TÓQUIO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO - APROXIMAÇÕES

June 3, 2017 | Autor: Regiane Ishii | Categoria: Architecture, Cinema, Cinema Studies, Tokyo
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REGIANE AKEMI ISHII

TÓQUIO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO APROXIMAÇÕES

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

REGIANE AKEMI ISHII

TÓQUIO NO CINEMA CONTEMPORÂNEO APROXIMAÇÕES Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos exigidos para obtenção do título de Mestra em Artes Visuais, na Área de Concentração: Multimeios e Arte.

Orientador: Prof. Dr. Gilberto Alexandre Sobrinho

Este exemplar corresponde à versão final de Dissertação defendida pela aluna Regiane Akemi Ishii, e orientada pelo Prof. Dr. Gilberto Alexandre Sobrinho.

CAMPINAS 2015 iii

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

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Ishii, Regiane Akemi, 1986IshTóquio no cinema contemporâneo - aproximações / Regiane Akemi Ishii. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. IshOrientador: Gilberto Alexandre Sobrinho. IshDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Ish1. Cinema. 2. Tóquio (Japão). 3. Arquitetura japonesa. I. Sobrinho, Gilberto Alexandre. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Tokyo in contemporary cinema - approaches Palavras-chave em inglês: Cinema Tokyo (Japan) Japanese architecture Área de concentração: Artes Visuais Titulação: Mestra em Artes Visuais Banca examinadora: Gilberto Alexandre Sobrinho [Orientador] Cecília Antakly de Mello Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia Data de defesa: 28-07-2015 Programa de Pós-Graduação: Artes Visuais

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Resumo

Este trabalho propõe a análise de investimentos espaciais e processos de significação em filmes realizados em Tóquio por diretores não japoneses, na década de 2000. Nosso interesse recai sobre a relação entre cinema e cidade, tomando como principal aporte teórico as ideias de Giuliana Bruno, em Atlas of Emotion ± Journeys in Art, Architecture, and Film (2007). Assim, debruçamo-nos sobre as jornadas singulares dos títulos selecionados, analisando como cada filme, ao tomar como ponto de partida o espaço real de Tóquio, atualiza um novo espaço fílmico. Evidenciando as marcas de enunciação destes filmes, também investigamos como o espectador é convocado a confrontar uma emoção geográfica. No início, refletimos sobre a ligação entre o cinema, a arquitetura e a viagem, e fazemos um breve histórico de títulos que se dedicaram a filmar Tóquio. Em seguida, são analisados os três filmes que compõem o corpus da pesquisa: Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia Coppola, Babel (2006), de Alejandro González Iñarritu, e Enter the Void (2009), de Gaspar Noé.

Palavras-chave: Tóquio, Cinema, Arquitetura.

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Abstract

This work proposes the analysis of spatial investments and processes of meaning in films made in Tokyo by non-Japanese directors, in the 2000s. Our interest is focused on the relationship between cinema and city, taking as main theoretical contribution the ideas of Giuliana Bruno in Atlas of Emotion - Journeys in Art, Architecture, and Film (2007). Thus, we address to the singular journeys of selected titles, analyzing how each film, by taking as starting point the real space of Tokyo, updates a new filmic space. Having as evidence the marks of enunciation of these films, we also investigate how the viewer is called upon to confront a geographic emotion. At first, we reflect on the link between cinema, architecture and travel, and do a brief historical review of titles that were dedicated to film Tokyo. Then, the three films that make up the corpus of the research are analyzed: Lost in Translation (2003), by Sofia Coppola, Babel (2006), by Alejandro González Iñarritu, and Enter the Void (2009), by Gaspar Noé.

Keywords: Tokyo, Cinema, Architecture.

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Agradecimentos Ao Prof. Dr. Gilberto Alexandre Sobrinho, pela dedicada orientação e inspiração como pesquisador, iniciada nos anos de graduação; À Profª. Drª. Iara Lis Schiavinatto, também presente desde o ingresso no curso de Midialogia, e à Profª. Drª. Cecília Antakly de Mello, fundamental nas reflexões sobre cinema e cidade, pelos enriquecedores comentários na banca de qualificação; À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ± CAPES, pela bolsa emergencial concedida durante um semestre para o desenvolvimento desta pesquisa; À minha mãe, Kazuko, ao meu pai, Mário (in memoriam), e à madrinha, Tieko, pelo apoio incondicional à concretização de tantos sonhos e por compartilharem seus afetos pelo Japão, cada um a sua maneira; À minha dupla de vida e Arranhar o Céu, Gustavo Lemos, pelo carinho e companheirismo; À Eloisa Costa, pela primeira defesa de mestrado a que assisti, quando adolescente, e que me afetou profundamente; À Natalia Christofoletti Barrenha, pelos DVDs, livros, indicações e tantos auxílios permeados por uma preciosa e deliciosa amizade; Aos queridíssimos amigos da graduação e da pós-graduação no Instituto de Artes, que fazem da universidade (e de Barão Geraldo) este lugar tão especial que permanece conosco para sempre; Aos amigos de São Paulo, que há muitos anos compartilham sessões de cinema seguidas de caminhadas na avenida Paulista e, principalmente, uma relação sensível com a cidade; À equipe do Educativo Bienal, que tem o trabalho como um espaço onde nossas pesquisas pessoais podem ganhar força;

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Aos colegas do grupo de estudos de Estética Japonesa, coordenado pela Profª. Drª. Michiko Okano, pelas trocas generosas e debates acolhedores; Ao Yuji Kawasima, pelos felizes e transformadores dias em Tóquio.

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Lista de figuras Figura 1.1. Imagem de Hiroshima Meu Amor ........................................................................... 16 Figura 1.2. Imagem de Hiroshima Meu Amor............................................................................. 17 Figura 1.3. A Grande Onda de Kanagawa (Kanagawa oki nami ura  GD VpULH ³ 9LVWDV GR 0RQWH)XML´ ³)XJDNXVDQM€URNNHL´ .DWVXVKLND+RNXVDL[LORJUDYXUDFROorida, dimensões 25.2 x 37.2 cm, 1830-1831.................................................................................................................. 24 Figura 1.4. Ushi no Gozen ShrineGDVpULH³9LVWDVGH/XJDUHV)DPRVRVHP(GR´ ³(GR meishô ]XH´ 8WDJDZD+LURVKige, xilogravura colorida, dimensões 37 x 25 cm, 1862 ......................... 24 Figura 1.5. Cartaz do filme Casa de Bambu ............................................................................... 33 Figura 1.6. Imagem de Casa de Bambu ...................................................................................... 33 Figura 1.7. Imagem de Solaris .................................................................................................... 35 Figura 1.8. Imagem de Solaris .................................................................................................... 35 Figura 1.9. Imagem de Sem Sol ................................................................................................... 38 Figura 1.10. Imagem de Tokyo Ga .............................................................................................. 40

Figura 2.1. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 53 Figura 2.2. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 53 Figura 2.3. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 54 Figura 2.4. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 54 Figura 2.5. Imagem de As Virgens Suicidas................................................................................ 56 Figura 2.6. Imagem de Maria Antonieta ..................................................................................... 56 Figura 2.7. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 57 Figura 2.8. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 58 Figura 2.9. Imagem de Encontros e Desencontros ..................................................................... 58 Figura 2.10. Cartazes de Encontros e Desencontros ................................................................... 61 Figura 2.11. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 61 Figura 2.12. Imagem de Encontros e Desencontros .................................................................. 62 Figura 2.13. Imagem de Encontros e Desencontros .................................................................. 63 Figura 2.14. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 64 Figura 2.15. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 65 Figura 2.16. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 65 Figura 2.17. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 66

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Figura 2.18. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 68 Figura 2.19. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 69 Figura 2.20. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 69 Figura 2.21. Imagem de Encontros e Desencontros ................................................................... 70 Figura 2.22. Imagens de Encontros e Desencontros ................................................................... 75

