Traçando destinos: desafios narrativos e éticos da biografia histórica.

June 20, 2017 | Autor: Alexandre Avelar | Categoria: Biography, Theory of History
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Traçando destinos: desafios narrativos e éticos da biografia histórica. Drawing destinations: narrative and ethical challenges of the historical biography Alexandre de Sá Avelar1 Resumo: A escrita de biografias não é mais, atualmente, um tabu para os historiadores, como foi em outros momentos. O crescente interesse por trajetórias individuais veio acompanhado de importantes desafios à historiografia. O objetivo deste artigo é apresentar e discutir dois desses desafios. O primeiro deles refere-se ao caráter híbrido da narrativa biográfica, entre o real e o fictício. O segundo concentra-se em destrinchar algumas questões de natureza moral que são inerentes à narrativa biográfica, especialmente sua dimensão pedagógica e a ética específica do historiador. Palavras-chave: biografia; história; narrativa; ética.

Abstract: Writing biographies is not currently a taboo for historians, as it had been at other times. The growing interest in individual trajectories was accompanied by significant challenges to historiography. The objective of this paper is to present and discuss two of these challenges. The first one refers to the hybrid character of the biographical narrative, between the real and the fictional. The second objective focuses on unraveling some questions of a moral nature that are inherent in biographical narrative, especially its pedagogical dimension and the specific ethical historian. Key-words: biography; history; narrative; ethics. Por que é que o historiador repensa sua incompetência de biógrafo através de figuras estranhas, enceguecidas pela própria natureza? Não será com a ajuda e o apoio dessas imagens fantasmagóricas que se deve avaliar a competência do biógrafo? Todo biógrafo não será monstruoso por definição? Cada um, a seu jeito, não será cego de um olho e estrábico do outro? Não enxerga o que pode, não reproduz o que quer e não engendra só o que é conveniente? (Silviano Santiago)2

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Professor do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia. SANTIAGO, Silviano. Mil rosas roubadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p.24.

Em Respiração artificial, Ricardo Piglia narra o esforço de Marcelo Maggi, personagem que tenta, a todo custo, retraçar a vida de Enrique Ossorio, político que viveu na segunda metade do século XIX. Ossorio era bisavô de Esperancita, ex-mulher de Maggi, o que proporcionou ao desventurado biógrafo herdar um conjunto significativo de documentos pessoais do seu biografado. Os infortúnios da escrita biográfica são continuamente desnudados por Maggi em correspondências trocadas com Emilio Renzi, seu sobrinho. Numa passagem, Renzi revela o conteúdo de uma dessas cartas:

Na realidade, [...] por trás das polêmicas paródicas que travávamos de vez em quando, o que acabou se transformando no centro da correspondência de Maggi comigo foi seu trabalho sobre Enrique Ossorio. Fazia tempo que estava escrevendo aquele livro – e os problemas que encontrava começaram a permear suas cartas. Estou me sentindo como se estivesse perdido na memória dele, escrevia-me, perdido numa selva onde tento abrir caminho para reconstruir o rastro dessa vida entre os restos e os testemunhos e as notas que proliferam, máquinas do esquecimento. Sofro da clássica desventura dos historiadores, escrevia-me Maggi, embora não passe de um historiador amador. Sofro dessa desventura clássica: ter querido me apropriar daqueles documentos para decifrar neles a certeza de uma vida e descobrir que são os documentos que se apoderaram de mim e me impuseram seus ritmos e sua cronologia e sua verdade particular.3

A crença na capacidade de apropriar-se da vida do personagem até ser apoderado por ele; a imersão em uma memória outra que produz a sensação de desorientação, de ausência de sentido ou de rumos incertos; a alteridade que se recusa a se tornar semelhança; a árdua batalhar para re-presentar a vida que não mais é do nosso tempo, que está depositada em registros esparsos, em fragmentos que são submetidos forçosamente à condição de fontes documentais; todas essas agruras, tão aguçadamente percebidas por um ficcionista talentoso como Piglia, estão no cerne das discussões recentes sobre as relações entre escrita biográfica e escrita da história e, de algum modo, este artigo pretende dialogar com algumas dessas incertezas e angústias, especialmente aquelas ligadas ao estatuto narrativo da biografia – espremida entre sua intenção de verdade e sua dimensão inevitavelmente ficcional – e às questões ético-morais que surgem, inevitavelmente, em todo empreendimento biográfico. História e biografia se reencontraram. Essa afirmação, feita sem maiores esclarecimentos, certamente está carregada de banalidade, afinal, pode existir uma biografia sem o recurso a uma dada exposição narrativa que se valha de elementos dispostos no tempo? Há a possibilidade de narrar uma vida abstraindo-se de alguma modalidade de ordenamento cronológico que nos situe, mesmo que perifericamente, no interior de um conjunto de 3

PIGLIA, Ricardo. Respiração artificial. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.22-23.

experiências históricas? Essas questões são aparentemente triviais. Ao longo dos tempos, elas foram fonte de estridentes controvérsias entre os historiadores. Atualmente, contudo, o grande interesse por vidas individuais entre intelectuais que trabalham em diferentes disciplinas levou a que se postulasse até mesmo um biographical turn nas humanidades.4 Admite-se, cada vez mais, que estudar uma vida não é uma tarefa menor e as vicissitudes de uma trajetória podem ser de interesse não apenas de um público mais amplo, mas também de acadêmicos preocupados em compreender os fenômenos sociais em sua historicidade. No entanto, nem sempre a biografia foi vista como uma forma legítima de conhecimento histórico. No mundo antigo, a escrita da história e a escrita biográfica estavam submetidas a distintos registros sobre o passado. São bem conhecidas as palavras de Plutarco, quando no prefácio de “Vidas de Alexandre”, parte de sua conhecida Vidas paralelas, afirma que “não escrevemos histórias, mas vidas”5. Ao contrário dos historiadores, não era dever dos biógrafos a exatidão documental, a clareza do detalhe ou a precisão empírica. Sua escritura deveria se concentrar na produção de narrativas exemplares – mesmo desafiando as evidências – que pudessem instruir os homens do presente. O mesmo propósito poderia ser encontrado em A vida dos doze Césares, de Suetônio.6 A ênfase na exemplaridade e na função moral da biografia era própria de um regime de historicidade em que o passado explicava o presente e orientava o futuro. Era possível resgatar desse relato o que poderia ensinar os homens em sua sempre difícil relação com o tempo e com os outros homens e, como veremos, poucos biógrafos, mesmo nos chamados tempos modernos, deixaram de admitir as tonalidades moralizantes do gênero biográfico. A construção da história como campo científico não trouxe bons ventos para a biografia, ainda que o problema da ação humana não tenha sido totalmente indiferente a importantes autores do século XIX, como demonstra Sabina Loriga em seu fundamental O pequeno X.7 A conversão dos relatos particulares em coletivo singular produziu o moderno conceito de história e passou a explicar os processos históricos em sua unicidade. Sob a ótica de um regime de historicidade que se fundava não mais na exemplaridade dos feitos do passado, mas na valorização do futuro como horizonte temporal privilegiado e como instrumento de formação nacional, a biografia não gozava de grande prestígio. Não causa 4

