“Todos são felizes agora”: a ficção literária como interpretação da Cultura

June 14, 2017 | Autor: Luciano Mattuella | Categoria: Psychoanalysis, Literature, Literatura, Psicanálise
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“Todos são felizes agora”: a ficção literária como interpretação da Cultura Luciano Mattuella A produção poética revigora a língua, toca com coragem nos limites do informe. Produz, portanto, um pensar contra. Assim busca esburacar o véu de cegueira que a racionalização e o tecnicismo contemporâneo nos impõem. (Edson Luiz André de Sousa)

Muito já se escreveu sobre a relação de Freud com a literatura e os escritores. Como alguns psicanalistas recentes já apontaram, certas narrativas literárias fizeram parte mesmo dos alicerces sobre os quais se sustentaram as fantasias mais profundas do próprio inventor da psicanálise. Jacques Lacan, célebre psicanalista francês, chegou a dizer que Édipo seria o mito freudiano por excelência, tanto por ser um dos eixos chaves de sua teoria, quanto por ser a narrativa fantasística do próprio homem Freud, a repetição à qual ele estava alienado. Ou seja, a literatura não era somente uma fonte de inspiração teórica, mas as palavras dos escritores eram o material com o qual se entrelaçava o psiquismo do próprio Freud. Sendo assim, ao trabalhar citações literárias, o autor expunha a nu o seu próprio inconsciente - costume, aliás, bastante evidenciado quando lemos A Interpretação dos Sonhos. Em certo sentido, a Tradição literária molda como que o ponto de sustentação de toda a teoria psicanalítica (cuja prática, importante lembrar, nada mais é do que o manejo da palavra) - o legado dos escritores faz função de um testamento para os psicanalistas de hoje em dia. Em outros termos: ler os textos literários, traduzi-los e interpreta-los à luz do mundo contemporâneo é uma forma de fazer-se herdeiro de um saber originário: uma forma de construção de um pai - uma referência simbólica partilhada - na Cultura.

Partindo desta ideia, portanto, podemos entender que, na sua própria forma, o escrito literário resguarda uma centelha utópica, está direcionado para o futuro, para as gerações que virão. Uma obra não se esgota no presente que lhe é contemporâneo, mas transborda-o, desafia a resignação do senso comum e subverte as matrizes interpretacionais de uma determinada época. É neste sentido que gostaríamos que o leitor entendesse a famosa citação de Freud em seu texto sobre a Gradiva de Jensen, trecho já repetido à exaustão, mas que sempre potencializa a discussão sobre os encontros da psicanálise com a literatura: (...) os escritores criativos são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.1

É possível notarmos no apreço freudiano pela literatura uma pungente crítica ao cientificismo e à racionalização exacerbada de seu tempo (e mais ainda do nosso, diga-se de passagem). Uma característica muito interessante de sua obra, por sinal, uma vez que aponta para um conflito interno bastante evidente - herdeiro legítimo de uma tradição científica bastante consistente, Freud tem de se haver com o relato cotidiano dos pacientes em sofrimento, experiência que obriga-o a dar-se conta do caráter singular e único de cada neurose. O sofrimento psíquico, portanto, sendo avesso às generalizações e às abstrações universais, faz resistência ao saber científico, colocando Freud na ingrata posição de um filho que denuncia os excessos de poder de um pai bem reconhecido socialmente. Mas como a própria citação acima indica, Freud não trabalha sozinho conta com os escritores como aliados. Assim, criticar uma forma de saber

FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen [1907]. in. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX (1906-1908). Rio de Janeiro: Imago, s/d, p. 20. 1

