Todo pragmatista é um cético ou um cínico?

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Todo pragmatista é um cético ou um cínico?

José Rodrigo Rodriguez

Fala no colóquio Perspectivas Pragmatistas da Filosofia do Direito, organizado por ocasião da visita da Professora Susan Haack. São Leopoldo, UNISINOS, 19/05/2015.

1 Antes de começar é importante que eu esclareça de que ponto de vista estou falando a partir do título desta mesa, que foi sugerido por mim. Afinal, porque é importante que nós, juristas, nos preocupemos com o cinismo o mundo atual? Além disso, eu acrescentaria, porque ceticismo e cinismo são temas relevantes para a teoria do direito? Um dos livros mais importantes do Direito brasileiro, a Introdução do Estudo do Direito do Professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. fecha sua exposição discutindo a relação entre direito e moral. O livro é central para a nossa tradição, pois nele, à exemplo de “O Conceito de Direito” de Hart ou “Pensando como um jurista” de Frederick Schauer, Ferraz Jr. apresenta a sua visão original do direito sob a forma de um livro introdutório. Na terminologia do Professor Tércio, a justiça não constitui o direito, mas lhe dá sentido. O que constitui o direito são relações hierárquicas, coativas, diz ele e a justiça funciona apenas como seu princípio regulativo. Conferir sentido ao direito, segue a exposição, significa ser capaz de oferecer uma orientação para homens e mulheres situados no mundo. O sentido do direito, portanto, não se confunde com a sua finalidade. O trabalho de um carpinteiro, o Professor, não se reduz à utilidade dos utensílios que produz. O sentido do trabalho tem a ver com o valor intrínseco das coisas que o carpinteiro faz. Por isso mesmo, podemos dizer

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a seguinte frase “o trabalho dignifica o homem”. A eventual perda de sentido do trabalho não afeta sua utilidade, mas afeta a orientação de homens e mulheres. Um direito constituído arbitrariamente constitui-se como tal e pode mesmo servir a alguma finalidade. E, como tal, pode gozar de império, ser reconhecido como válido e até ser efetivo. O direito, porém, como ato de poder, não tem seu sentido próprio no poder. Só assim se explica a revolta, a inconformidade humana diante do arbítrio. E aí repousa, ao mesmo tempo, a força e a fragilidade da moralidade em face do direito. É possível implementar um direito à margem ou até contra a exigência moral da justiça. Aí está a fragilidade. Todavia, é impossível evitar-lhe a manifesta percepção de injustiça e a consequente perda de sentido. Daí a força. (p. 359) O sentido do direito está relacionado, segue o Professor Tércio, com o senso comum, ou seja, como o mundo em comum que os homens e mulheres partilham. O senso comum é algo que homens e mulheres experimentam em contato com os demais homens e mulheres. Ora, o direito arbitrário perde o sentido, a despeito de ser direito, de continuar valendo, porque não precisa do outro para valer. Não precisa do mundo em comum para se impor à vontade dos homens e mulheres. Disso se segue a necessária impressão de perda de sentido que temos diante de um direito arbitrário. Nessa situação, a obediência se confunde com a impotência de homens e mulheres diante da violência. A perda de sentido do direito em uma sociedade cada vez mais tecnológica é discutida ao longo de todo o livro do Professor Tércio. A instrumentalização do direito, a sua transformação em mera tecnologia à serviço de qualquer fim; a sua programação por outras ordens normativas, por exemplo, pela economia e pela política, são alguns dos fatores responsáveis pela perda de sentido do direito no mundo contemporâneo. Neste contexto, o direito deixa de fazer sentido em si mesmo; recebe seu sentido de fora, de outras ordens normativas e passa a poder ser utilizado para realizar toda e qualquer finalidade definida por um ato de puro poder, um poder político abertamente violento, um poder tecnocrático que se

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justifica em função da suposta necessidade de uma determinada medida, comprovada por determinados estudos científicos. Este diagnóstico de tempo nos faz compreender melhor as frases finais do livro que estamos comentando: O direito, em suma, privado de moralidade, perde sentido, embora não perca necessariamente império, validade, eficácia. Como, no entanto, é possível, às vezes, ao homem e à sociedade, cujo sentido de justiça se perdeu, ainda assim sobreviver com seu direito, este é um enigma, o enigma da vida humana, que nos desafia permanentemente e que leva muitos a um angustiante ceticismo até um despudorado cinismo. (p. 359)

