Tradição clássica e o Brasil

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A Tradição Clássica e o Brasil

André Leonardo Chevitarese (UFRJ) Gabriele Cornelli (UnB) Maria Aparecida de Oliveira Silva (USP) (Organizadores)

2008

Exemplares desta publicação podem ser adquiridos na: Fortium Editora Edifício Brasília Rádio Center SRTVN - Qd. 701 - Conj. P - 1º Subsolo CEP: 70719-900 Fone/Fax: (61) 3328-5427 www.fortium.com.br [email protected] Editores: Anamaria Prates e Cláudio Farag Projeto Gráfico e Capa: Humberto A. Castelo Branco Diagramação: Luciano de Oliveira e Harison de Souza

Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação dos direitos autorais (Lei federal n. 9.610). Dados Internacionais de Catalogação – CIP Fortium Editora _________________________________________________ Chevitarese, André Leonardo Cornelli, Gabriele Silva, Maria Aparecida de Oliveira A Tradição Clássica e o Brasil/André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli, Maria Aparecida de Oliveira Silva, – Brasília: Fortium, 2008 p. 192; 15,5 x 22 ISBN: 85.7703-006-7 1. A Tradição Clássica e o Brasil. I. Título. I Série _________________________________________________ © Fortium Editora, 2008

Índice Introdução: José Otávio Nogueira Parte I – A Antigüidade no Ensino Brasileiro O ensino de História Antiga nos livros didáticos brasileiros: balanço e perspectivas Ana Teresa Marques Gonçalves e Gilvan Ventura da Silva .............................................................................................08 Antigüidade Clássica e Numismática: representações e pesquisas no ensino fundamental Cláudio Umpierre Carlan .............................................................................................22 A potencializacão do ensino de História Antiga por meio de atividades extracurriculares: duas experiências em universidades públicas do Sul do Brasil Fábio Vergara Cerqueira e Márcia Ramos de Oliveira .............................................................................................28 A importância da tradição clássica no nascimento da disciplina escolar História no Imperial Colégio de Pedro II Fernando de Araujo Penna .............................................................................................54 A outra margem do pensamento ocidental: o ensino da Filosofia Antiga no Brasil em tempos de globalização Gabriele Cornelli .............................................................................................67 Cultura material e tradição literária nos livros didáticos: a criação do mito espartano Maria Aparecida de Oliveira Silva .............................................................................................75

Parte II – Tradição Clássica e Sociedade Percepções Étnicas e a Construção do Passado Brasileiro André Leonardo Chevitarese e Rogério José de Souza .............................................................................................86 Esporte e Construção de Identidades Fábio de Souza Lessa .............................................................................................99 Tradição clássica, ensino e política na França da Terceira República José Antonio Dabdab Trabulsi ...........................................................................................110 História da Tradição Clássica no Brasil dos séculos XIX e XX. Egito antigo no Brasil: egiptologia e egiptomania. Margaret M. Bakos e Raquel dos Santos Funari ...........................................................................................129 Classicismo e coleções de moedas no Brasil Maria Beatriz Borba Florenzano ...........................................................................................138 A Gota d’Água, ou a Medeia em nós Marta Mega de Andrade ...........................................................................................150 Brasileiros e romanos: colonialismo, identidades e o papel da cultura material Pedro Paulo A. Funari ...........................................................................................164 “Pão e Circo”: Uma expressão romana no cotidiano brasileiro Renata Senna Garraffoni ...........................................................................................172 Academia Imperial das Belas Artes Rossano Antenuzzi de Almeida ...........................................................................................183

A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

Apresentação José Otávio Guimarães Departamento de História - UnB Núcleo de Estudos Clássicos - UnB Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer se apoderar dela. Walter Benjamin

I No Brasil, e talvez não só aqui, é freqüente ouvir que os classicistas (esses intelectuais que se dedicam ao estudo do mundo greco-romano antigo) são personagens meio anacrônicos, lunáticos e elitistas. Estudam temas de pouco interesse e de pequena relevância frente ao conjunto da produção universitária do país. Além do mais, que contribuição poderiam dar para a construção de uma memória nacional? Qual seria, de fato, a importância do estudo desse mundo longínquo, no espaço e no tempo, para uma nação cuja história “começa” no século XVI? Nenhuma, aparentemente. Essa antiguidade européia, cuja autoridade se corrói como o couro de velhas encadernações, parece, ademais, estar excessivamente distante para concorrer, aqui, à reinvenção em voga de nossos traçados de fundação. Entre memória e história, a conjuntura identitária brasileira não tem reservado grande espaço, em seu panteão cultural em reconstrução, aos heróis de antanho da antiguidade clássica.

II Na verdade, um discurso híbrido – mistura de relativismo exacerbado e de anticolonialismo requentado – reclama que nos dediquemos, hoje e antes de mais nada, aos “nossos antigos”, isto é, às populações autóctones do Brasil pré-colonial e às culturas das sociedades africanas de onde partiram, para servirem à empresa colonial, “nossos” principais contingentes de escravos.1 Outros representantes dessa mesma tendência 1 Para as confluências, nas ciências humanas brasileiras dos últimos trinta anos, entre anticolonialismo e neoprimitivismo, ver as observações provocantes de S. P. Rouanet, “O novo irracionalismo brasileiro”, em As razões do Iluminismo, São Paulo: Cia. das Letras, 1987, pp. 124-146. Mais recentemente, Rouanet insistiu no mesmo diagnóstico: “O primitivismo está presente nas praias e nas universidades, em todas as butiques e em todos os shoppings. Há uma arte étnica, um artesanato étnico e uma música étnica. (…) O Brasil tem dado uma notável contribuição à atual vaga neoprimitivista”; prefácio a S. Lacerda, Metamorfoses de Homero: história e antropologia na crítica setencentista da poesia épica, Brasília: Edunb, 2003, p. 31.

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propõem alargar um pouco mais o campo histórico, acrescentando trabalhos relativos às antigas civilizações inca, maia e asteca, o que permitiria inscrever os estudos brasileiros no quadro mais amplo da formação da América Latina. Quanto ao elitismo, os mesmos representantes lembram sempre que o edifício pedagógico e literário dos clássicos, de que fazem uma caricatura, não responde mais ao “espírito do tempo”. Sem reconhecerem sua presença histórica, vêem o edifício como o produto calculado da dominação da maioria por uma minoria de velhos letrados, um Parnaso insolente, que exigiria, ainda por cima, que culto lhe fosse devotado. Insistem no fato de que as coisas deveriam caminhar, natural e necessariamente, no sentido do progresso: a Bastilha dos clássicos deveria desmoronar, como desmoronou, há mais de duzentos anos, aquela dos aristocratas. Parece-me que é um estranho hegelianismo aclimatado, a sonhar com uma paradoxal filosofia da história americana, que ressoa em tal discurso: nós também temos necessidade de “nossos” universais.2 No fim do século XIX, o programa dessa tendência já se anunciava de maneira clara: “La universidad europea ha de ceder a la universidad americana. La historia de América, de los incas acá, ha de enseñarse al dedillo, aunque no se enseñe la de los arcontes de Grecia. Nuestra Grecia es preferible a la Grecia que no es nuestra. Nos es más necesaria”.3 Trinta anos mais tarde, o principal combatente intelectual do movimento modernista brasileiro, Mário de Andrade, sonhava com a criação de uma verdadeira civilização nacional, único caminho que poderia nos conduzir ao universal: “só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos do mimetismo para fase de criação. E então seremos universais, porque nacionais”.4 Para esses “modernos”, se ainda é preciso falar em “clássicos” ou pesquisar sobre os “antigos”, que isso seja feito com “nossas fontes”, com “nossos gregos”, pois os “brancos” e os “colonizadores” o fazem com suas fontes e seus gregos. Seria recomendável que tais “modernos” refletissem igualmente sobre seus métodos e suas ferramentas intelectuais. Esses relativistas radicais (construtores, por vezes inconscientes, de uma exotização do país) ignoram assim a presença da tradição cultural européia não só na formação de suas (nossas) categorias “indígenas”, mas também, de modo mais amplo, na construção da identidade histórica e intelectual brasileira e sul-americana. Aprisionados na resistente armadilha do mito etnológico de uma cultura pura e isolada, acabam por ressuscitar, sem se darem conta, a velha história romântica e sua paixão nacionalista pelas origens. No plano das Belles Lettres, é notório, a geração romântica brasileira já reagira, desde

 er, por exemplo, os esforços de L. Zea, Filosofía de la historia americana, México: FCE, 1978. V J. Martí, “Nuestra América”, El Patido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891, republicado em Obras completas, vol. 6, La Habana: Editorial Nacional de Cuba, 1963, p. 18. 4 M. de Andrade, A lição do amigo: cartas a Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro: José Olympio, [1924] 1983. 2 3

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o século XIX, contra os “deuses do Olimpo”, que haviam, sem pudores e em demasia, frequentado - com o classicismo e, principalmente, com o arcadismo -, nossa literatura.5 Ora, nem mesmo a questão do uso da Grécia como metáfora da idéia de origem ou pátria (“nuestra Grecia”), para tomarmos apenas um exemplo, é, nesse discurso, em algum momento problematizada.6 Isso para não se falar dos usos sul-americanos da idéia, bem ateniense, da autoctonia.7 Essa tendência, portanto, esquece ou ignora que as categorias de que lança mão (por vezes com certo abuso) fazem parte, pelo menos em sua versão universitária, de uma tradição ocidental que remonta a essa antiguidade grega e romana de que bem gostaria de se ver livre. A presença de certas correntes etnológicas no seio desse discurso, só nos faz lembrar que a etnologia é filha do Ocidente – e neta de Heródoto – e que ao tentar descrever e interpretar culturas pouco familiares, deveria sempre – se efetivamente busca escapar às garras do etnocentrismo – procurar refletir criticamente sobre as ferramentas analíticas e os quadros intelectuais que uma antiquíssima tradição nos legou. Seria interessante que etnólogos e historiadores de hoje se debruçassem com mais afinco sobre a pesquisa da proveniência dos conceitos centrais de seus respectivos saberes; só assim poderiam, com mais recursos, julgar os méritos, as limitações e verificar o peso da herança antiga em seus hábitos mentais. Esforçarem-se por reconhecer a parte de universal e de particular nos conceitos que utilizam é indispensável para que ambos, etnólogo e historiador, não acabem por povoar, a contragosto, o planeta com descendentes de Heródoto, Tucídides, Platão, Aristóteles, Plutarco ou Pausânias.8 O próprio lugar de autoridade de onde falam, a cadeira do professor e a “verdade” de sua “ciência”, é ele mesmo um lugar cercado de regras, normas e valores oriundos de uma instituição profundamente européia: a universidade. Evidentemente, não é possível compreender a identidade intelectual brasileira sem considerar a contribuição cultural de ameríndios e africanos, mas erguer um projeto pedagógico e “científico” sobre tal constatação, de maneira a excluir totalmente a tradição clássica européia de consideração, é, no mínimo, discutível e perigoso. Mas por que razão discutível e perigoso? Primeiramente, porque na atual conjuntura, em que as fronteiras entre memória e história parecem bem pouco definidas, em  er, a propósito, as instigantes tiradas de Brito Broca, “A Grécia no Brasil”, em A vida literária no Brasil – 1900, Rio de Janeiro: José V Olympio, 1975, 3ª. ed., pp. 102-108. 6 Sobre a construção dessa imagem da Grécia como pátria e origem (imagem fortemente desenvolvida no contexto do romantismo alemão), ver os estudos clássicos de E. M. Buttler, The tyranny of Greece over Germany, New York: Macmillan, 1935, de J. Taminiaux, La nostalgie de la Grèce à l’aube de l’idéalisme allemand, La Haye: Martinus Nijhoff, 1967 e de J. Quillien, G. de Humboldt et la Grèce: modèle et histoire, Lille: PUL, 1983. 7 Com relação aos usos europeus já contamos com as reflexões N. Loraux, Né de la Terre: mythe et politique à Athènes, Paris: Seuil, 1996, sobretudo pp. 190-216, e de M. Detienne, Comment être autochtone ? Du pur athénien au français raciné, Paris: Seuil, 2003. 8 Nesses esforços, etnólogos deveriam consultar as observações de Ph. Descola, “Illusions et vérité: dialogue d’un chamane et d’un philosophe”, em M. Daraki et alli, La Grèce pour penser l’avenir, Paris: L’Harmattan, 2000, pp. 43-59. Os historiadores têm à disposição, agora em português, o reconhecido livro de A. Momigliano, As raízes clássicas da historiografia moderna [1990], Bauru-SP: Edusc, 2004. 5

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que os profissionais encarregados de zelar pelos usos do passado são cada vez mais solicitados a participar como experts no espaço público, a forte ascensão de reivindicações de particularismo cultural pode esconder o retorno de ferramentas conceituais e de esquemas de pensamento baseados em pressupostos fundamentalmente étnicos e, em alguns casos, racistas. Nesse sentido, e apenas como ilustração do que se passa no âmbito da reflexão mais literária, destaco uma observação de Stephen Greenblatt. Para o crítico e historiador, o velho modelo nacional de história da literatura não desapareceu completamente na segunda metade do século XX, como gostaria certa crítica de inspiração antropológica. Esse modelo teria antes migrado “do centro para o que era a periferia, onde agora floresce”. Assim, constata, “muitas das novas histórias literárias e culturais, inspiradas por políticas de identidade cultural, estão adotando narrativas teleológico-evolucionistas de desenvolvimento contínuo e orgânico - que funcionaram nas histórias da literatura de velhas nações para conferir autoridade cultural e criar um senso de continuidade entre passado e presente - com o intuito de promover um consenso ideológico. O resultado é a afirmação de uma memória étnica ou racial”.9 Os demônios, cujo panfleto teórico de Claude Lévi-Strauss, Raça e história, escrito no início dos anos 1950, gostaria de exorcizar da cena intelectual ocidental (o demônio do “falso evolucionismo”, com seu regime de temporalidade pouco sensível ao ritmo das diversidades culturais;10 e aquele, claro, dos preconceitos racistas que, “apenas desenraizados de seu fundo biológico”, obstinavam-se em “se recompor em novos terrenos”),11 parecem estar ainda bem ativos depois de mais de meio século. O atento observador dos usos do passado que é Roger Chartier escrevia no fim dos anos 1990: “as fortes tentações da história identitária ameaçam apagar qualquer distinção entre um saber controlado, universalmente aceitável, e as reconstruções míticas que vêm reconfortar memórias e aspirações particulares”.12 Retornemos ao campo mais específico dos estudos clássicos. Os demônios teriam também visitado as pradarias desses lunáticos e elitistas? A despeito de seu contexto específico, não é de todo sem propósito convocar aqui uma ao menos das críticas que foram dirigidas à obra de Martin Bernal, Atenas negra: as raízes afro-asiáticas da civilização clássica.13 Isso pode lançar alguma luz sobre nossa discussão brasileira. A tese central desse livro, como explicita seu subtítulo, é a de que a antiga civilização grega tinha importantes raízes afro-asiáticas, em particular egípcias e semíticas; e que essa  . Greenblatt, “Literary history and racial memory”, texto de comunicação apresentada no seminário de Jacques Revel, EHESS-Paris, S 2 de abril de 1999, p. 1. “A vida da humanidade”, estima Lévi-Strauss, “não se desenrola sob o regime de uma uniforme monotonia, mas através de modos extraordinariamente diversificados de sociedades e civilizações”. “Race et histoire”, em Anthropologie structurale deux, Paris: Plon, 1973, p. 378. 11 Id., p. 379. 12 Roger Chartier, Au bord de la falaise, Paris: Albin Michel, 1998, p. 16. 13 M. Bernal, Black Athena: The Afrosiatic Roots of Classical Civilisation (Vol. I: The Fabrication of Ancien Greece 1785-1985; vol. II: The Archaeological and Documentary Evidence), New Brunswick: Rutgers University Press, 1987 e 1991. 9

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idéia, já difundida entre os antigos, teria sido camuflada pela historiografia moderna por motivos substancialmente racistas (e não por razões de ordem científica, lingüística ou “interna” aos estudos clássicos). A crítica em questão é aquela de François Hartog. Ele sustenta que, ao inverter os esquemas precedentes – as colônias, as invasões e as conquistas não são mais indo-européias, mas sim afro-asiáticas –, “Bernal é conduzido a substancializar uma entidade ‘grega’ prévia”.14 Em O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro, o historiador francês já havia mostrado que a inversão é um instrumento cômodo que os gregos – a começar pelo “pai da história”, que se servira dela para compreender os egípcios – freqüentemente empregaram.15 A inversão reproduz, contudo, “a mesma configuração de saber que contesta. ‘Retire-se daí que aí me meto’, diz ela. Trata-se, porém, do mesmo mundo de invasões e, mais ainda, de colonizações”.16 Em suma, entre ilhas na história e ilhas de história – e toda a América Latina poderia ser tomada como uma grande ilha – o jogo não para nunca. É preciso sempre, como lembram os trabalhos de Marshall Sahlins, historiar a interferência entre lógicas culturais distintas, buscando “as estruturas de conjuntura” que permitem pensar a diversidade de respostas locais às lógicas do sistema cultural hegemônico.17

III As acusações à tradição clássica e aos estudos clássicos no Brasil podem encontrar outras raízes em nossa história recente. Desde os anos 1950, sobretudo a partir do governo Juscelino Kubitschek e seu lema “cinqüenta anos em cinco”, as ditas “humanidades” sofreram ataques freqüentes de uma geração disposta a fazer do país uma “nação moderna”. O projeto de desenvolvimento acelerado, que seduziu contingente expressivo da intelligentsia brasileira, pregava uma ampla reforma cultural e educativa, condição indispensável para que o país pudesse alcançar o “primeiro mundo”. A imagem do classicista posta em circulação foi a de um rabugento professor de grego e latim que exigia as declinações na ponta da língua; ou ainda a de um professor de história antiga que cobrava as datas mais importantes da Guerra do Peloponeso e recitava de cor longuíssimas passagens de Tucídides, Demóstenes, Plutarco, Cícero e Horácio. Esses “humanistas” não passavam, assim, de exemplares anacrônicos de uma tradição plena de espírito retórico, bacharelesco, declamatório, que fazia lembrar o Brasil formalista, notarial, tribunício, antimoderno. Nessa versão tropical da querela dos antigos e F. Hartog, Mémoire d’Ulysse, Paris: Gallimard, 1996, p. 55. F. Hartog, Le miroir d’Hérodote: essai sur la représentation de l’autre, Paris: Gallimard, 1991, sobretudo pp. 224-237. F. Hartog, Mémoire d’Ulysse, op. cit., p. 55. Ver, igualmente, as observações de C. Ampolo, “Atena nera, Atena bianca: storia antica e razzismi moderni, ovvero il caso Bernal”, Storie greche: la formazione della moderna storiografia sugli antichi Greci, Torino: Einaudi, 1997, pp. 140-149, e de M. Lefkowitz, “Ancient history, modern myths”, em M. Lefkowitz e G. Rogers (eds.), Black Athena Revisited, Chapel Hill & London: The University of North Carolina Press, 1996, pp. 3-23. 17 M. Sahlins, Islands of History, Chicago: University of Chicago Press, 1989. 14

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modernos, esses últimos souberam fazer prevalecer seu discurso utilitarista. Afinal, que uso, para a formação dos recursos humanos necessários a um país que marchava em passos largos, teria esse saber clássico, transmitido por pessoas que não manipulavam nem equações, nem gráficos, nem estatísticas? Nenhuma, respondiam eles. Esse projeto de desenvolvimento acelerado e sua reforma cultural receberam novo impulso durante o período da ditadura militar, graças, notadamente, aos esforços de jovens tecnocratas diplomados em Chicago. A supressão do ensino do latim e da filosofia no secundário foi uma das primeiras medidas da política educacional do “milagre econômico”. No domínio da história antiga, para ficarmos em nossa seara, continuavam a se publicar manuais baseados, em sua maioria, naqueles concebidos no século XIX e primeira metade do século XX. Em história grega, por exemplo, utilizavam-se G. Grote, V. Duruy, J. Hantzfeld, M. Croiset, P. Cloché, R. Cohen, J. B. Bury, e, é claro, as “cidades” de Fustel de Coulanges e G. Glotz, que se liam nas glosas dos inofensivos, segundo os militares, manuais de ensino de história. Dito isso, um curioso fenômeno se produziu nesse momento. Os censores da ditadura (que viam comunistas comer criancinhas em todos os cantos) toleraram a avalanche de livros didáticos de história que, na procura desenfreada de “estruturas”, usavam sem discriminação os instrumentos conceituais oferecidos pelo marxismo mais vulgar. A história de Esparta, Atenas ou Tebas, a filosofia, a religião, a mitologia, os gêneros literários, os grandes personagens da Grécia antiga foram reduzidos a noções explicativas como revolução, luta de classes e organização econômica. Não somente a história grega, mas a história mundial, tornou-se a descrição e a sucessão sumárias de “modos de produção”. Essa tolerância dos censores da ditadura pode ser, no fundo, explicada por diversos fatores. Um deles, porém, revelou-se logo como portador de forte carga elucidativa: o determinismo econômico e o positivismo do marxismo vulgar, que embalsamavam os manuais e o ensino secundário e universitário nos anos 1960 e 1970, não eram contraditórios com o tecnocratismo e a mentalidade cientificista do projeto de desenvolvimento acelerado. Ademais, ambas as orientações eram regidas pela mesma palavra de ordem: o progresso. é fato que algo da segunda revolução industrial atravessou essa crise brasileira dos estudos clássicos. Nossa sociedade necessitava de abundante pessoal do setor terciário, e não exatamente de “humanistas”. As sociedades que passaram por tal processo, inventaram cada qual uma ordem de prioridade para levar suas “bestas culturais” ao matadouro. Uma dessas bestas, como bem lembrou um importante filósofo brasileiro, foi a erudição clássica: “Nossa cultura nos acostumou, infelizmente, a um preconceito contra a erudição. A informação precisa, a freqüentação dos clássicos, o conhecimento da Antiguidade e da Idade Média, para não falar das línguas latina e grega – tudo isso veio, à medida que no Brasil prevalecia uma cultura de massas no estilo americano, a 10

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se conotar de forma negativa e mesmo pejorativa. Numa palavra, a erudição passa por coisa seca”.18

IV Malgrado a ofensiva neoprimitivista, malgrado a política do regime militar e as transformações sócio-econômicas e as reformas educacionais das últimas décadas, a tradição clássica e os estudos clássicos resistiram e, transformados, saíram fortalecidos dessas intempéries. A história antiga, a filosofia antiga e as letras clássicas continuam presentes no ensino fundamental, médio ou superior; não mais com o cheiro de mofo dos livros do Visconde de Sabugosa, nem se prestam mais com facilidade para reforçar ou justificar a linguagem de distinção do velho país cartorial e patrimonialista. Os estudos da cultura clássica no Brasil que, até há pouco tempo, eram freqüentados apenas por professores (alguns comparáveis a meras estações repetidoras de compêndios), alargou seus quadros, incorporando uma geração de pesquisadores respeitados, que produzem trabalhos de qualidade, reconhecidos nacional e internacionalmente. A distância e a dificuldade de acesso aos diferentes documentos e fontes para o estudo do mundo antigo, características de nosso ambiente acadêmico, diminuíram nas últimas décadas com o avanço da Internet e de recursos multimídia. A formação de uma geração de classicistas que fez seus estudos de doutorado ou pós-doutorado no exterior, em países de sólida tradição nesse campo de estudos, permitiu que a carência de especialistas dedicados à interpretação de fontes epigráficas, arqueológicas e literárias fosse minorada. No geral, as coisas começaram a mudar, de um ponto de vista cultural e mais particularmente universitário, no início dos anos 1980. A fundação, em 1985, da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC) é um indício fácil e importante. Pela primeira vez, constituiu-se, no meio intelectual brasileiro, um esforço sério de abertura de um espaço de discussão entre estudiosos do mundo antigo, o que se concretizou por meio de seus congressos e, desde 1988, pela publicação de Clássica, a revista editada pela SBEC. Não há dúvida de que esse esforço interdisciplinar renovou e forneceu uma base para uma cada vez mais expressiva produção nacional nesse campo de estudos. A coletânea Tradição clássica no Brasil não só dá testemunho desse processo de transformação, como é pioneira ao propor uma reflexão mais ampla sobre essa inovadora experiência intelectual. Os artigos que a compõem – que não foram escritos por personagens anacrônicos, lunáticos ou elitistas – escapam das caricaturas de tendências apresentadas acima: não há relativistas radicais, anticolonialistas requentados, nem neo-românticos nacionalistas nas páginas que se seguem. São todos, indepen18

 alavras de Renato Janine Ribeiro apresentando, na orelha do livro, o romance de um erudito acadêmico da USP: Isaías Pessoti, P Aqueles cães malditos de Arquelau, Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.