específica, o saber científico, é um modo de apontar para uma potência crítica que pulsa no presente, uma suspensão de certezas que rompe com o marasmo do já-sabido, do já-dito, exorcizando do discurso corrente as suas verdades artificiais – e convenientes -, abrindo espaço para a criação do novo, da diferença. Toda crítica só se potencializa pelo seu traço de anacronismo. Para Freud, então, o texto literário insiste em desfazer-se das soluções de uma determinada época e, apontando para um porvir inimaginável - uma saudável aposta no desembaraço das futuras gerações - volta-se contra sua própria contemporaneidade, explicitando a insuficiência dos supostos saberes que sustentam o discurso dominante. A palavra literária, por assim dizer, tem a mesma estrutura da palavra onírica: sua efetividade se dá justamente pela capacidade de interpretar algo do recalcado. É o próprio sonho que interpreta o inconsciente do sonhador – o analista, em sua escuta, tão somente faz eco; do mesmo modo, é o próprio texto literário que explicita uma lógica social latente. Não nos surpreende, assim, que Freud tantas vezes tenha falado do texto do sonho, ou seja, da importância de levar em conta não apenas o cenário imagético de uma construção onírica mas, principalmente, a gramática e léxico latentes que organizam e permitem a construção do sonho. Se levarmos a sério a concepção freudiana de que os escritores estão à frente de seu tempo, que lhes é própria uma escuta sensível ao recalcado que ainda não encontrou lugar na cena do mundo, então nos parece indubitavelmente válido interrogar a relação entre literatura, sonho e futuro. Ao final do longo A Interpretação dos Sonhos, Freud se pergunta sobre a possiblidade de um sonho prever o futuro, como vemos na passagem a seguir: E quanto ao valor dos sonhos para nos dar um conhecimento do futuro? Naturalmente, isso está fora de cogitação. Mais certo seria dizer, em vez disso, que eles nos dão um conhecimento do passado, pois os sonhos se originam do passado em todos os sentidos. Não obstante, a antiga crença de que os sonhos preveem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos estão decerto nos conduzindo para o futuro. Mas esse futuro,

que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado.2

Levando em consideração o seu reconhecido “rigor científico”, seria de se esperar que Freud repudiasse de forma categórica qualquer menção à previsão de futuro; entretanto, como muitas vezes percebemos nos escritos freudianos, a questão não se resolve através de uma escolha dentro de uma lógica binária (sim ou não, este ou aquele) – naturalmente Freud ignora o caráter profético de um sonho, mas não deixa de apontar, entretanto, que, explicitando de forma plástica e literária algo do desejo inconsciente, o sonho diz do futuro. Sonhamos com aquilo que ainda não pode tornar-se narrativa de vida, ou seja, com aquilo que insiste na busca por uma tradução em palavras. Sonhamos, portanto, com aquilo que sempre se repete, que fica à espera da simbolização e que, na maior parte das vezes, acaba surgindo em ato na vida de vigília: quando nos vemos na impossibilidade de encontrar uma escuta sensível ao inconsciente, atuamos na cena do mundo, de forma metafórica (em casos extremos, de forma literal), o que é da ordem da fantasia. Assim, o caráter “profético” – atenção às aspas – do sonho se dá justamente porque ele é uma construção inconsciente que interpreta o desejo do sonhador, fantasias que tenderão a se repetir se o texto onírico não for devidamente escutado. Aliás, esta é uma das definições possíveis de neurose para Freud: a repetição no presente de uma proto-história que insiste por encontrar as palavras suficientes para tornar-se narrativa de vida. Somos neuróticos na medida em que a nossa vida é constituída e traumatizada por ficções antigas que se repetem ocasionando, em geral, sofrimento. As formações inconscientes – os sonhos e os atos falhos, notadamente – são as vias através das quais podemos ter acesso a estas ficções interrompidas, a este texto estrangeiro que anseia por tradução. O ofício do psicanalista (e do escritor) é o de fazer passar a vida do plano do literal para o campo do literário, permitindo, desta forma, que novas narrativas possam ser escritas na relação

FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos – Edição Comemorativa 100 anos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001, p. 592. 2

do sujeito com o mundo. É um trabalho intimamente ligado, portanto, à desobstrução do futuro, na medida em que interpela o sujeito justamente ali onde uma repetição seria esperada: que o futuro possa ser mais do que a repetição alienada de uma história arcaica, esta é uma das apostas que anima o trabalho psicanalítico. A hipótese que procuramos sustentar neste texto é um tanto quanto arriscada, mas parece-nos necessária que seja feita. Aproximar a produção do escritor e a