Figura 3.1. Imagem de Babel ...................................................................................................... 82 Figura 3.2. Imagem de Babel ...................................................................................................... 82 Figura 3.3. Imagem de Babel ...................................................................................................... 83 Figura 3.4. Imagem de Babel ...................................................................................................... 87 Figura 3.5. Imagem de Babel ...................................................................................................... 87 Figura 3.6. Imagem de Babel ...................................................................................................... 88 Figura 3.7. Imagem de Babel ...................................................................................................... 88 Figura 3.8. Imagem de Babel ...................................................................................................... 90 Figura 3.9. Imagem de Babel ...................................................................................................... 90 Figura 3.10. Imagem de Babel .................................................................................................... 91 Figura 3.11. Imagem de Babel .................................................................................................... 92 Figura 3.12. Imagem de Babel .................................................................................................... 93 Figura 3.13. Imagem de Babel .................................................................................................... 93 Figura 3.14. Imagem de Babel .................................................................................................... 95 Figura 3.15. Imagem de Babel .................................................................................................... 95 Figura 3.16. Imagem de Babel .................................................................................................... 96 Figura 3.17. Imagem de Babel .................................................................................................... 98 Figura 3.18. Imagem de Babel .................................................................................................... 98 Figura 3.19. Imagem de Babel .................................................................................................... 99 Figura 3.20. Imagem de Babel .................................................................................................. 100 Figura 3.21. Imagem de Babel .................................................................................................. 100 Figura 3.22. Imagem de Babel .................................................................................................. 101 Figura 3.23. Imagens de Babel .................................................................................................. 102

Figura 4.1. Imagens de Enter the Void ...................................................................................... 104 Figura 4.2. Imagens de Enter the Void ...................................................................................... 104

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Figura 4.3. Imagem dos créditos inicias de Enter the Void ....................................................... 107 Figura 4.4. Cartaz de Enter the Void ......................................................................................... 109 Figura 4.5. Imagem de Enter the Void ...................................................................................... 112 Figura 4.6. Imagem de Enter the Void ..................................................................................... 113 Figura 4.7. Imagem de Enter the Void ...................................................................................... 113 Figura 4.8. Imagem de Enter the Void ...................................................................................... 115 Figura 4.9. Imagem de Enter the Void ...................................................................................... 115 Figura 4.10. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 116 Figura 4.11. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 118 Figura 4.12. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 118 Figura 4.13. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 119 Figura 4.14. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 120 Figura 4.15. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 120 Figura 4.16. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 121 Figura 4.17. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 122 Figura 4.18. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 123 Figura 4.19. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 123 Figura 4.20. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 126 Figura 4.21. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 127 Figura 4.22. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 127 Figura 4.23. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 128 Figura 4.24. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 128 Figura 4.25. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 129 Figura 4.26. Imagens de Enter the Void .................................................................................... 129 Figura 4.27. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 130 Figura 4.28. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 130 Figura 4.29. Imagem de Enter the Void .................................................................................... 132

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Sumário Introdução....................................................................................................................... 1

1. Sobre viajar e filmar (em Tóquio)..................................................................... 7

1.1.

O corpo e a câmera na cidade................................................................... 7

1.2.

Breve histórico das representações de Tóquio....................................... 14

2. Encontros e Desencontros: Observação de olhares sob o estado de flerte................................................................................................................... 45

3. Babel: Tensões e erotismos em rede.................................................................77

4. Enter the Void: Hipertextualidade no fluxo de alucinações e pósmorte................................................................................................................ 103

Considerações finais................................................................................................... 133

Referências bibliográficas.......................................................................................... 139

Ficha técnica dos filmes analisados......................................................................... 145

Lista de filmes com representações de Tóquio......................................................... 147

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Nesse momento a decisão de dobrar nessa ou naquela esquina, à esquerda ou à direita, esvazia-se do peso de fazer parte de um caminho que leva a um determinado objetivo e ela, a decisão, se restringirá a sua essência, revelando o instinto do viajante, a atração que vai exercer sobre ele uma fachada, uma janela, a inclinação de uma rua, a sombra por trás de uma cortina, uma parede GHVFDVFDGD « Há uma espécie de aclimatação, como se seu corpo se ajustasse a novas condições de temperatura e pressão. Seu coração agora tem um batimento ligeiramente diferente do que tinha quando você chegou. (...) Como para sempre a cidade, a sua cidade estará fixada. Claro que ela vai se expandir, vai revelar novos bairros, novas caras, e mais tarde ainda vai sofrer o trabalho da memória, a deturpação do relato, e se transformar ainda mais. Mas a base para essa transformação está assentada. E tudo se resolveu ali, quando você pôs o pé na rua pela primeira vez e decidiu sair para um lado e não para o outro.

Amilcar Bettega

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Introdução

Cidade, viagem, cinema. Entre as muitas imagens que povoam esta pesquisa há uma fundamental, a que disparou o início da reflexão. Em uma noite próxima à virada do ano 2006, subi a escada rolante de uma das dezenas de saídas da estação Shinjuku, no distrito central da capital japonesa. Saindo da estação me deparei com a primeira vista de minha temporada em Tóquio. A paisagem urbana, iluminada pelos neons, me provocou um forte impacto. Não tinha nenhum compromisso marcado ou ponto turístico a ser visitado àquela hora. A estação de chegada foi escolhida intuitivamente; achava (e estava certa) que ali poderia encontrar aquelas luzes. Ou melhor, as luzes que os filmes haviam me mostrado. Sobre mais narrativas engendradas naquela área eu quase não sabia. Aos poucos, descobri que além de exibir as fachadas das gigantescas lojas de departamento, Shinjuku é uma região historicamente famosa por abrigar movimentos como as manifestações de 1968, período em que a atmosfera tumultuada dos protestos políticos e da revolução sexual presente em diferentes partes do mundo também reverberou no Japão1. Soube também que em suas ruelas estreitas com pequenas casas noturnas circula a máfia yakuza, e que é possível encontrar bares como o charmoso La Jetée, nomeado em homenagem ao filme do diretor francês Chris Marker. E sempre houve o cinema, imprescindível na relação firmada com a cidade 2, presente e atuante na formação do imaginário nos momentos anteriores e posteriores à minha viagem. Encontros e Desencontros (Lost in Translation, 2003), de Sofia Coppola, havia sido visto e revisto incontáveis vezes nos três anos anteriores. Babel (2006), de Alejandro Gonzalez Iñarritu, estava prestes a ser lançado no circuito japonês e seus cartazes já ocupavam as estações de metrô. Retornando ao Brasil, empreendi uma busca por outros filmes de diretores não japoneses que tivessem se dedicado àqueles espaços. Estava nítido que o desejo de revisitar a Tóquio do meu imaginário era mais contemplado pelos títulos dirigidos por estrangeiros do que pelos cineastas japoneses. Quais seriam as especificidades destas 1

A Shinjuku com os ares revolucionários da década de 1960 se faz presente em filmes de diretores japoneses como Nagisa Oshima, Shuji Terayama e Hiroshi Teshigara, como revisitado em World Film Locations - Tokyo (MAGEE, 2011). 2 Ao longo do texto, faremos referência a Tóquio como uma cidade. Porém, levando em consideração a divisão administrativa japonesa, Tóquio é definida oficialmente como uma província.

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produções? Assim, foi dado o visionamento de filmes como os documentários Sem Sol (Sans Soleil, 1983), do já citado Chris Marker, e Tokyo Ga (1985), de Wim Wenders. Além disso, percebi que poderia ver a capital em filmes que não a nomeiam. Por exemplo, a sequência de cerca de cinco minutos de Solaris (Solyaris, 1972), de Andrei TarkovskyHPTXHXPFDUURp³WUDQVSRUWDGR´jVYLDVH[SUHVVDVHDRWUkQVLWRGD7yTXLR do início da década de 1970. Curiosamente, surgiam mais lançamentos de filmes de cineastas estrangeiros realizados em Tóquio a partir da década de 2000. Entre os destaques: Tokyo! (2008), de Joon-ho Bong, Leos Carax e Michel Gondry, Hanami ± Cerejeiras em Flor (Hanami, 2008), de Doris Dörrie, Enter the Void (2009), de Gaspar Noé, Map of the Sounds of Tokyo (2009), de Isabel Coixet, e Um Alguém Apaixonado (Like Someone in Love, 2012), de Abbas Kiarostami. Vale ressaltar que os filmes de Noé e Coixet estiveram em competição oficial à Palma de Ouro no Festival de Cannes no mesmo ano, em 2009, e o de Kiarostami em 2012, reforçando a recorrência de Tóquio em produções contemporâneas que circulam em espaços prestigiosos. Além disso, a capital japonesa integra DV³FDUWDV´WURFDGDVHQWUH Jonas Mekas e José Luis Guerín em Correspondencia (2011). O diretor espanhol fecha o filme com imagens no mercado de peixes Tsukiji. No Festival de Veneza de 2004, o taiwanês Hou Hsiao-Hsien apresentou Café Lumière (Kôhi Jikô, 2003), filme que tem como locações as ruas e as livrarias de Koenji, bairro bem menos conhecido pela audiência internacional. Os blockbusters também estiveram com as suas câmeras na cidade, entre eles Velozes e Furiosos ± Desafio em Tóquio (The Fast and the Furious ± Tokyo Drift, 2006), de Justin Lin, e Wolverine - Imortal (The Wolverine, 2013), de James Mangold. O tempo todo, o que me motivava como espectadora era ver e rever a cidade. Desde a invenção do cinema que a câmera e o espaço urbano estiveram intimamente ligados. Há muitas décadas, cidades como Paris e Nova York circulam o mundo por meio do cinema. Esta intensa relação tem gerado diversas inspeções criativas, como o filme Los Angeles por Ela Mesma (Los Angeles Plays Itself, 2003), em que o diretor Thom Andersen reúne cerca de 170 minutos exclusivamente de trechos de outras produções que tem a cidade como locação. Nele, a montagem e a narração sobreposta criam um ensaio sobre os modos como Los Angeles já foi representada.