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dentemente de seu terreno mais específico de trabalho, filhos do espírito de interdisciplinaridade e profissionalização universitária nascido após a era SBEC. Eles oferecem uma resposta à moribunda situação a que foram relegados os estudos clássicos com o triunfo do tecnocratismo e do cientificismo entre os anos 1950 e 1980. Parece-me, igualmente, que os artigos reunidos não entendem a tradição clássica segundo o consenso semântico que o uso ordinário da expressão sedimentou. A tradição, presente no título da coletânea, não existe como algo prometido de antemão à colheita e ao conhecimento, algo pronto para ser guardado e estocado em uma verdade que nada ou quase nada deve aos homens do presente. Sabemos que esses homens não a recebem passivamente, conservando-a e repetindo-a de maneira estereotipada. A tradição, aqui, resiste a ser capturada pelo sentido único do regime de historicidade moderno, que caminha inelutavelmente do ontem para o hoje. A ‘verdade’ da tradição, nesse caso, não se reduz a uma apreensão de ordem cronológica que lhe confere privilégios ligados à sua idade: tanto mais verídica quanto mais antiga. A tradição clássica no Brasil, podemos dizer, não é simples produto do passado, obra de outra idade que os contemporâneos passivamente acolhem; é perspectiva que homens de hoje adotam e desenvolvem para lidar com o que os precedeu. Toda tradição, afinal, não é uma retroprojeção? Escolhemos aquilo pelo qual declaramos ser determinados; apresentamonos como continuadores daqueles que constituimos como nossos predecessores. Em suma, para dizer em uma fórmula, a tradição institui uma “filiação a contrapelo”19. Creio que podemos, para esclarecer o sentido que se atribui à tradição clássica no título desta coletânea, concordar com o que diz Eric Hobsbawm: “tradições que parecem ou pretendem ser antigas são quase sempre de origem recente e, algumas vezes, até mesmo inventadas”. Não poderíamos acompanhá-lo inteiramente em seu movimento seguinte, em que afirma ser a “tradição inventada” uma maneira de dar sentido a uma série de práticas “que implicam automaticamente continuidade com o passado”.20 “Automaticamente” é um termo forte e o de “continuidade” pede para ser mais bem definido. Essa convergência paradoxal entre continuidade e invenção poderia ser ultrapassada pelo jogo não menos paradoxal estabelecido por Bernard Knox entre “tradição cultural” e “reatualização”. “Uma tradição cultural”, escreve o eminente classicista, “não deve se deixar fossilizar, nem se tornar uma ortodoxia opressora. Deve ser continuamente reatualizada e alargada, de modo a incluir novas obras-primas, incorporar novas aspirações e novas visões da condição humana. Porém, uma reatualização, nas palavras de um dos grandes renovadores da música moderna, Igor Stravinsky, ‘so-

A expressão é de J. Pouillon, “Tradition: transmission ou reconstruction?”, em Fétiches sans fétichisme. Paris: François Maspero, 1975, p. 160. 20 E. Hobsbawm, “Inventing Traditions”, em E. Hobsbawm e T. Ranger, The Invention of Tradition, Cambridge: Cambridge University Press, 1983, p. 1. 19

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mente é fértil quando caminha de mãos dadas com a tradição’”.21 Enfim, se o saber sobre o passado produzido na universidade serve, entre muitos outros discursos, para construir a identidade da nação – em seu comércio com o amplo processo social de fabricação de memória –, é verdade também que não se presta somente a esse tipo de uso. Os relatos sobre os tempos idos não podem, definitivamente, ser reduzidos a uma pedagogia do nacional. Tais relatos poderiam, por exemplo, servir para nos expatriar de nós mesmos. Nesse sentido, os estranhos gregos e romanos não seriam de todo inúteis para fazer vacilar nosso pensamento universitário do mesmo e do outro, para inquietar nossas taxionomias e nossos sistemas de classificação, para abalar a sintaxe de nossa ordem do tempo. A tradição clássica, assim, mantém-se cultivada (e não cultuada), sem que se deixe aprisionar no resistente imperativo de um passado que ilumina o presente segundo o regime da exemplaridade. Trabalhos, por exemplo, sobre a religião grega, sobre a tragédia ateniense ou sobre o sincretismo cultural helenístico-romano estabelecem uma relação com nosso tempo que não é da ordem de uma possível homologia de situações; ao contrário, o leitor contemporâneo apropria-se de instrumentos intelectuais que lhe podem ser úteis para o estudo e o exame críticos de sua própria sociedade. É por isso que caberia bem aproveitar nossa situação às margens do Ocidente. Já que os velhos gregos e romanos não são tão naturais e evidentes para nossa memória histórica e para nossa identidade cultural, como são (ou foram) para os europeus, fica mais fácil interrogarmo-nos sobre as relações de pertinência que podemos construir, hoje e aqui, entre eles e nós.22

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B. Knox, Backing into the Future – The Classical Tradition and Its Renewal, New York: W.W. Norton & Co., 1994, p. 15.  Ver a propósito dessa posição privilegiada dos brasileiros, as considerações de F. Hartog, Os antigos, o passado e o presente; organização José Otávio Guimarães. Brasília: Edunb, 2003, pp. 7-8.

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Introdução No Brasil, os estudos sobre a Antigüidade jamais conheceram tamanha notoriedade; basta vermos a profusão e o alcance continental de congressos, seminários, simpósios, realizados ao longo dos últimos dez anos, bem como a destacada publicação de coleções e obras direcionadas ao tema. Em sua expressiva maioria, trata-se de teses e dissertações, enquanto uma outra parte destina-se a coletâneas com temáticas específicas e traduções de obras renomadas. Todavia, a incipiente produção intelectual sobre a disciplina no Brasil se, por um lado, favorece a pluralidade das temáticas dos trabalhos dos pesquisadores, por outro adia o imprescindível o olhar de si. A proposta desta publicação é a de entrar nesta produção, pensando a mesma pelo viés da formação e da informação transmitidas, aos nossos estudantes, futuros professores e pesquisadores. Para isso, articulamos nesta obra as intervenções de professores e pesquisadores de precisa experiência no campo desta tradição. Dividimos o livro em duas partes principais: a primeira parte, intitulada “A Antigüidade no Ensino Brasileiro”, principia com o texto “O ensino de História Antiga nos livros didáticos brasileiros: balanço e perspectivas”, de Ana Teresa Marques Gonçalves e Gilvan Ventura da Silva, no qual discorrem sobre as práticas de ensino da História Antiga no Brasil, demonstrando que, apesar das transformações ocorridas no século XX, sua base teórico-metodológica ainda se espelha na ideologia contida na formação da disciplina desde sua implantação em 1847 no Colégio Pedro II. No segundo capítulo, “Antigüidade Clássica e Numismática: representações e pesquisas no ensino fundamental”, de Cláudio Umpierre Carlan, o autor revela, por meio de um estudo de caso, o desconhecimento e a conseqüente inabilidade dos alunos em analisar as fontes materiais de que dispomos, como, por exemplo, as mais de 1888 moedas, datadas do séc. II a.C., que compõem o acervo do Museu Nacional. No terceiro capítulo, “A potencializacão do ensino de História Antiga por meio de atividades extracurriculares: duas experiências em universidades públicas do Sul do Brasil”, Fábio Vergara Cerqueira e Márcia Ramos de Oliveira versam sobre suas experiências docentes nas Universidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, apontando para a questão do reduzido número de professores na área, que não contam com uma disciplina devidamente estruturada sob o ponto de vista acadêmico. Sobre os aspectos ideológicos da introdução da disciplina no Brasil, temos a contribuição de Fernando de Araujo Penna, com o capítulo “A importância da tradição clássica no nascimento da disciplina escolar História no Imperial Colégio de Pedro II”, centrado na análise da importância da tradição clássica no ideal de erudição construído em seu currículo escolar. Em “A outra margem do pensamento ocidental: o ensino da Filosofia Antiga no 15

Brasil em tempos de globalização”, de Gabriele Cornelli, o autor evidência três pontos característicos da Filosofia Antiga em nosso país: em primeiro, o caráter interdisciplinar de nossos centros de pesquisa, seguido da deficiência de docentes especializados e, por fim, da especial oportunidade de formação que este ensino proporciona, tanto para os alunos como para os docentes. Encerramos essa primeira parte com o capítulo “Cultura material e tradição literária nos livros didáticos: a criação do mito espartano”, de Maria Aparecida de Oliveira Silva, no qual a autora demonstra como o estudo da história de Esparta apresenta-se com um relato eivado de fatos extraordinários, como mulheres livres e proprietárias de terra; igualmente, a visão de uma cidade essencialmente agrária, descrita nas fontes literárias, e abertamente questionada pelos arqueólogos com os achados do Templo de Ártemis Orthia, salientando que esse debate tem sido ignorado na composição dos livros didáticos brasileiros. A segunda parte de nosso livro “Tradição Clássica e Sociedade”, reservada ao debate sobre a recepção brasileira desses contatos literário e material com o mundo antigo, inicia-se com o texto “Percepções Étnicas e a Construção do Passado Brasileiro”, de André Leonardo Chevitarese e Rogério José de Souza. Os autores delineiam as influências do conteúdo da história da Grécia antiga, ensinada no Brasil, a qual enfatiza a unidade cultural e racial de um povo e que atua como base para a ideologia ocidental e também brasileira da estética branca. No capítulo seguinte, “Esporte e Construção de Identidades”, Fábio de Souza Lessa, tendo como pano de fundo o quadro social brasileiro, reflete sobre as relações de poder evidenciadas no contexto da construção da identidade grega e sobre como as práticas esportivas constituem um elemento de coesão social. Embora trate da questão da identidade cultural francesa a partir da idealização da tradição clássica em seu território, o capítulo “Tradição clássica, ensino e política na França da Terceira República”, de José Antonio Dabdab Trabulsi, leva-nos a pensar a nossa realidade sob a perspectiva da formação de nossa identidade cultural e de nossa relação com a tradição clássica reinventada pelos europeus. A presença da Antigüidade não se restringe ao mundo greco-romano, como podemos ver em “História da Tradição Clássica no Brasil dos séculos XIX e XX. Egito antigo no Brasil: egiptologia e egiptomania”, em que Margaret M. Bakos e Raquel dos Santos Funari mostram-nos as formas distintas com as quais os brasileiros entram em contato com a cultura egípcia, ressaltando a singularidade de sua sabedoria e a grandiosidade de suas construções. As autoras esclarecem-nos ainda as diferenças conceituais entre egiptologia, egiptofilia e egiptomania. Para discorrer sobre os caminhos do colecionismo de moedas no Brasil, no capítulo “Classicismo e coleções de moedas no Brasil”, Maria Beatriz Borba Florenzano per16

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corre o arco temporal da Antigüidade ao século XIX brasileiro e conclui que a tradição européia serviu de modelo para as coleções brasileiras, que apresentam em comum a edificação de relações identitárias entre elas. O capítulo “A Gota d’Água, ou a Medeia em nós”, de Marta Mega de Andrade, discorre sobre o paralelismo existente na estrutura da peça de Eurípides e na de Chico Buarque e Paulo Pontes, a fim de demonstrar como a tragédia e o teatro revelam-se testemunhos de seu tempo; no caso do Brasil e de Atenas; de um momento em que ambos sofrem com a perda da liberdade individual e com a crise política. Pedro Paulo Abreu Funari, em seu texto “Brasileiros e romanos: colonialismo, identidades e o papel da cultura material”, revela a reapropriação da cultura material romana pela elite brasileira, com o escopo de construir identidades. O autor nos mostra como a preferência de nossa elite por colecionar objetos romanos termina por edificar práticas culturais mistas, manifestadas na decoração de suas casas, repletas de peças das mais diversas ‘procedências. No texto “‘Pão e Circo’: Uma expressão romana no cotidiano brasileiro”, Renata Senna Garraffoni versa sobre os usos da expressão romana Panem et circenses, destacando os diferentes sentidos que lhe foram atribuídos ao longo dos séculos. No Brasil, a autora remonta ao século XIX, à época de rebeliões populares, que a elite brasileira desqualificava, associando essa multidão de descontentes ao ócio, com essa expressão, que ainda denota a obrigação do Estado em nutri-la, em prejuízo do trabalho. Enfim, no capítulo “Academia Imperial das Belas Artes”, Rossano Antenuzzi de Almeida relata que objetos representativos da cultura material européia adentraram nosso território antes da efetiva colonização portuguesa. Contudo, a vinda da família real para o Brasil representa o momento de maior crescimento desse acervo nacional, que recebe obras expressivas da Antigüidade; em geral, peças consideradas obras de arte, o que culmina na criação da Escola de Belas Artes no Rio de Janeiro. O leitor que terá a bondade e o interesse de percorrer os caminhos propostos pelos diversos autores aqui reunidos, poderá perceber a riqueza teórico-metodológica de suas reflexões. As contribuições aqui articuladas apontam tanto para antigos problemas como para futuras elaborações, numa articulação metodológica dos caminhos da tradição clássica que assume os traços inquietos de um debate metodológico e didático que ainda anseia por ser ouvido. André Leonardo Chevitarese Gabriele Cornelli Maria Aparecida de Oliveira Silva Brasília, Maio de 2008 17

Parte I A Antigüidade no Ensino Brasileiro

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O ensino de História Antiga nos livros didáticos brasileiros: balanço e perspectivas Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) Gilvan Ventura da Silva23 (UFES)

A História como disciplina escolar A História como disciplina escolar autônoma surgiu nos fins do século XIX, na Europa, associada aos movimentos de laicização da sociedade e de constituição das nações modernas (NADAI, 2002, p. 23). No Brasil, a História passou a ser uma disciplina escolar obrigatória na primeira metade do século XIX, momento de afirmação do Estado Nacional, com a criação, em 1837, do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro (MAGALHÃES, 2003, p. 168)24. Assim, desde seus primórdios como disciplina escolar, a História encontrou-se vinculada à construção das nações e à formação educacional dos seus membros, identificados como cidadãos, razão pela qual os estudos históricos têm se desenvolvido, nas salas de aula, em estreita conexão com as discussões referentes à composição e possibilidades de atuação do povo brasileiro. Decerto que a História, na qualidade de disciplina escolar, não é mais a mesma desde o século XIX, muito embora ainda guarde certas características que presidiram a sua instauração, algumas ligadas às práticas de ensino e outras às concepções historiográficas. Contudo, deve-se considerar que a disciplina sofreu ao longo do tempo alterações significativas em seu perfil relacionadas às transformações do próprio campo do conhecimento histórico, à formação dos professores, às políticas públicas concernentes à educação, em geral, e ao ensino de História, em particular e à composição do currículo escolar, entre outros fatores (FONSECA, 2004, pp. 70-1). E, no entanto, a formação do cidadão e sua inclusão nas estruturas dos Estados nacionais permanece, ainda hoje, como uma das principais tarefas pedagógicas dos estudos históricos. Nesse sentido, um rápido exame dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) nos revela claramente a preocupação dos educadores em associar o ensino de História à construção da identidade nacional e ao exercício da cidadania, assunto ao qual voltaremos mais adiante. Ao atentarmos para as questões suscitadas pelos programas curriculares de História, pela literatura didática e paradidática disponível e pelos demais recursos audiovisuais de ensino produzidos no Brasil, constatamos, por parte dos autores, um cuidado recorrente em assinalar os principais agentes sociais envolvidos na construção da nação. De acordo com Elza Nadai (2002, pp. 24-5), por meio do ensino de História procurou-se, inicialmente, garantir a criação de uma identidade comum, na qual os gru23 24

Professor Adjunto de História Antiga da UFES. Doutor em História Econômica pela USP.  obre a História como disciplina escolar no Brasil, vide também Fonseca (2004). S

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pos étnicos formadores da nacionalidade brasileira interagiam de maneira harmônica, não conflituosa, contribuindo com igual intensidade e nas mesmas proporções para a existência da sociedade. Em face disso, durante décadas as especificidades etnoculturais dos negros e indígenas em comparação aos europeus foram atenuadas em prol da imagem de uma nação organicamente articulada, resultante de um processo civilizador caracterizado pela contribuição harmoniosa dos diversos segmentos sociais, pela definição coletiva de um bem comum e pela efetivação de uma cultura nacional homogênea, imagem essa que atualmente tem sido bastante criticada pelos profissionais de História, cada vez mais convictos da necessidade de se evidenciar a diferença, a diversidade e não escamoteá-la, o que os leva a reiterar as premissas do multiculturalismo que cada vez mais se impõem no domínio das relações sociais, com impactos evidentes no ensino de História Antiga. Em linhas gerais, o passado da Humanidade aparecia, nos livros didáticos, como a institucionalização de uma memória oficial na qual as ações humanas se encontravam homogeneizadas e unificadas, sendo a sociedade composta por culturas descritas como uniformes, sem arestas nem contradições. Este consenso começou a ser posto em causa após a Segunda Guerra Mundial (NADAI, 2002, p. 250), quando os conflitos sociais passaram a ocupar um lugar de destaque no texto didático. Segundo Marcelo de Souza Magalhães (2003, pp. 176-7), as propostas curriculares de ensino de História que aparecem contempladas nos PCN’s formulados durante a década de 1990 retomam a preocupação com a cidadania sob a perspectiva da heterogeneidade e não da homogeneidade. No caso brasileiro, a construção da cidadania é considerada o principal desafio pedagógico nesse início de século, encontrando-se diretamente associada à consolidação da democracia. Por outro lado, como forma de sociabilidade, a cidadania adquire novas dimensões, englobando os direitos sociais e os direitos humanos. Desta forma, analisar os conteúdos transmitidos pelos livros didáticos brasileiros é prestar bastante atenção aos procedimentos pedagógicos que estimulem a cidadania em sentido mais amplo, isto é, que discutam a formação das identidades e que confrontem uma concepção monolítica de sociedade a partir das múltiplas interações culturais, atribuindo uma relevância particular à diversidade de gênero, classe, etnia, religião e outras. É estar atento igualmente aos conflitos que condicionam a dinâmica social. Com isso, a necessidade de se encontrar um sentido para o ensino de História, e não apenas para a pesquisa da disciplina, irrompe com toda força no mundo moderno. Hoje, acreditamos caber ao ensino de História suscitar reflexões a respeito das múltiplas formações culturais e identitárias próprias da vida em sociedade. Aprender História tornou-se, em larga medida, uma operação que envolve o estudo dos conflitos que sempre marcaram as sociedades humanas e a reflexão sobre as dificuldades do cidadão em agir num mundo cada vez mais globalizado, mas ao mesmo tempo cada vez mais diverso. Desse 22

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ponto de vista, a História ensinada se presta hoje, muito mais do que outrora, à ruptura com os lugares de memória constituídos, dentre os quais podemos situar a idéia de uma sociedade monolítica e de uma cultura homogênea que, de quando em quando, vemos reproduzida nas páginas do livro didático.25

O livro didático de História Para Circe Bittencourt (2002, pp. 71-3), o livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edição que obedece ao aprimoramento das técnicas de fabricação e comercialização postas a serviço da lógica do mercado. É também depositário dos conteúdos escolares, suporte básico e principal sistematizador dos conteúdos descritos nas propostas curriculares. É por seu intermédio que são transmitidos os conhecimentos e técnicas considerados fundamentais para uma sociedade em uma determinada época. O livro didático é, ao mesmo tempo, um valioso instrumento pedagógico para o professor, auxiliando na fixação do conteúdo ministrado mediante a aplicação de uma série de técnicas de aprendizagem, como exercícios, questionários, sugestões de trabalhos, entre outras. Diante de tal constatação, a partir da década de 1970 os manuais tenderam a ser confeccionados de acordo com o sistema de estudo dirigido, ou seja, a propor uma seleção do conteúdo a ser ensinado, um modo de distribuí-lo no tempo escolar com base numa progressão de unidades, um conjunto de atividades que introduzem e desenvolvem os assuntos e que, por vezes, permitem a avaliação do conhecimento assimilado pelos alunos (BATISTA, 1999, pp. 550-2). Finalmente, o livro didático é um importante formador de opinião ao veicular, de modo acessível e com uma autoridade própria da palavra escrita, um sistema de valores, uma ideologia, uma visão de mundo. A polivalência de um produto cultural como esse nos permite compreender o seu predomínio como recurso didático no cotidiano das salas de aula brasileiras. De fato, o livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de trabalho de professores e alunos, sendo utilizado em distintos ambientes escolares com condições pedagógicas igualmente diversas, servindo como mediador entre a proposta educacional do Estado contida nos programas curriculares e o saber escolar transmitido pelo professor (BITTENCOURT, 2002, pp. 72-3). No seu interior, articulam-se textos, documentos, imagens, exercícios e atividades com a finalidade de fornecer a alunos e docentes material adequado para a reflexão acerca dos conteúdos estabelecidos pelos 25

 esde a obra de Túcidides, História da Guerra do Peloponeso, os historiadores buscam definir a utilidade do saber histórico. D No caso de Tucídides, a preocupação é reconstituir as ações tal como se deram pelo fato de que, em virtude da constância da natureza humana, os eventos narrados se repetiriam em circunstâncias idênticas ou semelhantes. A História como repositório de exempla servirá de justificativa para a pesquisa e o ensino da disciplina por séculos a fio. A partir do Renascimento, e especialmente no século XVIII, a afirmação de uma concepção de tempo linear se tornará uma atitude recorrente diante da História, afetando assim a validade do topos ciceroniano da historia magistra vitae, a “história mestra da vida”, segundo o qual o saber histórico era tido como fonte de exemplos a ser seguidos ou evitados (Lima, 2006:83;113).

