Tormes em Mão Dupla: um estudo de Monumentos de Palavras, de Osmar Pereira Oliva

June 15, 2017 | Autor: Leonardo Palhares | Categoria: Eca de Queiroz, Eça de Queirós, Osmar Pereira Oliva, Monumentos de Palavras
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS Centro de Ciências Humanas Departamento de Comunicação e Letras Curso de Letras — Português

Leonardo Tadeu Nogueira Palhares

TORMES EM MÃO DUPLA: UM ESTUDO DE MONUMENTOS DE PALAVRAS, DE OSMAR PEREIRA OLIVA

Montes Claros — MG Junho/2015

Leonardo Tadeu Nogueira Palhares

TORMES EM MÃO DUPLA: UM ESTUDO DE MONUMENTOS DE PALAVRAS, DE OSMAR PEREIRA OLIVA

Monografia apresentada ao curso de Letras da Universidade Estadual de Montes Claros como exigência para obtenção do grau de licenciado em Letras, com habilitação em Português. Orientadora: Profª Drª Ivana Ferrante Rebello

Montes Claros — MG Junho/2015

RESUMO Este estudo traz como corpus seis poemas do livro Monumentos de Palavras, escrito por Osmar Pereira Oliva e publicado em 2010. A objetivar os vários diálogos que podem ser resgatados com as leituras das poesias selecionadas — "A Casa do Silvério", "A Casa do Eça", "O Caminho", "A Ermida", "O Douro" e "Último" — trabalhamos com a hipótese de que o eu-lírico recorre a uma via de mão dupla em seus escritos, isto é, implica em uma pluralidade de intenções advindas de um mesmo discurso. Para investigar esta possibilidade, analisamos: a condição do viajante e suas relações com a literatura, Portugal e Eça de Queiroz; a relação deste autor com a coletânea analisada, através do romance A Cidade e as Serras, bem como algumas inferências e discussões da temática da "civilização" que permeiam ambas as obras; e a busca de um entendimento do que seriam os "monumentos de palavras", a focar no que o eu-lírico contemplaria como um "monumento", bem como ensaiar uma aproximação entre a escultura e a poesia, duas artes que podemos insurgir a partir do título do livro em análise. Palavras-chave: Eça de Queiroz. Mão Dupla. Monumentos de Palavras. Osmar Pereira Oliva.

ABSTRACT This study has as corpus six poems from the book Monumentos de Palavras, written by Osmar Pereira Oliva and published in 2010. The aim of the various dialogues that can be recovered with readings of selected poems – “A Casa de Silvério", “A Casa do Eça", " O Caminho ", "A Ermita", "O Douro " and “Último "- We work with the hypothesis that selflyrical uses a two-way road in his writings, that is, implies a plurality intentions arising from the same speech. To investigate this possibility, we analyze: traveler condition and his relationship with literature, Portugal and Eça de Queiroz; The relationship between the author and the analyzed collection, through the novel A cidade e as Serras and some inferences and thematic discussions of "civilization" that involves the both works; and the search for an understanding of what would be the "Monumentos de palavras (Monuments of words)," It is focusing on the self-lyrical contemplate as a "monument" and rehearse an approximation between sculpture and poetry, two arts that we can rise up from the title of the book under review. Key-Words: Eça de Queiroz; Two Way Road; Monumentos de Palavras; Osmar Pereira Oliva.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8 1 — DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE MONUMENTOS DE PALAVRAS ...................... 11 1.1 — DO EU LÍRICO: VIAJANTE OU TURISTA? .................................................. 14 1.2 — DA VIAGEM DE MÃO DUPLA: À PORTUGAL, À LITERATURA DE EÇA, AO INTERIOR DE SI MESMO ............................................................................. 18 2 — VIAGENS ENTRE AS CIDADES E AS SERRAS ..................................................... 22 2.1 — A PRESENÇA DA OBRA DE EÇA .................................................................. 22 2.2 — AS MARCAS DE EÇA ....................................................................................... 26 2.2.1 — O NARRADOR E O EU LÍRICO............................................................... 26 2.2.2 — OS ENTULHOS DA CIVILIZAÇÃO ........................................................ 30 2.2.3 — A NATUREZA .............................................................................................. 31 2.2.4 — A IMPOSSIBILIDADE DE ESCAPAR DA CIVILIZAÇÃO .................. 33 3 — DA PALAVRA TALHADA: OS MONUMENTOS DE PALAVRAS ....................... 36 3.1 — OS MONUMENTOS QUE O VIAJANTE VÊ.................................................. 37 3.2 — OS MONUMENTOS POÉTICOS ..................................................................... 39 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 43 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 45

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIG 01: mapa da possível trajetória do eu lírico de Monumentos de Palavras .............. 13

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INTRODUÇÃO

Monumentos de Palavras, livro abordado em sua parcialidade neste trabalho, foi lançado em 2010 por Osmar Pereira Oliva, escritor e professor universitário mineiro, nascido em Brasília de Minas. Antecedido por outros quatro livros — As Esquinas dos Homens (2003), Canção Oblíqua (2004), Poemas do Abismo & Alguns Ecos de Minas (2008) e Livro Sem Destino (2010) — este integra a produção ficcional publicada pelo autor ao longo da década de 2000. Além da proficuidade em sua produção, igualmente vemos, no conjunto de obras do autor, uma multiplicação de vários diálogos e discursos, conforme Márcio Adriano Silva Moraes e Ivana Ferrante Rebello asseveram: "sua escrita desafia leitores a assumirem um pacto ficcional que os levará a uma pluralidade de discursos, de linguagens, de gêneros e de vozes." (MORAES e REBELLO, 2013, p. 3). Esse fato pode ser confirmado também no contexto do livro Monumentos de Palavras: por meio da contracapa, o autor informa que esta produção foi concebida em uma viagem a Portugal, ocasião em que visitou a Ilha da Madeira e a "Quinta de Tormes". No livro, o eu lírico destaca sua impressão acerca dos monumentos, tanto os referentes a figuras históricas — como Simon Bolívar e Cristóvão Colombo — bem como àqueles dedicados a personagens pouco reconhecidos — a Puta de Santa Cruz, Madre Mary Jane Wilson, dentre outros. Além dos poemas sobre as estátuas, há também as composições feitas a partir da leitura de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz (cf. OLIVA, 2010). Sobre estes poemas, inspirados no autor lusitano, é que se dedica este estudo monográfico. Embora a inspiração em Queiroz tenha sido declarada, não há, nas poesias analisadas, menções claras de que o eu lírico seja o próprio autor. Estabelece-se, desde o início do livro, um jogo de entremostrar-se e esconder-se, que evidencia o distanciamento entre o autor e o eu lírico, mas que, ao mesmo tempo, insinua com clareza as fricções entre a voz autoral e a entidade poética, que viaja por Portugal. Essa “confusão” foi destacada nesta leitura, pois, em alguns momentos, foi quase impossível desvincular as marcas de autoria, com seus traços autobiográficos, da entidade da ficção, que é, afinal, o que norteia o trabalho de leitura crítica e análise literária. Em outro estudo, MORAES e REBELLO (2014) afirmam que "Osmar Oliva é um escritor cuja literatura assume o seu papel reflexivo, dispondo um “Eu” (autor) diante de um “Outro” (mundo)." (MORAES E REBELLO, 2014, p. 3). Podemos perceber, em consonância a tal reflexão, essa multiplicação de discursos como uma tentativa de dialogar com as mais variadas linguagens e culturas. O foco de Monumentos de Palavras, em específico nos seis

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poemas que serão objetos desta análise, é sobre um eu lírico que, ao caminhar pela "Quinta de Tormes", entra em conflito sobre o local que tinha imaginado, conforme o que a imaginação lhe ditara, durante leitura do romance de Eça de Queiroz, com o local pelo qual caminha e que encontra dominado pela civilização. Resultam dessa reflexão seis poemas, os quais nós estudamos nesta monografia, sob o enfoque de "relatos de viagem", imbricados ao gênero poético. Essa curta introdução ao livro Monumentos de Palavras poderia, por si só, dar margem a várias perspectivas de trabalho comparativo — com base em discussões semiológicas, a respeito dos símbolos entre as obras etc1. No entanto, tais percepções poderiam estender este estudo, para algo que resultaria num trabalho mais extenso e profundo, convenientemente delegado a uma pesquisa futura. Ressalta-se, ainda, o caráter de estudar um autor contemporâneo cuja fortuna crítica ainda é escassa. Esse sempre foi um propósito individual, que procuramos seguir neste trabalho. Devido a isso, apresentamos, nesta monografia, breves considerações sobre as poesias aqui analisadas de Osmar Pereira Oliva, distribuídos em temáticas, que achamos convenientes, por nos parecerem didaticamente melhor distribuídas. Ainda que estejamos conscientes dos perigos de tais divisões, sobretudo em estudos sobre literatura, em que as fronteiras são tão difusas e férteis, optamos por seguir uma determinada ordem. Desse modo, dividimos este trabalho nos seguintes capítulos, conforme se verifica, a seguir: No primeiro capítulo — "Das Considerações sobre Monumentos de Palavras" — apresentamos a obra de modo geral, bem como aduzimos o eu lírico como um viajante e não um turista. Como esse viajante-poeta segue um roteiro imaginado pelas leituras do romance de Eça de Queiroz, optamos por considerar as marcas de leitura (várias) e de imaginação do eu lírico, a partir da imagem da “escrita da mão dupla”, criada por nós, e decorrente das reflexões advindas da leitura do livro de Oliva. No segundo capítulo — "Viagens entre as Cidades e as Serras" — a investigação passa pela identificação da presença de Eça de Queiroz em Monumentos de Palavras, bem como pela percepção das marcas do escritor lusitano pela poética composta por Osmar Oliva. No terceiro capítulo — "Da Palavra Talhada: os monumentos de palavras" — estudaremos a aproximação da proposta da obra a partir do que sugere o seu título. Procuramos destacar os "monumentos" que o viajante vê e os "monumentos" poéticos,

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Aqui nós fazemos referência ao conceito de semiologia proposto por Charles Sander Pierce e investigado por Lúcia Santaella em O que é Semiótica (1983). Por uma opção de estudo, não aprofundarmos em questões semióticas neste estudo. Sobre a semiótica, cf. SANTALELA (1983).

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compostos pelo sujeito poético ao longo de sua viagem. Como aporte teórico às reflexões aqui apresentadas, utilizamos os estudos de ONFRAY (2009), como ponto para a teoria dos viajantes, assim como MEIRELLES (1999), MENDES e BUENO (2013), dentre outros. Sobre a "civilização", analisamos sob o viés de FREUD (2007), bem como dos observadores desta mesma temática na obra de Queiroz, como GARMES (2004), OLIVA (2001), entre outros. Para discutir os "monumentos", trouxemos FARIA (2008), ALMEIDA (2010), KRAUSS (1998), além de outros pesquisadores para a discussão. Nas "Considerações Finais" retomamos alguns dos pontos importantes do estudo ora proposto, além de apontar as contribuições desta análise e a necessidade de um estudo contínuo da poesia de Oliva.

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1 — DAS CONSIDERAÇÕES SOBRE MONUMENTOS DE PALAVRAS O fresco rumor do mar E uma breve brisa me enlevam. Esqueço-me de tudo: Motores, passos, gente, Enquanto o plátano Deixa deslizar, suavemente, Em passos de dança, Uma folha seca, Acolchoada pelo vento. […] Cadência, sequência, Invisível linha vertical, Entrecortada de milhares de caídas, Até repousar no chão, Certa de que continua caindo… Uma folha seca de plátano Para de cair Quando o chão lhe esbarra? (Osmar Oliva, "Natureza morta").