RUSTIN, Michael. Reflections on the biographical turn in social science. In: CHAMBERLAYNE, Prue, BORNAT, Joanna e WENGRAF, Tom (eds.). The turn to biographical methods in social science. Londo: Verso, 2000, p.33-52. 5 Apud REVEL, Jacques. A biografia como problema historiográfico. In: História e historiografia: exercícios críticos. Curitiba: Editora da UFPR, 2010, p.238. 6 SUETÔNIO, Caio Tranquilo. A vida dos Doze Césares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, s/d. 7 LORIGA, Sabina. O pequeno X: da biografia à história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

espanto, portanto, o desprezo de Henry Buckle para quem a escrita da história não deveria estar sob a responsabilidade de “biógrafos, genealogistas e colecionadores de anedotas, cronistas de corte, estes bons divulgadores de mundanidades”.8 A psicanálise também não nutria maiores simpatias pelo gênero biográfico e aqui o exemplo mais eloquente poderia ser extraído do próprio Freud e de todo o seu desinteresse pela atividade do biógrafo.9 O entusiasmo de Thomas Carlyle, para quem a história era a essência de inúmeras biografias, cujas narrativas eram mais significantes do que o estudo das instituições políticas e batalhas militares, não compunha um coro dominante. Entretanto, um destacado historiador como Lord Acton ainda poderia afirmar que “nós não podemos perder de vista os grandes homens e as vidas memoráveis e somos obrigados a guardar os objetos de admiração tanto quanto possível”.10 Se o regime moderno de historicidade, ao longo do século XIX, ressaltava o ponto de vista progressista do curso da história, para historiadores como Acton e Carlyle, continuava sendo importante compreender as ações e o caráter de indivíduos vistos como construtores desse tempo de otimismo e de crença de que o progresso era a marca indelével da experiência humana. A biografia como acesso à compreensão de sistemas sociais complexos fizera parte das preocupações de alguns historiadores dos Annales. Lembremos apenas de dois exemplos: ao produzir seu primoroso estudo sobre Rabelais, Lucien Febvre estava vivamente interessado em compreender os discursos religiosos à época da Reforma e, em especial, a (im)possibilidade de manifestações ateístas11. O segundo exemplo nos remete a Guilherme Marechal, de Georges Duby, no qual o personagem central da narrativa era a porta de entrada para o estudo sistemático da cavalaria medieval e do próprio sistema feudal. O notável annnaliste tinha apenas cometido um desvio em relação à forma de tratar o seu objeto de tantas pesquisas: o indivíduo, a trajetória individual tornava-se o caminho para que as

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Apud LORIGA, Sabina. A biografia como problema. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, p.231. 9 Não foram poucos os comentários ácidos de Freud sobre os biógrafos. Em 1885, talvez antecipando a própria grandeza intelectual, numa carta à noiva, afirmou que destruíra quase todas as suas anotações para que os biógrafos “penem e labutem”. Em 1910, num artigo sobre Leonardo da Vinci, atacava a idealização que caracterizava qualquer biografia, vista como nada mais do que a produção fantasiosa de um herói. Em 1935, em tom ainda mais combativo, escreveu a Arnold Zweig – que havia se proposto a escrever sobre a vida de Freud: “Quem quer que se torne biógrafo [...], entrega-se a mentiras, a ocultamentos, à hipocrisia, a embelezamentos, e mesmo à dissimulação de sua própria falta de compreensão pois não se alcança a verdade biográfica e, mesmo que alguém a alcançasse, não poderia usá-la”. In: GAY, Peter. Freud: uma vida para o nosso tempo. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.13. 10 ACTON, Lord. A lecture on the Study of History. London; Macmillan, 1896, p.13. 11 FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

engrenagens do funcionamento do mundo medieval pudessem vir à tona.12 Mesmo que estivéssemos diante de um claro uso instrumental, a biografia não era inteiramente estranha aos Annales, sendo vista como uma forma legítima de compreensão de estruturas mais amplas que transcendiam o indivíduo. Um exame apenas superficial da produção editorial mais recente serviria para constatarmos a forte presença do gênero biográfico, com títulos abrangendo vidas de personalidades diversas, como escritores, artistas, esportistas ou políticos. É possível mesmo estendermos o raio de nossa observação para incluir um amplo conjunto de escritas em primeira pessoa, tais como diários, autobiografias, correspondências, entrevistas, blogs etc., conformando a existência daquilo que Leonor Arfuch denominou espaço biográfico.13 Estamos diante da simples e velha curiosidade em torno da vida dos outros que, desde tempos mais remotos, animou a produção de biografias do tipo “a vida secreta de...” ou o recente crescimento da escrita de biografias deve fazer com que o observador atente para questões mais profundas a respeito das relações entre indivíduo e sociedade ou, ainda, dos recentes desenvolvimentos epistemológicos da nossa disciplina? Diversas razões foram atribuídas para o crescimento do interesse dos historiadores pela biografia: descrédito das abordagens marxista e estruturalista; crescente individualismo nas sociedades de consumo contemporâneas; o retorno da narrativa ao debate historiográfico ou a recuperação da outrora marginalizada história política. Uma vasta bibliografia deu eco ao debate que, em linhas gerais, concentrou-se no exame das relações entre indivíduo e meio, nas noções de contexto e “eu” e na definição dos sujeitos biografáveis. Neste artigo, contudo, pretendo me concentrar em dois problemas que considero dos mais relevantes na escrita biográfica e que, a meu ver, ainda merecem mais atenção dos historiadores: as relações entre a biografia histórica, o real e o fictício, o hibridismo do qual nos fala François Dosse, e a dimensão ética da narrativa biográfica, ou seja, as questões morais implicadas na relação entre biógrafo e biografado.14

A biografia entre o real e o imaginário A constituição da história como ciência levou ao estabelecimento de fronteiras bem definidas entre a escrita do historiador e aquela do romancista. Se o primeiro tinha por dever de ofício referenciar seus acontecimentos em fontes documentais por meio dos seus 12

DUBY, Georges. A história continua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Editora da UFRJ, 1993, p.137-38. ARFUCH, Leonor. El espacio biográfico: dilemas de la subjetividad contemporánea. Buenos Aires: Fondo de Cultura, 2010. 14 DOSSE, François. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009, p.55. 13

protocolos metodológicos de crítica interna e externa, ao segundo não se creditava tamanha responsabilidade, o que lhe facultava o livre exercício da imaginação. O conhecimento histórico traduzir-se-ia em uma forma narrativa que espelhasse, o máximo possível, os eventos. Não havia espaço, portanto, para fabulações ou quaisquer outros recursos ao ficcional. Os limites escriturários eram claramente definidos e todo o empreendimento de construção da história como ciência dependia da reafirmação do imperativo da verdade como objetivo maior do historiador. Tal cisão entre discurso histórico e ficcional atravessou grande parte da historiografia do século XX. Atualmente, entretanto, as aproximações entre texto historiográfico e literário são bem conhecidas. Elas guardam relação direta com o “giro linguístico” que, apesar da grande variedade de autores e correntes, enfatiza a ideia da inexistência de uma realidade extralinguística inteiramente independente das representações textuais e discursivas. O real, nessa ótica, só pode nos chegar por intermédio de um texto cujos sentidos e significados não apontem diretamente para o mundo exterior, mas para outros textos e signos. Assim, Frank Ankersmit aponta quando afirma que “estamos familiarizados com a idéia de que, em qualquer área da historiografia que possamos imaginar, em qualquer especialização, uma quantidade superabundante de artigos e livros é produzida anualmente, tornando conhecê-los tarefa impossível”.15 Os historiadores que incorporaram os debates do giro linguístico à escrita da história argumentavam que a linguagem não era somente uma modalidade de comunicação, mas a própria possibilidade de conhecimento histórico, entendido como um discurso baseado tanto em elementos encontrados na experiência passada quanto em protocolos linguísticos que também podem ser vistos nos textos ficcionais. É o que Hayden White tinha em mente ao afirmar a necessidade de “considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tão inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências”.16 É certo que os historiadores-biógrafos continuam acreditando que sua tarefa consiste, primordialmente, em oferecer um relato do seu personagem que se situe o mais próximo possível do vivido, da experiência real do passado. Tal ambição pode ser percebida desde o momento da pesquisa documental, passando pela elaboração explicativa até se consolidar na construção textual. Essa sensação de poder com base nos protocolos consagrados de pesquisa

