Topografia do desejo em Marcel Proust

May 24, 2017 | Autor: Thiago Blumenthal | Categoria: Marcel Proust
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Topografia do desejo em Marcel Proust

O narrador de Em Busca do Tempo Perdido, no primeiro volume da trajetória que empreende entre as intermitências do coração, das memórias e dos amores, conclui que as recordações que tem de Combray, interior da França, a pouco mais de 100 km de Paris, são moldadas pelo vento, ao descrever a geografia da pequena cidade. Estamos no terreno da ficção e, neste, a topografia que se projeta nas páginas do livro é delineada pela inter-relação estabelecida entre uma localidade real, no caso, a comuna de Illiers (desde 1971, em homenagem a Marcel Proust, Illiers-Combray), e a superfície inventada, com suas descrições, cotidianos, personagens e ritmo próprio. Para o narrador da Recherche, o vento, "o gênio local de Combray", sempre estava ao seu lado, "para as bandas de Méséglise, sobre aquela planície convexa onde durante léguas não encontra nenhum acidente de terreno" (PROUST, SW, p. 115). Esse vento, que moldava não somente as paisagens de sua infância, mas também a sua memória, o sopro catalisador de sua escrita, seria o responsável, alguns volumes adiante, o elemento natural que transformaria tão profundamente o narrador. Os terrenos eventualmente acidentados, as planícies que ora se estreitam ora se alargam, pontuam, em paralelo ou em contraste, os sentimentos dos personagens, que frequentemente estão em contato direto com alguma forma de arte. É nesta associação entre os três elementos – a saber, natureza, personagem e arte – que o narrador busca em sua escrita uma espécie de busca da verdade.
Neste trabalho, que tem o caráter introdutório aos estudos de uma topografia em Proust, tal qual o empreendimento de um arqueólogo que primeiramente faz a metragem do terreno que tem a seu dispor, procuramos apontar os perímetros do que aqui chamaremos de tristeza e de desejo, em Combray, durante a infância do protagonista. Delimitando a perspectiva até o auge do segundo volume, quando em Balbec ele vê Albertine pela primeira vez, a tarefa proposta é a de observar e descrever os mecanismos narrativos dos quais se vale o narrador em relação ao aparato dialético da perda e da memória e, principalmente, como essas duas marcações se polarizam no espaço geográfico, a partir de aproximações cartográficas da Recherche. Enquanto a perda está ligada intimamente à noção de tristeza, a memória se equivale ao desejo; cartograficamente, e baseado nas descrições do espaço do romance, tristeza e desejo desempenham motivações e consequências distintas, de acordo com um avizinhamento espacial e temporal.
Primeiramente, é necessário fazer um breve levantamento descritivo que o narrador nos faz de Combray: "lanço luminoso, recortado no meio de trevas indistintas" (idem, p. 46); "país montanhoso e fluvial" (p. 75); um raio de dez léguas, ou seja, em torno de 50 km. Se destacados todos os elementos descritivos da pequena comuna, veremos que a descrição que o narrador tem de Combray envolve: 1. elementos concretos, como a disposição dos telhados das casas vistas da torre de Santo Hilário; 2. naturais, como os bosques de recorte irregular; e 3. subjetivos, como um "manto sombrio". É na inter-relação entre esses três elementos que temos algumas pistas iniciais de como o narrador explora esse terreno, entre o movediço da memória e o da dura concretude. Tomemos o primeiro momento em que o narrador esquadrinha o perfil de Combray:

Combray, de longe, por dez léguas em redor, vista do trem, quando chegávamos na semana anterior à Páscoa, não era mais que uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela as distâncias, e, quando nos aproximávamos, mantinha aconchegados em torno de sua grande capa sombria, em pleno campo, contra o vento, como uma pastora a suas ovelhas, os lombos lanosos e cinzentos das casas reunidas que um resto de muralhas da Idade Média cingia aqui e ali num traço tão perfeitamente circular como uma cidadezinha em um quadro de primitivos. (p. 50)

