Totalitarismo e Corrupção. In: Avritzer, L.; Bignotto, N.; Guimarães, J. Starling, H.. (Org.). Corrução. Ensaios e Críticas. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, v. 1, p. 117-123.

June 5, 2017 | Autor: André Duarte | Categoria: Political Philosophy, Totalitarianism, Hannah Arendt
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Totalitarismo e Corrupção Discutir a relação entre totalitarismo e corrupção exige, em primeiro lugar, tomar posição em relação à própria categoria do totalitarismo, dado o seu caráter polêmico. Conforme o Dicionário de Política de Bobbio, Mateucci e Pasquino (1986), ela começou a ser utilizada na Itália fascista, a partir do início dos anos 30, mas somente se tornou freqüente entre os teóricos da política a partir dos anos 40. Karl Popper, em seu livro A sociedade aberta e seus inimigos, de 1943, já a emprega, embora não a refira a formas específicas de organização da vida política, mas a um conflito que perpassaria a tradição do pensamento filosófico de Platão a Marx, entre os teóricos das sociedades abertas, universalistas e racionalistas, e os teóricos das sociedades fechadas, totalitárias e irracionais. A noção de totalitarismo alcançou seu apogeu durante a guerra fria, quando foi por vezes empregada como adjetivo depreciativo contra os regimes comunistas, tornando-se rejeitada por alguns teóricos como carente de especificidade analítica. Mais recentemente, teóricos como Domenico Losurdo (2002) e Slavoj Zizek (2002) têm recusado e denunciado a categoria de totalitarismo por nela reconhecerem um instrumento ideológico que visaria encobrir as deficiências e patologias da democracia liberal no mundo pós-totalitário. Para Losurdo, se a categoria de totalitarismo continua a ser empregada atualmente, no pós-guerra fria, isto se deve a uma trágica contradição performativa: a contínua denúncia dos horrores do totalitarismo serviria à exigência de obliterar os crimes cometidos pelas democracias liberais ocidentais, particularmente pelos Estados Unidos, país em torno do qual se organiza a nova frente de combate contra o perigo do totalitarismo fundamentalista islâmico. De maneira similar, para Zizek o emprego contemporâneo da noção de totalitarismo serviria ao propósito de impedir o pensamento e a ação dos grupos políticos situados para além do horizonte da democracia representativa liberal, constituindo, portanto, um recurso ideológico para desqualificar a priori os seus críticos e adversários. Trata-se aí do emprego chantagista do termo totalitarismo, por meio do qual se acena com os perigos do centralismo, do assassinato em massa e da estagnação econômica a quem quer que apresente alternativas políticas democráticas radicais ou critique as insuficiências da democracia liberal parlamentar e da economia de mercado. No entanto, se é fato que a categoria de totalitarismo foi e tem sido utilizada como recurso para a desqualificação ideológica dos críticos da democracia liberal, nem por isso tal argumento seria suficiente para invalidar sua relevância teórica. O conceito de totalitarismo permanece indispensável no presente, pois recupera a memória de uma catástrofe política cujas sombras continuam a projetar-se sobre o presente e o futuro da democracia. Como salientou Enzo Traverso (2001), a despeito de polêmico o conceito de totalitarismo se impõe como ferramenta crítica indispensável para manter aberto o horizonte da liberdade. Dentre os teóricos que se dedicaram a pensar o totalitarismo como categoria analítica e explicativa, Hannah Arendt (1906-1975) é talvez a mais notável. Em sua obra Origens do Totalitarismo, de 1951, Arendt empregou tal categoria para descrever e analisar o nacional-socialismo de Hitler (1933-1945) e o stalinismo soviético (19301953), compreendendo tais regimes em suas semelhanças estruturais e neles enxergando o surgimento de um fenômeno político sem precedentes históricos. A partir da análise de sua peculiar forma de organização institucional, centrada na ideologia, no terror e nos campos de concentração e extermínio, Arendt concluiu que o totalitarismo impusera uma ruptura em relação às principais categorias políticas da tradição do pensamento político ocidental, como direita e esquerda, autoritarismo, ditadura, despotismo, tirania,