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ANKERSMIT, Frank. Historiografia e pós-modernismo. Topoi. Rio de Janeiro, v.2, 2001, p.113. WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p.98. 16

com o objetivo de controlar o curso da vida de seu personagem é, ao mesmo tempo, a força que dá sentido ao trabalho de construção do texto biográfico e seu maior risco, uma vez que, convencido de sua capacidade de penetrar nos acontecimentos e fatos relevantes de uma existência individual, o biógrafo se vê, em diversas situações, numa encruzilhada narrativa ao se deparar com lacunas documentais e perguntas sem resposta. A narrativa não significa apenas a exposição dos feitos de um indivíduo inserido em determinados sistemas normativos, revelando suas possibilidades de ação e os constrangimentos que lhe são impostos. Ela postula uma relação possível entre o tempo do mundo da vida, o do relato e o do leitor. Mas é possível restituir a vida de um indivíduo em sua totalidade? Trazer tudo à luz é uma ambição que deve orientar o trabalho do biógrafo? A conhecida crítica de Pierre Bourdieu à ambição dos historiadores de oferecer uma narrativa coerente e linear dos seus biografados é ainda uma das mais difundidas em relação à escrita biográfica. Segundo o sociólogo francês, a biografia ancora-se no pressuposto “de que a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e objetiva, de um projeto”.17 O enredo de uma vida, contudo, não é uma trajetória retilínea em direção a um fim determinado que já se manifestava desde os momentos mais remotos da infância do personagem. A possibilidade de uma individualidade fixa, unitária e coerente parece então se perder em meio a uma pluralidade de identidades, referências, locais. Os indivíduos não podem mais ser enquadrados em esquemas conceituais definidos e em marcos teóricos preestabelecidos. Os vários aspectos de uma vida não são suscetíveis a uma narração linear, não se esgotam numa única representação, na ideia de uma formulação identitária exclusiva. Ao construírem biografias, os historiadores devem estar atentos aos perigos de formatar seus personagens e de induzir o leitor à expectativa ingênua de estar sendo apresentado a uma vida marcada por regularidades, repetições e permanências. A desconstrução desse arcabouço deve fazer do historiador alguém que “não aponta caminhos únicos, mas que descobre bifurcações, entroncamentos, cruzamentos de caminhos que são ao mesmo tempo fronteiras e possibilidades”.18 Como nós, nossos personagens não são modelos de coerência e racionalidade. Eles são atravessados por tensões entre a experiência e o desejo. Tanto para

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BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.184. 18 ALBUQUERQUE JÙNIOR, Durval Muniz. A singularidade: uma construção nos andaimes pingentes da história. In: História: a arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Bauru: EDUSC, 2007, p.248.

eles quanto para nós, há uma parte quase sempre indecifrável do aleatório, do imprevisível, do misterioso da vida. A tensão entre o desejo da biografia em se estribar no verídico e a ilusão de fornecer um relato coerente e uniforme sobre a existência levou muitos biógrafos a realçarem a posição intermediária que o gênero ocupa entre a ciência e a ficção, entre mimesis e vidas imaginárias. O gênero biográfico é uma mistura de erudição, criatividade literária e intuição psicológica e sua natureza consiste exatamente nessa fluidez epistemológica. A proximidade com o romance moderno não é fortuita e o reconhecimento da influência da literatura sobre a biografia histórica foi, arrisco-me a dizer, até bastante tardio. A ficção já havia antecipado o caráter difuso de uma experiência individual e o romance nos obrigou a reconhecer a natureza descontínua da realidade, composta por elementos justapostos, imprevistos, aleatórios, cuja reconstrução em uma unidade de sentido só pode ser efetuada como um exercício, em larga medida, imagético. Como adverte Sabina Loriga, renunciar ao simulacro da integridade individual é uma tarefa ainda desafiadora, pois “o estudo do passado continua a privilegiar uma concepção aritmética do indivíduo, pré-psicanalítica e mesmo pré-dostoievskiana – concepção que não oferece ao personagem homem senão uma alternativa: desempenhar o papel de um ser consciente e coerente ou, então, o de um peão no tabuleiro de xadrez da necessidade”.19 A biografia, neste caso, instala-se em um regime de verdade que pressupõe um modelo de racionalidade pouco flexível. Sobre esse aspecto, são prudentes as palavras do historiador italiano Giovanni Levi:

[...] raramente nos afastamos dos esquemas funcionalistas ou da economia neoclássica; e estes supõem atores perfeitamente informados e consideram, por convenção, que todos os indivíduos têm as mesmas disposições cognitivas, obedecem aos mesmos mecanismos de decisão e agem em função de um cálculo, socialmente normal e uniforme, de lucros e perdas. Tais esquemas levam, pois, à construção de um homem inteiramente racional, sem dúvidas, sem incertezas, sem inércia. A maioria das biografias assumiria, porém, outra feição se imaginássemos uma forma de racionalidade seletiva que não busca exclusivamente a maximização do lucro, uma forma de ação na qual seria possível abster-se de reduzir as individualidades a coerências de grupo, sem renunciar à explicação dinâmica das condutas coletivas como sistemas de relação”.20

Numa conferência, em 1928, André Maurois já situava o gênero biográfico a meio caminho do procedimento científico e da dimensão estética. Ainda que defendesse um enfoque cronológico, aproximava a biografia do romance, na medida em que a intriga criava 19

LORIGA, Sabina. A biografia como problema. Op.cit., p.245. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, Janaína e FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p.180-181. 20

no leitor a expectativa do futuro.21 Como na literatura, o apreciador de biografias era impulsionado a acompanhar os medos, os sofrimentos e as incertezas do personagem. A escolha dos materiais a serem usados pelo biógrafo era outro procedimento assemelhado aos praticados pelo artista: aqui a comparação era com o retratista, que realizava suas escolhas sem descuidar do que era essencial para a tela. Ao mesmo tempo, os cuidados do cientista não poderiam abandonar o biógrafo, pois este manteria com o seu leitor um pacto de verdade. Trata-se de um gênero difícil, pois, para Maurois, “exigimos dela (da biografia) os escrúpulos da ciência e os encantos da arte, a verdade sensível do romance e as mentiras eruditas da história”.22 Mais de sete décadas depois, em 2003, encontramos uma passagem bastante similar em Alain Gerber, autor de uma biografia sobre Chet Baker: A única resposta é a prática cotidiana, ou quase, daquilo que seria, nem tanto uma biografia ‘romanceada’ (como por algum tempo pensei), mas antes uma biografia romanesca, ou seja, culpada em relação às suas fontes de uma desenvoltura que constitui não apenas sua liberdade, mas também sua razão de ser – de certa maneira, seu ideal. Minha tarefa mais penosa, a que menos me convinha, terá sido curvar-me à lei da preguiça, cultivar a boa vida, a inexatidão, o abuso da linguagem, o travestimento, a sublimação, a mentira, a transposição onírica desbragada, a escolha da visão contra a observação dos fatos e, por fim, a atitude inculta. Munido dessa presunção, sem a qual nada seria possível (quer dizer, tolerável em sã consciência), tentei descobrir uma certa verdade para além do real. Em suma, quis proclamar o falso para exprimir, apesar de tudo, um verdadeiro que permanece, e sem dúvida deve permanecer, inexprimível. Infelizmente não sou poeta, mas apelei para a poética, ou pelo menos espero ter apelado.23