2 O Professor Tércio termina sua exposição, depois de quase 400 páginas, nos deixando uma sensação de extrema impotência. O texto nos coloca na condição expectadores de fatos terríveis, como os citados por ele, as condenações realizadas por tribunais nazistas. Também nos traz lembranças de tantos outros fatos terríveis, por exemplo, as torturas praticadas pela Ditadura militar, as quais imunizadas contra as leis penais pela assim denominada Lei da Anistia. A validade desta lei, diga-se, foi reforçada pelo Supremo Tribunal Federal, em um voto crucial e moralmente chocante do Ministro Eros Grau, até então identificado com as forças mais progressistas de nossa sociedade. Um voto chocante, mas perfeitamente jurídico, diriam alguns. Um voto que talvez pudesse ser incluído entre os grandes enigmas da humanidade, enigmas os quais, supostamente, podemos contemplar, tentar decifrar, mas nunca transformar. Ao menos se estivermos na posição de teóricos. Já na condição de cidadãos ou cidadãs, podemos sim nos revoltar, podemos sim afrontar o direito positivo caso nosso senso moral se sinta atingido. Mas colocar em dúvida seu caráter jurídico. Gostaria de levantar algumas questões a partir desta separação, feita pelo professor Tércio, entre a perspectiva da teoria e a perspectiva dos cidadãos e cidadãs. Uma teoria que contempla a perda de sentido do direito como

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um enigma, de um lado, e o cidadão ou cidadã, inconformado, que contempla este mesmo direito como motivo de revolta e de ação prática. Uma visão externa e aparentemente sem engajamento e uma visão engajada, implicada na realidade, em sua manutenção ou transformação. Primeiro ponto: Será que os dois pontos de vista o do teórico ou teórica e o do cidadão ou cidadã, partilham mesmo de um mesmo sentido comum, aquele que separa direito e moral e compreende a justiça como externa ao direito? Todos os teóricos e teóricas, cidadãos e cidadãs, compreendem mesmo a Justiça como algo que confere sentido ao direito, mas que não o constitui internamente? Se isso não for verdade, se o senso comum sobre o direito na verdade depender de sua reconstrução a partir de um ponto de vista, ou seja, se houver tantos “sensos comuns” quanto os agentes que se puserem a definilo, como chegar até ele, este mesmo senso comum, a não ser por meio de uma disputa democrática em que alguns saiam vencedores e outros perdedores? Ou seja, por meio de um ato de poder, mas de poder legítimo? Ou estaria a separação entre direito e moral fora de qualquer outro “senso comum” senão aquele que define os dois termos e sua separação desta ou daquela maneira? Ou seja, o “senso comum”, que pera mim é um projeto de separação entre direito e moral, de que fala o Professor Tércio, estaria inscrito em algum lugar desconhecido, à salvo do debate político e da história? Ou não estaria ele estaria inscrito, justamente, nas instituições e práticas sociais de uma sociedade liberal e capitalista? Segundo ponto: Caso cheguemos à conclusão de que o senso comum com o qual estamos lidando não é exatamente “consensual”, não é exatamente “o” senso comum, mas o efeito normalizador de um ato de poder, legítimo ou ilegítimo, seria necessário identificar o critério normatizo que nos permita dizer porque esta Filosofia do Direito estaria certa e o cidadão ou cidadão estariam errados ou erradas. Ou seja, seria preciso mostrar como a teoria poderia manter a primazia sobre o cidadão ou cidadã na constituição e na manutenção deste senso comum senão também por um ato de poder, neste caso, poder simbólico, sem coatividade necessária. Caso a teoria não funcionasse com base em um ato de poder, parece razoável dizer que ela poderia ser falseada por um