textualidade presente na narrativa do sonho implica estar de

acordo com a ideia de que toda a criação que possa ser considerada realmente nova supõe que tenha sido resultado de um ato propriamente dito, ou seja, de um movimento cujos efeitos não podem ser explicados em sua integralidade por uma miríade de causas pré-supostas. Interrogar um escritor pela motivação da escrita de um texto pode ser tão frustrante quanto perguntar a alguém pela justificação de um sonho. Entretanto, é justamente aí que o sujeito é mais do que um indivíduo: ao ser atravessado pela linguagem, todas as suas produções dão testemunho da estrangeridade da palavra – dito de outra forma, todo ato é prova de que, além de falarmos, também somos falados por uma história que nos precede, mas que nos constitui. Portanto, o trabalho da escrita literária e a instigação a narrar um sonho partilham de um mesmo ponto fundamental: a possibilidade psíquica de entender-se constituído intimamente por um não-sabido estrutural, por uma palavra faltante que nunca vai ser proferida. É justamente esta a palavra que rompe com a linearidade do presente, desmantelando as ilusões de totalidade, permitindo que a vida seja vetorizada na direção de um futuro autêntico, quer dizer, de um futuro que não se esgote na repetição do mesmo. Assim, as produções culturais (filmes, livros, músicas, etc.) são como os sonhos da Cultura: interpretam o recalcado de uma certa configuração social, explicitando através de uma forma mais ou menos metafórica os pontos de silêncio que dão coesão ao tecido simbólico de uma determinada época. Naturalmente, algumas obras literárias acabam não fazendo marca, são

condizentes com o discurso já-dado, sendo, deste modo, repetições daquilo que está já no plano manifesto. As obras com os quais nos ocupamos são aquelas que tensionam os limites do discurso dominante, seja por explicitar a sua ilusória naturalidade, seja por apresentar um contraponto. Em outros termos, são as produções que permitem a uma determinada época interrogarse pelos significantes fundamentais da ideologia que a constitui. Neste sentido, acreditamos que uma das vertentes privilegiadas no que se refere à potência crítica de suas produções seja a ficção-científica, na medida em que este gênero – tão desvalorizado pelos literatos mais conservadores – é a hipérbole da própria ficção: certamente toda literatura é desde já um “pensar contra” o instituído, uma vez que propõe, em sua forma, um outro mundo; a literatura de ficção-científica, além disso, redobra esta característica ao trazer em seu conteúdo uma versão alternativa da realidade. O interessante, entretanto, é que quanto mais uma ficção parece se despreocupar com a verossimilhança com as coisas “de verdade”, mais ela se aproxima de evidenciar o conteúdo recalcado da ordem do mundo. Processo análogo ao que acontece nos sonhos: quanto mais absurdo e ilógico é um determinado trecho de sua narrativa, mais esta característica de absurdo está fazendo função de recobrimento; ou seja, o absurdo é uma forma de defesa contra a nudez excessiva de uma verdade subjetiva. É um recobrimento, certamente, mas também pode ser a única forma que algo do traumático encontra para ser dito. Indo mais adiante, a ficção científica explicita algo que é de fundamental importância: que a nossa própria história é estruturada como uma ficção, que a nossa vida, no fim das contas, é a narrativa que podemos fazer dela. A ficção-científica parece-nos fundamental por ser o campo que melhor tematiza a noção de futuro – falar sobre o futuro é colocar em questão os ideais que referenciam um certo tempo; assim, toda a história futurista fala do recalcado do presente. Aquele que escreve sobre o futuro está na verdade se perguntando sobre os destinos possíveis do estado atual das coisas e, deste modo, está interrogando a sua própria época a respeito dos mecanismos subjacentes que a regem. Portanto, tal qual os sonhos proféticos tematizados

por Freud, a literatura futurista também interpreta o desejo na medida em que tematiza de que modo as sucessivas repetições podem aos poucos trazer para a cena do mundo aquilo que era da ordem da fantasia. Sendo uma literatura que se ocupa com as configurações possíveis de futuro, a ficção-científica acabou se tornando, ao longo da história da literatura, o campo em que se colocou em questão e em que se criticou mais fortemente uma das noções mais corrosivas que sustentaram o “projeto moderno” e que hoje, de forma diluída e mais abstrata, encontramos nos alicerces de nossa sociedade: a ideia de progresso. Toda a obra com inspiração futurística acaba tematizando, mesmo que por uma via indireta, esta que é, junto com a crença exacerbada no cientificismo, a fantasia por detrás de toda a tradição de pensamento que até hoje dá forma ao nosso modo de entender o mundo – a hipótese de que progredimos sempre para o melhor3 . Freud deixou bastante clara a sua opinião de que o progresso – esta crença moderna de que o aperfeiçoamento da técnica e a totalização do processo racional levam à uma vida cada vez melhor, seja isso o que for – opera de forma paradoxal na Cultura 4: ao mesmo tempo em que, sim, o progresso técnico traz benefícios, como a capacidade de falarmos com quem está longe, ele também cria problemas com os quais nunca havíamos pensado ter de lidar, como a produção de substâncias tóxicas e nocivas ao meioambiente e, em outro nível, a produção de pobreza e miséria – sujeitos que habitam às margens do discurso hegemônico e alienante que estrutura uma determinada época. O diagnóstico de Freud vai além: a fantasia de progresso é sustentada pelo discurso científico tradicional, um modo de ver o mundo que opera pela via da ordenação e da limpeza. No âmbito das relações cotidianas, esta fantasia se apresenta também sob a forma da pedagogia do politicamente