. As variações narrativas encontradas nos textos biográficos desde a emergência de uma “biografia moderna” nos anos 20 modelaram o gênero em suas tênues fronteiras entre as intenções de verdade e as indeterminações e incertezas que exigem do biógrafo uma sensibilidade próxima à do ficcionista. Gostaria de encerrar esta parte do artigo com dois breves exemplos, entre outros tantos possíveis, os quais, a meu ver, são esclarecedores tanto das possibilidades quanto dos limites de uma biografia nascida do comércio incestuoso entre a ciência e da ficção. Recorro a um historiador e a um crítico literário.24

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MAUROIS, Andre. Aspects of the biography. New York: D. Appleton & Company, 1929. Ibidem, p.199-203. 23 Apud. DOSSE, François. Op.cit., p.79 24 Orlando, de Virginia Woolf, também poderia ser lembrado como uma das mais provocantes experiências de escrita biográfica da onda de renovação do gênero que marcou as primeiras décadas do século XX na Inglaterra. O livro revela as preocupações da escritora em juntar a criatividade, a implicação subjetiva e a ruptura com o código moralizante da época vitoriana para evocar simultaneamente o real e o imaginário. A personagem de Orlando, fruto criativo de uma relação de amor e fascínio que Woolf mantinha com a poetisa Vita Sackville-West, é um andrógino colocado significativamente sob o signo do hibridismo, revelador da mescla de gêneros que a escrita biográfica pressupõe. Certamente, a narrativa de um herói como Orlando, que atravessa vários séculos e cuja sexualidade muda ao longo do percurso, está mais próxima do gênero romanesco do que do literário, 22

A biografia de Arnaud de Brescia, religioso e reformador medieval, escrita por Arsenio Frugoni e publicada em 1954, é vista como precursora das questões colocadas ao gênero biográfico por meio dos debates que se seguiram à crise dos modelos globalizantes em história e das problemáticas suscitadas pelas preocupações com a narrativa histórica.25 Dosse, por exemplo, identifica nesse trabalho uma antecipação do tratamento à biografia que seria dado pela micro-história italiana.26 Os dez capítulos da obra compõem dez perfis distintos do personagem e Frugoni não se preocupa, em nenhum momento, com a construção de uma síntese de Arnaud capaz de revelar sua verdadeira personalidade, essência ou identidade. A narrativa não postula hierarquizações e o leitor que pretenda encontrar qualquer sentido definitivo na vida do biografado certamente estranhará a pluralidade de perspectivas que o livro sugere. Na introdução da edição francesa, Alain Boureau afirma que “Frugoni [...] toma partido do fragmento, da descontinuidade do real; um fato repetido por diversas fontes não possui forçosamente maior realidade do que um detalhe pouco visível oferecido por uma única fonte”.27 Sem se preocupar em preencher as lacunas documentais, Frugoni confronta as versões como representativas de pontos de vista parciais. Não se percebe no seu trabalho qualquer intento de revelar a verdade primária do personagem, mas o de abrir caminho para a compreensão verossímil por intermédio da dança das interpretações. As dez versões são reproduzidas e apresentadas sem nenhuma reivindicação de totalidade, tendo apenas o objetivo de oferecer elementos para a compreensão da lógica própria de cada uma dessas construções históricas. Assim, Frugoni, como realça Dosse, convida a um novo exame desses documentos, não mais, entretanto, com o sentido de preencher os recorrentes vazios narrativos vislumbrados pelos historiadores que “ajuntaram diversos fatos complementares para ter um relato completo e coerente baseado em hipóteses verossímeis”.28 Os fragmentos e retratos traçados nos capítulos da obra permitem a apreensão de aspectos da vida de Arnaud, suas lutas, visões de mundo e contradições, jamais se aproximando de uma biografia stricto sensu. As fontes e seus testemunhos desnudam diferentes modulações do personagem. O trabalho, dessa maneira, “pretendeu reencontrar nos diversos retratos de Arnaud, além da alma das suas testemunhas, não a ocasião para um novo mosaico de conjecturas visando a mas Woolf pretende justamente subverter as certezas convencionais da escrita biográfica. Orlando é, pois, um mergulho nas questões colocadas pelo advento da biografia moderna. Ver WOOLF, Virgínia. Orlando. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. 25 FRUGONI, Arsenio. Arnaud de Brescia dans le sources du XII siècle. Paris: Lês Belles Lettres, 1954. 26 Apud DOSSE, François. Op.cit., p.259. 27 BOUREAU, Alain. Introduction. “Deux agitateurs”. In: FRUGONI, Arsenio. Op.cit., p.XV. 28 DOSSE, François. Op.cit., p.260.

uma impossível biografia completa ou a uma ilusória genealogia de doutrinas desarticuladas, mas o significado histórico da experiência de um reformador”.29 Fragmentos que compõem múltiplos sentidos e significados, fornecendo vias de acesso a uma personalidade multifacetada, as fontes não exigem protocolos de verdade, mas descortinam pontos de vista e versões testemunhais de uma identidade que escapa aos dizeres do uno e do indivisível. Como Shakespeare se tornou Shakespeare, de Stephen Greenblatt, é meu outro exemplo.30 O título alude ao percurso investigativo essencial do livro, ou seja, compreender os caminhos que levaram Shakespeare à sua obra, ou seja, a sua trajetória até se tornar o maior dramaturgo já em seu tempo. Essa preocupação se mescla à outra: a de desfazer a ideia de que suas peças sejam resultado de uma ação sobre-humana, quase mítica. Reconstruir os campos de possibilidades nos quais se deram os projetos de Shakespeare e recuperar as múltiplas relações que estabeleceu em seu espaço social possibilita que o autor escape dessa imagem de ter sido um homem absolutamente genial e mesmo fora do seu tempo. Shakespeare é localizável por meio da reconfiguração de múltiplos contextos: das obras que circulavam em sua época, das peças encenadas e das lutas religiosas daqueles anos. Até então podemos ser levados a pensar que se trata de uma biografia ao estilo tradicional com a elucidação das camadas contextuais que servem de pano de fundo para as ações do indivíduo estudado. Mas trata-se de uma trajetória construída sobre lacunas, falhas na documentação e registros precários. Greenblatt faz então uso sistemático da imaginação como forma de superar as insuficiências documentais e o resgate impossível do passado. Se a obra do dramaturgo foi largamente estudada, bem como a fase da vida em que já era autor consagrado, são esparsas as referências ao período-alvo do livro, ou seja, aquele da transformação do personagem em um escritor excepcional. Greenblatt adverte seu leitor de que há “imensas lacunas que tornam qualquer análise biográfica de Shakespeare um exercício de especulação”.31 Daí o recurso a expressões tais como “provavelmente”, “é possível”, “talvez”, entre outras atestadoras da dúvida e da incerteza. Um exemplo: ao escrever O mercador de Veneza, Shakespeare teria refletido sobre a função social do riso tendo por base a peça O judeu de Malta, de Marlowe, e de uma cena que possivelmente vira: a execução do Dr. Lopez, médico da rainha e conspirador judeu que, em seu derradeiro momento, afirmou amar Jesus tanto quanto a soberana, o que produziu intensos risos entre os presentes. Diz Greenblatt: 29

