivesse cinco anos, e a quem eu respondo como se tivesse 10, de forma impertinente e maleducada. É uma espécie de jogo que eu também jogo, porque me dá a vantagem de não ter de fazer nada. Descobri isso há pouco tempo, quando a idiota disse à minha filha – coitadinha (eu) já nem a mesa levanta. Ora, sempre me irritaram as tarefas domésticas e se as fiz durante toda a vida foi com a mesma resignação que reuni para fazer e tratar de tantos assuntos diferentes. Por isso, deixome ir, façome de mais desmiolada e esquecida do que na realidade sou. No fundo, utilizo a mesma estratégia do que as crianças – posso ser mais ou menos responsável consoante me apetece; se quero humilhar a desgraçada que me atura, sobretudo quando ela me vem com as conversas do namorado, sou uma senhora; se não quero tomar banho ou fazer a cama, sou uma criança. As constantes conversas de Fátima sobre o namorado, sem ela o suspeitar, magoamme mais do que as da idade ou as que começam por coitadinha. Foi essa capacidade de amar, de ter prazer, de ter sexo, o bem mais precioso que já perdi. Assim quando me dá para a humilhar, não faço nada, não tomo conta de nada, nem das minhas necessidades. Transformoa naquilo que eu imagino ser uma escrava de Cleópatra ou de Agripina… Deus me perdoe, mas sintome melhor enquanto o faço, embora depois possa ter remorsos. Mas não era assim com o sexo? Esta visão utilitária – digamos assim, para não lhe chamar profundamente egoísta – do sexo e do prazer aprendiaa, ou melhor dizendo, tomeia primeiro de Pilar e depois de Artur, que foi meu psiquiatra. Ah, sim eu era ingénua quando me casei e penso que Pilar também. Mas ela cedo aprendeu a viver, não teve outro remédio senão fazêlo, em parte para meu desgosto. E agora, que estou sentada de novo em frente ao mar e que a memória de minha irmã me chegou repentinamente, lembrome outra vez de Santa Cruz, onde o meu cunhado tinha comprado uma casa, mesmo em frente ao mar, numa subida íngreme da estrada que vai na direcção do Vimeiro. O mar de Santa de Cruz é como o mar aberto de La Toja, ou o mar de El Ferrol. É forte, bate com estrondo na areia e de noite faz um rugido cavo, como um baixo contínuo numa obra musical renascentista. A espuma das ondas, depois de estas baterem nas rochas, elevase muitos metros provocando uma chuva fina, salgada, muito refrescante – pese o facto de naquela praia raros serem os dias em que precisamos mesmo de nos refrescar. A casa era simples, pintada de azul, com dois pisos. E como Juan Luís me disse a mim e ao meu marido no dia em que nos mostrou a casa recémcomprada – um dos quartos estava sempre 135
reservado para nós os dois. Ali passámos muitos finsdesemana, primeiro os quatro, depois já com os nossos miúdos. Pilar tinha casado pouco depois de mim, numa cerimónia ainda mais despretensiosa e simples. A grande diferença é que minha mãe chorou a sua solidão, embora tivesse o encosto da mana Concepción e – por pouco tempo, é certo – do seu cunhado e nosso tio, o médico com quem embirrei tanto e com o qual só fiz as pazes no dia do seu enterro, quando de mim para mim me chamei injusta por querer mal a quem nos tinha feito tanto bem. Pilar e Juan Luís pareciam um par ideal. Ambos eram divertidos, desprendidos, aventureiros, vivos, rápidos, inteligentes. Eu e Juan Miguel – mi Juanito – chegámos a invejálos. Mas passados uns anos, num dos finsdesemana que passámos em casa deles, comecei a entender que talvez não fosse bem assim. E foi num desses dias que, passeando as duas na praia – lhe perguntei directamente o que se passava. Pilar nada me disse. Apenas que não era nada, que eram coisas sem importância. Quem conhece o que é a intuição feminina sabe, porém, que nós sentimos fisicamente a dor de outra pessoa, se a amarmos. Eu sentia essa dor em Pilar e não lhe dei descanso até que ela me revelasse tudo o que lhe ia na alma, o que a apoquentava. Com a velhice podemos aprender que não vale a pena sabermos tudo; que há coisas sobre as quais é preferível mantermos a ignorância. Naquela idade, no entanto – com pouco mais de 30 anos –, esperamos sempre consertar o mundo, como se ele girasse há milhões de anos e fosse habitado por homens há centenas de milhares com o único fito de esperar o nosso nascimento, ou o nascimento da nossa geração para o emendar. E foi movida por esse entendimento, de que eu poderia ajudar a curar o mal que afligia minha irmã, que nos nossos passeios pela areia grossa da praia em Santa Cruz insisti diversas vezes em saber o que tinha ela. Até que um dia, sem mais, diante de uma torre patética ali construída não se sabe bem por quem, ela me disse, primeiro de forma que nem percebi, depois com a cara virada para o mar e não para mim, como se tivesse uma imensa vergonha das suas próprias palavras: Ele é invertido. O quê? – Perguntei eu Que va , estás a gozar comigo…
Sabes que dice el marica – que cada uno se rasca donde le pica… . E, como que recomposta, Pilar fitoume nos olhos, subitamente. Os seus grandes olhos verdes, com um misto de desprezo, gozo e sofrimento. E repetiu o refrão: Cada uno se rasca donde le pica. Así és, mana! Fiquei literalmente sem palavras e fui andando na direcção de uma grande rocha furada pela água do mar, parecendo um enorme 135
arco do triunfo natural, que ali chamam penedo do Guincho. Pilar sentouse na areia, atirando pedras para a água. Passados uns instantes voltei para junto dela. E então? Pues, nada . Nada mesmo, não desenvolve. É fachada, percebes, fachada. Não lhe permitem subir na carreira se ele não casar, se não der o ar de não ser homossexual… E achas que ele não se cura? – Perguntei ingenuamente… Que cura, mana! Ele é assim. Assim mesmo, invertido. É uma mulher, gosta de homens, não tem cura. Mas é tão bom para mim – digo como amigo. Faloume longamente… Mas enganoute quando se casou contigo… Não sei, ele sempre me disse que não estava interessado em sexo, mas eu achei que era de cavalheiro, caramba ele tem quase mais 15 anos do que eu e pensava que era da idade… que lhe estava a passar o fulgor. Afinal gosta de rapazinhos. E não se importa que eu os tenha. E tu alinhas nisso, Pilar? Eu estava perplexa… Cada uno se rasca donde le pica . E a mim picame, mana. Tenho vontade, tenho sonhos, que heide fazer, falo com quem? Não digas à mãe! Estás louca, à mãe, nunca! A sério, eu gosto de Juan Luís, ele é um amor. Mas também não quero dar escândalo, não sei o que fazer. Se me confesso, o padre recomendame abstinência… A menos que te queira para ele – disse eu com um sorriso… Só me faltava essa – rematou Pilar. E voltámos a caminhar, agora no outro sentido, como se nada mais tivéssemos para dizer sobre aquela revelação cujas ondas de choque não conhecia ainda inteiramente, mas que me provocariam muitos mais dissabores do que no momento avaliei. Ninguém, no entanto, sobretudo no princípio dos anos 50 do século passado, estava preparado para uma verdade, que não obstante é tão simples, como a que Pilar me disse. Ele é assim, não tem cura, nem emenda. É uma mulher, gosta de homens e anda comigo para disfarçar, por causa da carreira, por causa do Nicolás Franco e dos colegas todos da diplomacia, onde aliás a mariquice, dizia Pilar, é quase uma vulgaridade. Só comentei esta história com Juan Miguel, mas até disso me arrependi pois notei que a sua atitude para com Juan Luís mudou um pouco, tornandose relativamente mais distante, mais reservado – embora ele não o quisesse admitir. Depois contei a Yannick, numa altura em que nos veio visitar, para celebrarmos a sua entrada no quadro de professores da Universidade. Foi 135
Yannick quem, uma vez mais, me deu os melhores conselhos. Não deves ser intolerante, disse ela. Afinal o teu cunhado não escolheu ser como é. Se o esconde, é porque o facto de o ser – incrivelmente – prejudica a sua carreira. Não faz sentido que o persigam ou impeçam de fazer o que gosta pelo simples facto de o seu corpo ou a sua cabeça preferir homens a mulheres. Mas ele enganou Pilar, objecteilhe. Não querida, Pilar quis ser enganada, ela própria to disse. Pilar achou que podia ser uma boa troca – uma boa vida, com o pequeno senão de o marido ser homossexual, com a vantagem de ela manter toda a liberdade. É claro que pode estar arrependida, podem fazerlhe falta determinados condimentos essenciais do casamento, como, por exemplo, ter filhos. Foi com Madame que percebi a diferença e até a dignidade que pode existir na homossexualidade. Foi com ela que a aceitei como um facto a que temos de nos resignar como natural, ainda que nos possa causar inicialmente repulsa. Durante grande parte da minha vida, em todas as conversas a que assisti sobre o assunto, ocultando embora a história privada de meu cunhado, defendi a liberdade de os homossexuais terem os mesmos direitos que os heterossexuais. Lembrome bem de, após o 25 de Abril em Portugal, ter defendido com vigor que essa era uma questão privada, com a qual o Estado, as empresas, a sociedade em geral nada tinha a ver. E mantive esse ponto de vista, contra a opinião da Igreja Católica à qual nunca deixei de pertencer. Porém, a banalização actual da homossexualidade irritame. Por que motivo hãode eles ter orgulho nisso, como se eu tivesse orgulho heterossexual e fosse para rua – refirome a quando ainda era nova – beijar homens e exigir que respeitassem esse meu beijo? Por que motivo aqueles que queriam direitos iguais, querem agora direitos diferentes, como por exemplo forçarem uma alteração abstrusa do significado do casamento, que é obviamente um assunto de sexos diferentes, que se podem reproduzir, e não de pessoas do mesmo sexo? Por que motivo nos exigem mais e mais? Como os republicanos que na república exigiram o fim da Igreja e com isso desencadearam um movimento de reacção estrondoso em Espanha, também os homossexuais de hoje esticam a corda. Espero que a intolerância – nem a deles, nem a dos outros – venha a vencer. Mas a minha experiência pessimista levame a crer que, ou uma ou outra acabará por imporse. A vida parece odiar a moderação e o bom senso… Minha irmã foi mudando de atitude, à medida que o seu marido deixava mais clara a sua orientação. Passou a aparecer, mesmo à minha frente, com namorados ou amantes, coisa que não me agradava nada. Houve um tempo que, das pessoas que nos 135
eram mais próximas, apenas minha mãe e a minha tia Concepción, para além dos meus filhos, como é óbvio, pareciam não conhecer o segredo de Juan Luís. Uma noite, em Santa Cruz, em que tínhamos todos bebido demasiado e que Pilar estava com um dos seus amigos, Juan Luís atiroulhe à cara algumas palavras desagradáveis. Eu, que estava sozinha, pois mi Juanito tinha ido ao Algarve (coisa que nesse tempo era quase uma aventura) tentei chamálo à razão. Pilar e ele estavam casados ia para 10 anos e, bem ou mal, o segredo existia e estava guardado. Pilar divertiase com os seus amigos e as conveniências estavam salvaguardadas. No fundo, nem eles, nem eu, nem ninguém que fosse seu amigo, pretendíamos mais ou menos do que isto. Era a hipocrisia, dirão, mas a hipocrisia é um dos cimentos da sociedade. O contrário da hipocrisia é atirarmos com as nossas convicções, os nossos pensamentos mais profundos, os nossos vícios e os nossos desvarios à cara dos outros e tornar a vida em comum impossível para todos. Tentei acalmálo, mas não consegui. Ele chamou vários nomes à minha irmã e disse claramente que sabia da relação dela com o amigo – mais tarde vim a saber que o amigo de baixa extracção estivera também na mira dele e acabava por ser esta tragicomédia barata a origem da discussão. Em qualquer ponto, Pilar chamoulhe paneleiro. És um paneleiro velho, não tens préstimo, não agradas nem a homens e menos ainda a mulheres – foram estas as suas palavras impiedosas. Caiu um silêncio pesado sobre a casa. Juan Luís bebeu um copo de uísque até ao fundo e saiu porta fora. E não voltou. De manhã, já um pouco acalmados por uma noite mal dormida, tivemos a notícia: Juan Luís atirarase do alto da Riba Amarela para a praia, uma queda de 20 ou 30 metros. Estavam à espera do delegado de Saúde lhe passar o atestado de óbito e o retirarem das rochas onde tinha caído, segundo nos disse um agente da polícia. Consegui telefonar para o Algarve, dando a notícia horrível a Juan Miguel. Este teve a maior calma do mundo. Telefonou ao embaixador, Nicolás Franco, que teve artes de encobrir o sucedido. Viviase, na altura, em Portugal, um período conturbado – um general, Humberto Delgado, exadepto do salazarismo candidatavase para acabar com ele. A imprensa estava entretida e a polícia local, bem como o Delegado de Saúde e o Hospital de Torres Vedras, onde foi feita a autópsia, receberam ordens para abafar o caso. No Portugal de então não havia homossexuais, nem suicídios nem nenhuma dessas vergonhas… tudo era falsamente limpo e perfeito. E assim ficou. 135
Pilar teve um longo período de depressão, responsabilizandose pelo suicídio de Juan Luís. Eu, enquanto pude, tentei contrariar essa ideia, mas os acontecimentos haviam de evoluir para nos separar ainda mais… Pilar, viúva, sem filhos, aos 35 anos, tinha todas as condições para ter uma vida complexa, difícil. E assim foi, infelizmente. Às vezes penso que há locais no mundo onde temos como destino ser infelizes, como haverá aqueles em que temos como destino ser felizes. Nesta casa, aqui, em frente ao mar, fui quase sempre feliz e, mesmo agora, que contemplo os carneirinhos que o vento de norte provoca no mar, não posso dizer que sou infeliz. Sou limitada, um pouco surda, emperrada, incapaz de fazer muitas coisas de que tanto gostei. Mas se atender ao longo período que já vivi – 88 anos – não me posso queixar demasiado das marcas do tempo. Já em Ayllón, recordome de ser infeliz, por estar longe de minha mãe, como me recordo da infelicidade de Biarritz na despedida de Yannick e na tristeza profunda que vi no abraço que nos enrodilhou, às três sobreviventes da família. No entanto, de um e de outro local, tenho saudades, não pelo que vivi, mas pelo facto de então ser jovem, ter ilusões e pensar que o mundo melhoraria. Se há um sítio, porém, onde nunca fui feliz, foi Santa Cruz, onde se matou o meu cunhado e onde morreria o meu querido filho Luisito – por sinal afilhado de Pilar e do seu marido Juan Luís, como se o nome comum os destinasse a uma morte a poucos metros um do outro. Mas Luisito morreu num repente, inocente e criança, quando eu nem sequer estava presente. Não, não tenho a menor saudade daquela praia, nem daquele mar. E talvez por isso há dias, num sonho, eu tenha gritado àquelas ondas que não seriam elas a levarme. 135
VIII – Neblina Hoje caiu uma triste neblina sobre o azul do mar. Tudo se tornou cinzento, sem distinção; as cores mescladas, fundidas e os elementos esmagados uns nos outros, como a plasticina quando é misturada. Daqui, de onde estou, apesar de não distar mais de um quilómetro, não consigo ver com clareza o contorno da capela da Nossa Senhora da Rocha. E, curiosamente, ao pensar nesta dificuldade em ver a capela, lembrome que esta Nossa Senhora portuguesa, que sempre morou aqui ao pé de minha casa, é, ao fim e ao cabo, a mesma Vièrge du Rocher que tanto me marcou em Biarritz. É interessante como os idiomas podem afastar os conceitos, ou aproximálos, consoante o nosso estado de espírito. Com um dia cheio de luz, esta Nossa Senhora parece tão distante daquela virgem solitária, no alto de uma rocha em Biarritz, como a terra dista da lua. Mas num dia de névoa, em que o mistério das sombras substitui a luz viva natural do Algarve, não restam dúvidas de que são não só fruto da mesma crença, como a mesma Nossa Senhora, o mesmo fenómeno, o mesmo temor dos naufrágios que estará na sua origem. A névoa incomodame, trazme à memória tempos diferentes, não os da guerra em que a incomodidade era exterior a mim, mas os da doença em que a ameaça vinha do meu interior – são tempos piores, porque toda a reacção se torna penosa, lutamos contra nós próprios, contra o nosso corpo, contra o nosso destino. Cheguei a Lisboa no Inverno de 1940, depois de uma viagem interminável num comboio proveniente de Madrid cheio de fanfarrões portugueses que tinham ido endeusar Franco em mais uma manifestação ao generalíssimo e diziam ter combatido ao seu lado, na guerra civil. À medida que a noite cobria as carruagens da composição, uma tosse violenta abalavame, um cansaço inexplicável abatiame e um frio que me gelava até aos ossos entranhavase em mim, tão violentamente que me impedia de fazer outra coisa que não fosse encolherme contra o banco de pau, que era o conforto da altura. O frio era diferente daquele que passara na serra, um frio de dentro para fora, intenso e irremediável que não saía do corpo por mais mantas e camisolas com que nos cobríssemos. A viagem foi penosa e chegámos à capital portuguesa, eu minha mãe e Pilar sem que eu tivesse qualquer noção temporal ou espacial. Na verdade, não tive consciência da viagem, nem da chegada a casa de minha tia Concepción. Apenas que ela me recebera dizendo 135
que eu fizera mal em não ter ido para Lisboa mais cedo, acolhendo os seus conselhos que me chegavam por carta à serra de Ayllón. Em casa, fui observada por meu tio, que me encostou um estetoscópio frio às minhas costas e me auscultou demoradamente. A primeira coisa que disse foi que eu necessitava de estar isolada de minha mãe e de minha irmã, pois padecia, quase de certeza – e o diagnóstico veio a confirmálo – de tuberculose. As causas eram diversas, da má alimentação ao frio da serra, a sabese lá o quê (vim a saber, depois, que a minha amiga Elena, em Madrid, padecera do mesmo mal, mas que, tal como eu, ficara curada). Talvez fosse este, inconscientemente, o motivo por que injustamente achei que meu tio não nos recebera bem. Em retrospectiva, tenho de reconhecer que a forma como procedeu foi de modo a salvarme. A tuberculose ainda hoje é uma doença grave, mas há 70 anos erao bem mais, tanto assim que os antibióticos não existiam ou não estavam disseminados. Meu tio colocoume numa casa em Vale de Lobos, perto de Sintra, onde uma senhora muito religiosa tomou conta de mim e restringiu as visitas de minha mãe, de minha irmã e de minha tia. Para mim, aquilo era o Inferno. A doença, provocavame uma fraqueza extrema e uma tosse cada vez mais cava e incomodativa, já acompanhada de expectoração com sangue. O isolamento e o meu débil conhecimento da língua portuguesa, que me impedia de perceber muitas coisas que a senhora da casa me dizia (acho que o seu nome era Noémia, mas tal como o nome de meu tio se me escapou e já não tenho ninguém a quem perguntar, assim se foi o desta senhora), tudo isso me desesperava. Comecei a empreender que iria morrer em breve. Nesses dias difíceis de Vale de Lobos convencime profundamente de que a minha hora estava a chegar – hoje acho irónico que tenham passado quase 70 anos, o tempo de uma vida, sobre esse meu desespero. A convicção da morte trouxeme reflexões cinzentas, nevoentas. Para que tinha eu sobrevivido a meu querido pai e irmãos, para tão ingloriamente falecer quando, finalmente, parecia ter alguma segurança na vida? Por que razão não tinha, apesar dos meus quase 20 anos, conhecido um homem de quem gostasse, salvo a meninice com Carlos, se o meu destino era acabar ali, naquele buraco por detrás de um monte, numa zona então erma e afastada, e ao que dizia o meu tio com muito bons ares? Que propósito poderia haver na minha vida, se nada tinha feito de valioso, ou mesmo de ignominioso – nada, apenas um nulo absoluto de vida, em que comecei por andar de um lado para o outro, atrás da família, estive três anos de frio e guerra em Ayllón, e terminei a fugir, para Biarritz e depois para Lisboa? 135
Rezava muito por esses dias, e de então me ficou a convicção de que cada um de nós tem o seu modo de chegar a Deus. Embora meu tio providenciasse para que eu fosse visitada por umas irmãs de caridade que me levavam – como elas diziam – o conforto da palavra do Senhor, a verdade é que, no âmbito da minha introspecção antemortem chegara a algumas conclusões que hoje reconheço bastante heréticas, embora continuem a ser, desde então, o farol da minha vida. Comecei justamente por me interrogar por que motivo Deus – no meio da tragédia que percorria o mundo – estávamos em plena II Guerra Mundial – se havia de preocupar particularmente comigo. Porquê? Quem era eu no desígnio universal para merecer um único átimo de atenção de Deus TodoPoderoso? Mas, se Deus não me podia dar atenção, tendo em conta o que então se passou, de Inglaterra ao Norte de África, da Ásia ao Pacífico, qual o sentido de eu lhe fazer qualquer pedido, como por exemplo me recomendavam as irmãzinhas? Não estaria – caso Ele desse atenção aos pedidos humanos – a desviar, até, a Sua vigilância dos assuntos bem mais importantes, como o de decidir que mundo teríamos doravante? E cada soldado que caía ferido – e quantos cairiam naquele momento? – e cada judeu deportado – e quantos o estariam a ser naquele momento? – e cada criança famélica na Europa central, e cada família com o lar destroçado por uma bomba, e cada mãe sem notícias do filho ou do marido, e cada resistente torturado – e quantas pessoas seriam ao todo, senão quase toda a população do mundo? – não teriam o mesmo direito do que eu, a um átimo da atenção de Deus para Lhe pedir que olhasse por eles e pela sua causa, desde que estivessem convictos – como eu, por mim estava de que o sofrimento que lhes estava a ser infligido era injusto, senão inútil? Deus, tal como comummente olhamos para ele, não será apenas um prolongamento do nosso ego? Digo mais do nosso interesse mesquinho? Do facto de acharmos normal teremos direito a um demiurgo que se preocupe com o nosso pequeno problema, com o nosso modesto desígnio? Que Deus seria este que, apesar de Omnipotente, Omnipresente e Omnisciente estaria atento à minha tuberculose, ao problema da minha tuberculose numa pequena casa perto de Sintra, quando todo o Mundo estava em jogo? E que sentido teria dirigirme eu, em cânticos e em mau latim, a ele e à Virgem Maria, sua nora, ou sua mãe – facto que a doutrina não deixa entender claramente – Salve Regina mater misericordiae, vita dulcedo et spes nostra , etc? Comecei nessa altura a pensar – e mais tarde, com Yannick, a minha Madame , reforcei essa convicção – que Deus não era Alguém, mas Algo. Algo que não necessitava de orações precisas, nem de intermediários claros. Era Algo que faz parte da nossa consciência individual. Se eu resistir à tuberculose, em nome 135
desse Algo individual, façoo porque entendo que vale a pena eu viver e dar testemunho desse milagre que é a vida. E não porque rezei a Alguém sobrenatural e, de forma egoísta, lhe pedi que me salvasse para eu lhe pagar depois em devoção. O Algo – que eu não sei explicar devidamente o que é – faz parte do mundo, não é do Outro Mundo. Faz parte de nós, mas énos exterior porque talvez haja um pouco desse Algo em cada um de nós, só o conjunto do que há em todos faz sentido e se completa. Esse pedaço que cada um de nós tem – a alma, se quiserem chamarlhe assim , a parte imaterial do nosso ser, é a motivação da existência, da vida. Eu penso assim, mas há quem pense que nem esse pedaço existe. Estou tão longe desses, como dos beatos… A religião passou, para mim, a ser uma coisa muito séria, mas muito pessoal. Deixei de acreditar na Igreja como intermediária entre mim e Deus e na parte do Credo que se diz sanctam Ecclesiam catholicam ainda hoje entaramelo a língua, porque não gosto de jurar, perante ninguém, acerca de coisas que não cumpro. De qualquer modo, para desespero da minha filha, que se sente na obrigação de me levar todos os Domingos, não perco uma missa. Aceitoa como se aceitam os rituais de comunidade, onde quer que se esteja. Se eu vou passar um fimdesemana a uma casa onde se janta às sete da tarde, é a essa hora e não a outra que janto. Da mesma forma que se eu vivo numa sociedade em que se aceita que Deus é encontrado entre quatro paredes e se come a sua carne através da transubstanciação da hóstia, eu participo nessa cerimónia, embora com o meu entendimento próprio daquilo que o acto significa. Além de Yannick, apenas Juan Miguel e mais recentemente talvez Madalena, entenderam inteiramente o que queria dizer o meu Algo, em vez do Alguém. E apenas Yannick me fez uma objecção profunda à minha estranha teoria. Tu podes – dizia ela – pensar assim, porque és uma santa e Deus perdoate. Mas, para a maioria das pessoas, se Deus não existe, tudo é possível, todas as barbáries. Lê Niestche. Eu concordei. Eu sei que o agnosticismo é um luxo dos ilustrados, que infelizmente, ao espalharse pela sociedade, tem feito muito mais mal do que bem. Se é certo que acabaram as beatices que também a mim me incomodavam, com isso acabou o respeito pelo próximo, o medo de proceder mal, o medo do fogo eterno. A própria Igreja pede hoje desculpa pelo que fez no passado – e não sabe quem pedirá desculpa aos tantos que, no passado, fizeram coisas erradas por pensarem que elas eram certas, uma vez que a Igreja o recomendava. Quem perdoa ao carcereiro, ao torturador, ao carrasco que acendia a fogueira da Inquisição com a convicção de que obedecia com escrúpulo à vontade de Deus? Estas pessoas, que foram reais, que foram como nós, são esquecidas. Mais uma vez falamos de instituições, não de 135
pessoas, e como sempre esquecemos que foi gente real, com os defeitos e qualidades da gente real, quem fez as instituições. Presentemente, a Igreja passa por uma crise imensa e eu modestamente penso que é melhor ela existir do que não existir. Se me querem identificar, ainda que de forma não precisa, que me confundam com uma crente da Igreja Católica e não com uma agnóstica ou uma ateia, que não sou – longe disso. Assim, nesses tempos de Vale do Lobo, à medida que o meu corpo vencia a tuberculose, eu rezava em mau latim a esse meu Algo interior, talvez parte de um algo comum que todos temos, que me desse a coragem e a vontade de sobreviver, de casar e de ter filhos. De amparar minha mãe de guiar, quanto possível os passos de minha irmã mais nova, as três sobreviventes da recente carnificina da guerra espanhola. As irmãzinhas admiravam o meu fervor e eu – já nessa altura – não me importava nada de as deixar enganadas. A pouca gente confessei este meu íntimo convencimento. Mas mais difícil é explicar às pessoas novas, à minha filha – a única que me sobra – à minha Madalena, a meus netos e a meus genros a necessidade de termos um Deus, que nos guia nos momentos de aflição, que nos dá forças quando sofremos e que nos ensina a resignarmonos quando já não nos resta nada a fazer. A recorrer a esse suplemento de energia, a esse Algo de quem agora depende a minha vida nesta idade avançada e que não é outro Ser senão aquele que nos leva a ser melhores, a ser mais perfeitos e, por fim, nos ensina a morrer, que é o objectivo último de todos os grandes pensamentos, o objectivo último da filosofia. Menos de três meses depois de ter ido para Vale do Lobo, cureime. Meu tio pareceu entusiasmado pelas melhorias rápidas e deu ordem para que pudesse voltar a casa, onde estavam acomodadas Pilar e minha mãe. Voltei para partilhar o quarto com minha irmã. Era um quarto que dava para uma das ruas do Bairro Alto, perto de casas de fado e de pensões de mánota. Mas aquele prédio era simpático, as divisões amplas e a luz, apesar de tudo, entrava sem restrições. Fazianos lembrar a casa de Madrid e acabámos por dispor o quarto tal e qual o tínhamos em Espanha, de tal forma, que às vezes pensava que meu pai, ou um irmão meu, poderia entrar pela porta para nos falar, como se pudéssemos andar para trás no tempo. Para nos instruir e para nos apresentar à sociedade, como então se dizia, a minha tia feznos membros da Corte de honor de la Virgen del Pilar algo que minha mãe e ela própria levavam muito a sério e para a qual pagavam uma quota relativamente 135
grande. Nós aceitámos de bom grado esse encargo, embora pelo meu lado houvesse alguma hipocrisia, depois da minha conversão de Vale de Lobo, a que Pilar, sempre muito mais prática, respondia: Olha, não vejo diferença nenhuma entre isso que dizes, o que eu penso e o que diz o padre na missa. Tratase de acreditar ou não. Tu acreditas, não é? É isso que preciso! Passámos, pois, a frequentar as missas da Beneficência Espanhola e movimentarnos no pequeno círculo de espanhóis que então existia em Lisboa. Aos poucos, tal como acontece com o dia de hoje, o cinzento iase dissipando e o azul voltava aos céus. Mas eu já era outra – tão longe da criança de Pontevedra e da menina da Ayllón, como a lua está distante da terra. IX – Luisito Para lá dos sulcos dos pequenos barcos de recreio e daqueles de pesca que um pouco a nascente de minha casa apontam as proas ao areal e investem contra ele até encalharem, para depois um tractor os puxar praia acima, onde um magote de gente rodeia e observa o peixe recém pescado, bastante mais longe do que estas pequenas embarcações, avisto na linha do horizonte um enorme navio. Tenho dúvidas de que seja, realmente, um navio, ou apenas 135
a forma de um navio que caprichosamente algumas nuvens tomam. Não é o Holandês Voador6 que ganha forma à minha frente. Este navio que eu vejo nas brumas do mar não é um veleiro, mas sim uma enorme nave de guerra, com a proa e a ré a desfazeremse nas brumas, mostrando, porém, os seus canhões apontados para terra. Pensando melhor, não pode ser verdadeiro, não me consta que nenhuma marinha do mundo tenha barco tão grande, maior do que os maiores petroleiros que por aqui passam… Pode ser, de facto, um naviofantasma, não me custa a crer. Quase todos os dias eu própria dialogo com um fantasma, que me assombra há quase 50 anos e do qual nunca pude nem me quis despedir. Não gosto de pensar nisso, não gosto de falar nisso, não gosto, sequer, de debater o seu significado. O que melhor descreve o meu sentimento sobre o episódio são os versos de Machado Caminante no hay camino sino estelas en la mar . E eis porque a palavra estelas, que em espanhol ou no meu espanhol! –, significa os sulcos de espuma que os barcos deixam na água, me lembra sempre o meu filho Luisito. Ele não teve caminho, nem passos, nem quase deixou marcas, sulcos ou traços da sua passagem, senão em mim, que vivo por ele e lhe mostro o mundo, as suas belezas e as suas misérias, e o deixo conhecerme a mim própria como mais ninguém me conhece… provavelmente nem eu. Foi na maldita – maldita para mim, Deus me perdoe porque será abençoada para tantos –, Praia de Santa Cruz. Tudo se passou naqueles dias terríveis em que o mundo parece conspirar maldosamente de modo a que uma sucessão de desgraças nos aconteça. Sucessão de desgraças é, porém, uma expressão suave para descrever os dias horríveis que na época vivi. Tinha discutido com Juan Miguel. Na altura, rodeada pelos meus três filhos, Anita, Luisito e Maria, tinha uma vida muito ocupada com as crianças. Anita teria 11 anos, Luisito 9 e Maria uns seis ou sete. Meu marido tinha negócios aqui e ali e nem sempre estava em casa. Ora, foi nessas circunstâncias que eu descobri – embora a palavra suspeitei seja mais honesta, gosto de me convencer de que descobri – que Juan Miguel me enganava com alguém. Mal sabia, então… Não há qualquer sentido em tentar confirmar uma suspeita que, a ser verdade, não nos trará nada de bom e sobre a qual já nada poderemos fazer. Na altura, lembrome de me questionar muito sobre isso. Para que queria eu ter a certeza se Juan Miguel me tinha traído no passado recente? Que poderia eu fazer a esse respeito? Que remédio, que defesas poderia erguer para evitar o 6 Barco fantasma lendário que jamais pode chegar ao porto, destinado a vaguear pelos oceanos, recorrentemente avistado por marinheiros.