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Mas e Tóquio? Por que um significativo número de diretores estrangeiros empreenderam viagens à capital japonesa? Quais seriam as particularidades e recorrências destas produções? E finalmente, que recorte analítico poderia ser feito? O que havia nos títulos que eu destaquei? Decidimos para esta pesquisa, a partir de uma seleção de filmes (Encontros e Desencontros, Babel e Enter the Void) dirigidos por cineastas não japoneses, cotejar aspectos imanentes às relações entre cinema e cidade, voltando-nos especificamente sobre modos pelos quais Tóquio é abordada na produção contemporânea. Notamos um destacado vínculo entre estes três títulos e Tóquio. Como buscaremos destrinchar, a viagem de Encontros e Desencontros, a rede global de Babel e a alucinação de Enter the Void estão diretamente imbricadas no espaço urbano da capital japonesa. Em cada filme será necessário redimensionar a posição do estrangeiro, explicitando se ela está dada, empiricamente, apenas na figura do diretor, e por extensão, textualmente, em sua transmutação no narrador ou também nos personagens que encarnam esse sentimento. Na relação diretor/narrador-personagem-cidade, queremos investigar como os corpos relacionam-se com os espaços e desencadeiam conjuntos de afetos. Cumprem-se jornadas singulares, e são justamente as especificidades desses percursos, organizados narrativamente, por via de uma emoção geográfica, que queremos aprofundar nas relações entre os tempos/espaços cinematográficos e Tóquio.

A necessidade de estabelecer parâmetros espaciais e (des) localizar o corpo (...) é de fato uma obsessão emocional do filme. (...) No começo de um filme, assim como no início da visita de um viajante a uma cidade, o espectador é pensado para confrontar uma emoção geográfica. (BRUNO, 2007, p. 271, grifo da autora)3

Vale destacar uma mudança que se deu ao longo da pesquisa em relação às expressões utilizadas. Se no início, um termo comum era a imagem da cidade, durante o desenvolvimento das análises ficou claro que o melhor seria falarmos em investimentos espaciais. Assim, não estaríamos tratando da representação de algo estático, mas explicitaríamos nosso interesse sobre as práticas espaciais, que envolvem complexos expedientes na passagem do espaço real para um novo, o espaço fílmico. 3

As citações originais em inglês foram traduzidas livremente para o português pela autora.

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Tal transformação foi balizada principalmente por conta da entrada de Atlas of Emotion ± Journeys in Art, Architecture, and Film (2007), de Giuliana Bruno, em nossa bibliografia. Para a autora, o espaço seria algo a ser praticado, constituindo a ligação entre cinema, arquitetura e corpo. O cinema, como arte espacial, teria a função de proporcionar uma jornada psíquica pelo espaço. Na passagem do modelo ótico para o háptico, o espectador é tido mais como um voyageur do que um voyeur. Como explicitado em seu prólogo, o atlas SURSRVWRSRU%UXQR³QmRpXPPDSDPHUDPHQWHGH espaços, mas de movimentos: um conjunto de jornadas no interior de movimentos FXOWXUDLV´(2007, p. 6). Em mais um jogo com as palavras, a autora liga intrinsicamente motion e emotion, partindo da premissa de que o movimento produz emoção e, correlativamente, de que a emoção contém movimentos. Assim, questiona-VH R ³Rcularcentrismo´ com que geralmente se aborda o cinema. A importância do háptico insere-se como outra proposta para se analisar os filmes. O háptico estaria relacionado à sinestesia e à habilidade do corpo de sentir seu próprio movimento no espaço, formando nossos modos de estar em contato com o ambiente. Dentro de nosso recorte, Tóquio no cinema contemporâneo por diretores estrangeiros, temos diversas instâncias de movimentos que se entrecruzam. Há o deslocamento dos próprios personagens dentro do perímetro delimitado pela narrativa, a viagem da equipe para a realização do filme na capital japonesa, a jornada do espectador como voyageur e a distribuição destes títulos no circuito internacional. Buscaremos interligar estes diversos movimentos em nossa investigação, levando em consideração suas atuações na passagem do espaço real para o espaço fílmico. A primeira parte da dissertação compreende uma introdução teórica de questões importantes para nosso aporte sobre cinema e cidade em diálogo com a reflexão sobre a capital japonesa na produção dos dias de hoje 4. Em seguida, traçamos uma linha do tempo para retomar a presença de Tóquio em filmes dirigidos por não japoneses, tendo como ponto de partida a década de 1950. Durante o percurso, destacamos, descrevemos

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Tivemos a oportunidade de entrar em contato com algumas discussões que estão sendo realizadas no campo das relações entre cinema e cidade no Brasil. Vale citar o XVIII Encontro da SOCINE em 2014, HP TXH D PHVD ³3DLVDJHQV UXtQDV H DPELrQFLDV´ DV VHVV}HV ³&LQHPD H HVSDoRV XUEDQRV´ H R SDLQHO ³(VSDoRVFLGDGHVHIURQWHLUDVQRFLQHPD´ RQGHDSUHVHQWDPRVSDUWHGDSUHVHQWHSHVTXLVD FRQWULEXtUDP para uma aproximação com outras reverberações do pensamento de Bruno nas pesquisas atuais.

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e comentamos apenas alguns títulos. Paralelamente, realizamos observações sobre o ponto de vista estrangeiro sobre o Japão desde o século 19. A segunda parte dedica-se à análise fílmica. Como já apontamos, elegemos três produções da década de 2000 que têm em comum significativas circulações tanto em importantes festivais quanto no circuito comercial internacional. Além disso, todos abarcam longas sequências dedicadas ao espaço urbano que evidenciam a arquitetura recente e deslocamentos contemporâneos. Trata-se de filmes que nos possibilitaram investigar questões pertinentes à teoria do cinema e à Tóquio dentro do contexto da globalização. Buscando suas marcas de enunciação, elaboramos uma hipótese para a investigação de cada filme. (P ³2EVHUYDomR GH ROKDUHV VRE R HVWDGR GH IOHUWH´ sobre Encontros e Desencontros, analisamos o entrelaçamento da construção da relação dos protagonistas com a transformação de seus modos de olhar Tóquio. O que chamamos de estado de flerte diria respeito ao campo efêmero do breve período de suas viagens, balizando tanto a associação entre a câmera de Sofia Coppola e Tóquio, quanto entre a dupla Charlotte (Scarlett Johansson) e Bob (Bill Murray). Planos da cidade são intercalados com planos de seus rostos, privilegiando uma reflexão sobre o olhar e as aparências. -i HP ³7HQV}HV H HURWLVPRV HP UHGH´ GHGLFDGR j Babel, analisamos Tóquio como parte de uma rede que pretende abarcar continentes e uma possível ideia de ³PXQGR´, ou melhor, de mundo globalizado, com seus laços políticos, sociais e econômicos. Personagens de várias nacionalidades e paisagens de diferentes partes do globo são entrecruzados. Trabalhamos com a ideia de que as escolhas no modo de filmar a cidade buscam implica-la com as esferas íntimas de personagens em tensão com o espaço onde se encontram. Neste caso, a adolescente surda Chieko (Rinko Kikuchi). )LQDOPHQWH HP ³+LSHUWH[WXDOLGDGH QR IOX[o de alucinações e pós-PRUWH´ elaboramos a hipótese de que Enter the Void faz uso de modos de deslocamento que se referem à hipertextualidade potencializada pelas novas mídias. Tóquio estaria diretamente implicada nesta construção, por meio de suas ruas, edifícios e fachadas luminosas. As encruzilhadas e ramificações que ocupariam a mente do protagonista teriam um correspondente espacial na cidade. O mote seriam os estados alterados de consciência de Oscar (Nathaniel Brown), morto sob os efeitos de drogas.