Não é difícil notar que as memórias de infância daquele que ora descreve a comuna se ligam diretamente à igreja. O termo empregado "resumir", ou "résumant la ville", como diz o original em francês, é bastante preciso: tanto na distância, ainda de um vislumbre da janela do trem, quanto já mais próximo, a catedral de Santo Hilário. O que já indicia um certo magnetismo religioso daquela determinada sociedade; se geograficamente tudo girava em torno desse eixo maior, simbolizado e celebrado pelo alto e formoso campanário, assim seus moradores, e seus visitantes, também parecem funcionar sob essa dinâmica imposta por aquela determinada organização da urbe e por sua arquitetura.
Os telhados das casinhas dispostos feito muralhas medievais lembram um manto que recobre toda a cidade e suspende ainda mais a arquitetura religiosa do campanário. Eis uma imagem bastante poderosa do núcleo religioso, quase medieval, que irradiava pelos arredores de Combray. Talvez haja aqui uma primeira possibilidade de vislumbre de algo que desenha em nossa mente enquanto lemos: a imagem do campanário no alto estendendo seu manto por todos os lados da cidade. Geograficamente, e a topografia de Combray irá nos autorizar quanto a isso, como veremos adiante, estar em Combray proporcionava uma experiência do espaço via vislumbre, através de alguém que observa, seja na distância ou já submerso pelo manto dos telhados, olhando para o alto em busca desse referencial espacial.
Outro ponto que merece que nos debrucemos sobre ele diz respeito à sentença "uma igreja que resumia a cidade, representava-a, falava dela e por ela as distâncias", Mais do que resumir Combray, a igreja e seu campanário falavam pela cidade, além de representá-la em seu simbolismo religioso da torre apontada ao céu. Não por acaso, a catedral de Combray será determinante para o personagem, tanto no sentido de que seus desejos, enquanto infante, partirão necessariamente desse núcleo, como a via inversa, a da tristeza.
Antes de adentrarmos, contudo, na igreja, há outras descrições de Combray que possibilitam novos desdobramentos de análise. A saber:

Às vezes íamos até o viaduto, cujos arcos de pedra começavam na estação e representavam para mim o exílio e o desamparo fora do mundo civilizado, porque todos os anos, ao vir de Paris, recomendavam-nos que estivéssemos alertas ao aproximarmo-nos de Combray e que não deixássemos passar a estação, que estivéssemos prontos, pois o trem reencetava a marcha dali a dois minutos e partia, pelo viaduto, para além dos países cristãos, de que Combray marcava para mim o extremo limite. (p. 91)

Aqui sentimos com bastante presença o impacto de um mapa sendo comprometido e delimitado pela mão humana, pela via da civilização, como nos lembra o narrador. Aquele viaduto representava, concretamente, a fronteira final, a fronteira possível, separando dois mundos. Aliás, esta ideia de dois mundos em constante choque na fronteira vai perpassar toda a Recherche, de maneiras muito distintas, concretas, geográficas, abstratas e psicológicas. Neste caso, o viaduto citado parece separar o conhecido do desconhecido, no que o narrador chama de limite dos "países cristãos". E essa ideia de certo reconhecimento espacial na cristandade direciona novamente nosso olhar ao campanário:

Desde muito longe, já se reconhecia a torre de Santo Hilário, que imprimia seu vulto inesquecível no horizonte onde ainda não assomava Combray; na semana da Páscoa, quando meu pai avistava, do trem que nos trazia de Paris, aquela torre que deslizava por todos os campos do céu, fazendo correr em todos os sentidos seu pequeno galo de ferro, logo ia nos dizendo: "Andem, recolham as capas, que já chegamos". E em um dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um trecho em que o estreito caminho desembocava de súbito em um imenso planalto delimitado no horizonte pelo corte irregular de uns bosques, atrás dos quais somente emergia a fina agulha da torre do Santo Hilário, mas tão sutil, tão rósea, que parecia apenas riscada a unha sobre o céu, no intento de dar àquela paisagem, àquele quadro que era só natureza, esse pequenino toque de arte, essa única indicação humana. (p. 60)