3

Cf., especialmente, KANT, Immanuel [1798]. O Conflito das Faculdades (tradução de Artur Morão). Lisboa: Edições 70, 1993. 4

O leitor pode remeter-se a FREUD, Sigmund. O mal-estar na Cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010, especialmente a parte III.

correto: torna-se perigoso ao discurso dominante quando alguma palavra de contestação é dita: o que, em certa medida, já aponta para a fragilidade constitutiva desta malha simbólica. O discurso do progresso carrega consigo algo que chamamos de imperativo da ordem, uma injunção que, segundo Freud, “é uma espécie de compulsão à repetição que, uma vez instituída, decide quando, onde e como alguma coisa deve ser feita, de modo que se poupam dúvidas e hesitações em todos os casos idênticos”.5 Uma belíssima ilustração literária deste imperativo da ordem encontramos no livro 1984, escrito em 1948 por George Orwell. Neste obra, nos deparamos com um mundo organizado de acordo com os anseios e deliberações de um pai – a figura do Big Brother - que opera puramente pela privação e castração – um pai, portanto, que ignora a sua função simbolicamente mais importante: a transmissão de uma história, algo que permite ao sujeito encontrar-se nas entrelinhas de um discurso que o precede e ser autor de uma vida que valha a pena ser narrada para as futuras gerações. Trata-se de um mundo que vive em um eterno e patológico presente, como nos mostram as palavras de

Winston Smith, personagem

central do romance: Cada registro foi destruído ou falsificado, cada livro foi reescrito, cada pintura foi repintada, cada estátua e rua e edifício foi renomeado, cada data foi alterada. E este processo continua dia após dia e minuto após minuto. A história parou. Nada existe exceto um presente sem fim em que o Partido está sempre certo. Eu sei, com certeza, que o passado foi falsificado, mas isto nunca me seria possível provar, mesmo quando eu próprio fiz a falsificação. Depois de a coisa ser feita, nenhuma evidência resta. A única evidência está na minha própria mente, e eu não sei com certeza alguma que algum outro ser humano partilhe minhas memórias.6

5

FREUD, Sigmund. O mal-estar na Cultura..., p. 93.

6

ORWELL, George. Ninety Eighty-Four [kindle edition]. London: Penguin Books, 2004, p. 155.

1984 apresenta aos leitores um cenário em que tudo está em seu – mesmo que forjado – devido lugar, um mundo regido por uma lógica à qual nada escapa: uma paisagem sem ranhuras, sem faltas nem deslizes. Mas o sujeito do inconsciente não se apresenta justamente nas hesitações e nas dúvidas, nos sonhos e nos lapsos de fala? A certeza, valor tão importante para o racionalismo moderno, não é justamente o campo do emudecimento do sujeito? O ato, como o concebemos anteriormente, é avesso às certezas – é a surpresa de encontrar-se ali onde não se era esperado, de perceber que a subjetividade é uma exterioridade. Diga-se de passagem, esta foi justamente a importância das histéricas à época de Freud: ao entregarem ao saber científico um corpo que não podia ser reduzido às teorias deste saber, denunciavam a fragilidade das certezas que estruturavam um modo de pensar e faziam resistência ao assujeitamento ao imperativo da ordem. Além disso, explicitavam o reprimido na Cultura, como se dissessem: “mas não veem, no fim das contas é tudo sobre sexo”. Neste sentido, a histeria na virada do século retrasado era um antídoto contra a hipocrisia. Quem é assim obrigado a reagir continuamente segundo preceitos que não são a expressão de seus pendores instintuais vive acima de seus meios, psicologicamente falando, e pode objetivamente ser designado como um hipócrita, esteja ele consciente ou não dessa discrepância. É inegável que nossa atual civilização favorece de maneira extraordinária a produção de tal espécie de hipocrisia. Podemos ousar afirmar que ela está edificada sobre essa hipocrisia, e que teria que admitir profundas mudanças, caso as pessoas se propusessem viver conforme a verdade psicológica.7