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Aproximamo-nos de cada título por meio da descrição da narrativa, apresentação de personagens, contexto da realização e investigação sobre os motivos da decisão de se filmar em Tóquio. Quando pertinente, relembramos aspectos estilísticos da filmografia dos diretores e fazemos apontamentos sobre a arquitetura e o urbanismo de Tóquio. Em seguida, elegemos alguns trechos-chave para aprofundar a pesquisa com foco nos investimentos espaciais. O visionamento dos filmes foi acompanhado da escolha de alguns fotogramas que contribuíssem para o estudo e que são incluídos na dissertação. Durante o processo, mantivemos a atenção em elementos como, por exemplo, a recorrência do cruzamento do distrito de Shibuya como locação, o ponto de vista a partir de carros e trens em movimento ou a contemplação da paisagem urbana desde terraços e grandes alturas. Tais elementos, que não são exclusividade do nosso corpus, mas reincidem em várias produções estrangeiras dedicadas a filmar a capital japonesa, foram questionados em relação às suas funções narrativas e processos enunciativos.

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1. Sobre viajar e filmar (em Tóquio)

1.1. O corpo e a câmera na cidade Fixar o flagrante da vida urbana e abarcar a sensação de deslocamento nas ruas estão entre os projetos do cinema desde os seus primórdios, em sintonia com certa sensibilidade cosmopolita. Entre as atribuições do homem moderno estava o desenvolvimento de outras formas de se mover e ver, poros abertos às novidades, ao mesmo tempo em que se habituava a tantos estímulos. A vida mediada pela câmera cinematográfica continha em sua própria natureza o fragmento como condição da modernidade: enquadramento, take, sequência. &RPRGHIHQGH0DUN6KLHO³IRUPDOPHQWHKiWHPSRVRFLQHPDWHPXPDQRWiYHO e característica habilidade para capturar e expressar a complexidade espacial, GLYHUVLGDGH H GLQDPLVPR VRFLDO GD FLGDGH´ SHIEL; FITZMAURICE, 2001, p. 1). Importante para a melhor compreensão do século 20, o cinema atualiza em imagens uma série de expedientes que integram o contexto das questões de seu tempo. Assim, PXLWDVYH]HVRVDSRUWHVFLQHPDWRJUiILFRVGLULJLGRVVREUHDVFLGDGHV³FDHPFRPRXPD OXYD´para a reflexão de suas próprias mudanças históricas, políticas e sociais. Há momentos bastante significativos nesse sentido, como as sinfonias urbanas, da década de 1920. Nas sinfonias, observamos figuras a caminho de seus trabalhos nas fábricas, os rituais religiosos, os passeios coletivos nos bulevares e os cerimoniais de abertura de arenas públicas. Desenvolveu-se nelas uma narratividade poética a partir dos elementos da cidade. Podemos citar as emblemáticas Berlim - Sinfonia da Metrópole (Berlin - Die Sinfonie der Grosstadt, 1927), de Walter Ruttmann, e O Homem com uma Câmera (Chelovek s kino-apparatom, 1929), de Dziga Vertov. Sobre o último título, realizado em várias cidades da União Soviética, Stephen %DUEHUHVFUHYHTXH³DLQFLWDomRHRGHVDILRGH']LJD9HUWRYjSHUFHSomRGRHVSHFWDGRU resulta em uma salutar acumulação de variantes contraditórias da cidade: ela é solta, desequilibrada, UDVJDGD j WUDQVIRUPDomR´ (2002, p. 46) e que o diretor concebeu seu ILOPHFRPRXP³PDQLIHVWRGRH[FLWDQWHSRGHUTXHRFLQHPDSRGHULDH[WUDLUGDFLGDGHH GHVHXVHVSHFWDGRUHV´ (2002, p. 47).

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Justapondo o despertar do olho e da cidade e testando os próprios limites da percepção

do

espectador,

Vertov

traz

dimensões

corpóreas

à

experiência

cinematográfica. Combinam-se os movimentos incessantes das máquinas e multidões com o funcionamento da íris da câmera e da lente do projetor, por meio de uma montagem que exalta o dinamismo e a velocidade. Explicita-se também o próprio fazer cinematográfico como integrante da vida moderna, com as sequências que mostram a FDSWDomRDPRQWDJHPHDWpDH[LELomRGR³GRFXPHQWiULRGHQWURGRGRFXPHQWiULR´ Outro produtivo embate com o espaço urbano se deu durante o desenvolvimento de movimentos como Neorrealismo Italiano, Nouvelle Vague e Cinema Novo Alemão na produção do pós-guerra. Em chaves diferenciadas, a cidade fez-se significativamente presente na filmografia de diretores como os europeus Roberto Rossellini (Roma, Cidade Aberta, 1945), François Truffaut (Os Incompreendidos, 1959) e Jean-Luc Godard (Acossado, 1960). Nos anos seguintes a 1945, a cidade emerge como complexa zona de conflito para o imaginário cinematográfico: Nas imagens dos cinejornais, o retorno de milhões de soldados das zonas de guerra às cidades produziu uma preocupação visual chave. Uma fundamental incompatibilidade entre os corpos feridos e os elementos arquitetônicos da cidade emergiu: em seu retorno, os corpos deslocados e as vozes da cidade não poderiam mais aderir às superfícies e fachadas da mesma maneira que era possível antes do conflito. (BARBER, 2002, p. 58)

Não caberia no cinema a cidade autoconfiante e prepotente representada em algumas produções das décadas anteriores. Mais frágil e vulnerável, o espaço encontrado no retorno da Guerra já não era o mesmo que se tinha como lar e cidade natal. Assim, qual seria a resposta do cinema frente à fratura e ao colapso das cidades e as contradições e paradoxos frutos do novo contexto? Nesta virada localiza-se a passagem da imagem-movimento para a imagemtempo proposta por Deleuze. (P ³$ FULVH GD LPDJHP-DomR´ ~OWLPR FDStWXOR GH A Imagem-Movimento, ele escreve: É aí que nasce uma nova raça de personagens encantadores, comoventes, que mal se sentem concernidos pelos acontecimentos que lhes advêm, mesmo a traição, mesmo a morte, sofrendo e provocando acontecimentos obscuros que se juntam uns aos outros tão mal quanto as porções de espaço qualquer que percorrem. (1983, p. 261, grifo nosso)

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Para Deleuze, no cinema do pós-guerra, torna-se difícil identificar uma linha que garanta a junção das porções do espaço. A elipse deixa de ser um artifício narrativo e passa a pertencer à própria situação. Numa realidade lacunar e dispersiva, os encadeamentos, as junções ou as ligações enfraquecem-se, dando lugar à perambulação (distinta do flanar do início do século) que se dá num espaço qualquer da cidade em demolição ou em reconstrução. Sem a intenção de traçar uma linha do tempo da ampla relação entre cinema e cidade, apenas gostaríamos de estreitar com estes exemplos o campo de investigação em que queremos nos localizar. Trata-se de aspectos da instabilidade, mobilidade e transformação no espaço urbano real que são abordados de diferentes modos na construção do espaço urbano no cinema. Além do trabalho de diretores como Yasujiro Ozu, Akira Kurosawa e Kenji Mizoguchi, que viveram o antes, o durante e o depois da guerra, e aparecem na investigação de A Imagem-Tempo (2007), o Japão passou a ser filmado por diretores estrangeiros, marcadamente a partir do período de Ocupação pelas Forças Aliadas. Como buscaremos percorrer no próximo subcapítulo, podemos encontrar nessas produções estrangeiras diferentes colocações e respostas frente ao espaço urbano de Tóquio, entrelaçadas com as experiências trazidas de seus países de origem e o que circulava na produção cinematográfica de então. Poderemos observar que, enquanto Hiroshima ficará até os dias de hoje marcada pelas cicatrizes da Segunda Guerra, Tóquio foi mais representada pelos diretores de fora como o espaço de rápida superação e reconstrução. Certo imaginário cosmopolita, de tumulto e intenso movimento, próprio à experiência do modernismo urbano presente em diversos momentos da História do Cinema, também continua vinculado à capital japonesa contemporânea. Assim, fazemos a conexão com outra questão premente em nossa discussão: os deslocamentos. Buscando uma compreensão do cinema em termos de mobilidade e organização do espaço, Shiel fala tanto sobre os espaços nos filmes quanto dos filmes no espaço (2001, p. 5). Os espaços nos filmes tratariam do espaço da tomada, do set da narrativa, da relação geográfica entre as várias sequências. Já os filmes no espaço diriam respeito à relação dos espaços urbanos nos filmes como uma prática cultural, à

