Trabalho experimental sobre armação de cervídeo (Cervus elaphus) utilizando lascas em quartzito

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Pedergnana A., Cura P., Cura S. (2013). Trabalho experimental sobre armação de cervídeo (Cervus elaphus) utilizando lascas em quartzito. Actas do Iº Congresso de Arqueologia do Alto Ribatejo. Homenagem a José da Silva Gomes. Arkeos – perspectivas em diálogo, 34. Tomar, Ceiphar: 275-282.

Trabalho experimental sobre armação de cervídeo (Cervus elaphus) utilizando lascas em quartzito Antonella Pedergnanaa, Pedro Curaab, Sara Curaab a

Grupo “Quaternário e Pré-História” (Centro de Geociências, uID73 – FCT); b Museu de Arte Pré-Histórica de Mação Instituto Terra e Memória

1. INTRODUÇÃO O presente procedimento experimental visou, por um lado, a compreensão do comportamento tecnológico e mecânico das hastes de cervídeos trabalhadas em condições diferentes (secas e húmidas) utilizando lascas em quartzito e por outro a detecção dos macro-traços eventualmente visíveis nos gumes ativos dos suportes utilizados. Esta experiência foi realizada no âmbito dos estudos desenvolvidos sobre a coleção lítica proveniente do sítio ao ar livre do Paleolítico Médio de Santa Cita (Tomar, Portugal). Além disso, por meio deste trabalho proporcionou-se a ampliação da coleção de referência de suportes experimentais com vestígios de utilização do Laboratório de Quaternário e Indústrias Líticas do ITM (Instituto Terra e Memória, Mação), tendo-se obtido cinco lascas com vários gumes utilizados, associados com tempos de uso diferentes. A constituição desta coleção de referência tem como objectivo principal a criação de uma base de dados úteis para estudos funcionais e para a comparação com coleções líticas em quartzito que caracterizam amplamente o cenário da Pré-História do Alto Ribatejo (CRISTIANI et al., 2009; CURA et al., 2008).

2. MATERIAIS E MÉTODOS Antes do início do trabalho efetivo, algumas lascas experimentais foram obtidas através de uma actividade de lascamento realizada por um dos co-autores, Pedro Cura, dentre as quais foram selecionadas cinco (Fig. 1) para serem utilizadas durante o experimento. A matériaprima constituiu-se por seixos fluviais em quartzito, recolhidos nas proximidades da localidade de Santa Cita (Tomar, Portugal). Esta escolha foi realizada devido ao fato de que a coleção lítica proveniente do sítio arqueológico de Santa Cita foi recentemente reestudada sob a perspectiva de uma análise tecnológica (PEDERGNANA, 2011), o que torna possível então, em um momento futuro, a realização de uma comparação dos dados traceológicos destas peças experimentais com as peças arqueológicas da referida coleção.

Figura 1: As cinco lascas experimentais com indicação dos gumes utilizados.

Durante o trabalho experimental, foram empregados os seguintes materiais: • uma haste de veado (Cervus elaphus) (Fig. 2) com comprimento de ca. 46 cm; • cinco lascas experimentais em quartzito de textura média-fina (Fig. 1). Para obter uma cuidadosa documentação da experiência foi também utilizado material adicional: • fichas experimentais por cada lasca (CURA et al., 2008); • câmera Nikon N80 D-SLR; • cronômetro.

2.1.Variáveis da experimentação Entre as possíveis variáveis foram escolhidas as que se revelaram as mais adequadas para alcançar os nossos objectivos iniciais. Foi dada especial atenção no movimento efetuado pelo experimentador durante a experiência (principalmente o ângulo entre o gume utilizado e o material trabalhado. A duração do trabalho foi sempre monitorizada utilizando um cronómetro) (Tab.1). Infelizmente foi necessário excluir a medição da pressão exercida de forma rigorosa por falta de equipamentos que o pudessem fazer. Teoricamente, pode-se intuir que a força necessária para a execução do trabalho diminui passando-se da camada superior da haste (cortical ou compacta) àquela inferior (esponjosa). Com efeito, em experiências posteriores a pressão exercida será um fator que deverá ser incluído para entender melhor o comportamento tecnológico das armações de cervídeos. Outra condição fundamental relacionada a esse tipo de entendimento é o estado da haste no momento em que é trabalhada (seca ou humedecida com água). VARIÁVEIS DA EXPERIMENTAÇÃO cortar AÇÃO OBJECTIVO