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parâmetros curriculares oficiais que regem o sistema educacional nas esferas federal, estadual e municipal. Segundo Antônio Augusto Gomes Batista (1999, pp. 529-31), os livros didáticos são efêmeros, posto que se desatualizam com muita velocidade e raramente são relidos ou consultados, razão pela qual as bibliotecas públicas e privadas pouco se interessam pela conservação desse tipo de acervo. Com autonomia restrita em relação ao contexto da sala de aula e à sucessão de graus, ciclos, bimestres e unidades escolares, sua utilização está indissoluvelmente ligada aos intervalos de tempo escolar e à atuação de professores e alunos. Não obstante as limitações da literatura didática assinaladas por Batista, é preciso considerar que os livros didáticos são a principal fonte de informação impressa utilizada por uma parcela significativa de alunos e professores do Brasil e que essa utilização intensiva ocorre quanto mais as comunidades escolares têm menos acesso a bens econômicos e culturais. De fato, a tiragem dos livros didáticos é a maior no contexto da produção editorial brasileira. Outra particularidade notável do livro didático é que, mesmo tendo o aluno se tornado, com o passar do tempo, o seu destinatário privilegiado, o livro é utilizado igualmente como fonte de consulta para a preparação das aulas por parte de muitos professores. Os textos didáticos são produzidos a partir de múltiplos condicionamentos de natureza social e política (BATISTA, 1999, p. 563), atendendo inclusive a temáticas que o próprio Estado, por meio de seus educadores e gestores de políticas públicas, estabelece como importantes para a formação educacional dos alunos. Atualmente, para se compreender o mundo no qual vivemos, questões vinculadas aos aspectos culturais das sociedades têm aparecido cada vez mais nos livros didáticos como fundamentais para a efetivação do processo de ensino-aprendizagem. O autor do livro didático e seu editor, no entanto, costumam elaborar a obra pensando num eventual “aluno médio”, fixado a partir de um conjunto de critérios, dentre os quais podemos mencionar a faixa etária, o padrão socioeconômico e a cultura da região em que reside. O grande obstáculo na avaliação do livro didático brasileiro é que o seu leitor real fragmenta-se em uma variedade de sujeitos muito diferentes entre si: alunos, pais, professores, demais profissionais de educação, administradores escolares. Sendo assim, tanto com referência à elaboração do livro didático quanto ao seu posterior consumo talvez seja mais prudente tratar o impresso didático como um artefato sofisticado e complexo e não como exemplo de uma literatura menor. A docência envolve uma proposta pedagógica e um modo de conceber a produção do conhecimento histórico em íntima associação. A preferência por um determinado livro já indica a adesão a uma corrente específica de interpretação do conhecimento histórico, mesmo que o docente por vezes não se dê conta disso (VIEIRA et al, 2003, p. 65). Sendo assim, a escolha de um livro didático nunca é neutra, mas resulta da opção 24

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por um enfoque histórico específico, o que nos remete à discussão acerca das relações de poder implícitas na adoção de um determinado livro. Segundo Kazumi Munakata (1999, pp. 578-9), o circuito do uso/leitura do livro didático envolve pelo menos dois leitores permanentes: aluno e professor, que estabelecem entre si uma relação de poder, pois mesmo que o principal destinatário seja o aluno, não cabe a este escolher o livro a ser usado. No âmbito da relação professor/aluno/livro didático, o primeiro exerce, sem dúvida, uma posição de autoridade, uma vez que, na maioria das vezes, é o professor o responsável exclusivo pela escolha da obra a ser utilizada em sala de aula e essa obra, dirigida ao aluno é, quase sempre, explorada sob orientação docente. Por outro lado, não devemos esquecer também de que, em algumas circunstâncias, o próprio livro didático assume uma posição privilegiada dentro do processo pedagógico, tanto em virtude das lacunas da formação docente quanto do excesso de afazeres ou mesmo do comodismo do professor, que não encara adequadamente a tarefa de criticar o livro didático, tomando-o como um instrumento que porta uma indiscutível autoridade acadêmica, como se depreende dos clássicos comandos “está no livro” ou “veja no livro” (VESENTINI, 1983, p. 74). Esse problema se torna particularmente grave no ensino de História Antiga na medida em que, em virtude do despreparo do professor para lidar com temas da Antigüidade, resultado, em parte, da falta de tradição de pesquisa nacional na área e dos desdobramentos negativos que isso acarreta para os cursos de licenciatura, as informações contidas no livro didático acabam por vezes adquirindo um status de verdade histórica, com distorções previsíveis para a trajetória escolar dos alunos.

O ensino de História Antiga no livro didático Os conteúdos ensinados sob a rubrica “História Antiga” na literatura didática brasileira, embora tenham sofrido alterações ao longo do tempo em virtude da adoção de novas perspectivas de interpretação para a disciplina e da exploração de novas temáticas, ainda se mantêm presos a concepções ultrapassadas, conforme já tivemos a oportunidade de demonstrar (SILVA, 2000). De fato, quando se trata do ensino de História Antiga, alguns conteúdos assumem, no livro didático, um teor verdadeiramente canônico. Assuntos como a experiência milenar das civilizações do assim denominado Oriente Próximo; a emergência e desenvolvimento do mundo grego e o surgimento, expansão e desagregação do Império Romano não podem faltar nos capítulos ou seções reservados para a História Antiga (FUNARI, 2003, p. 102). A pergunta que logo se impõe é a seguinte: por que? Desde os PCN’s da década de 1960, a História Antiga tem sido definida primordialmente como o estudo das sociedades que, no passado, se organizaram em civilizações, tendo em vista, em última instância, a compreensão da trajetória da Civilização Ocidental, vale dizer, européia, ujos primórdios remontariam ao surgimento de 25

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sociedades complexas às margens dos rios Nilo (Egito), Tigre e Eufrates (Mesopotâmia). Daí, o percurso civilizacional da Humanidade passaria de maneira gradual para os territórios da Península Balcânica e da Península Itálica, nos quais emergiram as sociedades grega e romana, respectivamente. Compondo uma certa unidade (a “Civilização Clássica”), Grécia e Roma, ao fim e ao cabo, dariam origem às sociedade européia. Essa continuidade entre o passado e o presente foi bastante acentuada pelos intelectuais do Renascimento, que buscavam associar o mundo europeu dos séculos XV-XVI com o passado greco-romano na intenção de superar a ruptura produzida pela História do Meio ou Medieval (GUARINELLO, 2003, p. 51). Por esse motivo, a História Antiga tem sido amiúde ensinada sob a forma de uma sucessão temporal tripartida que caminha do Leste para o Oeste: Antigo Oriente Próximo (em particular Egito e Mesopotâmia), Grécia e Roma (GUARINELLO, 2003, p. 52). É verdade, no entanto, que, em alguns livros didáticos, costuma-se reservar um espaço, ainda que restrito, para o estudo de outras sociedades antigas como, por exemplo, a persa, a fenícia e a hebraica26. Esta última é, em geral, contemplada pelos autores devido à importância atribuída ao estudo da origem do cristianismo para a compreensão adequada do mundo em que vivemos, marcado indelevelmente pela experiência cristã e pelo diálogo ora harmônico ora conflituoso entre as três grandes religiões monoteístas da atualidade: o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. Em todo caso, o importante é observar o quanto a História Antiga ensinada nos níveis Fundamental e Médio é dependente da história européia. Na realidade, é forçoso admitir que o ensino de História Antiga no Brasil, tal como transmitido pela imensa maioria dos livros didáticos comercializados por todo o País, é tributário ainda, em larga medida, de uma concepção de história eurocêntrica. Quanto a isso, embora outras especialidades históricas, tais como a História do Brasil e a da América, tenham se mostrado no decorrer dos últimos anos muito mais hábeis para se desvencilhar de uma bitola excessivamente européia, a História Antiga continua presa a ela pelos simples fato de se tratar uma realidade geográfica e cultural que hoje denominamos Europa de maneira transhistórica, como as principais correntes historiográficas do século XIX, com sua irritante insistência em revelar as “origens” da nação, nos levaram um dia a supor. A própria nomenclatura empregada para o estudo das sociedades antigas exprime uma ótica eurocêntrica. A expressão “Oriente Próximo”, por exemplo, designa o território 26

 restrição dos conteúdos de História Antiga oriental consignados nos livros didáticos às sociedades mesopotâmica, egípcia, persa, A fenícia e hebraica se deve, em nossa opinião, a uma flagrante ausência, nas universidades brasileiras, de tradição nos estudos de História do Extremo Oriente, razão pela qual a Índia, a China e o Japão só costumam aparecer na narrativa didática a partir do movimento imperialista do século XIX, quando muito. O mesmo poderíamos dizer acerca do estudo da África subsaariana, muito embora tenhamos observado, recentemente, um movimento lento, mas efetivo, de introdução da História da África nos currículos escolares, o que tem exigido a abertura de concursos específicos para o ensino e a pesquisa da disciplina nos departamentos universitários, o que nos leva a supor que, a médio prazo, os livros didáticos passarão a contemplar os conteúdos de História da África, incluindo o período antigo, de maneira muito mais detalhada.

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oriental mais próximo do ponto de vista da Europa, enquanto o “Extremo Oriente” designa o território oriental mais distante. No que diz respeito à lógica explicativa global adotada para o estudo das sociedades antigas, após uma fase de acentuada influência marxista, o enfoque político, agora por vezes associado aos aspectos culturais, volta a se impor no livro didático, acompanhando, ainda que com certo atraso, uma tendência já consolidada nos meios acadêmicos. Desse modo, vista sob uma perspectiva de conjunto, a História Antiga ensinada hoje nos livros didáticos se encontra bem menos condicionada à dinâmica da sucessão dos modos de produção do que há uma década atrás, razão pela qual o Egito e a Mesopotâmia não são mais caracterizados a priori como sociedades regidas pelo modo de produção asiático, ao passo que Grécia e Roma não são mais definidas apenas como sociedades escravistas. Um exemplo ilustrativo desse abandono progressivo das interpretações de teor economicista por parte da literatura didática é o desaparecimento quase total da Hipótese Causal Hidráulica, outrora bastante utilizada para explicar o surgimento e a dinâmica social das civilizações do Oriente Próximo27. Hoje, o estudo do Oriente Próximo fundamenta-se muito mais em critérios de natureza política, o que conduz ao predomínio da divisão da História da Mesopotâmia em períodos imperiais, nos quais uma cidade-Estado se sobrepõe às demais, dominando-as política e economicamente, e períodos intermediários, nos quais eventos internos ou externos tornam a unidade imperial inviável. A mesma tendência historiográfica pode ser detectada no estudo da História do Egito antigo, tradicionalmente dividida em fases imperiais (Antigo, Médio e Novo Império) e períodos intermediários marcados pela fragmentação do poder central e pela ascensão de dinastias paralelas que passam a exercer o controle sobre frações do território egípcio. Desta forma, constatamos que os estudos de Antigüidade Oriental se caracterizam pela adoção de uma narrativa na qual predominam parâmetros cronológicos extraídos da História Política, situação que vemos se repetir mutatis mutandi no caso da Civilização Ocidental. A noção de Grécia ou de Civilização Grega é, na realidade, uma convenção estabelecida em grande parte por imperativos de ordem didática, pois Grécia “nunca correspondeu a uma sociedade uniforme, a uma mesma cultura ou a um Estado unificado” (GUARINELLO, 2003, p. 53), ou seja, nunca apresentou uma identidade precisa. Habitualmente, o estudo dos conteúdos referentes à História da Grécia é iniciado com as civilizações surgidas nas ilhas do Mar Egeu (Cíclades), com ênfase na realeza cretense. Em seguida, a narrativa didática se desloca para o território continental (a Península Balcânica ou Hélade), tratando 27

Tal concepção, presente durante muito tempo nas páginas do livro didático, pressupunha que os Estados, no Oriente Próximo, se formaram em torno de rios com a finalidade de organizar o trabalho de exploração da água utilizada na agricultura. Desacreditada após arqueólogos terem demonstrado a existência de canais de irrigação e drenagem nas comunidades aldeãs muito antes da formação de Estados fortes e unificados, a Hipótese Causal Hidráulica não mais se sustenta, sob nenhum aspecto (Cardoso et al, 1990:103 e ss.).

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rapidamente da Civilização Micênica e da Idade Homérica para se deter nas poleis, isto é, cidades-Estado independentes do ponto de vista político, mas interdependentes do ponto de vista econômico e cultural. Nesse caso, o enfoque recai sobre a história das cidadesEstado melhor conhecidas em virtude da quantidade de documentos textuais e vestígios arqueológicos que nos legaram: Atenas e Esparta. A etapa seguinte é constituída pelo estudo do processo de unificação das diversas poleis promovido após a Guerra do Peloponeso (431-404) pelos reis da Macedônia, Felipe II e Alexandre, o Grande, cuja atuação no sentido de estabelecer o Império Universal inaugura um novo período que os especialistas costumam designar como Helenístico em virtude da fusão da cultura grega com a cultura oriental produzida no rasto das campanhas de Alexandre. Após a morte deste, em 323 a.C., o território de seu extenso império é dividido entre seus generais, dando origem a uma nova configuração das relações de poder no Mediterrâneo oriental nem sempre explorada pelo livro didático. Desse modo, é bastante comum, no texto didático, a divisão do estudo da História da Grécia em períodos de acordo com uma ordem cronológica e espacial na qual o epicentro do poder político e econômico se desloca progressivamente das ilhas do Egeu para o continente e, em seguida, alcança as outras regiões ocupadas pelos gregos no decorrer da sua expansão territorial, para se fixar nas poleis que exercem a hegemonia sobre o mundo grego (Atenas, Esparta e Tebas, respectivamente) e, por último, culminar com o domínio imposto pela Macedônica28. Uma lógica semelhante tem norteado o ensino da História de Roma. Assim como no caso da Grécia, o termo “Roma” também pode ser descrito como uma convenção pedagógica, pois da fundação de uma cidade, na Península Itálica, passa-se aos poucos para a reflexão a respeito da constituição de um Império que se estendeu por toda a costa do Mediterrâneo. Cumpre mencionar, no entanto, que o ensino de História de Roma comporta uma dificuldade adicional se comparado ao ensino de História da Grécia, pois como assinala Norberto Guarinello (2003, pp. 53-4), quando falam de “Roma”, os professores e pesquisadores podem estar se referindo a pelo menos quatro realidades distintas: a uma cidade riberirinha ao Lácio, ao território da Península Itálica, a um império de dimensões continentais ou às três. Assim, é comum que a historiografia trate de uma “sociedade romana”, de uma “cultura romana” ou de uma “economia romana” sem circunscrever o alcance espacial da explicação proposta. A periodização adotada, por sua vez, assume igualmente um sentido político, de acordo com as informações provenientes da própria docu28

A periodização da História da Grécia adotada na maioria dos livros didáticos costuma ser composta pelas seguintes fases: a) Minóica (estudo da monarquia cretense, assim denominada devido a um de seus reis, Minos); b) Micênica (forma de realeza que se organizou no continente atestada inicialmente em Micenas); c) Homérico (tipo de realeza citada nas obras Ilíada e Odisséia, cuja autoria é atribuída tradicionalmente a Homero); d) Arcaica (passagem do sistema da realeza para outras formas de poder nas cidades formadas pelo processo do sinecismo, ou seja, pela união paulatina das comunidades rurais); e) Clássica (considerada o auge da formação políade, com a estruturação do sistema democrático em Atenas e do sistema oligárquico em Esparta) e f) Helenística (caracterizada pela falência do sistema políade e pelo controle macedônico sobre as poleis outrora soberanas).

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mentação textual, que fixa fases sucessivas de organização das instituições políticas que compunham a res publica29.

História Antiga e construção da cidadania Tendo apresentado até o momento um conjunto de problemas relativos à História Antiga contidos nos livros didáticos, seria talvez oportuno nos interrogar sobre a validade do ensino da disciplina num país que não foi o berço das civilizações, como o Oriente Médio e a Europa. Sob certo ponto de vista, não seria improdutivo “roubar” espaço da história pátria para introduzir em sala de aula o estudo de sociedades tão distantes da realidade territorial e temporal do aluno? Não seria, ao contrário, mais adequado investir na compreensão do aluno sobre a História Regional ou Nacional, em detrimento de outros contextos? A resposta, em nossa opinião, é negativa. Em primeiro lugar, pelo fato de que toda proposta de limitação das experiências cognitivas do aluno, daquilo que ele deve ou não aprender, é bastante tendenciosa. Os currículos e programas escolares, decerto, já produzem uma clivagem nos conteúdos a ser trabalhados em sala de aula, incluindo determinados temas e excluindo outros, o que representa, sem dúvida, um direcionamento prévio (e necessário, é bom que se diga) ao processo de ensino/aprendizagem. No entanto, impedir que o aluno, no âmbito da sala de aula e sob orientação especializada, venha a refletir sobre a longa trajetória do homem sobre a terra e, por extensão, sobre a riqueza cultural daí advinda, seria não apenas contraproducente em termos pedagógicos como também profundamente injusto, uma vez que se insistimos em demasia no predomínio da História Regional e Nacional, acabamos por confinar os alunos em “guetos” culturais, em torná-los reféns dos temas históricos caros à Nação ou à região em que vivem, temas estes muitas vezes eivados de uma ressonância ideológica intensa que os professores conseguem com dificuldade contornar. Nesse sentido, como o exercício da profissão cedo ou tarde se encarrega de revelar ao professor, os alunos que detêm maior poder aquisitivo apresentam uma enorme facilidade de acesso à informação, seja por intermédio de jornais, livros, revistas, cursos de idioma, espetáculos teatrais e musicais, consultas à internet ou, em alguns casos, de viagens internacionais, o que os mantêm em contato permanente com todo um ambiente cultural que supera e muito as fronteiras da região ou do país em que vivem. Diante de uma situação como essa, os estudantes menos abastados que, em sua imensa maioria, têm nos bancos escolares uma oportunidade ímpar de acesso aos bens culturais e contam 29

 ensino de História de Roma também tem sido dividido em períodos, como se segue: a) Realeza (estudo dos sete reis, a maioria O lendários, que teriam governado a cidade de Roma da fundação até o golpe aristocrático de 509 a.C.); b) República (período que se estende do golpe aristocrático que institui a forma republicana de governo até a criação de um novo sistema político baseado no poder de um só homem); c) Principado ou Alto Império (a primeira fase da monarquia imperial romana dominada pelo imperador, o princeps, que submete ao seu poder as antigas instituições republicanas); d) Anarquia Militar (momento de quase colapso da unidade imperial devido a múltiplos problemas de ordem interna e externa) e e) Dominato ou Baixo Império (período no qual a monarquia experimenta significativas mudanças em sua estrutura, com o imperador passando a ostentar o título de dominus, senhor em latim).

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com o livro didático como principal fonte de consulta,deveriam ser privados de conhecer a História da Humanidade, da qual a História Antiga constitui sem dúvida um dos momentos mais fecundos? Por outro lado, como proposto nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006, p. 79), o ensino de História adquire uma importância fundamental na construção da cidadania ao estimular, no aluno, “a valorização de si mesmo como sujeito responsável pela construção da História; o respeito às diferenças étnicas, religiosas, políticas, evitando-se qualquer tipo de discriminação (...); a valorização do patrimônio sociocultural, próprio e de outros povos, incentivando o respeito à diversidade”. O que os autores das Orientações Curriculares para o Ensino Médio recomendam, portanto, é que a História, na condição de disciplina escolar, esteja a serviço da valorização da diferença, da diversidade, sob todos os seus aspectos como uma maneira de estimular a tolerância e de combater a discriminação, o que implica ao mesmo tempo a rejeição a qualquer tipo de preconceito, seja de que natureza for. Julgamos que, diante de uma situação como essa, a História Antiga pode ser convocada a contribuir de modo extremamente satisfatório para a consolidação da cidadania em nosso País. A História Antiga representa, para nós, brasileiros, um espaço absolutamente estrangeiro. Ela certamente não é a “nossa” história, como o é, por um esforço de naturalização pedagógica, a história da trajetória das naus cabralinas que, partindo um dia de Portugal a caminho das Índias, aportaram nessas Terras de Santa Cruz. E, no entanto, nessa distância, nesse estranhamento, nessa falta de familiaridade, reside todo o potencial pedagógico do ensino de História Antiga que cabe ao professor explorar. Propiciar aos alunos o contato com as práticas culturais de egípcios, fenícios, hebreus, sumérios, gregos, romanos é demonstrar, para eles, o quanto a História comporta de pluralidade, o quanto ela é capaz de remontar no tempo para além daquele 22 de abril de 1500, descortinando realidades até então insuspeitas. É também exortar os alunos a sair do seu lugar, da sua época para, sem o recurso à própria experiência biográfica ou familiar, ir de encontro ao Outro, ao diferente, com o propósito de compreendê-lo e não de julgá-lo. Mediante o diálogo do passado mais remoto com o presente mais contemporâneo, o ensino de História Antiga pode contribuir, de modo bastante favorável, para tornar os alunos menos intolerantes e mais receptivos à alteridade e para suscitar a reflexão sobre os dilemas e as idiossincrasias da nossa própria civilização quando confrontada com os antigos (THEML e BUSTAMANTE, 2005, p. 100), o que representa uma etapa importantíssima rumo à consolidação de uma sociedade mais democrática e atenta à diversidade de culturas, credos e opiniões.

Para onde caminha o ensino de História Antiga? As características gerais do ensino de História Antiga ministrado a partir dos livros 30

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didáticos brasileiros que tratamos de apontar nesse capítulo vêm se alterando muito lentamente ao longo dos anos. A história das sociedades mesopotâmica, egípcia, grega e romana, vista sob um prisma eurocêntrico e pautada pela sucessão cronológica dos acontecimentos políticos, continua dominando os currículos do Ensino Fundamental e Médio e, por extensão, a narrativa contida nos livros didáticos. Além disso, devemos assinalar a presença, no livro didático, de inúmeras generalizações, anacronismos, desatualizações e lugares de memória historiográficos, particularmente no que diz respeito aos conteúdos de História Antiga. No entanto, se hoje a situação do ensino de História Antiga em nível escolar ainda está longe de ser a ideal, isso não significa que nada foi feito no sentido de superar os problemas assinalados. Quanto a isso, devemos destacar, a princípio, a implantação e continuidade do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), um projeto nacional de avaliação do livro didático implementado pelo Ministério da Educação com a finalidade de excluir da sala de aula das escolas públicas brasileiras obras que possam comprometer a qualidade do processo ensino-aprendizagem. Instituído em 1985, mas implementado com regularidade apenas a partir de 1996, o PNLD tem gerado, em uma década de funcionamento ininterrupto, uma autêntica “revolução” pedagógica na produção didática brasileira, com o aprimoramento visível da qualidade do material didático disponível no mercado (MIRANDA e DE LUCA, 2004, p. 127). O cuidado maior dispensado por autores e editores à confecção do livro didático de História já produz o seu impacto sobre os conteúdos de História Antiga, que hoje se encontram muito mais afinados com as concepções historiográficas contemporâneas do que outrora, fruto em parte da presença, na equipe de avaliadores do PNLD, de especialistas na área com condições de confrontar a literatura didática e, desse modo, impulsionar a sua renovação. Outro fator importante que vem influindo positivamente sobre o ensino de História Antiga é a instalação, no País, de novos espaços institucionais de intercâmbio científico. A fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC), em 1985, e do Grupo de Trabalho em História Antiga (GTHA), da Associação Nacional de História (ANPUH), em 1999, têm proporcionado ao longo dos últimos anos a instalação de um amplo debate nacional acerca da necessidade de incorporação de novos temas, abordagens, metodologias e conceitos aos estudos da Antigüidade. A multidisciplinaridade, por sua vez, tem-se evidenciado como uma necessidade sentida por muitos pesquisadores. De fato, há alguns anos a Arqueologia, a Epigrafia, a Numismática, as Letras Clássicas e a Antropologia, entre outros saberes, são vistos como parceiros no desenvolvimento da investigação sobre o Mundo Antigo e esse diálogo multidisciplinar tem se reproduzido, ainda que de maneira um tanto ou quanto tímida, nas páginas do livro didático. Por outro lado, a consolidação de diversos periódicos impressos e eletrônicos, como a revista Phoînix, editada pelo Laboratório de História Antiga (LHIA) da UFRJ; a Clas31

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sica, mantida pela SBEC e a eletrônica Hélade, totalmente voltados para a divulgação de artigos concernentes à História Antiga, também tem contribuído para propiciar uma maior visibilidade aos temas próprios da área. Dentre os artigos veiculados por esses periódicos, devemos ressaltar alguns que demonstram claramente a preocupação em discutir o ensino de História Antiga no Brasil. Além disso, é preciso reconhecer que hoje, muito mais dos que há uma década atrás, há mais pesquisadores brasileiros interessados em História Antiga, o que tem favorecido não apenas uma significativa renovação historiográfica como também a renovação do ensino na área. De fato, o ingresso de especialistas em História Antiga em vários departamentos universitários e programas de pós-graduação tem fomentado, de modo crescente, a capacitação de mestres e doutores e a criação de núcleos, grupos de trabalho e laboratórios dedicados ao estudo da Antigüidade, o que vem produzindo um rápido redimensionamento nacional da área. Um resultado visível em médio prazo desse esforço concentrado de formação de quadros em História Antiga no País é, sem dúvida, o aprimoramento da qualidade do ensino da disciplina em nível escolar. Ao mesmo tempo, por uma exigência do próprio modus facendi da História na atualidade, são abertos novos campos de investigação sobre as sociedades antigas, constituindo-se novos objetos de análise, tais como as relações de gênero, o processo de formação das identidades, as modalidades de propaganda política e a dinâmica étnica, cultural e religiosa própria da Antigüidade. Nesse último aspecto, o Império Romano constitui, sem dúvida, um locus privilegiado por aglutinar, num mesmo território, sistemas culturais distintos que estabelecem continuamente relações de concorrência e cooperação, razão pela qual a identidade romana é impossível de ser apreendida na sua fixidez, mas tão somente como um processo dinâmico de reapropriação e reelaboração da cultura latina pelas populações locais, sendo preferível se falar antes em identidades romanas de modo a realçar a sua pluralidade (Bustamante, 2006:130-1). No caso grego, por sua vez, rompe-se aos poucos uma tradição historiográfica secular que tende a identificar a História da Grécia com a história de Atenas e Esparta, com a multiplicação de pesquisas sobre outras poleis, como, por exemplo, Corinto, Tebas e Tirinto, entre outras. Ao mesmo tempo, conceitos já consagrados na literatura especializada são finalmente absorvidos pela literatura didática, como o de Antigüidade Tardia e o de Primeira Idade Média, que representam uma tentativa dos pesquisadores em fundar um novo modelo de interpretação da transição da Antigüidade para a Idade Média, só para citar um exemplo, dentre tantos possíveis. Além disso, outra particularidade notável do ensino de História Antiga ministrado hoje a partir dos livros didáticos é o cuidado incessante com a assimilação de procedimentos específicos do fazer historiográfico. O cruzamento dos indícios provenientes da cultura material com as informações recolhidas da documentação literária que hoje vemos se tornar corrente na prática do historiador 32

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da Antigüidade é transposta diretamente para o cotidiano da sala de aula do Ensino Fundamental e Médio, o que sem dúvida contribui para o desenvolvimento da consciência crítica do aluno e para a sua compreensão de que, mesmo no Brasil, é possível aos historiadores o acesso a esse passado tão remoto, a essa alteridade absoluta que as sociedades antigas representam para nós, brasileiros do século XXI30.