Mais importante, ou talvez tão importante quanto o campanário, é o trem. Como meio de transporte essencial no começo do século XX, tempo da Recherche, o trem, tal qual o telégrafo, colapsa o espaço e o terreno sobre o qual atua. Faz com que fronteiras desapareçam e distâncias sejam deixadas para trás. O elemento humano, que possibilita atravessas grandes espaços, via trem, corta o mapa proustiano, além de seus limites e prefigura uma ideia de vislumbre para além do que se pode ver, além dos "países cristãos". Vale mencionar que o avião também vai demandar uma cartografia própria no romance, mas não cabe aqui debruçarmo-nos sobre os voos, análise esta que terá espaço no decurso da pesquisa.
O mapa abaixo, que data de 1882, portanto bastante contemporâneo à escrita da Recherche, mostra as vias ferroviárias. Illiers-Combray não está demarcada, porém, como a cidade se situa aproximadamente entre Chartres e Le Mans, acreditamos que a mesma se encontra em algum ponto próximo ao nosso círculo vermelho no mapa. Vale lembrar, aqui, mas tópico este que será abordado em outro momento da tese, que Proust achava que a comuna seria destruída após 1914, após a Primeira Grande Guerra, e chegou a deslocar, ficcionalmente, mais para o leste, em algum lugar entre Reims e Laon, em uma interessante variação cartográfica, a partir de determinado contexto do real da vida do autor, a guerra.




Tal qual o trem, a igreja insere uma marca significativa no que é natureza e no que é intervenção e criação humana nesse espaço natural. A fina agulha da torre do Santo Hilário, ainda que fina e praticamente imperceptível a uma razoável distância, insiste em riscar o céu e exibir todo o seu portento, de ordem mesmo do milagre. Esse milagre, contudo, não tinha origem religiosa, ou necessariamente cristão; como explica o crítico Álvaro Lins, "o sentimento não tinha nada de religioso no sentido de quaisquer igrejas ou cultos organizados; o que fazia nele as vezes da religião, o que lhe infundia a espiritualidade, era a arte, que cultivou misticamente" (LINS, p. 190).
O que notamos até o presente momento da análise de Combray é que tudo o que é descrito por esse cuidadoso narrador se dinamiza e condiciona os seus passos. Seus vislumbres, seus passos, seu cotidiano, seus amores, suas frustrações se realizam enquanto exploração de um mapa, mental e real. Qualquer jornada empreendida pela memória, em Proust, pressupõe uma rota por esses mapas, não necessariamente com um sentido de localização ou direcionamento, mas de uma disposição de elementos narrativos que trabalham ora em confluência ora em divergência com essa cartografia, sensorial e radioativa, a partir de determinada localização, tridimensionalmente falando (altura, comprimento e largura).
Quando a tia-avó, por exemplo, interrompe um dos passeios para observar, de baixo, da rua, a arquitetura sinfônica que as torres da igreja parecem sugerir:

Quando a gente se aproximava e podia perceber o resto da torre quadrada e meio derruída que, menos alta que a do campanário, ainda subsistia a seu lado, impressionava antes de tudo o tom sombrio e avermelhado das pedras [...] Muitas vezes, na praça, de volta do passeio, minha avó me fazia parar para olhar o campanário. Das janelas de sua torre, colocadas de duas em duas, umas acima das outras, com esse justa e original proporção das distâncias que não só aos rostos humanos empresta beleza e dignidade, o campanário soltava, deixava tombar, a intervalos regulares, revoadas de corvos que, durante um momento, voejavam grasnando, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostra de vê-los, tornando-se de súbito inabitáveis e descarregando um elemento de agitação infinita, ou tivessem batido e escorraçado. (PROUST, SW, p. 60)

Oitenta palavras, em uma sentença tipicamente proustiana, que vai de "Das janelas" a "escorraçado". Mais do que um estilo por si só, estilo por estilo, como uma roupa que escolhemos gratuitamente antes de nos dirigirmos a determinado evento social, o fôlego do período proustiano caminha nos acordos e nos desacordos dos caminhos sugeridos pela história. Aqui a longa sequência serve, antes de tudo, para direcionar o olhar do leitor, de baixo para cima, para os lados, pontuando todos os elementos que figuram naquela cena e naquele cenário. As janelas, na torre, dispostas de duas em duas, umas sobre as outras, seguindo uma proporção cartesiana, e, enquanto esses elementos se dispõem à nossa frente, os corvos repentinamente vêm e vão, circulam a torre, como se incomodados com as pedras sobre as quais pousam, ou expulsos dali ou debatendo-se voluntariamente. A torre assume então novo ar, variando "beleza e dignidade" com agora uma certa disposição soturna, espantando as aves que nela se ancoram.
O que tomava de sobressaltos aos olhos da avó era a propriedade singular da catedral, que se autoafirma, afirmando a existência de toda Combray. Julga o narrador que são dois os valores que ela avistava no campanário, sua naturalidade e sua distinção:

Sem saber bem por que, minha avó apreciava na torre de Santo Hilário essa ausência de vulgaridade, de pretensão, de mesquinharia que levava a estimar, e considerar pródigas de benéfica influência, tanto a natureza, sempre que a mão do homem não a tivesse apoucado, como o fazia o jardineiro de minha tia-avó, como as obras de gênio. E, sem dúvida, qualquer parte da igreja a distinguia de qualquer outro edifício por uma espécie de pensamento que lhe era infuso, mas no campanário é que ela parecia tomar consciência de si mesma, afirmar uma existência individual e responsável. Ele é que falava por ela. Creio que, confusamente, minha avó achava no campanário de Combray aquilo que tinha mais valor no mundo para ela: naturalidade e distinção. Ignorante em arquitetura, dizia: "Meus filhos, podem rir-se de mim, essa torre talvez não esteja dentro das regras, mas agrada-me esse seu velho ar esquisito. Se ela tocasse piano, estou certo de que não tocaria sem alma. (idem, p. 61)

Mas era algo, talvez "sem saber", "confusamente", de modo "ignorante", posto que sem conhecimentos de arquitetura. Poder-se-ia rir dela, como ela mesma diz, mas decerto não houvesse quem não compartilhasse com ela a impressão que lhe dava aquela extremidade apontada aos céus. Como um ideal artístico de triunfo da ideia, mais do que da criação, ideal este aliás para Charles Swann, figura central do romance, e que exercerá grande influência sobre o narrador. Em Florença e em Veneza, durante uma de suas férias, temos o primeiro contato com uma das principais características de sua obra, em "quadros que se apresentam em dois momentos diversos da ação uma mesma personagem" (p. 277), traço este que dará o tom de toda a Recherche, fundamental para a análise que aqui nos apreendemos e que já está prenunciada na igreja de Santo Hilário, em aproximação e em distanciamento.



A igreja, tal qual um personagem, também se desdobra em duas ou mais camadas a partir do ponto de visão da personagem, como nesse caso em que neto e avó voltam do passeio. Conforme se aproximavam, pintava-se mais e melhor o quadro de uma agulha que lançava-se ao céu, em uma imagem que ainda dará sustentação a muitas apreciações desta tese. O contraste, ao mesmo tempo, como em outra ação se desenrolando um pouco mais abaixo, no nível humano, do chão, a catedral que abraça as pedras mais abaixo, como em uma posição de prece (mas uma celebração artística, antes de religiosa), em contraponto com o sol que põe, mas que continuam a erguer-se mais e mais. Ao alto.

E enquanto [a tia-avó] fitava o campanário, seguindo com os olhos a suave tensão, a inclinação fervorosa de suas vertentes de pedra que se aproximavam, elevando-se, como mãos postas em prece, de tal modo se associava ela à efusão da agulha que seu olhar parecia lançar-se com esta para o alto; e ao mesmo tempo sorria amistosamente para as velhas pedras gastas, que o poente agora alumiava apenas no cimo e que, desde o momento em que entravam nessa zona ensolarada, abrandadas pelas luz, pareciam erguer-se muito além, mais para cima, como um canto reiniciado em voz aguda, uma oitava mais alto.
Era o campanário que dava a todas as ocupações, a todas as horas, a todos os pontos de mira da cidade, seu aspecto, seu remate, sua consagração. De meu quarto, eu só podia avistar-lhe a base, que fora recoberta de ardósias; mas quando, no domingo, por uma quente manhã de verão, via-as flamejar como um sol negro, logo dizia comigo: "Meu Deus! Nove horas! Tenho de preparar-me para a missa, se quero ter tempo de ir dar antes um beijo na tia Léonie", e sabia exatamente a cor que tinha o sol na praça, o calor e a poeira do mercado, a sombra que projetava o toldo da loja onde mamãe entraria talvez, antes da missa, em meio àquele cheiro peculiar de pano cru, para comprar algum lenço que lhe mostrava o patrão mesureiro, o qual, preparando-se para fechar, viera dos fundos da casa, onde fora envergar seu traje domingueiro e lavar as mãos, que costumava esfregar uma na outra a cada cinco minutos até nas circunstâncias mais melancólicas, com um ar de audácia, de esperteza e de triunfo. (pp. 61 e 62)