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organização espacial da indústria nos níveis de produção5, distribuição e exibição e ao papel do cinema na globalização. Partindo de nosso recorte, Tóquio no cinema contemporâneo, em produções dirigidas por não japoneses, pretendemos atuar dentro da discussão sobre os investimentos espaciais e as formas de se mover e ver nas telas da passagem do século 20 para o 21. Consideramos a cidade como um espaço dinâmico e instável, atravessado por dispositivos tecnológicos de registro e pós-produção e processos enunciativos variados. A questão da espacialização, deslocamento e mobilidade, presente e transformada ao longo da História do Cinema, parece fertilizar vários níveis da reflexão sobre os filmes de nosso corpus. Trata-se de Tóquio, uma das maiores metrópoles do mundo, representada por equipes de estrangeiros que empreenderam uma viagem, e de filmes que circularam em audiências internacionais. Tomamos o pensamento de Giuliana Bruno como principal aporte teórico para nos aproximar de novos paradigmas dos estudos contemporâneos sobre cinema e cidade. Suas teorias foram significativamente importantes para explorarmos a ideia de jornada não apenas nas narrativas, mas nos filmes em si. Ou seja, para além de produções que tratam de viagens em seus roteiros, Bruno coloca os deslocamentos como elemento fundamental para se pensar o cinema como um todo. Que ferramentas, expedientes e investimentos, propriamente cinematográficos, estariam presentes na exploração da mobilidade em nossos filmes? Considerando o cinema como uma arte espacial, parente da arquitetura, Bruno propõe algumas mudanças, já citadas na introdução, como a passagem do sightseeing para o siteseeing, do ótico para o háptico, do voyeur ao voyageur. Como tentaremos abordar, o espectador é tido como um viajante permeado por uma emoção geográfica, em que a arquitetura é elemento fundamental na constituição dos afetos envolvidos em cada jornada. Debruçaremos sobre estes filmes a partir da interdisciplinaridade entre cinema, arquitetura e corpo, proposta em Atlas of Emotion - Journeys in Art, Architecture and Film (2007). Sem uma cronologia rígida, o próprio texto da autora organiza-se como

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Vale destacar o caráter transnacional das parcerias de produção de nosso corpus: Encontros e Desencontros (Estados Unidos e Japão), Babel (França, Estados Unidos e México) e Enter the Void (França, Alemanha, Itália e Canadá).

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uma jornada pela história das artes espaço-visuais, inserindo o cinema como produto da modernidade e da cultura de viagem, intrinsecamente relacionado com a arquitetura: O cinema é uma documentação viva de (des) localização cultural. É um veículo para ler traços de nossa habitação e uma casa que se move na velocidade de nossa viagem no espaço. Movimentos fílmicos são uma passagem cultural. Uma prática de fazer imagens que participa do projeto filosófico moderno de mobilizar o espaço, o cinema tem sido o lar para várias formas de nomadismo. (BRUNO, 2007, p. 95) Como um relatório de viagem, o cinema é ao mesmo tempo uma ferramenta científica e pessoal de (auto) representação. (...) Um importante aspecto desta ligação genealógica é o componente arquitetônico. Uma tecnologia de entretenimento ²uma linguagem mista de ampla gama espetacular² o cinema herda da palestra de viagem a função sociocultural de proporcionar aos espectadores uma jornada psíquica pelo espaço. A arquitetura age como uma força-motor neste voo imaginativo. (BRUNO, 2007, p. 117)

Aqui, não apenas se pensa como a arquitetura é observada, mas também como se estabelece amplas relações, conexões, disputas e afetos no espaço. São enfatizadas as conexões entre motion (movimento) e emotion (emoção) 6 , e entre sight, expressão relacionada à visão, e site, como ideia de espaço. Em artigo anterior, Site-seeing Architecture and the Moving Image (1997), Giuliana Bruno inicia o texto introduzindo um jogo com a palavra sightseeing (atividade de visitar lugares como um turista). Fazendo a mudança para a expressão siteseeing, a pesquisadora propõe uma mudança teórica, um deslocamento do ótico para o háptico, trazendo o aspecto tátil para pensar o cinema dentro do terreno das artes espaciais. Para ela, o espectador de filmes havia sido fixado como um voyeur7. Em relação ao novo siteseeing, o espectador seria mais um voyageur. Pensar as habitações e travessias pelo espaço próprias à imagem em movimento apenas nos limites do sight (habilidade de ver) seria insuficiente; fez-se necessário, no pensamento de Bruno, dar luz à dimensão espaço-corpórea do cinema:

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A relação entre movimento e emoção, recorrente no pensamento de Bruno, não terá um correspondente em português para o jogo de palavras motion e emotion, presente na escrita original em inglês. 7 No mesmo artigo, Site-seeing - Architecture and the Moving Image (1997), Bruno justifica o salto teórico de voyeur para voyageur como uma maneira de reivindicar a mobilidade feminina. Faz-se necessário a referência ao ensaio Prazer Visual e Cinema Narrativo, marco nos estudos feministas, apresentado por Laura Mulvey pela primeira vez em 1973, onde a autora realiza uma reflexão crítica sobre as políticas do olhar no cinema, denunciando seu caráter fetichista e voyeurista masculino e convocando outras possibilidades de olhar.

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Percebidos por meio de hábito e tato, cinema e arquitetura são ambos uma questão de toque. O caminho háptico destas duas práticas espaciais toca a esfera física. Suas questões cinéticas são carnais. Em suas ficções arquitetônicas, há uma ligação tangível entre espaço e desejo. O espaço desencadeia o desejo. (...) Proporcionando espaço para viver e alojando lugares de biografia, o cinema e a arquitetura são constantemente reinventados por histórias da carne. (BRUNO, 1997, p. 20)

O cinema estaria envolvido em um complexo trânsito de identificações, onde as narrativas não apenas circunscrevem o olhar, como também se alimentam da relação intensa entre os corpos e o espaço urbano. 7HQGRHPPHQWHTXHR³HVSDoRGHVHQFDGHLD RGHVHMR´, temos um terreno fértil para explorar, a partir da filmografia selecionada, os desejos imbricados nos fascínios e enfrentamentos com a cidade a partir de quem é de fora. Em Encontros e Desencontros, Tóquio conecta o casal protagonista. As transformações dadas na relação são entrelaçadas com novas posturas de observação da cidade. São nos modos de olhar e viver o espaço urbano que se explicitam as mudanças que um personagem acarreta no outro. Já em Babel, o erotismo encontra-se à flor da pele da protagonista. Os momentos mais intensos de sua pulsão também se dão em relação a Tóquio, seja nas ruas em meio à multidão, ou a partir do terraço de sua casa com o corpo voltado à paisagem urbana. Por meio dos estados alterados de consciência de seu protagonista, Enter the Void liga alucinações, traumas e fantasias sexuais às ruas, edifícios e fachadas da cidade. Nesses títulos, Tóquio está longe de ser apenas o lugar onde se dá a narrativa e passa a integrar o fluxo de diversas viagens (geográfica, espiritual e psicodélica). A questão da jornada, viagem e mobilidade também compõem outra discussão importante dentro dos estudos contemporâneos relacionados ao cinema e à cidade: a globalização. Pode-se conectar os filmes estudados às conjunturas e demandas globais em diferentes níveis. Vários aspectos da globalização permeiam as produções realizadas nas cidades transformadas, entre eles o turismo internacional, a migração laboral e o capital WUDQVQDFLRQDO 6H ³TXDQWR PDLV FRPSOH[DV H YDULDGDV DV RSo}HV GH FRQVXPR PDLV LQWULQFDGRRVLVWHPDGHFyGLJRVHVtPERORVUHIHUHQWHVjVFLGDGHV´(PRYSTON; CUNHA, 2010, p. 9), o cinema torna-se um dos meios capazes de refletir sobre os efeitos da

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globalização por meio de seu contínuo embate com a cidade, ponto de partida e unidade fundamental deste novo sistema. As cidades e o cosmopolitismo pós-modernos são, pois, marcados tanto por essa permeabilidade entre expressões culturais (implicada na diversidade promulgada pelo capitalismo transnacional), estilos arquitetônicos e períodos históricos como pela evidente coQVROLGDomR GH XP ³HVWLOR GH YLGD´ internacional. (PRYSTON; CUNHA, 2010, p. 15)