MATERIAL TRABALHADO ESTADO DA HASTE

VÁRIAVEIS DA CINEMÁTICA longitudinal AÇÃO

extrair as partes distais e a MOVIMENTO parte proximal da haste de veado armação de veado (Cervus ÂNGULO DE TRABALHO elaphus) seco/húmido TEMPO Tabela 1: Variáveis do trabalho experimental

bidirecional

variável variável

2.2.Composição das hastes de veado (Cervus elaphus) Como em todos os materiais (naturais ou antrópicos), as propriedades mecânicas das armações de cervídeos dependem directamente da sua estrutura intrínseca (características físicas que compreendem a composição química e a disposição das fibras a nível microscópico). As propriedades físicas dos materiais (dureza, tenacidade, fraturação, etc.) estão também relacionadas também com a função dos mesmos. Portanto, considerando o

género dos cervídeos (no qual está inserida a espécie Cervus elaphus) do ponto de vista etológico, as armações, que estão presentes só nos exemplares masculinos com a única exceção das renas, detêm um papel sexual muito importante. As hastes dos veados machos têm um ciclo de crescimento anual, que acontece na primavera (Março-Abril na Europa) e então caem ao solo logo depois da época de acasalamento (Setembro-Novembro na Europa) (CHEN, et al., 2009). A sua função principal então está ligada à competição pelas fêmeas durante a época da reprodução e portanto as hastes são constituídas para suportar fortes pancadas, sem possivelmente desenvolver fenómenos de fraturação. Este fato leva-nos à lógica conclusão de que as armações de cervídeos tenham um comportamento prevalentemente elástico. Isto quer dizer, que durante a aplicação de uma força existe uma considerável deformação elástica das armações antes de chegar ao ponto de fratura. Por esse motivo também, no curso da Pré-História as armações dos veados caçados foram aproveitadas para obter percutores utilizados no lascamento da pedra (ANDREFSKY, 2005). Analisando o comportamento mecânico das hastes, o primeiro fato importante a ser sublinhado é que a grande resistência elástica deve estar relacionada com o tecido interno esponjoso, o qual tem a capacidade de dissipar o impacto recebido. Esta característica é o que mais diferencia as hastes dos ossos, apesar do fato do que a composição química básica seja praticamente a mesma: osteoblastos, fibras de colagénio e minerais entre os quais o que está presente em maior percentagem é a hidroxiapatite) (CHEN et al., 2009). Como foi demonstrado por Launey et alii (2010), a disposição das fibras de colagénio tem um papel fundamental na resistência ao esforço. Dependendo da aplicação da força (paralela ou ortogonal às fibras), a resistência mudará. Então, se a haste for trabalhada no sentido longitudinal (como no nosso caso), a resistência a fenómenos de “crack” resulta ser muito maior do que no sentido transversal. Por isso, as hastes são consideradas como um dos

materiais de tecidos mineralizados mais duros e com uma resistência maior à fratura (CHEN et al., 2009; LAUNEY et al., 2010). Todos esses fatores acima apresentados têm uma implicação muito forte na tentativa de adquirir uma compreensão do comportamento mecânico das armações de cervídeo.

3. PROCEDIMENTO A intenção principal do trabalho experimental constituiu-se no corte das extremidades da armação para a obtenção de quatro pressionadores (as pontas da haste para retocar lascas) e um percutor brando (a extremidade proximal da haste). Foram então selecionadas cinco lascas em quartzito (duas semi-corticais e três não corticais), que apresentavam gumes aptos para a actividade de corte (ângulo agudo e delineação sagital linear) e boa preensão (sempre manual). A haste foi trabalhada, também, após ter sido humedecida em água durante 107 horas, com a finalidade de que pudéssemos perceber as possíveis diferenças em relação à condição normal (haste seca) de trabalho. Outra importante observação é que a haste utilizada se encontrava inicialmente em estado “seco”, querendo dizer que foi recolhida há pelo menos dois anos antes do começo do trabalho experimental. Caso oposto seria uma haste “fresca”, extraída do animal morto (ou encontrada logo depois ter caído ao chão), com características diferentes

e

consequentes

repercussões

tecnológicas

(dureza

maior)

(DÍAZ

de

TORRES&VILLAPLANA MAESTRO, 2004-2005). Durante o trabalho experimental foram fotografados os gumes utilizados a cada cinco minutos (função macro), com o objectivo de se obter um controle do processo de modificação dos mesmos e para que pudéssemos dispor, então, de uma noção a posteriori da modificação macroscópica. A ação realizou-se, na totalidade dos casos, relacionada com um movimento bidirecional e com um ângulo de contacto com o material trabalhado de cerca 80-90°. Considerações sobre a

modalidade de preensão podem ser resumidas dizendo que a morfologia inicial da lasca e também do gume influenciou fortemente a capacidade de penetração (relacionada à velocidade do movimento e a força exercida que, como foi dito antes, não foi possível medir). O tempo verificado está relacionado com a formação de um corte bastante profundo para permitir a extração das diferentes porções através de uma pancada com percutor em madeira (Buxus sempervirens).

Figura 2: A haste antes do trabalho experimental (comprimento ca. 46 cm) e os relativos produtos finais. Os números dos cortes estão relacionados com a cronologia dos eventos e os mesmos são utilizados nas tabelas seguintes.