Bibliografia BATISTA, A. A. G. Um objeto variável e instável: textos, impressos e livros didáticos. In: ABREU, M (Org.). Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, pp. 529-575. BITTENCOURT, C. Livros didáticos entre textos e imagens. In: __________ (Org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2002, pp. 69-90. BUSTAMANTE, R. M. C. Práticas culturais no Império Romano: entre a unidade e a diversidade. In: SILVA, G. V. da. e MENDES, N. M. Repensando o Império Romano. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória: Edufes, 2006, pp. 109-36. CARDOSO, C. F. S.; BOUZON, E. e TUNES, C. M. M. Modo de produção asiático: nova visita a um velho conceito. Rio de Janeiro: Campus, 1990. FONSECA, T. N. L. História & Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. FUNARI, P. P. A. A renovação da História Antiga. In: KARNAL, L. (Org.). História na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2003, pp. 95-107. GUARINELLO, N. L. Uma morfologia da História: as formas da História Antiga. Politeia, Vitória da Conquista, v. 3, n. 1, pp. 41-61, 2003. LIMA, L. C. História, ficção, literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. MAGALHÃES, M. S. História e cidadania: por que ensinar história hoje? In: ABREU, M. e SOIHET, R. (Org.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003, pp. 168-184. MIRANDA, S. R. e DE LUCA, T. R. O livro didático de História hoje: um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 48, pp. 123-44, 2004. MUNAKATA, K. Livro didático: produção e leituras. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado de Letras, 1999, pp 577-594. NADAI, E. O ensino de História e a “pedagogia do cidadão”. In: PINSKY, J. et al. O 30

Alguns documentos textuais da Antigüidade têm sido amplamente usados nos livros didáticos. Os mais comuns são o Livro dos Mortos para o caso egípcio, o Código de Hamurabi para ensino de História da Mesopotâmia, as obras de Heródoto e Tucídides para os estudos gregos e as de Cícero, Tácito, Sêneca e Tito Lívio para os estudos romanos. Trata-se de documentos importantes, sem dúvida, mas que não podem monopolizar o espaço nos nossos livros didáticos, pois há vários outros discursos que podem e devem fornecer informações de outra natureza e relevância sobre as sociedades antigas, muitos dos quais têm sido traduzidos para a Língua Portuguesa, o que facilita a sua utilização em sala de aula. Por exemplo, é possível ampliar-se a compreensão da sociedade mesopotâmica refletindo-se sobre a Epopéia de Gilgamesh ou, no caso da República romana, lendo-se as comédias de Plauto.

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Antigüidade Clássica e Numismática: representações e pesquisas no ensino fundamental. Cláudio Umpierre Carlan31* (Unicamp)

Introdução

Por que estudamos História Antiga? No Brasil, o estudo da História Antiga sempre ficou legado a um segundo plano. Um período histórico de pouca importância, direcionado apenas pelo romantismo e curiosidade de civilizações exóticas há muito “desaparecidas”. O cinema holywoodiano tratou de reforçar esse romantismo exacerbado sobre o tema. Amor e aventura em um mundo perfeito, sem pobreza, miséria, fome (CARLAN, 2004/2005, p. 147). Filmes como Gladiador e Tróia, ou os mais antigos, Qvo Vadis, Terra de Faraó, Cleópatra, Queda do Império Romano entre outros, retratam, muitas vezes anacronicamente, esse período. Como por exemplo o penteado chanel da atriz Claudette Coubert (Cleópatra, 1934, dirigido por Cecil B. de Mille); a construção da pirâmide de Quéops (Terra de Faraó dirigido por Howard Hawks, 1952) com mecanismos inexistentes no período (IV Dinastia entre os anos de 2723 – 2763 a.C., no Antigo Egito), ainda mais relacionando com o Êxodo Hebraico (saída dos hebreus do Egito liderados por Moisés). Cecil B. de Mille na sua obra prima, “Os Dez Mandamentos” (esse sim sobre a saída dos hebreus do Egito), compara o governo de Ramsés II (1301 – 1235 a.C.) a ditadura de Stalin. Os cineastras Anthony Mann32 e Serguei Eisenstein, tentaram fugir dessa linha. Mann quando dirigiu “El Cid”, se baseou quase que exclusivamente na baladas medievais, dando ênfase ao panorama político da época: a luta pelo poder entre os reis cristãos e seus descendentes, a diferença cultural dos mouros (árabes da península ibérica) para seus primos dos demais territórios muçulmanos. Já Eisenstein, como fizera em o “Encouraçado Potiomkin” (1925), tenta estabelecer um padrão real, ou próximo, em “Alexander Nevski” (1938). Stalin “aconselhou” ao diretor, a compará-lo com o príncipe de Nevski, que no século XIII, deteve a invasão dos cavaleiros teutônicos alemães. Quem sabe, já prevendo uma futura invasão nazista (como ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial 1939 - 1945). Em nossas Universidades, a ênfase e o maior destaque (principalmente verbas) são direcionados para as ciências exatas. Humanas, apenas relacionadas com Brasil. Por que estudar Antigüidade num país que não teve contato direto com as civilizações

 outorando / UNICAMP, pesquisador-associado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE – UNICAMP), membro do conselho conD sultivo da www.historiaehistoria.com.br, bolsista da CAPES. E.mail: [email protected] 32 Mann tentará novamente essa fórmula com seu outro filme: “A Queda do Império Romano”. Usando boa parte do elenco de “El Cid”. Mas não conseguiu o resultado esperado. Película foi um farcasso de crítica e público. 31

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orientais e clássicas? Não “existem” documentos, leia-se fontes primárias, em nosso país que retratam esses povos? Qual estudante e pesquisador em História Antiga que nunca ouviu essas críticas. Esquecem da grande influência dessas civilizações na nossa sociedade contemporânea. Muitos costumes, cuja origem nem mais lembramos, estão ligados diretamente a esses povos. A língua (latim), as leis (Direito Romano), nas artes, nos ditados populares (gosto não se discute / tradução do provérbio latino de gustibus non est disputandum), o noivo que carrega a noiva nos braços (alusão ao rapto das Sabinas por Rômulo). Existe no Brasil um grande número de documentos que retratam a Antigüidade, principalmente a Greco-Romana. Não apenas fontes escritas, mas também ligadas a cultura material como estudo arqueológico de edifícios, estátuas, cerâmicas, pinturas, moedas entre outras categorias de artefatos (FUNARI, 2003, p. 96). É exatamente sobre as moedas que daremos um destaque maior.

Numismática como fonte: um documento alternativo 33 ? A numismática pode ser considerada “uma disciplina das ciências sociais” (FLORENZANO, 1984, p. 11). Ligou-se tradicionalmente ao estudo da História, sobretudo a História Política, ajudando a estabelecer a cronologia de reinados e a datar fatos importantes da política; à Economia, informando sobre o valor das moedas dentro dos diferentes sistemas monetários, sobre desvalorizações e período de crise, sobre os comportamentos em relação à moeda, permitindo examinar, no passado, a aplicação das leis econômicas; a Arqueologia, contribuindo para auxiliar a datação de estratos e sítios arqueológicos; e a História da Arte, permitindo, através de seus tipos, uma análise da evolução dos estilos e o reconhecimento de obras desaparecidas ou conhecidas somente por meio de textos literários (VIEIRA, 1995, p. 94). A moeda tem sido estudada pelos historiadores sob o prisma de mercadoria, objeto de troca. Procurou-se ligá-la com a história social, ou seja, com os reflexos que a mutação monetária produzia na sociedade a nível de salários, custo de vida e os conseqüentes comportamentos coletivos perante estes. O estudioso da moeda se tem preocupado mais com o corpo econômico e social que ela servia do que com o metal que a produzia e a informava. Estruturalmente este ultrapassava os limites geográficos do poder que a emitia e definia ideologicamente não só um povo, mas também a civilização a que este pertencia. O homem contemporâneo dificilmente pode ligar a moeda a um meio de comunicação entre povos distantes. Ao possuidor na Antigüidade de uma determinada espécie monetária estranha, esta lhe falava pelo metal nobre ou não em que era cunhada,

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Todas as moedas aqui citadas pertencem a coleção do Museu Histórico Nacional / RJ.

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pelo tipo e pela legenda. O primeiro informava-o a riqueza de um reino e os outros dois elementos diziam-lhes algo sobre a arte, ou seja, o maior ou menor aperfeiçoamento técnico usado no fabrico do numerário circulante, sobre o poder emissor e, sobretudo, sobre a ideologia político-religiosa que lhe dava o corpo.

Trabalhando com imagens no ensino fundamental 34. A divisão curricular dos ensinos médios e fundamental no Brasil, tem como objetivo principal a preparação do aluno para o seu ingresso na Universidade, ou seja, o vestibular. Como os conteúdos exigidos variam de estado para estado da federação, usaremos como base o conteúdo programático utilizado pela rede educacional do Rio de Janeiro.35 As universidades localizadas no estado cobram os conteúdos a partir do século XIV, passando quase desapercebido pela Crise do Sistema Feudal. Indo diretamente para a Expansão Marítima, Estado Moderno, até chegar ao Brasil Republicano. Como se não existisse nada de importante antes desse período. As escolas fundamentais, particulares ou públicas, se aperfeiçoaram a esse modelo. Os livros didáticos também seguem o padrão. No antigo primeiro grau, atual ensino fundamental, ou seja, de 5ª a 8 a série, geralmente, a História Antiga é na 5ª série, quando a aluno ainda está muito imaturo para ter uma visão crítica do conteúdo. Em algumas escolas de educação infantil, as atividades sobre Antigüidade, aparecem vinculadas a projetos: ouvir, cantar, imaginar, representar Histórias, práticas que propiciam o exercício do imaginário (FUNARI, 2006, p. 79). Para realização desse capítulo, fizemos um certo número de trabalhos com imagens, com os alunos da sétima série da Escola Municipal Francisco Caldeira de Alvarenga. A escolha dessa turma se deu a fato de eles já terem realizado estudos semelhantes nos anos anteriores (5ª e 6ª série). Escolhemos uma série de documentos iconográficos, principalmente moedas e medalhas36, onde os alunos teriam de realizar uma “leitura” dessa documentação imagética e compará-la com o seu cotidiano. Utilizamos os seguintes materiais: - moedas, dupondius e aes 37, di Diocleciano, Maximiano, Constantino I e Constâncio II 38; Todas as datas aqui citadas são depois de Cristo.  scolhemos o Rio de Janeiro, por estarmos mais familiarizados com todo o processo educacional carioca, pois já trabalhamos a mais E de 10 anos na rede de ensino local. 36 A numismática se caracteriza não somente pelo estudo das moedas, mas também pelo estudo das medalhas. 37 Conforme Junge (1994, p. 15) o aes, bronze, teria sido a primeira forma de moeda em Roma para servir às trocas, compras ou vendas (aes grave ou bronze a peso). O autor ainda cita outros tipos como o aes militare, aes rude, aes signatum. Junge também define que uma das principais características das reformas realizadas pelos tetrarcas foi a introdução do dupondius, entre os anos de 295 e 298, como um novo padrão monetário. 38 Os alunos visitaram o Museu Histórico Nacional, visualizaram as peças na exposição permanente do MHN. Mesmo assim, apresentei para eles as mesmas moedas fotografadas por mim, com a autorização da diretoria da instiuição. 34 35

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- moedas de prata dos Estados Unidos da América, e da Espanha (período franquista); - medalhas do I e II Congresso Latino-Americano de Numismática, cunhadas a pedido da Sociedade Numismática Brasileira; Depois da realização de uma leitura imagética, com identificação prévia da documentação disponível e na catalogação, estabelecemos um corpus documental ao qual foi aplicado à categorização conhecida como “esquema de Lasswell”, pioneiro, desde 1927, das análises de conteúdo aplicadas à política e à propaganda. Os alunos estabeleceram uma relação do corpus com: a natureza do emissor; a quem se destinam tais representações; e o seu significado. Reconhecendo que o simbolismo da Civilização Romana estava presente em todos os outros materiais analisados. Através da roupa, personagens mitológicos, sinais que ligaram as medalhas e moedas, aos modelos cunhados no século IV, apesar dos 1600 anos de diferença.

Considerações Finais O acervo do Museu é composto por mais de 1888 moedas cunhadas durante o século IV39. Essas peças apresentam os mais variados tipos de reverso, entre eles: divindades pagãs e mitológicas, votivas ou laudatórias, militares com representações da Vitória. Mesmo num Império “cristão”, as divindades pagãs continuam, e continuaram até os dias atuais, sendo representadas. O Gênio, divindade tutelar romana, cunhada pela primeira fez entre 295 e 298, pelos seus antecessores da Tetrarquia (GENIO POP ROM); templo da justiça onde os magistrados se reuniam (CONSERVATORES VRB SVAE); deus Marte, de uniforme militar, com ou sem escudo (MARTI CONSERVATORI); Marte nu marchando para o combate, com um prisioneiro “bárbaro” (FVNDAT PACIS); Júpiter, mesmo modelo da Tetrarquia, acompanhado de uma águia com a coroa de louros (IOVI CONSERVATORI AVGG); Sol Radiado, seminu, com globo, um chicote, com prisioneiro aos seus pés, amarrado (SOLI INVICTVS COMITI e SOLI INVICTO), são alguns desses modelos. Algumas dessas peças, principalmente as cunhadas por Constantino I, vêm acompanhadas de uma cruz. A utilização dessas peças como fonte não é novidade. Em nosso trabalho em sala de aula tratamos de analisar as conotações tanto históricas quanto estéticas, de cada uma dessas imagens. Os alunos tiveram a oportunidade de analisar uma fonte histórica ainda pouco explorada no Brasil, relacionando-a com o seu cotidiano. Os símbolos que habitam a numismática estão dotados sempre de uma clara organização hieroglífica, pois procedem do fato de que essas imagens difundidas se

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No refugo do Museu, espécie de “lixo”, foi encontrado em 2001, uma grande quantidade de moedas e medalhas. Essas peças foram “deixadas de lado” por estarem quebradas ou danificadas pela ação do tempo. Depois de uma análise mais detalhada, chegamos a conclusão que um estudo em cima desse refugo, identificando e analisando cada peça, é de fundamental importância para o estudo da Numismática e da História Antiga no Brasil.

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articulam sempre com o idioma figurado, no qual o poder se expressa secularmente. Trata-se do surgimento de representações de águias, leões, como também de torres, cruzes, da fênix, de imperadores ou de personagens pertencentes a uma elite políticoeconômica, que representam a órbita de ação do poder, chegando ao ponto em que a numismática pode ser definida como um monumento oficial a serviço do Estado.

Agradecimentos Agradecemos aos colegas e amigos André Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli a oportunidade de trocarmos idéias, e a Pedro Paulo Abreu Funari, Ciro Flamarion Santana Cardoso, Maria Beatriz Borba Florenzano, Vera Lúcia Tosttes, Rejane Maria Vieira, Eliane Rose Nery, Edinéa da Silva Carlan, Francisca Santiago da Silva. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/Unicamp) e da CAPES. A responsabilidade pelas idéias restringe-se ao autor.

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A potencializacão do ensino de História Antiga por meio de atividades extracurriculares: duas experiências em universidades públicas do Sul do Brasil40 Fábio Vergara Cerqueira (UFPEL) Márcia Ramos de Oliveira (UDESC) Abordaremos, aqui, aspectos de nossa experiência docente, no ensino de História Antiga, em duas universidades públicas do Sul do país, nos cursos de Licenciatura em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e de Licenciatura e Bacharelado em História da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC). Semelhanças e diferenças nestes percursos são salientadas, a título de configuração de um panorama, mesmo que limitado a um espectro regional. Os dois autores deste estudo lecionam História Antiga em decorrência de aprovação em concurso público, caracterizando um grande avanço havido em nosso país, a partir de finais dos anos 80, quando, progressivamente, mesmo em universidades periféricas, não mais se aceitou entregar a disciplina a professores que eram responsáveis por outras áreas em seus departamentos, com desprezo à formação especializada na área. Existe, porém, uma particularidade que diferencia ambos docentes, no que se refere à relação dos mesmos com os Estudos Clássicos. O professor Fábio Vergara Cerqueira leciona História Antiga há 15 anos, na UFPEL. Quando de seu ingresso, ainda não possuía qualificação nesta área, apesar de já integrar, na época, a Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos e de já possuir artigos publicados sobre a mesma, naquela época dedicados ao estudo do teatro ático. Seu doutoramento foi concluído em 2001, na Universidade de São Paulo (USP), abordando assuntos relativos à música e à iconografia da Grécia Antiga. A professora Márcia Ramos de Oliveira, quando de sua entrada na UDESC no ano de 2003, já era Doutora em História, tendo feito seus estudos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), versando sobre temas relacionados à música popular brasileira.41 Percebe-se que ambos, quando de seu ingresso na carreira do ensino público superior, não possuíam titulação na área de História Antiga, tendo subseqüentemente desenvolvido diferentes formas de aprofundamento no campo dos Estudos Clássicos, comprometidos com a vinculação entre ensino, pesquisa e extensão, propugnada pela legislação brasileira. A professora Márcia Ramos de Oliveira, por sua vez, possuindo doutoramento  exto redigido entre novembro de 2006 e janeiro de 2007, o presente artigo contou com a indispensável colaboração da colega Maria T Cecília de Miranda Nogueira Coelho. Consiste dos relatos intercalados dos professores de História Antiga da UFPEL e UDESC, motivo pelo qual se optou, na narrativa, pelo uso da terceira pessoal do singular. 41 Esta pesquisadora defendeu dissertação e tese na área de História cultural, especificamente enfocando a trajetória do compositor popular Lupicínio Rodrigues. 40

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na área de Brasil, dedicou-se aos estudos do Mundo Antigo tão-somente a partir do momento em que assumiu a docência na área. Ainda ocorre em nosso país, sobretudo nas universidades mais afastadas dos maiores centros acadêmicos, que as disciplinas de História Antiga sejam lecionadas por docentes sem formação na área. Em alguns casos, este problema é resolvido na medida em que o docente se propõe estudar com dedicação este campo de pesquisa ao qual não estava familiarizado e/ou vinculado na condição de pesquisador. Este é o caso da experiência da UDESC com relação a esta professora, que tem participado sistematicamente de um bom número de eventos científicos concernentes à História Antiga, integrando-se ao circuito de professores e pesquisadores brasileiros da área em questão. Lastimavelmente, uma parcela significativa de universidades brasileiras tem a disciplina de História Antiga atendida por professores que não possuem formação nem interesse pela área, falhando, portanto, ao desvincularem ensino e pesquisa. Estas peculiaridades dos percursos acadêmicos dos dois docentes que ora apresentam esta reflexão sobre sua prática de ensino precisa ser considerada para que se possa avaliar suas estratégias de valorização da área de História Antiga em suas respectivas universidades. Como ponto de partida para podermos analisar as experiências que relataremos aqui, fazem-se necessários dois outros níveis de contextualização: o perfil do aluno e o perfil de seu interesse pelo estudo de História e, particularmente, de História Antiga. Estes fatores serão apresentados com base nas observações dos autores, processadas ao longo de suas práticas docentes no ensino superior de História. No caso da UFPEL, quando o atual regente da disciplina ingressou no Curso de História, em 1991, constatamos que predominavam alunos com mais de 25 anos de idade (dentre estes, muitos com mais de 30 e poucos com menos de 20). No que se refere às turmas ingressadas no último qüinqüênio, percebemos claramente uma inversão destes números, hoje predominando alunos com menos de 20, muitos ainda adolescentes, sendo reduzido o número de alunos com mais de 30 anos. No que respeita à questão de gênero, observamos igualmente na UFPEL uma inversão: no início dos anos 90 tínhamos algo como duas alunas para um aluno, números que seguramente favoreciam o gênero feminino em no mínimo 60% do total de alunos. Muitas destas alunas eram adultas e professoras da rede de ensino, buscando a Licenciatura Plena como forma de qualificação profissional. As turmas que ingressaram a partir do ano de 2000 apresentaram grandes mudanças neste aspecto. A turma de 2002 apresentou, no primeiro semestre, a surpreendente relação de 3 alunos para 1 aluna. Hoje tende a um equilíbrio no aspecto de gênero, após algumas turmas com visível maioria masculina. Ou seja, a experiência de 15 anos na UFPEL, do início dos anos 90 até o presen42