Investigando a construção da subjetividade contemporânea, Arjun Appadurai desenvolve reflexões sobre o que chama de trabalho da imaginação em Modernity at Large ± Cultural Dimensions of Globalization (1996). O autor identifica a mediação eletrônica e os movimentos migratórios como os principais responsáveis pelo trabalho da imaginação. Ele argumenta que a mediação de imagens oferece diferentes recursos e disciplinas para a construção tanto da autoimagem quanto dos mundos imaginados. Associada a uma ideia cosmopolita, capitaneada por globetrotters que não se prendem a limites geográficos, a influência da alta circulação imagética subverte e transforma os mundos de comunicação pré-existentes. Desde os espaços públicos do cinema até as telas íntimas dos smartphones (servidos em tempo real), as mídias funcionam hoje como canal para novas formas de desejo de deslocamento. Vidas possíveis em cidades imaginadas ganham contornos a partir do visto nos filmes, na televisão e na internet. Assim, Appadurai reforça o papel dos deslocamentos contemporâneos: (...) juntas (a mediação eletrônica e a migração em massa) criam irregularidades específicas porque os observadores e as imagens estão em circulação simultânea. Nem as imagens nem os observadores se encaixam em circuitos ou audiências que facilmente são limitados pelos espaços locais, nacionais ou regionais. (...) Neste sentido, pessoas e imagens frequentemente encontram o imprevisível, fora das certezas do lar e do cordão sanitário dos efeitos midiáticos do local e do nacional. Esta relação móvel e imprevisível entre os eventos mediados e as audiências migratórias define o núcleo da conexão entre a globalização e o moderno. (...) o trabalho da imaginação, visto neste contexto, não é nem puramente emancipatório nem inteiramente disciplinado, mas um espaço de contestação em que indivíduos e grupos procuram anexar o global em suas próprias práticas do moderno. (APPADURAI, 1996, p. 4)

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Assim, gostaríamos de refletir sobre quais seriam os expedientes presentes na construção das narrativas marcadas por esses processos e movimentos. Das imagens que geraram o desejo de deslocamento ao embate físico da câmera com a cidade até as projeções das produções finalizadas, os filmes se encontram em um abrangente processo em que tão significativo quanto empreender uma viagem é registrar e exibir suas impressões e experiências. Exercício de alteridade dentro dos processos transnacionais, as migrações do olhar se tornam tópico importante nos estudos contemporâneos. Os elementos operantes da globalização atuam como o subtexto de Encontros e Desencontros, Babel e Enter the Void, dinamizados em diferentes atualizações, mais ou menos explícitas. Antes de nos dedicarmos profundamente sobre a filmografia selecionada, propomos em seguida revisitar outros filmes que trouxeram imagens de Tóquio a partir da década de 1950.

1.2. Breve histórico das representações de Tóquio Ela: Hi-ro-shi-ma. Hiroshima. Este é o seu nome. Ele: Sim, este é o meu nome. Seu nome é Ne-vers. Nevers na França. (Diálogo de Hiroshima Meu Amor)

Não se trata de uma produção realizada em Tóquio, mas gostaríamos de iniciar este subcapítulo com Hiroshima Meu Amor (Hiroshima Mon Amour, 1959), do diretor francês Alain Resnais. Além da intensa relação explorada pelo filme entre o espaço urbano e os corpos, também podemos revisitar Hiroshima, cidade para sempre ligada à memória da violência da Segunda Guerra (1939-1945). Tão marcante na história do Japão, o fim desta guerra também é o marco de virada para a presença de diretores estrangeiros empenhados em filmar no país. 1RSULPHLURGLiORJRGR ILOPHRV GRLV DPDQWHV DLQGDQDFDPD³9RFrQmRYLX QDGDHP+LURVKLPD1DGD´GL]³HOH´ (ML2NDGD H³HOD´ (PPDQXHOOH5LYD UHVSRQGH ³(X YL WXGR´ (QTXDQWR D YR] off dela insiste no quanto viu Hiroshima, assistimos a imagens de itens de um museu criado para relembrar as trágicas consequências da bomba atômica. A câmera em movimento também penetra um hospital, ultrapassa portas, revela olhares diretos. Ela esforça-se por uma aproximação com aquelas UHPLQLVFrQFLDV ³R TXH PDLV XP WXULVWD SRGH ID]HU VH QmR FKRUDU"´ (OH VHP VH FRQYHQFHUUHEDWH³YRFrQmRYLXQDGD´ 14

Após 15 minutos de filme, depois das imagens dos corpos feridos da guerra, das peles dos amantes deitados na cama e da cidade em reconstrução, vemos pela primeira vez os rostos dos personagens: ele, arquiteto japonês, e ela, atriz francesa. Em Hiroshima Meu Amor assistimos à sobreposição de corpos, memórias e cidades (Hiroshima e a francesa Nevers). O que já foi visto, suportado, sofrido e vivido pelos personagens nunca se desliga das cidades, unindo os corpos ao espaço urbano. Hiroshima, espaço em reconstrução, carregado de histórias, se faz presente nos toques e nas conversas do casal. Na cama ou caminhando nas ruas, suas discussões são sempre permeadas por travellings de paisagens urbanas. E repetidamente presenciamos R FRQIOLWR VREUH D OHJLWLPDomR GR TXH IRL YLVWR (OH ³SRU TXH você quis ver tudo em +LURVKLPD"´(OD³PHLQWHUHVVD  2OKDUGHSHUWRSDUDDVFRLVDVpDOJRTXHGHYHVHU DSUHQGLGR´ 2XWUDVSHUJXQWDVDSDUHFHP³YRFrpFRPSOHWDPHQWHMDSRQrV"´³RQGHHVWDYDQR PRPHQWRGDERPED"´³DVFRLVDVQXQFDSDUDPjQRLWHHP+LURVKLPD"´$VHGXomRSHOR que é diferente, pelo outro que viveu a experiência impossível de ser repetida, aparece entrelaçada com os dilemas da memória ± o reconhecimento do que deve ser esquecido e a necessidade da lembrança. Se o primeiro diálogo do filme se dá entre lençóis, são nas ruas de Hiroshima que se dá o pedido dele para que ela permaneça na cidade. Em seguida, o homem japonês sai de quadro para dar vazão à solidão da figura feminina estrangeira na cidade. Em uma longa caminhada à noite8 (figs. 1.1 e 1.2), ouvimos os pensamentos dela e os conflitos sobre sua partida. Segundo Bruno, a arquitetura torna-VH ³XP FRUSR GH H[SHULrQFLD YLYLGR H DPDGR´XPD³PHWiIRUD± um meio de transporte ± para travHVVLDVDSDL[RQDGDV´  p. 242). Em última instância, um lugar pode ser desejado como é desejada uma pessoa. Corpos e cidades envolvem a mesma sedução, dão origem aos mesmos contos de amor. Nós os absorvemos com a mesma paixão: é possível literalmente se apaixonar por um lugar. Como mostra Hiroshima Meu Amor, cruzar as fronteiras de um corpo estrangeiro ± o corpo do outro tocado pela primeira vez ± pode ser comparado ao conjunto de emoções envolvidas em se aproximar à paisagem desconhecida. Um movimento libidinal se direciona a um lugar e nos deixa 8

Fazemos referência à sequência localizada aproximadamente entre 01:11:00 e 01:14:40.

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absorve-lo. É a mesmo movimento que nos liga ao corpo do outro. Os inícios da exploração são emocionantes, e assustadores. O desejo de união é misturado com a ansiedade de perder as fronteiras. (BRUNO, 2007, p. 242)

Como em uma digressão, suas reflexões são direcionadas ora a ele ora à cidade HPVL³'HYRUD-me. Deforme-PH´3DUDDPXOKHU+LURVKLPDWHULDRWDPDQKRFHUWRSDUD o amor, e ele a medida perfeita para o seu corpo. No filme, as emoções são geográficas. Sem dissociação entre o sentimento dos personagens e a construção das imagens da cidade, é na relação da câmera com as ruas que nos aproximamos dos sentimentos da mulher francesa.