Tendo em conta a largura diferente das porções de haste a serem extraídas e o estado da mesma, é evidente que às larguras maiores (maior matéria que precisa ser retirada) correspondem tempos maiores para a obtenção do corte. Duas das cinco lascas (SS_1; SS_7) (Tab. 2) entraram em contacto com a haste humedecida (para efetuar os últimos três cortes, 3,4,5) controlando-se o tempo relacionado à execução do

trabalho e tendo-se verificado uma significativa diminuição do tempo necessário para a realização dos cortes pretendidos. PORÇÃO DA ESTADO LARGURA LASCA UTILIZADA TEMPO DE UTILIZAÇÃO HASTE cm min PONTA N. 1 Seco 1,5 SS_2 90 pressionador PONTA N. 2 Seco 3,6 SS_4; SS_5 180 pressionador CORTE N. 3 Húmido 2,3 SS_1 95 percutor PONTA N. 4 Húmido 1 SS_7 35 pressionador PONTA N. 5 Húmido 1,8 SS_7 20 pressionador Tabela 2: Porções da haste extraídas, largura das mesmas, estado da haste, ID da lasca utilizada e tempo empregado.

Observando a tabela 3 o que percebemos é que o ângulo entre o gume e a haste apresenta uma grande variação: esse fato pode ser explicado tendo em conta as diferentes inclinações das porções de material a serem extraídas, a morfologia dos gumes e a adequação à preensão. Em relação ao tempo empregado para terminar a extração de uma porção, nota-se que está evidentemente relacionado com a largura da mesma porção e o estado da haste (seca ou humedecida).

Tabela 3: empregado aos lados das lascas, haste e o gume e a

LADO DA LASCA UTILIZADA ss_1 lado A

ESTADO DA HASTE Húmido

ÂNGULO 90°

TEMPO min 75

ss_1 lado B ss_2 lado A ss_2 lado B ss_4

Húmido Seco Seco Seco

80°-90° 85°- 90° 85°- 90° 50°; 80°- 90°

20 45 45 110

ss_5 lado A ss_5 lado B ss_7 lado A ss_7 lado B

Seco Seco Húmido Húmido

70°- 90° 70°- 90° 60°-70° 60°-70°

60 10 35 20 TOT 420 (7h)

Tempo relacionado utilizados estado da ângulo entre haste.

4. RESULTADOS: MODIFICAÇÕES DOS GUMES Observando a documentação fotográfica desta experiência (um exemplo na Fig. 3), pode-se perceber a incidência das modificações das lascas a nível macroscópico. Há exemplos de micro-lascamentos muito visíveis, como no gume direito proximal da lasca SS_1, ou uma

complexa modificação da margem, como no caso da lasca SS_4 (Fig.3), a qual mostrava um gume distal convexo com um ângulo da zona ativa de ca. 25°. As modificações macroscópicas do gume da lasca SS_4 compreendem um micro-lascamento bastante profundo no começo, arredondamento da margem lateral direita, desgaste muito profundo na zona mais frágil do gume (lateral esquerda, onde apresentava-se uma retirada do córtex ocorrida na altura do talhe) e consequente alisamento final do restante do gume. No caso da utilização de lascas com gumes bastante rectilíneos, por exemplo os dois gumes da lasca SS_2 (Fig. 3), tratando-se de gumes com um ângulo não excessivamente agudo (40°), não foi possível reconhecer modificações muito profundas que alterassem visivelmente a morfologia inicial. Tendo uma lasca com gume cortical (SS_5 lado 1), as modificações não foram visíveis antes dos 15 minutos. A lasca SS_7 não mostrou modificações significativas tendo os seus gumes sido utilizados por poucos minutos sobre material humedecido.

Figura 3: Modificações macroscópicas das lascas SS_2 e SS_4 após o trabalho experimental.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A inteira actividade experimental foi desenvolvida com a ideia de ampliar a coleção experimental de referência do Laboratório de Quaternário e Indústrias Líticas para poder comparar os dados futuros, prevendo uma análise funcional dos gumes utilizados, com a coleção lítica que foi estudada proveniente do sítio português de Santa Cita. Até agora, documentamos fotograficamente o processo de modificação macroscópica das margens ativas, recolhendo o maior número possível de dados. A vantagem de terem sido obtidos gumes que foram utilizados em tempos diferentes (de 10 minutos até 110 minutos) encontrase no fato de que futuramente será possível analisar microscopicamente a formação dos traços de uso no trabalho com matérias duras animais (haste) nas lascas em quartzito. Tendo em conta a largura das porções que foram extraídas e o relativo estado da haste, tornou-se clara a efetiva vantagem em trabalhar esta em seu estado húmido. Como perspectivas futuras, uma importante consideração será a tentativa de medição da pressão exercida durante o trabalho sobre a haste. Mais, além de ampliar a coleção de referência, incluindo outras ações e outros materiais trabalhados, deverão ser incluídas também outras matérias-primas rochosas, como por exemplo sílex e quartzo, também presentes na indústria musteriense de Santa Cita.

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