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“senso comum” que se apresentasse como conflitivo, sujeito a mudanças constantes, ou seja, um “senso comum” que deixaria em aberto qual deveria ser a relação entre direito e moral. E a sustentasse na forma de projeto, de justificativa e não sob a forma de uma suposta verdade. Mas vamos supor que o senso comum de que fala o Professor Tércio de fato exista hoje. Vamos supor que ale corresponda ao pensamento e à prática efetiva de todos cidadãos e cidadãs, membros ou não dos poderes formais do Estado. Isso significa por acaso que ele não poderia entrar em disputa e se transformar? Poderia haver um “senso comum” imutável, inscrito na natureza das coisas? Seria possível explicar a mudança das concepções de direito desta maneira? Ou seria o direito coação e não justiça desde os gregos? Além disso, essas eventuais transformações no modo de conceber e praticar o direito não teria efeito sobre a teoria, que seria obrigada a reformular a sua ideia de “senso comum jurídico” e, talvez, deixar de olhar como um “enigma” a separação entre direito e moral? Será este mesmo este problema um “enigma ancestral” como o texto do Professor Tércio parece nos sugerir? Ou ao menos parece deixar ressoar ao não fazer referência clara à história neste momento da exposição? Não seria esta maneira de ligar ou desligar direito e moral tema de pesquisas no campo da Sociologia Jurídica, da Antropologia Jurídica e da História do Direito e não apenas um tema para a Filosofia do Direito e para a História das Ideias Jurídicas (que infelizmente costuma tomar todo espaço da História do Direito nos cursos de graduação e pós-graduação)? A separação entre Filosofia e Sociologia, entre Filosofia e Antropologia, entre Filosofia e História não faz ela mesma parte do problema que estamos querendo discutir? Não é esta separação que coloca um determinado senso comum como se fosse um enigma indecifrável? Colocar o problema de outra forma e de maneira interdisciplinar não ajuda a desfazer a impressão de enigma do problema. Assim, porque algumas pessoas atribuem o caráter de jurídico a normas e regimes políticos abertamente imorais, como a ordem nazista? Esta não seria uma pergunta sociológica e filosófica ao mesmo tempo?

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3 Franz Neumann mostrou, em seu texto “A Mudança de Função da Lei na Sociedade Burguesa”, que uma determinada ideia de direito, a ideia de direito, compreendido como direito natural, exerceu finalidades revolucionárias e conservadoras ao longo do tempo. E também chegou a simplesmente desaparecer das práticas sociais e da academia em determinado momento da história alemã. No momento quem que a burguesia era a classe revolucionária e combatia os privilégios medievais da Igreja e da Nobreza, a ideia de direito natural serviu para conter o poder do estado e criar um espaço de liberdade para os cidadãos e cidadãos que os permitissem pensar autonomamente e desenvolver suas atividades econômicas sem o controle do Estado. Também para afirmar que todos os homens são iguais e devem ser igualmente levados em conta na ação do poder. Ao chegar ao poder, este mesmo direito natural foi utilizado para barrar as reivindicações do proletariado que procurava impor limites à propriedade privada e ao direito de contratar em nome da igualdade entre todos os cidadãos. Se todos os cidadãos são mesmos iguais, sua vontade deve ser levada em conta ao elaborar as leis e nada pode ficar fora do debate público. Direito algum pode ser imunizado em relação à política. Ora, esta ideia, os burgueses no poder não poderiam aceitar, posto que ela poderia relativizar a propriedade privada e a liberdade de contratar, portanto, um estado de direito que incorporasse esse ideário não deveria ser considerado como tal. Trata-se de uma posição simetricamente contrária à posição da burguesia quando era classe revolucionária, que construiu uma ideia de estado de direito eu combatia a naturalização dos privilégios burgueses e eclesiásticos. No momento em que se torna dominante, esta classe passa a naturalizar, contra o direito positivo e contra o processo de positivação, a sua própria posição social, garantida por determinados direitos. Além disso, em um momento histórico de calmaria social, por volta do final do Século XIX, momento em que os interesses de todos os grupos sociais

