Trabalho como conceito filosófico

June 24, 2017 | Autor: Katia Santos | Categoria: Marxism, Marxist theory, Karl Marx, Marxismo
Share Embed


Descrição do Produto

Trabalho como conceito filosófico

(Conhecimento Prático Filosofia, São Paulo, p. 24 - 35, 24 maio 2013)

Katia Santos Doutoranda em Filosofia na FFLCH-USP

O trabalho é um dos temas de investigação mais importantes da Sociologia. Nele, estão conjugados diversos aspectos da existência humana, como a História, as condições materiais da vida, as ideologias e até mesmo a religião. Assim, por exemplo, do ponto de vista material, estuda-se o modo como a atividade assalariada está ligada à sobrevivência do trabalhador e, do ponto de vista ideológico, investiga-se como o trabalho deixou de ser uma atividade inferior, a partir da reforma ideológica protestante. Karl Marx (1818 – 1883) foi um dos principais teóricos do trabalho. Na sua teoria, o processo de trabalho ocupa um posto muito importante e tem um aspecto duplo, a saber, o de transformação material e o de valorização do capital. No pensamento econômico de Marx, o trabalho tem de ser tomado com referência a alguma coisa, desvinculando-se da sua utilidade prática imediata. Sua importância, nesse caso, refere-se à maneira como pode se encaixar num sistema mais amplo, que é o processo de produção material da existência no capitalismo. Nos Manuscritos econômicos e filosóficos, especialmente no Primeiro Manuscrito, Marx apresenta um conceito de trabalho diferente daquele da crítica ao capitalismo. Nessa obra, ele expõe uma visão filosófica a respeito da existência humana, contrapondo-a ao ponto de vista da economia política, que reduz todas as ações humanas a motivações de ordem econômica. Com efeito, o conceito filosófico de trabalho é formulado por Marx em contraposição, a um só tempo, à concepção deturpada das teorias econômicas e às circunstâncias reais alienadas das relações de produção. De acordo com isso, Erich Fromm (1900 - 1980), no prefácio de seu livro Conceito marxista do homem, afirma que a filosofia de Marx representa um protesto contra a alienação do homem, contra sua

transformação em objeto, sua desumanização e automatização, inerentes à evolução do industrialismo ocidental. Marx inicia o Primeiro Manuscrito afirmando que a economia política parte dos fatos, como dados verdadeiros subjacentes à estrutura econômica e social, mas não faz esforços para explicá-los. A teoria econômica concebe somente o processo material segundo o qual se dá a existência da propriedade privada, a separação entre trabalho, capital e terra, a divisão do trabalho, a competição e a conceituação de valor de troca. Todavia, conforme Marx, o que deveria ser explicado é admitido como ponto de partida para a formulação das leis econômicas, sem que haja a preocupação em compreender como essas leis se originam da propriedade privada e da base da distinção entre trabalho, capital e terra. Desse modo, há um círculo vicioso na economia política, uma vez que afirma o que deveria deduzir, analogamente à teologia, quando explica a origem do mal na queda do homem: assegura como fato histórico aquilo que deveria elucidar. Herbert Marcuse (1898 – 1979), em seu ensaio Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho alienado na ciência econômica, considera que a teoria econômica prescinde de uma definição de trabalho enquanto tal. Nesse campo de conhecimento, trabalho é entendido apenas como atividade econômica, e por conseguinte, como essencialmente contraposto a atividades artísticas, políticas e a todas as que não estejam diretamente ligadas às relações de produção. Dentro do âmbito da economia política, diz Marcuse, o conceito de trabalho foi progressivamente reduzido, até chegar a significar somente a atividade dirigida, comandada, não-livre, isto é, a atividade assalariada. Essa redução do conceito de trabalho a um aspecto econômico bem determinado, embora apresente uma aparente neutralidade, constitui um prejulgamento dos seus princípios mais importantes. Na medida em que é entendido como uma atividade determinada, na qual intervém de modo decisivo as noções de objeto de trabalho, finalidade e resultados, o conceito de trabalho pode ser aplicado amplamente a diversos tipos de atividade econômica, legitimando a exploração da força de trabalho no capitalismo. O

conceito

filosófico

de

trabalho

formulado

por

Marx

abarca

ontologicamente o todo da existência do homem. Não se trata de uma atividade determinada, como no sentido econômico, mas a práxis fundamental e específica da espécie humana, na qual há uma união essencial entre homem e objetividade. Assim, Marx entende