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que já acontecera, o que já era passado, salvo a impossibilidade de remontar no tempo e fazêlo andar para trás? Não seria mais sensato calar e tomar medidas, sim, mas para evitar que ele o pudesse fazer no futuro, deixando inconclusiva a suspeita sobre o passado? Que razão nos leva a querer saber o que nos magoa, nos violenta, nos amesquinha e nos desilude? Que masoquismo estranho se apodera de nós, para nos ferirmos quase até à exaustão. Os franceses têm um provérbio que me agrada: se os velhos pudessem e se os novos soubessem… Pois eu ainda era relativamente nova e não sabia. Corri atrás da suspeita, quase torturei o meu marido com perguntas, com pequenas armadilhas e, no fim, exausto, ele confessou o pecado passado e, como bom marido, prometeu solenemente, não o repetir. Para selar o acordo e renovar o amor a tragicomédia a que sempre se recorre nestas alturas decidimos ir os dois de férias sozinhos. Minha irmã prontificouse a ir para Santa Cruz com nossa mãe e levar os meus três filhos com ela. Nós próprios os fomos instalar nesse fimdesemana, posto o que partiríamos de carro para a Catalunha, numa viagem de quase um mês durante a qual visitaríamos a Andaluzia, Valência, Barcelona para, finalmente, chegarmos a Palamós, terra de onde era originária a família de Juan Luís e onde ficaríamos uns dias, naquela praia quente e agradável do Mediterrâneo. Em face do sucedido, a traição de Juan Miguel pareceme hoje tão insignificante como uma gota de água que se deixa cair ao chão. Mas nessa altura, esquecida das brutalidades que foram na minha vida a guerra e a doença, afiguravaseme aquela pequena traição como o cerne da minha existência. Ia confiante na reconquista de Juan Miguel, como se isso fosse verdadeiramente importante. A nossa primeira etapa seria em Badajoz e foi no hotel que tínhamos reservado que Juan Miguel, depois de falar com o recepcionista, se virou para mim com um ar que nem consigo descrever, e disse: Parece que aconteceu algo muito grave com o nosso Luisito! Nunca mais vi meu filho. Voltámos para trás, no mesmo dia, na mesma hora. Quando chegámos, minha mãe, com aquela força que ganhava nos momentos mais complicados, tinha resolvido quase tudo, uma vez que Pilar, atarantada, não fizera mais do que atrapalhar e cuidar de Anita e de Maria. A cena fora terrível. Uma bola com que os miúdos brincavam passou por cima do murro do quintal e caiu na estrada. Luisito, correu atrás dela, Anita ainda lhe gritou para ter cuidado, mas nesse mesmo momento uma camioneta de passageiros embateu contra o corpo do meu querido filho. Anita foi para dentro, 135
chamar a tia, aflita porque Luisito não se mexia, parecia morto, gritando que tinha sido a camioneta. Pilar e minha mãe, já alertadas pelo barulho da travagem e pela algazarra histérica dos passageiros, temeram o pior – o que aconteceu. Minha mãe, em comunicação com Juan Miguel tratou do funeral. Só vi o pequeno caixão que levou o seu corpo para sempre. Nada mais. No final, o gatopingado da agência deume uma pequena chave, que penso era do próprio caixão – não consigo convencerme que os caixões precisem de chaves – e eu deiteia fora. Nunca mais visitei a sua campa rasa no cemitério de Lisboa onde foi enterrado, sempre entendi que não era lá a sua casa. Como o não era a minha casa, pelo que pedi a Pilar que me tirasse da vista tudo o que fazia recordar Luisito: as fotografias, a sua roupa das gavetas, os seus brinquedos, os seus pequenos desenhos, as suas lembranças. Mas, desde então, nunca mais deixei de falar com ele! Luisito representa o meu filho perfeito, aquele que seria exacta e completamente o que eu desejava ter como filho. Dentro de mim nunca morreu e viverá comigo enquanto eu tiver memória. Senti uma imensa dor, uma tristeza profunda, mas não verti uma lágrima. As minhas filhas Anita e Maria choraram por mim. Nas lágrimas delas vi as minhas, nas suas expressões de dor, fezse a minha. Eu tinha de ser forte nos momentos difíceis, como minha mãe. E fuio, como ela, e tantas vezes pensei nela, que perdeu três filhos em menos de um ano, para se dedicar às duas sobreviventes – eu e Pilar – de alma e coração. Também eu fiquei com as minhas duas filhas, numa repetição irónica e dolorosa da nossa história familiar. Há dois ou três anos fui ao funeral do filho de uma conhecida minha, uma vizinha um pouco mais nova do que eu. Apesar do filho ter cerca de 60 anos, a senhora, desconhecendo a minha vida, entre lágrimas, perguntoume: Por que razão chego eu a velha, para ver o meu filho morrer? Mais valia ter ido antes. Deilhe razão, mas não lhe quis contar que tinha passado por isso – ó sim, passado e mais do que uma vez, como se o destino de minha mãe se repetisse em mim. De facto, não há e não é possível conceber dor maior do que a da perda de um filho. Há uma canção brasileira em que se diz, precisamente, que saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu. Foi para não passar por essa saudade, por essa tremenda consciência da perda, que eu pedi que desmanchassem todos os sinais de Luisito, ficando apenas com eles na minha memória. Às vezes, neste hábito corrosivo de pensar, que a mim própria me imponho, imagino como seriam as mulheres do passado; que sentiriam elas quando a morte de um filho era um facto normal da vida. De sete, oito, nove filhos, a doença, a guerra, o que fosse levava cinco ou seis. E as mulheres, por muita dor que sentissem, 135
continuavam a parir, a viver, a dar e a receber amor àqueles filhos que, contra todas as hipóteses chegavam a crianças, adolescentes, adultos. A nossa sociedade não está preparada para esta adversidade que é a morte de um ser que, em princípio, está destinado a morrer depois de quem o gerou. E, no entanto, um dia, há mais de 20 anos, em Madrid, na calle Soror Angela de la Cruz, onde num dos seus raros intervalos de estabilidade vivia minha filha Maria, dei comigo a defender – contra a opinião dela, a de minha filha Anita e a do meu genro – a manifestação de católicos próvida que ali se juntara para protestar contra a abertura de uma clínica ginecológica que iria aplicar a recente lei do aborto aprovada nas Cortes espanholas. As minhas filhas não queriam acreditar que eu me pusesse do lado dos católicos. Para elas, as mulheres têm o direito de abortar, caso não queiram ou não tenham condições para ter os filhos. Eu poderia concordar com isso, mas o fantasma de Luisito impediume. Um filho é sagrado, diziame ele, é um ser autónomo, não pode depender da vontade de alguém que lhe é exterior, ainda que seja a mãe, aquela que o gera. E foi Luisito que falou pela minha boca, como na Bíblia se diz que o Espírito Santo falou pelos profetas, ainda que ninguém acredite nisso, era Luisito quem falava. E o que ele dizia, ainda que eu não consiga reproduzir integralmente – a minha memória esvaise aos poucos – era totalmente lógico. Dizia Luisito que a vida começa, como diz a Igreja, no acto de concepção. Que colocar 10, 12 ou 20 semanas de gestação para dizer que, então aí começou a vida, seria como afirmar que um ser só é autónomo quando começa a falar. Sabiam elas que em Roma um pai tinha direito de vida e de morte sobre um filho até ao ano de idade? Não sei sequer se isto é verdade (digo eu), mas Luisito afirmouo pela minha boca, com toda a autoridade do mundo. E achavam eles, Maria, Anita e o idiota do marido desta, Humberto, que isso era civilização? Por que razão podemos terminar com algo que não sabemos fazer ou criar, como a vida? Estou certa de que este argumento era mais credível há 20 anos do que hoje. Por que razão basta uma vontade, ainda que a da mãe, para terminar uma vida, se qualquer sentença de morte – dando de barato que uma sentença de morte, fosse ela qual fosse, poderia ser humana – tinha sempre recursos e mais do que uma pessoa a decidir? Por que razão acharemos que a vida vale tão pouco, quando é do nosso pequeno interesse egoísta que ela não exista? Por que nos colocamos a nós próprios e aos de que gostamos e conhecemos, como centro de tudo? Por que só conta o nosso ponto de vista? Por que seria a minha mãe a decisora da minha viabilidade, caso decidisse cortar o meu desenvolvimento quando eu era um embrião de 10 semanas? Eu sou quem sou, devido 135
essencialmente aos genes? Se sim, o meu projecto com 10 semanas é mais do que um esboço, é uma planta a crescer, por que razão não lhe damos qualquer hipótese? Porquê? Eu berrava com as duas e com Humberto, embora este já tivesse desistido de discutir, sempre foi um tipo apagado e vergado à vontade da mulher, mas era Luisito a comandarme. E elas, as minhas próprias filhas, gesticulavam e gritavam comigo que eu estava louca, que nada do que eu dizia fazia sentido, se eu por acaso achava melhor nascerem desgraçados indesejados que seriam maltratados a vida toda, sem condições de desenvolvimento harmonioso e patati patátá, repetindo os argumentos de Felipe González e dos socialistas espanhóis, que elas aliás apoiavam com armas e bagagens. E eu esganiçavame a dizer que sem condições tinha vivido eu em Ayllón, exagerando muito a falta de condições reais em que vivera, e quem nem por isso me arrependia de viver. Gritando, por fim, que pior tinha sido Luisito terme morrido, e terem morrido os meus irmãos e o meu pai e que, mesmo assim, com todas essas mortes a atormentarme, nunca me tinha arrependido de estar na terra, apesar de todos os males que me aconteceram. Fiz de mim uma mártir, um Cristo, uma desgraçada. E elas suplicaram que me calasse, porque achavam que nada do que eu dizia tinha a ver com a questão do aborto. E eu caleime, porque Luisito me sussurrou que não valia a pena discutir a vida e a morte com quem só sabia e conhecia o que era a vida… e que esse era o mal das pessoas que se empenham tanto na defesa do aborto. Elas acharam esta última tirada absolutamente demagógica e teatral e disseram que punham fim à conversa só pelo respeito que me tinham. Durante toda essa tarde e no dia seguinte, incluindo o regresso a Lisboa, no carro do meu genro (vim com Anita, uma vez que Maria ficava lá) falámos um pouco de lado, como os amigos que se zangam por um episódio qualquer sem muita importância. Hoje, não conseguiria discutir com tanta convicção. Penso que, mesmo na altura, se não fosse a ajuda de Luisito, não teria dito tantas coisas. Mas, se procurar dentro do meu coração, a verdade é que quem não passou por perto da morte e da perda não a compreende. Eu passei. E, como sempre, continuo a falar com Luisito. Talvez estas recordações sejam também as dele. Talvez ele continue a pensar por mim. Passei por muitas mortes, por demasiadas e sei precisamente que a minha se aproxima, conheçolhe o cheiro e o sabor, os modos, os passos, os sinais precursores. E por isso, também, soulhe quase íntima, tenho por ela uma quase amizade, como aqueles inimigos que de tanto combater se respeitam e, de tanto se respeitar, se admiram. É por isso que, quando vejo o naviofantasma na linha do horizonte, sei 135
que um dia embarcarei nele e que lá estará Luisito para me guiar os passos nessa derradeira viagem, de que apenas ficam estelas , sulcos no mar. X– Mamaíta Passou mesmo à minha frente uma dessas pranchas com vela, daquelas que se chamam, salvo erro, de windsurf. Parecem muito rápidas e delicadas, sulcando as águas sem esforço, apenas guiadas pelo vento. Por momentos, pareceu ir de encontro a um pequeno iate que estava na enseada, mas era pura ilusão de óptica. Passou muito mais perto de terra, ligeira, manobrada por um rapaz que puxava a vela com grande perícia. Atrás de mim tocaram os sinos da Igreja, e não tenho dúvidas que dobraram a finados, como se me quisessem dizer que o contrário do mar é a terra, a terra onde se colocam os mortos, mesmo que eles tenham falecido aqui, à beira do mar. Sempre me interroguei por que razão, tão perto desta imensidão azul, não se fariam os funerais como nos barcos – levando os corpos para o mar alto e atirandoos para o fundo do mar. Provavelmente, porque isso impediria o culto dos antepassados, algo que de resto já não existe. Ainda noutro dia fui ao cemitério e pude contar o número de campas ao abandono… Fátima está insuportável, mas manda a honestidade que tenho comigo própria dizer que eu também estou inaturável. Estou cada vez mais esquecida, cada vez mais descuidada, cada vez mais desleixada, cada vez mais sem vontade de comer. A idade é inexorável; minha mãe, que morreu bem mais nova do que sou hoje, dizia sempre que a velhice é uma porcaria – só agora a compreendo inteiramente. Fátima preocupase imenso comigo e ou não compreende a minha decadência ou disfarça a compreensão tratandome como se eu estivesse na flor dos meus… poderia dizer 70 anos, embora isso possa parecer ridículo um exagero àqueles que pensam que ter 70 anos é ser velho. Aqui há dias, minha filha, num dos finsdesemana que veio passar comigo, trazendo o seu inseparável Humberto, disseme: Mãe, em que está a pensar? Eu respondi que estava a pensar na vida, e ela insistiu: Queria ter 30 anos, não? E eu respondilhe: 30 têm as tuas filhas, a mim bastavame 70. Ela riuse e sei que contou este diálogo à família toda. Ninguém pode entender a decadência que há entre os 80 anos e a 135
idade que tenho hoje, 88. Só quem os viveu. E eu estava impreparada para esta aventura, só Madame se queixava dos males depois dos 80, além de minha mãe, que também sobreviveu a esse cabo da vida. Quatro vintes como se diz em francês, frase que Madame tantas vezes sublinhou para agradar a minha mãe na festa em que ela completou 80 anos. Quatro vintes dizia é igual a quatro raparigas felizes! E mamaíta acrescentava: ou a uma velha tonta, como eu. Mamaíta, como eu e Pilar sempre lhe chamámos, viveu a sua vida em Portugal – cerca de 40 anos – na casa da tia Concepción. Mesmo depois da morte da irmã, ela ficou lá, voltando a arrendar a casa ao senhorio. Ali ficou sozinha, relativamente longe da casa de Pilar e da nossa, uma vez que nós vivíamos perto uma da outra, na linha do Estoril. Mamaíta nunca se retirou do Bairro Alto, no centro de Lisboa, perto do Chiado e ali esteve enquanto aquilo foi viveiro de putas, de casas de fado e de jornais. Ali foi definhando, dia para dia, até que se deixou ir para minha casa, onde faleceu de uma infecção pulmonar qualquer. Estávamos em 1982 e, nessa altura, ainda não havia esta coisa que eu considero ridícula de se informar de que morre uma velha. Mamaíta tinha 85 anos e faleceu porque essa é uma idade normal para uma mulher morrer, sobretudo uma mulher que teve a vida complicada que ela teve. Foise, devagarinho, sem queixas, com a enorme força ainda bem impregnada nela, a força que a fez pedir que Pilar fosse lá a casa e prometesse que iríamos ser – como verdadeiramente nunca acabámos por ser – unidas até ao fim. Eu fui sempre mais chegada a meu pai do que a minha mãe, pelo menos foi o que sempre pensei, de mim para mim. A morte do meu pai foi uma tragédia imensa e quase diariamente ela me vinha à memória. Foi, até à morte de Luisito, a pior coisa que me acontecera em toda a vida. Assim, sempre supus que a morte de minha mãe, sobretudo quando a via com mais de 80 anos, fosse por mim encarada como um facto normal da vida. Ora, ora – pensava eu – com o treino que infelizmente tenho de pessoas queridas a morrerme, estarei por certo à altura dos acontecimentos. As minhas filhas, que me ajudaram na doença da avó – e que estavam com ela, no quarto, quando pela última vez mamaíta fechou os olhos, deramme a notícia com todo o cuidado. Mãe, abuelita …
A mim, bastaramme aquelas palavras. Soube imediatamente que o esperado tinha acontecido. E conforteias – coitadinha (vejo, agora, que a pobre Fátima utiliza esta palavra para falar de mim), já era velhinha. Eu tinha 61 anos, a idade que tem hoje a minha filha Anita, já estava longe de ser uma jovem, pelo que achei que deveria ter a presença de espírito suficiente para tratar de todos os assuntos. Peguei no telefone e disquei o número do escritório de Juan Miguel – que tinha então uma empresa de importações. 135
Quando a sua secretária me passou o meu marido, disselhe calmamente: Juan, querido, mamaíta morreu.
Do outro lado, ele perguntou se eu estava bem. Achei a pergunta um pouco pueril, claro que estava bem. Só queria que ele viesse para casa e me ajudasse nos preparativos necessários. Depois, desliguei o telefone e, de súbito caí nas minhas palavras – mamaíta morreu. Não era uma pessoa qualquer, era aquela, precisa, sincera, forte mamaíta com quem eu tinha vivido toda a minha vida. Aquela, que me punha na cama quando trovejava em Pontevedra, a que me lera histórias quando eu não conseguia dormir ou estava doente. A que me pegava ao colo, na varanda de casa, para vermos o meu pai chegar, quando vinha do quartel. A que brincava comigo nas arcadas da Plaza Mayor de Madrid, a que me escreveu a dizer que eu era uma mulher e a dar a notícia da morte do meu pai. A que foi comigo para Biarritz e, depois, para Portugal, quando o emprego em Biarritz e o ambiente para os espanhóis se tornou irrespirável. A que tratou de mim quando estive doente, a que me aconselhou no casamento, a que me cuidou dos filhos quando eu não pude, a que foi incondicional. Compreendi que, ao passo que o profundo amor que sentia pelo meu pai era racional fruto da sua imagem, do que ele próprio projectava e era nas breves conversas que teve comigo , tudo o que sentia por minha mãe era do domínio contrário, totalmente emocional. Não era nada em concreto, não era fruto de grandes frases, ou de grandes tiradas, ou de ela ser uma figura excepcional. Era, sim, fruto de ser minha mãe, de ser incondicional de ser o calor quando eu precisava de calor, a companhia, quando precisava de companhia, a comida, quando tinha fome, a cama se tinha sono. De ser tudo e de me ter transportado dentro dela – era fruto de uma ligação que não pode haver com mais ninguém salvo entre mãe e filhos. E quando Pilar chegou, exagerada como sempre, dizendo ai que desgraça com grandes gestos, eu abraceime a ela e disselhe: Quando nos morre a nossa mãe, somos outra vez pequeninas. Mantivémonos tanto tempo abraçadas, tanto tempo... Pela minha cabeça passavam instantâneos do que fora até então a nossa vida e confesso que senti nostalgia pelos tempos de Biarritz e da nossa chegada a Lisboa, quando eu e Pilar éramos tão unidas, inseparáveis. Prometi a mim própria que assim voltaríamos a ser, que haveríamos de caminhar as duas na praia, fazendo confidências, como naqueles tempos. Por que razão fora necessária a morte de nossa mãe para que nos abraçássemos assim, de novo? Por que não soubéramos que isso era o mais importante – sobretudo para nós próprias? Por que motivo nos 135
tínhamos deixado enredar numa série de episódios sem qualquer importância? Vou tentar deixar estas recordações, Fátima já berra ao telefone, falando com minha filha, – ela grita, como se a distância tivesse de ser vencida à custa de decibéis – que eu ando estranha porque me lembro da guerra. Não sei como ela o sabe, ela nem deve saber que houve uma guerra, provavelmente é minha filha que adivinha, Anita tem uma espécie de sexto sentido para os meus assuntos… É boa filha e foi boa para a irmã, enquanto Maria deixou que a ajudassem e se mais não fez foi porque não pôde. Foi também muito boa para a avó, para a minha querida mãe e nunca se conformou com o que me separou de Pilar, que ela também sempre adorou. Na verdade, minha filha Anita – agora que penso nela a esta luz, nesta perspectiva , apesar de sempre a considerar quase como inexistente, porque nunca deu problemas, é a mulher mais parecida com minha mãe, talvez seja daquele tipo de pessoas a quem só damos verdadeiro valor quando nos faltam, talvez… Tenho de reconhecer que eu estou viva devido a ela, que me arranjou esta Fátima insuportável para me fazer companhia e tratar de mim, quando fiquei viúva. Anita é verdadeiramente o prolongamento de minha mãe e de mim própria noutra geração. Curiosamente, entre os meus cinco netos, três raparigas de Anita e dois rapazes de Maria, só vejo uma delas que pode ser deste timbre. E digo com sinceridade que nem sei se isso será bom ou mau. Também nunca reconheci em Pilar essa força. Reconhecilhe a alegria, a insolência, o desprezo pelas convenções que vi em Raul, o meu malogrado irmão mais velho que se juntou as fascistas da JONS7. Mas não a persistência, a tranquilidade e, mesmo, a inamobilidade que foram características de minha mãe e, reconheço hoje, são igualmente minhas. Pilar, a minha querida mana, como desde a morte de minha mãe passei a referirme a ela – como se isso nos desse de volta os maus e bons tempos em que éramos novas e infelizes, mas de uma infelicidade diferente, porque feita de esperança de deixarmos de ser , Pilar, dizia, não era constante, era volúvel e irresponsável, como o foi a minha pobre filha Maria. Chegou a roubarme o marido, a ter um caso com ele – e foi isso o que nos afastou durante tanto tempo e que muito preocupou minha mãe, que nunca conheceu o motivo de tal afastamento – para depois me pedir desculpa humilhandose e falando de si própria como uma miserável puta. Eu não lhe perdoei, porque não podia perdoar a Juan Miguel o facto de ele se ter deixado enredar pela minha irmã, nem a 7
Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista , em 1934 juntouse à Falange. Actualmente ainda existe como partido político, embora sem expressão, de extremadireita, com a designação de Falange Española de las JONS
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minha irmã por se ter envolvido com ele (e passados tantos anos, honestamente, nem consigo discernir quem teria maior culpa, mas inclinome para que fosse ela). Hoje em dia, esse facto, que consumiu anos de minha vida – descoberta que fiz já depois da morte de Luisito – não se me afigura sequer digno de ser pensado ou recordado. É um facto enterrado na minha memória, sobre o qual nunca falei com ninguém – jamais o referiria a minha mãe, nunca a minhas filhas. Ressalvo apenas as conversas fantasmagóricas com Luisito que, de certa forma, desculpou ambos – tia e pai – descrevendo o perdão como o mais supremo de todos os sentimentos que foram dados à espécie humana. Diziame ele, que nada separava tanto um ser humano de um animal do que essa possibilidade infinita de perdoar, de receber com elegância e mesmo satisfação aqueles que nos tinham ofendido. Afinal, não era essa a mensagem essencial do cristianismo, o que fez da nossa civilização o que ela é, que fez de nós pessoas tolerantes? Saber perdoar é o cúmulo da tolerância, palavra que no seu étimo latino significa resistência à dor, resistência ao que nos faz sofrer – Luisito sempre teve queda para as latinadas e para o estudo da civilização romana, acho eu… Por isso, eu perdoei a Pilar, mas foi um falso perdão. Perdoeilhe formalmente, disso mesmo me acusou o meu filho morto, mas nunca a recebi como a recebia dantes, de braços abertos e confidências plenas. Ah, isso não! Não o fiz, a não ser depois da morte de mamaíta me ter feito entender que há, nas famílias os continuadores e os fracos. E que a continuadora de minha mãe e tudo o que ela representava de serenidade, saber estar, decisão na hora certa, não era nenhum dos meus irmãos – todos mortos que estavam – nem Pilar com o seu feitio leviano. A continuadora era eu e as minhas filhas. As três, como três éramos as que no tempo de mamaíta nos agarrámos numa praia em Biarritz, na hora de decidirmos a nossa vida. E assim perdoei, como agora perdoo tão facilmente a Fátima as suas imbecilidades e perdoo a mim própria as minhas fraquezas, as minhas desventuras de velha. Só, em frente ao mar, a ver passar os banhistas, a tarde a cair e o Sol a pôrse, como sempre, à minha direita, que já só sei que é direita por ser nessa mão que uso as duas alianças, a minha e a de Juan Miguel, e que deveria usar também algo de Maria, que me deixou, de Luisito, de Pilar, de mamaíta , de meu pai e de meus irmãos, e de todos os que se foram. O toque a finados na Igreja cessou. O cortejo saiu na direcção do cemitério, que fica do outro lado da terra, no ponto mais afastado do mar, como se a morte fosse da terra e a vida da água. É da água que gosto, eu sou do lado do mar… 135
XI – Corpus delicti Levantouse um vento gélido, estranhamente gélido para a altura do ano, que mergulha no mar, diante mim. Fátima socorreume com um casaquinho de malha que, por sinal, é de minha filha. Enxoteia. Tratoa cada vez pior, com medo de me aproximar de mais, de lhe dar confiança, de lhe contar segredos que não quero, revelarlhe fraquezas que são minhas, apenas minhas, ainda que cruéis, incomodativas, por vezes recordadas com asco ou vergonha, mas que não posso partilhar porque não as sei sequer explicar. Recordo o meu passado de forma cada vez mais extenuante, como se alguém exterior e superior a mim me obrigasse a rever a vida, e a fazerlhe o balanço, para depois lhe pôr fim. Chegarei a Deus com as contas já feitas? Saberei, perante Ele – ou o que Ele representar – qual o mal e o bem que fiz. Terei essa consciência? O meu corpo encolhese com o frio, olho os meus braços, cavados por sulcos de pele – tão velhos. As veias saltamme das costas das mãos, como se quisessem libertarse delas. As minhas pernas são magras e cheias de manchas e sinais, como todo o meu corpo e, para cúmulo do meu próprio vexame, agora tenho de usar uma discreta fralda para evitar – como dizem na televisão – aqueles pequenos acidentes. O meu corpo não presta, por que razão heide preocuparme com ele? Apenas porque alberga o meu espírito, o qual, aliás, também já não vale grande coisa. Para quê o casaco? Para quê o cuidado? O meu corpo jamais foi, para mim, objecto de grande preocupação. Sim, às vezes fiz dietas curtas que logo abandonava, assim como tive um período em que me dava para a mania das termas e dos tratamentos com lamas e essa parafernália toda. Nem consigo recordarme porquê… Talvez porque queria parecer bem, quando me via ao espelho, porque queria que Juan Miguel me achasse bonita e interessante… Porque queria que outros homens também me achassem digna de um olhar; até, talvez, porque 135
queria despertar inveja em mulheres da minha idade, que me consideravam bem conservada. Nunca fui, no entanto, muito vaidosa. Nunca fui muito – e esta palavra só mesmo em espanhol existe, curiosamente –, pinturera , alguém que se presume bonita, elegante, distinta. Nunca fui. Mas tive os meus dias, como toda a gente. Antes de casar com Juan Miguel fazia torcer pescoços na rua e, mesmo depois, bem reparava nos olhares de cobiça dos seus amigos. Sabia que mesmo o meu marido me achava muito interessante e bonita e muitas pessoas reparavam que eu era parecida com uma actriz de cinema cujo nome não recordo. Porém, mal tive os meus filhos, o meu aspecto – e serei honesta se dizer que, com ele, o sexo desinteressoume totalmente. Anita, Luisito e Maria ocuparam o meu corpo e a minha mente durante 10 anos, pelo menos. Desde que fiquei grávida de Anita, há mais de 60 anos, até à altura do acidente que me levou Luisito, quando eu já rondava os 40 anos. Por essa época, tinha descoberto que Juan Miguel me traía e isso acicatoume para o trazer de volta, foi o tempo das dietas. Mas a morte de Luisito deixoume totalmente desregulada. Acho que fiz uma menopausa precoce, por volta dessa idade, que se prolongou por imenso tempo, com imensas preocupações que me tornaram naquela espécie muito vulgar que são as senhoras doentes. Arrasteime entre médicos e exames e termas e mais exames e mais médicos e mais termas. A minha vida, sob o ponto de vista sexual, tinha morrido em absoluto. Juan Miguel preocupavase, mas não excessivamente e as minhas filhas ajudaramme muito, mas tinham os seus namorados, as suas vidas. Entre os meus 40 anos e os 53 ou 54, fui uma freira estúpida; um ser assexuado, desinteressante, conflituoso, confuso. As raparigas cresceram e eu mirreime; Juan Miguel fazia a sua vida e eu tinha pena dele, pena que não pudesse contar comigo para os seus sonhos e fantasias de homem maduro. Até que um dia – e sempre me custou esta revelação, ainda que feita a mim própria –, soube que entre as amantes do meu marido figurava, em lugar de destaque, minha irmã Pilar. Soubeo da pior forma que se pode saber uma notícia – e juro que não consigo imaginar uma pior: denúncia anónima, mas precisa. Dizia a carta recebida que se, acaso fosse a um hotel dos arredores de Lisboa, às tantas horas de um certo dia, encontraria o idílio dos dois. E eu – estúpida! – fui. E encontreios. Se olhar em retrospectiva tenho de reconhecer que o facto em si, embora horrível, pode ter ironicamente contribuído para uma melhoria substancial da minha vida. Os dias que se seguiram à descoberta da traição foram periclitantes. Por diversas vezes estive para me divorciar, para 135
