Todo personagem tem o romance que merece: uma resenha de.Kitty aos 22, de Reinaldo Santos Neves

September 26, 2017 | Autor: Erly Vieira Jr | Categoria: Literatura brasileira, Literatura Brasileira Contemporânea, Romance Brasileiro, Reinaldo Santos Neves
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Todo personagem tem o romance que merece: Uma resenha de Kitty aos 22, de
Reinaldo Santos Neves[1].

Erly Vieira Jr
Mestre em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade Federal
Fluminense
Professor do Curso de Comunicação Social da Faculdade Novo Milênio

Ela tem apenas 22. Chamam-na de Kitty. Todo mundo. Tem blog, fotolog que é
quase uma música do The Police: Every little thing she does (só faltou o
"is magic" ao final da frase), vive nas baladas, na "sinfonia de estrobos"
proporcionada pelas cybershots de bolso a toda hora convocadas pra tirar
foto pro fotolog. É loura, olhos azuis, bonita, gostosa e cultuada pela sua
"galera". Ganhou de Daddy um Audi A-3 vermelho, estuda Comunicação numa
"facul" particular em Mic (a.k.a. Vitória). É claro que suas amigas se
chamam Lu, Déb, Pri (aliás, são duas Pris!, só faltou mesmo uma Tati e uma
Mari pra completar), e dá pra adivinhar que no Winamp do computador dela
rola Audioslave, Linkin' Park, Lasgo, No Doubt e até mesmo System of a
Down, pra mostrar que ela não está aí pra brincadeira. Até que de vida
sexual ela já fez um bocado de coisas, Guto, seu ex, que o diga. O atual,
Breno, que é bi, é uma prova de que Kitty, a princípio, "não tem
preconceitos". Bala, doce (gírias utilizadas para as drogas ecstasy e LSD,
respectivamente), tudo ela já provou, e "encaretou" depois de uma quase
overdose de pó. Mamãe é Mummy, demonstrando que a vida vez por outra pode
ser cor-de-rosa, e falada em inglês, que até chega a ser muito bom,
"provindo, como provém, 10% de aulas em instituto de línguas e 90% de
letras de rock" (Neves, 2006: 26). E ela de-tes-ta trocadilhos do seu nome
com a "imbecil" Hello Kitty.
Kitty, aos 22, é protagonista de um romance. Ela bem que poderia ser
personagem de algum escritor ex-blogueiro, quase sempre gaúcho ou carioca,
surgido neste começo de século, altamente hypado e com atitudes de eterno
estudante de Jornalismo (mesmo depois de formado). Mas, arremessada assim,
sem mais nem menos, no meio de uma trama sub-bukowskiana (esse tipo de
escritor a-do-ra Bukowski, sabe-se lá Deus por quê), a história de Kitty
seria tão descartável como costuma ser esse tipo de literatura. E, ainda
por cima, o excesso de referências pop (jogadas no texto pelo autor pra
disfarçar a falta de habilidade em contar uma história) serviria no máximo
para demonstrar um maniqueísmo simplista e arrogante de escritor jovem que
ouve Weezer e Babyshambles (bandas ícones entre os blogueiros ditos
alternativos, ou melhor, indies, segundo o termo mais em voga neste começo
de século) e que só escreveria sobre uma fã do Linkin' Park (banda de
extrema popularidade entre as hordas de adolescentes médios) pra
ridicularizá-la por ser uma patricinha cujos hábitos de consumo orbitam
pelo chamado mainstream.
E aí vem o primeiro tapa. Kitty é protagonista de um livro, mas sua
história caiu em boas mãos: Kitty aos 22: Divertimento é o novo romance de