O trecho acima compreende e concentra, a partir das primeiras experiências deste narrador com seus desejos, e também com sua tristeza, elementos que a obra dispõe, ao longo de seus sete volumes, para relacionar o interior de seus personagens com as suas jornadas (a pé, ou em seus variados meios de transporte, como o trem, que já vimos acima) por esses variados mapas, possíveis, impossíveis, realizáveis e potenciais. Quando o narrador elege o campanário que, de sua janela, via senão a base, como condicionante de suas ações, de seu tempo e, mais, de sua memória – que o permitirá, no limite, reinventar-se e reinventar tais desenhos espaciais –, suas motivações e seus desejos também se ligam a ele de algum modo.
O remate e a consagração possibilitados pelo campanário é amplo e variado e, como a igreja falava por Combray, cristalizam no imaginário do personagem suas criações e suas recriações, tal qual uma gênese, à melhor moda de um demiurgo lutando contra o seu próprio poder, em choque com o passado. Ora, se nessa transição psicológica rumo a novas cartografias e a novas formas de se contar uma história – e o que é a Recherche senão a tentativa de se contar uma história – Proust impõe, e propõe, talvez sem o saber, a celebração de um modo de leitura do mundo, e da literatura ocidental, toda referência, inclusive a do desejo, se volta ao passado. Seguir adiante, em direção ao futuro, é como dirigir com um para-brisa todo coberto, apenas com o espelho retrovisor para nos guiar, esta parece ser a lição da Recherche. O destino de seus personagens, e daquele que conta toda a história mesmo, revela-se no olhar para trás, com as deformidades da estrada e com as variações de ângulo de visão que o espelho retrovisor nos mostra.
Como em uma escada em espiral, qualquer mergulho no passado encontra-se ligado intimamente à ideia de conhecimento, diz o crítico George Steiner (2001). Em Freud, e em sua estruturação da psicologia humana, as relações sociais e familiares surgem com o assassinato do pai perpetrado pela horda primitiva de seus filhos. Na antropologia de Lévi-Strauss, domestica-se o fogo como transgressão que leva o homem a penetrar o domínio da cultura, separando-o da natureza (tal qual o campanário que se destaca na natureza de Combray, de onde quer que se vislumbre) e impulsionando-o à solidão da história. Solidão esta que parece ser o fardo do narrador da Recherche, equilibrando-se em uma corda entre memória e o que se escapa desta, a saber, entre solidão e desejo, as duas quedas possíveis da recuperação do passado.
O desejo em Proust se satisfaz na sua impossibilidade, seja pela figura da mulher amada – Gilberte, nos limites de Combray, – seja pela inatingibilidade da arte, aqui ilustrada por ora na formosa igreja de Santo Hilário.
Se Gilberte surge na trama pelo nome, "Anda, Gilberte, vem; que estás fazendo aí?" (p. 112), próxima a Tansonville, ela se prenuncia em meio ao cenário, como vemos a seguir:

De súbito parei, não pude mais me mover, como acontece quando uma visão não se dirige apenas a nossos olhares, mas requer percepções mais profundas e dispõe de todo o nosso ser. Uma menina de um loiro-avermelhado, que parecia voltar de um passeio e que tinha na mão uma pá de jardinagem, olhava-nos, erguendo o rosto salpicado de manchas cor-de-rosa. Seus olhos negros fulguravam e, como eu então não sabia, nem o aprendi depois, reduzir a seus elementos objetivos uma impressão muito forte, como não tinha suficiente "espírito de observação", como se diz, para poder isolar a noção de sua cor, durante muito tempo, de cada vez que pensava nela, a lembrança do fulgor de seus olhos logo se me apresentava como de vivíssimo azul, visto que ela era loira; de modo que, se acaso não tivesse uns olhos tão negros [...], eu não teria ficado, como fiquei, mais particularmente enamorado, nela, de seus olhos azuis. (p. 111)