Figura 1.1. Imagem de Hiroshima Meu Amor

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Figura 1.2. Imagem de Hiroshima Meu Amor

Com Hiroshima Meu Amor, Alain Resnais reforça a inserção do Japão em um imaginário pós-6HJXQGD *XHUUD 1R FDStWXOR ³3RQWDV GR 3UHVHQWH´ GH A ImagemTempo, Gilles Deleuze afirma: (Resnais) descobre o paradoxo de uma memória a dois, de uma memória a várias pessoas: os diferentes níveis de passado já não remetem a uma personagem, a uma mesma família ou a um mesmo grupo, mas a personagens completamente diferentes, como a lugares não-comunicantes que compõem uma memória mundial. (2007, p. 142)

Essa primeira aproximação, de Hiroshima Meu Amor, nos coloca alguns pontos importantes que aparecerão em maior ou menor grau, de diferentes maneiras, nos filmes de nossa pesquisa. De início, podemos elencar: as reminiscências da Segunda Guerra, a questão da alteridade, as construções afetivas no espaço urbano, a experiência da viagem e o processo enunciativo do diretor e dos personagens. Por meio das citações, também gostaríamos de iniciar uma reflexão sobre como questões que se faziam presentes no contexto de Hiroshima Meu Amor foram transformadas nas últimas décadas, chegando a ser questionadas em sua relevância, e até contraditas por alguns filmes que iremos investigar. Giuliana Bruno fala em

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paisagem desconhecida e ansiedade por perder fronteiras. Já Gilles Deleuze usa o termo lugares não comunicantes. Hoje, o Japão não nos parece uma paisagem desconhecida, nem um lugar não comunicante, e a palavra fronteiras pode ser explorada em mais camadas. Dentro do FRQWH[WRGHVVDSHVTXLVDROLPLWHHQWUH³HX6mR3DXOR´H³YRFr7yTXLR´SHUPHDGRSHOR FLQHPD SURYRFD SHUJXQWDV DLQGD H[LVWH R ³RXWUR ODGR GR PXQGR´" 9 ( D ³WHUUD GR VRO QDVFHQWH´"2-DSmRFRQWLQXDRRXWUR"+iDOJRGHPLPQRTXHQmRVRX" E mais, por que os personagens viajam à capital japonesa? Que imagens os cineastas buscam? Podemos citar dois autores que se dedicaram a algumas destas reflexões. Correspondente do jornal The Pacific Stars and Stripes quando jovem, o estadunidense Donald Richie escreveu muitos livros sobre o Japão, a cidade de Tóquio, onde morou até o fim de sua vida e, especialmente, o cinema japonês. Entre 1969 a 1972 foi curador de cinema do Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, onde realizou uma retrospectiva sobre os filmes de Yasujiro Ozu, hoje cineasta aclamado em todo o mundo. Reconhece-se Donald Richie como um dos mais importantes difusores do cinema japonês nas plateias internacionais e nos estudos de tal filmografia. SHXV HVFULWRV VREUHRSDtV ILFDUDP DPSODPHQWHFRQKHFLGRV 3DUDRDXWRU³XPD YH]GHQWURGR-DSmRDH[SHULrQFLDFRPHoDFRPXPDQRYDIRUPDGHYHUHGHHQ[HUJDU´ (1992, p. 11). O triunfo da forma permanece principalmente visual. (...) O Japão, assim, cria padrões para os olhos e os nomes são lembrados apenas se lidos. Ouvir é falível; o olho é certo. Japão é o país dos cartões telefônicos e das florestas de propaganda: é a terra do artista amador e da câmera. Todos podem desenhar, todos podem tirar fotos. O visual não é ensinado, é sabido. (1992, p. 19)

Merece destaque suas coletâneas de ensaios: A Lateral View (1992), Partial Views (1995) e Viewed Sideways (2011). No próprio título dos livros o autor faz questão de evidenciar que se trata de uma visão parcial, lateral, marcadamente pessoal. A partir

9 Em Orientalismo ± O Oriente como Invenção do Ocidente (2003), Edward Said, nascido em Jerusalém e SHVTXLVDGRUQRV(VWDGRV8QLGRVHOHJHXRPXQGRiUDEHSDUDLQYHVWLJDUFRPRDLGHLDGHXP³ORQJtQTXRH PLVWHULRVR´RULHQWHPXLWRIRUWHQDWUDQVLomRHQWUHRVpFXORHVHUYLXQmRDSHQDVSDUDUHSUHVHQWDURV povos orientais, como também para definir a própria identidade ocidental e legitimar seus interesses. Ainda que as teorias de Said se direcionem principalmente à região do Oriente Médio, gostaríamos de relembrar, de acordo com suas proposições, como o imaginário e o projeto estético acerca GR³GLVWDQWHH GHVHMDGR´2ULHQWHFRQWRXFRPQRo}HVGR2XWURFRPR³DTXHOHTXHHXQmRVRX´

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de textos da década de 1960 até os anos 2000, é possível acompanhar as mudanças tanto no Japão quanto no próprio autor. Quase sempre em primeira pessoa, as reflexões de Richie jogam com a intimidade e a distância que marcam sua vida no país. Consciente de que uma integração completa seria impossível, seu exercício direcionou-se a enxergar o que apenas quem é de fora poderia ver. A liberdade de um expatriado seria mais importante que o pertencimento. Sua proposta é fazer de sua condição de estrangeiro um privilégio: ³Mi TXH R DWR GH FRPSDUDU p R DWR GH FULDU HX HUD FDSD] GH DSUHQGHU VREUH DPERV (VWDGRV8QLGRVH-DSmR ´ S  Por meio de seus textos, Richie abordou diferentes aspectos da cultura japonesa com um olhar afiado, tentando se precaver de possíveis ingenuidades, consciente de suas potências e transparecendo seus entusiasmos, como no trecho sobre o visual de Tóquio: Coisas para olhar! Tóquio é uma cornucópia colocada de cabeça para baixo. Não se sabe para onde olhar primeiro. Se as pessoas dizem que em Tóquio sentem-se criança de novo, é porque a cidade é toda curiosidade, toda entusiasmo, toda olhos. Isto é então a exibição de Tóquio. Ela talvez seja mercantil, mas seu apelo vai além do financeiro. As coisas tornam-se, nesta pletora de sensações, separada de seus aspectos utilitários. Elas existem por elas mesmas: as cascadas de ideogramas, as réplicas plásticas de comida nas vitrines dos restaurantes, as fachadas, os andares construídos com aparelhos de televisão. (1992, p. 60)

Notavelmente diferente, o Japão sempre aparentou demandar modelos de FRPSUHHQVmR FRP PHWiIRUDV H SDUDGLJPDV j GLVSRVLomR GH ³NLWV WHyULFRV´ 1R HQVDLR ³,QWHUSUHWDWLRQVRI-DSDQ´ S RDXWRUHVSHFXODGuas razões para a existência de tais modelos: primeiro, a abertura relativamente recente para as relações internacionais, e segundo, que o próprio Japão teria aprendido a valorizar sua singularidade, mantendo certa exclusividade e manejando as distâncias. Já o francês Roland Barthes chamou o conjunto de suas reflexões disparadas no Japão na década de 1970 de O Império dos Signos (2007). Como o próprio título do livro indica, o autor não está interessado em comportamentos, psicologismos e domínios institucionais. Em textos curtos, ele discorre sobre a experiência de caminhar por Tóquio, a disposição dos alimentos nos pratos, a escrita com ideogramas, ou seja, sobre

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DVSHFWRV GD LQWHQVD ³WURFD GH VLJQRV´ HQFRQWUDGD QR SDtV 1R FDStWXOR ³1DTXHOH (VSDoR´HOHORcaliza seu interesse: Não olho amorosamente para uma essência oriental, o Oriente me é indiferente. Ele apenas me fornece uma reserva de traços cuja manipulação, o jogo inventado, me permitem µDIDJDU¶ D LGHLD GH XP VLVWHPD VLPEyOLFR inédito, inteiramente desligado do nosso. (2007, p. 8) O autor jamais, em nenhum sentido, fotografou o Japão. Seria antes o contrário: o Japão o iluminou com múltiplos clarões; ou ainda melhor: o Japão o colocou em situação de escritura. Essa situação é exatamente aquele em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras, uma sacudida do sentido, dilacerada, extenuado até o seu vazio insubstituível, sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. (2007, p. 9)

Para Barthes, pouco importa opor o Japão feudal ao Japão tecnológico. Protegido pelo desconhecimento da língua japonesa e pela distância com a sua língua PDWHUQD HVWDU QR SDtV HVWUDQJHLUR VHULD HP VXDV SDODYUDV XP ³UHSRXVR´ $OL SRGHULD entregar-VHDRGHOHLWHGD³VLWXDomRGHHVFULWXUD´HDRSUD]HUGRVREMHWRV³GHVHMiYHLV´ Parece-nos que estes questionamentos podem resultar em diferentes respostas, dependendo do filme abordado. Além de levarmos em conta a década em que cada filme foi produzido, os expedientes ativados indicam caminhos potentes de reflexão. Queremos explorar como os estereótipos e clichês visuais aparecem, se são problematizados ou reforçados, nos títulos. Por exemplo, um parque repleto de cerejeiras floridas poderia ser exaltado, omitido, ou até mesmo tratado como um elemento corriqueiro da paisagem. Partindo para uma contextualização histórica, devemos relembrar que, devastado pelas bombas atômicas, o Japão foi ocupado pelas Forças Aliadas, sob a liderança dos Estados Unidos, entre 1945 e 195210. Logo após a Ocupação, o país foi representado tanto como lugar de cicatrizes (Hiroshima), quanto espaço de intensas reconstruções (Tóquio). Nos dias 9 e 10 de março de 1945, 1,7 toneladas de bombas atingiram Tóquio, destruindo 16 quilômetros quadrados da cidade e matando cerca de 100 mil pessoas. Distritos como Asakusa tiveram metade de seus prédios demolidos. Em nossa pesquisa,

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O episódio da rendição japonesa foi tema da produção estrangeira O Sol (Solntse, 2005), do russo Aleksandr Sokurov.