Reinaldo Santos Neves (16 anos depois da publicação de Sueli). Reinaldo, um
dos principais escritores espírito-santenses (e brasileiros), e ainda por
cima jazzófilo xiita (daqueles que se reúnem no Clube das Terças-feiras,
como seu personagem Garibaldi), escrevendo sobre patricinhas fotologgers
sempre ansiosas por uma "baladinha" irada? E por que não?
Reinaldo promove um mergulho no efêmero e altamente mutável universo da
cultura pop pra extrair dali uma estória bastante sólida, centrada na
última semana de férias de julho da protagonista. E é aí que podemos
perceber a diferença entre um escritor de verdade e autores hypados por
conta de livros com títulos muito mais interessantes que o próprio
conteúdo. Aqui, as referências à cultura pop deste início de século não
agem como uma camisa-de-força a reduzir os personagens aos estereótipos
desta ou daquela tribo, como é de praxe na maioria dos livros que se
utilizam desse recurso, escritos por autores "jovens" e "descolados". Pelo
contrário. No romance de Reinaldo, tais referências são reviradas do avesso
a cada vez que a trama nos conduz a eventos inesperados. Os signos pop,
aqui, conseguem ser utilizados a serviço da narrativa (e não a obrigando a
servir como pano de fundo de uma mera declaração de filiação a determinada
tribo), e somam significados justamente por terem utilizadas suas mais
proeminentes características: a descartabilidade e a mutabilidade
constantes.
Reinaldo consegue, dentro de um universo efêmero e supostamente
descartável, construir uma personagem de uma densidade raramente encontrada
na prosa brasileira contemporânea. O livro consegue ser deliciosamente pop,
sem ser raso em momento algum, deixando o leitor perplexo e hipnotizado à
medida que a trama vai avançando. E eu me arriscaria a dizer que, mesmo
daqui a muito tempo, quando o mundo tiver esquecido de bandas e cantores
como Audioslave, No Doubt, Beyoncé, Britney e Linkin' Park, quando o System
of a Down não conseguir mais "mesmerizar"[2] ninguém, quando fotologs e
blogs forem peça de museu e as máquinas fotográficas digitais cybershots
forem objetos tão obsoletos quanto um gramofone, Kitty aos 22 ainda vai ser
uma leitura bastante instigante.
Aliás, o livro, em lugar de um mero e burocrático prefácio, tem um texto de
abertura, intitulado "Certas coisas que o autor acha que deve dizer", que
apresenta uma série de considerações sobre a gênese do romance e sobre seu
processo de produção. Além de satisfazer a curiosidade do leitor (que, ao
final da leitura, com certeza irá retornar ao texto introdutório para
confirmar as expectativas apresentadas nessas páginas iniciais), as tais
"Certas coisas..." de Reinaldo são uma aula de como escrever um romance.
Logo de cara, somos informados que um sonho originou uma cena (crucial) do
livro. Uma cena em que uma moça faz a descoberta do silêncio. Ora, isso já
é motivo para um romance. Mas o sonho, que sozinho poderia gerar um livro
inteiro, aqui só rendeu uma única cena. Como diz Reinaldo:
"Tive de me virar para descobrir o resto da história e
poder contá-la. Fiz, parece-me, o que costumam fazer os
paleontólogos que reconstituem o esqueleto de um animal a
partir de um único osso: reconstituí o romance a partir
de uma única cena" (Neves, 2006: 8).