FRUGONI, Arsenio. Op.cit., p.173. GREENBLATT, Stephen. Como Shakespeare se tornou Shakespeare. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 31 Ibidem, p.16 30

Já no século XIX existiam boas biografias [de Shakespeare], ricas em pormenores e bem documentadas, e cada ano traz uma nova safra delas, às vezes complementadas com um novo detalhe descoberto a duras penas, ou algum novo achado de arquivo. Depois de examinar as melhores delas e filtrar com toda a paciência a maior parte dos vestígios existentes, dificilmente o leitor se sentirá mais perto de entender como se deram as realizações do dramaturgo. É possível que Shakespeare pareça uma pessoa ainda mais hermética e abstrusa, e as fontes íntimas de sua arte se mostrem mais obscuras do que nunca. Essas fontes já seriam bem difíceis de detectar mesmo que os biógrafos pudessem contar com cartas e diárias, memórias e entrevistas da época, livros com anotações reveladoras, notas e rascunhos. Nada disso chegou até nós, nada que proporcione uma ligação clara entre a obra eterna com apelo universal e uma vida particular que deixou tantas marcas nos tediosos documentos burocráticos de seu tempo. [...] Para entender quem foi Shakespeare, é importante seguir as pegadas verbais que ele deixou atrás de si na vida que viveu e no mundo para o qual estava tão aberto. E, para entender como Shakespeare usou a imaginação para transformar sua vida em sua arte, é importante usar nossa própria imaginação.32

A estratégia narrativa se organiza na tentativa de estabelecer contato entre os contextos sob os quais Shakespeare viveu e a obra posterior do biografado, isto é, localiza os vetores possíveis que formatam as possibilidades de inserção do autor. Além disso, procura retraçar aspectos da vida do dramaturgo tendo como fundamento suas obras, como quando, por exemplo, as primeiras peças de Shakespeare são usadas para entender como se deu sua alfabetização ou quando a análise das representações sobre a aposentadoria em A tempestade e Rei Lear enseja a especulação sobre a velhice do biografado. Não se trata aqui de estabelecer uma rede de vínculos lógicos entre autor e obra. O exercício imaginativo também deve ser capaz de captar, na criação artística, elementos que são desprezados pela persona do criador, afinal, Shakespeare fora capaz de satirizar com rara felicidade as atitudes da nobreza britânica sem deixar de desejar se tornar, ele mesmo, um cavalheiro. As obras de Frugoni e Greenblatt podem ser vistas como experiências exitosas de inovações quanto à narrativa biográfica, em que o diálogo com a literatura torna-se o substrato para a fuga das linearidades e das continuidades tão conhecidamente denunciadas por Bourdieu. Mas podemos continuar falando em biografia quando tantos passos do biografado estão inscritos na dúvida, na possibilidade e na fragmentação entre o real e o fictício? Se pensarmos a narrativa biográfica como aquela capaz de, por meio do exaustivo exame da documentação, reconstruir cronologicamente a trajetória de um indivíduo, a resposta é evidentemente não. Por outro lado, a resposta poderá ser positiva se nossa atenção se voltar para as construções de sentido operadas pelo biógrafo, para a consideração de que as lacunas 32

Ibidem, p.11-12.

nos dizem tanto dos nossos biografados quanto aquilo que as evidências revelam e para o fato de que a biografia possui uma natureza intrínseca que mescla a experiência real e a ficcional.

A biografia e o desafio ético Como já assinalado, a biografia revestia-se, da Antiguidade até a época moderna de um discurso moral, cuja função era a de inventariar os atos de um indivíduo para realçar uma certa “maneira de viver” que pudesse orientar os homens do presente. 33 Os exemplos não eram apenas os edificadores. A biografia deveria também demonstrar aquilo que deve ser desprezado, as ações que não coincidem com a ordem moral. Vícios e virtudes podem conviver em um mesmo personagem e ambos evocam valores que devem ser transmitidos à sociedade. O herói renascentista permanecia, em larga medida, submetido a esses códigos éticos, ainda que suas qualidades fossem adquiridas e não condicionadas por algum elemento sagrado, como nas hagiografias. A inscrição do conhecimento histórico em categorias científicas, ao longo do século XIX, não chegou a apagar inteiramente a função pedagógica da biografia. Ernest Lavisse, tradicionalmente elencado com um dos nomes clássicos da historiografia metódica dos oitocentos, não se importava em recorrer à lenda e ao mito quando se tratava de defender os heróis que a edificação nacional assim exigia.34 Inaugural desse tipo de exposição biográfica com fins moralizantes foi a obra de Plutarco. Em Vidas paralelas, não apenas delimitava as fronteiras entre biografia e história, como reputava à primeira uma função mais nobre, a de instruir os homens do presente e do futuro.35 Reivindicava que a escrita biográfica deveria estar livre do rigor e da precisão factual que caracterizavam o trabalho do historiador. Além disso, enquanto a história preocupava-se principalmente com a dimensão pública da vida dos homens ilustres, Plutarco ressaltava que aspectos da vida privada também eram importantes para o delineamento do caráter dos personagens. A liberdade do biógrafo permitia-lhe, portanto, selecionar aqueles aspectos que visse como mais reveladores das virtudes e dos vícios de um indivíduo, que nem sempre eram os mais significativos do ponto de vista histórico. Mais importante do que narrar o que se passou era, portanto, remeter para o que era exemplar, ou seja, para o que merecia ser imitado e reproduzido. O modo como os biógrafos percebem sua tarefa como um exercício ético é igualmente um problema histórico e, como tal, sujeito a variações, ênfases distintas e posicionamentos