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tomaremos a década de 1950, marcada pela força-tarefa de reedificação, como ponto de partida para a investigação sobre os filmes realizados por estrangeiros em Tóquio. Antes de adentrarmos nos filmes, gostaríamos de retroceder brevemente a fim de retomar o processo de encontro entre o Japão e o, por assim dizer, ocidente. Essa relação da cidade com o estrangeiro amplia-se para o país. Faremos este movimento buscando, a partir do século 19, esboçar traços da relação Japão-ocidente que podem contribuir para melhor compreendermos as representações contemporâneas. Em especial, tais acontecimentos históricos nos auxiliam a delinear as transformações no papel político, econômico e social de Tóquio. Assim, os filmes de que trataremos estarão inseridos em um contexto maior, onde são ativados, concomitantemente, tanto interesses dos próprios japoneses quanto dos estrangeiros. A referência inicial deste aspecto das relações internacionais japonesas é a Restauração Meiji, em 1868. Neste momento, a família real retomou o poder na figura do imperador Mutsuhito contra o domínio militar do xogunato Tokugawa. Buscar negociações, extrair vantagens e repensar as políticas de intercâmbios e imigrações eram movimentos que integravam o plano de modernização do país e de fim do sistema feudal após os 265 anos de período Edo (1603-1868), fase em que predominou a figura política do samurai. Apesar do primeiro encontro efetivo com o ocidente ter ocorrido em meados do século 16 no contexto das Grandes Navegações e das relações de comércio com países como Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda terem existido nos anos subsequentes (e sido suspensas durante a política de isolamento e fechamento dos portos do período Edo), apenas no século 19, em 1853, quando o Japão reabriu as portas comerciais, a entrada de estrangeiros no país ocorreu de forma consistente. Os esforços para a queda das barreiras partiu principalmente dos Estados Unidos, que na figura da esquadra comandada pelo Comodoro Matthew C. Perry, avançou ameaçadoramente a baía de Edo (atual Tóquio), em 1853. Com a queda do Shogunato dos Tokugawa o Japão inaugurou uma nova era HP VXD KLVWyULD FRQKHFLGD FRPR 0HLML ³*RYHUQR GDV /X]HV´ TXH VH estendeu de 1868 a 1912. Edo foi escolhida como sede da monarquia restaurada mudando seu nome pDUD 7{N\{ RX VHMD ³&DSLWDO GR /HVWH´ 2 JRYHUQR0HLMLEDVHRXVXDSROtWLFDQRFpOHEUH³-XUDPHQWRGRV&LQFR$UWLJRV´ feito pelo imperador Mutsuhito em março de 1868. Esse documento previa:

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(...) 5 ± Procurar o saber em todas as partes do mundo, a fim de alevantar as glórias do regime imperial. Comprovada a impossibilidade de um retorno à sua política de isolamento, o Japão, fundamentado nesses princípios, passou a perseguir a modernização de seu Estado, economia e sociedade. Havia uma clara percepção dos governantes japoneses que o futuro de seu país dependia, essencialmente, de uma política que criasse condições equivalentes às que existiam nas grandes potências ocidentais e num curto espaço de tempo. (KUNIYOSHI, 1998, p. 52)

Deste trecho, vale destacar o contexto em que Tóquio tornou-se a capital do país, ocupando o papel da atual Quioto. Já no início, o desenvolvimento da capital esteve inserido como parte dos esforços oficiais por renovação e modernização, assumindo e buscando influências estrangeiras para a criação de uma sólida comunidade urbana. O fortalecimento da imagem de Tóquio dizia respeito a uma representação física do poder, como símbolo de competição com outras nações. Alinhada com o discurso intelectual do período Meiji, que desenvolveu uma complexa combinação entre conceitos tradicionais japoneses e ideias progressistas ocidentais, Tóquio acumulava novas camadas visuais e distanciava-se da identidade da antiga capital Quioto. Como Mari Sugai afirma: ³Por um lado, Tóquio servia de mostruário para exibir os últimos modismos e invenções do ocidente; por outro, foi terreno de testes para estas inovações institucionais´ (2010, p. 9). Ou seja, a complexa mistura do novo e do antigo, que até hoje intriga o visitante estrangeiro no Japão, tem uma de suas origens no período Meiji. 8PGRVQRYRVVORJDQV³HVStULWRMDSRQrVFRPDSUHQGL]DGRRFLGHQWDO´SURSXQKD que havia algo a ser aprendido e apreendido para além das fronteiras nipônicas. Os países ocidentais representavam uma parte fundamental do processo de modernização. Missões oficiais foram enviadas à Europa e aos Estados Unidos para investigar aspectos das instituições políticas, econômicas e sociais que poderiam ser introduzidos no país. Simultaneamente, profissionais estrangeiros foram contratados para auxiliar a construção deste novo modelo, inclusive arquitetos. Neste período, as principais transformações arquitetônicas se deram na área comercial de Ginza, locação para alguns dos filmes que iremos pesquisar. Os anos de do período Meiji (1868-1912) formaram uma fase intensa de reformas em busca do progresso: promulgação da constituição, instituição do iene como

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moeda para o desenvolvimento do modelo capitalista, instalação do sistema de correio e de luz elétrica, profusão de veículos com rodas, obrigatoriedade do ensino elementar e fundação das universidades de Tóquio e de Waseda. Em destaque, o aumento de construções de estradas de ferro que, entre outras áreas, fomentou rotas de turismo. Viajar também seria uma atividade de lazer e, na década de 1890, foi criado o primeiro Hotel Imperial. Também foram empreendidas a guerra sino-japonesa (1894-1895) e a russojaponesa (1904-1905). Ambas almejavam consolidar o Japão como potência asiática aos olhos do continente e do mundo e foram levadas a cabo pelo exército formado por elementos oriundos de diversas classes, que substituiu as tropas de samurai. No caminho inverso, uma das manifestações culturais de tal período ficou FRQKHFLGD FRPR D ³PRGD GR -DSmR´ RX japonismo11. A arte de exportação nipônica marcada pelos templos, cerejeiras e montanhas cobertas pela neve - das gravuras ukiyoe WUDGX]LGDV FRPR ³UHWUDWRV GR PXQGR IOXWXDQWH´  Ge Katsushika Hokusai, Utagawa Kuniyoshi, Utagawa Hiroshige, influenciou diversas rodas artísticas europeias, como os impressionistas e pós-impressionistas e é, até hoje, parte do imaginário que rodeia o Japão. O gosto pelas matérias no estado bruto, a ausência da perspectiva central, os contornos bem delineados, as cores chapadas e as simplificações chamaram a atenção de nomes como os europeus Vincent van Gogh, Pierre Bonnard e Henri de ToulouseLautrec. Em 1888, foi fundado o jornal Le Japon Artistique, com versões em inglês, francês e alemão. Entre os temas retratados pelo ukiyo-e estão a natureza, as atividades domésticas, o dia a dia das cidades e os retratos de mulheres. Ao revisitarmos essas gravuras, podemos identificar alguns elementos que formaram a iconografia do país e que se mantém presente nas representações de hoje. Majoritariamente filmado no espaço urbano, Encontros e Desencontros tampouco prescinde destas paisagens. Charlotte (Scarlett Johansson) contempla o monte Fuji da janela de trem que a leva a Quioto e inclui o parque florido de cerejeiras em seus passeios. 11

³Na Europa e na América, o reencontro configurou-se como uma redescoberta de um povo e de uma cultura por demais insólitos para os padrões conhecidos na época. (...) Esse encantamento com o Japão, em especial com o que eles denominavam de Japão artístico, deu origem a um fenômeno cultural no Ocidente, na segunda metade do século XIX e início do século XX, chamado Japonismo´ .81,
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