Ainda segundo o texto introdutório, o livro começou a ser escrito em julho
de 2005, e em outubro já havia uma primeira versão circulando entre
familiares e amigos. O processo de pesquisa é descrito pelo autor nos
seguintes termos:
"Como procedi? A personagem era e havia que ser jovem; o
mundo era e havia que ser o mundo dos jovens de hoje.
Então procurei-os onde estavam ao meu alcance: nos blogs
disponíveis na Internet. Ali fiz meu trabalho de pesquisa
e dali extraí informações sobre a minha personagem e
sobre o seu mundo: material suficiente para criar o
cenário do romance e imaginar a mentalidade dos
personagens e para produzir a linguagem narrativa.
Batizei a personagem de Kitty — boa parte dos jovens de
hoje usa diminutivos em inglês à guisa de apelidos. Daí,
Kitty. A gatinha Hello Kitty, portanto, não é causa, mas
conseqüência dessa escolha" (Neves, 2006: 8).


Mais fascinante ainda é a construção de uma cidade para a personagem: Mic
(ou Mictown ou Mictória) é uma transfiguração ficcional de Vitória,
acrescida de elementos que pudessem servir à trama (a Universidade Católica
e a Victoria Fashion Week) e renomeando poeticamente o nome de ruas e
logradouros, na vida real batizadas porcamente pelos vereadores. Mesmo que
a cidade seja "apenas" uma recriação, o que importa é que o ethos dessa
juventude de início de século da qual Kitty faz parte está intensamente
presente. Assim como a Vitória do final dos anos 70 (em especial a
descrição do Britz Bar, reduto boêmio da época) escapa das linhas de As
mãos no fogo e ganha vida durante a leitura do romance (o mesmo ocorrendo
com Vitória dos anos 80 em Sueli), a ilha deste começo-de-século está
traduzida nas páginas do Divertimento, com toda sua urgência, muito mais
viva e pulsante do que em muita letra "modernosa" de reggae e rock das
bandas locais.
Os itens de consumo citados no livro foram "surrupiados" de uma revista que
Reinaldo recebe em casa, e que costuma guardar para que seu filho de nove
anos possa utilizá-las em seus trabalhos escolares. Eu lembro de ter ficado
assombrado quando ele, naquela salinha do Neples-Ufes, numa de minhas
visitas vespertinas ocorridas no início de 2006, mostrou-me os recortes de
revista de dentro de um envelope pardo. A bolsa, o sapato, o carro, e
diversos outros elementos do romance estavam todos lá, e era difícil de
acreditar que aqueles recortes banais de revista inspiraram objetos que
assumem uma riquíssima dimensão dentro do livro.
Ao final do texto de apresentação, Reinaldo nos revela que Phil, o padrasto
de Kitty (cujo cinismo remete ao personagem de Kevin Spacey em Beleza
Americana) é uma homenagem ao Phillip Marlowe, personagem de Chandler. E
confessa que planejava utilizá-lo como narrador do romance, mas que acabou
optando por um narrador em terceira pessoa. Eu bem que sentia um tom meio
policial na narração, uma leve tintura noir que vai tomando corpo da metade
para o final do livro, e as duas linhas finais desse texto introdutório
desvendam, de certo modo, a charada: "... mas alguma influência de Phil
permaneceu comigo, de modo que sinto que é a ele que devo o tom narrativo
do romance" (Neves, 2006: 9).
O curioso é que Reinaldo classifica seu romance como um "divertimento", tal
qual o gênero musical erudito surgido no século XVIII, caracterizado por
peças ligeiras, geralmente executadas por conjuntos de câmara, cujo clima
é, segundo a nota explicativa ao início do livro, "despreocupado, sereno
lépido e alegre" (Neves, 2006: 6). Kitty aos 22, dessa forma, pretendia ser
um entretenimento leve, uma espécie de fábula ligeira. O livro abre com um
lembrete: "Todo personagem tem o romance que merece". Kitty merece, e nós,
leitores, também.

REFERÊNCIAS
Neves, Reinaldo Santos. Kitty aos 22: Divertimento. Vitória: Flor&Cultura,
2006.
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[1] Este artigo é uma versão expandida da resenha do romance Kitty aos 22:
Divertimento, publicada em 10 de maio de 2006 na coluna semanal sobre
literatura que mantenho no periódico eletrônico Século Diário. Por ser
parte de um texto publicado num jornal eletrônico, sua linguagem é bem mais
coloquial do que um texto acadêmico requer. Contudo, optei por manter a
linguagem adotada originalmente, acrescentando apenas algumas explicações
acerca de nomes e gírias citados na resenha original, disponível no
endereço eletrônico:
http://www.seculodiario.com.br/arquivo/2006/maio/10/cadernoatracoes/colunist
as/erly.asp, acesso em 05 de agosto de 2006.
[2] Referência aos discos Hypnotize e Mesmerize, lançados pela banda de
rock System of a Down em 2005 e bastante populares entre os adolescentes e
jovens.
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