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te, revela-nos um alunado de História, relativamente à década passada, mais masculino e mais jovem. Paralelamente a isto, outro dado é relevante: de uma situação, nos anos 90, em que a maioria dos alunos eram trabalhadores, muitos deles com família constituída, passou-se, no presente, para um predomínio de jovens estudantes que não trabalham, situação que muitas vezes se altera ao longo dos 5 anos de curso. Esta dedicação exclusiva ao estudo, porém, traz mudanças positivas à qualidade do aprendizado, em virtude do tempo disponível para o envolvimento em projetos de extensão e pesquisa, desenvolvidos como atividades extra-classe. Com relação ao caso da UDESC, observando-se o perfil do acadêmico no Curso de História, de 2003 em diante, observação feita ao longo de aproximadamente quatro anos, situação semelhante pode ser percebida, ao constatar-se um número cada vez maior de jovens estudantes, que ingressam na faixa de 20 anos ou menos, a exemplo do que vem ocorrendo na UFPEL. O Curso tem apenas uma entrada anual, atendendo os discentes através da formação de turnos alternados entre tarde e noite. Percebe-se que as turmas que ingressam no período noturno caracterizam-se por um considerável número de trabalhadores, em atividades variadas ao longo do dia, pouco associadas à prática docente e/ou acadêmica, diretamente vinculadas ao seu sustento. Nestas turmas, observa-se um maior número de alunos que ingressam com faixa etária acima dos 30 anos, chegando a ter de 2 a 3 alunos com idade em torno de 50 anos ou mais. No caso dos alunos que estudam à tarde, modifica-se consideravelmente o perfil, notadamente mais jovem, cuja atividade de trabalho apresenta-se como: a) associada ao apoio que a família propicia quanto ao custeio da formação deste estudante; e, b) encargos de caráter acadêmico envolvendo bolsas de trabalho na própria Universidade, bolsas de pesquisa e extensão ou de monitoria, associadas em maior ou menor medida à formação deste acadêmico. Note-se que boa parte da prestação de serviços feita na UDESC é decorrente do trabalho destes discentes, empregados em funções diversas, como secretarias, serviços técnicos e administrativos. Ainda com relação às turmas da tarde, um considerável número de estudantes vem também cursando simultaneamente uma segunda graduação, além de História, em parte ocupando vagas de outra instituição pública de ensino superior sediada na mesma cidade de Florianópolis/SC, a UFSC, ou ainda estendendo-se à rede privada, especialmente a UNIVALI, UNISUL ou Universidade Estácio de Sá. A escolha do segundo curso envolve graduação em áreas de Comunicação, Direito, Filosofia, Geografia e Letras, entre outros; dificilmente estes alunos optam por Pedagogia ou afins na área de Educação, o que não deixa de ser surpreendente sob alguns aspectos. No que concerne à distribuição por gênero quanto à procura do Curso, não se apresenta uma predominância maior de um em detrimento do outro, havendo um certo equilíbrio quanto ao número de homens e mulheres na freqüência das turmas observadas desde 2003. 43

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No que se refere ao perfil do interesse pela História, cabem também algumas observações. No início dos anos 90, consoante a observação do professor da UFPEL, o conjunto de alunos de História, em Pelotas, se dividia em dois grupos majoritários. De um lado, estudantes adultos, com profissão definida, alguns deles pertencentes à carreira do magistério no ensino fundamental e médio (à época, primário e secundário). Estes procuravam o curso motivados, precipuamente, por três razões: interesse em fazer um curso superior, o que não foi possível anteriormente, por motivos financeiros; curiosidade pela História; ou necessidade de progressão funcional e qualificação profissional na carreira do magistério (perfil predominante no início dos anos 90). De outro, jovens que procuravam o curso de História por motivações políticas, visto como um curso que poderia contribuir com a conscientização social, e, portanto, habilitador de um profissional que poderia produzir a transformação social necessária à “revolução”. Juntamente com o Curso de Ciências Sociais, o curso de História era visto, em Pelotas, como curso formador de lideranças políticas de esquerda. Estas generalizações seguramente não dão conta da diversidade acadêmica, mas sintetizam duas grandes tendências claramente perceptíveis na época. A situação observada, comparativamente aos interesses e motivações que levariam o aluno ao Curso de História, no caso da UDESC, apresenta algumas semelhanças, especialmente no que se refere ao perfil mais maduro de alguns alunos, a exemplo de jornalistas, sindicalistas e militantes voltados a causas sociais e/ou partidos políticos, que ainda percebem esta formação como inerente à opção político-ideológica e associada ao engajamento e ação revolucionária. Um exemplo disso pôde ser percebido no chamado “Movimento do Passe Livre”, de liderança estudantil, que entre os anos de 2003 a 2006 manifestou-se em diferentes momentos na cidade de Florianópolis, tendo uma considerável repercussão no noticiário nacional, especialmente a partir da interrupção do trânsito na ponte que dá acesso à cidade-capital, isolando-a do restante do Estado, além do fechamento do Terminal Rodoviário, que interliga praticamente todas as linhas de ônibus que circulam no espaço da ilha de Santa Catarina. Este movimento, que em 2005 foi duramente reprimido pela autoridade policial e militar, lembrando o contexto da ditadura mais recente, teve como uma de suas principais lideranças um acadêmico do Curso de História da UDESC, além de diversos outros participantes ligados ao mesmo Curso e ao Centro de Ciências da Educação/FAED, que abriga as graduações nas áreas pedagógicas na UDESC, através ainda dos Cursos de Pedagogia, Geografia e Biblioteconomia. Também, lembrando a posição de repúdio ao fechamento político, especialmente nas décadas de 60 a 70, diversas palestras e publicações estão associadas à atuação de um estudante em especial, profissional de jornalismo local, que apresenta narrativas

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associadas a esta mesma temática.42 Chama a atenção que, entre os integrantes da graduação em História, encontrem-se ainda profissionais em exercício da área militar, com convívio positivo com os demais estudantes, Entre o alunado do Curso de História da UFPEL constatam-se, do mesmo modo, estes dois fatos: o destaque de alunos deste curso no movimento estudantil da UFPEL e a presença constante de militares de carreira entre os alunos. Um destes alunos militares optou pelo Egito Antigo como área de interesse, realizando seu trabalho de conclusão de curso sobre a cisão religiosa amarniana. A partir da virada do século, averiguamos, nas novas turmas do Curso de História da UFPEL, uma sensível mudança no perfil do interesse dos alunos pela História. Os dois grupos descritos anteriormente não desaparecem, mas tornam-se minoritários frente ao predomínio de alunos bastante jovens, muitos ainda adolescentes, céticos em relação ao mundo “revolucionário” da verdade única e do pressuposto irrefletido do “esquerdismo inerente” ao estudante de História. Clamam por pluralidade e respeito à diversidade. Entre estes, contamos com alunos fascinados pelo conhecimento da História, movidos pela sincera curiosidade pelo conhecimento sobre outros povos e outras épocas, distanciados das preocupações com a “revolução” e da idéia imperativa da História como responsável pela “consciência política transformadora”. Nem por isso são alunos alienados politicamente e sem compromisso social, apenas relativizaram os ideais do estudante e professor de História como um “intelectual orgânico”, propondose separar conhecimento histórico e militância social. No cerne deste grupo de curiosos, encontramos alguns devoradores de livros com um perfil muito peculiar: sua motivação para o estudo da História advém de seus contatos, desde a infância, com jogos de videogame, RPG, HQ, desenhos, cartoons e séries televisivas. O acréscimo deste novo grupo, sem que os dois anteriores tenham abandonado o nosso curso de História, traz consigo outro dado relevante constatado na realidade de Pelotas: o crescimento da procura pelo curso. No início dos anos 1990, a relação entre candidato e vaga oscilava entre 3 e 4. Desde então, a procura pelo curso apresentou uma curva ascendente. Nas turmas ingressas entre 2001 e 2005, a relação passou para o patamar de 8 a 9 candidatos por vaga. Em 2006 houve pequena redução, em decorrência do aumento no número de vagas para novos alunos, passando de 40 para 50. É importante salientar que o curso de História da UFPEL, quanto à demanda, posiciona-se em segundo lugar entre as licenciaturas de nossa universidade, fato deveras significativo se considerarmos que a mais procurada é Educação Física (que possui uma demanda diferenciada no mercado de trabalho, com atuação nas academias, além do ensino formal) e que no cômputo geral dos cursos as licenciaturas possuem lugar de destaque na UFPEL. 42

Trata-se do jornalista Celso Martins, que atua principalmente no Jornal A Notícia, que além de produzir artigos e ensaios, vem ministrando palestras em algumas ocasiões junto a professores desta Universidade e da UFSC, envolvendo o tema da repressão no contexto da ditadura de 64, tendo recentemente lançado um livro especificamente sobre o assunto, relacionado ao tema do movimento estudantil.

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Novamente, outras semelhanças apresentam-se entre os alunos do Curso de História da UDESC quando comparados aos discentes da UFPEL. As turmas do turno da tarde, comparativamente mais jovens que as do noturno, caracterizam-se por uma grande diversidade de interesses. Em função da sua maior disponibilidade de tempo para o estudo, como já foi colocado, estes alunos se permitem uma maior variedade de experiências com relação às possibilidades que esta formação oferece. Interagem significativamente com outras linguagens, além da narrativa escrita, que propiciem contatos variados com temáticas históricas. Percebe-se claramente a associação de interesses envolvendo representações voltadas a uma leitura mais imaginativa com relação à História, onde se destacam o cinema, algumas formas particulares de literatura, os jogos eletrônicos e muito especialmente o RPG. Aparentemente, a idéia de sentir-se “parte” do jogo criado, entre a ficção e a história, motiva este aluno, criando uma certa noção de pertencimento e inserção no passado, o qual aos poucos começa a (re)conhecer. Esta situação foi potencializada pela reforma curricular que o Curso de História da UDESC vem implementando há aproximadamente 2 anos, através da qual foram introduzidas duas disciplinas chamadas Práticas curriculares, voltadas à utilização de recursos multimídia envolvendo imagem e som. Estas disciplinas procuram estabelecer ainda um primeiro contato destes graduandos com a documentação existente em acervos voltados à guarda institucional de patrimônio, bem como possibilitam as primeiras experiências do alunado com o espaço escolar, enquanto exercício de prática de estágio, através de projetos culturais. Concomitantemente, tais atividades propiciam ao aluno contato com a diversidade de formas pelas quais o conhecimento histórico possa ser percebido, construído e divulgado, pretendendo, por conseguinte, ampliar a noção de atuação profissional dos futuros profissionais. No caso dos alunos com pouca experiência formal de trabalho, estas disciplinas propiciam conhecer aos poucos seu futuro exercício profissional, nos vários âmbitos possíveis em que venha a atuar. A procura pelo Curso de História na UDESC também é expressiva, variando entre 12 a 15 alunos por vaga no vestibular a cada edição, ressaltando-se a gratuidade do mesmo enquanto instituição pública. Este curso habilita, simultaneamente, ao exercício da Licenciatura e Bacharelado. As turmas têm inicialmente 44 ingressos, apresentando um abandono pouco considerado no I semestre, variando a turma subseqüente entre 32 e 36 alunos, pois aqueles que permanecem em sua maioria concluem a graduação. A alta procura, equivalente apenas à UFSC, justifica-se pelo índice de aprovação em pós-graduação por seus formandos, além do reconhecimento à atuação profissional dos alunos na rede de ensino médio e fundamental43. 43

 s graduados no Curso de História da UDESC têm apresentado bons resultados com relação ao ingresso em Cursos de Pós-GraO duação em outras Instituições de Ensino Superior, inclusive com aprovação nos chamados “centros de excelência”. Recentemente, o Centro teve aprovado pela CAPES, no II semestre de 2006, sua proposta de Programa de Mestrado em História da UDESC, que visa

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Este novo perfil de aluno, com pronunciada presença nas turmas que ingressaram a partir do ano de 2000, trouxe consigo novos interesses: com base na experiência de docência da UFPEL, nunca se constatou tanto interesse pela História Antiga, assim como pela Arqueologia, pela Idade Média e por África. Acrescente-se, mais recentemente, o interesse por Ásia e Oriente Médio, sobretudo pelo mundo árabe. No mesmo espectro de alunos, vamos encontrar aqueles interessados por wikings e celtas. São alunos instigantes, que animam o professor e o estimulam a desenvolver projetos paralelos à sala de aula, para suprir estas demandas com freqüência não previstas na grade curricular. O currículo novo de História da UFPEL, vigente a partir de 2004, contempla parcialmente esta demanda: manteve as disciplinas obrigatórias de Pré-história (4 créditos), História da Antigüidade Oriental (4 créditos) e História da Antigüidade Ocidental (4 créditos), acrescentando às possibilidades curriculares do aluno as disciplinas obrigatórias de África, Idade Média II (de modo que a área de medieval aumentou de 6 para 8 créditos no total), bem como as optativas de Arqueologia I, II e III (num total de 12 créditos). Entre os alunos, destacam-se alguns, bastante dedicados, com interesses particulares, como História do Extremo Oriente Antigo (sobretudo China) e História das Religiões (nomeadamente o Paleocristianismo). Estes temas, não previstos na grade curricular, são atendidos pelo curso de duas formas alternativas: com disciplinas optativas ou com cursos de extensão. No ano de 2005, um professor da área de Antropologia, Edgar Barbosa Neto, ofereceu a disciplina de Seminário de Antropologia, abordando o tema da religião. Por solicitação dos alunos, a nova professora do curso, Mônica Selvatici, ministrará no próximo semestre uma optativa sobre Cristianismo antigo. Tendo em vista a mencionada reforma curricular no Curso de História da UDESC, disciplinas como Pré-história, História Antiga e História Medieval perderam um considerável número de créditos, reduzindo sua carga horária a praticamente a metade. No caso de História Antiga, o currículo atual prevê apenas uma disciplina de 4 créditos semanais (o equivalente a 60 h/a), não prevendo a separação entre Antiga Oriental e Antiga Ocidental. Diante desta situação e destacando-se que esta disciplina apresenta e encerra em seu programa o conteúdo programático destinado à área, salvo a possibilidade de oferecimento de disciplina optativa, a solução, encontrada pela regente da disciplina de História Antiga da UDESC para desenvolver a matéria, foi o recurso à abordagem diacrônica, com exposição dos fatos mais relevantes em seqüência cronológica encadeada, escolhendo fatos indicadores da sua expressão e originalidade no espaço e no tempo. Esta opção justifica-se pela tentativa de instrumentalizar minimamente a busca dos alunos na pesquisa que venham a desenvolver sobre temas pertinentes ao Mundo Antigo, criando condições para que possam manusear um panorama espaço-

justamente a absorver esta demanda crescente.

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temporal mais amplo para situar estudos temáticos específicos. Esta estratégia vem sendo utilizada especialmente em decorrência da carência de conhecimentos demonstrada por estes alunos, procurando até certo ponto compensar o que deixou de ser trabalhado no ensino médio e fundamental, buscando capacitá-los para a continuidade do aprendizado acadêmico. Abordando-se conceitos como Antiguidade Oriental e Antiguidade Ocidental, junto à extensa periodização característica da Antigüidade, procura-se identificar a gênese e formação de determinadas culturas, escolhidas exemplarmente, introduzindo questões analíticas que reflitam em parte o debate mais atualizado na área de História Antiga. Além disso, optou-se por apresentar algumas das temáticas que vêm sendo objeto de estudo dos pesquisadores de área, fruto de levantamento bibliográfico, pesquisa em periódicos e revistas especializadas. Boa parte do material bibliográfico e ilustrativo que vem sendo utilizado resulta da pesquisa feita em sites institucionais e informativos existentes nos laboratórios e núcleos voltados à divulgação da produção historiográfica em História Antiga no Brasil. Diante do interesse bastante variado demonstrado pelos alunos e procurando não coibir sua curiosidade a respeito, procura-se estimular a realização de um trabalho de avaliação para conclusão da disciplina de História Antiga da UDESC, trabalho que se reveste de um caráter introdutório no que se refere à revisão bibliográfica e textual acerca de temática escolhida individualmente, a partir do qual se incentiva a que seja observado o trabalho de interpretação e, especialmente, sua elaboração a partir do cuidado com as fontes primárias utilizadas. A experiência da UDESC ressalta a importância dos portais, sites, laboratórios de pesquisa informatizados, periódicos eletrônicos, entre outras referências, que possibilitam, através da Internet, manter-se atualizado o professor; ao mesmo tempo, constituem importantes ferramentas de uso pedagógico, no sentido de direcionar o interesse dos alunos para a informação e pesquisa nesta área. Esta regularidade de informações em fluxo contínuo permite demonstrar como a pesquisa na área de História Antiga vem crescendo, sem prejuízo se comparada a qualquer outro campo de estudo histórico. Desfaz-se, desta forma, a concepção do senso comum de que a História Antiga já foi escrita e que o passado narrado não se modifica. A partir de tais recursos informatizados, compensa-se um pouco a carência em bibliografia e a dificuldade de contato com profissionais mais especializados e reconhecidos na pesquisa em História Antiga. A professora M. R. de Oliveira aponta, como um exemplo entre tantos, a utilização de sites como a página da SBEC44, enquanto referência e orientação a tantos outros, ou ainda aqueles que identificam os GTs de História Antiga, associados a ANPUH em caráter regional e/ou nacional, os quais fornecem informações atualizadas sobre eventos, lançamentos de livros e sites internacionais sobre assuntos variados45. 44 45

Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, criada em 1985. Site: www.clássica.org.br. Aponto enquanto referência à multiplicidade de fontes e acessos à pesquisa e utilização didática destes recursos o artigo de Pedro

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Outro recurso, importantíssimo, no sentido de sensibilizar os alunos para o conhecimento da área, vem justamente da aproximação e contato dos estudantes com pesquisadores especializados, através de iniciativas suplementares ao programa e conteúdo regular ensinado na sala de aula. Tratam-se de projetos de extensão e ensino que, com apoio institucional, promovem, neste área, conferências, mini-cursos, pequenos eventos, saídas para eventos de reconhecimento nacional e/ou internacional. Destaca-se também, neste aspecto, que boa parte da atualização bibliográfica, em suporte material, é oportunizada durante estes eventos, quando o contato com os autores e obras mencionadas na área de História Antiga costumam estar disponíveis para aquisição. Nestes espaços de atuação também se torna possível manusear e comprar exemplares que dificilmente poderiam ser comprados nas livrarias locais de Florianópolis ou Pelotas. Ao relatar as atividades extracurriculares desenvolvidas ao longo do período em que a Profa. M. R. de Oliveira vem se dedicando ao exercício da docência nas aulas de História Antiga no Curso de História da UDESC, procura-se destacar a importância de iniciativas realizadas em parceria com colegas da Instituição e outras Universidades. Neste sentido, salienta-se a valiosa colaboração recebida dos profissionais dedicados a este campo de atuação, que prontamente têm vindo à cidade de Florianópolis ministrar palestras, atendendo quase que invariavelmente aos convites feitos. Destaca-se, meritoriamente falando, o incansável trabalho desenvolvido pela Profa. Dra. Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, atuando à frente da Secretaria Regional Sul / SBEC, no sentido de promover, divulgar e dinamizar de múltiplas e diferentes maneiras o aprofundamento e reconhecimento da área de História Antiga, especialmente na região Sul do país.46 Várias das atividades aqui descritas aconteceram por sua direta concepção, coordenação e/ou atuação. Estas iniciativas ocorreram a partir do apoio de diferentes instituições além da UDESC, destacando especialmente a Associação Helênica de Florianópolis e a Fundação Onassis.

Atividades extracurriculares nos cursos de História da UFPEL e UDESC: projetos de ensino, pesquisa e extensão.

UFPEL: No ano de 2001, o professor responsável pelas disciplinas de História Antiga da UFPEL, Prof. Dr. F. V. Cerqueira, assumiu a presidência da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC), o que resultou na escolha da cidade de Pelotas para sede do

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Paulo Funari, no que se refere a possibilidades abertas neste sentido. FUNARI, Pedro P. A renovação da História Antiga. In: KARNAL, Leandro (Org.) História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003, p. 95-107. A Profa. Dra. Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho atualmente encontra-se vinculada institucionalmente ao COGEAE/PUCSP, porém entre 2003 e 2005 atuava enquanto docente na FAED/UDESC, do que resultaram várias das aproximações descritas nos projetos e atividades extracurriculares junto a Profa. M. R. de Oliveira. Em função também desta proximidade em 2003 e 2004, foram desenvolvidas atividades em parceria na Secretaria Regional Sul/SBEC, sediada em Santa Catarina.

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V Congresso da SBEC, o qual foi realizado em 2003, tendo como tema Fronteiras e Etnicidade no Mundo Antigo. Os relatos de projetos extra-classe apresentados neste artigo apresentam vivências de aprendizado de turmas do curso de História que ingressaram a partir do ano de 2003, uma vez que se constatou o quanto a realização deste congresso na UFPEL estimulou alunos desta universidade a se dedicarem aos estudos do Mundo Antigo, tendo sido esta influência absorvida com o passar do tempo, repercutindo inclusive sobre alunos que entraram no curso após a realização do mesmo. A experiência de promoção do congresso da SBEC, assim como das Jornadas de História Antiga da UFPEL47, mostrou-nos o quanto esta natureza de evento colabora para revelar ou estimular vocações, aguçando o interesse pela disciplina. Do mesmo modo, o Instituto de Ciências Humanas da UFPEL tem viabilizado a participação de estudantes do Curso de História nas Jornadas de Estudos do Oriente Antigo, realizadas anualmente na PUC/RS, em Porto Alegre, sob coordenação da egiptóloga Dra. Margaret Marchiori Bakos, com participação de destacados estudiosos nacionais e internacionais, nomeadamente do campo da Egiptologia. Estas atividades de extensão, em alguns casos, têm alcançado maior sucesso do que a rotina de aula na promoção dos Estudos Clássicos entre o nosso alunado. Para fundamentar esta assertiva, podemos iniciar relatando a constituição do Grupo de Estudos de Textos Gregos Antigos, que mais tarde passou a ser conhecido como Grupo do Teatro, cuja criação foi sugerida pelos alunos, hoje formandos, que ingressaram em 2003 e, na época, cursavam o segundo semestre do curso. O início deste grupo pode parecer bastante bizarro. Ainda durante o V Congresso da SBEC, realizado em setembro daquele ano, os alunos procuraram o professor da disciplina de História Antiga, propondo-lhe a criação de um grupo de estudos. O motivo foi sua empolgação e orgulho com a performance de dois colegas seus, durante uma atividade lúdico-cultural, realizada no intervalo entre duas palestras. Dois alunos, estimulados pelo professor e seus colegas, encorajaram-se em apresentar uma brincadeira teatral que estes realizaram como trabalho na disciplina de História da Antigüidade Oriental: responsáveis pela apresentação do trabalho sobre Gilgamesh, decidiram apresentá-lo como uma performance teatral, um deles assumindo o papel do herói civilizador, outro de seu companheiro Ekidu. Pareceu-me tão criativo e adequado como uma forma de aproximar a história desta epopéia suméria, que lhes sugeri apresentassem esta experiência durante o congresso 47

Pequenos encontros dedicados ao tema, denominados Jornadas de História Antiga da UFPEL, organizados desde 1992, em um total de 7 edições, nos quais são convidados para palestrar professores da UFPEL e pesquisadores de projeção nacional, podendo-se enumerar Emanuel Bouzon, Neyde Theml, Norberto Luiz Guarinello, Margaret Marchiori Bakos e Kátia Maria Paim Pozzer. Entre os profesores da UFPEL que colaboraram com o evento, contamos com pesquisadores de diferentes áreas, salientando o caráter interdisciplinar inerente à História Antiga. Entre eles, destacamos: Prof. Dr. João Hobuss e Prof. Dr. Antonio Henrique Etchevarria Nogueira, filósofos; Profa. Dra. Paula Branco de Araújo Brauner, latinista; e Profa. Maria das Graças Brito, professora de Direito Romano; além do colega Jussemar Weiss Gonçalves, vinculado ao Departamento de História e Biblioteconomia da Fundação Universidade de Rio Grande (FURG), universidade federal vizinha a Pelotas, distante a menos de 60 quilômetros.