Autor de seis livros de poesia — As Esquinas dos Homens (2003), Canção Oblíqua (2004), Poemas do Abismo & Alguns Ecos de Minas (2008), Livro Sem Destino (2010), Livro de Gênesis (2014), além do livro aqui em estudo — e um de contos — Cartas para Mariana (2012) — Osmar Pereira Oliva é dono de uma grande quantidade de textos literários publicados em pouco mais de dez anos. Tal esforço é observado por Anelito de Oliveira (2010), em prefácio para Livro Sem Destino: "Realmente, não é pouca coisa num país onde publicar ainda permanece um desafio, sobretudo publicar poesia." (OLIVEIRA, 2010). Oliveira ainda ressalta, em sua análise, um crédito para tal produtividade "um incessante desejo de saber sobre o “é” das coisas, desejo que se tem apresentado como a própria razão de ser da obra." (OLIVEIRA, 2010). Além disso, Anelito de Oliveira também percebe Monumentos de Palavras pelo fulcro da história2. Tal pressuposto será considerado posteriormente neste estudo. Este é um dos pouquíssimos registros críticos que se tem a respeito do livro aqui analisado. Além destes, há as discussões já feitas por nós anteriormente, nas quais procuramos ressaltar uma "decepção”, advinda da imaginação literária, e uma "climatização poética" nos poemas que aqui serão analisados, bem como buscamos traços de "tradição" e de "tradução" 2

Há uma diferença entre o prefácio publicado em Livro Sem Destino e o publicado no blog de Anelito de Oliveira, que justamente é esta menção a Monumentos de Palavras como uma obra pautada pela "História". Esta menção aparece no blog, enquanto que a que se registra no livro de Oliva — que foi publicado no mesmo ano do livro o qual discutimos nesta monografia — ela é ausente. Sobre esta problematização de Oliveira a respeito de Monumentos de Palavras como um livro regido sob o signo da "História", abordaremos com mais detalhes no capítulo seguinte desta monografia.

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nestes mesmos versos3. Diferentemente das demais obras de Oliva, esta é uma que se abstêm de prefácio e/ou notas de orelha4, com informações sobre a escrita. Nessa coletânea de poemas consta uma informação do próprio autor sobre como ele vê a própria obra, onde percebemos um esforço de relato da gênese literária. Do que se trata o livro? Composto por vinte e três poemas, a obra se divide em duas partes: uma primeira, composta por seis poemas, nos quais percebemos algumas relações com o romance A Cidade e as Serras, escrito por Eça de Queiroz5 (1845-1900). Tal proposição também é sugerida pelo próprio autor na contracapa do livro: “Os poemas da primeira parte deste livro trazem a minha leitura de A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, a partir da minha visita à Quinta de Tormes6, cenário que serviu ao romancista para a composição dessa narrativa.” (OLIVA, 2010). A segunda parte seria, de certo modo, o "grosso" do livro: composta por dezessete poemas, com exceção de dois: “Madeira” e “Natureza Morta”. Vemos a presença dos poemas propriamente ditos, posicionados na página esquerda, porém cada uma das poesias, na respectiva página direita, é acompanhada da fotografia da estátua sobre a qual os versos fazem alusão. Contudo, o estudo desta segunda parte não será objeto deste estudo monográfico, que o posterga, então, para um trabalho futuro7. Tal divisão em duas partes, é válido ressaltar, não acontece dentro da obra: além de o autor postular isto na contracapa, aqui o fazemos para que haja uma melhor condução metodológica neste trabalho monográfico e uma compreensão "geográfica" de nosso trabalho. Enquanto a primeira parte, segundo o que propõe esta leitura, retrata o eu lírico a passear por um local chamado Tormes, vemos, na segunda, a voz do poema relatar as impressões e seus sentimentos sobre as estátuas da Ilha da Madeira, ambos os locais integrantes do país de Portugal. Logo, nossa pretensão nesta monografia é propor algumas considerações sobre a 3

Cf. PALHARES (2013) e PALHARES e REBELLO (2014). Insere-se neste contexto Cartas para Mariana, a qual também não contém nenhuma opinião crítica sobre a obra dentro desta. 5 Embora atualmente os estudiosos da obra queirosiana recorram à grafia "Queirós", recorreremos neste estudo a forma "Queiroz" para o sobrenome do romancista português, a fim de evitar confusões, bem como ser a forma empregada na versão da obra aqui utilizada, e também por ser a mesma utilizada por Oliva na contracapa do livro de poemas. 6 Embora o autor tenha se referido aqui como "Quinta de Tormes", o nome verdadeiro do local é Quinta de Vila Nova, conforme diz o site da Fundação Eça de Queiroz, a respeito da Casa do Silvério: "É na Quinta de Vila Nova, a sua Tormes em "A Cidade e as Serras", […] que se situa a CASA DO SILVÉRIO, Casa de Campo destinada a quem quer usufruir do contacto com o mundo rural queirosiano.". Para saber mais: http://www.feq.pt/casa-de-campo.html 7 Apesar de não ser declarada esta divisão em partes dentro da obra, acatamos esta sugestão do autor na contracapa como uma forma de delimitar nossos estudos e facilitar o entendimento da análise deste livro. 4

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passagem do enunciador poético nesta obra por Tormes. Tormes, na Realidade8, não é um local existente em Portugal. De acordo com o site da Fundação Eça de Queiroz, o local que serviu de inspiração para o cenário do romance queirosiano seria a Quinta de Vila Nova, a 400 km da capital, Lisboa9. Os títulos de cinco poemas que compõem a primeira parte a ser estudada — “A Casa do Silvério”, “A Casa do Eça”, “O Caminho”, “A Ermida” e “O Douro” — aludem a lugares turísticos desta região de Portugal. Esses cinco poemas, conforme ressaltamos, seguem uma ordem que está ligada ao roteiro do trajeto da viagem empreendida pelo sujeito lírico, conforme podemos observar no mapa a seguir:

Figura 01: mapa da possível trajetória do eu lírico de Monumentos de Palavras: a Fundação Eça de Queiroz abrangeria o local dos poemas "A Casa do Silvério" e "A Casa do Eça"; o trajeto da Fundação até a Estação da Ermida representaria o poema "O Caminho"; A própria estação seria uma referência ao poema "A Ermida", bem como o Rio Douro, à frente da estação, daria nome ao quinto poema. "Último", a tirada final da primeira parte, seria de frente à estação da Ermida, a contemplar abaixo do Rio Douro. As coordenadas deste local são: 41°07'38.29"N 7°58'30.92". Fonte: GOOGLE EARTH-MAPAS. Disponível em: mapas.google.com. Acesso: 01/04/2015 10h03min

Logo, podemos deduzir que os poemas de Monumentos de Palavras seguem, em sequência, uma rota de um caminho geográfico, o que sugere a leitura dos poemas como relatos de viagens. Em consequência disso, pressupõe-se que os versos em análise são as impressões de um estrangeiro que, em viagem a outra terra, registra as suas percepções sobre o local visitado. Tais sensações são registradas em forma de texto poético e por meio das 8

A partir daqui, iremos referir a "Realidade", em maiúscula, como o nosso plano físico, real. As menções a "realidade", em minúscula, trataremos de pressupor dentro do plano literário, seja em A cidade e as Serras, seja em Monumentos de Palavras. 9 Para maiores informações: http://www.feq.pt/index.html

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fotografias que os acompanham, de modo a possibilitar ao leitor, simultaneamente, dois códigos semióticos distintos. Acerca dos poemas, que constituem o corpus selecionado para este trabalho, ressaltase que constituem uma matéria híbrida, composto por duas formas textuais: poema e narrativa. Podemos observar isso, pois além de tais relatos serem estruturados em versos e estrofes, os locais por onde o eu lírico passa podem ter neles considerado, de acordo com Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1986), “o dado narrativo, que pode fazer parte da estrutura de um poema lírico, que tem como função única evocar uma situação íntima, revelar o conteúdo de uma subjetividade” (AGUIAR e SILVA, 1986, p. 228.). Constituídos de versos brancos e livres, os poemas de Monumentos de Palavras, moldados sob o signo do olhar de um forasteiro, demonstram que a emoção da voz do poema, em respeito à visita ao local, servem mais a uma vontade de expressão do que a uma responsabilidade estética. Isto permite, assim, melhor expressão dos sentimentos e angústias do eu poético10. Nos dois subcapítulos seguintes, realizaremos algumas considerações a respeito do eu lírico de Monumentos de Palavras. 1.1 — DO EU LÍRICO: VIAJANTE OU TURISTA?

Nossa leitura será balizada pelo pressuposto de que o eu lírico em Monumentos de Palavras atua como um estrangeiro que emprega seus relatos da viagem a "Tormes" através da poesia. Contudo, um questionamento pode ser evocado a respeito de sua condição: trata-se de um viajante ou de um turista? Tomamos o primeiro como aquele que realiza uma viagem, que, de acordo com o dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira (2001), significa um "ato de ir a um outro lugar mais ou menos afastado" (FERREIRA, 2001, p. 710). Já o segundo, entendido como aquele que faz turismo, temos este termo conceituado como "viagem ou excursão feita por prazer, a locais que despertam interesse." (FERREIRA, 2001, p. 692). Para deixar mais clara — e justificada — a condição da voz do poema na obra em estudo, nós recorremos a uma crônica de Cecília Meireles (1999), intitulada "Roma, turistas e viajantes", na qual a autora traz a seguinte proposição quanto ao termo turista:

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Kate Hamburger (1975) assevera que “não é necessário, logicamente, que a forma em que o sujeito “se exprime” corresponda às exigências estéticas de uma formação lírica artística. Aí temos maus poemas.”. (HAMBURGER, 1975, p. 173).

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Grande é a diferença entre o turista e o viajante. O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este mundo com a sua fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas, como o mundo, com a curiosidade suficiente para passear de um ponto a outro, olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma agradável fluidez, sem apego nem compromisso, uma vez que já sabe, por experiência, que há sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a véspera. (MEIRELES, 1999, p. 101)

E sobre o viajante, assim pontua Meireles: O viajante é a criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro — um futuro que ele nem conhecerá (MEIRELES, 1999, p. 101).

As considerações de Meirelles já foram alvo de alguns apontamentos da crítica. Karla Renata Mendes e Raquel Illescas Bueno, ao usarem das definições cecilianas, argumentam que o turista é aquele que desfruta na excursão da busca por prazeres "materiais (um hotel confortável, souvenires, fotografias, compras)", enquanto que o apelo do viajante é focado nos apelos de ordem "espiritual (beleza, aprendizado, contemplação)" (MENDES e BUENO, 2013, p. 226). As autoras ainda propõem que, à categoria dos viajantes, podem ser relacionadas às condições de “poeta” (artistas), “historiador”, “sábio” e “santo”, os quais seriam aqueles viajantes dispostos a fazer sacrifícios de toda ordem, a renunciar, inclusive, ao seu próprio bem-estar. (cf. MENDES e BUENO, p. 227). Essa distinção entre viajante e turista foi o ponto de partida adotado neste trabalho de pesquisa para auxiliar na leitura dos poemas selecionados. Para refletirmos sobre a atuação do eu lírico em Monumentos de Palavras, abordaremos o segundo poema da obra, intitulado "A Casa do Eça": Tenho pressa de retornar, Porque a civilização está em todo o lugar: O vinho verde industrializado, etiquetado Não borbulha mais na botelha de barro. Assim como as geleias, Compotas rotuladas: E a caixa barulha, registra, soma... Nada em centos, tudo em inteiros, Euros tantos, tantos! E ainda ouço: a alma do Jacinto, coitado -Repousa? Deita? Rola? Estrebucha? No paraíso? … no passivo!!! (OLIVA, 2010, p. 13)

Nos dois primeiros versos, lê-se claramente a rejeição do sujeito poético ao que vê. Seu olhar de viajante, afeito às lembranças, experiências e percepções, é repelido pela