Mais adiante, o nome revelado, Gilberte, passa pelo narrador "como um talismã", que permitiria reencontrá-la, mesmo ela sendo naquele momento aquela imagem incerta no caminho de Swann. Um nome proferido "acima dos jasmins e dos goivos, brusco e fresco como as gotas da mangueira verde" e que impregnava o ar com o mistério da vida. "Expandido [o ar] sob o espinheiro róseo, à altura do meu ombro, a quintessência da familiaridades deles, para mim, tão dolorosa, com Gilberte, com o desconhecido de sua vida, onde eu não penetraria" (p. 112). Aquela parte do mapa que ultrapassa Combray para além do viaduto agora se costura com o desconhecido, mas não mais indesejado ou impensado, mas desejado e, entretanto – ou, portanto – interdito: Tansonville, Méséglise, o caminho de Swann. Um trecho de paisagem que, recuperado pela memória, flutua incerto nos pensamentos do narrador e, assim, deixa em suspenso sua localização cartográfica, que terá de ser redescoberta, para que esse desejo (memória) se converta em algo concreto, o que gerará os desdobramentos de toda a narrativa deste ponto em diante.
O mapa, ainda que incerto ou interdito, serve para realçar a natureza espacial do romance, como propõe um dos maiores nomes no tratamento geográfico dado à literatura, Franco Moretti. "Sua geometria peculiar, suas fronteiras, seus tabus espaciais e rotas favoritas" (MORETTI, p. 15). Mais do que isso, e isto se encaixa de maneira plena na narrativa proustiana, os mapas trazem à luz a lógica interna da narrativa, revelando a forma literária como o resultado de duas forças conflitantes, a saber, a que vem de fora e a que vem de dentro.


Houve já uma tentativa de mapear o romance, empreitada essa levada a cabo pelo professor André Ferré, em 1939, em sua tese de doutorado defendida na Faculté de Lettres de Paris sob o título de Géographie de Marcel Proust, e que foi posteriormente publicada pela Editions Sagittaire. A obra, além de encontrar-se indisponível, restando apenas pouquíssimas imagens de acervo em alguns sites, como a trazida acima, propõe uma leitura social dos choques de classe presentes na Recherche, objetivo este a que esta tese não se emprega.
Adotando a premissa de que a linguagem, por seu elemento fugidio, tal qual o da memória, é um instrumento geneticamente inadequado para o projeto da criação literária, como discorre a narrativa da Recherche, Proust busca na solidão de seu narrador, e na experiência exponenciada desta pela escrita, a maneira de reverter a lógica do desejo: como a memória é fugidia, ela representa a triste e dolorosa universalidade de um esqueleto, nas palavras do próprio narrador, devendo registrar, no caráter daquele que deseja escrever um romance, um índice de variação que se acentua à medida que vai chegando a novas regiões, sob outras latitudes da vida.

Bibliografia consultada
LINS, Álvaro. A Técnica do Romance em Marcel Proust. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
MORETTI, Franco. Atlas do Romance Europeu – 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003.
PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. São Paulo: Editora Globo, 3ª ed., 2006.
STEINER, George. Gramáticas da Criação. São Paulo: Editora Globo, 2001.



Todas as citações usadas são das edições traduzidas pela Globo Livros. Para efeito de referência, usaremos as referências SW para o primeiro volume, No Caminho de Swann (3ª ed., 2006), traduzido por Mario Quintana – que, para o recorte deste trabalho, norteia a análise.
Mapa obtido a partir do website da Universidade de Chicago, acesso em outubro de 2015, ver goo.gl/kPEfR1.
Vale para a edição Grasset, de 1913.
LINS, Álvaro. A Técnico do Romance em Marcel Proust. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
A imagem acima, retirada do site tourisme-illiers-combray.fr, é a reprodução de um cartão postal de Illiers-Combray que mostra a igreja na época em que o romance foi escrito.
STEINER, George. Gramáticas da Criação. São Paulo: Editora Globo, 2001.
MORETTI, Franco. Atlas do Romance Europeu – 1800-1900. São Paulo: Boitempo, 2003.



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