Vale lembrar que, para Freud, a entrada na Cultura se dá pela via da repressão das pulsões mais elementares – estes “pendores instintuais” são substituídos por ritualísticas e pudores de modo a se diluírem em repetições

FREUD, Sigmund. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. in. _________________. Obras Completas – Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 223. 7

do discurso corrente. A entrada na cena do mundo, portanto, cobraria o preço da abdicação à posição narcísica de tudo poder a qualquer momento; desta forma, compartilhar os significantes da Cultura implica também recalcar o desejo e realizar os destinos pulsionais na forma de fantasias. Assim, não é de se estranhar que a Psicanálise tenha sido entendida como um modo de desmascaramento da verdade inconsciente – a máxima de tornar consciente o que é inconsciente, mesmo que ainda um resquício do modo científico de pensar, tem o grande mérito de evidenciar a dupla estrutura do discurso: falamos mais do que supomos, e justamente este excesso é aquilo que nos é mais íntimo. Pensar que a verdade não está na superfície supõe que um trabalho de fragilização das certezas se faça necessário. Que a verdade não seja auto-evidente parece-nos premissa fundamental para que um ato crítico propriamente dito tenha lugar. Mas aquele cenário de euforia científica sobre o qual falávamos anteriormente, denunciado por Freud em O Mal-Estar na Cultura, sofreu, como sabemos, um grande abalo com a eclosão da Primeira Guerra: em retrospecto, podemos narrar uma versão da história universal na qual todo o progresso científico e técnico culminou, mesmo que involuntariamente, em morte e violência. Como que em um retorno no real do imperativo da ordem, aquilo que não estava em seu lugar deveria ser exterminado. Nas palavras de Freud: Esperávamos, das nações de raça branca que dominam o mundo, às quais coube a condução do gênero humano, sabidamente empenhadas no cultivo de interesses mundiais, e cujas criações incluem tanto os progressos técnicos no domínio da natureza como os valores culturais artísticos e científicos, desses povos esperávamos que soubessem resolver por outras vias as desinteligências e os conflitos de interesses.8

FREUD, Sigmund. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. in. _________________. Obras Completas – Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 212. 8

[Mas a] guerra na qual não queríamos acreditar irrompeu, e trouxe a... desilusão.9

É como se a Cultura tivesse silenciado frente à guerra. Freud é muito perspicaz ao perceber que a guerra não foi causada por uma suposta falta de Cultura, mas, pelo contrário, os conflitos foram a encenação no mundo de uma lógica totalizante implícita ao próprio pensamento racional: o estrangeiro é inimigo e deve ser eliminado. A Primeira Guerra, assim, pode ser entendida como um momento traumático: ela evidenciou de forma brutal algo que habitava as entranhas de uma forma de pensar – ou seja, ela materializou na cena do mundo algo que estava no regime da fantasia. A partir desta inspiração freudiana, podemos pensar também a Segunda Grande Guerra: o que era o programa nazista senão uma hipérbole do imperativo da ordem e da limpeza? A eugenia como uma forma de homogeneização pelo extermínio do diferente: o estrangeiro é aquele que coloca a exclusividade da filiação sob suspeita. Em certa medida, o ideário nazista estava tomado por esta fascinação pela forma perfeita, pela raça sem dissidências, pela hereditariedade como um processo de purificação. Assim, propomos que, enquanto o homem pré-Grandes Guerras podia olhar para o passado como um repositório de grandes feitos científicos, avanços técnicos que apresentavam um mundo cada vez mais civilizado, os filhos da guerra (como todos nós somos) já não partilham mais desta visão de mundo: os eventos de maio de 68 são um exemplo emblemático disso – em vez da ciência, o sexo; em vez do futuro utópico, o presente carnal. Ganha forma a figura do desiludido, aquele sujeito que faz enlace com o passado pela via do contraste, denunciando, assim, os efeitos terríveis do imperativo da ordem. Renuncia à filiação como uma forma de não compactuar com um discurso violento. Entretanto, o desiludido parece ter se maravilhado com o reflexo que viu no espelho e apaixonou-se pela sua própria imagem.