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civilização crescente. Podemos observar que o eu lírico recorre a um processo enumerativo para destacar as mudanças ocorridas no tempo e pelo avanço da civilização: o vinho verde já não é mais artesanal; é industrializado e não precisa mais permanecer na botelha de barro para borbulhar e assim adquirir seu sabor característico. As geleias também são rotuladas, perdendo, assim, a característica do produto caseiro. A caixa, em referência, é a caixa registradora, prática e fria, que executa somas e registros de compras, não funciona mais em escudos portugueses, pois os centavos eram referenciados pelo termo centos. Os euros, nova moeda, são também o signo de um Portugal que entra, emergentemente, nos quadros civilizatórios europeus, de modo a perder certas peculiaridades distintivas e a feição d’outros tempos, que o viajante procura. Aqui podemos ver também a preocupação do eu lírico com o aumento do custo de vida, onde os preços são “tudo em inteiros”, quer dizer, têm um custo maior do que simples centos. Além disso, a ambiguidade do termo “inteiros” destaca uma espécie de rejeição do eu lírico sobre o valor – generalista e capitalista – que recai sobre as coisas, dando a entender que as minúcias, os detalhes, são desprezados, numa era de civilização e consumo. Na segunda estrofe, podemos ver que a voz do poema emprega novamente em sua linguagem um processo de enumeração, ao imaginar o que a alma de Jacinto11 sentiria, caso se deparasse com todo esse desenvolvimento da civilização no mundo moderno: se ele estaria tranquilo, calmo, inquieto ou hostil, referente a cada um dos questionamentos feitos no segundo verso. Esse processo de enumeração sugere, em sequência ao sentido capitalista e materialista demonstrado na estrofe anterior, que tudo no mundo civilizado se contabiliza e se conta, na mesma proporção em que se perdem os sentidos, a memória, os personagens. No terceiro verso da segunda estrofe, o eu lírico pergunta se a alma de Jacinto “Repousa? Deita? Rola? Estrebucha?”. Este emprego de uma série de verbos com sentidos negativos, reproduz uma espécie de gradação corrosiva e ferina, pois a pergunta seguinte “no paraíso?”, não apresenta o sentido de tranquilidade e sossego. A exclamação “... no passivo!!!”, conclusiva e sarcástica, denota tanto a sucumbência de Jacinto ao avanço civilizatório, como o império do capital sobre as relações humanas. Essa conclusão se sustenta no sentido dúplice do vocábulo “passivo”, que pode ser advérbio e indicar o modo como está Jacinto, ou seja, passivamente, como pode denotar o substantivo “passivo”, próprio da contabilidade, que significa o saldo de obrigações devidas ou contas a pagar. Nas duas conotações, portanto, o sentido que se imprime aos versos é de perda.

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A respeito da alusão ao Jacinto personagem de A Cidade e as Serras, discutiremos no capítulo seguinte.

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A forma de como os versos são expressos — presença de exclamações, interrogações e reticências — pode denotar o ritmo impresso pelo eu lírico em tom atordoado, alucinado, com o ritmo imposto pela civilização, que, na concepção de Octavio Paz (1994), é o tempo dos que convivem com o clima citadino, pautado pela multidão, anúncios luminosos, bondes e automóveis, "que cada noite se transforma num jardim elétrico" (PAZ, 1994, p. 43-44). Toda esta intensidade de um clima citadino, movido pelas aglomerações, pela eletricidade e pelos barulhos, soa consonante aos “euros tantos, tantos”, que barulham, somam, registram, e compõem a contemporânea sinfonia do processo civilizatório pelas serras lusitanas. Para concluir, não pode passar despercebido ao leitor a similaridade fonética do nome “Jacinto”, personagem de Eça de Queiroz, como indica o próprio texto, da expressão “já sinto”, sugerida pelos versos. Interpretação plausível, posto que o eu poético viaja em busca de imagens e personagens, que ele conhecera por meio das leituras das obras ecianas. Desfeitas essas imagens, o eu que se manifesta nos versos rola e estrebucha, para manifestar seu desencanto e decepção. Portanto, a condição de viajante do eu lírico de Monumentos de Palavras permite que ele perceba o caos que a civilização impõe, de maneira corrosiva, ao local visitado. Michel Onfray (2009) contribui para essas reflexões, ao comentar que O viajante concentra (…) o gosto pelo movimento, a paixão pela mudança, o desejo ardoroso de mobilidade, a incapacidade visceral de comunhão gregária, a vontade de independência, o culto da liberdade e a paixão pela improvisação de seus menores atos e gestos; ele ama seu capricho mais do que a sociedade na qual vive à maneira de um estrangeiro, coloca sua autonomia bem acima da salvação da cidade, que ele habita como ator de uma peça da qual não ignora a natureza de farsa. Longe das ideologias da aldeia natal e da terra, do solo da nação e do sangue da raça, o errante cultiva o paradoxo da forte individualidade e sabe se opor, de maneira rebelde e radiosa, às leis coletivas. (ONFRAY, 2009, p. 14).

Coordenado com o pressuposto de viajante pensado por Meireles, Onfray postula uma oposição entre o nativo e o estrangeiro: enquanto aquele está ligado ao compromisso com as funções sociais de sua sociedade (como acordar, ir estudar ou trabalhar, comer, tudo estabelecido em determinados horários), o viajante apresenta total liberdade para desfrutar daquela cultura diferente da sua, uma vez que, na condição de visitante, possui mais tempo para olhar, para observar, para conceber como o povo do país visitado preza pelos seus costumes, por suas tradições etc.. No caso específico do poema analisado, vemos que o embate do eu poético é entre a ideia que ele concebe de lugar – ideia que ele maturou em suas leituras e imaginação – e o que ele encontra. Assim, podemos entender que o eu lírico de Monumentos de Palavras trata-se,

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portanto, de um viajante que não só visita diversos locais de Portugal, mas também se empenha em levar para os lugares visitados sua bagagem cultural, sua imaginação e seus anseios. Ao registrar suas impressões de viagem, ele emprega uma linguagem coerente com a sua visão: versos métricos e rimados não condizem com caos urbano da civilização e com seu estado de espírito. A renúncia a uma lírica tradicional que, para Maria Lúcia Aragão, nega "à coerência gramatical, lógica e formal, pois necessita se libertar para poder ser mais autenticamente momentânea” (ARAGÃO, 1985, p.75) é significativa. Neste caso, o momento turbulento e negativo do passeio, na voz do poeta, enquanto viajante, pelas serras portuguesas, segue seu curso ao sabor dos sentimentos do eu lírico. As imagens do presente desorganizam as imagens do passado; as imagens do Real desorganizam as imagens ficcionais e os versos, com monumentos impalpáveis, seguem a (des) ordem dos sentimentos. 1.2 — DA VIAGEM DE MÃO DUPLA: À PORTUGAL, À LITERATURA DE EÇA, AO INTERIOR DE SI MESMO

Discutido o entendimento do eu lírico de Monumentos de Palavras não como um turista, mas como um viajante, e considerando que este não é como alguém que faz da viagem um mero efeito de distração, mas sim de aproximação, de entendimento, de reencontro com a cultura estrangeira com a qual tem contato, podemos pressupor que tal viagem não ocorre apenas no que tange à visita do ser a um lugar físico — no caso, o país de Portugal — mas também incorre na viagem a outros tipos de planos, como o literário, conforme pode ser notado na constante evocação do romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, ao longo dos poemas aqui analisados. Além disso, o viajante em questão deixa evidentes que sua excursão é também íntima, a voz do poema busca a si mesma, a denotar um processo de viagem pelo seu interior. Para demonstrar tais percepções, atentaremos para o poema que abre a obra, "A Casa do Silvério":

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Instalei-me no mais alto casario de Tormes Sozinho à sombra das eiras: O vinhedo verde de agosto E uma saudade que ninguém entende, A não ser as frias lages12 de humilde casa”. “Vultos do Silvestre, do Calisto, do Jacinto, do Zé Fernandes Me tangem a alma e o coração, Nestas serras tão devastadas e tristes Que nada têm daquela ficção. (OLIVA, 2010, p. 9)

A "Casa do Silvério", em nossa Realidade, é uma casa de campo, que, gerida pela Fundação Eça de Queiroz, objetiva promover "regularmente ações de animação cultural e turística e proporciona visitas à Casa de Tormes onde se encontra patente o espólio mais significativo do escritor."13. É perceptível, desde o início do poema, o quanto essa visita provoca a sensibilidade do eu lírico: sensações visuais, tácteis e auditivas compõem as impressões do poeta-viajante. Tal proposta de emulação sensorial de um ambiente queirosiano pode ser vista como um elemento que implica a construção poética de Oliva, uma vez que, a partir de sua decepção por causa do local ("Nestas serras tão devastadas e tristes/Que nada têm daquela ficção"), este nega justamente o que a propaganda turística da "Casa de Silvério" oferece. São sensações e sentimentos desconfortáveis, evocados pelo campo semântico que compõe os versos: sozinho, saudade, frias, devastadas e tristes. Os versos da primeira estrofe nos trazem algumas características a partir das quais reafirma ser o eu lírico como um viajante: este deslocou necessariamente de algum lugar, para se hospedar na casa mais alta de um local denominado Tormes, e realiza uma espécie de ritual para realizar a sua contemplação – está solitário, protegido pela sombra das eiras, a ver a paisagem, e a nutrir um sentimento que se ajusta à estrutura física do local. Rumo ao interior de si mesmo, o eu lírico propõe o próprio isolamento para sua experiência de contemplação: a ida ao "mais alto casario", "sozinho a sombra das eiras"; longe do barulho, ele mergulha em um processo de reflexão que "ninguém entende", a não ser o próprio lugar, que parece comungar de sua desolação íntima. Os vultos, as alucinações das pessoas citadas pelo eu lírico, podem ser entendidos como pertencentes ao contexto daquele local. Para o enunciador dos versos, tais vultos evocam-lhe os mais pesados sentimentos diante da natureza assolada, que não se assemelha, de forma alguma, à ficção de Eça de Queiroz. 12

O emprego de "lages" com "g" suscitou-nos uma série de questionamentos a respeito de sua colocação. A fim de evitar uma discussão que conflite com a continuidade da discussão principal, e aquiescendo com a possibilidade de ser um emprego estilístico, atribuiremos aqui o significado do termo "laje", empregado com "j", por causa da semelhança da pronúncia e da ortografia, que, de acordo com FERREIRA (2001): "obra contínua de concreto armado, a qual constitui pavimento ou teto de edificação." (FERREIRA, 2001, p. 416). 13 Para maiores informações, acesse: http://www.feq.pt/casa-de-campo.html

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A leitura do poema, com base no romance A Cidade e as Serras, nos indica uma concepção de campo aprazível, redentora, que salva o personagem Jacinto do tédio e da tristeza. Ao citar as personagens da obra de Queiroz, Jacinto e Zé Fernandes, o sujeito poético revela que empreende simultaneamente duas viagens: a física, que evoca o deslocamento territorial e a sugerida pelas imagens ficcionais, posto que seu percurso geográfico siga o curso das pegadas literárias deixadas pelo escritor português14. O tom desolador do poema (denotado pelo uso de termos negativos, como "frias lages", "vultos", "tangem a alma e o coração", "serras devastadas e tristes", "nada") parece ressaltar ainda mais a condição de viajante do eu lírico. Nele enxergamos, através de sua poética, um mal-estar em relação ao estado deplorável que o lugar se encontra, demarcado por termos que evocam sensações negativas. As associações entre a "Tormes" real, a "Tormes" de Queiroz, que é ficcionalizada, e a "Tormes" de Oliva, que é a imagem individual advinda da imagem inventada, podem pressupor algumas possibilidades de leitura.