33

DOSSE, François. Op.cit., p.133. Ibidem, p.196. 35 PLUTARCO. Vidas paralelas. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1997. 34

autorais mais ou menos explicitados. A renovação da biografia inglesa, no começo do século XX, assentou-se na crítica e na rejeição do modelo vitoriano das grandes virtudes, o que, decerto, não era uma novidade na escrita biográfica. A valorização da função artística da nova biografia era complementada com a ênfase em sua natureza objetiva e realista, mas sem toda a carga moral que marcava o gênero até então. Pretendia-se que a escrita biográfica fosse capaz de oferecer um relato mais complexo dos personagens, com suas fraquezas, hesitações e angústias, e não simplesmente um conjunto de características a serem imitadas pelos homens do presente e do futuro. A exposição dos métodos e as técnicas interpretativas empregadas pretendiam dar um tom decididamente antimoral ao trabalho do biógrafo. Harold Nicolson, historiador e biógrafo, localizava os “desejos éticos” entre aquelas emoções que, uma vez introduzidas na biografia, a condenavam.36 Um dos mais proeminentes “novos biógrafos”, André Maurois, escreveu: “todo biógrafo deveria escrever na primeira página do seu manuscrito: ‘tu não deves julgar’”.37 Se a biografia desejasse se tornar uma obra artística, ela deveria escapar a qualquer função moralizante. Maurois lembra que Lytton Strachey via na obra de Carlyle o mais completo exemplo de como as preocupações morais poderiam causar efeitos devastadores sobre os instintos artísticos e criativos.38 Mas os expoentes dessa guinada moderna do gênero biográfico puderam escapar à tentação de apresentar modelos instrutivos? Tomemos alguns exemplos. Strachey escreveu o conhecido Eminent Vitorians com o propósito explícito de criticar a Era Vitoriana e os seus personagens devem ser vistos sempre sob esse objetivo geral. Assim, o cardeal Manning parece encarnar todos os vícios e as poucas virtudes daquela época. Ele é apresentado como uma velha relíquia da Idade Média, distinto menos pela santidade e sabedoria do que pela habilidade prática, capaz de modos pouco nobres para se tornar um “príncipe da Igreja”. Sua trajetória é, assim, “uma curiosa história que pode ser instrutiva”.39 André Maurois, assim como Strachey, se opunha às preocupações morais da biografia, mas reconhecia francamente que o gênero estava mais próximo de oferecer lições do que qualquer outro. Em seu clássico Aspects of biography, dedicou dezenas de páginas à função didática da biografia, alertando seus leitores de que, como qualquer biógrafo, não poderia se eximir, mesmo que não o quisesse, de produzir sua narrativa sob a influência de certas referências exemplares.40

36

NICOLSON, Harold. The development of English biography. London: The Horgan Press, 1928, p.111. 37 MAUROIS, André. Op.cit.,, p.142-43. 38 Ibidem, idem. 39 STRACHEY, Lytton. Eminent Victorians. London: G.P. Putnam´s Sons, 1918, p.131. 40 MAUROIS, André. Op.cit., p.144.

Se a post new biography, no mundo anglo-saxão, passou a se caracterizar cada vez mais pelo academicismo e pelos esforços em oferecer uma pesquisa rigorosa e detalhada dos personagens, os ecos moralistas eram ainda sentidos. Recorro novamente a dois exemplos. Dumas Malone, em seu extenso estudo biográfico sobre Thomas Jefferson, não hesitou em apontar os bons e maus momentos da carreira do eminente político norte-americano, mas tampouco ocultou os comentários elogiosos. Mais ainda, Malone endossava a relação, à moda de Thomas Carlyle, entre biografia e moralidade, admitindo que o julgamento moral deveria ser um dos primeiros requisitos de uma biografia e o historiador-biógrafo não deveria ter receio de atribuir méritos ou culpas àqueles que assim merecessem.41 A abordagem de uma eminente figura da era vitoriana na perspectiva da post new biography torna o livro de Edgar Johnson, Charles Dickens: his tragedy and triumph, uma das referências centrais para a reflexão sobre a escrita biográfica da segunda metade do século XX. O subtítulo já não deixa dúvidas quanto à tonalidade moral da obra. As tragédias e os escândalos do escritor não são omitidos, mas redimensionados em prol de outras características do seu caráter. Assim, seu romance extraconjugal com Ellen Ternan não é julgado sob os olhos de um “horror puritano” e o mais significativo de sua vida situa-se em sua “raiva indignada e na sua fé triunfalista na dignidade do homem”. A moralidade, deste modo, projeta-se em torno de sua herança intelectual e na sua capacidade de ainda mobilizar os homens do nosso tempo por intermédio de sua obra e de sua atuação pública, pois “o mundo que ele criou ainda brilha”.42 A exaltação das virtudes e o didatismo eram aspectos de uma biografia tão significativos quanto o labor documental, o rigor objetivo do historiador e sua capacidade de produzir uma narrativa nos moldes de uma obra artística. Ciência e arte não precisavam – e não estavam – sacrificadas diante das instruções morais que o gênero biográfico era ainda capaz de oferecer. A finalidade didático-moral da biografia tem persistido ao longo dos séculos e mesmo os aportes mais renovadores ao gênero não parecem desmentir essa função dos relatos de vida. As biografias de indivíduos “excluídos” ou provenientes de camadas menos abastadas não demonstrariam que podemos aprender com suas lutas, com suas estratégias de enfrentamento das durezas do cotidiano ou até mesmo com os seus projetos de transformação da sociedade? Ou, ainda, quando nos indagamos a respeito dos limites e alcances da ação individual, não podemos também refletir, com o intuito de melhor compreender nosso tempo, 41

MALONE, Dumas. Jefferson and his time: Jefferson the Virginian. Boston: Little, Brown and Company, 1948,1951, 2v. 42 JOHNSON, Edgard. Charles Dickens: his tragedy and triumph. 2v New York: Simon and Schuster, 1952, p.1158.

sobre como os homens do passado se aproveitaram das brechas abertas pelos sistemas normativos? Estudar homens e mulheres comuns não poderia oferecer insights a respeito do modo pelo qual o funcionamento das instituições e os desenvolvimentos sociais em larga escala são sentidos, experimentados e entendidos por eles?43 As narrativas sobre indivíduos poderiam ser úteis também para demonstrar que mesmo grandes personagens históricos não são heróis, mas seres humanos forçados a lidar com situações e problemas cotidianos como qualquer outro indivíduo. Podemos ser movidos também pelo interesse em encontrar os mitos pessoais dos outros para que então possamos pensar sobre como produzimos nossos próprios mitos e nos entender de modo mais profundo com base em outras experiências de vida. Aqui, poder-se-ia argumentar a favor de outro possível uso da biografia, agora não mais para evidenciar a norma geral, a normatividade reguladora, mas aquilo que a tensiona, a trajetória não domesticada, aquilo que escapa à regra. Pois, como aponta Schmidt, “talvez o interesse por interstícios de liberdade em diversas épocas históricas – e poderíamos indagar se essa noção, por vezes, não assume um caráter universalista e trans-histórico – expresse a condição humana na contemporaneidade, assolada pela massificação e pelo controle social possibilitado pelas novas tecnologias ‘à la 1984’, de Orwell”.44 A esta altura talvez não fosse, portanto, de todo despropositado postularmos, na esteira de Richard Holmes, que a biografia é uma espécie de espelho ético por intermédio do qual podemos enxergar muito de nós mesmos e de nossas vidas.45 Há ainda uma dimensão mais localizada das relações entre ética e biografia, aquela que Benito Schmidt denomina de ética setorial do biógrafo, ou seja, os dilemas de fundo moral que este enfrenta ao narrar a vida de seus personagens.46 No Brasil, em especial, questões éticas envolvendo a produção de biografias ganharam ampla publicidade ao se tornarem matéria de processos judiciais, envolvendo, sobretudo, jornalistas, biografados e familiares de biografados. Retornarei a esse ponto no final do artigo. De antemão, o que se pode admitir é que o exercício da escrita biográfica tem esbarrado, especialmente nos dias de hoje, em uma série de questões de fundo ético-moral, muitas das quais têm escapado à reflexão teórica mais sistemática. A construção da biografia torna o biógrafo “possuído” por seu personagem até o ponto de se integrar totalmente ao seu universo e de ser tomado por uma ilusão de dar sentido à 43