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da SBEC. Após relutarem, concordaram, e fizeram uma apresentação que muito agradou o público em geral, mas, sobretudo, agradou seus colegas e demais estudantes do Curso de História da UFPEL, atingindo assim seu objetivo principal. Empolgados com esta brincadeira didático-pedagógica, surgiu a proposta, bastante séria, de criação um grupo voltado ao estudo e teatralização de alguns textos antigos, o que propiciaria um contato direto com as fontes primárias. A particularidade deste grupo era seu objetivo: aprender com os textos clássicos, mas, também, mais do que isso, teatralizar trechos representativos destas obras da literatura grega antiga. Estas apresentações teatrais deveriam ser feitas em escolas da rede municipal de ensino. Desde o começo percebi o quão ambicioso era o projeto e o quão difícil seria executá-lo na plenitude dos objetivos que se propunha. Mas mantive comigo silêncio quanto a estas dúvidas, pois não cabia tosar as asas da imaginação destes sonhos, nobres pela natureza de sua proposta e preocupação: compartilhar, com o mundo escolar, os aprendizados que recebiam sobre o Mundo Antigo. Sabia que, com estas leituras, em nível diferenciado, alguns adquiririam uma familiaridade introdutória com certos textos, o que, por si só, já significaria o cumprimento de seu propósito pedagógico inicial. Ademais, acreditava que, com a experiência de teatralização, desenvolveriam experiência importante de divulgação da cultura clássica, além do que se aperfeiçoariam como estudantes, futuros professores e, sobretudo, como pessoas. Os alunos, sob minha supervisão, deram formato ao projeto, incluindo vários autores antigos. As atividades do grupo se estenderam por mais de um ano, porém, nunca saíram de Homero. Exitosa alteração de planos! Somente o avanço dos estudos fez-lhes descobrir o nível de profundidade que a leitura de cada um dos autores antigos demandava. Após leituras e discussões sobre a obra de Homero, sobretudo a Ilíada, definiram que gostariam de realizar uma teatralização do episódio da Morte de Heitor48. Procuramos, então, para este fim, a colaboração do professor Augusto Amaral, para capacitá-los em técnicas de representação teatral.49 O que se imaginava ser um trabalho simples, apenas fornecendo dicas de performance de palco, tornou-se um aprofundado estudo do corpo, expressividade e técnicas vocais – rumo de aprofundamento que o professor responsável, como coordenador, não pudera supor no início da atividade.

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Observe-se que esta escolha antecedeu a divulgação do filme Tróia, o qual soube trabalhar com muita expressividade o tom dramático deste episódio. O professor Augusto Luis Medeiros Amaral é diretor de teatro, com graduação em Sociologia (ISP/UFPEL), sendo atualmente Coordenador Geral do Ponto de Cultura Chibarro (ESEF/UFPEL). Está finalizando o curso Especialização em Memória, Identidade e Cultura Material (ICH/UFPEL) e está iniciando o Mestrando em Educação Física (ESEF/UFPEL). É professor de Sociologia e Filosofia nos cursos de Administração de Empresas e Educação Física das Faculdades Atlântico Sul - Pelotas/RS. Sua participação no projeto teve o apoio institucional do programa Circulos Culturais de Saúde, Lazer e Educação, (ESEF/UFPEL).

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Fábio Vergara Cerqueira / Márcia Ramos de Oliveira

Alunos de História da UPFEL ensaiam o episódio A Morte de Heitor. Fotografia: Antonia Pardo Chagas (2004).

Aos poucos, no primeiro semestre de 2004, alunos do terceiro semestre do curso metamorfoseavam-se em Heitor, Helena, Príamo, Andrômaca, Aquiles e outros personagens. Foi um trabalho bastante intenso, ao longo do qual os colegas e o responsável pelos ensaios teatrais tiveram vários entendimentos e desentendimentos, coisas inevitáveis e previsíveis em uma atividade extra-classe vivida de forma intensa, sob coordenação efetiva dos próprios alunos. Dois dos alunos da turma assumiram uma efetiva coordenação desta atividade: Luis Leonardo Langlois Spallone e Marco Antonio Collares, este último tendo seguido com sucesso na área. Ao longo dos vários meses do grupo, alunos de diferentes turmas entraram e saíram do projeto, mas a realização deste, com suas reuniões regulares, marcou o cotidiano do conjunto do alunado de História, mesmo daqueles que não se interessavam pela Antigüidade, uma vez que boa parte destes alunos vieram a integrar, por duas gestões (2004 e 2005), o Diretório Acadêmico de História (CAHIS). Em julho de 2004, durante o VII Encontro Estadual de História, promovido pela ANPUH e pelo Instituto de Ciências Humanas da UFPEL, ocorreu, no palco do Theatro Sete de Abril50, a primeira e única apresentação pública do projeto. A performance 50

Um dos mais antigos teatros em funcionamento ininterrupto do Brasil, abriu suas portas em 1833, na cidade de Pelotas.

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contou com o teatro lotado, com a presença de estudantes e professores de História de todo o estado do Rio Grande do Sul. Foi um grande sucesso, chamando a atenção de outras universidades regionais para a importância da técnica de teatralização como forma de aprendizado e estudo de conteúdos históricos, como foi o caso dos Cursos de História da UNICRUZ (Universidade de Cruz Alta) e UDESC. No caso da UDESC, no Centro de Ciências da Educação / FAED, projeto similar vinha sendo implementado desde março do mesmo ano, potencializando o aprendizado de História através de práticas relacionadas à linguagem teatral.51 Diferentemente da meta inicial estabelecida pelos alunos, a performance, por melhor que tenha sido, não foi às escolas, o que poderia ter trazido excelentes resultados. Mas, do ponto de vista da formação do estudante, cumpriu em larga escala o seu papel: não somente aperfeiçoou instrumentos para a prática docente, mas, sobretudo, estimulou vocações. Dos 25 alunos da turma que colaria grau em 200652, ingressos em 2003, quando da realização do Congresso da SBEC, 6 deles decidiram realizar seus trabalhos de conclusão de curso com temas pertencentes à História Antiga. Destes 6, todos, em diferentes momentos, participaram do grupo de estudos. Estão em fase de conclusão de curso os acadêmicos Marco Antonio Correa Collares, com sua pesquisa de conclusão de curso sobre a Ideologia no Principado Romano, Caterine Henriques Mendes, com seu trabalho sobre o contexto formativo do Cristianismo na Judéia sob domínio romano, e Sérgio Ricardo Fracalanza Muzzi, que dediciu estudar a religião egípcia do período de Amarna. Kátia Amorim Macedo, Giovani Rodrigues de Moura e Maria de Fátima Bettanzos da Silva, trabalhando respectivamente sobre mitologia grega, judaísmo antigo e paleocristianismo, colarão grau na metade de 2007. Um destes, ainda no mês de dezembro de 2006, antes mesmo de sua colação de grau, foi aprovado em processo de seleção de mestrado, com projeto de pesquisa relativo ao Principado romano: trata-se de Marco Antonio Collares, aprovado em seleção no Mestrado de História da UNESP – Franca, a ser orientado pela Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. Outra aluna prepara-se para realizar seu mestrado, dedicando-se aos estudos do Cristianismo antigo. No ano de 2005, por ocasião da VI Jornada de História Antiga da UFPEL, realizada no mês de novembro, paralelamente à reunião administrativa do GT Regional de História Antiga da ANPUH, foi dada atenção especial ao Extremo Oriente Antigo. Ao identificarmos o interesse, entre alguns alunos, pelo Extremo Oriente, sobretudo pela China, convidamos o Prof. André Bueno, pesquisador atuante na SBEC, que se destaca, no Brasil, no campo da sinologia antiga. Assim, além de suas palestras, uma sobre Trata-se do Projeto de Extensão “A História no Teatro: Uma Proposta de Arte-Educação”, coordenado pela Profa. Dra. M. R. Oliveira, voltado às temáticas históricas relacionadas a História Antiga e Medieval, como consta deste mesmo artigo, em páginas posteriores. 52 A formatura efetivamente ocorrerá em abril de 2007, em virtude da alteração do calendário acadêmico em decorrência da greve docente de 2005. 51

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China, outra sobre Índia, o professor consentiu em ministrar um mini-curso, abordando aspectos variados sobre a China antiga. A participação deste professor na VI Jornada deu início a uma intensa cooperação com nosso curso, respondendo ao interesse genuíno de alguns alunos. Assim, no mês de março de 2006, compareceu novamente a Pelotas, para palestrar e realizar curso durante a Semana Acadêmica, uma vez que, com base em votação feita pelo Diretório Acadêmico de História da UFPEL (CAHIS), Extremo Oriente, Religião e África foram os temas de maior interesse. Como resultado, os alunos, estimulados, procuraram o professor de História Antiga da UFPEL, Prof. Dr. F. V. Cerqueira, para organizarem um Grupo de Estudos sobre o Extremo Oriente Antigo, inspirados na experiência anterior do Grupo do Teatro. Com o auxílio do Prof. Dr. André Bueno, os alunos montaram o plano de atividades, escolheram os textos e organizaram o grupo, que tem se reunido desde o segundo semestre de 2005. Ao longo destes meses, o grupo foi parcialmente se esvaziando, ficando porém os mais interessados: Daniel Añaña e Rodrigo Cardoso, os quais provavelmente direcionarão seus trabalhos de conclusão de curso para a temática. Este esvaziamento, mesmo que possa ter causado alguma frustração entre os alunos responsáveis pela organização do grupo, não significou um fracasso do mesmo. Pelo contrário, o reforço do interesse destes dois acadêmicos, bem como o aprofundamento intelectual que experimentaram ao longo dos meses de funcionamento do grupo de estudos, testemunham a favor da promoção deste tipo de atividade acadêmica para a divulgação e estudo do Mundo Antigo nos cursos de História. No momento, para dar suporte ao interesse destes acadêmicos pela China Antiga, com a cooperação científica do Prof. Dr. André Bueno, estamos estruturando um projeto de pesquisa, com duração prevista de dois anos, voltado a uma revisão bibliográfica sobre os estudos históricos concernentes à China Antiga e Medieval. Na mesma linha de atendimento de interesse de alunos por meio de atividades de extensão, foi realizado, em maio de 2005, o curso “Jesus Histórico”, ministrado pelo historiador Dr. André Leonardo Chevitarese (UFRJ) e pelo filósofo e historiador da religião Dr. Gabriele Cornelli (UNB), apresentando em Pelotas uma versão resumida, em 20 horas, do curso que foi apresentado em outras universidades brasileiras. O evento obteve grande impacto na cidade, com interesse da imprensa em divulgá-lo. Entre o público, destacou-se, além de estudantes e professores universitários, alguns interessados pela história da religião, desde aqueles movidos por interesse intelectual ou espiritualmente genuíno, até aqueles motivados pela onda de popularidade do tema gerada pelo bestseller Código Da Vinci. A realização deste curso provocou, entre alguns alunos, o interesse em aprofundar-se no assunto. Para tanto, procuraram o professor F. V. Cerqueira, com o escopo de organizarem um grupo de estudos, contando com a colaboração científica dos minis54

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trantes do curso, os professores A. L. Chevitarese e G. Cornelli. Foram realizadas várias reuniões, com a participação de 5 acadêmicos de História e 1 acadêmica de Filosofia, em que estes discutiam e comentavam a leitura de textos escolhidos a partir de uma lista de livros indicados por Chevitarese e Cornelli. Tomou-se o cuidado de que esta bibliografia fosse de caráter histórico, evitando-se os textos de fundo teológico. Apesar de predominarem nesta lista autores anglo-saxões, houve a preocupação de introduzir textos de historiadores brasileiros. Como resultado concreto deste grupo de estudos, uma aluna está realizando seu trabalho de conclusão de curso sobre o contexto do Jesus histórico, planejando fazer seu mestrado na área. O interesse pelo tema do Cristianismo antigo mantém-se vivo entre o alunado de História, estando previsto um avanço desta área em nosso curso. Com a contratação da Profa. Dra. Mônica Selvatici, pesquisadora especializada no tema, abrem-se perspectivas especiais para realização de atividades vinculadas ao assunto. No primeiro semestre de 2007, será oferecida uma disciplina optativa sobre o Cristianismo antigo, com 4 créditos semanais. Ansiosos por estudar o tema, alguns alunos do quarto semestre procuraram a professora, propondo-lhe a organização de um grupo de estudos sob sua coordenação, pedido ao qual esta atendeu com entusiasmo. Este grupo deverá iniciar suas atividades em janeiro de 2007, após o recesso de início de ano, quando serão recuperadas as aulas do segundo semestre de 2006, atrasado em virtude de greve docente. Observa-se como a “cultura” do grupo de estudos está disseminada entre o alunado do curso de História da UFPEL, sobretudo por propiciar o maior aprofundamento e atualização em assuntos que não puderam ser devidamente estudados nas disciplinas curriculares. Além disso, percebe-se a importância do departamento contar com mais de um professor na área de Antiga, possibilitando o melhor atendimento das demandas dos alunos, como estamos constatando nos rápidos resultados do recente ingresso da Profa. Mônica Selvatici. Seguindo a mesma linha de trabalho, no segundo semestre letivo de 2006, ao ser ministrada a disciplina de História da Antigüidade Ocidental, com a percepção do grande interesse dos alunos pela matéria, foi proposta a realização de um grupo de estudos, escolhendo como temática central a mitologia grega. O grupo reúne-se sob a orientação da monitora da disciplina, a acadêmica Kátia Amorim Macedo. O número inicial do grupo atinge mais de 10 alunos, número que deve declinar com o aprofundamento dos estudos e cobranças de maior empenho e leitura – esta tendência repete-se em todos os grupos de estudo. De modo geral, a dinâmica dos grupos de estudo apresenta, na UFPEL, alguns problemas: após um grande interesse inicial, que costuma motivar a reunião de um grupo de mais de 10 ou quiçá 15 alunos, a rotina de leituras e a simetria de responsabilidade, diferentemente da hierarquia da sala de aula, geram um afastamento de um 55

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razoável número de alunos. Este número decresce ainda mais nos períodos de provas e trabalhos, quando a maioria dos estudantes prioriza seu rendimento e avaliação nas atividades formais, curriculares. No entendimento do professor responsável pela motivação destes grupos, emerge a sugestão de que se aprenda a lidar com naturalidade com estes impasses, uma vez que os mesmos não invalidam a experiência, nem tampouco selam seu fracasso. Invariavelmente, os grupos de estudo rendem frutos: do Grupo de Estudos de Textos Gregos Antigos (o “Grupo do Teatro”), destacamos a qualidade do trabalho do acadêmico Marco Antonio Collares, já aprovado em seleção de mestrado de História com projeto sobre a ideologia no Principado Romano; do Grupo de Estudos sobre o Cristianismo Antigo, devemos ressaltar os progressos da acadêmica Caterine Henriques Mendes, que ora finaliza seu trabalho de conclusão de curso referente ao tema do Jesus histórico; do Grupo de Estudos sobre o Extremo Oriente Antigo, projetam-se os acadêmicos Daniel Añaña e Rodrigo Cardoso, apaixonados pelas sociedades da China e Japão antigos, os quais, ao longo dos próximos dois anos de curso, direcionarão suas leituras para estas temáticas, participando do projeto de pesquisa voltado a uma revisão bibliográfica sobre o assunto.

UDESC: De forma semelhante à UFPEL, a prática do ensino de História Antiga na UDESC complementa-se com a realização de grupos de estudo (projeto de ensino) e cursos (projeto de extensão). Em 2003, foi formado o Grupo de Estudo Gregos e Baianos. Tratase de um projeto de ensino que tematiza a influência da tradição clássica na cultura brasileira, desenvolvido sob a coordenação da Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho, na época professora da FAED/UDESC. Este projeto teve continuidade nos dois anos subseqüentes. Em 2004, foram abordados aspectos do trágico na obra de Elomar Figueira de Mello e, em 2005, aspectos da mitologia grega na obra de Monteiro Lobato, estabelecendo diferentes paralelos entre a cultura greco-romana e a cultura brasileira. Em 2003, a professora M. C. M. N. Coelho deu início ao projeto “Cinema, literatura e filosofia: um olhar sobre a Grécia antiga”. Visava apoiar o ensino de graduação, promovendo a divulgação dos estudos e interfaces da Literatura Clássica e Cinema. Baseava-se na análise de filmes, textos clássicos e comentadores. Tinha como meta oferecer três cursos extracurriculares (dirigidos ao público universitário), com temáticas específicas. O primeiro curso tinha o seguinte título: “Os mitos de Orfeu e de Medeia”. Com duração de 30 horas, contou com a colaboração dos conferencistas Dr. Fábio Cerqueira Vergara (UFPEL) e Dra. Filomena Hirata (USP). O segundo curso denominou-se “Tragédias e comédias gregas na tela”, totalizando 40 horas, tendo como conferencistas os professores Dr. Christian Werner (USP), Dra. Adriane Duarte (USP) e Dra. Paulina 56

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Nólibos (ULBRA). O terceiro, realizado no primeiro semestre de 2004, abordou o tema “Helena: questões de gênero”. Totalizando 40 horas, teve como conferencistas os professores Dra. M. R. de Oliveira (UDESC), Dra. A. D. G. Ferreira (PUCSP), Dr. Cristian Werner (USP) e Dr. M. P Marques (UFMG). Ainda no ano de 2003, realizou-se ainda o projeto de extensão Leitura dramática em grego: fragmentos de Heródoto e Tucídides, com participação de alunos do curso de Língua Grega, também ministrado pela professora M. C. M. N. Coelho, que resultou em uma apresentação realizada em outubro durante a Semana de História da UDESC. No ano de 2004, seguindo a mesma linha de atuação, deu-se seqüência a alguns projetos e outros foram criados. Na linha dos eventos acadêmicos, a UDESC, na atuação conjunta das professoras M. C. de M. N. Coelho e M. R. de Oliveira, promoveu encontros que se destacaram pela sua originalidade temática e qualidade. Em verdade, a linha temática dos eventos promovidos pela UDESC, na área de História Antiga, já havia tomado uma linha culturalista, calcada nas interfaces entre Literatura Clássica, Cinema, Filosofia e Teatro, desde o ingresso da professora M. C. de M. N. Coelho, linha que foi reforçada com o ingresso da professora M. R. de Oliveira, em virtude de sua especialização no campo da interdisciplinaridade entre História e Música. Assim, em 2004, ocorreu o I Simpósio “Lendo, Vendo e Ouvindo o Passado”, tendo como propósito aproximar e interagir diferentes linguagens associadas ao desenvolvimento de temáticas da História Antiga e Medieval. O Simpósio foi realizado ao longo do primeiro semestre de 2004, contando com a colaboração dos conferencistas Prof. Dr. João Lupi (UFSC), Prof. Dr. Anderson Vargas (UFRGS), Prof. Dr. José Rivair Macedo (UFRGS) e Profa. Ms. Vânia Müller (CEART/UDESC). Em 2006, foi realizada uma segunda edição deste evento, que tomou lugar no auditório do Museu Histórico de Santa Catarina (Palácio Cruz e Souza) e no auditório da FAED/UDESC, no mês de novembro, sob a coordenação dos professores Dra. M. R. Oliveira (DH/FAED/UDESC), Dra. Gláucia de Oliveira Assis (DEB/FAED/UDESC) e do acadêmico Alan Carlos Ghedini (Curso de História / UDESC), contando ainda com a colaboração dos conferencistas de várias universidades.53 Nos anos de 2004 e 2005, foi desenvolvido o projeto de extensão A História no Teatro: Uma Proposta de Arte-Educação, coordenado pela Profa. Dra. M. R. de Oliveira. 53

 rof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira (UFPEL), Palavra mélica: música e magia na Grécia antiga; Prof. Dr. Acácio Piedade (CEART/ P UDESC), Anotações distanciadas sobre a Música do Século XX ; Prof. Dr. Rafael de Menezes Bastos (UFSC), Conflito, Lamentação e Irrisão na Música Popular Brasileira: Um Estudo sobre a Saudosa Maloca de Adoniran Barbosa – O que é Arranjo? Será ele uma Composição?; Minicurso ministrado pelas Professoras Dra.Maria Cecília de M. N. Coelho (COGEAE/PUCSP) e Dra. Fátima Sebastiana Lisboa (UFSC), Elementos trágicos e tradição do cancioneiro nas obras de Glauber Rocha e Elomar; e, comunicações do Prof. Ms. Fernando Boppré (Fundação Hassis), Sobre o cinema de Hassis; e, de Luis Fernando Telles D´Ajello, Mensageiros em Heródoto.

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Teve por objetivo aprofundar e difundir o conhecimento acerca do Teatro e da História, destacando a conexão com a Literatura e a Filosofia ao longo dos períodos destacados. Com duração de três semestres (entre 2004 e 2005), foi fruto de uma colaboração e apoio de professores da FAED (M. C. de M. N. Coelho e Bárbara Giese) e do CEART (Brígida Miranda e Beatriz Cabral), além de acadêmicos dos Cursos de História, Geografia, Pedagogia (FAED), Artes Cênicas (CEART) e Psicologia (UFSC). Resultou na montagem de uma peça denominada “Recortes Medievais”, apresentada duas vezes no Teatro da UBRO, em Florianópolis, em novembro e dezembro de 2004.54 O projeto foi beneficiado pelo apoio de dois bolsistas de extensão, os acadêmicos Ricardo Sontag e Edgar Rego, que atuaram na proposta em momentos alternados. Outro evento que caracteriza bem o quanto os estudos da Antigüidade, em seus espaços extracurriculares, vinculam-se, na UDESC, à reflexão sobre as formas de linguagem, é o projeto Vídeo e Educação, coordenado pela Profa. M. C. de M. N. Coelho, destinado a apoio e ensino de graduação, que teve como objetivo o estudo do uso do vídeo e do cinema na atividade pedagógica, bem como o estatuto da imagem nos processos de conhecimento. No âmbito deste projeto mais amplo, foram promovidos três eventos, um deles já mencionado: I Encontro UIDEO (com exibição e lançamento de curtas-metragens de cineastas do Estado de Santa Catarina, assim como conferências e comunicações de professores da UDESC, UFSC e UERJ); II Colóquio Filosofia e Ficção, com a participação de 28 pesquisadores de várias universidades brasileiras. Vários temas relativos à História Antiga foram abordados nestes eventos, de forma que poderíamos denominá-los trans-disciplinares(?), contando com a participação de pesquisadores nacionais renomados, pertencentes a diferentes disciplinas que compõem os chamados Estudos Clássicos. Exemplo disso são as palestras proferidas em 2004 pelo Prof. Dr. André Leonardo Chevitarese (UFRJ), entre os dias 31 de março e 1o. de abril. No mês de outubro do mesmo ano, a UDESC promoveu o curso “Jesus Histórico”, ministrado pelo Prof. Dr. A. L. Chevitarese (UFRJ), no auditório da FAED/UDESC, com duração de 10h. O curso foi antecedido pela mostra de filmes organizada pela Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho, que reuniu vários títulos relativos ao contexto histórico e arqueológico concernentes à vida de Jesus.55 No ano de 2005, foi desenvolvido o projeto “Filocinema - Platonismo na tela: alegoria, símbolo e metáfora”, sob a coordenação dos professores Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho (UDESC) e Dr. Luis F. B Ribeiro (FIL/UFSC), que tinha como objetivo analisar a alegoria / imaTeatro da União Beneficiente Recreativa Operária, instituição localizada no centro da cidade, próximo a FAED/UDESC, que teve início a partir de associações sindicais como o nome evidencia, destinado ao desenvolvimento da cultura dos trabalhadores em Florianópolis, especialmente nas décadas de 1940 e 50. Atualmente o espaço vem sendo administrado pela Fundação Franklin Cascaes. 55 O Destino ( 1997 , Y. Chahine , 135 min.), Je Vous Salue, Marie ( 1984, J. Luc Godard , 107 min.); Ben Hur (1926, Fred Niblo, 117 min.), Jesus Cristo Superstar (1973, N. Jewison, 108 min.), Jesus de Montreal (1989, D. Arcand, 119 min), Kadosh ( 1999, Amos Gitai, 110 min.), O Evangelho segundo Mateus ( 1964, Pasolini, 137 min), Ben Hur (1926, Fred Niblo, 151 min), A Vida de Brian (1979, T. Jones, 94 min), Viridiana (1961, L. Buñel, 90 min.). 54