abandonar Juan Miguel, para dizer às minhas filhas – claro que à excepção de Luisito, nas minhas fantasmagóricas conversas, nenhuma delas o soube ou sabe – e até de minha mãe estive quase a fazer confidente, apesar de a sua idade já avançada. Mas acho que consegui fazer prevalecer o bom senso. Era um daqueles temas em que não contribuiria para a felicidade de ninguém – não sei o que pensaria minha mãe desta disputa (palavra apropriada) entre suas filhas, nem o que diriam minhas filhas de um triângulo envolvendo pai, mãe e a tia mais chegada das raparigas, que aliás adoravam. Assim, calei o que soube, recalquei, pisei, escondi debaixo do tapete – afastei minha irmã, embora discretamente, da minha vida, resistindo às suas constantes humilhações, que começavam por se chamar puta a si própria. Ao fim de uns tempos, acabei num psicanalista por insistência de Yannick, a minha Madame , única pessoa no mundo que soube – além do anónimo denunciante que continuo sem saber quem foi (a menos – e tanto me ocorreu essa hipótese – que fosse a própria Pilar, já tolhida pela vergonha, com o intuito de acabar ou de oficializar a relação incestuosa com o meu marido). O psicanalista, que era também psiquiatra, um tipo da minha idade, passados os 50, vaidoso, com uma autoestima elevadíssima e com a mania incontrolável de dizer piadas, curoume. E curoume pela menos deontológica das formas que um médico tem de curar uma paciente: fazendo amor com ela. Artur fêlo. Pegou em mim, viroume do avesso, e esteve dentro de mim. Compreendeu o que eu própria não podia ter compreendido. Que eu, com a vida que levava, tinha direito um direito divino e inquestionável – a ser mimada, animada, endeusada. Precisamente o contrário do que a família, e o bom do Juan Miguel à cabeça, pretendiam de mim, invertendo os papéis e a ordem divina que Artur decretava. A ideia fazia todo o sentido, do meu ponto de vista. Todo o sentido! E por isso, e também porque a conversa me agradava, deixeime ir. E este corpo que eu pensava morto para os combates do sexo, renasceu; e renasceu de uma forma que a mim me assustou. Apeteciame, sobretudo uma parte (e não o dizia a ele de outra forma que não fosse esta: a nova sensação que Basílio deu a sua prima Luísa, na obra de Eça) em que Artur era exímio. E apeteciame coisas fantásticas, algumas que nem sabia existirem e tinha um prazer ordinário e simultaneamente extraordinário, que me deixava arrasada e com um ar beatificamente apalermado. Não foi a única vez que atraiçoei os votos de fidelidade feitos no casamento. E, olhando em retrospectiva, só tenho pena de não ter começado mais cedo. Até porque Luisito concordou 135
inteiramente com Artur no que diz respeito aos meus direitos a ser mimada e endeusada. Passei o que passei e não seria uma vida verdadeira se apenas a dedicasse aos outros, esquecendome de mim própria, arrumandome para o fundo de um armário ou de uma arrecadação, quando não fosse mais necessária como mãe ou como mulher ou como máquina de arrumar a casa. Felizmente, Juan Miguel sempre ganhou bem e sempre tivemos possibilidades de ter empregada e uma série de apoios que me deixavam o tempo livre. Que raiva me dá não ter aproveitado esse tempo também comigo. É certo que é preciso ser maduro e adulto. Não falo de paixões nem de amor, nem sequer de grandes amizades. Falo de companhia, de tempo que dedicamos a nós próprios e que outros nos dedicam. Artur nem sequer era o meu tipo de homem: não era bonito, não era atlético, não era elegante, mas era um cavalheiro culto e atencioso. Não precisava de mais. E assim, passado Artur, como tudo passa nestes episódios, outros senhores atenciosos me ajudaram a passar o tempo, por assim dizer. Devo registar que Yannick foi sempre a única a saber e tinha certo orgulho em ter contribuído para a minha decisão tardia de me satisfazer… Sim, divertime, durante uma fase da minha vida. Depois o tempo fez o seu serviço e a vontade foi passando, assim como a paciência e o impulso. Deixeime de coisas de gente nova. Mas aprendi que o essencial está em não magoar o outro. Luisito dissemo claramente que era isso que meu marido pretendia – não ser magoado, que o caso não se soubesse… e que eu não andasse com pessoas que não pudesse apresentar como amigo – o que excluía os gigolôs – porque lembro hoje, que estou para confissões, várias vezes imagineime a chamar um daqueles que punham (ou põem? É coisa que não consulto) anúncios nos jornais. Um que me satisfizesse e pelo qual não tivesse o mínimo cuidado ou respeito, que apenas existisse naqueles breves momentos em que me era dado apetecer que ele existisse. Demais agradavame o perigo, numa vida que tendo começada cheia deles, aos poucos se tornara banal, vida de uma senhora da linha, com as suas amigas hipócritas, a beber um chá aqui, a trocar impressões sobre receitas e a frescura do peixe nas bancas das praças onde mandávamos as empregadas. Agradavame o perigo, o coração a disparar, os olhares furtivos, o medo de ser apanhada… Ainda hoje, quando relembro esses tempos tenho pena de serem tempos idos. Às vezes penso que o modo como trato Fátima é um traço deste carácter que acabei por revelar na meiaidade. O apetecerme ser mimada, como ela o faz, para depois me mostrar 135
desagradada e insultála, como se ela fosse um objecto ou uma coisa sem sentimentos; fazerme muito pior do que estou, forçandoa a trabalho mais degradante, tudo isso é uma face negra da minha personalidade que ninguém conhece, só mesmo o meu filho, a quem nada escondo e que tudo compreende e perdoa. Mesmo agora deixei cair propositadamente o casaco de malha para que ela o apanhe do chão e o volte a colocar sobre os meus ombros. Então, dirlheei qualquer coisa desagradável – fáloei como se estivesse louca, dizendo algo sem sentido, acusandoa de fazer porcarias com o namorado cá em casa – o que sei ser mentira – só para a atrapalhar. E nessa humilhação, quando ela tentar negar, dizerlhe que ela não tem capacidade para atrair homem nenhum e vêla dizer que eu estou maluca, que eu não sei o que digo. E eu fingir que não sei, de verdade, o que digo, para que possa dizer tudo… Ou talvez não saiba mesmo o que digo. Ou talvez não saiba e ela tenha razão. Ou talvez nada disto tenha acontecido e eu seja aquela que toda a gente viu – a mulher sofrida, compreensiva para o seu marido, que perdoou a infâmia deste com a sua própria irmã; que sobreviveu à família e que, hoje, com uma resignação assinalável vê o mar, todo o santo dia vê o mar do quintal de sua casa, e aguenta o frio do vento sem um queixume, até que a empregada descuidada, sempre agarrada ao telemóvel, aos berros dá por isso e lhe vai colocar um casaco de malha nas costas, mas sem cuidado, de modo que o casaco volta a cair e a senhora – que sou eu – nem dá por isso, enquanto a empregada, de costas para o mar, a proteger o telemóvel do vento, também não repara no casaquinho que vai pelos ares, a não ser um bom pedaço depois, quando lhe pega, de novo e o coloca nas costas da senhora. E a senhora, que com a sua idade avançada já não tem os sete alqueires bem medidos, dizlhe uma ou duas coisas que não fazem o menor sentido, o que leva a empregada a sorrir um pouco, com consideração pela idade da senhora e repetindo palavra por palavra, à pessoa com quem falava ao telemóvel, a cena que acaba de acontecer, mas rematandoa: coitadinha, com 88 anos. Tomáramos nós lá chegar. E o vento continua, a entrar gélido no mar. 135
XII – Madame Continuo em frente ao mar, sentada neste cadeirão de verga. Cada dia passo menos tempo acordada. Durmo, durmo, durmo. Há uma canção antiga de Jacques Brel, Les Vieux, que agora me vem muitas vezes à cabeça e que diz que os velhos não morrem, apenas dormem trop longtemps . É interessante como traduzir esta expressão se torna quase inútil. Demasiado tempo é redutor; mas se for um demasiado longo tempo, talvez fique a parecer mais poético do que é, na realidade; em francês dizse, por exemplo, eu estou aqui à tua espera há longtemps . É a palavra adequada para dizer há muito tempo. Mas se lhe acrescentarmos demasiado ou excessivo, que é o que quer dizer trop , fica demasiado muito tempo e perde o sentido. É por isso que certas coisas só podem ser ditas em determinados idiomas, e a tradução é sempre uma traição. Mas logo a mim, que baralho o português e o espanhol, me havia de dar para estas reflexões parvas… Recordo Yannick, a minha Madame querida, que misturava português, espanhol e francês. Os dois primeiros idiomas, aprenderaos comigo e, depois, praticando. Madame fazme falta, como muita falta me fazem, desde há anos, tantas outras pessoas. O meu Luisito, cuja falta é apenas física e não espiritual, meu filho, meu único filho. Maria, a minha filha Maria, a minha filha querida. Minha mãe, minha irmã, meu marido, meu pai, minha Madame Yannick, minha amiga Elena. Perguntome se Fátima, a minha empregada, minha estimada embirração, me faria também falta caso me desaparecesse subitamente. Talvez… Yannick era a minha mais constante, senão única, companhia intelectual. Juan Luis era muito virado para os negócios e, quando eu era muito nova, achava isso o mais importante num homem com quem vivesse – que sustentasse a sua casa. Luisito acompanhame intelectualmente, dentro de mim, mas faltame a sua presença física, é como alguém que conhecemos apenas por correspondência, como quando a minha filha Anita era nova e se correspondia com amigas que nunca conheceu pessoalmente. Eu apoiavaa nessa tarefa, cheguei a estudar alemão com ela apenas para que pudéssemos responder a uma amiga austríaca que lhe escrevia em inglês, mas confessava ter dificuldade de dizer coisas bonitas nessa língua, preferindo o alemão. Logo o alemão, que 135
não parece talhado para que se diga algo de verdadeiramente belo ou sublime salvo lógica ou matemática, embora isto possa ser preconceito meu. Yannick era uma mulher prática, mas ao mesmo tempo muito voltada para os cortes radicais no pensamento. Um dia, nesta mesma casa, no Verão, já éramos as duas bem entradotas e eu tinha acabado de sair da minha aventura arturiana, ela desafioume até ao limite do meu próprio pensamento. Disseme, pura e simplesmente: Agora que te libertaste do psiquiatra, porque não fazes amor comigo? Eu achei que ela estava a brincar e respondilhe à letra. Mas ela insistiu. Olha, vamos pensar –, como dizia tantas vezes, desafiandome – Que nos impede, duas mulheres feitas, de nos amarmos? De nos fazermos o que sempre pedimos aos homens e eles nos fazem sempre sem jeito? Que nos impede? Eu fui ensaiando respostas: O nojo? O facto de eu não ser capaz? O facto de eu não ver qualquer erotismo no corpo de uma mulher? O facto de eu não considerar que isso me desse qualquer prazer ou recompensa emocional? O facto de isso me provocar mais problemas de consciência e de identidade do que qualquer eventual bem que me fizesse? Yannick sorria e ia dizendo que não, que era pura e simplesmente uma construção social. Que nós não nos agarrávamos e esfregávamos uma na outra porque fôramos ambas ensinadas, treinadas para pensar que isso era errado. Mas o que de errado pode haver em duas pessoas que, manifestamente, precisavam que as agarrassem e acariciassem, se cada uma delas fizesse o que a outra precisamente queria que lhe fizessem? Pensa em ti, não penses em mim, diziame ela com o seu ar trocista. Não posso, Madame . Tornase impossível para mim – ripostavalhe eu. E eu sabia que sim, que era impossível. Mas não sabia expressar ao certo porquê. Por que razão não era totalmente cultural, por que haveria de desmentir que a razão da minha renúncia a ser acariciada por ela, se fundava tão claramente – assim mo parecia – numa construção do que era o bem e do que era o mal, que ancestralmente, homens e mulheres, igrejas e correntes filosóficas tinham, mais ou menos decretado. Ora, se nós tínhamos – como sublinhava Madame , quebrado o tabu da fidelidade nas relações estáveis (ela conhecia o meu caso com Artur e eu sabia de casos dela), se nós tantas vezes tínhamos verberados atitudes e manias que eram pura tradição errada, que detestávamos – incluindo o tabu da religião, uma vez que eu, pelo menos, tinha um Deus muito próprio – que barreira nos impedia de quebrar este derradeiro interdito, que era o de fazer amor – e 135
não necessariamente amar, como ela sublinhava – com uma pessoa do mesmo sexo? Felizmente, nenhuma de nós estava na flor da sua idade, juntas passávamos largamente os 100 anos, pelo que o ardor do desejo não se sobrepôs nunca ao fulgor do raciocínio. Dei voltas à cabeça, tentando encontrar uma resposta que fosse absolutamente racional e destruísse a ideia de haver uma conspiração de homens, mulheres, igrejas e pensadores contra a homossexualidade, pelo menos contra a minha possível homossexualidade. Concentreime na seguinte questão: eu rejeito o mesmo sexo, porque há tempos imemoriais todos nós assim somos ensinados? Os homossexuais e bissexuais acabam por ser mais livres do que eu, ao libertaremse desse desígnio culturalmente imposto? Ou há uma razão exterior a mim para a homossexualidade me causar repulsa? Será que os homossexuais são apenas diferentes, nem mais nem menos livres, e fazem parte de uma pequena minoria que não age de acordo com os padrões normais do ser humano? Yannick riase dos meus esforços e picavame: Não tens resposta. Vais ver que a conclusão só pode ser que se trata de uma escolha. Se quiseres ser homossexual, ou se quisesses ter sido, quando eras nova, podias têlo sido ao longo da vida, com toda a naturalidade. En Ayllón no me cuadraba disse eu, rindome da possibilidade… Olha, se tivesses vontade, cuadraba, y volvíate a cuadrar disseme ela num péssimo espanhol. Se tu fosses homossexual, que alternativa terias? Se eu fosse! Respondi eu. Mas a questão é por que não sou. E com ar triunfante, vireime para Madame . Yannick concedeume o ponto, dizendo que nesse aspecto eu tinha razão, e deixoume continuar a pensar na resposta que lhe havia de dar. Muitas das nossas conversas decorriam assim, desde que nos conhecemos em Biarritz, tinha ela pouco mais de 20 anos e era recémlicenciada. A ideia era estimularmos o raciocínio, acho que na época estava na moda a possibilidade de podermos estimular e desenvolver o cérebro através destes exercícios. De modo que as nossas conversas se tornaram muito características, começando, no geral, por uma pergunta, que até podia ser de algibeira, como: por que razão os bebés masculinos se vestem de azul e as meninas de corderosa? Mas à questão da homossexualidade latente não consegui dar resposta. Ela foi simpática, concedendome mais e mais tempo, mas eu nunca consegui responder. Foi ela, pois, quem ganhou esta guerra, avançando com uma explicação que é, ainda hoje, a melhor que tenho. 135
Dizia Yannick que a heterossexualidade é, de facto, uma construção, mas uma construção natural. É darwinista, dizia ela totalmente convencida da sua razão. O problema destas correntes modernaças da antropologia e da sociologia é que funcionam por chavões, por meras frases feitas, por estruturas em cima de estruturas, desligadas da crua realidade e, como resultado, percebem tudo mal; chamam a tudo construções, sem mais. Mas há, a meu ver, dois tipos de construção: a construção social e a construção natural. As construções sociais são aquelas que, na realidade, são feitas por necessidade ou convenção – como o facto de andarmos vestidos e não nus, daí decorrendo o facto de termos vergonha de mostrar a nossa nudez a desconhecidos. Mas as construções naturais devemse a necessidades absolutas da espécie que nos transcendem. É o caso da família, que não é obviamente uma célula ou um conjunto de pessoas que tenha sido decretado por alguém ou algo, mas uma necessidade evolutiva. No mesmo plano está, claramente, a heterossexualidade, uma vez que a homossexualidade é irreprodutiva. Isso levará um organismo, digamos, sem defeito de fabrico, a rejeitar qualquer homossexualidade. Eu, inicialmente, indigneime um pouco e aponteilhe o facto de estar a acusar os homossexuais de serem anormais ou coisa do estilo. Mas ela recusou essa crítica dizendo que não se tratava de os discriminar, mas de compreender por que razão havia diferenças e por que razão estando ambas carentes de carícias e abraços, não dávamos o passo para as fazermos uma à outra, para além do que é a relação não sexual própria entre duas amigas. Somos, então, normais? – Pergunteilhe eu provocatoriamente. Ela apenas me fez um olhar de fúria, para desatar a rir, agarrandose a mim. Eu abraceia e, quando o abraço se desfez, eu, a rir, disselhe: Como podemos estar tão perto de ser, sem na realidade o sermos. Este abraço foi a prova de que não temos mesmo tendência para a fufice. Madame concordou, e rindose lembrou que tinha ganho a contenda comigo. Recordo este episódio, porque nos sonhos eróticos que tive depois desta conversa, Madame entrou sempre neles. É curioso olhar para trás e ver como nunca suspeitei de que, com mais de 80 anos, pudesse ainda ter sonhos eróticos. Não são iguais aos dos 20, nem aos dos 40 anos. São brandos e confusos em certos pontos, no meu caso mais desavergonhados, mas ao mesmo tempo mais ternos. O certo é que, ainda recentemente – mas não sei se ontem, se na semana passada, se há mais tempo, porque a minha memória 135
para os assuntos recentes vaise perdendo, o que é normal segundo os médicos –, ainda recentemente, dizia, sonhei com Madame. Foi um sonho estranho, brando como são os meus sonhos agora, de uma cor sépia, ou talvez seja eu que assim os imagino. Entrava Artur, o meu psiquiatraamante, entrava Yannick e Juan Miguel. E os três davamse bem e tinham apenas por objectivo tratar bem de mim. Abraçarme, beijarme, massajarme. Eu tinha um enorme prazer e mandava Fátima servirlhes bebidas. Fátima andava – sabese lá porquê – com aquele fato de banho que lhe fica mal e que noutro dia lhe vi na praia. Todos os outros estavam nus, os corpos já não muito novos, sobretudo o de Juan Miguel – talvez porque esse fosse o único corpo de homem velho que conheci. Mas Yannick também tinha os seios descaídos, e a sua carne era branca, totalmente branca e flácida, de tal modo que, quando levantava os braços lhe caíam umas peles. O próprio Artur tinha a sua barriga maior do que o costume, quase lhe tapando o pénis, que estava flácido, sem desejo. Fátima servia champanhe, tostas com caviar, ostras e fruta diversa. De um modo geral, tudo o que poderia ser associado ao erotismo. E o sonho era daqueles que parecem reais e, pensando bem, foi a vez que mais perto estive de um bacanal. Os convivas serviamse, mas o seu principal objectivo era servirme. E eu sentia um ardor a subir por dentro de mim e, de todos os corpos olhando a barriga protuberante de Artur e o ar velho de Juan Miguel – aquele que me dava mais prazer, apesar da alvura exagerada da carne e das peles que lhe caíam dos braços e das pernas, não obstante o duplo queixo visível e o cheiro a champô barato (que na realidade era uma sua característica), o que mais me entusiasmava era Yannick. Quando acordei, tive pena de não ser verdade e, quando vi Fátima, quase tive vontade de lhe contar o sonho, mas preferi, uma vez mais, não lhe dar confiança. Não sei se fiz bem, se não for a ela, não tenho mais ninguém a quem contar estas coisas. À minha filha, está fora de causa, só se for através de metáforas enormes para as quais me falta a paciência. Acho que se lho contasse Anita ficava em estado de choque três dias. Não por achar mal, ou qualquer coisa dessas, é uma rapariga desempoeirada, mas por eu ser sua mãe. Também já não tenho Yannick e nunca mais vi Artur, acho que ele está num lar para velhos ricos, para as bandas de Cascais. Juan Miguel também me faz falta e Luisito, que me compreende tão bem, sobre estas cenas, curiosamente, nada me diz. Talvez se envergonhe do facto de a sua própria mãe, com 80 e muitos anos, ainda ter libido. Talvez se torne inconveniente ter libido, em vez de – como se diz – ter arrumado as botas e passar a viver assexuadamente. No entanto, e ainda que seja só a dormir, esta octogenária sente alguma coisa. É verdade, ainda que possa ser também triste… 135
Esperei que Fátima fosse tomar banho, para ficar sozinha nesta cadeira em frente ao mar e, discretamente, fiz avançar a minha mão entre as minhas pernas, como algumas vezes fizera noutros tempos, muito antigos. Queria conhecer o toque, pois há muito que é a própria Fátima a lavarme e há muito que não me toco no sexo. A mão seguiu por entre as minhas pernas, que estão ásperas e esbarrou com uma fralda. A ideia esfumouse! É triste, quando nos vemos confinadas a isto. É triste que não morramos de uma vez, mas aos poucos. E a parte mais triste é sempre aquela que persiste em viver. A minha cabeça mantémse fora do mar, mas quase todo o corpo já se afogou – tal qual vejo agora Fátima quando uma pequena onda passa por ela. Sou, pois, uma náufraga de mim própria, a qual, já não podendo retirar o resto do corpo da água, lhe resta esperar que a maré suba, de modo a afogarlhe o que falta. Ou ter a ousadia de mergulhar… XIII – Vida além Sinto que só aqui sou eu, só a olhar o mar sou eu. Não me conheço nem reconheço noutra parte da casa, nem noutra 135
circunstância. Tudo me distrai, tudo me é diferente e novo. Se olho para a sala, aquela grande sala da minha casa, não a reconheço. Minha filha Anita mudoua muito. Colocou sofás diferentes, umas cadeiras novas, uma mesa oval, uma televisão estreitinha. A princípio, perguntavame a opinião, mas depois, como eu mostrasse desinteresse e lhe respondesse cantando, cantando, cantando – sobretudo as canções da minha juventude , ela deixou de me informar. Os retratos de Juan Miguel ainda aqui estão, mas ao longo da mesa onde só estava eu e ele a princípio, juntouse depois Anita, depois Luisito, depois Maria. Com o acidente, por vontade expressa minha, desapareceu o retrato de meu filho, não quero mais recordações do que as que tenho e essas são de outra ordem. Mais tarde, a galeria voltou a aumentar; as três filhas de Anita, os dois filhos de Maria, meus netos, e o inefável Humberto, meu genro, com cara sorridentemente idiota. E ainda outras caras, cujas baralho, ou mal conheço. Um Manuel que casou com a minha neta mais velha, um José que casou com a segunda, um namorado da terceira, uma noiva do neto mais velho e, finalmente, os bebés, as minhas bisnetas, duas meninas encantadoras que se riem das minhas palhaçadas de velha. Ao lado da mesa, em cima do meu velho piano, que já ninguém toca, vêemse ainda minha mãe, meu pai com seu uniforme, e a minha irmã Pilar – que faz ela aqui, na minha casa? Se minha filha soubesse não exporia assim a tia aos olhos de sua velha mãe… E ainda estão os meus sogros, os catalães imponentes e ricos que fizeram este palacete à beiramar, e mais uma série de gente de quem não me lembro já que parentesco ou amizade lhes devo. Dentro de casa sintome estranha, como se nada – nem o território, nem a paisagem – já fosse meu. Sintome estranha, estrangeira como sempre fui. Por isso canto, adormeço a despropósito, finjo ver televisão – ainda que às vezes um filme me prenda. Já não tenho barreiras, acho que isso é também normal, pelo menos é o que diz o médico. Digo palavras feias e sou, por vezes, ordinária em excesso. Gosto de chocar. Aqui sentada a ver o mar, porém, o panorama não se altera: há, como sempre, o grande oceano à minha frente que se deita na estreita faixa de areia em que no Verão se estendem as pessoas que quase se atropelam. Nada muda, se exceptuarmos o tamanho dos fatos de banho e as marcas dos produtos anunciados nos chapéusdesol. Aqui reconheçome, sou eu, como era há 10 anos e como era há 20. O que fez Anita a minha casa não fez Deus ao mundo, e por isso Lhe agradeço. 135
Há dias, num malfadado momento em que dei atenção e troco às conversas da Fátima, ela perguntoume se eu acreditava na vida depois da morte. Acho que tinha visto qualquer coisa num programa de televisão. É curioso como os programas de televisão agradam sobretudo às empregadas domésticas, talvez o país seja um enorme armazém de empregadas domésticas, caso contrário não fariam os programas assim. Eu respondilhe que não. Mas ela quis discutir. É triste pensar que a evolução da humanidade não chega harmoniosamente a toda a gente. Talvez os iluministas e, sobretudo, os positivistas pensassem que o conhecimento se espalhava como uma mancha de óleo, mas tal não é verdade. Hoje quase toda a gente depende do telemóvel – não eu, que só ouço com dois aparelhos auditivos que interferem e soltam um desagradável apito. As pessoas dependem do telemóvel, que não faço a menor ideia como funciona, tal deve ser a sua complexidade técnica. Mas é possível que um ser humano como a Fátima, com um telemóvel na mão e a televisão diante dos olhos – lembrome do espanto quando assisti, pela primeira vez, a uma emissão em França, numa viagem que fiz com Juan Miguel , apesar de tudo confie que há vida depois da morte. E como seria essa vida depois da morte, pergunteilhe eu. Teria televisão e telemóvel? Daria uma novela sobre a vida antes da morte, ou a intriga seria já sobre a vida depois da morte? E nesse caso o que haveria como desfecho trágico? Não, seguramente, a morte, pois já estavam mortos, talvez nascimentos. Imagino um diálogo: Sabes quem nasceu? O Henrique Lacerda de Vasconcelos (as telenovelas, como sabem têm sempre personagens com nomes a puxar para o sangue azul). Ao que respondia a outra personagem: Não me digas, ele que ainda era tão novo aqui… Bem, isto não fará sentido, mas sinceramente revoltame que as pessoas não entendam o óbvio sobre a vida depois da morte. De modo que, para a esclarecer cabalmente, ainda que uma cabeça como a dela não possa nunca ser esclarecida, porque é obscura de sua natureza, pedi que me ajudasse a levantar, o que ela fez, e que fosse comigo à sala. Ela veio atrás de mim, porque se há uma coisa que a idade ainda pouco me marcou foi nas minhas funções motoras. Mexome lindamente. Na sala, apontei para a fotografia de Anita e pergunteilhe: Sabes quem é? Claro, minha senhora, é a sua filha. Depois apontei os meus netos e as minhas bisnetas e perguntei o mesmo. E ela, obviamente, que sabia os nomes de todos, melhor do que eu, que me baralho, e foi respondendo, 135