Na primeira possiblidade, o local onde se

localiza o eu lírico realmente se chama Tormes — e que, para um leitor que não tenha realizado a leitura prévia de A Cidade e as Serras, este dado pode ser absorvido sem prejuízos ao entendimento da leitura15. Outra probabilidade é, ainda baseado na ideia anterior, levandose em consideração em um leitor mais familiarizado com Eça e o seu contexto históricoespacial, de que os lugares descritos fazem menção ao lugares imaginados pelo escritor português. Também podemos pensar que "A Casa do Silvério" existe tanto em nossa Realidade, como no contexto poético proposto por Oliva. Esse imbricado de lugares pressupõe vários deslocamentos e leva o leitor, certamente, a ouvir várias vozes simultâneas na poética de Monumentos de Palavras Esta percepção pode nos remeter à discussão do dialogismo de Mikhail Bakhtin. Diana Luz Pessoa de Barros, cujas reflexões são pertinentes a este trabalho, percebe o processo dialógico proposto pelo filósofo russo como consequência do texto (enquanto objeto significante ou de significação) lido como um produto de criação ideológica, a ressaltar a 14

Em A cidade e as serras, não há personagens chamados Silvestre ou Calisto. Embora já averiguamos em outra oportunidade uma possível alusão à outras personagens da literatura portuguesa oitocentista (cf. PALHARES e REBELLO, 2014, p.3), não deixa de ser interessante perceber como os termos Silvestre (postulado como nome próprio, mas que indica aquilo que é selvagem) e Calisto que, embora empregado como um nome masculino, pode remeter à ninfa do cortejo de Ártemis que, após engravidar-se de Zeus, foi transformada em uma ursa pelo próprio, para escapar da cólera da deusa da caça (v. HACQUARD, 1996, p. 69-70). O transformar de uma pessoa num animal — pensado como analogia a um humano que aborta os ideais sociais e se dedica a natureza — bem como o remeter ao selvagem, abordaremos no capítulo seguinte, com a teoria crítica de Sigmund Freud. 15 Da presença de Eça em Monumentos de Palavras, abordaremos com maior profundidade no capítulo anterior. Objetivamos aqui, apenas, demonstrar como procede uma leitura desta imersão o eu-lírico de Oliva ao universo literário criado pelo romancista português.

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impossibilidade de o texto existir fora da sociedade (cf. BARROS in BRAIT, 1997, p. 28-29). A partir desse pressuposto, podemos realizar uma discussão comparativa não só entre os textos de Oliva e Queiroz, mas também com os temas que podem ser emersos a partir dos poemas de Monumentos de Palavras, este considerado objeto significante, e temas como a viagem, as memórias de leitura, o caminho pelo interior do "eu", de modo a se comportarem como produção dessa criação ideológica que aqui observamos e investigaremos. Outra hipótese que pode ser considerada nesta leitura seria o entendimento de uma Quinta de Vila Nova ficcional. Por causa da desolação do eu lírico com a civilização a avançar pelas serras, este recai em um estado de negação e, de tanto querer reconhecer ali a "Tormes" presente na ficção queirosiana, acaba por se apropriar do lugar, e denominá-lo como o nome do lugarejo presente no romance de Queiroz16. Esta gama de relações possíveis — sobre o local, sobre a literatura queirosiana, e sobre si mesmo, que o sujeito lírico apreendera da leitura do romance, das conclusões que fez, e do conflito entre as próprias ideias com o real estado do ambiente que imaginara ser outro — permite-nos concluir que o eu lírico não se atém, exclusivamente, a um único modo de pensar a própria relação com aquele ambiente. A cada trecho, tece considerações sobre o que sente em relação ao local, remete às suas memórias de leitura, e externa, por meio da poesia, a sua decepção e as suas negações em relação às serras devastadas pela civilização. Portanto, podemos aquiescer com a ideia de que a estética da viagem feita pelo eu lírico estrutura-se sob a égide da "mão dupla”, termo que nos parece ser mais capaz de conter os sentidos que conseguimos extrair das vozes sobrepostas que identificamos nos poemas. Para concebermos tal imagem, consideramos que a voz do poema realiza uma constante transição por variados modos de leitura, trazendo ao leitor visões sobre um determinado Portugal, sobre a literatura de Eça, e sobre o interior de si, quando, enquanto viajante, expõe seus lamentos por causa da devastação das serras. Assim, em cada poema analisado, percebemos mãos que se justapõem, umas sobre as outras, nas quais se distinguem os traços da escrita de Eça de Queiroz, do professor de Literatura e autor, que viaja a Portugal à cata dos lugares antes entrevistos apenas pela via da imagem literária, e do eu lírico, que traduz sua busca e decepção em imagens poéticas. No próximo capítulo, em sequência às reflexões inicialmente apresentadas, abordaremos alguns reflexos desta viagem, sejam de suas impressões de Portugal, sejam aquelas rememoradas de uma leitura de A Cidade e as Serras. 16

Pretendíamos, inicialmente, investigar esta decepção como uma espécie de delírio (v. PALHARES, 2013). Contudo, optamos por deixar esta temática para um estudo futuro.

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2 — VIAGENS ENTRE AS CIDADES E AS SERRAS

Embora não seja o objeto deste trabalho estudar todos os poemas de Monumentos de Palavras comparando-os com passagens de A Cidade e as Serras, traremos o romance de Eça de Queiroz para esta discussão com pontos relevantes para entender a sua relação com o livro de poemas de Osmar Pereira Oliva. Neste trabalho, destacamos os versos inspirados nitidamente no romance do lusitano, com o intuito de recompor as viagens encetadas pelo eu lírico: a viagem geográfica a Tormes, esta inspirada pela viagem da leitura das obras de Eça de Queiroz; e a viagem poética, em que o eu lírico desloca-se em busca de uma paisagem íntima, pessoal. 2.1 — A PRESENÇA DA OBRA DE EÇA Quem deixa o trato pastoril, amado, Pela ingrata, civil correspondência, Ou desconhece o rosto da violência, Ou do retiro a paz não tem provado. (COSTA in OLIVA, 2010, p. 5).

A epígrafe, retirada de um soneto de Cláudio Manoel da Costa, que abre o livro Monumentos de Palavras, pode nos fornecer algumas pistas sobre o que esperar desta coletânea de poemas: uma valorização da imagem do campo, o "trato pastoril, amado", a afrontar a correspondente imagem do "civil", do "ingrato", da urbe. Aqueles que deixam o mundo campestre rumo à civilização, são, aos olhos do eu lírico dos versos de Costa, desconhecedores do caos que a vida em sociedade citadina leva ao sujeito, ou não sabem desfrutar do clima campesino, a provar da tranquilidade que este possa oferecer. A opção de trazer um autor árcade como epígrafe de seu texto traz ao leitor um interessante caminho de análise: a presença do campo e as descrições naturais na citação, além da familiarização do tema através de um autor brasileiro, permite a inferência de que o sujeito lírico parte em busca da natureza idealizada tanto por Eça de Queiroz, quanto por Manoel da Costa. Uma das características que compõem a estética literária vista nos poemas estudados de Monumentos de Palavras é a apreciação de formas que valorizam a natureza, como podemos ver no poema "O Caminho":

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É tarde demais! Ainda assim, sigo o roteiro, Desço a eira – era o caminho… Ao primeiro lance, a alma se enleva. Há um regatinho saltitante, Umidade, cheiro serrano, flores silvestres, Canoros cânticos, E eu vou estreito, sozinho... _ Que engano! Pequeno pedaço de paraíso – logo a vinha… Retomo o caminho de pedras, Dou em um pátio de muitas casas, Carros, cães, antenas e tudo mais. _ Perdido estou? Indago ao senhor. _ Em frente! Em frente! (OLIVA, 2010, p.14)

Poema mais longo do sexteto analisado nesta monografia, "O Caminho" pode ser equiparado em proporção ao evidenciado no desenho cartográfico inserido na página 13 deste estudo. O mapa dá ao leitor da obra de Oliva a dimensão territorial percorrida pelo eu poético, da mesma forma que esse longo poema explicita imageticamente a dimensão desse roteiro. Neste poema, podemos ver a lamentação do eu lírico, na primeira estrofe: “É tarde demais!/Ainda assim, sigo o roteiro,/Desço a eira – era o caminho…”. Percebe-se uma angústia da voz poética por algo que já pressente perdido. Conforme caminha, o sujeito lírico parece desenvolver uma constatação de que a sua viagem física não se assemelhará com sua viagem literária. No entanto, o eu lírico parece disposto a seguir o seu roteiro de viagem. No terceiro verso, há um curioso jogo fonético, provocado pela repetição dos sons "Desço", "Eira" e "Era", termos que evocam o nome de Eça (de Queiroz), a apontar que o eu lírico busca a literatura do romancista lusitano pelo trajeto. Também se vê o estado progressivo do avanço civilizatório sobre as serras portuguesas, o que frustra a voz poética. Percebe-se a agonia da voz do poema em seguir pelo trajeto, o que parece ser uma imposição provocada pela rota turística da qual "O Caminho" faz parte. Tal destinação pode aludir ao processo civilizatório por que passam as serras: a seguir apenas um caminho, o do "progresso", as matas não possuem escapatória, senão em serem devastadas, para dar lugar às necessidades urbanas cada vez mais necessárias ao ser — e difíceis de serem desvencilhadas do cotidiano deste. Em "O Caminho" ainda se percebe que o trecho é entrecortado por um momento de ilusão, no qual o eu lírico se depara com um "regatinho saltitante": "Ao primeiro lance, a alma se enleva./Há um regatinho saltitante,/Umidade, cheiro serrano, flores silvestres,/Canoros cânticos,/E eu vou estreito, sozinho…". A descrição dos elementos seguintes da paisagem —

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a umidade, o cheiro serrano, as flores silvestres, o canto magnífico dos pássaros — possibilitam uma construção sinestésica de um cenário campestre por meio de uma estimulação autônoma, uma vez que se apresenta solitário, rememorado apenas em seu íntimo. Contudo, sucede-se que o efeito descritivo não passava uma miragem logo desfeita pela paisagem real: uma pequena amostra de natureza diante das construções simbólicas feitas pelo eu lírico: "_ Que engano!/Pequeno pedaço de paraíso – logo a vinha…". Da grandeza pensada em sua imaginação, podemos ver que o eu lírico resume o seu imaginário deleite a apenas a uma porção resistente de natureza, demarcada pela videira, que forjara a sua ilusão a qual serve de temática a esta estrofe. Da ilusão enganadora, a voz do poema passa, na terceira estrofe, para a realidade civilizada: “Retomo o caminho de pedras,/Dou em um pátio de muitas casas,/Carros, cães, antenas e tudo mais./_ Perdido estou? Indago ao senhor./ _ Em frente! Em frente!”. O "caminho de pedras", retirado de um dito popular, pode ser lido, portanto, como uma busca interior em assimilar o aspecto geográfico com o aspecto literário. Por outro lado, as pedras também induzem ao sofrimento, à dificuldade e à decepção da voz poética, ao constatar a distância da imagem idealizada pela literatura ante a imagem real das serras. Os três primeiros versos deste trecho podem ser comparados como uma antítese dos versos iniciais da estrofe anterior: em ambas, há elementos que representam os dois tipos de cenários — casas, carros, cães e antenas urbanos contra o regatinho, a umidade, o cheiro serrano, as flores silvestres e os canoros, como elementos do espaço natural — que reforçam o choque "cidade versus campo" que pode ser depreendida da leitura do poema. A frieza do senhor para o qual o eu lírico dirige seu questionamento pode demarcar a insensibilidade do ser enquanto componente da civilização: não apenas por não responder à pergunta, mas também por apelar para o automatismo: a repetição de "Em frente!". A ordem de apenas seguir por uma única direção, sem explicar o motivo, pode implicar a mesma problemática que o progresso faz ao desenvolver a civilização: apenas para um rumo, apenas para progredir. O senhor, então, seria uma imagem simbólica da pressa e da insensibilidade que o mundo moderno trouxe para a sociedade. Até aqui, a conexão de tais versos com a epígrafe do poema de Cláudio Manuel da Costa parece-nos bem clara: o desprezo pelos centros urbanos e a valorização da vida do campo podem conectar a proposta do poeta setecentino com o escritor destes contemporâneos versos. Contudo, esta referenciação não é limitada apenas ao autor de Vila Rica: outra alusão,