CAINE, Barbara. Biography and history. New York: Palgrave Macmillan, 2010, p.01. SCHMIDT, Benito Bisso. Quando o historiador espia pelo buraco da fechadura: biografia e ética. História (São Paulo), v.33, n.01, jan./jun.2014, p.135. 45 HOLMES, Richard. Footsteps: adventures of a romantic biographer. New York: Vintage Books, 1985, p.83. 46 SCHMIDT, Benito Bisso. Op.cit., p.136. 44

contingência de uma vida e de torná-la uma unidade significante e coerente. Para Roger Dadoun, a ilusão é necessária, pois a biografia tomaria como sua fonte última o mais poderoso e grandioso desejo humano – o de construir-se e definir-se como um “si-mesmo”.47 Toda biografia é, em parte, também autobiográfica, pois biógrafo algum escolheria um sujeito cuja vida não ressoasse sobre si próprio.48 Por outro lado, deve-se advertir para o risco de que, ao escrever sobre outro indivíduo, o biógrafo cultive uma relação de tamanha adoração com seu personagem que, ao fim, se torne incapaz de manter uma distância crítica deste. Para Schmidt, deve o biógrafo explicitar aos seus leitores as razões da escolha do personagem biografado, a natureza objetiva do seu trabalho, suas metodologias, fontes, conceitos e as perguntas que fará.49 Deve, expor, portanto, as credenciais que legitimam sua participação neste “contrato de leitura” com seus leitores, supondo que o seu texto será distinto de uma obra ficcional, pois poderá ser posto à prova de verificação pelos critérios e métodos do estudo científico.

Philippe Lejeune identifica duas contradições próprias desse pacto

biográfico. Em primeiro lugar, o discurso que sustenta a erudição do biógrafo tende a ocultar a sua inevitável parcialidade e os fundamentos ideológicos do seu projeto. Não se escreve uma biografia por mero afã de conhecimento. A outra grande contradição se refere ao fato de que a totalização almejada pelo biógrafo esbarra em lacunas documentais, surgindo, por conseguinte, a utilização da psicologia e da imaginação ficcional. 50 A questão que se impõe, portanto, parece ser a de como o historiador-biógrafo pode conciliar o uso da imaginação e a incontornável subjetividade de sua escrita com a observação de princípios éticos, os quais, por excelência, supõem um uso público e compartilhado socialmente. Esses desafios têm sido marcados recentemente por processos judiciais referentes a possíveis violações de privacidade e de direitos de imagem. Que normas explícitas ou implícitas deveriam guiar a atividade do historiador que se propõe a relatar uma vida e, para tanto, precisa tomar contato com documentos pessoais do seu personagem, entrevistar amigos e familiares – sempre contando com a possibilidade de tais entrevistas serem dolorosas ou mesmo desagradáveis para os entrevistados? Uma advertência de Vavy Pacheco Borges nos parece ser uma ponderação bastante significativa.

47

DADOUN, Roger. Entretiens sur la biographie. Paris: Carnets Séguiers, 2000, p.62. LECKIE, Shirley A. Biography matters: why historians need well-crafted biographies more than ever. In: AMBROSIUS, Lloyd. E. Writing biography: historians and their craft. Nebraska: Univesity of Nebraska Press, 2004, p.2. 49 SCHMIDT, Benito Bisso. Op.cit., p.137. 50 LEJEUNE, Phillipe. Je est an autre. Paris: Seuil, 1980, p.77-78. 48

Principalmente, a meu ver, é preciso um grande respeito ao outro, um cuidado para não se querer “consumir” o biografado como um produto, evitando aquilo que ocorre por vezes hoje em dia, nas relações humanas e, especialmente, em algumas relações biográficas. Uma vida não deve ser encarada como um objeto que vamos expor e vender, sem outras considerações, embora, obviamente, faça parte de nosso trabalho devolver à sociedade o produto de nossas pesquisas.51

Bela lembrança em uma era em que o consumo de biografias e a publicização de fatos particulares movimentam um poderoso mercado editorial cada vez mais ávido de leitores e lucros! Os rigores teóricos e metodológicos e a necessidade social de produzir e difundir nossos trabalhos historiográficos não são polos opostos às considerações de caráter ético. Quando se produzem entrevistas com o biografado ou com pessoas próximas a eles, por exemplo, é necessário o estabelecimento de limites bem claros a respeito do que será perguntado, do que necessita ser apreendido por meio dessas entrevistas e, principalmente, das formas de divulgação e circulação dessas informações. Em uma era de intensa produção e difusão de obras, artigos e demais publicações escritas, a preocupação com o impacto que narrativas sobre as vidas de outros indivíduos possam causar tornaram-se recorrentes, especialmente quando os biografados ainda estão vivos. Essa preocupação fundamental torna-se menos atormentadora quando nos mantemos atentos às questões que guiam a escrita de uma biografia histórica. O que nos interessa é acompanhar os passos de uma trajetória singular que suscite inquietações, dúvidas e incertezas que também possam interessar a todos aqueles preocupados com os problemas e a relevância da pesquisa e da escrita histórica. Mais do que se deter em oferecer grandes revelações ou trazer à tona facetas desconhecidas do seu personagem, o biógrafo deve tentar iluminar o funcionamento concreto de determinados contextos sociais e sistemas normativos, a pluralidade existente por detrás de grupos e instituições tradicionalmente vistos como homogêneos, a construção discursiva e não discursiva dos indivíduos, as margens de liberdade disponíveis às pessoas em distintas épocas.52 Desta forma, [...] os historiadores-biógrafos sabem que não podem “esgotar” o personagem, pois nesse campo não existem biografias “definitivas”. Seu interesse é acompanhar um percurso singular para, com ele ou por meio dele, sugerir resposta a questões que também interessam a seus colegas de profissão. Insisto: para o historiador em geral e para o historiador-biógrafo em particular não existem fatos importantes em si, que precisam ser revelados a todo custo; além disso, o que lhes interessa não é o inusitado, propriamente. Também BORGES, Vavy Pacheco. O “eu” e o “outro” na relação biográfica: algumas reflexões. In: NAXARA, Márcia; MARSON, Izabel e BREPHOL (orgs.). Figurações do outro: Uberlândia: EDUFU, 2009, p.237. 52 SCHIMDT, Benito Bisso. Op.cit., p.140. 51

sua maneira de encarar a verdade é – ou deveria ser – mais sofisticada e mais tensionada do que aquela própria do senso comum, limitada à factualidade imediatamente apreensível. Esses profissionais sabem, por um lado, que todos os regimes de verdade são históricos, mas, por outro, têm compromisso com seus arquivos e com as metodologias e critérios de cientificidade próprios de seu ofício (que também são históricos).53