9

FREUD, Sigmund. Considerações atuais sobre a guerra e a morte..., p. 215 (grifos nossos).

Desta forma, o self made man, tradicional figura do capitalismo tardio, pode ser entendido como um desiludido que, para fazer resistência a um passado de violência, sonha com uma origem em si próprio, sem passado, filiado efemeramente a um presente que nunca chega a ganhar contornos. No lugar do ideal do eu - este horizonte desenhado pela tentativa de decifração do desejo dos antepassados - estão os role models, ideais culturais prêt-àporter que convidam à mimetização. Os role models carregariam em si o segredo da felicidade, um bem hoje em dia tão em alta: Freud já apontava nesta via quando falava do imperativo da felicidade, este que é um “programa que o princípio do prazer nos impõe”, um imperativo que “não é realizável, mas não nos é permitido - ou melhor, não nos é possível - renunciar aos esforços de tentar realizá-lo de alguma maneira.”10 Nos é exigido que sejamos felizes, nem que para isso tenhamos que fazer de nossas vidas a narrativa mais desprovida de interesse possível. Trabalhamos sob a hipótese de que a felicidade supõe adequação, ou seja, alienação aos ideais de felicidade que povoam o imaginário de nossa época. Se não conseguirmos ser felizes por nossas próprias forças, há alternativas: a fluoxetina – famosa “pílula da felicidade” – restitui nosso lugar no mundo dos homens felizes. Se não somos capazes de suportar nossas fantasias sexuais, o viagra nos empresta uma ereção protética. Impossível não lembramos da soma, a droga sintetizada e distribuída pelo governo no livro Brave New World, de Aldous Huxley11: quando alguém se sentia um pouco triste ou incomodado, bastavam alguns gramas de soma – não havia dor que precisasse esperar para ser curada, nenhuma falta necessitaria ser suportada. Como sabemos desde os primeiros escritos de Freud, quando a falta está antecipadamente obturada, é o desejo que sai de cena. Assim, se dissemos anteriormente que as histéricas denunciavam a hipocrisia de base na sociedade em que viviam, hoje em dia talvez possamos pensar que os self-made men, estes “homens ocos” de T. S. Elliot,

10

FREUD, Sigmund. O mal-estar na Cultura..., p. 76

11

HUXLEY, Aldous. Brave New World [kindle edition]. London: Vintage Books, 2008.

testemunham de um cinismo fundamental, estruturante da narrativa que fazemos do mundo – sabemos que algo não vai bem, mas mesmo assim agimos como se tudo estivesse em seu lugar. Mas qual a narrativa possível para o cínico? Gozar da posição de desilusão, supor que não se deve (simbolicamente) nada a ninguém, ou seja, perversamente fazer como se a castração não operasse é próprio do mecanismo do cinismo: esta figura que esvazia o lugar de enunciação ao procurar elevar ao estatuto de ato qualquer enunciado que mantenha as coisas como estão. 12 Afinal, como diz Lenina, personagem central de Brave New World, “todos são felizes agora”13. Referências Bibliográficas FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos – Edição Comemorativa 100 anos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001. __________. Considerações atuais sobre a guerra e a morte. in. _________________. Obras Completas – Volume 12: Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. __________.

Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen [1907]. in. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX (1906-1908). Rio de Janeiro: Imago, s/d. __________. O mal-estar na Cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010. HUXLEY, Aldous. Brave New World [kindle edition]. London: Vintage Books, 2008. KANT, Immanuel [1798]. O Conflito das Faculdades (tradução de Artur Morão). Lisboa: Edições 70, 1993. ORWELL, George. Ninety Eighty-Four [kindle edition]. London: Penguin Books, 2004. SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

12

Sobre a questão do cinismo, convido o leitor a conferir: SAFATLE, Vladimir. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. 13

HUXLEY, Aldous. Brave New World..., p. 65.

SOUSA, Edson Luiz André de. Uma invenção da utopia. São Paulo: Lumme Editor, 2007.

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