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e certamente a principal que move estes poemas, é a o estilo empregado por Queiroz em A Cidade e as Serras (1901), este romance o qual se consta com mais nítida presença nos versos de Oliva, como, por exemplo, na estrofe final de "O Caminho":

Perdido era o que tinha em mente. Outro regatinho saltitante, Cheiro molhado, agreste, O canoro canto, sombras, É outra vez As Serras Enquanto não desemboca, triste, negra, No asfalto da civilização Lá embaixo, a Ermida! (OLIVA, 2010, p.14)

O destaque para "As Serras", em maiúsculas, pode aludir ao romance A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, cuja narrativa, a partir da segunda metade da história, destaca a ida do personagem Jacinto para a Quinta de Tormes, um lugar campestre localizado em Portugal. O eu lírico ruma, portanto, em direção a dois caminhos: um físico-geográfico, que compõe seu roteiro de viagem e outro pela via da imaginação, guiado por suas leituras e estudos. Podemos ver ainda uma reprise do que acontece na segunda estrofe: o eu lírico tenta enxergar grandiosidade nos espaços de natureza por dentre as serras tomadas pela civilização. A sinestesia é similar — o regatinho, a umidade, os pássaros. Ciente, "em mente", de que estava perdido, vê "As Serras" (a remeter tanto ao espaço natural, quanto à obra de Queiroz) acabarem-se com a civilização (em caráter espacial e também em detrimento da decepção de seu caminhar pelo campo tomado pelo progresso.). O findar "triste" e "negro", na visão da voz poética, pode nos remeter ao conceito de Giorgio Agamben sobre o olhar do contemporâneo: "é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro" (AGAMBEN, 2009, p. 62). Podemos ver que o eu lírico discorre a partir de, ao seu ver, "no asfalto da civilização" que domina "As Serras". Apoiado pela "luz" de suas memórias de leitura, o seu foco é questionar "o escuro", o espaço que não é aquele que concebeu ao ler A Cidade e as Serras. Desse modo, podemos apontar a existência de um diálogo de um poeta do século XXI com um romancista atuante dos 1800. Sugerida a presença do romance queirosiano nos poemas de Monumentos de Palavras, pretendemos comparar alguns empregos estilísticos das poesias de Oliva com a prosa de Eça.

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2.2 — AS MARCAS DE EÇA

A fim de averiguar possibilidades de empregos estilísticos comuns ou semelhantes entre a prosa de Queiroz e a poesia de Oliva, abordaremos quatro aspectos: as relações entre o narrador-personagem José Fernandes e o eu lírico de Monumentos de Palavras; a maneira de como essas duas entidades enumeram os objetos que compõem a civilização; o modo como observam a natureza; e como enxergam a possibilidade da civilização não ofertar possibilidade de saída ou escapatória. Para tal tarefa, recorreremos, em cada uma das partes, a trechos do poema "A Ermida", o quarto em sequência do sexteto estudado nesta monografia17. 2.2.1 — O NARRADOR E O EU LÍRICO

Em Monumentos de Palavras, vemos que, de determinadas propriedades da estilística empregada por Queiroz para compor José Fernandes, algumas se assemelham às que Oliva recorreu para construir o seu eu lírico: uma voz em primeira pessoa que não só descreve as situações, mas também emprega a sua opinião, os seus sentimentos a respeito, como vemos no poema "A Ermida": Sentado à porta da estação da Ermida O Douro esverdeado contemplo, Margeado de fantasmagóricos eucaliptos, Um guindaste suspenso. Três alvas casas, Outra em construção, Uma concreta ponte abaixo, Emoldurada por altos montes, Uma vila ao fundo, distante. Ainda ouço teimosos assobios de pássaros Remanescentes de outrora paisagem. É saudoso, é triste, é melancólico Esse estado de uma aldeia queirosiana… Evito olhar à esquerda… (OLIVA, 2010, p.15).

A Ermida é uma estação de linha de trem localizado na vila portuguesa de Baião,

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Por opção de trabalhar cada subcapítulo desta monografia com um poema diferente, temáticas como "a viagem", que foi discutida no capítulo anterior e poderia ser aqui comparada entre a viagem do eu-lírico de Monumentos de Palavras com a viagem de Jacinto e Zé Fernandes à Tormes em A Cidade e as Serras, não serão aqui discutidos em favor das abordagens que explicitam melhor a questão a civilização em ambas as obras. A questão da viagem, bem como qualquer outra possibilidade de comparação entre as duas obras, ofertamos como sugeridas para estudos futuros.

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Distrito do Porto. Tal referência pode reforçar o tom geográfico perceptível no conjunto de poemas aqui analisados, além de denotar a continuidade geográfica espacial vista entre estes poemas. A atentar neste subcapítulo apenas para a primeira estrofe, pode-se notar que o olhar do eu lírico para com o cenário é a de uma imagem tenebrosa: à frente do Rio Douro, os "fantasmagóricos eucaliptos", a expor sua versão distorcida por causa das falsas visões de uma natureza que não há, é confrontada com a realidade da civilização, marcada pelo "guindaste suspenso", símbolo aqui atribuído ao do crescimento civilizatório. "Fantasmagóricos eucaliptos" e "guindaste suspenso" são elementos que se assemelham ao embate "natureza" contra "urbanidade". Contudo, ao invés de uma divisão dos espaços associados com a narrativa (metade de A Cidade e as Serras ocorre na capital francesa, e a outra metade na fictícia Quinta), em Monumentos de Palavras é na região de Tormes que vemos a civilização não somente avançar, como destruir o campo. Paris, que, no imaginário queirosiano, é um representativo centro do desenvolvimento urbano europeu 18, não está presente nos poemas de Oliva, mas as suas características, como construções e utensílios, denotados a partir das considerações feitas por José Fernandes, são empregadas pelo eu lírico dos poemas em estudo para demonstrar o avanço da civilização pelas serras portuguesas. Se a leitura do romance motiva o eu lírico a enxergar "vultos" pelas serras subjulgadas pelo progresso, é possível justificar que a alusão "fantasmagórica" que a voz do poema faz dos personagens, especialmente nos poemas "A Casa do Silvério" e "A Casa do Eça": espectros, no pensamento de que, naquele instante, para o eu lírico, são apenas figurações de um passado distante, junto com o espaço, onde a natureza, e as pessoas que ali habitam são bem diferentes dos personagens e do cenário do romance dos fins dos oitocentos. A alma de Jacinto — que também é o nome de uma erva de belíssimas flores (cf. FERREIRA, 2001, p. 405) — parece, assim como os eucaliptos espectrais, vaguear apenas em um lugar: na mente da voz do poema de Monumentos de Palavras, tão arrasada e deformada quanto às serras devastadas em sua visão ao vivo. Quanto ao narrador-personagem de A Cidade e as Serras, José Fernandes parece deixar claro, no começo, que a história mais se trataria a respeito de seu amigo Jacinto do que a respeito de si mesmo. Isso se confirma na abertura do romance, quando José Fernandes se 18

Em “As fronteiras da civilização em Eça de Queirós”, Hélder Garmes comenta a respeito de uma crônica de Queirós datada de 21 de maio de 1878: “Constata-se, portanto, que Eça tem nesse momento uma perspectiva evolucionista de mundo, no qual a civilização europeia se encontra acima de qualquer outra, sendo a França seu paradigma.” (GARMES, 2004, p. 6). A Cidade e as Serras seria escrito mais de vinte anos depois, porém, podese ver no romance queirosiano, principalmente no capítulo II (v. QUEIROZ, 1962, p. 19-31), o quanto ainda preserva-se este ideal de que os franceses inspiram e simbolizam o processo de civilização.

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põe a descrever as posses de seu "querido Príncipe": "O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival". (QUEIROZ, 1962, p. 1). A respeito de si, somente menciona seu nome quatro páginas à frente, o que não o impede, contudo, de continuar a dedicar-se à história de seu contemporâneo, herdeiro dos Jacintos. No decorrer da leitura da obra, pode-se comprovar que, com algumas exceções, Jacinto é o centro da narração feita por Zé Fernandes ao longo dos capítulos e, por isso, o "Príncipe da Grã-Ventura" é designado como personagem principal do romance. Assim, embora a civilização que domina o espaço seja também alvo de comentários do narrador-personagem, é em Jacinto que Zé Fernandes foca-se, atentando para o comportamento do amigo, no meio em que está. Dada a característica da alteridade no enunciador de A Cidade e as Serras, é possível ver isto com mais sensibilidade neste trecho, o qual demonstra preocupação com o modelo de vida parisiense levado pelo amigo: Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória quase se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou descer pelos boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos. (QUEIROZ, 1962, p. 14)

Aqui vemos que Zé Fernandes (diferentemente da voz do poema dos versos analisados, que se preocupa mais com o espaço em si) possui o olhar voltado ao personagem de Jacinto, que trata as questões do espaço como periféricas e influenciadoras do comportamento de seu amigo19. Nessa passagem, vemos que o narrador-personagem de A Cidade e as Serras se estabelece contra o modo de vida civilizado de Paris: Jacinto, ao seu ver, era cheio de "grossa sociabilidade", com a cabeça "vaga como a de um boi" pelo modo de vida regido pela "materialização" no cenário da capital francesa marcado pelo seu "lajedo" e "gás". Esse modo

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Embora aqui pautemos a diferença entre o eu-lírico de Monumentos de Palavras (enfoque no cenário) e do narrador-personagem José Fernandes (enfoque no personagem Jacinto), com base na divisão primária entre os elementos de uma narrativa (narrador, personagem, enredo, tempo, cenário, etc.), há estudiosos que consideram Jacinto não apenas um mero personagem, mas como uma representação da nação de Portugal. O que incorreria, assim, uma perspectiva de olhar diferente daqui aplicada. O próprio Osmar Pereira Oliva, enquanto estudioso da prosa queirosiana, afirma que "Na serra, Jacinto reverdece, se casa, brota, floresce e frutifica, cumprindo a lei da natureza. Na serra, Jacinto restaura a Casa Portuguesa". (OLIVA, 2001, p. 11). Neste estudo, a fim de evitá-lo tornar demasiado complexo, não abordaremos esta perspectiva do personagem Jacinto a aludir ao espaço "Portugal".

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opressor de vida, então, lhe tornava um homem medroso e abafado, aquiescido com o "desaparecer de sua alma", e que, então, lhe tornava mais um bicho do que um ser humano. Esta relação entre o animalesco e o civilizado já foi discutida por Sigmund Freud no texto "O Mal-estar na Civilização", que diz:

A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas (FREUD, 2007, p. 29).

Pode-se ver que a ideia de "animal" para José Fernandes e para Freud, no que tange a sua figuração de homem civilizado, divergem-se no conceito: para a personagem do romance, a civilização promove o transformar o homem em um animal, visto que as constantes preocupações de estar "antenado" com as novidades e com o zelo de uma sociedade cada vez mais tecnológica pode acabar por tornar o ser irracional, capaz de sacrificar seus anseios em prol do dito coletivo urbano. Já a ideia de Freud parece seguir o contrário: os "instintos agressivos", naturais ao homem, seriam domados pela civilização, em um processo que o tornaria, então, um ser sociável no meio urbano. Porém, pode-se sugerir que tanto o pensamento de Zé Fernandes quanto o de Freud seguem a seguinte linha de raciocínio: a sociedade civilizada "doma" o homem para fazer com que este seja funcional ao sistema social realizado na urbe — os costumes, as tradições etc.. Logo, este "sacrifício" em nome do bem-estar na cidade seria uma afronta ao espaço individual do ser, como percebemos nas críticas de Zé Fernandes em relação ao excesso de dedicação que Jacinto dá para a vida urbana, bem como do eu lírico de Monumentos de Palavras, este a denunciar a civilização como culpada pela devastação das serras. Portanto, a perspectiva em primeira pessoa, aplicada em ambos os textos, é um elemento linguístico que pode ser verificado como repulsivo à ideia da civilização que promove uma organização moral e intelectual com todos os indivíduos que dela fazem parte. A prosa em primeira pessoa e a poesia de cunho utópico20, denunciadora, são elementos os quais podem favorecer uma escrita na qual reforça o valor do indivíduo perante a força civilizatória que tenta transformá-lo em uniforme, comum aos seus demais semelhantes. 20

Jacques Dubois (1980) assevera que "a poesia como utopia, a arte como utopia: (é) um velho tema, sem dúvida, mas que deixa entrever como a poesia, enquanto palavra ideológica, habita sempre, ainda quando introduz elementos de ruptura e deslocamento, a morada da própria ideologia". (DUBOIS, 1980, p. 224). Logo, podemos apontar que a poesia e a ideologia soam uníssonas no que tange ao caráter de aprendizado, de desenvolvimento e de crescimento das ideias do sujeito.