que o caráter de uma espécie qualquer reside no tipo de atividade vital que ela exerce, de forma que o traço distintivo da humanidade seria o fato de o homem fazer de sua atividade vital um projeto de sua vontade e de sua consciência. Dessa forma, enquanto o animal é idêntico à sua atividade vital e sua produção não vai além do que necessita imediatamente para si e para sua prole, o homem, por meio do trabalho, procede à construção prática de um mundo objetivo, através da manipulação da natureza inorgânica. Isso é, para Marx, a afirmação do homem enquanto ser genérico consciente. O trabalho, por consequência, é o que permite ao homem construir seu mundo objetivo e a si mesmo enquanto indivíduo, buscando a satisfação de suas necessidades. Nesse aspecto, para Marx, as ações humanas não têm por base uma natureza pronta, imutável, mas se referem a um homem ativo na construção de si mesmo, da natureza e da História. Ao apropriar-se dos objetos em suas relações com o mundo, o homem cria, simultaneamente, suas esferas espirituais, materiais e até biológicas, já que os sentidos humanos são vistos como coletivos em sua forma e dependentes do modo como se objetiva a natureza. Assim, a esfera natural é apropriada como parte do corpo humano, pois a criação do mundo cultural depende dos meios fornecidos pelo mundo sensorial. Para além da construção de simples meios de sobrevivência, o homem estabelece uma mediação entre si e a natureza, produzindo e reproduzindo sua existência material, vital e espiritual. Subjacente a essa conceituação de trabalho, está a noção de uma espécie humana cuja plenitude da satisfação factual das necessidades jamais pode ser alcançada. Para Marcuse, há uma discrepância entre as situações possíveis de satisfação das necessidades e o ser do homem. A tarefa humana fundamental seria suprir as carências de plenitude continuada e permanente, geradas por uma necessidade vital, originária e insuperável dos homens. Nesse sentido, o trabalho de construção de um mundo objetivo, fruto da ação humana sobre a natureza, relaciona-se com a autorrealização do homem, com a sua formação plena. Esse processo não pode, portanto, encontrar seu termo, uma vez que a necessidade é o próprio ser do homem no mundo, constitutiva da sua existência. No entanto, a práxis humana não é totalmente natural, como a atividade vital de formigas em um formigueiro, pois, ao nascer, o homem encontra um mundo que não é suficiente para a satisfação de suas necessidades, de modo que precisa alterá-lo, objetivá-lo e mediá-lo incessantemente.

Marx entende que o trabalho é a “vida genérica ativa humana”, na medida em que permite construir o mundo objetivo em que o homem vive, no qual há uma influência recíproca entre todos. Com isso, ele condena o trabalho moderno e ocidental, baseado na determinação e na especialização. Esse trabalho, como categoria da economia política, é justamente o que dificulta a realização das potencialidades humanas, obrigando o trabalhador a restringir seus horizontes a um mínimo de atividades que o permitem continuar existindo e, ao mesmo tempo, restringe e limita sua própria vida. É, assim, não somente uma mutilação intelectual e moral, mas também um obstáculo ao ato de criação humana, ao desenvolvimento e à consciência do indivíduo. Tal reflexão remete ao problema do trabalho alienado. Na medida em que a atividade humana é livre, já que o homem é autoconsciente e capaz de fazer de sua própria vida o objeto de suas ações, o trabalho alienado significa uma desumanização. Pela alienação do trabalho, o indivíduo perde a característica de agente ativo em face da natureza e do mundo humanamente criado. No ato de alienação há, segundo Marx, três aspectos. O primeiro é a relação do trabalhador com o produto do trabalho como um objeto estranho, que o domina. Nesse tipo de relação com o mundo sensorial, os objetos produzidos lhe são estranhos e hostis. O segundo é a relação do trabalho com o ato de produção, isto é, do trabalhador com sua própria atividade, enquanto algo estranho e não pertencente a ele mesmo. Nesse caso, é uma atividade que envolve sofrimento em função da posição de passividade do indivíduo trabalhador, da sua impotência diante de um processo voltado contra si. O terceiro aspecto do trabalho alienado, mais complexo, é a transformação do modo de vida da espécie humana em um meio de subsistência individual. Nesse caso, a atividade vital humana aparece como simples meio para a satisfação da necessidade de manter a existência física do trabalhador. Embora, na condição de ser autoconsciente, o homem devesse tomar as rédeas de sua vida, o que ocorre é a transformação de toda a atividade vital em um meio para busca da sobrevivência. A própria vida genérica ativa se torna apenas um meio, e não o fim de toda a atividade humana. De acordo com isso, Marx afirma que o que é verdadeiro quanto à relação do homem com seu trabalho, também o é quanto à sua relação com outros homens. Assim, cada indivíduo é alienado por outros e