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gem da caverna, apresentada por Platão no diálogo A República, buscando estudar a sua permanência na cultura ocidental, em particular no cinema, com ênfase na discussão dos conceitos de metáfora, símbolo e alegoria. Concretizou-se através de um curso, composto por seminários, com participação de conferencistas convidados, tais como o Prof. Dr. Jaa Torrano (USP) e a Profa. Dra. Bárbara Cassin (Sorbonne/França), que ministrou, nas dependências da UFSC, a palestra Hélène: mémoire d´um nom. A vinda desta filósofa francesa, que se destaca no cenário intelectual europeu atual como grande tradutora da Antigüidade para a Contemporaneidade, foi viabilizada por financiamento da Associação Helênica de Florianópolis. Compareceram ainda o Prof. Dr. Jacyntho Lins Brandão (UFMG), Presidente da SBEC (2004-2005), cuja palestra teve o seguinte título: Da Górgona a sereia: literatura e artes visuais na Antiguidade, viabilizada por financiamento da Associação Alexander Onassis (Grécia). Da vizinha Argentina, veio a Profa. Dra. Viviana Gastaldi, (U. del Sur), que apresentou o Seminário de Direito Penal Grego. Em 2006, os alunos tiveram outras oportunidades para completar seus aprendizados da disciplina de História Antiga, por meio do contato com outras linguagens, sobretudo na interface com o teatro. Em junho, foi realizada a leitura dramática da peça Sófocles e Brecht – Diálogo, de W. Jens, sob direção da Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda (CEART/UDESC). Novamente, foi oferecida aos alunos uma perspectiva de diálogo entre o Antigo e o Moderno. Esta foi, inclusive, a perspectiva adotada em 3 das 4 atividades promovidas pela Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos em Santa Catarina, nomeadamente com o estímulo da Secretaria Regional Sul, sediada em Florianópolis, durante a 58a. Reunião Anual da SBPC, realizada na UFSC, em Florianópolis/SC, entre 16 a 21 de julho de 2006. A primeira foi o simpósio Os Antigos e Nós Modernos: Representações de Figuras Religiosas na Antigüidade e nas Mídias Contemporâneas, coordenado pela Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho (COGEAE/PUCSP), no qual atuaram como expositores o Prof. Dr. A. L. Chevitarese (HIST/UFRJ), com a palestra Maria, Menino Jesus e a ilegitimadade física do Filho de Deus, e o Prof. Dr. G. Cornelli (FIL/UNB), com a palestra Representações de filósofos e homens divinos no mundo antigo. A segunda atividade a ser lembrada foi a mesa-redonda Por que ler os clássicos? Traduzindo e adaptando autores gregos e latinos, coordenada pela Profa. Dra. Arlene Reis (FIL/UFSC), onde atuaram como expositores e debatedores o Prof. Luiz Felipe B. Ribeiro (FIL/UFSC) e Profa. Dra. Zilma Gesser Nunes (LET/UFSC). Por fim, a terceira atividade realizada, na mesma perspectiva, foi o minicurso A alegoria da caverna: a presença do mito platônico no mundo contemporâneo, ministrado pela Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho. Destaque-se a participação, durante esta reunião, dos professores Dr. A. L. Chevitarese e Dr. G. Cornelli, que integraram a sessão de comunicação do Grupo de Pesquisa Linguagem e Representação (CNPq / UDESC), na sessão chamada Interdisciplinar. Estes professores são nomes recorrentes 59

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nas parcerias estabelecidas entre a área de Antiga da UDESC e alguns reconhecidos pesquisadores nacionais. No ano de 2006, a professora de História Antiga da FAED/UDESC, Márcia Ramos de Oliveira, juntou-se a colegas do CEART/UDESC, da UFSC e da PUCSP para realizar o II Simpósio Nacional e I Simpósio Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, sob a coordenação geral do Prof. Dr. João Lupi (UFSC), com a colaboração da Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho (COGEAE/PUCSP), a qual realizou, no mês de julho, a Mostra de Filmes precedente ao evento, com argumentos concernentes à temática. Estes filmes foram comentados por vários professores.56 Outra atividade que antecedeu o evento foi a Instalação Temática, organizada pela Profa. Márcia Ramos de Oliveira e Profa. Mara Rúbia Sant´Anna, que resultou em uma exposição audiovisual e confecção de um CDRom, material informativo acerca da cultura celta e germânica, realizados no Museu de Imagem e Som de Santa Catarina, realizado junto ao grupo de acadêmicos dos Curso de História, Moda e Design (FAED e CEART/UDESC). Esta atividade, além do forte viés interdisciplinar e integrador (de conteúdos, bem como de departamentos e cursos), mostra a preocupação com o olhar sobre outras culturas do Mundo Antigo e Medieval, em sintonia com o crescente interesse de acadêmicos dos cursos de História por celtas e wikings. Desde 2003, uma das formas de apoio aos estudos do Mundo Antigo se deu pelo patrocínio institucional do deslocamento rodoviário de alunos do curso de História para participarem de eventos científicos relacionados ao tema, contando para isto com o empenho da professora responsável pela disciplina, M. R. de Oliveira, e com o incentivo da professora M. C. de M. N. Coelho. Esta política iniciou em maio de 2003, com a participação na IX Jornada de Estudos do Oriente Antigo – Música e Imagens na Antigüidade, realizada no dia 24 de maio daquele ano, na PUCRS, em Porto Alegre/RS. Neste mesmo ano, no mês de setembro, foi viabilizada a participação no V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos - SBEC - Fronteiras e Etnicidade, realizado na cidade de Pelotas/RS, nas dependências do Instituto de Ciências Humanas da UFPEL, oportunidade em que se vislumbrou uma aproximação entre as experiências docentes em História Antiga dos cursos de História de ambas universidades. Na ocasião, estiveram presentes, subsidiados pelo Centro (FAED/UDESC), um grupo de alunos matriculados na disciplina de História Antiga I (História/UDESC) e vinculados ao Grupo de Estudos Gregos e Baianos (FAED/UDESC). Alguns alunos da UDESC apresentaram trabalhos na modalidade de banners, em que se visava a estimular a produção científica acadêmica. Dois deles foram premiados: Uma análise das justificativas mitológicas para práticas culturais na Grécia Clássica: casamento e sexualidade (apresentado por Anamaria M. Venson e Luis Fernando T. D’Ajello, acadêmicos do curso de História/ 56

Profa.Dra. Fátima Lisboa (UFSC), Profa. Dra. Ana Donnard (UFMG), Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ/Brathair/ ABREM), Profa. Dra. Mônica Fantin (UDESC) e Profa. Dra. Maria Cecília de M. Nogueira Coelho (COGEAE/PUCSP).

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FAED, orientados pela Profa. Dra. M. R. de Oliveira) e Luiz da Câmara Cascudo e a tradição greco-romana (apresentado por Carla D. S. Brasil, Fernanda S. Lino, Horácio D. Mello e Mário J. Conceição Jr., acadêmicos do curso de Pedagogia/FAED, orientados pela Profa. Dra. M. C. de M. N. Coelho). Estas premiações, concedidas pela organização do evento com base na avaliação feita por uma comissão de pesquisadores renomados, avalizou academicamente o trabalho desenvolvido na UDESC pelas professoras Márcia Ramos de Oliveira e Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho. Não bastando a apresentação de banners, foram proferidas comunicações: Medéia e a Gota d’água, de autoria de Mônica Sol Glik e, Medéia, de Agostinho Olavo, de autoria de Karine M. Borges, acadêmicas do curso de História. O ponto máximo da participação da UDESC neste congresso deu-se com o oferecimento do minicurso Cinema, teatro e mitologia: seis diretores em busca de Orfeu, ministrado pela Profa. M. C. de M. N. Coelho, a qual foi eleita, na ocasião, para integrar a nova diretoria da SBEC (na função de Tesoureira Adjunta), para o biênio 2004-5, aproximando o estado de Santa Catarina dos núcleos Sudeste e Sul de pesquisadores dedicados aos Estudos Clássicos. No ano de 2004, ocorreu igualmente o apoio à participação dos estudantes em eventos relacionados à área. No mês de agosto, com grande esforço institucional, os estudantes do curso de História da UDESC puderam participar do XII Congresso da Federação Internacional de Estudos Clássicos – FIEC, realizado na cidade de Ouro Preto/ MG, onde puderam acompanhar diretamente palestras de muitos dos mais destacados pesquisadores das Ciências da Antigüidade. Estimulando a integração acadêmica, o grupo foi acompanhado por estudantes dos cursos de História e Filosofia da UFSC. Foram apresentados posters, com divulgação dos projetos Gregos e Baianos e História no Teatro: Uma Proposta de Arte-Educação.

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Viagem de alunos de História da UDESC, em companhia de colegas da UFSC, para o Congresso da FIEC em Ouro Preto/MG – Fotografia: Márcia Ramos de Oliveira (2004)

No mês de outubro, durante o II Encontro do GT de História Antiga – ANPUH/ PR, na Universidade Tuiuti do Paraná, os integrantes do projeto de extensão História do Teatro: uma Proposta de Arte-Educação apresentaram um relato desta experiência em uma comunicação, com a colaboração da Profa. M. C. de M. N. Coelho e do acadêmico Frederico Gorski57. Outra experiência que se mostrou positiva na UDESC foi a orientação de monitoria, junto à disciplina de História Antiga I, nos anos de 2003 e 2004. O acadêmico Luis Fernando Telles D’Ajello, sob orientação da Profa. M. R. de Oliveira, beneficiou-se desta experiência, que lhe oportunizou aprofundar-se nos estudos da Antigüidade. Testemunho favorável ao caráter profícuo do Programa de Monitorias é o fato de que o monitor da disciplina, no ano de 2006, realizou seu trabalho de conclusão do Curso de História da UDESC escolhendo uma temática da História da Grécia Antiga como objeto de pesquisa. Sob o título “Mensageiros Helenos, Angelói de uma Época. Um Estudo sobre os mensageiros na Grécia Clássica (Séc. V a.C.)”, aprofundou-se na obra de Heródoto e no estudo desta figura social peculiar da sociedade grega antiga. De certo modo, o sucesso do trabalho de orientação do acadêmico Luis Fernando Telles 57

Esta comunicação, envolvendo o registro da atividade e a elaboração do roteiro da peça, veio a ser desenvolvida também através do artigo, em co-autoria: GORSKI, F.T. ; COELHO, M. C. M. N. ; OLIVEIRA, M.R. Recortes Medievais: o amor como subtítulo. Urdimento (UDESC), v. 7, p. 83-100, 2005.

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D’Ajello representa o resultado positivo de todo este esforço implicado na promoção de atividades extracurriculares, visto que no Departamento de História da UDESC não existem professores com pesquisa dedicada à área de História Antiga.58

Considerações finais A experiência de ensino de História Antiga nos cursos de História da UFPEL e UDESC, exposta a partir do relato dos professores responsáveis por estas disciplinas nestas universidades, respectivamente, Prof. Fábio Vergara Cerqueira e Profa. Márcia Ramos de Oliveira, expõem algumas peculiaridades, sobressaindo-se porém as semelhanças, as quais apontam algumas alternativas para o ensino desta disciplina em departamentos com reduzido número de professores, que não contam com um setor de História Antiga estruturado. Entre as diferenças, destaca-se, nas reformas curriculares implementadas a partir de 2004, a redução da carga horária de História Antiga no curso da UDESC, diferentemente da UFPEL que manteve como disciplinas separadas História Antiga Oriental e Ocidental, totalizando 8 créditos, além de oferecer com freqüência disciplinas optativas. Outro diferencial é o fato de que a UDESC oferece curso diurno e noturno, enquanto o curso da UFPEL é apenas noturno. Na instituição catarinense, o aluno recebe a dupla titulação de Licenciado e Bacharel em História, enquanto o curso da UFPEL limita-se à Licenciatura. Afora estas diferenças, de natureza formal, a prática dos docentes responsáveis pela disciplina aproxima-se em vários aspectos. Fundamentalmente, esses professores apostam na eficácia das atividades extracurriculares como complementação aos conteúdos programáticos previstos na grade curricular. Poderíamos dizer que, muito mais do que uma complementação, estas atividades comprovaram possuir outras virtudes, tais como o estímulo, a atualização e o contato com pesquisadores renomados, desmistificando de certa forma a relação com a ciência, sobretudo com História Antiga, por vezes taxada como algo distante da realidade brasileira. Mais ainda, as atividades desta natureza possibilitam abordar temáticas não previstas na grade curricular e propiciam contato intelectual com outras disciplinas, gerando integração entre professores e estudantes, a princípio separados pelas estruturas departamentais das nossas universidades. Ademais, estas atividades favorecem a formação profissional do futuro professor, pesquisador ou gestor de memória / patrimônio, na medida em que qualificam o estudante para utilizar e fazer interagir as diferentes formas de linguagem e expressões estéticas. Tanto na UFPEL como na UDESC, avaliando-se a natureza das atividades pro58

Este trabalho de conclusão de Curso (TCC), Departamento de História /UDESC, foi apresentado à banca examinadora constituída pela Profa. Dra. Maria Cecília de Miranda N. Coelho (COGEAE/PUCSP) e Prof. Ms. Edgar Garcia Júnior (UDESC), com orientação da Profa. Dra. Márcia Ramos de Oliveira (UDESC).

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postas ao longo dos últimos anos, percebe-se um conceito orgânico que permeia a opção por estas atividades extracurriculares, na medida em que várias linhas de atividades são tratadas de forma integrada, como um todo coerente e interligado: apoio à participação de estudantes em eventos realizados em outras cidades e estados; promoção de eventos científicos que possibilitem atualização e integração acadêmica, ensejando aos alunos contato com pesquisadores renomados de outras universidades e escolhendo temas com foco interdisciplinar; organização de grupos de estudos, gerando estudo aprofundado sobre temas específicos. Percebe-se como a promoção de atividades desta natureza ajuda a superar as limitações institucionais: no caso da UDESC, o departamento não conta com pesquisadores dedicados a este campo do conhecimento, nem tampouco possui linhas de pesquisa específicas sobre o Mundo Antigo; no caso da UFPEL, o trabalho de um professor isolado no departamento59, não constituindo um setor que possa estruturar um planejamento conjunto, também coloca limitações.60 A realização de atividades extracurriculares de certo modo oferece uma alternativa para se enfrentar estas limitações, uma vez que criam oportunidades que motivam e despertam a curiosidade dos estudantes em relação à área. Na experiência de ensino destas universidades públicas dos dois estados mais meridionais do país, os projetos extracurriculares constituem o diferencial, que proporciona ao aluno interessado um estudo mais aprofundado sobre a História Antiga. Uma diferença fundamental está na oposição entre, de um lado, a obrigatoriedade dos conteúdos das disciplinas curriculares, cujo aprendizado deve ser objeto de avaliação, e, de outro, a liberdade da busca por conhecimento baseado no seu interesse, independente do processo formal de avaliação discente. Nestes projetos, encontramos no aluno uma atitude mais madura. Estes projetos extracurriculares, além de possibilitarem divulgação científica dos conteúdos da História Antiga no meio acadêmico docente e discente, de integrarem estudantes e professores de diferentes departamentos, de potencialmente apresentarem repercussão positiva na imprensa e de despertar a curiosidade da comunidade em geral, assim espraiando os Estudos Clássicos, estimulam vocações e qualificam a formação do estudante interessado pela Antigüidade. Mais que isto, este dinamismo desfaz preconceitos ainda existentes com relação aos estudos da História Antiga, ora taxados como fúteis, como elitistas ou de pouco interesse para a realidade nacional. Em resposta a estas avaliações pouco fundamentadas e fundadas em raciocínios bastante rasos, algumas destas atividades propiciam o diálogo entre o Antigo e o Moderno, tangenciando do mesmo modo outras antinomias recorrentes nas Ciências Huma-

Isolamento não no sentido de não haver cooperação pontual e sistemática com seus colegas, mas no sentido de ser o único responsável por todas as disciplinas ligadas a Pré-história, Arqueologia, História Antiga Oriental e História Antiga Ocidental. 60 No caso da UFPEL, o professor possui doutoramento em temática relativa à Grécia Antiga, focando assuntos relacionados à Música, Iconografia, Cerâmica e Arqueologia. 59

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nas, como Modernidade e Tradição, Público e Privado, Família e Estado ou Universal e Particular. Ademais, suscitam a reflexão sobre a identidade cultural, mostrando paralelos entre nossa identidade e o legado cultural greco-romano, que adentra nosso patrimônio cultural através de apropriações e diálogos, perceptíveis desde o patrimônio arquitetônico e artístico, até a literatura e música, além de manifestações da cultura e religiosidade popular. Devemos salientar que eventos com propostas bem articuladas e, sobretudo, grupos de estudo, ajudam a superar dificuldades inerentes ao ensino de História Antiga, dificuldades recorrentes na maioria dos cursos deste país, mesmo naqueles que possuem bibliotecas e setores bem estruturados. Uma grande deficiência, que se repete em quase todos os cursos, decorre do fato que as disciplinas de História Antiga situam-se nos primeiros semestre dos cursos, quando o aluno ainda está bastante imaturo, mais vinculado à sua experiência precedente de estudante secundarista. Ele acompanha a disciplina numa fase em que ainda tem dificuldade para manejar conceitos abstratos e, portanto, para desenvolver uma abordagem mais interpretativa. Na medida em que o aluno avança no curso, afasta-se progressivamente de sua experiência pedagógica de aluno de História Antiga, com freqüência aproximando-se de áreas aparentemente mais acessíveis à pesquisa, como História do Brasil. O aluno é colocado na contingência de produzir seu trabalho de conclusão de curso, nomeadamente sua experiência individual mais aprofundada de pesquisa, praticamente três anos após a realização das disciplinas de História Antiga, estes conteúdos neste momento estando intelectualmente quase tão distantes em sua memória quanto às recordações de estudante secundarista. Muitos alunos deixam-se influenciar pelo preconceito de que a pesquisa em História Antiga no Brasil seja inviável ou pouco relevante socialmente, o argumento da ausência de arquivos não sendo mais do que uma bravata, uma vez que a documentação encontra-se em grande parte publicada e parcialmente divulgada na Internet. Por outro lado, a universalidade de temas de grande impacto para a Humanidade, ou mesmo a importância do Legado Clássico para nossa identidade cultural, esfarelam a acusação de que os Estudos Clássicos não possuam relevância social. Face este quadro, aparentemente incontornável, sobretudo em departamentos que não possuam setores docentes constituídos na área de História Antiga, nem tampouco acervos bibliográficos compatíveis, as atividades extracurriculares solucionam parcialmente estes problemas. Uma vez que o interesse espontâneo pela participação nos grupos de estudo costuma suceder à realização das disciplinas de História Antiga, esta é uma atividade que propicia que o aluno se mantenha envolvido com a área ao longo de boa parte do curso, de forma que o aluno amadurece, do ponto de vista teórico e metodológico, mantendo contato com a disciplina. A realização de eventos é outra atividade que potencialmente pode estimular o interesse de alunos pela área. Este foi o caso da realização do V Congresso da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos em Pelotas, que consolidou o interesse que muitos 65

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estudantes traziam com relação à Antigüidade. Fato análogo pôde ser comprovado na UDESC, com os vários eventos promovidos. Consideramos os acadêmicos da UFPEL, Caterine Henriques Mendes, Kátia Amorim Macedo, Sérgio Ricardo Fracalanza Muzzi e Marco Antonio Collares, este último já aprovado em seleção de mestrado, e da UDESC, Luis Fernando Telles D’Ajello, como a prova dos resultados positivos e recompensa pela aposta nesta estratégia de aprendizado. A estes alunos, que concluíram seus cursos de graduação no ano letivo de 2006, nosso agradecimento, pois tornaram mais gratificante nosso empenho e compromisso em pensar de forma integrada o ensino, a pesquisa e a extensão, nada obstante a academia brasileira de ciência desmerecer o envolvimento dos docentes nas atividades de extensão, uma vez que estas recebem pontuação desprezível no sistema público nacional comparativo de currículos, a Plataforma Lattes do CNPq. A título de conclusão, gostaríamos que o relato de nossas experiências servisse como inspiração, favorecendo o desenvolvimento de projetos de extensão nas universidades brasileiras, e valorizando, por conseguinte, os docentes comprometidos com a extensão universitária e que se disponham a realizar atividades extracurriculares, preocupados com uma formação holística e integrada do aluno.

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A importância da tradição clássica no nascimento da disciplina escolar História no Imperial Colégio de Pedro II Fernando de Araujo Penna61 (PPGE-UFRJ) Os conhecimentos conectados à tradição clássica constituíam um ideal de erudição e cultura enormemente valorizados nos países que perseguiram uma concepção de civilização advinda da Europa, como o próprio Brasil do início do século XIX. Esta erudição ligada à tradição clássica permeava grande parte dos campos do conhecimento, como a filosofia, a retórica, o estudo das línguas antigas (grego e latim, principalmente), aritmética, a história, dentre outros. Esta valorização da herança cultural da Antigüidade nos diversos campos do conhecimento tem um reflexo direto na instrução pública62, que deveria difundir o ideal de civilização através do ensino. O objetivo deste capítulo é analisar a importância da tradição clássica e do ideal de erudição a ela associado no currículo do Imperial Colégio de Pedro II, desde a sua fundação em 1837 até o final do período imperial em 188963. Será dada especial ênfase ao ensino de História, devido à sua centralidade neste currículo e a sua vinculação com esta tradição clássica. O Imperial Colégio de Pedro II64 tem uma imensa relevância neste tema porque foi a primeira instituição pública de instrução secundária a adotar um currículo seriado; currículo este que mudou muito durante o recorte estudado, mas que contava com a forte presença de elementos associados à tradição clássica, especialmente no período inicial do colégio; e foi o local de surgimento da História enquanto matéria escolar no ensino secundário público. Organizarei o texto em três partes. Na primeira, estabeleço um diálogo com François Furet (1982) que realizou um estudo semelhante sobre o processo de surgimento da história enquanto disciplina escolar na França e a importância da cultura clássica neste processo. O caso francês é importante enquanto suporte para uma comparação com o caso brasileiro principalmente devido ao fato de que o currículo adotado no ICPII tinha como modelo o currículo francês. Na segunda parte, desenvolvo uma análise da trajetória da História Antiga buscando situá-la tanto no conjunto da disciplina História quanto na dinâmica mais ampla do currículo adotado no ICPII. Quanto a esta análise, defendo a hipótese de que a tradição clássica e a história antiga estavam muito mais presentes num momento inicial de existência do colégio. No período final do recorte, Mestrando no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGE-UFRJ). Trabalho orientado pela prof.a Dr.a Ana Maria Monteiro. Gostaria de agradecer especialmente ao professor Geraldo Pinto Vieira, parte dos compêndios aqui trabalhados fazem parte da sua biblioteca particular e foram-me gentilmente cedidos pelo professor. 62 No século XIX, o termo Instrução Pública era utilizado para designar o que hoje chamaríamos de Educação. 63 Toda a documentação estudada relativa ao Colégio Pedro II encontra-se no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM-CPII). 64 Utilizarei a sigla ICPII para me referir ao Imperial Colégio de Pedro II. 61

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esta presença continua, mas bem atenuada. Na parte final, apresento uma conclusão na qual faço um balanço da análise realizada sobre a história do currículo do ICPII e suas implicações.