rindose, com a complacência que se deve a uma velha meia maluca. E então eu disselhe. Todos esses, que aí vês, são eu depois da morte. E são Juan Miguel depois da morte. Alguns são também Anita depois da morte e Maria depois da morte. As duas bisnetas serão as minhas netas depois da morte. Toda a gente vive depois da morte. Só o meu Luisito tem de se contentar em viver a minha vida, enquanto falar com ele. A idiota desatou a rirse. E eu vi que era impossível uma conversa decente com ela. A idiota achou que eu estava a disparatar, e eu então disparatei: ¿De que te ríes, coño? ¡Carcajeas cochina! ¿Serás tonta? Com a asneirada, a mulher ainda mais se riu e eu, para continuar o espectáculo aproveitei para dizer mais uns palavrões e insultála de tudo o que me fui lembrando. Pensou, então Fátima, que a situação tinha voltado ao normal e, pegandome no braço, reencaminhoume para o meu cadeirão de verga frente ao mar e foi à sua vida. Mais tarde Luisito repreendeume brandamente pelo facto de eu ter dito aquelas asneiras mas, pior do que isso, perguntoume se seria ele o único, como eu tinha dito, a não ter vida depois da morte. Eu respondilhe que, enquanto falasse comigo, enquanto o lembrasse, ele viveria. Mas ele quis saber mais: e se tu morreres, o que vai ser de mim, que sou teu filho? Quem vai cuidar de me responder? Fiquei embatucada. Na verdade, na teoria que eu tinha exposto, apenas tinham vida depois da morte aqueles que têm filhos. Todos os outros, as crianças que morrem, os casais inférteis e os homossexuais não teriam direito a uma vida posterior. Porquê? Perguntavame Luisito. E a resposta brutal era apenas uma, que eu não lhe queria dar. Porque não fica ninguém no mundo para os recordar. Uma pessoa só morre, quando morre a última pessoa que dela se lembra. E de súbito recordei que meu pai não tinha morrido, nem minha mãe. Nem sequer – imaginese – a Pilar, que tantas vezes recordo e cuja sepultura visito, por estar, ironicamente, enterrada no mesmo cemitério que Juan Miguel, aqui perto, mas no sentido oposto ao mar. No sentido da terra… Que injustiça há, porém, neste pensamento e que peso para os meus ombros. A minha morte implica a morte de Luisito e implica, de certa forma, a morte de Pilar e de Juan Luis, de minha mãe, de meu pai, dos meus manos Raul, Enrique, e Eduardo… e de Elena, que esteve comigo em Ayllón, e de seus pais, o bom Manuel Blanco e Dolores… E de Yannick a minha Madame … Só de repente contei uma dúzia de pessoas que morrem comigo, cuja memória se apaga, ou quase. Que poderá fazer Anita? Pode 135
lembrarse de mim e do pai, certamente o fará, porque sempre foi boa e sempre gostou de nós. Poderá, talvez, recordar a tita Pilar e o tito Juan Luís. Pode, com esforço, ter vagas lembranças de Elena, que conheceu em Madrid, sobretudo na época em que Maria lá esteve. E de Yannick, que viu algumas vezes. E da abuelita que morreu quando era já crescidinha. Mas já nada poderá fazer pelo avô, que nunca viu, a não ser nestas fotografias sépia, nem pelos três tios que morreram antes de ela nascer. E é triste interrogarme: para que viveram Raul, Enrique e Eduardo? Para que vive uma flor que é arrancada à nascença? Para que viveste, Luisito? E não há uma resposta. Se Raul, Enrique e Eduardo vieram a este mundo só para morrer numa guerra estúpida, sem outro desígnio, é porque não há desígnio. Nada nem ninguém teria como destino uma coisa tão sem sentido. Mas, por outro lado, se não há desígnio, por que digo eu que a minha vida depois da morte são a minha filha, os meus netos e as minhas bisnetas? Que sentido tem isso? Quem me assegura que não lhes sobrevivo, como sobrevivi ao resto da família toda? Afasto este último pensamento com um gesto que faço no ar. Um gesto largo que me derrubou o chapéu. E penso no horror que seria passar por mais uma experiência dessas… Não sei responder a Luisito e nem sei que lhe dizer. Salvo o que aprendi num bolero antigo que dizia assim: Toda una vida te estaría mimando, te estaría cuidando como cuido mi vida, que la vivo por ti .8 E será este, ao fim e ao cabo a minha raison de vivre . Vivo por causa daqueles que não vivem de outro modo. Porém, se assim for, eu tenho um desígnio que é este, e não posso dizer que não há desígnios. Que falta me faz Madame para resolver estas charadas… Os católicos – que eu também me considero, apesar da minha heterodoxia – resolvem este problema com a ideia de que os caminhos do Senhor são imperscrutáveis. Devem ser. Se o são, de facto, não vale a pena perder tempo em tentar compreendêlos, mas esta ideia gera outro paradoxo: se não perdemos tempo a tentar compreendêlos, como podemos saber se são imperscrutáveis, misteriosos, insondáveis? Não se tratará, ao fim e ao cabo, de erro nosso? De não tentarmos perscrutar os caminhos Dele? De sabermos, se o Luisito que fala é o meu filho ou se a sua voz sou eu, porque eu vivo por ele? E se eu vivo por ele foi porque alguém o determinou? Quem fez com que uma estúpida camioneta passasse precisamente à hora em que ele saiu atrás de uma bola? Foi o acaso? Mas o que é o 8 Toda uma vida te estaria mimando, te estaria cuidando como cuido a minha vida, que a vivo por ti. Bolero dos anos 40 cantado por António Machín, da autoria do cubano Oswaldo Farrés
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acaso? Será também imperscrutável, ou poderseá prever, ainda que com a margem de erro de uma previsão meteorológica. E mais importante do que isto tudo: onde entra a minha culpa nisto? Por que tive de sofrer tanto? Por que nasci num país que havia de fazer uma guerra, que havia de me separar de meus pais, que havia de matar os meus três irmãos e o meu pai? Por que razão vi morrer dois filhos? Por que razão, no mesmo ano, nesse preciso mesmo e horrível ano, meu marido, primeiro, a minha adorada Madame, depois, minha irmã a seguir, minha querida amiga Elena e por último a minha filha Maria morreram? Todos entre Janeiro e o Verão, porquê? É isto o acaso, ou é a vontade de Alguém, de Algo? E essa vontade tem um propósito, tem uma razão, ou é imperscrutável? Como eu odeio a palavra imperscrutável. Como eu me resignei a aceitála e como me resigno a não ter respostas para as perguntas que faço, embora quase sempre tenha para as perguntas que me fazem. Fátima apanhou o chapéu e pôsmo na cabeça. Perguntoume em que estava eu a pensar e eu respondilhe, como sempre, numa mistura de espanhol e português: na morte de la bezerra . E a bezerra, depois de morrer, tem vida, minha senhora? – Perguntou ela a sorrir. Eu vireilhe as costas, olhei para o mar e tive vontade de lhe responder que a bezerra vivia nela, que era uma grande vaca. Mas Luisito já me repreendera pelos meus modos ordinários, pelas palabrotas que agora dizia, de modo que me reprimi e apenas o sussurrei às ondas, que ao princípio da noite formavam manchas brancas como fantasmas. Espero que elas tenham sido complacentes para o meu humor cáustico e maleducado. XIV – A viagem Nunca passei naquele fio que marca o horizonte; nunca! E, de todo o espaço do mundo, de todo este planeta imenso, talvez fosse o local onde mais gostava de ir um dia. Chegar aquele risco onde os azuis se tocam e olharme de lá para cá; apurar a vista e verme a mim própria sentada neste cadeirão, defronte ao mar. Não seria como um espelho; não quero apenas verme, quero ter o ponto de vista de mim a partir daquilo que vejo. As casas, as pessoas, a agitação da praia vistas lá do fundo, como serão? Como será este meu quintal, que parece uma grande varanda sobre o mar com 135
duas palmeiras antigas e retorcidas e entre elas um cadeirão de verga onde está sempre uma velha a olhar para esse ponto indefinido que é, justamente, a linha do horizonte? Há barcos que se alugam – e eu poderia facilmente alugar um e fazerme essa vontade. Mas faltame o ânimo. A cada dia que passa, a vontade de fazer é menor do que a vontade de estar. Dizem que é normal, o médico diz que é assim… Há anos, porém, no fatídico ano de tantas mortes na minha vida, fui de barco. Minha filha levoume com ela, com o marido e com as suas filhas. Fomos de avião para Florença e ela obrigoume a calcorrear a cidade, atrás de uma guia idiota que nos explicava o que eu já sabia, embora só lá estivesse estado uma vez, já há muito tempo com Juan Miguel. O que mais me estonteou foi a quantidade de turistas por tudo o que era praça e igreja; diante de Santa Maria del Fiore ou nos Uffizi , como se toda aquela gente estivesse verdadeiramente interessada no Renascimento italiano, na estatuária de Michelangelo, nas pinturas de Giotto. Em todo os lados me acotovelavam hordas de japonesas, bandos de nórdicos, magotes de gauleses como se os bárbaros invadissem de novo a península itálica mas, desta vez, com fins culturais. Era impossível, insuportável. Sobretudo quando queria recordar a paz e a tranquilidade das ruas, da Ponte Vecchio , da pequena esplanada junto ao baptistério, locais que me vinham à memória do tempo em que, de braço dado com meu marido – e sem as hordas – ele me mostrou Florença, a mais bela pequena cidade da Europa, como dizia muitas vezes. Depois, partimos para Veneza. Lembrome de ter ido à missa na Catedral de São Marcos e de a ter visitado sem nada pagar, enquanto uma fila de turistas aguardava que o serviço religioso terminasse para poderem, então, entrar em rebanho e visitar o templo. Impressionoume muito esta forma de fazer turismo. Por que razão as pessoas estão tão interessados numa igreja e tão desinteressados daquilo que para ela serve – meditar, realizar eucaristias ou missas, que no étimo da palavra significa partilhar a graça, o carisma? O que leva tanta gente a querer conhecer o local sem se aperceber do significado das duas colunas que ficam à porta da Catedral? Ou da sua arquitectura bizantina? Ou do leão, que é o símbolo da cidade? Digo isto com a certeza de ter viajado com um par de pessoas, minha filha e Humberto, para não falar das meninas, então ainda todas solteiras, que, como se diz em bom português, eram bois a olhar um palácio… Convencionouse que o turismo cultural tem algo de superior ao turismo de praia ou de montanha. Roma, Florença, Atenas, Paris, Londres, Madrid – todas essas cidades têm os museus 135
cheios de basbaques que não entendem nada do que vêem, apreciando tantas vezes coisas que não passam de enganos e mentiras. Logros, fraudes, embustes. Yannick, a minha Madame – mas ela já não estava cá para mo dizer – diria que o turismo é isso mesmo – coleccionar locais em que se esteve e dizer duas patacoadas sobre a arquitectura, os museus, o modo de vida e a gastronomia. E que, no fundo, aquilo a que chamamos cultura não passa disto mesmo. E eu contraporia que o argumento dela não faz qualquer sentido, porque a cultura tem de aspirar a ser mais do que patacoadas e que, se as pessoas estivessem deveras interessadas em cultura, interessarseiam por missas, porque a própria missa é uma clara forma de arte e uma chave para entendermos a nossa cultura. Sei que palavras trocaríamos as duas, por vezes sob o sorriso brando e talvez displicente de Juan Miguel, que pensaria lá com ele: para que discutem estas mulheres coisas tão sem importância, tão irrelevantes? Mas é precisamente por se ter perdido este hábito de começar por debater as ninharias, que não se chegam a debater as coisas verdadeiramente relevantes. A missa é uma arte, disso tenho a certeza. E mais: se por acaso não se realizasse uma missa desde o século XVI e através de uma pista entretanto descoberta se conseguisse refazêla na actualidade os turistas compareceriam em massa e pagariam bilhetes caros para ver essa relíquia do passado. Mas, como essa relíquia do passado se realiza – com certas transformações, é certo – há cerca de 2000 anos, ninguém se interessa por ela, salvo os crentes e as pessoas como eu e Yannick, que debatíamos os pequenos temas, os pequenos mistérios da vida e da morte. A praça de São Marcos é tão magnífica quanto inesquecível. Na esplanada do Florian, enquanto se tocavam valsas, deume um impulso quase irresistível de dançar e depois andar de gôndola, como se tivesse um amante, um namorado. Mas não tinha par que não fosse o idiota do Humberto e, depois, tive medo de me desequilibrar fosse nas voltas da valsa, fosse ao entrar no pequeno barco; já tinha mais de 80 anos e tinha muito mais medo da minha idade, mais medo da doença, das quedas e da morte do que tenho hoje. Talvez fosse mais sensata, ou talvez tenha aprendido, não sei. Apanhámos um paquete em Veneza. Um barco com sete ou oito andares, inacreditavelmente grande, com piscinas, campos de basquetebol, ginásios, cabeleireiros, lojas, casino e tudo o que se possa imaginar lá dentro. Parecia um arraial constante, repleto de famílias felizes e tontas, que me deixaram totalmente alheia. Na viagem passámos por Bari, por Santorini, por Atenas, por Katakolon, por Dubrovnick e voltámos a Veneza. O meu genro 135
deve ter gasto bastante, pois alojámonos em três camarotes simpáticos com grandes varandas de onde se via o mar, tão perto, tão prateado, que fiquei fascinada e passei os dias quase inteiros naquela varanda a ver o mar Mediterrâneo, as suas pequenas ondas, as variações da sua cor, os reflexos de prata que o Sol lhe provoca. Apenas me levantava para as refeições e pouco mais. Minha filha comproume revistas e livros em português e também em espanhol para afastar de mim as más lembranças. Mas eu, que me recorde, não tive lembranças. Que lembranças poderia eu ter? A morte é um torpor, não é uma recordação nem uma saudade. É um torpor, um torpor absoluto que nos deixa com uma força que não supúnhamos ter para sermos capazes de superar a perda. Um torpor que nos vai guiando os passos, sem que disso tenhamos consciência, como se os passos já não nos pertencessem, não fossem os nossos, mas os passos que damos porque não temos outra hipótese, ou porque não sabemos fazer de outra forma, ou porque já nada nos interessa. Por isso não li. Apenas olhei o mar. A viagem teve, entretanto, outro objectivo que para mim não fora claro desde o início. Minha filha tinha decretado que eu não poderia continuar a viver sozinha. Há já muitos anos que eu e Juan Miguel tínhamos escolhido esta casa frente ao mar para vivermos todo o ano. De férias vinha o resto da família, por vezes também minha irmã, e juntávamonos aqui uns dias. De resto, o Algarve de Inverno é uma maravilha. Mas aquele ano de todas as mortes deixoume sozinha com Fátima neste casarão, o que preocupou Anita. Foi assim que ela e Humberto resolveram que eu iria para Lisboa, viver com eles e com as minhas netas. Na verdade, durante a doença de Juan Miguel, que foi seguida por um médico de Lisboa, eu já vivia praticamente em casa deles. Mas na Páscoa voltei a minha casa, com a diligente mas ineficaz Fátima, que vivia então um processo de divórcio – há anos assim, que parecem desenhados para concentrarem tudo o que de mau e de complicado possa acontecer. Soube mais tarde, mais pelo que ouvi e tirei pelo sentido, que Fátima se sentia, por alguma razão, insegura a viver no casarão sozinha comigo, como se Juan Miguel com 80 anos nos valesse de muito… Sempre fiquei desconfiada de que ela tinha um arranjo em Lisboa e quis mudarse, mas não posso ter a certeza. De qualquer modo, o que aconteceu é que ela foi uma poderosa aliada de minha filha para que eu ficasse em casa dela. Consegui uma moratória para depois do Verão. Sinceramente preferia morrer imediatamente nesta casa do que viver mais sete anos (como já vivi) estando a maior parte do tempo longe do mar. 135
A casa deles é confortável, mas é a casa deles. Não é a minha casa, embora até esta, pelo menos no que toca ao mobiliário, esteja progressivamente, também, a deixar de ser minha… A viagem foi uma forma de estarmos mais juntos e de me convencerem, com bons modos, a viver com eles. A minha neta mais velha ia casarse e deixar a casa para ir para os Estados Unidos, como foi, e a segunda foi para casa do namorado mesmo antes de casar. Por isso, com muito menos gente no prazo de um ano – argumentava Anita – deitavase por terra a ideia de que eu ia dar muito trabalho a todos. Ao mesmo tempo, a solidão que por vezes sentia neste casarão do Algarve, empurravame para um lugar que, mais do que casa, era um lar. O lar de minha filha, que sempre foi resignada, dócil, amiga, meiga mas com a qual nunca me preocupei, exactamente porque era assim. Os dias do cruzeiro, tão perto do mar que quase parecia poder tocarlhe com as mãos, foram dedicados a pensar se aceitaria ou não viver com eles. Por um lado, nunca escondi isso de forma eficaz, Humberto sempre me irritou. É correcto, tem boas maneiras, trata bem a mulher e as filhas, ganha um bom salário e reúne uma série de outras qualidades de que seguramente nunca me apercebi. Mas é um gestor. Apenas centrado na gestão da sua equipa e em coisas que se dizem em inglês e que eu nem percebo o que são. A diferença entre ele e Juan Miguel, que também tratava de negócios, é que meu marido nunca me maçava com essas questões, ao passo que Humberto, mal se senta à mesa dispara sobre Anita problemas que têm a ver com a Bolsa, ou com o orçamento não sei de quê e a contabilidade de qualquer coisa. Minha filha ouveo como se percebesse – e se calhar percebe, porque eu um dia pergunteilhe, à sorrelfa, se ela percebia e ela respondeume, para minha enorme surpresa, que sim. Enfim, Humberto, pensava eu, não é magnífico, mas não é insuportável. Era um ponto negativo na decisão, mas não era um ponto impeditivo. Já de Anita eu gosto muito. É a minha filha mais velha e a mais serena. Tal como eu, já é uma sobrevivente – morreramlhe os dois irmãos, ambos em circunstâncias estranhas, trágicas. Tratou, sempre com grande devoção, as filhas e o marido, com quem era casada, na altura, há 28 anos (farão este ano 35 anos de casados e haverá festa, segundo me disseram, por serem as Bodas de Coral, de que eu nunca tinha ouvido falar. Mas a verdade é que nunca tinha ouvido falar do dia dos namorados, nem no do dia da avó, nem da maior parte dos dias que agora se comemoram). Talvez por ter sido sempre tão certinha, boa aluna, boa filha, boa mulher, boa mãe e, agora, boa avó, nunca eu lhe prestei a atenção devida. Anita era um ponto positivo, não decisivo, mas positivo… Talvez pudesse refazer com ela as longas conversas com Yannick. Depois, havia as meninas, em quem depositei algumas 135
esperanças. Mas logo no barco percebi que as meninas de agora não são – de todo – semelhantes às meninas do tempo de minha filha. As meninas, no barco, levantavamse ao meiodia, para almoçar, e deitavamse depois de noites de festa, sem que os pais quisessem saber delas, às quatro e cinco da manhã. Muitas vezes dei pela mais nova, que dormia no meu camarote, deitarse já com o Sol a raiar, não disfarçando o cheiro a álcool e a tabaco. Fiquei convencida de que as três fumavam e bebiam à vontade, não à minha frente, talvez por decoro, mas seguramente à frente dos pais. A verdade é que duas delas se preparavam para casar ou juntarse ou qualquer coisa assim, o que fazia delas, mais do que adultas. As meninas eram um ponto neutro. É certo que gostavam de mim e me mimavam. Eu era uma avó fixolas como dizia a mais nova. E era – davalhes dinheiro, contavalhes histórias, sobretudo acerca dos hábitos do meu tempo, como conheci e como dancei com o avô e elas riamse e achavam fascinante o modo como o mundo mudou, desde esse agora tão longínquo ano de 1921, em que nasci, até hoje… Viver sozinha com Fátima era um ponto negativo, preferia as amarguras orçamentais de Humberto… E este era um ponto a favor da mudança. Mas a casa – a casa era um ponto contra. Ao fim de seis ou sete dias de viagem desisti de pensar. E pensei que seria como uma pequena garrafa de plástico que vi em pleno mar – deixarmeia ir, deixarmeia ir até onde me levasse o acaso. Há quase oito anos que vivo em Lisboa, salvo durante o Verão, quando, entre semanas a sós com Fátima e outras com a minha filha ou com as minhas netas, aqui estou a fitar o mar. Sentada neste cadeirão de verga, que afinal é o mesmo sítio do que a varanda do camarote – uma cadeira virada para o oceano, tão perto que quase lhe toco, e onde penso, penso, penso e nunca chego a qualquer conclusão , a não ser que, como então pensei naquele enorme barco, gostaria de estar naquela linha do horizonte para de lá me ver a mim – não como nos vemos num espelho, mas talvez da maneira que Deus nos olha. XV – As bodas Nunca me apaixonei verdadeiramente, salvo nestes últimos dias. Apaixoneime por este mar. Não é paixão à primeira, nem à segunda vista, mas é uma paixão repentina, de quando o comecei a ver com outros olhos, quando o imaginei envolverme e abraçarme. Foi, talvez, uma ternura antiga que se tornou paixão, 135
contrariando a ideia comum de que são as paixões a transformaremse em ternura. Eu nem sabia o que era uma paixão antes desta, se é possível que uma mulher com 88 anos se apaixone por um mar inteiro. Toda a vida ouvi pessoas a dizer que tinham paixões por isto e por aquilo. Se ter paixão é gostar muito – e não é mais do que isso , então tive as minhas paixões: por Juan Miguel, por meus filhos, por meus netos, por Madame , por música, por cinema, por livros, por paisagens, por cidades, por montanhas, por países, por cheiros, por cores, por assuntos, por debates. Agora, porém, que eu entendo que paixão é algo que nos prende de forma irracional, que nos faz ficar, que nos atrai contra a nossa vontade, que contraria o bom senso, que faz pouco de nós, que derroga e subverte as nossas crenças e convicções – e tudo isso eu sinto pelo mar – então nunca senti nada assim, como sinto hoje. Eu olho o oceano horas por dia, as ideias fluemme enquanto o olho e nada me faz sair do seu lado, apesar de ele se manter imperturbável e majestoso, como sempre, desconhecendo sequer a minha presença. Amar alguém que nos ama é fácil. Amar alguém que nos ignora é outra coisa a que poderemos, de facto chamar paixão. Acredito que um pianista possa ter esse sentimento pelo seu piano. Uma jovem pode ter esse sentimento por alguém mais velho, pelo seu amor secreto impossível, como eu, aos 13 anos, tive por Carlos, o mergulhador que me ensinou a entrar na água de forma elegante e que tão mal tratado acabou às mãos de meu irmão Raul. Mas não quando se é adulto, não quando se casa, não quando se constitui uma família. Acredito que a baboseira do amor e da paixão, inventadas em grande parte no século XIX, segundo creio, é responsável por muitos males e equívocos por que passam os casais actualmente. Dantes as pessoas casavamse por dois motivos: porque tinham interesses comuns e porque queriam ter filhos para ajudar nos trabalhos e na subsistência e tratar deles na velhice. Depois, passaram a casar por amor. Mesmo os reis e os príncipes quiseram casar por amor – vejam Carlos e Diana... Deu sempre mau resultado, porque o amor esgotase e ou se transforma em amizade ou em desprezo. Os casais enamorados são, agora, demasiado próximos. Eles não representam uma parte, como nos contratos, mas ambos pretendem ser um todo – e partilham segredos, como partilham a nudez, os casos, as angústias e as misérias. Quando se partilha a roupa suja, só uma grande amizade ou um enorme sentido do dever pode salvar uma vida em conjunto. Se não há uma nem outra, afundase o casamento. No geral, se perguntarem aos jovens por que razão se querem casar, a maioria deles dirá que é por amor. Que tragédia! Minha filha Maria casou sempre por paixão – dizia ela. Viu o seu primeiro marido e apaixonouse! Viveu intensamente com ele, 135
teve dois rapazes e separouse. Acabou o encantamento ao fim de dois filhos. Quando eu lhe perguntava porquê, apenas respondia: Ele deixou de me achar graça. Tirando eu, ninguém achava estranho. Não o podia dizer, claro, mas fariam as minhas filhas ideia de há quantos anos eu deixara de achar graça a Juan Miguel? Embora tivesse por ele uma enorme amizade, desde há muito, desde as suas primeiras traições, que eu lhe deixara de achar graça. Maria conheceu outro homem pouco depois e – zás! – apaixonouse. Conheceuo em Madrid por ele ser de alguma forma relacionado com a minha amiga Elena. Acho que o homem ficou fascinado por uma menina que vivia em Portugal e falava um espanhol impecável. Ela voltou a Lisboa, mas tinha sempre a cabeça em Madrid. Telefonavamse horas a fio, até as orelhas arderem aos dois. Até que um dia, minha filha me comunicou que ia para Espanha para viver com su novio . E queria partir imediatamente para a capital espanhola. Mas, como del dicho a hecho, hay gran trecho não foi assim tão simples partir. O seu exmarido iniciou uma longa querela pela tutela dos dois filhos, foram mobilizados advogados e especialistas e – como era de supor, logo no início – ele ganhou e ficou com as crianças. Até hoje pago este litígio vendo os meus netos muito menos do que as minhas netas. Sãome distantes, viveram com o pai e estão agora a iniciar as suas vidas. Visitamme quando estou em Lisboa, vêemme pelo Natal e pelos meus anos. Comunicaramme dados importantes – acabei o curso, vou para Inglaterra estudar, vou fazer isto e aquilo, arranjei um emprego, estou a pensar casar – mais nada. Voltando a Maria, depois de perder os filhos, ainda mais vontade tinha de ganhar o homem. O que fez. Partiu definitivamente para Madrid e ali viveu dois ou três anos com ele. Acontece que, depois de conhecermos melhor o homem, que nem era antipático, Juan Miguel engraçou com ele. Combinámos ir dar uma volta por Espanha e que eles nos acompanhariam. Porém, assim que chegámos a Madrid descobrimos que estávamos a navegar con bandera de tonto . A relação deles estava mais do que acabada. Tão acabada que – em nome da sacrossanta transparência e não menos sagrado combate à hipocrisia – nos comunicaram que não iam connosco. Ora, nós só íamos porque eles vinham connosco, de maneira que voltámos para trás, fingindo que íamos em frente. Paciência… Mas Maria não se ficou por aqui. Depois de uma longa temporada sozinha, que passou em Madrid, onde tinha emprego e – menos mal – o apoio da minha querida amiga Elena, acabou por se apaixonar pela terceira vez. Quando mo comunicou eu aviseia que uma vida serena não era assim. Ela não acreditou e foi em frente. Foilhe fatal. Fatal de um modo inacreditável e que ainda 135
hoje me arrepia. Já Anita se parece muito mais comigo. Namorou o Humberto, casou com o Humberto, vive com o Humberto. Não sei se traiu o Humberto e o se o Humberto a traiu a ela. Nem quero saber. É, aparentemente, feliz. E toda a felicidade que Maria perseguiu em nome da sua liberdade pessoal para amar quem queria, no momento que queria, não vale uma semana da sossegada felicidade de Anita. Mas os românticos que empestaram o nosso pensamento continuam a querer libertar não o ser iluminado que há em nós, mas o animal que está dentro de nós. E o animal é estúpido, ou pelo menos não é tão inteligente como o ser racional e iluminado. Por isso persegue o que não há: pretende expandir um momento de felicidade – o momento do primeiro beijo, do primeiro encontro, de uma boa relação sexual e fazer desse instante, desse lampejo, toda uma vida. É mentira. Escrevei isto com letras de ouro na vossa consciência, como dizia o padre daqui da terra na missa da semana passada. Escrevei, de facto que é mentira, porque é das mentiras mais mentirosas que existem! O momento, a felicidade que se sente, nos inunda num momento não é prolongável pela vida. Do mesmo modo que não se pode correr ou andar infinitamente e se tem de parar ao fim de um tempo, a felicidade tomase em pequenas doses, entrecortadas por outras doses – de preferência também pequenas – de infelicidade. A mim, que tudo me aconteceu, da guerra às mortes, do casamento à traição, do amor à velhacaria, eu que tive tanta infelicidade por parceira, mentiria se não dissesse que também fui feliz. Maria só queria ser feliz, ao passo que Anita, mais sábia, também queria ser feliz. A diferença parece pouca, mas é imensa. Anita casouse discretamente, tal como eu, numa pequena Igreja com menos de 50 convidados. Maria, no seu primeiro casamento, casouse na Igreja do Estoril, com mais de 400 convidados. Anita foi aprendendo a gostar do seu marido, ao mesmo tempo que Humberto aprendeu a gostar dela. Maria pensava que não podia gostar do marido mais do que aquilo que já gostava. Anita, na primeira pequena crise que teve, não a valorizou; Maria, na primeira crise quase deitou a casa abaixo. Por isso, eu e Juan Miguel vivemos as crises de Maria, todas de perto, e deixámos que Anita se desenvencilhasse. Se Anita alguma vez pensou que nós a colocávamos em segundo plano, nunca o disse, mas Maria sempre se queixou que nós gostávamos mais de Anita. Por isso eu riome sempre que nos jornais e nos programas de televisão ouço enfatuados a explicarem a importância da educação na formação do carácter. Anita pedia desculpa mesmo antes de fazer algo mal, Maria achava sempre que a culpa não tinha sido dela. Não pôde haver educações mais iguais, não pôde haver pessoas mais diferentes. Já eu e Pilar foi o que se viu – mas no 135