todos são igualmente alienados da vida humana, uma vez que cada um encara o semelhante conforme os padrões e relações em que se encontra como trabalhador. Há uma ligação entre essa noção de alienação e a de fetiche, como expressada em O capital, no capítulo referente ao fetichismo da mercadoria. Marx afirma, nesse texto, que durante a produção e a troca de mercadorias, a relação que se estabelece entre os produtores é semelhante a uma vinculação entre coisas. Os produtos do trabalho evidenciam ao homem o caráter social da produção, entretanto, esse caráter é visto como se fosse um atributo material dos próprios produtos. Desse modo, as mercadorias, que são fruto da mente e do organismo humanos, são vistas como seres com vida própria e existência independente, relacionadas objetivamente entre si e com os homens. Da mesma forma, a essência da alienação está no fato de que o trabalho, a produção e a própria vida genérica são resultado da ação humana, mas acabam se tornando coisas ante as quais o homem tem que se curvar. Em razão dessa ilusão, o homem transfere aos objetos de sua criação os atributos pertencentes a si mesmo e à sua vida, mas não vive a experiência de ser seu criador, nem dispõe do destino deles. Nos Manuscritos, Marx escreve que a propriedade privada é, por um lado, resultado necessário do trabalho alienado, e por outro, o meio pelo qual o trabalho se aliena. Uma vez que o fruto do trabalho não pertence a quem o produziu, ele pertence a um ser estranho, a quem se destinará sua fruição. Nesse aspecto, o processo alienado de produção estabelece uma relação entre o produtor e outros homens, bem como a relação destes com a produção e o produto. Portanto, a atividade produtora não é livre, mas se realiza sob a coerção de um homem estranho ao ato produtivo, criando-se a dominação do não-produtor sobre a produção e os frutos dela. Desse modo, o trabalho alienado afasta o homem de sua natureza, de sua atividade vital e também da sua vida genérica. No capítulo de O Capital sobre a reprodução simples, Marx demonstra que o salário pago ao trabalhador é, na verdade, parte do próprio produto. O trabalho representa um incremento periódico do capital, através da mais-valia, tornando-se um meio para o processo de valorização. Como explica Marx, o fundo de reserva de capital deveria exaurirse, em função da necessidade do capitalista de consumir mercadorias. Se tal reserva não se esgota, é porque o trabalho acrescenta um fruto anual ao capital, o qual pode então ser consumido, sem que o capitalista se torne pobre. O trabalhador produz, além disso, o fundo

do qual se retira seu pagamento, já que só recebe depois que o valor de sua força de trabalho é realizado em mercadoria e mais-valia. Portanto, o salário é uma parte do produto, reproduzido pelo próprio operário, e não um pagamento com recursos do capital. Por conseguinte, de um lado, a alienação é o ponto de partida do processo de produção, pois nela se dá a separação entre o trabalho e seu produto, entre as condições objetivas e a força subjetiva da criação de valor. Por outro lado, também é o resultado da produção, na medida em que esse ponto de partida acaba produzindo-se e reproduzindo-se permanentemente, eternizando-se como consequência da produção capitalista. Com base no conceito filosófico de trabalho, pode-se dizer que a crítica de Marx ao capitalismo não se dirige meramente à distribuição de renda, à exploração econômica ou à apropriação do produto do trabalho pelo capitalista. Na verdade, os objetivos relativos ao desenvolvimento pleno das capacidades humanas não podem ser abarcados pelas definições e teorias econômicas. As atividades humanas vitais se dão como realização de trabalho, a partir do mundo objetivo e da natureza, quaisquer que sejam as motivações e coerções econômicas. O que importa, no fim de contas, é a libertação do homem de um gênero de trabalho destrutivo em relação à sua individualidade e que o torna escravo de coisas criadas por ele mesmo. Trata-se de um retorno à atividade não-alienada e, portanto, livre, que permita florescer uma sociedade em que o homem em sua plenitude seja o objetivo, e não a comercialização de mercadorias. Isso demonstra que o objetivo de Marx não é meramente a prosperidade econômica do trabalhador, para que venha a possuir o mesmo que o capitalista, mas envolve uma visão mais ampla e filosófica do homem. Por fim, Marx afirma que um aumento de salários não passaria de uma remuneração melhor de escravos, pois não representaria a restauração do significado e valor humanos do trabalho e do trabalhador. O sistema de salários, na medida em que remunera o trabalhador, é uma conseqüência necessária da alienação do trabalho. Do mesmo modo, a igualdade de rendas não modificaria a relação do trabalhador com seu trabalho, somente tornaria a sociedade uma espécie de capitalista abstrato. Com efeito, a emancipação da sociedade da propriedade privada se identifica com a emancipação do homem do sistema de trabalho alienado, pois a servidão se manifesta na proporção em que os indivíduos são vistos como coisas inferiores às que produzem.

Referências MARX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos. In: FROMM, E. Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. _____. El Capital: critica de la economia política. 3 volumes. México: Fondo de Cultura Econômica, 1973. MARCUSE, H. Cultura e Sociedade. vol 2, São Paulo: Paz e Terra, 1998. FROMM, E. Conceito marxista de homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. OFFE, C. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1984. HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa: Dom Quixote, 1990. GORZ, A. Adeus ao Proletariado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.