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pareciam ter sido acomodados no interior do Estado alemão, Franz Neumann afirma que a ideia de direito como direito natural simplesmente teria desaparecido do discurso público e da teoria do direito. Para depois se transformar em outra coisa, ou seja, para migrar para o interior do direito positivo e se transformar na tensão entre direitos fundamentais e direitos sem mais nada, por assim dizer. Direitos fundamentais que devem ter hierarquia superior e serem respeitados e efetivados por pelos direitos não fundamentais. Também esta forma de relacionar direito e moral pode não durar para sempre. No momento atual, em que a sociedade civil ao redor do mundo se vê impotente diante das forças transnacionais, em que o Estado perde a força diante da economia e a política deixa de ser capaz de fazer os interesses dos homens e mulheres influenciarem os organismos de poder, parece que estamos assistindo a um novo uso da palavra direito. Um uso que protesta, justamente, contra a separação entre direito e moral realizado pela economia globalizada e pela política contemporânea, em protesto contra a perda de força das constituições e dos tratados e, junto com eles, a perda de força dos direitos fundamentais, impotentes diante da privatização do direito, contido agora em contratos de alcance transnacional, discutidos em sede de arbitragem, não em tribunais nacionais. Este uso da ideia de direito, que pretende colocar em cheque não apenas o direito positivado, mas diversas formas de positivar direitos, pode alterar novamente a relação entre direito e moral. Qualquer potencial de mudança ou de transformação no senso comum se torna, no entanto, inofensiva quando sugerimos que este senso comum seja alguma coisa de fixo. Que ele esteja situado fora da disputa política, imune aos conflitos sociais.

4 A meu ver, o direito, o sentido, do direito, a moral, o sentido da moral e suas fronteiras, seja lá quais forem, são objeto de mudança história, cujo motor é o conflito social. Conflito social este que se estrutura em função de visões sobre o direito, seu sentido e sua relação com a moral em uma luta por direitos que, quando se dá de forma pacífica, é mediada por instituições democráticas. Esta luta por direitos, que também é uma luta sobre as

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fronteiras entre direito e moral, também é uma sobre o modo de conceber o que deva ser a Filosofia do Direito. Qualquer ideia de direito já é um projeto, um projeto que busca efetivar na prática uma certa separação entre direito e moral. Projetos podem ser derrotados, podem ser transformados com o tempo, pode ficar latentes, mas dificilmente irão sumir, a menos que suma os agentes sociais interessados em sua efetivação. Mas se estes persistirem em uma sociedade democrática e pluralista, seu projeto poderá vir a se manifestar a qualquer momento, basta tais agentes ganhem força social e política. Nesse sentido, um sentimento moral do direito, ou seja, o sentimento de que a sua visão do direito é a mais adequada, é aquela que deve prevalecer ou se manter, tem sido essencial para que a ordem jurídica se configure desta ou daquela maneira. Tem sido um motor necessário para a mudança social e a mudança direito e das ideias jurídicas. Neste ponto, acredito ser importante dizer que um mundo em que o direito não faz sentido, como é o mundo descrito pelo Professor Tércio, não é um mundo em que o direito seja indiferente. Ou seja, a eventual “falta de sentido do direito” precisa ser sustentada na condição de projeto pela visão de uma certa Filosofia do Direito e pela ação de determinados agentes caso ela pretenda prevalecer sobre as demais. Há um necessário engajamento na indiferença, por assim dizer. Uma paixão por ser indiferente à justiça, paixão esta que tem, evidentemente, uma série de consequências práticas sobre nossa visão do direito e sobre o nosso juízo sobre uma série de atos do Estado e de qualquer outro poder legitimado desta maneira. Um dos problemas centrais da teoria do direito a meu ver é entender porque certos comportamentos em relação ao direito nascem, se estruturam, se institucionalizam e se tornam vencedores na arena do conflito social. Comportamentos estes que sustentam uma determinada visão do direito, da moral e de sua separação e relação. A relação entre direito e moral só se torna “sem sentido”, só nos aparece como um “enigma” em uma situação muito específica, portanto. Aquela situação em que a Filosofia fica separada da Sociologia, ou seja, aquela situação em que o senso comum se encontra reificado e é capaz de ver o

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mundo, o direito e seus mecanismos de positivação como um objeto fora de si, portanto imune à sua ação prática. Sobre a atualidade do conceito de reificação, que poderia ser descrito, talvez, como um apaixonar-se pela indiferença, e sua relação com o direito, não tenho tempo de falar agora, infelizmente. Por isso termino aqui sem antes de deixar os meus agradecimentos pela atenção de todos vocês.

Muito obrigado.

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