nosso caso tínhamos estado quase três anos separadas, numa idade fundamental para o desenvolvimento. Anita e Maria viveram na mesma casa, com a mesma cultura, com os mesmos padrões e as mesmas exigências. Se alguma coisa houve de diferente nas suas vidas, foi que Anita viu Luisito morrer… Devo dizer que foi Luisito, já há muitos anos, o primeiro a falarme desta diferença e a mostrarme que eu não dava a Anita tanta atenção e amparo como a Maria. Seja como for, Maria teve sempre as suas paixões desmedidas, enormes, disformes, grandiosas. Em tudo era exagerada, mesmo nos ciúmes, ameaçando à toa os homens que a traíssem. Minha tia Concepción – disseme minha mãe já eu era mais do que adulta – tinha sobre este assunto uma grande sabedoria. Dizia ela, referindose à eventualidade de o seu marido a trair, que no es jabón que se gaste . E tinha toda a razão, desde que feito com classe e sem ferir parceiros, não é de facto sabão. Eu preferia dizer, do meu Juan Miguel – mesmo depois do infausto caso de Pilar – uma frase que aprendi de uma amiga: não sei, se souber não me importo e se me importar não digo. Ainda hoje penso que não há outra forma. Se há algo que aprendi com Juan Miguel é que as pessoas não mudam. Podemos darlhes todo o amor do mundo, fazer por elas o que não faríamos por ninguém, mas na essência, elas não mudam. Quando era nova e gostava de dançar, havia uma música que meu marido me cantava ao ouvido, para me provocar, e que eu hoje me recordo bem, como recordo tudo o que é velho e inútil. Dizia assim, e a fala era de um homem, a quem chamavam Corazón Loco por amar duas mulheres ao mesmo tempo: una es el amor sagrado/ compañera de mi vida/ esposa y madre a la vez/ y la otra es el amor vivido/ complemento de mis ansias/ al que no renunciaré/ y ahora ya puede saber/ como se pueden querer/ dos mujeres a la vez . Quero crer que Juan Miguel era assim, precisou sempre de um complemento para as suas ânsias, coisa de que só necessitei muito mais tarde, passados já os 50, quando o meu psiquiatra Artur as acalmou. E também, então, percebi, quanto vale o amor vivido de que fala a canção, amor por amor, sem qualquer construção a partir dele, apenas para ser, apenas para sentir, para ter os momentos de felicidade que não se podem prolongar. Tudo isto para dizer que não, que nunca estive propriamente apaixonada. Vivi momentos entusiasmantes com Juan Miguel, tivemos instantes em que eu daria a vida por ele – e mais do que a minha vida, a vida de todos os que amava para ficar só com ele. Mas como disse, eram momentos únicos, milésimos de segundo, 135
um minuto que fosse… e embora pudesse querer que o tempo parasse, que o tempo ficasse sempre naquele momento, nunca me iludi. O tempo passa – e lembrome de outra canção, esta mais recente e mais apropriada à minha circunstância: El tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos/ y el amor no lo reflejo como ayer/ Y en cada conversación/ cada beso, cada abrazo se impone siempre un pedazo de razón/ Pasan los años y como cambia lo que yo siento/ lo que ayer era amor se va volviendo otro sentimiento/ Porque años atrás tomar tu mano, robarte un beso/ sin forzar un momento formaron parte de una verdad. Na verdade, o amor não se mostra aos 30 como quando se tem 15 anos. Foi esse o mal de Maria e foi essa a sabedoria de Anita. E eu, tão boa a classificar minhas filhas, como fiz? Bem, eu deixeime ir, como sempre. Casei quase sem dar por isso, tive momentos de grande felicidade e momentos de grande amargura. Ameio em muitos diferentes momentos da minha vida, como noutros – como naquele em que cheguei a ir para Madrid ter com Elena (fingindo que ia ver Maria, mas com a intenção de fugir) , noutros quase o odiei. Porém, no momento em que ele adoeceu, quando ficou claro que se ia para sempre, reconheci que o amava. Mas não estava apaixonada como estou pelo mar. Não conseguia estar um dia a olhar para ele, sem que ele, sem forças nada me dissesse, apenas sussurrasse aquele sussurro dos moribundos e que tem o som cavo das ondas a bater na areia. Agora sim, agora ouço o mar e amo o mar. Não quero outra coisa que não seja o mar. XVI – Deriva O mar pareceme, também hoje, um lago. Quase não ondula, não tem variações de tom na cor; está parado, quieto e silencioso, como se preparasse alguma coisa em segredo, algo que jamais poderia partilhar com o magote de pessoas, milhares de banhistas que se amontoam na areia à sua frente, de ano para ano mais carregados com farnéis e merendeiras, autênticos frigoríficos ambulantes, de onde mulheres com banhas a resvalar dos biquínis retiram a água fresca para os filhos e as cervejas para os maridos barrigudos, os quais exibem, em geral, uma tanga ridícula sobre a qual lhes cai a protuberância estomacal como uma papa derramada de um boião. São visões do inferno, parecem pormenores de quadros de Bosch onde se vêem os ventres proeminentes dos pecadores, 135
alguns repletos de chagas, a serem atacados por quimeras, seres simultaneamente bichos e homens. Meu Deus! Sinto, em doses relativamente iguais, nojo pelo que vejo e prazer por estar aqui, uns metros acima do Inferno, desfrutando o mar que eles só vêem entre os folhos dos chapéusdesol. Fátima estava insuportável hoje. Acho que já telefonou duas vezes para Lisboa a fazer queixa de mim. De uma delas, ouvia claramente referir que estava preocupada com o facto de eu não comer… achava que podia estar doente. Da outra, não sei que terá sido, mas aposto que falava com minha filha. Imagino a desgraçada da Anita no seu emprego, na sua pequena secretária num ministério, num gabinete pequenino, a ter de ouvir, com a sua atitude pachorrenta, as queixas desta mulher. Quando começava a respirar, com as filhas encarreiradas, duas fora de casa e uma que já pouco tempo lá passa, caiolhe eu como uma menina pequena, a precisar de cuidados de empregada e de preocupações com o que como. A pobre deve ficar angustiada, seio perfeitamente. Tanto mais que acompanhou comigo – mas foi ela, sobretudo, porque eu já estava velha e a cidade atrapalhavame os passos – a morte do pai, cujo primeiro sinal de doença foi, exactamente, não comer. Eu não como, não porque me sinta mal, ou porque não queira, mas porque roubo muita comida às escondidas. Todas as manhãs, Fátima dáme seis comprimidos (a dose passa para oito ao almoço, seis ao lanche e mais uns oito ao jantar), mas antes disso medeme a glicemia e aponta num livrinho. É Anita que a obriga a fazer isto. Quando aponta, diz sempre: Ai, minha senhora, que tem tanto. Por que será? Eu não lho digo; apenas ajo como as crianças traquinas, e façoo apenas porque – como se diz em espanhol – me da la gana . O que faço é roubar bolachas e sobretudo batatas fritas. Se apanho chocolates também os como, mas neste particular tenho de ser rápida porque a própria Fátima, no geral, antecipase. Sempre que me leva a dar um pequeno passeio, que ultimamente tenho recusado, tomamos café numa pastelaria que serve uns pequenos chocolates a acompanhar as bicas. Pois ela guarda sempre os chocolates – e às vezes o senhor dálhe mais do que um, chega a darlhe molhos de cinco ou seis – e eu, quando a apanho entretida, roubolhos e como. Como todos, como acabo sempre os pacotes de batata frita. Porque me apetece. Anita já me apanhou muitas vezes nestas actividades subversivas e ralhame. E eu digolhe, que interessa, filha, que interessa que me faça mal agora. Já tenho 88 anos e posso morrer disto ou daquilo. E ela, sem resposta, apenas me diz: ¡Que va, mamaíta, no digas tonterías! Juan Miguel deixou de comer com apetite a meio de um 135
Verão, há sete ou oito anos, não consigo já recordarme com precisão. Coincidiu virem cá a minha filha e o meu genro, que acharam estranho ele não querer comer nada e fazer um grande sacrifício para ingerir o que quer que fosse. Telefonaram a um médico amigo, de Lisboa, que o mandou fazer umas análises. Aparentemente, estaria tudo bem. Anita e Humberto voltaram para Lisboa, mas Juan Miguel não melhorava. Anita dizia a Humberto (disseme, mais tarde Fátima) que achava que o pai estava deprimido, por qualquer motivo. Mas ele não melhorava, comia cada vez menos e eu preocupeime seriamente. Maria passou cá por casa, vinda de Madrid, onde continuava a viver com o seu terceiro homem – com o qual, aliás, lá se casara num acto simples de Cartório a que nenhum de nós foi – e ficou, igualmente preocupada. Como sempre fez na vida, quando se preocupava com qualquer coisa, mas sobretudo com um de nós, telefonou à irmã e pediulhe que ela viesse ao Algarve. Entretanto, desapareceu com o seu homem, que nem por acaso era um médico, embora traumatólogo9 – não sei como se diz em português – tendo ambos voltado para Madrid. Anita e o marido lá vieram um fimdesemana findo o qual decidiram, depois de muitos telefonemas para Lisboa, levarnos com eles. Foi também a último dia em que vivi nesta casa, com o meu marido, como vivia então. À saída, o carro teve uma complicação qualquer e tivemos de chamar um reboque. Juan Miguel sentouse numa pedra da beira da estrada, olhoume com o ar mais triste que o vi fazer em toda a sua vida, disseme: Vês, cariño , alguém não quer que a gente se vá embora. Eu respondilhe apenas:
Ora, my rey, voltaremos muy pronto!
Juan Miguel nunca mais viu este mar, esta casa. Em Lisboa teve quatro ou cinco meses de sofrimento, internado num hospital onde eu e a minha Anita o visitávamos duas vezes por dia. Também as minhas netas, Humberto e minha irmã Pilar estiveram muito tempo à sua cabeceira, e até os meus netos e o meu exgenro, correctíssimo como sempre, apareciam todas as semanas. Maria também veio de Madrid três ou quatro vezes, visitar o pai. O diagnóstico não podia ser pior: cancro no pâncreas. Fatal, sem remédio, sem cura. Implacável. Juan Miguel fez todos os tratamentos e teve todo o apoio que é possível um homem nas suas circunstâncias ter. Anita e 9
Ortopedista
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Humberto fizeram tudo o que lhes foi possível, tanto mais que Juan Miguel, à medida que a doença o tomava, ficava a maior parte do tempo inconsciente, ao mesmo tempo que eu ia caindo num torpor, não permitindo que alguém pudesse contar comigo para tomar uma decisão ou para agir. Não era, de facto, capaz de ter qualquer iniciativa. Foi, aliás, nesse momento que descobri quanto dependia dele. Nem sabia em que bancos tínhamos dinheiro – nem, a bem dizer – se havia dinheiro. Eu não tinha cheques e nunca soube os códigos dos meus cartões bancários. Eu já não guiava, não tinha carro, não tinha autonomia. Eu dependia dele e estava a ficar sem ele. Foram tempos de muita angústia, até que um dia de Janeiro, um dia frio como a morte, o meu Juan Miguel faleceu no hospital. O médico perguntou claramente a minha filha se achava bem aumentar as doses de morfina, o que lhe abreviaria a vida. Anita não quis tomar a decisão sem me consultar e eu – que Deus me perdoe – não me opus. Apenas disse a Anita: acho que a decisão sobre a sua vida já foi tomada. Deste modo, todo o dia a dormir, inconsciente, não é ele. Anita não acrescentou mais nada e as doses foram aumentadas até que Juan Miguel dormiu trop longtemps , como diz a canção de Brel. Eu acredito que a medicina, hoje em dia, impede a dor. Mas creio que a eutanásia é, na maior parte dos casos, uma falsa questão. Os médicos sabem bem o que fazer e se não confiamos neles, abrimos uma brecha terrível na nossa sociedade. Utilizar o tema da eutanásia como conceito político é perigoso, porque dá a possibilidade de se matar alguém legalmente. Proibila é criminoso, porque se obriga alguém a uma degradação física e moral, contra a sua vontade. Se querem opiniões honestas e desapaixonadas sobre o assunto, perguntemme a mim que sou velha, ou a outros como eu… Porque se háde deixar garotos de 40 anos brincar com temas que são mais próprios de velhos? Por essa altura, ainda eu não sabia que se iria abrir o mais negro período da minha vida, pior do que aquele que se abateu sobre mim no tempo da guerra civil. Tinha, na altura, 81 anos – Juan Miguel, mais novo do que eu, ainda só tinha 79. E eu estava guardada por Deus – ou por quem fosse – para os piores dias da minha vida. A morte, como já disse, é um torpor. Fiquei atordoada, não fiquei com pena de mim, porque estava preparada para a morte de meu marido. Quando soube da notícia – tinha acabado de chegar ao hospital com a minha empregada, enquanto Anita fora arrumar o carro Fátima agarrouse a mim a chorar. Nem me deu a possibilidade de poder amparar a minha filha Anita, que, apareceu pouco depois, e ficou visivelmente em baixo, quase a cair de 135
tristeza, de cansaço, de pena, de medo. Penso que Anita, nesse momento, chorou tão convulsivamente como eu chorei em Ayllón, abraçado a Dolores, Elena e Manuel Blanco, quando soube que meu pai e meu irmão Raul tinham ambos morrido. Desta vez, apenas fiquei atordoada, mas resisti sem me ir abaixo; já Anita parecia que lhe tinha desabado o mundo em cima. Juan Miguel foi para uma Igreja perto de casa de Anita, onde foi velado por muitos amigos dos meus filhos, sobretudo. Depois, organizámos o enterro para o Algarve, para perto da casa onde vivíamos, para um jazigo que ele próprio mandara fazer e onde queria – por convicção que eu não entendo, mas respeito – juntar toda a família. Esse desejo, ainda que muitas vezes relembrado por Anita, nunca foi consumado, pois nunca trasladámos nem o nosso Luisito nem a nossa filha Maria para o pé do pai. Apesar disso, no alto da porta do jazigo lêse: JUAN MIGUEL TRILL SANTIAGO E SUA FAMÍLIA E toda a sua família esteve presente; Pilar deume muito a mão e o braço e chorou muito no meu ombro, dizendome que metade do seu choro era pena e o resto era a remorso que ainda sentia pelo que me tinha feito. Como remorso em espanhol é remordimiento eu cheguei a brincar com ela, em pleno funeral, dizendolhe: então, Pilar, no seas perra não te mordas mais! Maria e o seu novo marido médico vieram de Madrid, de carro, numa correria louca, para Sevilha e depois para aqui. Chegaram já o cortejo tinha saído da Igreja para o cemitério. Maria apertoume muito um braço, até doerme – e foi essa a última vez que a vi e que a senti – mas não quero falar disso agora. Quase toda a vila compareceu, afinal Juan Miguel era um benemérito, um entusiasta e, de certa forma, um filho daquela terra, ali nascido a poucos quilómetros, onde sua família tivera o negócio da cortiça. Já viúva, voltei para Lisboa. Voltei convencida de que iria viver pouco mais tempo. Esse, aliás, era o convencimento de Pilar, que agarrando Anita lhe disse num tom de voz que julgou que eu não ouviria: Agora tens de tomar bem conta de tua mãe. Sem teu pai, ela não se aguenta nem seis meses… Não lhe levei a mal porque pensava o mesmo. O que nunca pensei foi que Pilar me faltasse logo a seguir… Mas o torpor que nos invade reúne forças sabese lá de onde… E aqui estou, viva, passados sete anos de tormentos, a roubar batatas fritas como projecto ousado de vida, a enganar uma empregada e a minha própria filha, fingindo que não como, quando o meu mal é ter 135
comido. E agora, que faço? Para que vivo? Que préstimo tenho? A que me destino? Estas foram as questões que coloquei a mim própria. Como sempre, quando tinha decisões difíceis a tomar, escrevi a Madame . Mesmo na época dos telemóveis, nunca perdemos este vício antigo de comunicarmos por carta. E ela respondeume com a sua sensatez proverbial e os seus conselhos mais simples e encantadores: vai para onde te levarem – aconselhoume. Deixate ir, vive cada dia. Carpe diem . Foi esta, também, a última carta que recebi de Yannick, a minha Madame . Passadas nem duas semanas, recebi uma outra, de um primo afastado, cujo nome nem conhecia, informandome do falecimento de Yannick Gradignan, professora jubilada da Universidade de Bordéus, actualmente Universidade Bordeaux 3, Michel de Montaigne (pensador de que ela gostava tanto). Tinha 88 anos, a idade que eu tenho hoje… Mas o seu conselho ficou gravado em mim. Tenhome deixado ir. Fiz um cruzeiro, fui passar férias ao Norte, à casa de família de Humberto, fiquei a conhecer os pais de Humberto e uma sua tia simpática que aqui já esteve comigo umas semanas; levaramme para aqui e para ali, a festas de fimdeano, de Carnaval a Natais em casas de pessoas que eu mal conheço, mas que parece que são da família das minhas netas, a jantar com os pais do genro da minha filha, que é pai de uma bisneta minha… eu sei lá. Eu fui, tenho ido… tenho seguido à risca o conselho de Madame . Por isso aqui estou com Fátima, neste casarão. A tentar roubarlhe os chocolates e as bolachas, as batatas fritas e ainda mais uma coisa que eu descobri que é óptima: manteiga salgada comida às colheres. Faço o que me apetece, chateioa à exaustão, só para me divertir, finjo que não consigo fazer determinadas coisas, desligo os aparelhos do ouvido e ponho a televisão no máximo até ela se exasperar. E ela, coitada, não distingue o que é comédia do que é sério, mas felizmente acede à única exigência que lhe faço e que lhe levaria a mal se não cumprisse: que se afaste de mim durante as longas horas em que aqui me sento a ver o mar, e me deixe sozinha com os meus pensamentos. 135
XVII – Madalena Olho para nascente, onde o mar tem uma planura chã, parecendo um espelho, como que continuando, em tons de azul, a verdura da vegetação rasteira que rodeia um pequeno estuário da ribeira que ali desagua; depois, olho para poente, onde a terra cai a pique sobre o mar e este lhe faz grutas fundas, escuras e labirínticas nas entranhas das arribas. Apesar de o mar ser o mesmo, sempre preferi este lado, o poente, o que me fica à mão direita. Há ali movimento, as ondas batem e refluem formando novas pequenas ondas que, indo de terra para o mar, em sentido contrário às outras, com elas esbarram, provocando uma pequena agitação de espuma. Um dia li qualquer coisa sobre as ondas, não me lembro em que revista. O autor do texto escrevia que muitas delas se formam no mar dos sargaços, lá para o Golfo do México. Deve ser uma mentira romântica, penso que será a atracção da lua a fazer as marés e o vento a formar as ondas em qualquer parte do mar e não apenas lá para as Caraíbas. Seja onde for que as ondas surjam, gosto do mar movimentado. Bem sei que o mar é o mesmo, mas eu prefiro este lado agitado, o mar que me fica para poente, junto à Senhora da Rocha, aquela que às vezes confundo com a Virgem do Rochedo de Biarritz – e que, pensando bem, háde ser a mesma, ou não fosse o catolicismo religião de uma só virgem. Escolho claramente o meu lado do mar, e digoo a toda a gente, incluindo a Fátima, que não entende a razão de eu afirmar sem rodeios: olha, gosto mais do mar daquele lado. Ela, claro, responde o previsível então e do outro? Uma das coisas que me irrita, desde há muito, é a ideia de que tudo deve ser igual, amado por igual, estimado por igual. Quando eu era pequenina, perguntavase muito aos meninos: gostas mais do papá ou da mamã, na esperança que a criança respondesse que era dos dois por igual. Agora, se alguém fizer essa pergunta acho que vai preso. Mas eu gostava mais do papá! E sempre tive um filho preferido! E tenho uma neta de quem gosto mais! Pode parecer cruel, mas eu não disse que não gostava de minha mãe, que não gostava de minhas filhas ou que não gosto de todos os netos. Apenas que tenho preferências e que não as escondo, pelo menos de mim mesma e daqueles que me estão muito próximos. Claro que se alguém que eu mal conheço me perguntasse qual dos meus filhos é o meu preferido, eu jamais responderia. Não é pergunta que se faça, nem é resposta que se dê a qualquer pessoa que passe por nós na rua. 135
Mas, e ao fim de 88 anos de vida, a minha experiência pode dizêlo, há sempre um filho que preferimos. O meu, confessoo, era Luisito. Ele era o meu filho perfeito, e háde ser porque vive em mim, com os meus gostos, mas com os seus conselhos serenos e, por vezes, severos. Minha filha Anita diz que ele é perfeito porque morreu, não teve de se pôr à prova. E eu respondolhe que talvez ela tenha razão, mas que era justamente por esse motivo que todos os meninos que morrem se consideravam anjinhos – belos, puros e até louros, sendo que louro foi coisa que Luisito nunca foi. Depois de meu pobre filho morrer foi – e continua a ser, agora, porque é a única – Anita a minha preferida. Claro que também gostei muito de Maria, mas nunca a pus no topo da lista. Sempre a achei inferior à sua irmã, não tanto em inteligência, criatividade ou esperteza, mas sobretudo em sensatez. Deume sempre muito mais trabalho do que alegrias, justamente ao contrário da irmã que me deu muitas alegrias e me poupou muitos trabalhos. O mesmo se passa com meus netos. São cinco, três raparigas de Anita e dois rapazes do primeiro casamento de Maria. Estes mal os conheço, tão pouco apareceram na minha vida. Viveram quase sempre com o pai, que se voltou a casar, e apesar da correcção deste meu genro (acho que estes parentescos nunca se perdem) desligaramse um pouco de minha família. Só Anita insiste em telefonarlhes, em convidálos para casa dela, para esta casa na praia. São rapazes atilados, e penso que ambos já acabaram um curso. Um deles já trabalha, lembrome de ele mo ter dito um dia em que me foi visitar. Aqui no Algarve quase nunca aparecem, nem mesmo quando eram rapazes o faziam, porque preferiam ir para outra zona, lá para o pé de Vila Real de Santo António, com os outros avós. As meninas, ao contrário, sempre passaram férias aqui. E das três, a de que eu gostei mais foi, desde que nasceu, Madalena. Não sei se já tinha referido o nome delas, mas também não faz diferença. Eu própria as confundo e lhes chamo Anita, Maria, Elena sem já distinguir bem presente de passado. À Madalena, porém, nunca confundi. Ela é igual a mim, e parecida com a mãe, salvo ser muito mais alta. E é um mar, uma onda, um vento, uma inquietude. É a mais nova, deve ter agora uns 27 ou 28 anos, e faz uma certa diferença das irmãs; Anita costumava dizer que tinha aparecido de surpresa… Humberto e Anita têm todo o ar de ter planificado os filhos – algo que eu e Juan Miguel nunca fizemos. E quando veio Madalena penso que não tinham planificado nada – isto deve ter deixado o meu genro desesperado, ele que é doentiamente organizado e prevenido. Mas Madalena nasceu porque tinha de 135
nascer. Madalena, quero crer, nasceria mesmo de uma virgem, de um rochedo, de um homem infértil ou pura e simplesmente surgiria; é daquelas pessoas que têm mesmo de viver, de estar no mundo, dê por onde der. Chamame avó fixolas , palavra que deriva de fixe e é, das três, a única que conseguiu fazer verdadeiramente cabelos brancos à mãe e ao pai. Logo que nasceu foi muito mimada, pelas irmãs – que são cinco e sete anos mais velhas , pela mãe e devo confessálo que também, ou talvez sobretudo, por mim. Eu tinha 60 anos, tinha encerrado os meus casos e não me apetecia fazer nada, ler nada, pensar em nada. Acho que estaria o que se chama deprimida. Toda a vida li muito, li sempre. Li romances, mas li sobretudo história e filosofia. Mas nessa época não me apetecia ler e por isso Madalena foi a minha pequena boneca. Ajudei Anita a criála, uma vez que ela tinha o emprego e tudo isso e, na altura, não havia os cuidados com as mães que há agora. Nos nossos dias criaram condições magníficas para os casais jovens terem filhos, penso que na esperança de que os tenham, mas eles não têm. Temos uma geração em que muita gente háde chegar ao fim da vida solitária, misógina, azeda, sem conhecer o sorriso de um bebé, a traquinice de uma criança e a histeria de uma adolescente. Arrependerseão, como se arrependeram todos os meus conhecidos que não tiveram filhos. Arrependerseão por isto ou por aquilo. Bem o sei, foi essa, também, uma das grandes mágoas de Pilar. Quando alguém se torna avó, coisa de que eu já tinha vasta experiência quando nasceu Madalena, é uma alegria quase tão grande como ser mãe, com a vantagem de não ter as dores de parto. Os avós conseguem usufruir do melhor das crianças, sem se preocuparem com o pior que elas têm e com a prisão que elas são. Vêem as gracinhas, os sorrisos, a primeira vez que se sentam, que se põem de pé, a primeira papa que comem, os primeiros passos que dão, as primeiras palavras que dizem. Mas não têm de aturar as noites sem dormir, as febres, o choro dos dentes a irromper. É magnífico! Juan Miguel dizia, com piada, que ser avô era como ser pai em diferido. É como um jogo de futebol de que já sabemos o resultado – repetia vêemse as boas jogadas, mas não há a nervoseira do resultado. Fui eu – por uma qualquer coincidência – quem levou Madalena ao seu primeiro dia de escola. Ainda ia de gravatinha e farda para um colégio de freiras em Lisboa. Perguntome se isso hoje ainda será assim. Não o creio. A educação mudou tanto que as minhas bisnetas – e já tenho duas vão ser ainda mais radicalmente diferentes das mães do que suas mães foram das mães delas e estas de mim. Às vezes, quando reúno estas quatro gerações na nossa casa, penso no que é feito do respeito que eu tinha por meus pais… ou mesmo na privacidade que eu tinha, perante eles. Hoje em dia, as filhas discutem com a mãe – e até 135
com o pai – a perda da virgindade, o tabaco que fumam ou a marca de vodka preferida. Meu Deus! Pode ser que assim seja melhor, mas a maior parte dos pais reciclouse a tentar ser amigo dos filhos, em vez de educadores. Felizmente, Anita não é muito assim, mas também tem a sua costela de modernice. Quer ser companheira das filhas, porque acha sinceramente que mais vale saber o que elas fazem, do que não saber de todo por onde andam e o que pensam. O seu sentido prático darlheá razão, mas como é evidente, a autoridade paternal e maternal fica minada. Como escreveu Rimbaud, on n’est pas sérieux quand on a dixsept ans e esse é um problema. Ninguém é sério quando não tem idade para o ser, embora Rimbaud deva ter escrito isto com cerca de 17 anos. Mas os pais, com 35, 40 ou 50 anos, quando se querem colocar ao nível dos filhos de 17, 20 ou 22, perdem a toda autoridade, porque perderam a seriedade. Que mãe pode achar bem que uma criança de 16 ou 17 anos tenha relações sexuais com parceiros diferentes e que a única coisa que lhe importe é se toma a pílula e se usam protecção contra doenças? … Onde chegámos! E, se olharmos para trás, qual é a grande vantagem disto em relação ao passado? Em relação ao meu tempo? Coloco esta questão, porque a resposta mais costumeira de minhas netas aos meus reparos era: ó avó, estamos no século XX (ou XXI, mais recentemente). E eu perguntava: e isso que interessa? O século XXI é forçosamente melhor do que o XX e o XX foi melhor do que XIX? Esta ideia louca de que o novo é melhor do que o velho é extraordinária, mas é falsa. Muitos tempos vivemos em que o novo foi pior do que o velho. Mas hoje todos pensam o contrário e, talvez por isso, os velhos, salvo excepções como eu, vivam armazenados. Houve um tempo em que eu tinha tantos amigos e conhecidos armazenados, pelos próprios filhos, nos lares mais soturnos… Quando ia visitálos tinha náuseas… Aqueles velhos tinham deixado de ser humanos, eram seres engaiolados, passivos, sem alma. Tremiam enrolados em cobertores e rodeados de flores de plástico, acompanhados por gente que só parecia vagamente simpática porque ali estava alguém de fora – no caso, eu, que era também uma potencial cliente! De resto, todos os velhos pareciam estar drogados, para não falar do facto de quase todos eles terem, pura e simplesmente, desistido de viver. Viase no seu olhar que não queriam nem mais uma hora de vida. E se sorriam quando eu chegava era por essa faculdade hipócrita em que os velhos estão treinados pela vida. Se eu me tinha deslocado para lhes dar uma alegria, não seriam eles a tirarme as ilusões. Alguns devem ter chegado a pensar: não tarda muito, estás cá. 135