Por fim, dois outros usos da biografia na contemporaneidade merecem menção, mesmo que brevemente, em função de seus inegáveis contornos éticos. O primeiro deles refere-se à estreita proximidade com os diversos “deveres de memória” reivindicados por distintos grupos sociais em busca do reconhecimento público de suas representações do passado. Sob a modalidade de uma história imediata ou do tempo presente, o recurso aos testemunhos e narrativas biográficas de indivíduos que evidenciaram situações traumáticas em eventos-limite tem tido contribuição significativa. A testemunha, como salienta o historiador francês François Hartog, “impôs-se, gradualmente, em nosso espaço público; ela é reconhecida e procurada, além de estar presente e, até mesmo, à primeira vista, onipresente”.54 Ademais, muitos trabalhos produzidos com o objetivo de resgatar vozes silenciadas ou esquecidas foram igualmente decisivos para alargar o panteão dos sujeitos biografados, dando lugar para atores que não tinham espaço nas histórias nacionais unificadas. Nesse tipo de narrativa, não raro, produz-se uma tensão entre a crítica metodologicamente informada do historiador e os imperativos éticos. Lembra Beatriz Sarlo, em um dos seus mais conhecidos livros, que na Argentina, excetuando-se os militares, poucos ousaram lançar dúvidas ou questionar os depoimentos dos sobreviventes das violências do período ditatorial. Somente ao custo do apagamento da crítica é que essas narrativas em primeira pessoa puderam se afirmar no espaço público.55 Interpor uma desconfiança crítica em relação à voz da testemunha não pode significar um descuido ético? O testemunho deve ser dotado de algum estatuto epistemológico privilegiado em nossa relação com os chamados eventos-limite? Tais eventos, por sua carga de excepcionalidade e terror, podem ser apreendidos por meio de nossas convencionais técnicas de narração historiográfica? O debate aberto por essas interrogações tem crescido consideravelmente nos últimos anos e uma exposição rigorosa excederia os horizontes limitados deste artigo. As posições assumidas têm variado desde a aceitação do relato testemunhal como modo privilegiado de

53

Ibidem, p.142. HARTOG, François. A testemunha e o historiador. In: Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 284. 55 SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007. 54

acesso às experiências traumáticas do passado56 até abordagens que enfatizam as relações entre o uso de elementos estéticos na narrativa dos testemunhos e determinadas opções éticopolíticas.57 Ainda que a escrita biográfica corra o inevitável risco de servir a modalidades variadas de instrumentalização do passado, sua presença no espaço público apenas vem ratificar o crescente interesse pelas histórias de vida e pelas narrativas autobiográficas. Seria importante ainda recordar que os testemunhos e sua irrupção no debate historiográfico têm alcançado centralidade nos debates em torno da chamada história do tempo presente.58 O segundo uso aproxima-se mais do contexto brasileiro e tem como ponto de partida, como já dito, as recentes disputas judiciais envolvendo as biografias não autorizadas de renomados intérpretes da música brasileira, nas quais, segundo creio, estabeleceu-se um verdadeiro diálogo de surdos. As reivindicações legítimas de preservação de intimidade, substância das críticas daqueles que se opuseram à publicação de tais biografias, não deveriam ser contrapostas à divulgação pública e à liberdade de expressão. Ao achar graça, não sem razão, em uma entrevista concedida ao jornal O Globo, da polêmica brasileira em torno das biografias não autorizadas, lembrando-se do seu próprio trabalho com personalidades intelectuais tão controvertidas quanto Paul Ricoeur e Michel de Certeau, entre outras, François Dosse se posiciona a partir de uma cultura política em que o que ele chama de encenação entre biógrafo e biografado privilegia, sobretudo, a liberdade de escrita. Assim, para o historiador francês, a possibilidade de escrita da biografia está diretamente ligada à independência do seu autor em relação a qualquer tipo de autorização anterior. Ao escrever as biografias de Pierre Nora e Cornelius Castoriadis, Dosse não apenas contou com total liberdade de acesso aos arquivos pessoais, como nenhuma exigência de leitura prévia lhe foi feita por Nora ou pela viúva de Castoriadis – esta chegara a ceder as chaves de sua casa para que Dosse pudesse pesquisar enquanto estava em viagem de férias. A plena liberdade de escrita e pesquisa justifica-se ainda pelo fato de a escrita biográfica não ser um exercício de mera compilação de acontecimentos da vida de um indivíduo, mas uma síntese combinatória

56

ANKERSMIT, Frank. Historical Representation. Stanford: Stanford University Press, 2001. TOZZI, Veronica. The epistemic and moral role of testimony. History and Theory, 51, p.1-17, 2012. 58 Sobre a história do tempo presente, ver BÉDARIDA, François. Histoire, critique e responsabilité. Bruxelas: Complexe, 2003; FICO, Carlos. “A história que temos vivido”. In: VARELLA Flávia et al. (org.). Tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 20102; DELGADO, Lucília Neves de Almeida e FERREIRA, Marieta de Moraes (orgs.). História do tempo presente. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2014; 57

entre mímesis e imaginação. As restrições impostas ao biógrafo interditariam, deste modo, seu potencial criativo.59 Há, a meu ver, por fim, outro aspecto bastante perturbador na recente polêmica em torno das biografias não autorizadas. Parece-me ainda haver pouco avançado, entre nós, a percepção de que o gênero biográfico deve superar o tom panegírico em torno de personalidades que foram notáveis em suas áreas de atuação. Não existiria, nas demandas do Procure Saber60, a crença de que certa mitologia em torno de grandes artistas da música brasileira deveria ser preservada? Cantores e compositores vistos como verdadeiros patrimônios nacionais poderiam ter suas pequenezas cotidianas ou suas mesquinharias singulares, tão próximas de todos nós, reveladas sem prévia autorização? Talvez o historiador e o escritor ficcionista possam dizer algo. O primeiro pode recordar que as biografias de sujeitos pouco conhecidos não servem, ou não deveriam servir, apenas para dar voz aos menos ilustres, aos indivíduos desprovidos, aparentemente, de maiores interesses. Tais biografias devem nos ajudar a compreender que mesmo os chamados grandes personagens apresentam as fraquezas e contradições que fartamente percebemos em nós mesmos ou em outros indivíduos comuns. Poderíamos convocar o escritor a nos recordar de que o romance realista exerceu uma crítica decisiva à biografia modelar, pois, afirma Jacques Revel, “são Dostoievski, Proust, Musil ou Joyce que questionaram mais fortemente e corretamente a confiança na coerência do eu a hipótese de continuidade das trajetórias biográficas”.61 Tentei demonstrar ao longo deste artigo que narrar vidas e grafar trajetórias apresentam-se ao historiador como desafiador sob dois ângulos principais: sua narrativa não pode ser senão uma composição híbrida entre real e ficção. Tampouco ele poderá ignorar que seu trabalho é um fato ético-moral. A dupla problemática aqui tratada não é nova e, em larga medida, seus significados e sentidos podem ser acompanhados, ao longo do tempo, pelas transformações ocorridas no gênero biográfico. Não obstante, algo parece não ter mudado entre os biógrafos de ontem e hoje, sendo talvez a razão de toda biografia: o inescapável desejo de compreender o outro.

Bibliografia: ACTON, Lord. A lecture on the Study of History. London: Macmillan, 1896. 59

DOSSE, François. Não há biografia sem liberdade de pesquisa. O Globo, Rio de Janeiro, 23.out.2013. Disponível em: Acesso em 12 de novembro de 2013. 60 Associação de músicos que tem lutado juridicamente na defesa dos direitos de imagem e de privacidade de seus integrantes, posicionando-se contra a publicação de biografias não autorizadas. 61 REVEL, Jacques. Op.cit., p.242.

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Disponível

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