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2.2.2 — OS ENTULHOS DA CIVILIZAÇÃO

Na segunda estrofe de "A Ermida", podemos perceber uma intenção enumerativa do eu lírico: "Três alvas casas, /Outra em construção,/ Uma concreta ponte abaixo,/Emoldurada por altos montes,/Uma vila ao fundo, distante.". Vemos que o ato de enumeração descreve paulatinamente como o processo civilizatório se dá, aos olhos do eu lírico. Ele os enumera por meio da quantidade de objetos que enxerga, ou seja, três casas, uma em construção, e uma ponte, sugerindo, com o recurso, que esses “monumentos” (os físicos geográficos e os construídos pelo homem) modificam a paisagem idealizada pela voz poética. O recurso enumerativo também já foi visto aqui em "O Caminho" (Dou em um pátio de muitas casas, / Carros, cães, antenas e tudo mais.). Em A Cidade e as Serras¸ José Fernandes não faz comiseração ao enumerar a quantidade de objetos civilizados que permeiam a vida de Jacinto, tais como os variados componentes à mesa para um simples desjejum entre os dois:

Mas já eu me começava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, e todos de feitios astuciosos. E mais me impressionei quando Jacinto me desvendou que era um para as ostras, outro para o peixe, outro para as carnes, outro para os legumes, outro para as frutas, outro para o queijo. Simultaneamente, com uma sobriedade que louvaria Salomão, só dois copos, para dois vinhos: - um Bordéus rosado em infusas de cristal, e Champanhe gelando dentro de baldes de prata. Todo um aparador porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas - águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos. (QUEIROZ, 1962, p. 29-30)

Embora seja possível notar que, em ambas as obras, o recurso enumerativo recai a respeito da natureza, vemos que o uso da figura estilística é usada no contexto para enfatizar a civilização, para enumerar os objetos construídos pelo próprio homem: de casas à utensílios domésticos, de máquinas a engenhos que facilitam a produção. Tais elementos são descritos sequencialmente de maneira que nos sugerem a impressão de "entulhamento", ao contrário de elementos naturais, cujas descrições do solo, das matas e dos animais tendem, nestes contextos, a ressaltar o caráter belo que o cenário campesino possui. A aquisição de diversas “quinquilharias” modernas por parte de Jacinto pode implicar um desejo do autor (Queiroz) de demonstrar que, na sociedade consumista, é cada vez mais imposto ao civilizado uma necessidade de se estar na moda, de estar alinhado com as novidades tecnológicas produzidas em seu tempo. De acordo com Freud: “Existem certos homens que não contam com a admiração de

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seus contemporâneos, embora a grandeza deles repouse em atributos e realizações completamente estranhos aos objetivos e aos ideais da multidão” (FREUD, 2007, p. 1). Logo, o recurso de demonstrar quantitativamente a diversidade de elementos que compõem a civilização, que na verdade são também objetos de posse dos sujeitos que fazem parte do processo civilizatório, soa como uma tentativa de denunciar o quanto o lugar civilizado é entulhado, claustrofóbico, sufocante. A respeito de tal desconforto, Freud comenta: Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão. Sempre tendemos a considerar objetivamente a aflição das pessoas – isto é, nos colocarmos, com nossas próprias necessidades e sensibilidades, nas condições delas, e então examinar quais as ocasiões que nelas encontraríamos para experimentar felicidade ou infelicidade. (FREUD, 2007, p. 17)

A “infelicidade” pensada por Freud, a ocorrer dentro de um cenário civilizatório, é perceptível no romance eciano: em A Cidade e as Serras, percebe-se uma denúncia ao entusiasmo com a civilização, nascente no final do século XIX. Jacinto, o morador de Paris, um homem “cheio de Civilização”, como é descrito por Zé Fernandes, acaba, ao longo da narrativa, por fazer um caminho aonde busca se “regenerar” de sua urbanidade, e encontra isso nas serras portuguesas de Tormes. Já o eu lírico de Monumentos de Palavras nos demonstra a questão de “infelicidade” através de um percurso inverso: ele quer encontrar o cenário idealizado do campo, que recompõe a humanidade de Jacinto. No entanto, sua frustração é encontrar tal cenário devastado pelos efeitos da civilização. Na verdade, as mudanças naturais e geográficas que o viajante poeta vê representam, simbolicamente, as mudanças inaturais. É a Portugal de Eça de Queiroz que a voz do poema busca, mas não encontra. 2.2.3 — A NATUREZA Na terceira estrofe de "A Ermida" — "Ainda ouço teimosos assobios de pássaros/Remanescentes de outrora paisagem. /É saudoso, é triste, é melancólico/Esse estado de uma aldeia queirosiana…" — “Ouvir” os “teimosos assobios de pássaros”, “Remanescentes de outrora paisagem”, pode nos apontar o quanto o passado da tradição queirosiana interfere em um conflito com o processo tradutor do eu lírico de Oliva: são vozes apenas imaginadas, que sugerem um pretérito que, noutros tempos, ali havia. Ao tentar corresponder o que foi produzido de forma ficcional com a realidade, percebemos que os

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lamentos são mais agravados por causa de uma tentativa de enxergar, em meio aos campestres restos “de uma aldeia queirosiana”, algo que relembre a sua completude, o que era em seu passado. Este último verso reforça a ligação dos poemas com o romance de Queiroz: não se trata de relembrar a natureza daquele verdadeiro local de seu tempo, mas sim a natureza conforme a qual a narrativa do romancista lusitano molda como o espaço de seus acontecimentos. Se pensarmos que o processo de “tradução”21 do romance de Queiroz neste poema objetiva em realizar uma leitura literal da narrativa, podemos ver que tal tentativa é falha, pois em A Cidade e as Serras o que temos é um final, de certa forma, considerado satisfatório: abafado pela civilização, Jacinto, ao longo da história, adapta-se ao clima campestre de Tormes e, enfim, se renova enquanto homem, graças a sua reabilitação no ambiente natural. A natureza, aos olhos de Zé Fernandes, parece ser a maior dádiva que o homem pode contemplar em vida: Frescos ramos roçavam os nossos ombros com familiaridade e carinho. Pôr trás das sebes, carregadas de amoras, as macieiras estendidas ofereciam as suas maçãs verdes, porque as não tinham maduras. Todos os vidros duma casa velha, com a sua cruz no topo, refulgiram hospitaleiramente quando nós passamos. Muito tempo um melro nos seguiu, de azinheiro a olmo, assobiando os nossos louvores. Obrigado, irmão melro! Ramos de macieira, obrigado! Aqui vimos, aqui vimos! E sempre contigo fiquemos, serra tão acolhedora, serra de fartura e de paz, serra bendita entre as serras! (QUEIROZ, 1962, p. 156-157)

Em Monumentos de Palavras, contrariamente, vemos que Tormes é um lugar onde a civilização avança, e as serras são devastadas. Contudo, percebe-se que um ideal a afrontar o que é “civilizado” em favor de uma defesa do homem que vive próximo da natureza, longe das obrigações e do fastidioso processo de vida no mundo urbano, é comum nas duas obras. Logo, as claras pistas que vemos de uma leitura do romance de Queiroz na poética de Oliva implicam que houve, com certo esmero, uma tradução dos ideais presentes na história de Jacinto nos versos declamados pelo eu lírico de Monumentos de Palavras. Essa quase tradução poética do romance eciano pode ser considerada uma hipótese de leitura, em consonância ao pensamento de Walter Benjamin: “a verdadeira tradução é transparente, ela não oculta o original, não lhe rouba a luz, faz com que, inversamente, a língua pura, reforçada através do seu próprio “médium”, incida com maior plenitude sobre o 21

Optamos pelo temo “tradução” como referência ao processo de leitura e de interpretação do autor Osmar Oliva, que, por meio da voz poética, traduz as imagens conhecidas primeiramente na obra de Eça de Queiroz. Tais imagens tornam-se espécies de roteiros de viagem, que orientam a escrita de seu livro. Na verdade, “tradução” equivale, nesse aspecto, à imagem da “escrita de mão dupla”, pois, embora os versos de “Monumentos...” sejam, por óbvio, produtos de um processo criativo individual, eles veem sombreados pela presença inequívoca do autor Eça de Queiroz.

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original." (BENJAMIN, 2009, p. 10). Ao realizar uma leitura de A Cidade e as Serras em que seis poemas servem de registro turístico sobre a sua passagem por Tormes, o enunciado de Monumentos de Palavras apresenta características que apresentam fidelidade ao romance lusitano. Um deles é o ato de o homem exercer uma função crítica diante da civilização, porém nada fazer contra ela. De acordo com Freud, A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (FREUD, 2007, p. 36)

A atitude de Jacinto no romance implica algo parecido: o avanço da civilização parisiense não pode ser contido. A sua solução é o fugere urbem: a ida para Tormes. Mas para o eu lírico de Monumentos de Palavras não há mais lugar para onde fugir. Portanto, se não lhe cabe a fuga, também não lhe cabe a atitude agressiva ou reacionária, conforme a mencionada por Freud. Como ser dotado de certos dogmas civilizados, a voz poética recorre, entretanto, a uma agressão comedida, que escapa das palavras. Os seus versos, desesperançados, melancólicos, nos são um exemplo de que a civilização inibe o combate do homem para o limite de si. Sua melancolia diante do que vê é também uma pálida demonstração de sua impotência, como ser civilizado, diante do progresso inexorável. Logo, a “tradução” de Eça de Queiroz, no cenário das serras de Tormes, é caracterizada pela “confusão” em querer enxergar alguns aspectos remanescentes dos ideais campestres, presentes na obra queirosiana, no local, porém alguns deles são frutos de seus devaneios e de suas interpretações pessoais. Da discussão aqui apresentada, podemos depreender que a natureza no romance de Eça é fonte de renovação, de esperança, de revitalização do homem doente por causa da civilização. Já nos poemas de Oliva, embora se perceba que o eu lírico aparente ter preservado o mesmo espírito idealista, o cenário campestre é motivo de lástima e decepção, uma vez que já se encontra tomado pelo avanço da civilização. 2.2.4 — A IMPOSSIBILIDADE DE ESCAPAR DA CIVILIZAÇÃO

O poema "A Ermida" é encerrado com uma estrofe composta de apenas um verso: "Evito olhar à esquerda…". Neste monóstico, podemos ver um contorno dramático com o qual o eu lírico permeia o seu asco pela civilização: a situação parece ser tão grave e cruel que

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este até evita olhar à esquerda — lado este que, de acordo com o Dicionário de Símbolos de Herder Lexikon, é relacionado ao mal, ao fracasso (cf. LEXIKON, 1990, p. 74). Tal referenciação simbólica, aliada ao anseio da voz do poema em não querer olhar, denota o fato de que não há como escapar da civilização. Podemos pensar, portanto, que se negar a ver algo é uma forma, em último recurso, de escapar daquilo que nos aflige. Em A Cidade e as Serras, quando ouve Jacinto dizer que o seu "Príncipe da GrãVentura" pensava em trazer o telefone para Tormes, Zé Fernandes afirma:

Era fraternal. Todavia pensei: Estamos perdidos! Dentro dum mês temos a pobre Joana a apertar o vestido pôr meio duma máquina! Pois não! o Progresso, que, à intimação de Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente, desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo ele fora o Príncipe sem Principado. (QUEIROZ, 1962, p. 271, grifo nosso)

O termo grifado referencia o fato de que, embora fosse um homem renovado pela natureza, o "Príncipe da Grã-Ventura" atingira um ponto no qual conseguiria conciliar a vida civilizada à vida natural, ou seja: ser um homem em consonância com a modernidade de seu tempo, mas apegado às raízes naturais de sua origem. Tal apontamento pode pressupor algo o que seria dito como inevitável: a civilização, de algum modo, iria chegar às serras22. O apego à natureza por parte de Zé Fernandes é observado quando ele fala: "Estamos perdidos!". O tenebroso exclamar é semelhante ao empregado pelo eu lírico de Monumentos de Palavras não só no excerto final de "A Ermida", mas em outras passagens — como em "O Caminho", no verso inicial: "É tarde demais!". Nessas locuções interjetivas lemos o pressuposto do medo de a civilização tomar as serras, com uma diferença temporal: no romance, o temor é pela ameaça; nas poesias, o pânico é real e sem solução, pois a ameaça se concretizou. Na introdução de A Cidade e as Serras organizada por Augusto Pissarra, consta uma carta de Eça de Queiroz endereçada a Alberto de Oliveira, que propõe esta ideia do "equilíbrio" entre o natural e o civilizado:

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Este trecho também pode ser lido em comparação com os versos presentes no poema "A Casa do Eça": "E ainda ouço: a alma do Jacinto, coitado —/Repousa? Deita? Rola? Estrebucha?/No paraíso?/… no passivo!!!". Pode ser apurado que o eu-lírico quis ressaltar uma possível culpa de Jacinto por incentivar a incursão de elementos civilizatórios nas serras e, com isso, resultaria em um "futuro" devastador para a natureza portuguesa, então testemunhada pelo eu-lírico de Monumentos de Palavras.

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Em quanto às suas ideias — não lhe parece que o Nativismo e o Tradicionalismo, como fina supremos do esforço intelectual e artístico, são um tanto mesquinhos? A humanidade não está toda metida entre a margem do Rio Minho e o Cabo de Santa Maria — e um ser pensante não pode decentemente passar a existência a mumurrar extaticamente que as margens do Mondego são belas. Não, caro Amigo, não se curam misérias ressuscitando tradições. (QUEIROZ, 1962, p. I, grifo nosso)

Ao atribuir esta afirmação a uma opinião "do autor", podemos concluir que a voz do poema de Monumentos de Palavras não faz de seu pensamento uma alusão ao que Eça de Queiroz disse, mas sim do que adveio da própria leitura que fez do romance A Cidade e as Serras. Enquanto podemos ver um Eça de Queiroz defender alguns aspectos do progresso, Zé Fernandes e o eu lírico parecem concordar na visão de que uma civilização a crescer de modo desenfreado pode resultar na degradação não apenas das matas, mas dos homens. Se o personagem oitocentino prenuncia o caos, a voz poética recente (de Monumentos de Palavras) afirma-se como uma testemunha dos efeitos da civilização. No próximo capítulo, abordaremos a relação dos poemas aqui estudados em consonância à proposta do livro, sugerida em seu título. Será discutido o entendimento dessas poesias como "monumentos de palavras".

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3 — DA PALAVRA TALHADA: OS MONUMENTOS DE PALAVRAS Sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras. acordo; e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. acordo; o prédio, pedra e cal, esvoaça como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se,cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido acordo, e o poema-miragem se desfaz desconstruído como se nunca houvera sido. (Waly Salomão, "A Fábrica do Poema")

Um destaque de Monumentos de Palavras, sem dúvida, é a segunda parte da obra, composta por outros 17 poemas, com 15 compostos em homenagem às mais diversas estátuas presentes na Ilha da Madeira. Os poemas estão dispostos à direita do livro, enquanto que, do lado esquerdo, e de forma especular, dispõem-se fotografias de estátuas (monumentos), tiradas pelo autor Oliva. Essa forma especular de disposição – fotografia e poema – desde o início inspirou a imagem da “escrita de mão dupla”, que se mostrou eficiente para ler a obra. Sob esse aspecto, a mão dupla não aludiria mais à presença da escrita de Eça de Queiroz, que orienta a escrita dos poemas analisados anteriormente, mas à presença de duas entidades criadoras: o fotógrafo e o poeta. Embora a dupla presença das imagens dos monumentos, em conjunto com as poesias compostas, possa ser suficiente para justificar a denominação do livro, uma segunda leitura pode ser feita a respeito de tal epíteto: o da palavra em comparação a uma pedra bruta, esta prestes a ser lapidada por um escultor-poeta: palavra feita monumento. Monumento e escultura, aos olhos de FERREIRA (2001), são termos similares. Escultura se refere à "Arte de plasmar a matéria entalhando a madeira, modelando o barro, etc., para representar em relevo estátuas, figuras, etc." ou "obra de escultura" (FERREIRA, 2001, p. 283). O autor ainda emprega o termo escultural, como algo "que tem formas perfeitas" (FERREIRA, 2001, p. 283). Já monumento é uma "obra ou construção destinada a transmitir à posteridade a memória de fato ou pessoa notável", ou "qualquer obra notável". (FERREIRA, 2001, p. 471). Ainda sobre os monumentos, as leis brasileiras ainda empregam a existência dos chamados monumentos naturais, que seriam os "sítios naturais raros, singulares ou de grande beleza cênica." (cf. BRASIL, 2000).

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Podemos considerar, portanto, que uma escultura pode se tornar um monumento, quando se refere a um fato histórico ou a alguém marcante que mereça tamanha homenagem. Devido à visão distinta que o eu lírico de Monumentos de Palavras dá aos cenários por onde passa e que descreve, para este estudo aproximaremos as definições de escultura e de monumento, uma vez que recorremos a estudos que abordam ambos, e que, na nossa visão, a obra em estudo comporta. Neste capítulo, portanto, além da intenção de tratar a poesia como um monumento, veremos a percepção de objetos e cenários, que não são esculturas propriamente ditas, como monumentos, na obra em análise. 3.1 — OS MONUMENTOS QUE O VIAJANTE VÊ

Para Dayane Celestino de Almeida,

O monumento é (...) o que é construído para exaltar algo. Normalmente, porém, o que é euforizado é algo grandioso e não coisas tão prosaicas quanto um comprimido. Fazendo essa associação, os poetas elevam algo simples a um estatuto maior, conferindo grande valor ao que descrevem (ALMEIDA, 2010, p. 79).

Se a descrição desse "grande valor" pode ser nítido nos poemas que compõem a segunda parte de Monumentos de Palavras, na primeira podemos perceber que requer um esforço associativo para entender a alusão que os poemas fazem. A questão é que, nos seis poemas analisados neste estudo, diferentemente dos que não serão estudados nesta monografia, não são referências a estátuas moldadas ou talhadas, mas sim a monumentos naturais, como o campo e as serras, como também aos monumentos urbanos contemporâneos, ambos moldados como elementos coexistentes em um mesmo espaço e considerados como contraditórios pelo eu lírico. Contudo, podemos perceber que há a presença de um terceiro tipo de monumento, invisível, porém que permite, por um "esforço associativo", ser assim considerado. São os monumentos edificados por traços da memória, especialmente as memórias de leitura, como já discutimos no capítulo anterior, e que podemos ver no quinto poema, "O Douro":

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Um comboio serpenteia a margem do Rio Verde. É montanha de pedra de um lado, E um tremulento manto aquoso do outro. Pequenas aldeias alvejam os montes Santa Cruz vai se distanciando, para trás... Outra ponte, lá, embaixo, Um barco singra o plácido rio, Entulhado de gente, Guardado por uma torre De pequenina igreja... (OLIVA, 2010, p. 17)

Quantitivamente, podemos perceber que a aparição do Rio Douro em A Cidade e as Serras é modesta. Os registros se dividem em retratar o local como uma referenciação ao cenário de Tormes, um dos principais da narrativa, e também como um lugar "interessante", com "grandeza", onde o avô de Jacinto possuía um lugar "privilegiado" para a pesca de sáveis (cf. QUEIROZ, 1962, p. 1, 149 e 248). Em "O Douro", podemos ver que há uma sucessão frasal que mostra uma sequência de reflexões da voz do poema a respeito da região do rio, que nasce na Espanha e corta na região do Porto. Vemos aqui o eu lírico a acompanhar a linha de trem existente próximo ao rio e a nos descrever toda a paisagem, conforme o trem passa. A linha de trem se localiza paralelo ao Douro, este denominado como Verde, por causa da coloração das águas, como foi dito anteriormente no poema “A Ermida”, no segundo verso da primeira estrofe: “O Douro esverdeado contemplo”. Podemos ver ainda as montanhas constituídas de rochas ao lado de uma extensão de água, com os montes esbranquiçados pelas aldeias que ali estão. Tudo faz da paisagem de Santa Cruz do Douro uma freguesia portuguesa, localizada em Baião, onde fica a Casa de Tormes, assim referenciado pelo autor, na contracapa do livro, como local de inspiração para a sua poética. Na segunda estrofe, podemos ver que o eu lírico continua a nos descrever toda a paisagem: “Outra ponte, lá, embaixo, /Um barco singra o plácido rio,/Entulhado de gente,/Guardado por uma torre/De pequenina igreja…”. Assim, podemos ver que ele percebe uma ponte embaixo, vista sob a perspectiva do alto, enquanto um barco, lotado de pessoas, navega pelo tranquilo rio, perto de uma pequena igreja com uma torre. Podemos perceber, assim, que o tom descritivo do poema serve-nos como orientação para uma forma de pensar a paisagem de um Portugal dos tempos modernos. Nessa paisagem, todo o clima de natureza, vida campestre e tranquilidade – aparente nas montanhas de pedras, no tremulento manto aquoso, nas pequenas aldeias que alvejam os montes, na pequena igreja – convive com um clima de urbanidade, dos comboios, pontes e barcos sempre cheios de pessoas.

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Dessa leitura, é possível depreender que, além dos "monumentos físicos", tanto os naturais quanto os construídos em prol da civilização, evocam-se também, em conjunto com as construções e os cenários ecológicos, aspectos simbólicos que remetem às memórias de leitura e conceitos ideológicos feitos pelo eu lírico da leitura de A Cidade e as Serras. O viajante vê, além dos prédios e do campestre visíveis, os monumentos "invisíveis", carregados de sensibilidade graças à leitura em favor do campo, decorrente das leituras prévias encetadas pelo autor e de sua própria vivência. Nesse ponto da discussão, cumpre ressaltar que a referência ao autor foi proposital e inevitável, posto que, nesta parte em específico, atribuímos a uma opção autoral a disposição gráfica dos poemas, a seleção e o arranjo das fotografias, juntamente à escolha do título, que atribui às palavras o valor de monumentos. Assim sendo, interessa-nos também averiguar, num complemento às reflexões aqui propostas, o autor como “fazedor” e organizador do livro, como objeto. Para Gentil de Faria, "as melhores esculturas […] não eram trabalhos de artistas individuais, mas produtos de ação coletiva […]" (FARIA, 2008, p. 1-2). Com este pensamento, podemos propor a existência do "terceiro monumento" nas visões do eu lírico de Oliva: a "produção coletiva" que aqui se dá, observando como a voz do poema relaciona-se com o cenário, a fim de evocar seus registros de memória literária (que são autorais) para aplicar historicidade nos elementos que compõem o cenário. Com o que já existe, o enunciador dos versos molda o mundo em sua volta com seu conhecimento, para proferir seus sentimentos através da poesia. Se com o olhar e com as percepções ele cria e conceitua "monumentos" com o pensamento e a emoção, podemos depreender que recorre a outro material para também demonstrar a sua visão da catástrofe serrana: a palavra. 3.2 — OS MONUMENTOS POÉTICOS

As formas livres, sem rima e métrica dos poemas que compõem Monumentos de Palavras podem ser associadas com uma estética cada vez mais comum na produção literária recente: o abandono das formas tradicionais, com versos rimados e metrificados. Tal processo também vemos nas esculturas recentes, conforme aponta Rosalind E. Krauss: "a escultura do século XX adotou, repetidamente, formas que o público contemporâneo teve dificuldade de incorporar às suas ideias convencionais acerca da função característica das artes plásticas." (KRAUSS, 1998, p. 1). Contudo, fundir poesia e escultura pode parecer um problema, já que ambos possuem

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uma distinção fundamental entre si, conforme aponta KRAUSS (1998), de acordo com Gotthold Lessing:

Lessing declara que a escultura é uma arte relacionada com a disposição de objetos no espaço. E, prossegue, é preciso distinguir entre esse caráter espacial definidor e a essência das formas artísticas, como a poesia, cujo veículo é o tempo, Se a representação de ações no tempo é natural para a poesia, argumenta Lessing, não é natural para a escultura ou a pintura, pois o que caracteriza as artes visuais é o fato de serem estáticas. Em decorrência dessa condição, as relações entre as partes isoladas de um objeto visual são oferecidas simultaneamente a seu observador; estão ali para serem percebidas e absorvidas em conjunto e ao mesmo tempo (KRAUSS, 1998, p. 2, grifo do autor).