Nesta sociedade os velhos não servem, a sua sabedoria foi afastada, o seu lugar na família foi desprezado… Um velho é um pária que vai morrendo sem que dele fique exemplo, experiência, sabedoria, conhecimento. É triste, bem triste! Mas deixemos estas mágoas, para voltar a Madalena e a minhas netas. A preferência que tenho por ela devese sobretudo ao facto de, tentando fazer tudo da forma mais difícil, ela aprender depressa. Neste particular do arrependimento honra bem o seu nome. Às vezes convençome de que é necessário ir até ao fim dos caminhos para perceber e não ter mais dúvidas de que esse é o caminho errado. Não sei se poderemos adoptar este princípio em relação a todas as pessoas, mas sei que minha filha Maria nunca fazia os caminhos até ao fim porque eu e o pai sempre a íamos buscar, mal ela entrava naquilo que parecia um beco sem saída. Talvez por isso, quando voltou a Madrid, vinda do funeral do pai, tenha encontrado um beco e não soube voltar atrás. Nunca lhe tinha sido necessário dar o braço a torcer. Foi um período em que nem eu nem Anita tínhamos ânimo ou disponibilidade para entender o que ela queria, para entender os seus problemas. E assim ela fez o caminho todo e mesmo depois de chegar ao fim e ver que era o errado, insistiu até não poder mais. Foilhe fatal. Maria também foi sempre rebelde, mas ao contrário de Madalena, nunca conheceu limites, nunca reconheceu erros. O lado que me anima em Madalena é a rapidez com que ela aceita o facto de ter errado e a velocidade com que promete mudar. Poderá ser só para me enganar, ou para me fazer crer que as lições de vida que lhe dou não são vãs. Não sei, e já não tenho idade para resolver este enigma. A própria Anita ou não tem uma opinião ou nada me diz sobre as filhas, porque não me quer preocupar. E tantas vezes lhe pedi que me falasse de Madalena, que sendo a minha favorita, me preocupa tanto, por sair demasiadamente a mim e não ter – porque a vida, a sociedade actual, não as tem – as minhas barreiras. Às vezes interrogome como seria eu sem as convenções que no meu tempo havia. Quantos homens teria eu amado? Quantas vezes teria partido o meu coração? Quantas vidas teria eu destroçado? Como já disse, invejo a liberdade de que gozaram minhas filhas e netas, mas teria sido mais ou menos feliz se eu própria tivesse toda essa liberdade? Sei que é um paradoxo – Yannick sempre me alertou para isso – confundir liberdade com felicidade. A liberdade é um bem socializável, que só pode e deve ser vivido em comum; a felicidade é um bem íntimo, pessoal, por vezes inextrincável. Porém, eu conheçome bem, sei como seria e o que faria, caso toda a liberdade me tivesse sido concedida. Teria corrido para os braços de Carlos, quando era nova; não teria tido vergonha quando ele me agarrou para me explicar como se 135
mergulha no mar, nem teria feito o gesto de me esquivar. Termeia vingado das afrontas de Juan Miguel com as suas conquistas, onde incluiu minha irmã Pilar; ou melhor, têloia feito muito mais cedo e com muito menos classe. Aos 30 e poucos anos ninguém consegue ter um caso tão discreto como o que eu tive com Artur aos 50. Aos 30 anos também ainda ninguém é suficientemente sério para poder ter um caso com classe e menos ainda para poder sofrer uma traição sem alvoroço… Faria um escândalo; as minhas filhas ficariam ainda mais perturbadas e, provavelmente, não usufruiria hoje do apoio que me dá Anita… Estaria num depósito com o mesmo ar bovino e as mesmas flores de plástico que vi nos lares. Ou melhor, estaria morta. Nenhum lar tem um paciente tanto tempo a ocuparlhe uma cama… É sempre difícil especular como seria uma vida – toda uma vida – se os seus pressupostos fossem diferentes. E se Franco não tivesse feito o pronunciamento? E se meu pai e meus irmãos não tivessem morrido? Teria vindo parar a Lisboa? Termeia casado com Juan Miguel? Teria estas filhas, estes netos? Está tudo predestinado? É tudo obra do acaso? É um acaso eu ter sobrevivido a todos os meus irmãos, a dois filhos meus, ao meu marido? Estarei guardada para alguma coisa ou é apenas – como dizia um médico amigo de Juan Miguel que passou dos 100 anos – fruto da nossa constituição animal? Váse lá saber… Ocorreme uma pergunta: se de geração para geração os hábitos vão mudando tão rapidamente, para onde iremos? Até onde chegaremos? As minhas netas dizem que miúdas com 15 e 16 anos já ficam na rua até às cinco da manhã – isto quando eu lhes dizia alguma coisa sobre as horas a que chegavam a casa. Mas, se as miúdas de 15 anos já vão neste ritmo, como será com as filhas delas? Iniciarão a vida de festas, copos e sabese lá que mais aos 10? Ou, entretanto, a vida, o Alguém ou Algo que é exterior a nós, porá um travão a tudo isto? Um travão terrível, como o que a Idade Média colocou às desbragadas festas do fim do Império Romano, que Gibbon tão bem descreve no seu livro? Um dia, seremos todos muçulmanos? Vestiremos burka ou chaddor? Não haverá direitos para as mulheres, que não poderão sequer sair à rua? O álcool será proibido? Os pais poderão bater à vontade nos filhos? Os casamentos farseão por alianças de famílias, por interesses de negócios? Será esse o nosso futuro? Parece impossível, mas a história já recuou muitas vezes e a demografia joga contra nós. Nem temos filhos, ao passo que os islâmicos os têm aos montes… Segundo li e muitos amigos me diziam, há já vários anos, os arredores de Paris, de Londres e até de Madrid estavam repletos de árabes, de famílias que no seu interior, na sua casa, nas suas relações com outras famílias de mesma origem, aplicam a sharia . 135
Os atentados de Atocha são outro sinal que nos pode confirmar que nem tudo será tão bom como sonhámos. Quem colocou as bombas que mataram indiscriminadamente homens, mulheres e crianças que iam para os empregos, gente humilde dos subúrbios de Madrid, foram espanhóis, espanhóis como eu, mas com uma cultura que não é a minha, nem será a da minha família. Animome pensando que, seja qual for o futuro, não será nada comigo. Só que me interrogo: nesse caso, porque me preocupo eu? E só tenho uma resposta: acho que o faço porque uma parte de mim – os meus netos e os seus sucessores – cá estará para a viver… e nenhum deles vai, com certeza gostar do que vê. Eis o ponto em que Madalena me entende. É a única com quem podia falar destes temas. Não hoje em dia, em que já me cansa o desacordo e o estímulo intelectual. Mas tenho a certeza de que, se eu conseguisse viver sã da cabeça mais uns cinco ou seis anos, Madalena tornarseia na minha nova Madame , ou será para uma qualquer Madame actual o equivalente a que eu fui para Yannick. É por isso que gosto tão profundamente de Madalena e é por isso que me lembro dela quando olho para a minha direita, para Ocidente, onde o sol se põe e o céu fica avermelhado, para onde estão as ondas e para onde está a minha morte e a vida dela. Dentro de séculos as nossas vidas confundirseão, fundirseão numa só, como as gerações antes de mim se fundiram para que eu tivesse esta cultura, esta forma de pensar, esta liberdade. Nem para mim o sei dizer melhor, é daquele lado do mar que havemos ambas de estar. XVIII – Cara ao sol De noite, pela fresca, o barulho do mar costuma ser mais intenso. A praia fica silenciosa e o som das ondas, mesmo por baixo do meu quintal, tornase mais nítido. Por vezes – nem sempre, porque ultimamente tenho tido um frio que até agora jamais sentira, um frio de morte, ou mesmo o frio da morte – às vezes, dizia, peço a Fátima que me traga até aqui ao cadeirão, depois do jantar, se posso chamar assim a uma sopa, um copo de vinho e uma peça de fruta – eu que sempre comi bem e requintadamente. E aqui fico, a contas com a escuridão e com as estrelas da noite, a qual, se estiver ventosa, me lança à cara uns salpicos de mar. Para ouvir as ondas tenho de apurar o ouvido, melhor dissera os aparelhos que tenho no ouvido. Não é fácil escutálo, hoje em 135
dia, pois até os ruídos naturais se perderam. Perderamse os pássaros, os rios, as ondas do mar, o vento nas canas, as folhas secas a cair. Já quase nada disso se escuta. Por aqui, todas as noites, do lado de terra, existem barulhos aterradores. É uma carrinha que percorre as ruas a anunciar uma tourada – para gáudio dos turistas estrangeiros que pensam que esta coisinha que se vê em Portugal é uma tourada e sentamse nesta pequena praça de touros desmontável com a mesma atitude que teriam em La Maestranza de Sevilha ou em Las Ventas de Madrid… É um circo, ao longe; são uns carrinhos de choque e são, sobretudo, milhares de pessoas aos gritos, aos guinchos, os bebés a chorar e os pais desesperados, já a preferir que as férias acabem rápido e eles possam voltar ao sossego das repartições ou dos seus pequenos escritórios. Tanto me lembro das noites de Verão aqui passadas só, com amigos, ou ainda muito nova, abraçada a Juan Miguel , quando nada mais se ouvia que não fosse o mar e as gaivotas a disputar os restos de peixe que os pescadores deixavam na praia. Esta noite, a somar a todos os barulhos que abafam o ruído cavo das ondas do mar, existe o de um comício. Não sei bem de que partido é, nem qual a personalidade que fala, mas ouço vagamente um orador a ser entusiasticamente aplaudido e saudado por uma pequena multidão – ou talvez não sejam muitos, mas apenas pessoas disciplinadas e uníssonas na sua crença num líder ou num programa. Houve um tempo em que também eu me preocupei com a política, pensando que ela mudava o destino do mundo. Apoiava causas, achava que os impostos deviam subir ou descer, ou que a segurança social devia ser isto ou aquilo. Preferia uns políticos a outros, tinha opções firmes e claras sobre as grandes questões. Era o tempo em que ainda discutia com minhas filhas o problema do aborto, não nos termos em que ele deve ser discutido, penso eu agora, mas como questão política, separadora, definidora de campos… Hoje acho, pura e simplesmente, que o aborto é um acto médico. Talvez como a eutanásia. Os governos e os políticos nem sequer se deviam meter nestas coisas... Se algo aprendi ao longo dos anos foi que os homens mais perigosos são aqueles que têm soluções para tudo. É gente assim que altera demasiadamente os equilíbrios naturais que vão sendo estabelecidos ao longo das gerações, as quais vão pactuando umas com outras. Os mais perigosos são sempre adeptos de rupturas, de cortes, de grandes programas. Basta pensar nas pessoas que mais danos causaram à humanidade para encontrarmos esse padrão. Foi assim Hitler, foi assim Estaline – e de certo modo foram também assim Franco e Salazar, Fidel e Pinochet, Pol Pot e Mao… 135
Em nova também eu tinha convicções bravas, radicais. Sentia que podia morrer por um estranho, caso lhe desse razão num caso, como se a minha morte redimisse o mundo ou, sequer, resolvesse o problema em concreto. Havia uma frase que alguém dizia quando eu era nova, frase que me irritava profundamente e que hoje dou em pensar muitas vezes na sua sabedoria. Era assim: há apenas dois tipos de problemas: os que o tempo resolve e os que nem o tempo resolve. A conclusão, óbvia, é que para uns, como para outros, nada há a fazer. Ainda sinto, por vezes, falta de uma crença, da crença num mundo melhor, mais perfeito, menos injusto. O mundo em que eu acreditei, quando tive idade de acreditar. Em miúda, a única coisa que sabia era que odiava as JONS e a Falange, porque meu pai dissera a Raul que o não queria ver por lá. Mais crescida aderi entusiasticamente a Franco, sobretudo porque Manuel Blanco dizia que era ele quem nos ia salvar a nós, perdidos em Ayllón no meio de uma guerra sangrenta, e a Espanha que se esvaía em ódios sem sentido. Por outro lado, minha mãe tinha sempre, mais ou menos abertamente, responsabilizado os republicanos pela morte de meu pai, o que nos fez pender para o campo nacionalista, de tal modo que me lembro de ter ido com ela e Pilar ao enorme desfile que se fez em Madrid, aclamando o generalíssimo e a sua guarda moura, vinda de Ceuta. Foi com essa convicção, que se misturava, então, com o agradecimento à Alemanha de Hitler e à Itália de Mussolini, por nos terem salvo dos bárbaros vermelhos, como então lhe chamávamos, que cheguei aos meus 18 anos. Se na altura houvesse eleições, como hoje, teria votado convictamente em Franco. Nem a chegada à França democrática, quando fomos para Biarritz, mudou grandemente as minhas convicções; porém o convívio com o tio George Pardiac, o comerciante prudente, que mais tarde se revelou membro da Resistência, casado com minha tiaavó Henriette, foi de certo modo responsável por ir formando uma opinião não muito favorável aos alemães. Depois da ocupação, o modo como eles se referiam aos espanhóis, bem como tudo o que me contava Madame sobre o que se passava no mundo e, sobretudo, acerca da maneira como tratavam judeus, apenas por serem judeus, fezme pender definitivamente para o lado dos aliados. Em França, cheguei a odiar os alemães e a torcer por Churchill e pela Inglaterra, sem sequer perceber toda a envolvência internacional da guerra. No entanto, ao chegar a Portugal, deparei com meu tio – mais uma razão para não me lembrar do nome dele, e de ter uma opinião vagamente negativa da sua personalidade – que era claramente germanófilo, e com a minha tia Concepción tão boa para nós , que acompanhava o marido nessa preferência. Minha mãe também adoptou esse 135
posicionamento e assim fiquei eu, uma vez mais baralhada e do lado errado de uma barricada familiar. Lia propaganda aliada, que por vezes me chegava, ao passo que meu tio lia umas revistas lindíssimas com material de propaganda alemão. Foi Juan Luís, já bastante depois da guerra, aquele que haveria de ser meu cunhado, que me arranjou emprego no Consulado de Espanha, na altura em que o Embaixador era Nicolás Franco, o irmão do generalíssimo . O senhor foi tão simpático para mim, que eu, na minha ingenuidade dos 20 e poucos, pensei que o seu irmão não poderia ser má pessoa. Porque, se bem me recordo, todos nós temos uma fase da vida em que pensamos que os bons são bons em tudo, em toda a extensão do bem; e os maus, igualmente, maus em tudo e em toda a extensão do mal. Aceitamos mal a duplicidade, a diversidade e a contradição. Curiosamente, o debate ideológico do século XX nunca se afastou muito disto, e estamos a entrar no século XXI da mesma forma: intolerantes, radicais, a querer fazer prevalecer uma única opinião sobre uma multiplicidade delas. Aquilo a que entretanto se passou a chamar politicamente correcto chegame a ser doloroso fisicamente. Mas adiante: a minha opinião sobre Franco, que nunca fora totalmente negativa, voltou a melhorar por via de D. Nicolás. Sobretudo, depois do fim da guerra, quando ele aceitou a nova ordem dos aliados e eu pude compatibilizálo com os vencedores. Assim, no brevíssimo tempo em que trabalhei no Consulado, pertenci à Falange para não destoar. Na altura, a Falange era apoiante de Franco (mais tarde ele deulhe um pontapé) e eu gostava de Franco e queria ter um emprego onde quem mandava era o seu irmão. E por isso cantei o Cara al Sol que era o hino do movimento. É curioso, como a ideia de virar a cara para o sol me atinge numa noite, apesar de passar o dia com a cara ao sol, neste mesmo cadeirão. Mas assim é a nossa memória, repleta de pequenas surpresas, as quais nunca sabemos se são sinais. Porque o movimento, a Falange, era, ao fim e ao cabo, uma noite sombria e mortal. Ainda me lembro do hino: Cara al sol con la camisa nueva/que tu bordaste en rojo ayer/ me hallará la muerte si me lleva/ y no te vuelvo a ver . E a canção ia por aí fora, cheia de arrebiques patrióticos, para acabar com muitos ¡Arriba España! . Era um hino ridículo, cantado por jovens que marcharam direitinhos para a morte e por meninas tontas, como eu era na altura, que achavam extraordinário darse uma vida – uma vida, meu Deus! – por um ideal qualquer. Fardavamnos como soldadinhos, todos de igual, todos com o mesmo gesto, todos como se fôssemos um. 135
À medida que ia conhecendo Portugal e Salazar, e também sob a influência do meu Juan Miguel, que era muito mais esclarecido do que eu, fui percebendo que Franco estava longe de ser um santo patriótico e que a guerra civil tinha sido muito mais do que um conflito apenas em Espanha. Salazar, em Portugal, sendo muito diferente de Franco, tinha coisas muito semelhantes. Assim, à medida que me desiludia com um, desiludiame com o outro… Penso aliás que Franco e Salazar representam bem como os portugueses são, simultaneamente tão diferentes e semelhantes dos espanhóis. Onde de um lado há orgulho, do outro há falsa modéstia; a bravata trocase pela inveja; a excitação e o barulho pelo comedimento; o sangue e a peleja pelo compromisso e a conciliação. Porém, são, ao mesmo tempo, tão parecidos que nenhum espanhol em Portugal se sente no estrangeiro, como nenhum português se sente estrangeiro em Espanha… Muito mais tarde, ainda, já mulher madura, li muito sobre as barbaridades de Franco, mas também sobre as da esquerda republicana espanhola. O resultado foi este: desiludime de todos. Hoje, acho a minha memória um bom retrato do século XX, que alguns patetas acham ter sido um século fabuloso. Este foi o século que destruiu as identidades singulares em nome de utopias colectivas. O franquismo, o fascismo de Mussolini, o nazismo de Hitler, o comunismo de Lenine, Estaline e Mao e de tantos outros. Arrepiome hoje ao ver jovens ter como ídolos personagens sinistras como Fidel ou Che. Fidel, digoo num parêntesis, era primo de meu pai, embora afastado. Também ele é de famílias galegas e também está velho, parece que em muito pior estado do que eu, apesar de eu ter mais quatro ou cinco anos. Minha mãe, quando lhe diziam que tinha casado com um primo de Fidel, contestava sempre: De um taxista de Lugo – referiase a outro parente que tinha, ao que parece, uns táxis naquela cidade galega. Arrepiame Pinochet, como me arrepia a ETA. Arrepiame, aliás, o apoio de que a ETA e os separatistas de um modo geral gozam em Portugal; o beneplácito com que os portugueses pensam que a implosão de Espanha seria uma coisa boa para este país. Que enganados estão, tornando Portugal em apenas um dos quatro ou cinco estados ibéricos, destruiriam a sua importância e desequilibrariam ainda mais a Península para o lado da Europa e menos para o Atlântico, ao qual está a história dos dois países tão 135
ligada. Arrepiamme os suicidas árabes, os talibãs. Arrepiamme os bascos que vestem os miúdos de farda para lhes ensinar o amor por Euskadi, como a JONS nos ensinava o Cara al Sol – numa memorização repetitiva, sem verdade, sem razão. Arrepiame que nada tenhamos aprendido, que tenhamos vivido o século XX 100 anos de guerras inúteis com milhões de mortos – sem quase nada progredir no essencial do pensamento. Sem saber muito mais do que sabíamos nos finais do século XIX. Temos, é certo, muito mais tecnologia, sabemos fazer bombas que dão cabo do mundo, comunicamos instantaneamente com qualquer ponto do globo. A minha neta mostroume o mundo no seu computador; nós escolhemos um ponto, uma terra, uma vila, uma rua e aquilo vai aproximando até vermos as casas, os automóveis. Tudo está fotografado, vigiado; temos informação como nunca tivemos. Eu sei disso tudo, mas tento entender para lá disso. Como formamos uma convicção? Porque somos diversos? Por que, apesar de processarmos os mesmos dados, chegamos a conclusões tão diferentes? Sobre isto, que é matéria essencial do modo de proceder dos homens, nada avançámos. Pelo contrário, perdemos a ideia da diversidade e queremos ser todos iguais. Todos os programas políticos falam de igualdade, todas as modas são uniformes, todo o mundo quer ser igual ao vizinho. Nas ideias, não andamos longe deste padrão. Todos apelam à coerência, como se a coerência fosse um valor. Quando eu conto o percurso dos meus pensamentos, perguntamme: como podias apoiar o Franco e o Churchill ao mesmo tempo? E eu respondia, porque o Franco me parecia melhor para Espanha e o Churchill para o mundo. E farteime de Franco, como nos fartamos de uma mousse de chocolate que nos sabe bem ao princípio, mas da qual enjoamos ao fim de pouco tempo. E acrescentava: por que havemos de ser coerentes? Por que razão teremos de ser prisioneiros de uma ideia? Se eu ficasse presa para sempre ao facto de ter estado do lado dos nacionalistas na guerra civil, nunca poderia pensar o que penso, porque nada do que penso é sequer coerente com o que pensei. Eu pensei que havia uma ideia que explicava o mundo, uma teoria que explicava a relação entre as pessoas, um livro apenas por ler. Mas a vida, se formos honestos connosco próprios, ensinanos que não é nada disto. Muito pelo contrário, quanto mais sabemos, quanto mais lemos, quanto mais debatemos, mais tendência temos para ser incoerentes, para pensar coisas distintas, não ligadas. Para sermos verdadeiramente livres, como eu me 135
sinto, para decidir o que é melhor para nós em cada momento, e para pensarmos no que será melhor para a sociedade a cada momento. Hoje é impossível meter uma menina de 15 anos na cama às 11 da noite, se estiver de férias. Deveria eu ter ficar agarrada à coerência do que me ensinou minha mãe e obrigála a ir contra vontade? A ideia da coerência pareceme uma ideia religiosa para prevenir a heterodoxia – e que falta me faz Madame para eu poder colocar isto numa das nossas discussões e darlhe profundidade. Não sei, sinceramente, o que diria ela desta diatribe. Mas eu sinto que não tenho de ser coerente. Se fizesse depender o que sou daquilo que fui, seria uma mulher triste, desesperada, vivendo nas sombras da terra. A verdade é que o mundo vai mudando e nós, como seres adaptativos, temos de o acompanhar. É assim e não pode ser de outra maneira, por isso há muito que não quero saber de ideologias, de partidos, de programas, de coerências, de amarras, de prisões. As minhas opções são casuísticas, pontuais e motivadas, no geral, por problemas que não são debatidos nos grandes comícios e nos grandes debates. Coisas por vezes pequenas, sem importância… Sou um navio desarvorado, como dizia Vitorino Nemésio, com quem tantas vezes tive o prazer de falar. No comício aqui não muito longe, o orador continua a discursar e a ser aplaudido. Deve estar a falar de ideias muito coerentes, a deduzir umas coisas a partir de outras, a fazer retórica, como faziam os jesuítas, ou séculos antes deles os sofistas peripatéticos. Não, não avançámos muito neste domínio, apenas na tecnologia… e no barulho que fazem os megafones em cima dos carros. Uns anunciam touros; outros, um político; outros, um circo. E eu nem com os melhores aparelhos auditivos do mundo conseguiria ouvir o mar como dantes. Como o ouvia com Juan Miguel, quando ainda não havia traições; ou como o ouço com Luisito, quando a minha solidão é quebrada pelas suas palavras sempre tão sensatas. XIX – O meu tempo Cada vez passo mais tempo aqui, sentada em frente ao mar, porque o tempo já não tem significado para mim. O meu tempo acabou, como as ondas acabam na areia, depois de tantos quilómetros percorridos. Perguntará uma onda qual é o seu 135
objectivo, senão o de desfazerse contra uma praia, contra uma rocha? Ou saberá ela que é parte de um plano maior, que depois dela virá outra e outra e outra, e todas juntas, ano após ano, século após século, configurarão o perfil das praias e das rochas, abrirão sulcos na pedra e fendas na terra, de tal forma que cada uma dessas ondas se poderia orgulhar de ter contribuído para moldar todo um planeta? De quando em vez há um maremoto, ou um tsunami que provoca uma mudança radical no ramerrame que as ondas vão fabricando, assim como surgem pessoas extraordinárias de quem poderemos dizer que sozinhas, ou quase, mudaram o mundo. Ramsés, Alexandre, Júlio César, Carlos Magno, Carlos V, Churchill, ou, para quem como eu prefere pensadores, Sidharta, Sócrates, Platão, Aristóteles e tantos outros… E assim somos nós, pessoas vulgares, que não deixarão na história mais do que os seus filhos e netos, como as ondas vulgares não deixam mais que uma vaga lembrança que logo se apaga quando outra igual ou semelhante lhe segue. Não temos outro desígnio senão o de dizer que em conjunto – e não por nosso mérito individual – moldámos o mundo em que vivemos. Moldámos a arquitectura, a moda, a arte, as cidades, as praias, os campos para a agricultura, as árvores da nossa paisagem. No mundo já há muito pouco de original. Na Amazónia e em ilhas remotas do pacífico ainda se encontra vegetação que ali nasceu espontânea, natural. Mas as nossas florestas, os nossos montes, os nossos rios têm mão humana há milhares de anos. Ali estão porque homens trouxeram sementes, secaram nascentes, cavaram outras, fizeram grutas para extrair minério, colocaram barreiras ao mar ou fabricaram enseadas para o poder amansar. E tudo isto foi feito por todos nós, pelos nossos antepassados, pessoas vulgares. Lembrome que o tio George Pardiac, um dia, quando alguém referiu que um fulano qualquer era de famílias antigas, respondeu: Porquê? Desceram das árvores há mais tempo do que as outras? A ideia de que todos nós descendemos de alguém, que por sua vez descende de alguém, que é descendente de outro – numa corrente que chega aos primeiros homens sobre a terra , foi para mim uma quase epifania. Na verdade, aquele homem coberto de peles a caminhar na Europa sobre a neve, tolhido pelo frio à procura de alguma comida para os seus filhos – ou a visão que eu tenho dele através da televisão – é necessariamente um nosso avô longínquo e nós existimos porque ele se esforçou. Não sei – e acho que esse é um dos segredos bem guardados da vida – se temos uma estratégia enquanto espécie. No caso de termos, somos obrigados a reconhecer que essa estratégia não deve ser condizente com o mundo que andamos a fazer; ou com o que andamos a fazer do mundo… nem sei! 135
Hoje ninguém se sacrifica por nada, não há padrões morais que valham um sacrifício, nem uma ideia que valha uma linha de discussão séria. Não sei se são, como alguns dizem, sintomas de decadência da humanidade, mas não quero crer que façam parte de qualquer estratégia. Por outro lado, se não há estratégia, para quê tantas mudanças como as que assisti ao longo da minha vida? Se não há propósito, por que razão as coisas não são imutáveis? Ou, como dizia alguém, por que não é o mundo composto de pessoas que não nascem nem morrem? Por que motivo desenvolvemos a técnica de andar em duas patas, de opor o polegar aos outros dedos, de pensar, de falar? Apenas para ser uma espécie bem sucedida? E já seremos uma espécie bem sucedida, ou apenas pensamos que o somos? Nesse caso, que surpresas nos trará a estratégia de desenvolvimento da espécie… Vou parar de pensar nisto. É complicado, dáme a volta à cabeça e chego sempre à mesma conclusão: o meu tempo acabou, este tempo já não é o meu. Eu sou como a avó macaca, que apenas guincha, e os meus netos macaquinhos já falam entre si. Eu sou a macaca que ainda anda de quatro, a ver os meus netos andar sobre dois pés. O meu tempo! Por que raio dizemos o meu tempo, referindonos ao tempo em que tínhamos 20, 30, 40 anos? Era esse o nosso tempo? Dizem que podemos escolher a nossa vida; que apenas não podemos escolher como vamos morrer… Nem sempre será assim, uma vez que o suicida escolhe a morte, mas a frase soa bem. O maior problema é que não se pode escolher a nossa vida, acho eu. Olho para trás e que vejo? Que escolhas poderia eu ter feito? Poderia ter impedido meu pai de ser preso? Ou meu irmão Raul de ir para a JONS? Ou minha irmã de me ter traído como o meu marido? – É curioso porque esta traição sendo dupla, cada vez mais me parece que foi minha irmã, e não meu marido a trairme. A algumas coisas direi que não – não tinha idade para impedir meu pai de ser preso, ou de ter entrado para a Casa Militar de El Rey , não podia ter evitado que meu irmão fizesse a opção de seguir loucamente Onésimo Redondo e a sua organização radical, mas talvez pudesse ter evitado a traição de minha irmã… Talvez, se o mundo fosse diferente do que era, eu pudesse ter falado calmamente com ela e com seu marido. Talvez… talvez… Mas nessa altura quem tinha coragem de enfrentar um homem e dizerlhe: meu caro Juan Luís és homossexual, pierdes aceite , mas nós amamoste à mesma, o que era verdade. Vê se consegues um 135