etc., as quais não seriam aptas para compreendê-lo. Para a autora, o totalitarismo não apenas transcende o escopo teórico das categorias políticas tradicionais, como também subverte os princípios éticos e jurídicos que nortearam as mais variadas formas de organização da vida política do ocidente, tornando, por exemplo, o genocídio uma prática legal e rotineira, burocraticamente organizada e implementada com recursos tecnológicos avançados. Dada a originalidade do fenômeno totalitário, consequentemente a corrupção que ali se observa não deve ser entendida em sentido corriqueiro, tal como ela se manifesta nos regimes políticos convencionais, isto é, de maneira geral, enquanto desvio dos padrões legais por parte de funcionários públicos ou representantes políticos, os quais visariam obter vantagens ilícitas por tal meio. Em outras palavras, pensar a relação entre totalitarismo e corrupção a partir da caracterização arendtiana do fenômeno totalitário implica estabelecer uma correspondência fundamental entre ambos os termos. Neste sentido, o fenômeno totalitário impõe a corrupção, entendida como perversão, dos padrões normativos políticos e jurídicos que orientam as práticas políticas dos demais regimes existentes. Para Arendt, a novidade do totalitarismo consiste em que ele corrompe as distinções fundamentais entre público e privado, entre Estado e sociedade civil, entre culpados e inocentes, entre bons cidadãos e assassinos, entre exceção e regra, entre razão de Estado, com seus imperativos estratégicos e instrumentais, e o paroxismo de uma lógica de atuação contraproducente e antiutilitária. Pode-se mesmo afirmar, segundo a interpretação arendtiana, que o objetivo dos governos totalitários é a corrupção do ser humano ao reduzi-lo ao mínimo denominador comum da vida orgânica, isto é, a um feixe de reações mecânicas condicionado por estímulos externos, desprovido de autonomia, liberdade e espontaneidade, motivo pelo qual os campos de concentração e extermínio são suas principais instituições. Para Arendt, o fenômeno totalitário corrompe a distinção entre governos baseados nas leis e governos desprovidos de legalidade, assentados na pura vontade arbitrária do déspota. Em sua pretensão de subordinar a liberdade humana e a totalidade da vida privada, social e política aos seus imperativos ideológicos, apagando a distinção entre as esferas pública, privada e social, os governos totalitários não deixam de pautar suas ações pelas leis que promulgam. Mais importante é o fato de que os governos totalitários alteram radicalmente o próprio conceito tradicional da legalidade ao compreendê-la por referência à supostas leis gerais do movimento da Natureza (nazismo) ou da História (stalinismo). Sob o totalitarismo, as leis positivas deixam de ser canais estáveis de limitação e promoção de novas relações entre os homens para tornarem-se o instrumento de transformação e criação da nova realidade totalitária. Esta, por sua vez, deve ser conforme à ideologia exposta e imposta pelo líder absoluto do movimento, o qual concentra em si a liderança do partido único, do Estado e da polícia secreta, que se transforma em poderoso braço de aplicação da legalidade totalitária. Para Arendt, os pilares de sustentação dos regimes totalitários são o terror, a ideologia e os campos de extermínio, instâncias que se articulam de maneira complementar: se a ideologia totalitária afirma que as raças inferiores ou as classes sociais decadentes conspiram contra o governo e truncam o desenvolvimento progressivo do curso da história ou da natureza, então o terror deve aniquilar tais raças, classes e traidores a fim de que a história e a natureza possam seguir seu curso. Por sua vez, para que a operação meticulosamente programada do extermínio de milhões seja levada a cabo, todo um conjunto de prescrições ideológicas legalizadas positivamente deve ser estritamente respeitado e posto em prática pela polícia secreta. Garante-se assim a privação de direitos, a remoção forçada para guetos e campos de concentração,

a desmoralização, a desnutrição, a tortura e finalmente o próprio massacre e corrupção de seres humanos transformados em vermes e parasitas abjetos. Tudo isto significa que, sob condições totalitárias, corrompe-se a concepção convencional a respeito dos inimigos do regime, os quais não são designados em função do que pensem, façam ou falem, como nas ditaduras, despotismos ou tiranias, pois o simples fato de existirem determina sua condição de inimigo objetivo ou socialmente indesejável, destinando-os ao abate. É por isso que as principais instituições dos governos totalitários são as fábricas da morte, os campos de concentração e extermínio nos quais se testa a possibilidade de reduzir os seres humanos à condição da vida nua que pode ser eliminada sem mais, segundo a terminologia empregada por Giorgio Agamben (2002) em seu diálogo com a análise arendtiana do totalitarismo. Ao considerar o totalitarismo como um fenômeno político sem precedentes históricos, Arendt não deixou de pensá-lo como fenômeno especificamente moderno, no qual se cristalizaram experiências históricas e políticas tipicamente modernas, como: racismo, xenofobia, apatia política decorrente do processo de isolamento dos cidadãos, atomização e massificação dos indivíduos, imperialismo econômico, multiplicação das minorias, dos apátridas e refugiados, bem como a crescente superfluidade de massas humanas desprovidas de cidadania e de ocupação social digna. Ademais, como advertiu Zygmunt Bauman (1997), em análise inspirada nas concepções arendtianas, o totalitarismo é um evento político especificamente moderno na medida em que resulta de uma série de condições históricas e sociais que tornaram possível a conjugação da ciência, da tecnologia e da burocracia administrativa para a eliminação de todo aquele que estorve a fabricação planejada de uma sociedade purificada e homogênea, corrompendo-se assim a pluralidade como condição da vida política democrática. BIBLIOGRAFIA: Agamben, G. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. Humanitas UFMG, 2002. Arendt, H. The Origins of Totalitarianism. 3v: “Antisemitism”, “Imperialism”, “Totalitarianism”. Nova York: Harvester Books, 1968. As origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. Bauman, Z. Modernidad y Holocausto. Toledo: Sequitur, 1997. Bobbio, N.; Mateucci, N.; Pasquino, G. Dicionário de Política. DF: Editora da UnB, 1986. Losurdo, D.: “Para uma crítica da categoria de totalitarismo”. In Crítica marxista, vol. 17, 2003. Popper, K. A sociedade aberta e seus inimigos. SP: Edusp, 1987. Traverso, E. Totalitarismo. Historia de un debate. Buenos Aires: Editorial Universidad de Buenos Aires, 2001. Zizek, S. Quién dijo Totalitarismo? Cinco intervenciones sobre el (mal) uso de una noción. Valencia: Pre-textos, 2002.

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