Para Krauss, enquanto a poesia é movida pelo "tempo", ou seja, há na estrutura poética uma série de ações sequenciais que progridem acontecimentos ou pensamentos, isto é impossível na escultura ou na pintura, devido ao fato de as artes visuais serem fixos no tempo. Contudo, as artes plásticas apresentam a "vantagem" de poderem ser percebidas com mais clareza no espaço, uma vez que as informações advindas do objeto artístico são enviadas e recebidas no mesmo instante para o receptor. Assim, percebe-se um contraste: como pensar as poesias da coletânea em estudo como monumentos? Para tanto, observemos "Último", sexto poema e o que encerra a primeira parte: Da Ermida para cima, Tudo é pedaço de saudade, Da Ermida para baixo, Tudo é certeza de passado. (OLIVA, 2010, p. 19)

Podemos ver que, a estação de Ermida para cima, entendendo este “para cima” como uma alusão às serras, constitui fragmentos do clima bucólico que elas representavam, proferido em um tom saudosista pelo sujeito poético. E da Ermida para baixo, ou seja, o lugar modificado por causa da modernidade, tudo se transformou em uma vida civilizada, deixando a certeza de que a vida campestre agora faz parte do passado. Este final sintético, subjetivo, pode ser visto como uma alusão às mudanças que a modernidade não só trouxe para a cidade, como também para a poesia, como é dito por Salete de Almeida Cara, onde o modelo de cidade atual “substitui aquela onipotência de um sujeito heroico, narrador do mundo e das peripécias dos homens, pela relatividade do mergulho na subjetividade." (CARA, 1989, p. 40). E ao fazer tão singelo final, podemos ver que, de acordo com Cara, o eu lírico cumpre a sua função como poeta moderno, este que “se vê projetado no mundo exterior, sabendo que desse mundo poderá fazer apenas uma tradução parcial.” (CARA, 1989, p. 40).

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Esses versos podem indicar a conclusão do que era inevitável: a civilização, de algum modo, iria chegar às serras. Logo, a voz do poema de Monumentos de Palavras lamenta, nem tom melancólico e saudosista os perigos que o progresso pode fazer aos ambientes naturais. Se no romance de Eça de Queiroz os malefícios de uma civilização desenfreada podem ser lidos através de um prenúncio de Zé Fernandes, nas poesias de Oliva as lamentações decorrem da paisagem definitivamente transformada, pois em nada a Tormes romantizada relembra a civilizada por onde passeia o eu lírico. Tal característica rende, na tirada final, a síntese de um “Último” (nome do poema também) lamentar sobre o deplorável e civilizado estado da quinta, onde, acima da estação de trens da Ermida, percebemos os restos de natureza que sucumbe ante ao avançado processo civilizatório. Esse resultado, sintético, aparentemente frio, traduz laconicamente o desconsolo do sujeito lírico. Os versos elaborados em uma estrutura rítmica semelhante, se os compararmos entre os pares, pode induzir à percepção de que a palavra não desenvolve um mero discurso, mas tenta, como parte de uma forma, traduzir a sensação de desalento e decepção pelo clima urbano a tomar conta das serras. A divisão entre poesia e escultura também pode nos mostrar outra caracterização do eu lírico de Monumentos de Palavras: a sua tentativa de diálogo com a arte escultural, um desejo de encarar a sua escrita no papel como um monumento. Isto pode ser entendido como uma atitude reacionária às sanções que tentam impor sobre o que é verbal, e o que não é. KRAUSS (1998), em diálogo com Carola Giedion-Welcker, diz que

Os recursos espaciais da escultura em termos de significado originavam-se naturalmente do fato de ser ela composta de matéria inerte, de modo que sua própria base implicava uma extensão no espaço e não no tempo. (KRAUSS, 1988, p. 2-3)

Se o verbo pertence ao tempo, e a imagem pertence à semiótica, a voz dos poemas de Oliva parece empregar um esforço para a formação de um híbrido entre ambos. O tempo corrente do texto frasal é anulado com o tempo estático, para o qual o eu lírico tenta sempre retomar, anulando, assim, o instante do tempo e permitindo observar o poema como uma escultura, um monumento, um registro de uma memória advinda da leitura do romance queirosiano. A analogia é procedente e imediata, visto que os monumentos ou esculturas nascem como reverências ou referências a seres que merecem ser lembrados. FARIA (2008) aponta para uma comunhão entre poesia e escultura, ao afirmar que "hoje sabemos que as duas artes, diferentes entre si, guardam muitas homologias e se interrelacionam. Não se questiona mais a existência de elementos pictóricos na poesia, e poéticos

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na escultura." (FARIA, 2008, p. 5), bem como "tanto escultura quanto poema incorporam a tradição do passado, amalgamada na recepção de uma nova estética no presente.". (FARIA, 2008, p. 7). Do mesmo modo, e em extensão a essa proposição, podemos considerar que o poema retrata, tal como as estátuas fotografadas dizem. São formas especulares de criação que representam o esforço de preservar, fixar e guardar, quase como um movimento inverso ao testemunhado pela voz poética, que registra a mudança e a degradação do ambiente natural. Sobre "A Fábrica do Poema", de Waly Salomão, que abre este capítulo, OLIVEIRA (2013) pontua que

Ao buscar na arquitetura, e não na literatura e outras artes, um parâmetro construtivo, um impulso para o seu fazer, Waly Salomão denuncia uma certa insuficiência da própria literatura enquanto "locus" para a efetivação do seu gesto criativo. (OLIVEIRA in OLIVA, 2013, p. 48).

Buscar fora da poesia uma solução para o que a palavra, a seu modo de ver, não dá conta de dizer, parece ser a solução feita pelo eu lírico de Monumentos de Palavras. Mas, diferentemente de Salomão, que vai fora da arte, a voz do poema busca nas artes plásticas, na escultura e na fotografia, em especial, uma maneira para demonstrar a "traição" de suas memórias feitas pelo espaço, com algo que a morfologia, a semântica e a sintaxe não dariam conta. Retomamos, aqui e novamente, a figura do autor, para quem os apelos e linguagens de outras formas de arte não são desconhecidos. Escritor e professor de literatura, Osmar Oliva também é pintor e fotógrafo. Seu trânsito criativo por diferentes sistemas semióticos parece encontrar, no livro em análise, um modo próprio de linguagem. Com palavra e memória, ao custo de uma tentativa de quebrar as barreiras que separam as artes, o eu lírico "compõe", "talha" e "molda" seus poemas-registros de viagem por Tormes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao propor a presente leitura de seis poemas de Monumentos de Palavras, este estudo objetivou fornecer um material que sirva de base para discussões futuras e estudos sobre a obra do autor. Por ser um estudo monográfico e um trabalho inédito acerca do livro aqui estudado e do próprio autor, seria temerário considerá-lo como uma análise definitiva. Entre as múltiplas possibilidades de leitura que o livro oferecia, selecionamos algumas possíveis de serem executadas, num trabalho de conclusão de curso. Depois de várias leituras, feitas ao longo do curso de Letras, optamos pela imagem da “escrita de mão dupla” como eficiente chave de leitura, pois ela pareceu-nos dar conta dos muitos processos de criação e tradução superpostos na obra, que incluíam a presença do autor e professor de literatura, especialista na obra de Eça de Queiroz, o eu lírico, entidade ficcional que carregava as emoções do viajante, do leitor e o fotógrafo, que imprimiu nas fotografias o esforço da seleção e nos poemas, o registro do olho do fotógrafo. Através de seis poemas, montamos três eixos temáticos — correspondentes a cada capítulo — para defender os aspectos que consideramos como pertinentes para uma leitura primária dessa coletânea de poemas. Podemos entender que esta pluralidade de assuntos torna possível remeter à pluralidade discursiva dos poemas de Oliva, conforme discutimos na "Introdução" e que pode ser vista ao longo deste estudo. Embora a multiplicidade de assuntos possa ser uma tarefa arriscada em um texto necessariamente curto como esta análise, acabouse por ser necessário não só por ser um dos primeiros trabalhos a respeito da obra, mas também pela série de referências que os versos de Monumentos de Palavras carregam em si. Também por uma necessidade imperiosa de tempo e de espaço, optamos pela não exploração das fotografias como uma linguagem em si e pelo não aprofundamento do temo “tradução”, que usamos algumas vezes, optando por oferecer ao leitor, em nota de rodapé, o sentido imediato que com que o termo foi empregado neste estudo. O temor é de que o tema inicialmente proposto oferecesse muitas ramificações e acabasse por apresentar um esboço imperfeito do desejado. No capítulo "Das Considerações sobre Monumentos de Palavras", achamos pertinente estruturá-lo com alguns aspectos gerais sobre a obra. O entendimento do eu lírico como um viajante que lança mão de um discurso polifônico nos seis primeiros poemas da obra denota as várias leituras que este livro ainda pode oferecer, e que precisam ser investigadas em outros trabalhos. No capítulo "Viagens entre as Cidades e as Serras", uma vez que já tivemos definido

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um breve perfil sobre o eu lírico de Oliva, debruçamo-nos sobre as referências que o sujeito poético faz do romance de Eça de Queiroz. Dada à importância que o autor lusitano tem para os estudos de literatura portuguesa, e considerando que ele é objeto de pesquisa do autor de Monumentos de Palavras, propomos em estabelecer alguns pontos com a finalidade de fomentar possíveis discussões de literatura comparada entre os dois autores. No capítulo "Da Palavra Talhada: os monumentos de palavras", propusemos trabalhar não só com os dois últimos poemas do sexteto analisado, mas igualmente promover uma aproximação com a outra parte do livro que aqui não foi analisada. Conforme vimos neste capítulo, a aproximação de poesia e escultura é problemática e possui divergências entre autores. Tentamos estabelecer uma aproximação entre as duas artes pelas seguintes vias: a do "monumento" natural, vislumbrada pelo sujeito lírico, e a do "monumento" poético, a partir do entendimento do texto como também um monumento. A nosso ver, parece-nos proveitoso este caminho em análises não só dos poemas aqui considerados, mas também dos que homenageiam as estátuas públicas da Ilha da Madeira. Pela pouca quantidade de trabalhos publicados a respeito, a obra de Osmar Pereira Oliva, sobretudo Monumentos de Palavras, merece atenção, especialmente, pela diversidade de vozes e gêneros imbricados em seus textos. Nesse sentido, talvez seja o objetivo maior desta presente monografia, com a pluralidade de temas que a constitui: contribuir para as futuras investigações sobre o autor e sua obra.

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