acordo de divórcio com Pilar, de modo a que cada um possa seguir a sua vida sem constrangimentos. E o mundo cairia em cima de nós… Não havia divórcio, quando alguém se casava religiosamente, como eles, ou como eu… Nenhum homossexual era aceite nos empregos, nas festas de sociedade, em qualquer local eram hostilizados. O homossexual era um ser perseguido, solitário, disfarçado. Nem à mulher confessava directamente, apenas por subentendidos, meiaspalavras. Nesse aspecto, a sociedade era bárbara e evoluímos. Mas da mesma forma que me chocava o ostracismo, o gueto em que colocavam desgraçados como Juan Luís, me incomoda hoje o orgulho gay , o casamento gay e todas essas patetices que andam a apregoar por aí. Provavelmente, estou a fazer o mesmo papel que minha mãe, a recusar algo que não sei digerir. Deve ter sido por isso que mamaíta nunca quis falar, ou sequer admitir que poderia suspeitar, daquilo que se ia tornando evidente: que Juan Luís gostava muito de Pilar, mas deixavaa sexualmente insatisfeita. E que, pelo contrário, ele se satisfazia com rapazes e homens, como nos iam deixando saber com meias palavras. Às vezes penso: se um neto meu viesse dizer que vivia com alguém do mesmo sexo, aceitáloia como aceito os maridos de minhas netas, ou as futuras mulheres de meus netos? Ou faria como fez minha mãe com Juan Luís? Ignoraria o facto e não os reconheceria como reconheço os outros. Porém, se o mundo é assim, para que lado estamos a forçálo? Para onde estamos a exagerar? Para o lado da repressão aos homossexuais, ou para o lado do seu reconhecimento? Haverá equilíbrio, haverá meiotermo, ou a vida é feita desta tensão entre novo e velho, em que os velhos, condenados como estão a desaparecer, perdem inexoravelmente? Mas, nesse caso, porque se diz – como dizem os franceses – se os novos soubessem, e se os velhos pudessem…? Não é esta frase popular o reconhecimento implícito de que, ao fim e ao cabo, os velhos têm razão? Será que eu estou a dar razão à minha mãe, façoo apenas noutro patamar, porque é noutro patamar que estamos? Ou seja, se o estado de coisas fosse igual ao do tempo de minha mãe, procederia eu como ela? E viceversa? Que falta me faz Madame para estas e outras questões…
Não é apenas em questões sexuais e morais que o meu tempo acabou. Acabou igualmente nas comportamentais. O modo como se fala, o modo como se veste, o modo como se actua socialmente. Não posso deixar de reparar como ninguém se levanta para dar o lugar a uma senhora. Caramba! Nem nos restaurantes mais refinados a que nos leva Humberto. Não me queixo por mim, por mim – que tenho o ar frágil dos 88 anos – ainda há quem se levante… mas por Anita não. Poderia estar manifestamente afogueada, no auge da sua crise menopáusica – que a teve violenta 135
– e quase ninguém lhe dava o lugar. As excepções eram cavalheiros fora de moda: ou velhos, ou bem vestidos, ou com qualquer toque que os tirava deste tempo, fosse o bigode ou a cor e o nó da gravata. As mulheres passaram a trabalhar, aos poucos tornaramse homens, como dizia Pilar – que acrescentava com graça que os homens se estavam a transformar em mulheres. Já viste a quantidade deles que se interessa por cozinha? – repetia ela como se estivesse escandalizada. Referiase sempre a Humberto que gasta horas a fazer refeições elaboradas, aos finsdesemana. Minha mãe apenas trabalhou episodicamente, na livraria de Biarritz. Eu mesmo só tive emprego poucos anos, uma meiadúzia, no Consulado de Espanha. Minhas filhas sempre trabalharam. Horas a fio, lado a lado com homens, a chefiar homens… Claro que é melhor assim. Se eu trabalhasse, se eu tivesse a minha subsistência garantida, teria saído de casa na grande traição de Juan Miguel. Ou talvez a traição de Juan Miguel não tivesse existido, porque antes disso teria saído de casa Pilar, por causa do comportamento de Juan Luís. Se eu tivesse saído de casa, teria feito bem ou mal? Teria sido mais feliz? Anita teria sido mais feliz? Maria teria sido mais feliz? Que me dizes Luisito? Que me dizes, que eu não sei responder. Fiz bem em ter deixado passar a tempestade, ou terei vivido toda a vida, até Juan Miguel falecer, condicionada por isso? E se eu tivesse fugido, como fugi para Madrid, muito depois, quando ele, já nos 60 anos, arranjou uma sirigaita – o que eu gosto desta palavra! – e eu pedi a Humberto e Anita que me levassem para casa de Maria?… Arrependime a meio e tudo o que arranjei foi uma discussão por causa do aborto! Teria feito bem? Não, respondeme Luisito, não teria… foi melhor assim. Por cada porta que abres, deixas milhares por abrir. Quando escolhes entre resistir à traição e fugir, estás a escolher entre dois males. Por que não te interrogas, se não devias ter ido viver com Artur, que te dava o dobro do prazer? Não podia, Luisito de mi vida ! Era um arroubo, não teria dado nada, nada, nada, nada… Tiveste medo, mamã! Tiveste medo de perder o pai e de perder Artur. Por cada porta que abres, deixas tantas por abrir… Não podia, já expliquei a Luisito que não podia. Artur só significou luxúria, nada mais… E ainda que Luisito o questione, é porque ele não sabe o que diz… Não sei o que é melhor, como não sei se o facto de as mulheres trabalharem não está a dar cabo da família e, portanto, a exigir uma família diferente, com padrões diferentes, responsabilidades diferentes, divisões de trabalho diferentes. Sei 135
apenas que me conforto com a ideia de que esse tempo já não será o meu. Que o meu tempo é o que vem do fim dos tempos; que sou descendente – e não tão distante – daquele homem que, vestido de peles, caminhando sobre a neve, tentava encontrar comida para levar à mulher e aos filhos que estavam numa caverna, a aquecerse junto a uma fogueira, uma lareira, um lar... E que esse homem tinha necessidades, e que podia encontrar uma mulher cujo homem tinha morrido às mãos de um mastodonte ou de um urso e possuíla, talvez levála para a caverna e pôla junto da mãe dos filhos, que nada podia dizer, talvez porque achasse normal, talvez porque não pudesse ir ela para o meio da neve com os seus filhos e encontrar comida, ao mesmo tempo que tratava das crianças. Se calhar o que estou a pensar é um disparate pegado. Talvez as tribos já tivessem uma espécie de infantário, alguém que cuidasse dos meninos, enquanto as mulheres ajudavam no trabalho, a esfolar os animais, a guardar a sua gordura, a cozer roupas de pele… Quem sabe? Apenas sei que esse tempo me parece próximo dos meus conceitos, ao contrário deste tempo que agora vivemos – o qual me parece, este sim, a milhares de anos de distância, a muitos séculos de mim. Eu sou do tempo das ondas, que vêm, uma após outra, fazer o seu trabalho, moldar o seu pedacinho de mundo. De vez em quando surge uma com escândalo que arrasa, mas a maioria são como eu, passam pelo mundo e não deixam outra marca, senão outras ondas… e outras e outras e outras. Eu vivi a vida que é o produto de tantas vidas e de tantos esforços. E o que me aconteceu – e foi tanto e tão doloroso – ao longo destas quase nove décadas, háde deixar a sua pequeníssima marca em muita gente. E espero que as minhas lições, as lições que eu tirei da vida, e que tentei passar para Anita, para Luisito, para Maria e para os meus netos, sirva de alguma coisa, ainda que insignificante. E que dessa lição faça parte ter orgulho, mas saber engolilo; ter audácia, mas ser prudente; ter rasgo, mas ser discreto; ter princípios, mas ser tolerante. E muitos outros conceitos que a mim me deixaram e que eu tentei deixar, para ser como estas ondas atrás de umas vêm outras e todas juntas é que são lindas e todas juntas é que fazem sentido. E eu estou quase a chegar à areia. XX – Cinco meses 135
O que eu gostei de nadar! O que gostava de mergulhar nas ondas e sentirme envolvida pela água, acariciada, o corpo sem peso, flutuando ao sabor das oscilações da maré, puxada por uma vaga, levada por outra, os olhos abertos a olhar o céu, como olho agora, não mais do que a vinte metros do mar, mas já sem forças para me defrontar com ele. Estou fraca. Se entrasse agora neste mar manso, lá ficaria e… não me importava. Talvez seja insuportável o momento da aflição, quando nos falta o ar ou quando a água nos invade os pulmões; talvez nos pareça uma eternidade, talvez nos arrependamos. Porém, se fosse apenas um segundo… se fosse apenas um segundo gostaria de me sentir outra vez enredada, enleada, abraçada como Carlos me abraçou naquela ria de El Grove, ao pé de La Toja. A última vez que estive totalmente submersa pela água foi na piscina de casa de Anita, mas já lá vão uns anos largos. Ainda tinha força, nessa altura, embora amparada, para entrar e mergulhar e dar uma braçada ou duas. Agora nem isso posso já fazer. O corpo vai morrendo antes do desejo e é essa a tragédia da velhice. E, ainda que uma piscina não possa compararse com o mar, lembrome do prazer físico que para mim era estar dentro de água, horas a fio, até ter frio, a pele dos dedos engelhada e os olhos a picar do sal. Esse prazer prolongavase, depois, quando secava o corpo ao sol e me estirava na areia ou numa cadeira em frente ao mar, como agora estou, mas lá em baixo, na praia. Anita quis fazer uma piscina nesta casa, quando as minhas netas eram pequeninas, mas eu tive uma fúria qualquer e não a deixei. Ela insistia, vá lá, mamaíta , é para las meninas . Ora, disselhe numa das minhas habituais frases desconcertantes, então pede a piscina a Velázquez!. Juan Miguel, já se vê, bastavalhe eu ter dito que não para jamais me desautorizar. Ele sofreu bastante as minhas amarguras e repentes porque, lá no fundo, sentia que não se tinha portado muito decentemente comigo. Mas, vendo de hoje, reconheço que ele foi muito correcto, admitindo sinceramente – aliás como eu, na altura, pensava – que o facto de eu saber que ele me tinha traído o desqualificara para sempre a meus olhos e aos olhos de todos. Mal sabia ele que a traição fora mútua. A minha vantagem foi a descrição, que não lhe deu motivos de suspeita, e a minha intuição, que me levou a descobrir aquilo que, caso eu soubesse o que sei hoje, jamais pretenderia sequer ter querido saber. Hoje, fugiria dessa descoberta desagradável, pois sei que há coisas que é preferível não saber. Arrependome, agora, que Anita não tenha feito a piscina; nessa altura seria simples enchêla de água do mar e eu poderia, pelo menos, refrescarme um pouco, pondo lá os pés sem ter de passar pela turbamulta que está na praia. Agora é uma obra impossível de se fazer, jamais a aprovariam… Houve muitos momentos na vida em que ganharia mais se ficasse calada, mas um impulso momentâneo qualquer instigoume muitas vezes a dizer o que não queria e, depois, sem ter jeito para pedir desculpa, fiquei sempre presa à maldita coerência. Raramente encarei os meus defeitos, salvo com Artur. Com ele, a minha vida e os meus pensamentos íntimos abriramse e terá sido essa, 135
aliás, a causa profunda para me ter envolvido com ele. Artur foi a única pessoa que soube realmente quem sou eu… Mesmo Madame , que me conhecia tão bem, só desvendava o meu lado racional, lógico, dedutivo. Essa parte da nossa inteligência doua a conhecer sem problemas e para Yannick nem sequer tinha segredos. Mas a parte emocional, a minha lista de sentimentos, de hierarquias, de preferências, quanto gosto de cada filho, o que senti por meu marido, por minha irmã, por meu pai, por minha mãe, sempre o escondi, até dos próprios, quanto mais dos outros. Não fui talhada para grandes manifestações de amor. Provavelmente, o facto de ter vivido a infância e a juventude na turbulência de uma Espanha dividida, e depois, com a guerra, de ter estado separada daqueles que mais amava, contribuiu para essa ausência na demonstração de afectos. E, no entanto, eu tenhoos e seria capaz dos maiores feitos em nome deles… Mas, desde o abraço que dei a Pilar e a minha mãe, no porto de Biarritz, a olhar a Virgem dos Rochedos, quando as três, como náufragas sem destino nos apertámos docemente umas contra as outras, desde então não sinto a beatitude que senti nesse momento. Claro que tive outros instantes, com Juan Miguel e até com Artur. Mas, ali, vivi o sentimento de estarmos sós contra o mundo, de sermos as únicas três que podíamos valernos, de estarmos tão unidas, que a vontade de uma seria a vontade de todas e que a vontade de todas seria indestrutível. Esse sentimento, que é o sentimento da mais profunda partilha, da comunhão… é triste dizêlo com esta idade e quase me comovo ao pensar nisso, esse sentimento nunca mais o tive! Quando penso nesse momento, quase sempre o afasto da cabeça. E isso seio desde que tive as consultas com Artur relacionase com a traição de minha irmã. Até ao momento em que soube da relação secreta entre Pilar e Juan Miguel, minha irmã era tudo para mim. Era a sobrevivente da minha juventude, coisa que mamaíta não poderia ser. Pilar era o testemunho da minha vida, aquela que me podia ajudar a remontar os cacos da minha existência passada. De quem falar sobre Raul, Enrique, Eduardo e meu pai? Com quem recordar Carlos, o mergulhador de El Grove? Com quem comentar as palermices de Juan Miguel, as filhas a crescer, os netos, depois? Pilar não só me traiu como me fugiu da vida. Depois da traição, faloume como se falam duas amigas que se conhecem há muito, mas que se conhecem mal. E não era assim que eu pensava em Pilar, quando pensava no abraço em Biarritz. Era como parte de mim e não como alguém que escolheu um caminho, apesar de mim… Restavame Elena, a minha amiga de Ayllón. Essa viveu sempre em Madrid, depois da guerra. Casouse e teve cinco filhos, raramente nos víamos. Só nalgumas viagens em que, com Juan Miguel passava por lá, ou em breves momentos em que ela vinha a Portugal, sobretudo aqui ao Algarve, passar uns dias com o seu marido, Francisco. Nessa altura, falámos disto e daquilo, da guerra, sobretudo. Dos três rapazes dela, dois têm os nomes de meus irmãos – Eduardo e Enrique. O terceiro é Francisco e as filhas chamamse Manuela e Isabel. Foram muito amigos de minha filha Maria, enquanto ela deixou que fossem… 135
Elena, querida Elena a quem eu tão pouco liguei, sobretudo porque não tinha muita conversa para ela. Era uma dona de casa, não tinha grandes rendimentos e não tinha estudado mais do que o trivial. Nesse aspecto, uma vez que coincidiu no Algarve com Madame , sentiuse totalmente deslocada. A culpa foi minha, porque pensamos sempre que haverá oportunidade para emendar o que está mal, e depois o tempo passa e jamais o fazemos. As mágoas ficam, resistem e envenenam… Claro que nunca me zanguei com Elena, mas foi, precisamente quando tinha concluído que tinha de ver Elena uma última vez, que ela me falhou. Elena tinha estado aqui no Algarve, já viúva, no início do Verão em que surgiu a doença de Juan Miguel. Um filho meteua no AVE10 em Madrid e Humberto foi buscála a Sevilha, um trajecto que já utilizara várias vezes. Esteve cinco ou seis dias e partiu com um dos filhos, salvo erro Eduardo, que a veio buscar de carro… Nesses dias falámos imenso. E eu senti, quando ela partiu, que ainda ficara tanto por dizer. O significado daquilo que fazemos na adolescência marcanos de forma tão definitiva na velhice… por que será? Eu e Elena tínhamos a história dos soldados nacionalistas, para quem cantávamos canções brejeiras e a quem demos beijos e deixámos que nos mexessem em certas partes – para lhes dar sorte, como eles diziam… O modo como isso a afectava, passados mais de 60 anos sobre o sucedido, constitui um mistério. Mas a verdade é que esse episódio foi outro que varri da cabeça… Embora eu saiba – e digoo com custo – que a troco de comida deixei um jovem soldado roçarse nas minhas nádegas até… ainda hoje me custa a confissão… ainda hoje, sendo que o soldado foi gentil e que nunca lhe passou pela cabeça violarnos ou desvirginarnos – isso era uma coisa importante na altura, um assunto sério, a mulher manter a virgindade para o casamento, e nós éramos garotas de 17 anos. Mas nós sabíamos que aquilo estava errado, porque o conceito de bem e de mal existe para nos atormentar toda a vida. Eu acredito que muita gente que finge não ter tormento nenhum é porque não se quer conhecer. Quem se olhar, quem pensar, quem se interrogar, terá sempre um armário repleto de esqueletos e de momentos de que se envergonha, ou que preferia não os ter vivido. Artur nunca valorizou grandemente este facto, diziame que tinha pouca importância, ou melhor que a importância que eu, particularmente, lhe dava é que fazia dele um facto importante. Mas, quando tentei falar disso com Elena, a única pessoa que eu conhecia no mundo a saber o que se tinha passado nesse dia, verifiquei que ela – que tinha tido um comportamento semelhante, com outro soldado amigo do meu – também dava importância ao sucedido. Disseme que era o dia em que menos gostava de pensar de todos os dias da guerra. Ora, numa guerra onde morreram milhares de pessoas, onde vimos cadáveres amontoados no chão, meninos esmagados por tanques e por pedregulhos que resultavam das explosões; onde vimos crianças agarradas às mães – todos mortos, toda uma família – dizer que um soldado a esfregarse nas pernas de uma jovem é o pior dia da guerra é dizer muito. E 10
Alta Velocidad – comboio de alta velocidade
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é, provavelmente, não dar razão a Artur. O facto em si é importante, não apenas pela importância que lhe damos, mas pelo que revela de nós. Se a necessidade aumentasse muito, termeia prostituído? ¡Que va! – dizia Elena – ¡no hay que ser dramática! ¿Y se fuéramos? Viviríamos de puta madre… Para Elena, todos os acontecimentos de uma vida se ficavam a dever a uma qualquer fatalidade. O destino – dizia ela está marcado, traçado, se acaso fôssemos putas éramos putas, teria sido esse o nosso destino e quem sabe se não poderíamos, até, ter sido mais felizes do que fomos. Era a sua opinião simples, ao passo que, para mim, a questão era do tamanho do mundo. Porque, ao contrário de Elena, eu penso que se fosse puta isso significaria ou uma coisa com a qual nunca concordei que a conduta é apenas fruto das circunstâncias e não de escolhas morais de um indivíduo ou, pior hipótese, que se eu tivesse feito uma escolha moral em circunstâncias adversas, têlaia feito de um modo oportunista, guiada apenas pela vantagem imediata e não pela convicção do bem. Naturalmente, não seria com Elena que eu discutiria isto. Infelizmente, ela não mostrava qualquer propensão para um debate desta natureza. E, como ela teve de se ir embora, o assunto acabou por morrer naturalmente. Porém, na minha cabeça, ele continuou a ser alvo de atenção. Pode dizerse que é uma questão de ociosos – pode ser! Finalmente que me importa, aos 88 anos se fiz as coisas por um motivo ou outro – mas por cada vez que me tentava convencer com este argumento, surgiamme mil outros que me diziam que se eu resolvesse esta questão, poderia resolver outras. O pensamento funciona por plataformas. Quando passamos uma porta, ou melhor dizendo, uma parede, porque na maioria das vezes a questão não se apresenta com a facilidade de transpor uma porta, chegamos a um local onde há mais uma multiplicidade de portas. É um jogo infinito e desesperante, mas completálo tem sido até agora o meu alento para viver, sobretudo depois do meu ano fatídico. Estou, justamente, a referirme a esse ano fatídico, o ano em que se declarou a doença de Juan Miguel, a qual o havia de conduzir à morte em cinco meses; o ano em que faleceu Madame , a minha querida Yannick, poucos dias depois de meu marido. O ano em que eu disse a Anita que queria ver Elena, que tinha algo para falar com Elena que era tão importante que o fizesse antes de morrer, que ela me trouxesse Elena para estar comigo… e Anita, com o seu ar bondoso, a ajudarme a sentar para me dizer: Mamaíta , não queríamos que sofresses mais, mas os primos de Madrid (chamaram sempre primos aos filhos de Elena, a quem eu chamava mana, muitas vezes), telefonaram a dizer que a mãe… Não foi preciso dizer mais. Vilhe nos olhos o que ela não viu nos meus: lágrimas; e soube que o destino de Elena fora igual ao de Yannick e ao de Juan Miguel. Lembreime das cenas bíblicas, de Job a rasgar as roupas e a revoltarse com Deus. É isto que queres? É isto? Levarme toda a gente que amo ao mesmo tempo? 135
Acho, porém, que não dei mostras de revolta. Não vale a pena – eis algo que aprendemos. Sabemos que vamos a seguir. Minha irmã tinha decretado que era preciso cuidado comigo, que não resistiria muito tempo à morte de Juan Miguel. Pois bem, Pilar: resisti à de Juan Miguel, à de Yannick, à de Elena, à tua e à de Maria – todas as mortes no mesmo ano, como se Deus me quisesse testar. Como se a morte estivesse à solta entre os seres que eu amo, como se ela me rondasse e, depois, inexplicavelmente parasse à minha porta e não me levasse, para eu ter tempo suficiente, sete anos, para pensar nisso e para pensar no que ando a fazer e para pensar na responsabilidade que tive em algumas dessas mortes. Afinal fui eu quem disse ao médico para aumentarem a dose de morfina quando Juan Miguel não tinha esperança – só dores. No dia em que soube da morte de Elena, estávamos em Fevereiro, um Fevereiro frio, de um frio terrivelmente aguçado e húmido, que me penetrava os ossos. Eu tive forças para abrir a janela do meu quarto, em casa de Anita, e deixar o frio entrar. Estendi os braços e apanhei a chuva, lavei a cara, molhei o cabelo. Como se estivesse dentro de água, só voltei a fechar a janela quando senti tanto frio que estava capaz de paralisar, os dedos engelhados e simultaneamente rígidos da água fria. Não sei porque o fiz, já não tinha idade nem desejo para perguntar a Artur e nunca o contei a ninguém. Tinha 81 anos e a única pessoa que me sobrava da infância era Pilar. Não escondo que a minha relação com Pilar era estranha. Desde a traição ficámos distantes e no dia do funeral de Juan Miguel ela sentouse a meu lado e talvez só eu soubesse que a sua presença ali tinha um significado maior do que o facto de ela ser minha irmã. Anita e Maria nunca perceberam inteiramente a razão de não sermos assim tão próximas, mas não faziam muitas perguntas, porque também não se lembravam do tempo em que fôramos íntimas. De qualquer modo, depois da morte de Juan Miguel – e das notícias de Yannick e de Elena, a cujo funeral Anita não quis que eu fosse, ao que eu me sujeitei – Pilar ensaiou uma aproximação. Mana, somos velhas, não vamos encerrar nossos dias com as mágoas do passado – disseme ela, sempre dada a frases diplomáticas que lhe ficaram do marido falhado. Concordei. E ela passou a visitarme amiúde, em casa de Anita, tanto mais que vivia num apartamento não muito longe. Já se sabe que as relações não voltaram ao que eram dantes, mas sempre rimos um pouco com as histórias de que nos lembrávamos do tempo em que éramos crianças e, depois, adolescentes. E um dia de sol, em Março, estávamos ambas tão sentimentais numa esplanada à beira Tejo que tentámos refazer o abraço de Biarritz, tomando a Torre de Belém pela Virgem do Rochedo, mas já não foi a mesma coisa. A minha boa relação com Pilar esvairseia, porém, em pouco mais de dois meses. Na Páscoa fomos para o Algarve e decidimos ficar por lá uma semana. Fátima foi também para nos acompanhar, de modo que ficámos as 135
três neste casarão. Correu tudo lindamente até à véspera do Domingo de Páscoa. Na noite desse sábado Pilar e eu bebemos um pouco mais do que seria normal. Fátima tinha feito uma refeição bastante boa e estávamos muito animadas. O problema começou, penso eu, devido a um equívoco de Pilar: na sua imaginação, a traição dela com Juan Miguel era do conhecimento de toda a família – de minhas filhas, de minhas netas e sabese lá de quem mais. De modo que, no meio de uma questiúncula qualquer ela atiroume à cara que teria sido mais prudente se o assunto ficasse só entre nós, como ficara o de Juan Luís, o seu marido frouxo. Eu respondilhe à letra: ¡Para mi, Pilar, todo se ha quedado entre nosotras, solamente entre nosotras! ¿Que te crees tu? ¿Que lo estuve pregonando por las calles? Pilar não reagiu bem. Desatou a fumar um cigarro – ela sempre fumou pela vida fora. Tinha a pele enrugada do tabaco, era mais magra e mais alta do que eu, mas tinha um porte que lhe ficara da curta e infértil vida diplomática e que lhe dava sempre um ar de grande dama. Atiroume uma baforada de fumo e depois, com um ar absolutamente impiedoso, disseme que por ela o podia apregoar. Que Juan Miguel se tinha divertido e ela também. E que eu, se quisesse e não fosse tão convencional, me podia ter divertido o dobro. Ela acertou em cheio. E foi por isso que eu deixei a minha razão afundarse na desorganização mental que era a minha emoção. Disselhe o que nunca devia ter dito, acuseia de tudo e mais alguma coisa. Em boa verdade, não me lembro do que disse. Só me lembro de Fátima entrar a gritar: Minhas senhoras! Minhas senhoras! Eu retireime para o quarto. Fechei a porta, despime – na altura, sem fraldas e com os movimentos mais soltos, faziao ainda sem dificuldade. Depois, vesti a camisa de noite e deiteime. Acordei – pareceume que não mais de uma hora ou duas depois – com a Fátima aos murros na porta do meu quarto. A mulher estava branca, lavada em lágrimas. E eu pressenti que o impossível se tornara verdade. Pilar tinha morrido. Estava morta em cima da sua cama, impecavelmente vestida, como sempre andava, apenas com um sapato tirado. O copo de leite, que bebia todas as noites antes de dormir, estava cheio, na mesadecabeceira. A sua face, apesar da discussão terrível da noite anterior, era serena. Tive de acalmar Fátima, tal era o seu desespero, que entre o pobre senhora, referindose a Pilar, e o meu Deus, referindose a ela própria, e de novo um pobre senhora, agora referindose a mim, chorava baba e ranho. No meio de toda aquela convulsão disseme que estivera a falar com minha irmã na noite anterior, depois de eu ir para a cama. Interrompia: A falar de quê? E talvez tenha sido um pouco brusca, pois a mulher assustouse. De nada de especial, sei lá, do tempo, da casa dela, desta casa… 135
Fiquei mais descansada, e ela continuou. Assim estiveram até cerca da meianoite e meia. Posto isto, Fátima aqueceulhe um pouco de leite, deulhe o copo ainda na sala e foi para o seu quarto. Hoje de manhã, depois de se levantar, tinha reparado na porta entreaberta e na luz do sol que iluminava o quarto de Pilar. Quando espreitou viua vestida sobre a cama. Quando lhe tocou, percebeu o sucedido. Mandeia telefonar a Anita. O óbito foi passado – ataque cardíaco súbito. Não é caso comum numa mulher de 79 anos, como ela, mas acontece, dissenos o médico. Nos pertences de Pilar encontrámos uma nota em que ela dizia querer ser enterrada onde caísse. Por esse bilhete fiquei a saber que ela tinha uma série de doenças e de alergias que eu desconhecia – e pela primeira vez me senti culpada de, sendo a sua irmã mais velha e sabendo que ela não tinha ninguém no mundo, salvo eu e as minhas filhas, não lhe tivesse prestado atenção. Felizmente, o remorso foi um pouco ofuscado quando soube que Anita sabia perfeitamente de tudo. Também sabia que a tita Pilar tinha feito testamento a favor dela e da irmã, o que a nota confirmava e que ela costumava dizer que devia ser enterrada onde caísse. Donde me caiga me quedo. E assim foi ela enterrada no mesmo cemitério de Juan Miguel. Não sem antes eu ter feito uma pequena cena com Anita por não a querer no mesmo jazigo que meu marido, apesar de ter oito lugares e de ele lá estar sozinho. Não iria permitir que a traição fosse também postmortem , mas não o podia dizer a minha filha, que não conhece a história. Felizmente, Humberto, na sua pachorrenta paciência, parece ter entendido que havia um caso de ciúmes, embora para ele não totalmente esclarecido, e conseguiu convencer minha filha a sepultar a tia noutro local que não no jazigo da família. E assim, o funeral foi o mais simples possível. Eu, Anita, Humberto, Fátima e três ou quatro almas piedosas da terra, entre as quais uma prima afastada de meu marido. Maria não estava em Madrid, estava em Itália. As minhas netas estavam muito atarefadas, presumivelmente com namorados (na altura). E Anita, sempre complacente dizia – coitadinhas, ainda noutro dia foi o avô… E eu pensava que, para mim, era a quarta morte em pouco mais de dois meses. Comecei a inculcar qual a minha parte da culpa nesta coincidência. Por estranho que pareça, sentiame algo culpada por ter autorizado a dose extra de morfina para Juan Miguel, como se ele sentisse outra coisa que não fosse o alívio da dor, como me sentia culpada pela discussão com Pilar. No fundo da minha consciência ainda estava, também, por resolver mais remoto, mas muito mais doloroso – o caso de Luisito, cujo remorso de o ter deixado em casa de minha irmã quando ele, pequenino, foi a correr atrás de uma bola e eu nem sequer estava com ele, porque andava a tentar fazer as pazes com pai… Essa culpa… esse remorso nunca me passou, apesar das tentativas de superar. Nem Artur nem ninguém puderam arrancar esse sentimento do local fundo, mas bem presente, onde está incrustado. A morte de Pilar, após a enorme discussão que eu tivera com ela, 135
