Todos para a universidade ?

June 14, 2017 | Autor: Paulo Vidal | Categoria: Psychoanalysis, University
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TODOS PARA A UNIVERSIDADE?

Paulo Vidal – Seção Rio da EBP

Recente edição da prestigiada revista The Economist estampou na sua
capa o título "O Mundo todo está indo para a Universidade", não sem
acrescentar no subtítulo a pergunta: "Vale a pena?[1], sobre a qual
voltaremos. Tomando por referência o ano de 2012, em duas décadas a
percentagem global da população jovem na universidade aumentou de 14% para
32%, sendo que, no mesmo período, subiu de 5 para 54 o número de países com
mais da metade da população entre 18/24 anos na universidade. A busca pelo
diploma universitário cresceu assim mais rapidamente que a demanda pelo até
então supremo objeto de consumo: o automóvel. O que não deixa de ter suas
razões: requisitado pelo mercado de trabalho, o diploma é tiquete de
entrada na classe média.
A educação universitária de massa certamente aportou no Brasil, aonde
o número de estudantes universitários cresceu 77,1% entre 2002 e 2012,
embora o PNAD (pesquisa nacional por amostragem de domicílio) de 2009
informe que apenas 16,5% dos nossos jovens têm acesso à universidade, ao
passo que tal percentagem atinge mais de 50% nos EUA, países da Comunidade
Econômica Europeia e Coreia do Sul. Em contrapartida, o Brasil é o país que
mais possui psicólogos no mundo, 216000, contra os 137000 da APA (American
Psychological Association).
Por que alinhamos essas estatísticas numa revista de psicanálise?
Talvez porque forneçam a dimensão macro de fenômenos que nos interrogam no
cotidiano. Afinal, quantos de nós, no supermercado, não ouvimos um caixa
suspirar para o outro "quase esqueci, hoje tenho prova na faculdade"? Nas
atividades (seminários, núcleos, cursos, jornadas etc.) das seções da nossa
Escola, é obviamente maciça a frequência de estudantes de psicologia e de
psicólogos que fazem mestrado ou doutorado. Na grandes e pequenas
universidades públicas ou particulares, sobretudo nas faculdades de
psicologia, é igualmente ampla a presença de analistas como professores de
graduação e pós-graduação, supervisores de estágio, conferencistas em
congressos acadêmicos etc.
Entendemos que uma das funções da rubrica "universidade" do Correio
é precisamente meditar, extrair consequências dessa presença da
psicanálise na universidade e da universidade na psicanálise. Consideremos
por exemplo o fato de que a maioria daqueles que hoje atuam enquanto
analistas, diversamente do que ocorria na época de Freud e também de Lacan,
são formados profissionalmente em psicologia e não mais em medicina,
particularmente em psiquiatria. Como esta almeja atualmente se tornar uma
especialidade médica como as outras, tomando por objeto o organismo, numa
aliança com a ciência que pretende ignorar o corpo falante, a psicanálise
hoje em dia tem pouquíssimo lugar nas faculdades de medicina.
Por isto, nos hospitais, quando os especialistas em órgãos como
coração, pulmão etc., fracassam nos seus esforços junto a um paciente, é
suposta a intervenção de um órgão a mais - a psique – cujo especialista é
o psicólogo. Tal psicólogo bem pode ser um sujeito mordido na faculdade
pela psicanálise, lecionada como um dos paradigmas conceituais de
importância na formação do psicólogo. Digo "um" dos paradigmas porque a
psicologia já foi caracterizada como um espaço de dispersão do saber.
Ademais do Brasil deter o maior contingente mundial de psicólogos, se
trata de uma profissão cujo campo de atuação pelo menos desde os anos 80 e
da reforma psiquiátrica cada vez se amplia mais. Uma disseminação para a
qual certamente contribuem a versatilidade de um campo de saber fluido, sem
paradigma dominante, e o fato de ser uma carreira universitária
relativamente recente (50 anos, no Brasil), em busca de legitimidade social
e epistemológica. Tomando por amostra os frequentadores da Seção Rio da
EBP, salta aos olhos que atuam em campos muitos diversos, mas que têm em
comum a lida com um real muito duro, o que certamente enriquece o trabalho
da Seção: contamos com psicólogos presentes na saúde mental (Caps,
ambulatórios, clínica de rua junto a usuários de drogas), em hospitais,
escolas, no âmbito jurídico, na polícia militar e outros.
Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud [2]descreve formações
sociais cuja consistência normativa depende da exclusão de um elemento,
operação de exclusão que é da ordem da fundação: o soberano coloca a ordem
social e dela se exclui como exceção, ele é indemonstrável no sistema. Tal
ordem social constitui portanto um todo consistente e incompleto. Quanto ao
psicólogo atual, membro de uma classe extremamente versátil, cujo saber
admite n paradigmas, sendo portanto notoriamente inconsistente, nos parece
que ele surfa bem num mundo não todo, num mundo que deixa de ser pilotado
pela consistência e incompletude e que passa a se apresentar como uma rede
inconsistente e completa. Não é a toa que a extensão do domínio da luta dos
psicólogos coincidiu com a reforma psiquiátrica, cuja bandeira foi derrubar
os muros do asilo, da exclusão do louco. Hoje em dia, o mote da atuação de
muitos psicólogos é a inclusão social de diversas categorias de indivíduos
tidos como excluídos, mas vale lembrar que a inclusão nem sempre coincide
com a inscrição, a qual exige do sujeito que ponha algo de seu, o que