turvame o espírito e fazme sentir culpada, apesar de o próprio Luisito me dizer que é um remorso idiota, sem sentido, quase anedótico: Tu és mais velha. E tu discutiste com ela porque ela discutiu contigo. Se fosses tu a morrer, a culpa seria dela? E se morressem as duas, o remorso deveria ser também igualmente repartido? Faz algum sentido achar que tens culpa? Não fará… Mas eu sinto a culpa que meu filho diz que não tenho. E tanto mais a sinto, quanto nem sequer me importo com o facto de a poder ter. É o tipo de culpa que se sente quando se bate devagarinho num carro parado. Saímos e dizemos, até com sinceridade: olhe, a culpa é minha! Eu mando o meu seguro tratar disto. E vamos à nossa vida. Porém, mais tarde, quando nos lembramos, ou porque passámos no local, ou por outro motivo qualquer, sabemos inapelavelmente que a culpa foi nossa. Sinto o mesmo. Que é algo que poderia ter evitado, mas que não trouxe grande dano, e talvez este pensamento me provoque ainda mais culpa do que o acontecimento em si. E, porém, o mais curioso é que Pilar me faz falta! A sua ausência corta o único elo que me ligava ao passado, é um pedaço de uma corrente que desapareceu. Doravante estou entregue à minha própria memória que sinto que vai desaparecer antes que eu consiga ter respostas para tudo. E no dia em que já não tiver memória, serei toda presente e futuro. Sendo que o meu futuro é breve – é a morte. Vivi esses dois meses tristes como se levada por uma força externa a mim, como se os meus passos, gestos, pensamentos, acções fossem doutra pessoa. Vivios talvez com pena de mim. Porém, o golpe mais radical e fundo, aquele que me derrubaria as barreiras e os sentimentos – se algum ainda tinha por derrubar – veio depois, três meses depois da forma mais inesperada e bruta que um deus raivoso poderia conceber. Não sei se um deus nos comanda, como já disse. Não sei precisamente o que é esse Algo ou Alguém. Há momentos em que lhe chego próximo, quase lhe toco, mas há outros – como este em que me lembro da morte de Maria – em que ele me é totalmente estranho. Fico imersa numa espécie de ar denso, em que os meus movimentos se tornam lentos, pesados e a minha cabeça vazia, estranha ao meu corpo. Fora eu nova, e tudo o que poderia fazer era nadar, nadar violentamente até à exaustão, para concentrar todas as minhas forças no desejo de viver, de flutuar, de voltar a terra. Agora já não posso, já não disfarço. Já não tenho sequer forças para apenas flutuar ao sabor das ondas, a força exterior a mim já não faz com que ande, com que me mexa, com que sequer flutue. Restame estar sentada, inútil, a ver o mar e a imaginarme nele, a ser levada pelas ondas. XXI – Maria Cai o sol na Senhora da Rocha, à minha direita. Nem preciso de olhar para saber o tom alaranjado do horizonte. A cor espalhase pela água e 135
ganha um aspecto ameaçador, lembrando aquelas frases bíblicas terríveis sobre o mar tingirse de sangue. E o sangue lembrame morte. Não tenho pavor da morte, nem penso na minha morte. O medo é a dor que a morte inflige nos vivos, a desorientação que lhes causa, o nunca mais háde vêlo. Nunca mais – Nevermore – como parecia dizer o corvo de Poe. Nunca mais… E a dor da morte sentia tantas vezes e de tantas formas que não sei descrever o que senti quando soube que minha filha Maria tinha sido levada para sempre, que nunca mais a veria. A notícia chegou até mim num repente, mas, ao que vim a saber depois, muito adocicada. Maria tivera um desastre de automóvel brutal na M30 em Madrid, quando seguia de carro com o seu traumatólogo . Numa noite de chuva, o homem não aguentou o carro num viaduto e ambos sofreram um acidente brutal, caindo de sete ou oito metros noutra rua por cima da qual o viaduto passava. Estavam ambos no hospital e, até pelo facto de o marido ou companheiro de Maria ser médico, tudo fariam para os salvar. Foi assim que Anita me disse. Eu deixeime cair num torpor. Maria tinha sido sempre uma filha difícil. Tinha feito o catálogo das asneiras, casarase porque sim, divorciarase por nada, fora para Madrid para fugir de tudo, mas claro que nunca fugiu dela, porque era apenas ela a origem do seu problema. Não sei se foi mimada de mais, não sei o que se passou com ela, mas teve, certamente, a mesma educação que Anita e não podia haver duas raparigas e depois duas mulheres mais diferentes. Porém, nos momentos de aflição como o que eu passava, relevase todo o mal. Que me importava os berros, as ameaças – confesso que, até uma vez, um safanão – que Maria me dera? Que me ralava agora o dinheiro que ela roubou para comprar sei lá o quê? Droga, certamente! Nem o facto de ela ter abandonado os filhos ao marido, o que me custou a presença dos meus netos na minha vida, nem nada. Nessas alturas recordamos os momentos pequenos, a Maria na minha cama, aos pulos no colchão, contente pela boneca que lhe tinha trazido não sei de onde… A Maria agarrada a mim, com medo de uma cave escura na nossa casa no Algarve… A Maria a pedirme desculpa de uma asneira que fizera… A Maria a posar para uma fotografia, com ar de vampe, aos 16 ou 17 anos, juntamente com a desajeitada Anita, que parecia um gafanhoto… A Maria, a minha Maria e a notícia do seu acidente ainda nem cinco meses tinham passado sobre a morte de seu pai, sobre o enterro a que ela chegara atrasada, o dia em que me dera um aperto tão grande no braço que me magoara. O que passara desde então, com a morte de Yannick e de Pilar… Num repelão, manhã seguinte, decidime a ir para Madrid, mas Anita foi inflexível. Eu e Humberto vamos, tu ficas cá em casa, alguém tem de ficar cá em casa. Meia drogada, cheia de comprimidos, mal aguentando a pé, não tive forças para me opor. Queria fazêlo, mas não sabia como. E além disso, Anita e Humberto tinham os bilhetes de avião e insistiram muito que seriam os únicos a ir… Fiquei com Fátima, com outra empregada que Anita tem e com as minhas netas, na altura todas a viver em 135
casa. Passei vários dias a dormir, e se hoje me perguntarem quanto tempo estiveram Anita e Humberto em Espanha, no hospital, ao lado de Maria que – segundo os telefonemas – se batia entre a vida e a morte, eu não sei dizer. Pode ter sido uma semana, um mês… ou um dia. E eu dormia, dormia, dormia… Sabia que algo de grave estava a acontecer de que a minha cabeça se recusava a tomar conhecimento. Viao pelo ar das meninas, viao pelo ar de Fátima, pelo ar das pessoas que me telefonavam a perguntar como estava, como me sentia. Anita voltou. E não foi preciso dizerme nada. Absolutamente nada. Eu soube nesse momento que ela era a filha que me restava dos três que dera à luz. Ela, o patinho feio, a mais velha, talvez a mais desprezada, porque Luisito era perfeito, porque Maria carecia de atenção, de discussão, de drama e de afectos constantes. Anita era a solidez, mas nesse dia foise abaixo. E de novo chorou, como quando da morte de seu pai, como eu chorara há muitos anos em Ayllón… E eu, velha de 81 anos, consoleia como pude… é a vida, dizia eu. É a vida... Mas é a morte. Durante um tempo parecemos viver um ambiente fúnebre, até Humberto ter comprado os bilhetes para uma viagem de barco, nesse Verão. Íamos todos – ele, Anita, eu e as três meninas. Três camarotes. Um para o casal, outro para as meninas mais velhas e o terceiro para mim e para Madalena. Foi nessa viagem que aprendi a gostar desta minha neta simultaneamente rebelde e carinhosa. Madalena foi a primeira a proceder comigo – depois de todas as mortes que me afectaram nesse ano – não como a coitadinha da senhora, como Fátima costuma referirse a mim, ou como aquela de quem se diz: deixaa estar, deve estar cansada, como fazia Anita, mas sim como uma pessoa inteira, que apesar da idade e das contingências, tinha todas as suas capacidades intelectuais. Ou quase, porque os medicamentos de que me encharcaram davamme uma sonolência constante que contrastava, em certas horas, com uma espécie de alegria pateta e artificial. Se não fosse Madalena eu não saberia o que tinha acontecido a Maria. Há um certo masoquismo no modo como, por vezes, queremos saber aquilo que nos vai magoar. Sabemos a verdade por alto, pelo essencial, como eu sabia de Maria – estava morta, nada havia a fazer, jamais a veria de novo, Nevermore – mas queria pormenores que sabia estarem a esconderme. Eu fazia testes e mais testes, como perguntar onde se tinha ela ferido, mas Anita e Humberto teriam a lição bem estudada, respondiam o mesmo, com os mesmos pormenores. O nome do hospital, do médico, o tipo de ferimentos, o facto de ter entrado em coma e não ter saído mais, a ideia transmitida pelos especialistas de que não deveria ter sofrido… tudo isso! Mas comecei a suspeitar que algo na história não batia bem através de Fátima. Não que ela mo tenha dito. Nunca! Mas quando falava com ela sobre o assunto havia como que uma incomodidade na mulher que era manifestamente exagerada, sobretudo tratandose de Maria que ela, ao fim 135
e ao cabo, mal conhecera. Quando soube a verdade jurei que Anita me teria de pedir desculpa por ma ter escondido. A mim, que era sua mãe e mãe de Maria e portanto a primeira a ter de saber. Ainda ensaiei uma séria discussão com ela, por me ter roubado a consciência da trágica morte de minha filha e sua irmã, mas percebi subitamente como para Anita a tranquilidade é superior à verdade, razão pela qual o que ela fez era, do ponto de vista dela, o certo. Percebi, igualmente, que a minha raiva não era tanto por me terem ocultado os motivos, mas sobretudo pelos motivos em si, os quais não poderia alterar. E entendi que eu própria teria feito o mesmo, caso soubesse primeiro do que ela. Era demasiado, e os próprios filhos, os meus netos, deveriam ter sido poupados a tão estúpida verdade. Madalena contoume porque eu lhe jurei que jamais diria que ela o tinha feito – e esse foi o terceiro e decisivo motivo para esconder de Anita que já era possuidora de toda a verdade. Mas há um pormenor no qual de vez em quando penso e que tolda o raciocínio: por que háde ser verdade a história que me contou Madalena? Apenas porque é demasiadamente cruel para ter sido inventada por uma rapariguinha de 20 anos? E assim fico a pensar sobre qual era a verdadeira verdade, sobre o que realmente aconteceu nessa noite em Madrid em que um carro se despenhou da M30 e Anita me disse que Maria estava muito mal, num hospital. Foi à noite, a meio da noite, no camarote do barco. Navegávamos entre Santorini e Katakolon e Madalena chegara da discoteca do navio. Talvez viesse tocada, talvez não, mas desatou a falar comigo acerca de uns rapazes que andavam perigosamente no deck superior, em risco de cair ao mar. Eu, armada em boa avó, deilhe conselhos piedosos, sérios, prudentes e referilhe que as pessoas nessas idades fazem disparates de que se arrependem toda a vida. E ela, esperta como sempre, perguntoume de imediato se uma pessoa não faz disparates de que se arrepende toda a vida a qualquer idade. Bem., sim, faz… disselhe eu hesitante. E ela concordou. Na nossa família, continuei, já havia disparates suficientes. O do tioavô Raul, que foi com a JONS; o do tio Luisito que foi a correr atrás de uma bola; o do namorado da tia Maria que não soube guiar num dia de chuva e iria provavelmente demasiado depressa. E ela, rápida, respondeu: Provavelmente, não! Ia mesmo! Apurei o ouvido, como sabia ela tão peremptoriamente que ele ia em excesso de velocidade. Como sabia. Ela foi evasiva, mas a sua vontade de mostrar que conhecia o segredo prevaleceu. E foi com muita surpresa minha que ela, de repente, me disse: A avó quer saber a verdade? Jura que não diz a ninguém que eu lha contei? Se tivesse juízo teria dito que não. É daqueles casos em que não sei se me arrependo, mas isso é agora indiferente. O que ela me contou foi horrível, sem descrição, sem piedade. 135
Maria estava em casa com o seu homem, o traumatólogo . Começou uma discussão feroz. Eu imaginei a cena facilmente, as discussões com Maria tornavamse ferozes num fósforo. Ela era exasperante, terrivelmente exasperante quando se lhe metia na cabeça uma ideia, uma vontade, um capricho. Isso sabiao eu muito bem. A certo momento, a discussão degenerou numa cena de pancada e o médico, com as suas mãos habituadas a tratar os ossos do corpo humano, apertou o pescoço de Maria até a matar. Foi estrangulada! – disse Madalena. E o desastre? perguntei eu, incrédula. O desastre aconteceu, disseme a miúda. Depois dessa cena, ele meteua no carro. Ia levála ao hospital onde trabalhava e entregarse à polícia, sabia que ela estava morta, mas esperava qualquer coisa, um milagre, que o compreendessem, que lhe dessem uma atenuante por estar fora de si. No carro, a grande velocidade, numa noite de chuva, despistouse na M30, galgou a protecção do viaduto e foi parar lá abaixo, numa queda de oito metros de altura. E o cabrão sobreviveu! Nem fiz o reparo obrigatório pelo facto de Madalena ter dito um palavrão. Estava sem fala. Só me ocorria perguntar se era verdade. Madalena dizia que era a versão da autópsia. O corpo de Maria estava no carro, mas ficou estabelecido no exame médicolegal que tinha sido estrangulada antes do acidente. Ele ficou todo partido, internado e, simultaneamente, preso no hospital, no mesmo hospital onde tinha sido médico. Só três ou quatro semanas depois conseguiu falar e confirmou todas as suspeitas da polícia. Assim que estiver em condições, o que ainda vai demorar meses, vai a julgamento. Não apanhará menos do que uns 30 anos, segundo o advogado que Anita contratara, por sinal um dos filhos de Elena… Quem mais sabe isso, Madalena, pergunteilhe. Toda a gente, menos a avó. Veio nos jornais; no El País , no El Mundo , no ABC , em todos! Até a TVE deu notícia, andámos uns dias a ver se a avó não via as notícias de Espanha, tivemos medo que chegasse às portuguesas. É do tipo de notícias que os jornais adoram – uma história com sangue e drama conjugal. Eu enterrei a cara na almofada e mordia, como sempre fazia quando não queria chorar. Fiquei com raiva por me terem escondido e com raiva por ter ainda esta provação. Lembreime de perguntar a Deus o que queria ele de mim, lembreime de Job e no Domingo seguinte, depois de atracarmos sábado em Veneza, pusemonos a caminho de Pádua e na basílica de Santo António desafieiO completamente! Que queres? Que queres? Raul, Eduardo, Enrique, Luisito, Juan Luís, Juan Miguel, Yannick, Elena, Pilar e Maria. Foram 10 pessoas que podiam estar tão vivas quanto eu, dois filhos e uma irmã mais nova que me levaste e que queres que eu faça? Eu sei que foi irracional. Mais tarde achei que me estava a armar em importante, como se Deus se preocupasse com 10 mortes, quando tem milhões por ano, por mês. Ouço falar de desastres em que morrem cinco e seis membros de uma família ao mesmo tempo, como se sentirão essas mães? 135
Como se sentirão essas mulheres? Bem pior do que eu, que estou aqui num casarão, numa posição superior, com uma empregada chata, mas que faz tudo o que lhe mando… Aqui estou a ver o pôrdosol, à minha direita, o mar tingido de sangue, como eu tenho a minha alma tingida de morte. Espero ser a próxima, porque sinto que sou eu a causa de tudo… Desde que desejei a morte de meu irmão Raul por ele ter batido no meu mergulhador, aquele Carlos rapaz de El Grove, que à minha volta se fez uma tragédia. Às vezes faço contas de cabeça, disseramme que era bom para o Alzheimer. E penso que, em 88 anos, 10 mortes de entes queridos, me dá uma morte de 8,8 em 8,8 anos. E depois perguntome: que merda é esta? Porque razão faço esta média? E não me lembro de nenhuma razão para a fazer. Em poucos meses, quando tinha 15 anos, morreramme três irmãos e meu pai. Em cinco meses exactos, meu marido, minhas duas melhores amigas, minha irmã e minha filha. Não há média nenhuma! Houve dois momentos negros na minha vida, um vivido há 73 anos, outro há sete. De então para cá, nasceramme duas rapariguinhas pequeninas, duas bisnetas, a família recompõese e eu posso ir em paz. É nestes pensamentos positivos que tenho de me concentrar. Não fora aquele pôrdosol que deixa o mar da cor do sangue e aqui estaria feliz e contente a pensar na vida de outra forma. Mas o mar não me deixa. XXII – Ocaso Ocorreume que eu e o mar somos a mesma substância, embora em estações desencontradas. O mar vive agora o seu verão esplendoroso, de azul forte com reflexos prateados. Eu vivo uma breve tarde daquele Outono de Dezembro que todos sabem ser já Inverno. As tardes cinzentas escuras que, num ápice, se transformam em noites tenebrosas. Como eu, o mar é impassível às tragédias, os seus movimentos raramente se alteram ou ajustam, repetindose uma infinidade de vezes. É majestoso, como dizem os poetas e como sei que pode ser o meu aspecto altivo nesta casa única rodeada de prédios banais, com os seus muros sobre a praia de onde saem os últimos resistentes, os que querem sol até ele desaparecer atrás das arribas da Senhora da Rocha, da Virgem do Rochedo. O meu destino deveria ser diluirme no mar, voltar ao seu ventre, onde os movimentos são vagarosos, precisos e sem esforço, como os movimentos de um feto no ventre da mãe. Mas o meu destino está longe de mim. A invalidez que é a velhice não permite sequer que cumpramos o que o destino nos deu, afastao de nós, impedenos que lhe cheguemos, que lhe digamos docemente: aqui estou para me cumprir, para me entregar. Foi a guerra que me levou uns, a doença que me levou outros, um acidente estúpido e um crime hediondo levoume dois filhos, mas o mar – a única forma gloriosa de abandonar o mundo – sempre nos poupou e sempre me fascinou. Talvez seja eu que lhe esteja destinada, nascida 135
em terra de mar, vivendo em terra de mar, morrendo em terra de mar… Do mesmo mar. Eu sou a vida que resta de um século de progresso e morte. Sintome a testemunha final, derradeira, das ideologias em choque numa guerra sem quartel que colocou pais contra filhos e irmãos contra irmãos. Nesse tempo, morriase por uma ideia, morriase por uma causa, morriase por um amanhã. Hoje ninguém o faz. Poderei ainda orgulharme de Raul, de Enrique, de Eduardo? Terão eles lutado porquê? Quem queria que o mundo fosse assim, tão desinteressante como é? Que sonhos tinha o senhor Pardiac quando em Biarritz dava guarida aos resistentes? Em que sociedade pensava Churchill nos seus discursos vibrantes? Que tinha em mente D. Nicolás, o irmão de Francisco Franco, quando me punha a cantar o Cara al Sol ? O mundo que a minha geração quis construir desmoronouse, caiu aos poucos até se tornar num amontoado de ideias superficiais, contraditórias e intolerantes. Hoje vivemos mais – quem tinha 88 anos quando eu era nova? Duas ou três múmias que seriam notícia num jornal local! Mas vivemos mais com esperança em nada! Nada! Não há um gesto grandioso, um beau geste11 como o daqueles homens da Legião Estrangeira. Vivemos num mar à deriva, sem farol, sem objectivo, sem carta de navegação. Hoje é tão perigoso ter ideias livres como o era na minha juventude. Quem ousar contra a cartilha do momento já não leva um tiro pelas costas, nem é preso – pelo menos na maioria das latitudes – mas passa mal. Os centros de pensamento, que foram em determinado momento as Universidades, tornaramse em centros de vigilância sobre a linguagem utilizada. Yannick bem me dizia que o controlo da linguagem tinha sido o nosso fim. E os velhos não fazem parte deste mundo. Vivem de mais. Alguns, como eu, têm a sorte de ser acarinhados, de ter condições excelentes para poderem continuar a vegetar. Mas ninguém quer conhecer a nossa experiência. Porém, sempre que isso acontece, têm uma surpresa. Foi o caso de Madalena depois de me contar o modo como minha filha Maria tinha sido assassinada. Passado o choque dessa noite – e talvez de mais algumas noites – disselhe: sabes, Madalena, tua tia Maria era impossível de se aturar. Acredito que esse pobre homem que vai pagar na prisão por longos e merecidos anos, tivesse perdido completamente o controlo de si… Seria necessário gostar muito mais de Maria do que ele – e qualquer homem normal provavelmente gostaria, para não lhe bater. Madalena ficou como que petrificada. Ó avó, tu dizes isso da tua própria filha. Pois é o que a velhice nos traz. Quando nascem os nossos filhos, expliqueilhe eu, eles são totalmente dependentes de nós. E durante alguns anos são o que queremos que eles sejam. Na adolescência vão ganhando uma personalidade e é nesse momento que começamos perceber neles defeitos que 11 Referência ao filme (de William Wellman) e romance (Percival Wren, 1924) com o mesmo título, descrevendo a fraternidade dos homens da legião Estrangeira.
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preferiríamos que não tivessem. Tudo isso se acentua quando são adultos e as relações alteramse quando os nossos próprios filhos são maduros suficientes para compreender, também eles, os defeitos dos pais. Comigo e com Maria foi assim. Eu compreendilhe os defeitos como pessoa e ela entendeu os meus; soube que eu não era uma mãe carinhosa como outras, culpoume, achou que talvez eu pudesse ter feito mais. Por isso, Madalena, o que eu digo não significa que gostasse menos dela do que tua mãe ou do teu tio Luisito. Apenas que reconhecia nela mais defeitos… E Madalena contraatacou: Mas tu gostas mais da minha mãe… É verdade – disselhe eu – mas não posso dizer, porque ninguém o compreenderia. Todos diriam: olha aquela velha, que assume gostar mais de uma filha do que doutra. Não, Madalena, um dos problemas da nossa sociedade – se calhar de todas, mas eu só vivi nesta – é que a verdade é muito perigosa. Sobretudo quando a verdade é indelicada. Por isso não poderia dizer a tua mãe que Luisito é para mim o filho perfeito, porque nunca deixou de ser o que eu supus que ele era. Nunca chegou àquela fase de amadurecimento em que lhe vi os defeitos. E ele hoje vive dentro de mim, fala comigo como eu acho que ele falaria e como eu acho que ele me compreenderia caso tivesse crescido e fosse hoje um homem à volta dos 60 anos… Ainda que o imagine de boné e calções e com o corpo que tinha da última vez que o vi, há já tantos anos, mais de meio século… Madalena abraçoume e nesse momento quase repeti a sensação de Biarritz. Mas ela quebrou o instante perguntando: E das netas, avó. Quem preferes? Eu disselhe a verdade, a verdade daquele momento e a verdade de então para cá: és tu! E ela voltou a abraçarme e eu fizlhe prometer que ela nunca o diria a ninguém. Mas dessa hora em diante, há já mais de sete anos, eu soube que tinha alguém na terra que me continuaria; alguém que poderia, como eu, ter um amigo, ou amiga, para continuar as conversas que deixara interrompidas com a minha Madame . E essa sensação de continuidade, do meu prolongamento em Madalena criou em mim, desde então, a ideia da inutilidade do prolongamento da minha vida. Uma inutilidade total e provada. Meu pai viveu para cumprir um dever. Minha mãe para mim e Pilar. Raul para endireitar o mundo. Eduardo e Enrique para vingar nosso pai e o nosso irmão. Juan Luís para esconder o seu segredo íntimo. Pilar para se divertir e me atormentar. Maria para levar a sua própria infelicidade ao limite, na busca de uma felicidade impossível. Juan Miguel para me agradar e para relaxar serenamente nos braços de qualquer mulher. Mas Luisito para que viveu? Eis a pergunta que me escapa. Eis o mistério que me atormenta. Porque se Anita vive para servir os outros e é da cepa de uma santa, embora com os seus defeitos, e se eu vivi, como penso, para testemunhar este quase século de loucura e de vertigem, Luisito nos seus curtíssimos nove anos de vida, para que viveu? Para que nasceu? Talvez eu tenha perseguido este mistério desde esse dia. Talvez tenha sido este mistério que me manteve de pé, quando tanta coisa me aconteceu. Talvez eu tenha vivido a vida por ele, porque todos os dias pensava nele, 135
porque sempre que via algo de belo, de bom, de sublime – a catedral de Chartres, os corredores do Louvre, os telhados de Praga, as estátuas de Florença ou a silhueta de Nova Iorque quando se apanha o barco em Ellis Island – eu dizialhe: vês, Luisito? Aqui estamos. Aqui viemos, vê como é lindo. E lá de onde ele está háde ter visto comigo. Talvez isso explique o que me fez viver, a mim que nunca tive um emprego fixo, salvo o pequeno período do Consulado, que nunca tive fome ou frio, salvo nos dias da guerra em Ayllón, que nunca me faltou comida na mesa nem motivos de alegria na vida. Eu, que comparada com tanta gente que vejo passar pelas estradas, vergadas ao peso de responsabilidades e de tragédias pessoais, não tenho assim tanto para me queixar, e que, não obstante, passei por tantas privações, desilusões e desenganos, sinto que não vivi senão para poder deixar em alguém, em Madalena a quem conto a minha vida, os frutos que fui colhendo das sementes desta caminhada. Vivi pelo Luisito e para a Madalena. Eis o que me consola. Tudo o resto que se passou foram acidentes que ocorreram neste longuíssimo desígnio que foi toda a minha vida. As mortes teriam de acontecer. Se nos pusermos de um ponto de vista cósmico, todos morreram apenas um pouco antes do que eu vou morrer. Mesmo eu, parto apenas instantes antes de minha filha, netas e bisnetas… O que interessa à história, o que interessa a Deus, a esse Algo que eu tentei explicar o que era, é a corrente, a sequência. Para quem – e não para quê estás tu a viver? Eis a pergunta que cada ser humano deveria colocar a si próprio. Eu, desde o exacto momento em que o compreendi, deixei de me importar com a morte. Agora já não choro, já não me entristeço, nem tenho medo nem ansiedade. Sei bem o que fica de mim – aquilo que eu sou – e o que de mim parte – este corpo velho e sem préstimo, envolto em rugas e com uma fralda para os pequenos acidentes. É ridículo querer mantêlo, absolutamente despropositado. Um corpo assim não serve a um espírito como o meu, que se tem de prolongar no corpo de uma jovem, capaz de ter os lampejos de paixão, de alegria, de euforia, de satisfação. E de carregar, também ela, e também o seu corpo, a infelicidade muito própria que toca a cada um de nós. A nossa história é uma sucessão de episódios tristes. Quem disser o contrário é louco. Eu seio bem! Eu sei bem o que pensam esses sempreemfesta que no fundo têm medo de envelhecer, têm medo do nada. São gente que nada construiu, que não tem futuro na vida de ninguém, que não têm uma só pessoa a quem servir de modelo ou de guia. A catedral de Notre Dame, em Paris, demorou mais de 100 anos a ser construída. E uma vida – toda uma vida – demorará muito mais. Eu apenas deixei um episódio, que se seguiu ao episódio de meu pai e de meus irmãos, de quem sou a única familiar viva. Deixoa acrescentada de tristeza, mas também de alegrias e de ideias em discussão, aos que me seguem, que a ela hãode juntar novos episódios até que um dia possamos ter quem sabe? – uma vida completa, que reúna em si toda a alegria e toda a tristeza do mundo; todos os sentimentos, todas as paixões e todas as virtudes. Esta foi a lição da minha vida. Amanhã de manhã, Fátima háde acordarme de mansinho, como sempre faz. Depois, levarmeá até à mesa e medirmeá a glicemia. Põe o pequenoalmoço e esperará que eu o coma, para depois ir lavarme com uma esponja. Enquanto ponho o meu fato de banho 135
velho e uma saída de praia, tirará do barracão do jardim o cadeirão de verga onde me sento a ver o mar. E, suavemente, pelo braço, enquanto tagarela sobre o que encontrou e não encontrou na praça, levarmeá até ao meu local predilecto. Mas haverá um momento em que serei eu a quebrar a rotina. Dirlheei: Fátima, há tanto que me pedes… hoje é que me apetecia ir molhar os pés no mar. Ela sorrirá. Há muito que quer ir comigo molhar os pés. Iremos as duas. E, se não me faltar coragem, eu não volto.
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