chamamos de sintoma. Aliás, podemos nos perguntar se a a exclusão por vezes
não cede lugar à segregação, entendida como promoção da multiplicidade por
uma política de cada macaco no seu galho, no seu nicho de gozo. Uma
consequência dessa disseminação da multiplicidade como lugar-comum é a
aniquilação da diferença e a promoção de uma indistinção generalizada,
própria aliás à lógica do mercado.
Em outras palavras, o psicólogo tende a ocupar o papel de gestor do
mal-estar social, a aguentar "toda a miséria do mundo", conforme pergunta
J.A. Miller a Lacan em Televisão [3]. Ainda mais um país como o Brasil, que
sequer conheceu o chamado "Estado de Bem-estar Social ", essa atuação do
psicólogo tem muito por horizonte o sujeito de direito de origem
iluminista: sujeito universal e sem corpo, mas dotado entre outros do
direito à felicidade. Em consequência, assume por vezes o cariz da
militância por um ideal de promoção do bem de grupos e indivíduos. Contudo,
o psicólogo também por vezes se choca com a constatação de que os sujeitos
não são apenas movidos pelo ideal, mas por causas opacas para eles mesmos,
que vão na contramão do próprio bem, como se nos habitasse uma parte
maldita, denominada pulsão de morte por Freud. Dividido pelos twists and
turns do desejo, pelos paradoxos do gozo, neste momento o psicólogo pode
procurar um analista e o ensino da psicanálise.
Retornando à matéria da The Economist sobre a universidade, no seu
próprio título transparece uma injunção universal e superegóica - Todos
para a universidade![4] -, à qual aparentemente se contrapõe a pergunta do
subtítulo: "vale a pena?". No entanto, devido à orientação da revista, a
pergunta interroga antes se o crescente investimento feito nas
universidades está obtendo retorno em termos econômicos, de acumulação do
capital. O problema se coloca da seguinte forma: do ponto de vista da
pesquisa científica, são americanas 19 das 20 universidades cujos artigos
("papers") foram mais citados em 2014. Contudo, as universidades desse país
deixam a desejar no ítem ensino: ficou abaixo do esperado a performance dos
recém-formados americanos em testes avaliativos e no testemunho de
empregadores. Para remediar tal situação, a revista preconiza mais
avaliação, que os estudantes de todas as universidades passem por testes
comuns, de modo a aferir o desempenho de cada universidade.
Particularmente para quem estude ou lecione na pós-graduação
brasileira, são conhecidos os efeitos deletérios desse empuxe à avaliação,
o qual dá notas aos programas de pós via quantificação de artigos
publicados em revistas qualificadas, defesa de dissertações e teses nos
prazos etc. Dependendo da sua classificação num ranking cada vez mais
exigente, o programa de pós recebe mais ou menos verbas, podendo inclusive
receber um cartão vermelho. Os resultados dessa célere linha de montagem
são por vezes pífios, um artigo ou dissertação que, montado às pressas via
recorte e cola, pouco ou nada inova.
Nos seminários e escritos nos quais Lacan segue de perto e interpreta
a efusão de Maio de 68 [5], ele faz considerações extremamente pertinentes
e atuais sobre a universidade, cuja missão seria "preservar os benefícios
do saber", o que implicaria "a prioridade da formação como efeito de saber
sobre o valor cotado pelo mercado"[6]. É o que o faz criticar severamente a
então recente introdução na universidade francesa das unidades de valor,
dos famosos "créditos". Pois teriam por efeito a transformação do saber
numa mercadoria homogeneizada via ciência em unidades cujo valor é o
trabalho não pago do qual são o fruto.
Tal homogeneização se torna ainda mais premente num mundo em rede,
sem centro autoritário, que exige a coordenação funcional de uma
diversidade de parceiros. Na área da saúde mental, a melhor ilustração
dessa exigência de adoção de uma lingua franca, da constituição de um
referencial cognitivo comum é certamente a montagem e disseminação das
versões do DSM, o qual pretende ser um código capaz de converter a
equivocidade da língua em informação unívoca.
Ora, para Lacan o saber não se adquire pelo trabalho, mas pela
leitura, pelo efeito de discurso que a leitura produz. Pois o exercício da
leitura implica em colocar entre parênteses o S1 que comanda a legibilidade
de um texto, experimentar ou mesmo inventar outros, colhendo os efeitos de
surpresa gerados. Falta certa poiesis à academia...


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[1] The whole world is going to the university: is it worth it? Special
report. In revista The Economist, 28 de abril/3 de março 2015.
[2] FREUD, S. - Psicologia das massas e análise do eu. Trad Paulo César
Souza. In volume 15 das Obras Completas, SP, Ed. Companhia das Letars,
2011.
[3] LACAN, J. - Televisão. In Outros Escritos. Trad. Vera Ribeiro. RJ,
Jorge Zahar Editor, 2003, p. 516.
[4] Em D'Une réforme dans son trou (De uma reforma no seu furo), texto
inédito sobre a reforma universitária francesa de 1969, Lacan antecipa esse
"todos para a universidade" com seu" Tous unis vers Cythère", "Todos unidos
para Citera". Na mitologia grega, Citera é uma ilha paradisíaca...

[5] LACAN, J. - o Seminário livro 17, O avesso da psicanálise. Tradução
de Ari Roitman. RJ, Jorge Zahar Editor, 1992, p. 195.
[6] LACAN, J. - D'une réforme dans sou trou, texto inédito, 1969.
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