A constituição da disciplina História na França François Furet, no seu artigo intitulado “O nascimento da história”, faz um histórico do surgimento da História, enquanto disciplina escolar, e explica de que forma esta se constituiu enquanto tal65. O autor afirma que o motivo que impossibilitou o estabelecimento da disciplina escolar história antes do século XIX foi o fato dela ainda não haver alcançado uma unidade. A história era pensada através de duas atividades intelectuais que não dialogavam: a erudição e a filosofia (FURET, 1982, p. 109). A erudição, sem dúvida, não envolvia apenas a história, mas também o estudo das línguas antigas, da retórica, da filosofia, e todos os demais conhecimentos que têm origem na Antigüidade. A erudição era característica de estudiosos conhecidos como antiquários, especialistas do antigo e, em especial, da Antigüidade. Esta é uma velha tradição que remonta ao Renascimento e que, a princípio, não é uma tradição crítica – a história já havia sido escrita pelos grandes historiadores da Antiguidade, os “modernos” limitavam-se a comentar o que os antigos haviam escrito e trabalhar nas suas margens. Os textos produzidos por estes antiquários não eram considerados “história”, pois esta era concebida neste momento como sendo a análise cronológica dos regimes e dos governos. O que estes antiquários produziam era chamado de “antiguidades” e era duplamente marginal à história, pois, na maioria das vezes, além de não se enquadrar na concepção vigente da disciplina, não trabalhava com fontes literárias, mas com vestígios arqueológicos como moedas, pedras, inscrições, material recuperado de naufrágios. No entanto, na segunda metade do século XVII, o antiquário emancipa-se da tutela da historiografia antiga e torna-se um crítico da história. Os materiais que ele estuda (os vestígios materiais) deixam de ser secundários e passam a ser considerados fontes válidas, assim como a documentação textual, para se pensar a história e, desta forma, as fontes literárias tornam-se parte da crítica erudita. “A crítica interna e externa do documento nasce com a integração dos diferentes tipos de fontes em busca do verdadeiro” (FURET, 1982, p. 110). Esta nova perspectiva crítica do trabalho dos antiquários inicia um processo de redefinição dos limites da história sagrada e da história profana dos povos antigos, questionando até mesmo esta divisão. Apesar destes avanços realizados pela investigação histórica realizada pelos antiquários, a própria história continua alheia a estas inovações. A história constituía um gênero literário no qual uma das regras centrais era justamente excluir qualquer refe65

Furet, no seu livro, trata da História enquanto disciplina, tanto escolar quanto acadêmica (1982). Eu trabalharei especialmente da disciplina escolar, apenas fazendo referências ao que poderia ser chamado de um saber de referência acadêmico quando necessário.

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rência ao aparelho crítico e às fontes. “A história é uma narrativa continuada, que não se incomoda com originais e que apresenta ao mesmo tempo uma lição moral e uma forma regular e ornamentada” (FURET, 1982, p. 111). É esta história filosófica que irá se afastar cada vez mais da investigação dos antiquários no século XVIII. Neste período, a obsessão dos historiadores, e dos modernos em geral, pelo presente, faz com que a curiosidade dos antiquários seja relegada a um lugar secundário. O modelo da história política, advindo da Antigüidade, é questionado, e a história filosófica adota dois novos pólos conceituais: os progressos da civilização e a origem da nação. A história da civilização vai ser escrita com o intuito de compreender o presente, assim como, obviamente, a busca pelas origens da nação. No século XVIII, portanto, a História constitui um gênero heterogêneo e em plena expansão. Além da divisão interna entre a investigação dos antiquários e a história filosófica, as fronteiras externas da história ainda não estão definidas com precisão – associada intrinsecamente a ela está o inventário do espaço que, neste momento, ainda não é chamado de geografia, mas de “viagens”. Essa heterogeneidade, segundo Furet, impossibilitava o estabelecimento da história enquanto disciplina escolar: No século XVIII a indiferenciação do campo histórico é suficiente para mostrar a que ponto o estudo do passado está longe de ser uma disciplina escolar: se a história não é ensinada, é porque não está constituída em matéria ensinável. Os dois tipos de atividade intelectual que abrange são demasiado estranhos um ao outro para formarem um saber homogêneo. Um e outro são, aliás, pouco talhados para o ensino, mesmo secundário (FURET, 1982, p. 115) Furet vai argumentar que é somente no período da Restauração, início do século XIX, que o fosso entre tradição dos antiquários e a dos historiadores vai ser transposto. Guizot, traduzindo Gibbon, funde as duas tradições, ao mesmo tempo em que reconcilia a história nacional e a história da civilização. Mas, ao certo, que história? A Restauração, que é o primeiro regime a estabelecer um ensino sistematicamente cronológico dela, procura recuperar a sua própria genealogia, a da tradição monárquica. Um texto de 1814, preparado por Royer-Collard, por conseguinte de inspiração constitucional e moderada, divide o ensino da história em fatias cronológicas para as aulas dos liceus e dos colégios: história sagrada no primeiro ano, Egito e Grécia no segundo, Roma (até o império) no terceiro, de Augusto a Carlos Magno no quarto, a Idade Média no quinto, Tempos Modernos e história da França no sexto. É uma tentativa de síntese entre o antigo ensino, baseado na história sagrada e na Antiguidade, e as exigências de uma cronologia laicizada, mais moderna e mais “nacional” (FURET, 1982, p. 123) 69

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A França ainda sofre com mais um período autoritário de 1820 a 1827, no qual a história é vista com suspeição, mas volta com mais força ainda e se emancipa da tutela das humanidades, chegando-lhe a ser atribuído, nas classes secundárias, um professor especial. E, daí para frente, não apenas torna-se uma disciplina escolar autônoma, mas obtém um papel central numa pedagogia formadora do cidadão. Mas qual é a relação entre toda esta história da educação francesa com o que aconteceu no Brasil?

A tradição clássica e disciplina escolar História no ICPII Neste longo processo de constituição da disciplina escolar História na França, ela passou de um mero apêndice dos estudos clássicos e da aprendizagem do latim para uma disciplina central no currículo francês. No caso do Brasil, não houve este processo longo e gradual, pois a disciplina escolar História foi introduzida graças à influência externa – a criação do Imperial Colégio de Pedro II, com um currículo em grande parte baseado por aquele que era adotado nas nações européias, em especial na França. O Imperial Colégio de Pedro II, criado em 1837, foi o primeiro colégio secundário de instrução pública a adotar um currículo seriado, onde as matérias eram organizadas numa ordem de complexidade crescente e devia-se conhecer o que foi trabalhado nos anos anteriores para ingressar nos anos mais avançados do curso. Esta foi uma revolução importante porque antes a instrução secundária, assim como a primária, era trabalhada através de cadeiras avulsas – cada matéria era ensinada independentemente em cursos separados que eram criados em várias localidades do império. As cadeiras eram limitadas a algumas poucas disciplinas ou cursos, principalmente o Latim, a Retórica, a Filosofia, a Geometria, o Francês e o Comércio. A História não era uma cadeira avulsa estabelecida, só vai começar a ser trabalhada sistematicamente no Brasil após a criação do ICPII66. No momento da criação do Imperial Colégio de Pedro II, havia uma polêmica sobre a falta de uniformidade do que era trabalhado nestas cadeiras avulsas. Como a inspeção das Câmaras Municipais só averiguava a assiduidade dos professores e a legislação que determinava o que deveria ser trabalhado nestas cadeiras era muito antiga e desatualizada, os professores acabavam por ter uma liberdade muito grande para decidir o que seria trabalhado e de que forma seria. Neste contexto discutia-se a criação de uma instituição que reunisse, a princípio apenas na corte, e posteriormente nas outras províncias, todas as cadeiras avulsas, para tornar mais fácil a sua fiscalização e a adoção de um currículo único. No entanto, ao invés disso, foi criado o ICPII, que era uma instituição que adotou um currículo onde a presença de uma erudição voltada para a Antiguidade era muito forte, currículo este que deveria servir de modelo para as instituições particulares já existentes e para as públicas que viriam a ser criadas. 66

 um levantamento realizado no período de 1808 a 1837, encontrei apenas menção a uma aula de Desenho, e História em Minas N Gerais e História Eclesiástica em São Paulo.

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Varias disciplinas que antes não eram trabalhadas enquanto cadeiras avulsas, como a própria História, passaram a existir enquanto constituintes do ensino secundário no Imperial Colégio de Pedro II. No discurso de inauguração do colégio, o Ministro do Império (responsável pela instrução pública) declara que os Estatutos do Colégio, que continham os Planos de Estudo (determina quais serão as cadeiras67 estudadas, como elas se distribuirão pelos anos e quanto tempo do curso ocuparão), não foram uma criação arbitrária, mas baseados na experiência educacional de países esclarecidos: Devo, porém, advertir a v. exc. que as regras consagradas neste regulamento não são teorias inexpertas; elas foram importadas de países esclarecidos, têm o cunho da observação, tem o abono da prática e deram o resultado de transcendente utilidade. Não vos assuste, pois, a sua literal observância: a mocidade brasileira não é menos talentosa, nem menos capaz de morigerar-se que a desses países onde elas têm muito aproveitado (VASCONCELOS. Discurso proferido por ocasião da abertura das aulas do Colégio de Pedro II. 183868) Sem dúvida a principal influência foram os liceus franceses, o que pode ser percebido pela a adoção massiva de compêndios em francês ou traduzidos dele para o português por professores do colégio. Este uso da experiência de países europeus enquanto modelo explica o surgimento de disciplinas que antes não eram trabalhadas no Brasil. O que não quer dizer de forma alguma que estas matérias foram transpostas de forma idêntica, mas apropriadas e adaptadas à realidade nacional. Este primeiro regulamento ao qual o Ministro do Império Bernardo de Vasconcelos se refere no discurso acima foi apenas o primeiro de muitos regulamentos que o Colégio teve desde a sua fundação até a proclamação da república. Os planos de estudo – que são parte do regulamento – também mudaram, conseqüentemente, várias vezes. Estas mudanças constantes fizeram com que as disciplinas que faziam parte do currículo, as cadeiras nas quais elas seriam ensinadas, o tempo que estas ocupariam no curso, e em que anos seriam estudadas variassem muito. É interessante analisar estas trajetórias para entender as mudanças nas concepções destas disciplinas e do próprio currículo como um todo. As disciplinas que compunham este currículo mudaram algumas vezes, mas a lista das que permaneceram minimamente são as seguintes: Religião e História Sagrada, Português, Latim, Grego, Francês, Inglês, Alemão, Italiano, Geografia e História, Retórica

 colégio ainda adotava o sistema de cátedras – que como vimos era o sistema adotado na França e que possuía uma marca da O forte influência por parte do ensino superior – no qual cada matéria escolar constituía uma determinada cadeira, e esta era responsabilidade de um professor. 68 O discurso original enviado pelo Ministro para o Reitor antes cerimônia de abertura, para dar ciência ao segundo sobre o que seria dito pelo primeiro, encontra-se no Livro de ofícios recebidos número 1, no NUDOM-CPII (Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II). Uma reprodução deste discurso também pode ser encontrada em Carvalho, 1999, pp. 244-246. 67

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e Poética, Filosofia, Matemáticas Elementares, Ciências Naturais, Desenho, Música, Ginástica e Dança. Várias destas remetiam à Antiguidade, direta ou indiretamente: o latim e o grego clássico – línguas mortas que remetem à Grécia e Roma; retórica e filosofia discutindo obras da tradição clássica; História e Geografia estudando diretamente a Antiguidade; mesmo nas línguas que não têm conexão direta com a tradição clássica – em Francês se estudava Romanos de Montesquieu; em Inglês, a História Romana de Goldsmith; em alemão, Ifigênia em Tauride, de Goethe; e estes são apenas alguns exemplos. A erudição ligada à tradição clássica permeava todo o currículo. Para entender as mudanças que ocorriam dentro da disciplina história é preciso contextualizá-las dentro das mudanças mais amplas do currículo do ICPII. Basta dizer, portanto, que num primeiro momento que se estendeu da fundação do colégio até segunda metade da década de 60 e primeira metade da década de 70, o Latim era a cadeira que ocupava o maior tempo do curso e sempre era ensinado nos últimos anos, aqueles considerados de maior complexidade e maior importância. E, no interior da disciplina História, como veremos, a História Antiga tinha grande destaque. Estes são indícios de que numa fase inicial do colégio a erudição ligada à tradição clássica era muito forte. A disciplina escolar História teve sua gênese no Brasil no Imperial Colégio de Pedro II. A História e a Geografia, que hoje conhecemos como duas matérias escolares distintas apesar de fortemente conectadas, eram trabalhadas conjuntamente – a cadeira de História e Geografia (como já vimos, Furet destaca que na França esta associação também era feita). Na verdade, História e Geografia, em alguns momentos, eram trabalhadas em mais de uma cadeira – a organização era realizada da seguinte forma: as disciplinas eram divididas em cadeiras, e estas cadeiras eram divididas em matérias pelos anos do curso69. No primeiro ano letivo do colégio (1838), foram contratadas várias figuras eminentes na sociedade brasileira para trabalharem como professores. No entanto, a princípio, eles foram contratados sem designação de cadeira ou de ordenado. Isto já é uma indicação que não se sabia ao certo quem ensinaria o que – um claro indício de que estas pessoas contratadas não seriam especialistas naquilo que ensinariam, mas indivíduos de grande erudição que a princípio poderiam assumir qualquer cadeira. Dentre eles estava Justiniano José da Rocha, que em 29 de abril de 1838 foi nome69

 oucos estudos se dedicaram ao estudo da história da matéria escolar História adotando o mesmo recorte desta pesquisa – Imperial P Colégio de Pedro II, de 1837 a 1889. E os poucos que o fizeram dedicaram-se à análise dos conteúdos trabalhados, através de programas de ensino e compêndios, e focaram a sua análise na História do Brasil. A utilização do referencial teórico proposto por Ivor Goodson me levou a não restringir a minha pesquisa à análise dos conteúdos isoladamente, mas estudá-los associados a questões próprias da organização escolar. Este autor propõe que se estude a importância que as profissões, como a de professor, desempenham na construção social do conhecimento e que estes profissionais reunidos em grupos e comunidades influenciam os destinos das matérias escolares, em busca de status, territórios, e recursos. As matérias escolares, para Goodson, “não constituem entidades monolíticas, mas amálgamas mutáveis de subgrupos e tradições que, mediante controvérsia e compromisso, influenciam na direção da mudança” (1995, p. 120). As questões que envolvem os conteúdos são solidárias a outras referentes à organização do campo disciplinar e sua divisão em cadeiras e matérias e a influências dos professores, reitores e ministros na definição desta organização.

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ado professor de Geografia, e de História Antiga e Romana. Um primeiro dado que chama a atenção é que o único período trabalhado era a Antiguidade – a história antiga e romana! Só isso já bastaria para argumentar contra uma influência direta da França, pois, como vimos, a história lá começou a ser trabalhada em fatias cronológicas que abrangiam não só a Antiguidade, mas também a idade média, a idade moderna, e a história nacional. No entanto, outro dado deve ser levado em conta. Em 1838, por exemplo, só os três primeiros anos do curso já estavam funcionando e no caso da cadeira de Geografia, e História Antiga e Romana as seguintes matérias estavam sendo trabalhadas: Geografia nos 8º, 7º e 6º anos e História Antiga no 6º. Em 1839, o quadro é o mesmo, só que o 5º ano começa e nele temos a História Romana. Segundo o Regulamento de 1838, a história seria trabalhada a partir do sexto ano até o primeiro (neste regulamento os anos do curso eram numerados de forma decrescente) o que implica dizer que ainda faltavam as matérias dos outros quatro anos, que, seguindo o modelo francês, deveriam incluir a Idade Média, História Moderna e História do Brasil. Foi exatamente o que aconteceu em 1840. A cadeira teve o seu nome alterado para História Geral, História Pátria, Geografia e Cronologia e começou a ser lecionada a matéria História Pátria no segundo ano de então e Geografia e Cronologia no quarto. No entanto, ainda assim, o fato da cadeira ter sido nomeada de Geografia, e de História Antiga e Romana não deixa de ser significativo. Acredito que, aqui no Brasil, por não ter acontecido toda aquela longa evolução que se deu na França, a História ainda era concebida principalmente enquanto parte daquela erudição que valorizava a Antiguidade. Daí o fato de, mesmo sabendo que a princípio a História ia incluir outras matérias, como a história nacional, a cadeira recebeu o nome de Geografia, e de História Antiga e Romana – justamente por ser esta a parte mais valorizada da história. Outro dado importantíssimo, e uma grande diferença com relação à França, é que a História do Brasil ainda estava começando a ser construída pelos membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instituição que foi criada em 1838 com o propósito de produzir uma história nacional validada pelo governo imperial. Obviamente poucos haviam sido os avanços do IHGB nos seus primeiros anos. Um indício disso é que, em 1840, quando teve que começar a lecionar a História Pátria, Justiniano José da Rocha sentiu falta de um compêndio desta matéria e fez um discurso no IHGB, do qual era sócio, em 8 de fevereiro de 1840, pedindo que se montasse uma comissão com o intuito de escrever um compêndio de história pátria. Infelizmente, Justiniano pediu demissão do ICPII e com isso sua proposta no IHGB foi abandonada (Cardim, 1964, p. 52). A adoção do modelo francês foi, portanto, dificultada pelo fato da concepção de história que lá se desenvolveu ainda não poder se constituir no Brasil, pois a História Pátria, que deveria ser o carro chefe da disciplina, ainda não estava constituída nesta margem do Atlântico de forma legitimada70. 70

Já existiam alguns compêndios de História Nacional neste momento, como o de Bellegarde e o de Abreu e Lima (Gasparello, 2004). No entanto, estes eram criticados pelos sócios do IHGB por não se enquadrarem na nova perspectiva de história do Brasil que eles

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Neste período, acreditava-se que o ensino deveria seguir algum compêndio, e a falta deste seria um grande problema, como mostrou o caso da História Pátria. Mas, a História Antiga já estava constituída graças à sua importância na concepção vigente de erudição. Para atender às necessidades da cadeira de História, Justiniano traduziu dois compêndios franceses: o Compêndio de História Antiga, por Cayx e Poirson e o Compêndio de História Romana, por De Rozoir e Dumont. Na folha de rosto destes dois livros vinha escrito “adotado pelo Conselho Real da Universidade de Paris, para o ensino dos colégios reais e outros estabelecimentos da instrução Pública, mandado traduzir, e adotado para uso dos alunos do Imperial Colégio de Pedro II”. Cada matéria, tanto a História Antiga quanto a Romana, era trabalhada através de compêndios individualizados. Outra questão que emerge desta primeira nomenclatura da cadeira de História e Geografia: por que a História Romana é separada do conjunto mais amplo da História Antiga? Um dos memorialistas do colégio, Escragnolle Doria, também se faz esta pergunta ao falar da cadeira em questão: “Justiniano José da Rocha foi designado professor de Geografia, História Antiga e Romana, não muito perceptível a exclusividade pedagógica da última disciplina” (DORIA, 1997, p. 32 – grifos meus). Primeiro é preciso reforçar que a História Antiga não tratava apenas da Grécia, apesar de dedicar-se principalmente a ela, mas falava também dos povos egípcios, hebreus, assírios, persas, e etc. Tratava até, de forma introdutória, sobre as idéias relativas à criação do mundo e dos tempos de antes do dilúvio. Por que então a História Romana foi destacada de toda a história anterior? Encontrei uma resposta num compêndio adotado mais tarde no Imperial Colégio de Pedro II. Nos compêndios traduzidos por Justiniano não havia qualquer forma de introdução sobre a concepção de história e como ela seria dividida, mas, nos compêndios posteriores, os primeiros capítulos eram precedidos por uma sessão interessante intitulada “Idéias Preliminares”. Como normalmente a ordem cronológica era seguida e História Antiga era a primeira matéria a ser trabalhada, os livros traziam esta breve introdução, explicando o que seria a História e como ela seria estudada e organizada. Estas “Idéias Preliminares”, existentes no início destes compêndios, são uma fonte interessantíssima para se perceber as mudanças na concepção de História e nas suas metodologias. Em 1865 um compêndio de autoria nacional é indicado para o uso no ICPII: o compêndio de História Antiga do Dr. Moreira de Azevedo, professor desta matéria no colégio. É neste compêndio que encontramos na sessão das “Idéias Preliminares” interessantes indícios: Chama-se história a narração dos fatos verdadeiros. A história universal

buscavam estabelecer.

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A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

divide-se em história antiga, história média e história moderna. Começa a história antiga com o mundo, e vai até a destruição do império romano do Ocidente em 476 da era cristã. [...] Divide-se a história antiga em tempos primitivos, em tempos mitológicos ou fabulosos, e em tempos históricos. Chamam-se tempos primitivos aqueles que compreendem a narração dos acontecimentos antes do dilúvio. Chamam-se tempos mitológicos ou fabulosos aqueles que compreendem fatos obscuros, incertos, envolvidos ou desfigurados pela fábula; começa este período com a fundação dos primeiros impérios, e abrange mais de treze séculos. Chamam-se tempos históricos aqueles que compreendem fatos certos, claros e verificados, como são os acontecimentos ocorridos desde a fundação de Roma até a queda do império romano do Ocidente (AZEVEDO, 1876, p. VIII). Apesar deste compêndio já trazer tanto a história antiga quanto a romana reunidas, ele nos permite compreender a separação das duas enquanto matérias distintas. A história ainda era aqui concebida enquanto uma história filosófica que não utilizava a crítica para questionar aquilo que era produzido na Antiguidade. Aquele que estudava a história não podia ler as fontes e utilizar a sua crítica e o cotejamento de fontes de natureza diferente para distinguir a história do mito (as tradições dos antiquários e da história filosófica parecem ainda não terem sido articuladas neste momento). Desta forma, a história das sociedades antigas, anteriores a Roma, era considerada parte de um tempo mitológico ou fabuloso, enquanto os acontecimentos propriamente históricos seriam aqueles posteriores à fundação do Império Romano. Desta forma, podemos compreender a divisão realizada: na História Antiga eram estudados os tempos fabulosos e mitológicos, com uma breve introdução sobre os tempos primitivos (antes do dilúvio); enquanto a História Romana tratava dos tempos históricos. Pensando em termos da trajetória do campo disciplinar História e Geografia, a História Antiga teve grande destaque em três momentos. Primeiro, nos anos iniciais do colégio, nos quais a cadeira era dedicada apenas à História Antiga e Romana, quando a História Nacional ainda estava num momento de constituição no IHGB. Segundo, em 1849, História e Geografia passam a ser lecionadas em duas cadeiras, o que antes só havia acontecido com o Latim. Uma destas cadeiras é dedicada somente à História Antiga e é chamada Geografia, e História Antiga. E, um terceiro momento, é aquele que se estende de 1855 até 1862, quando o curso do ICPII passa a ser dividido em dois: os estudos de primeira classe, que é um curso de apenas cinco anos e voltado para uma educação mais profissionalizante; e os estudos de segunda classe, que é o curso completo com dois ou três anos a mais. A única matéria de História e Geografia a permanecer nos anos finais do curso completo, durante todo este período, foi a História Antiga, junto com as outras matérias consideradas 75

Fernando de Araujo Penna

mais importantes. No entanto, a partir da década de 1870, a História Antiga começa a perder espaço. A matéria História Romana deixa de existir independentemente em 1870, um pouco antes da própria História Antiga perder o seu destaque, o que ocorreu em 1876 – quando a cadeira na qual ela era trabalhada passa a ser chamada História Universal, e ela passa a ser lecionada em conjunto com a Idade Média na matéria História Antiga e Média. Com a reunião da história antiga, média, moderna e contemporânea na cadeira História Universal, a única que permanece em destaque é a História do Brasil na cadeira chamada Corografia e História do Brasil, criada em 1858 e que permanece até o final do recorte estudado. Uma coincidência significativa é que, neste mesmo momento em que a História Antiga perde seu destaque, o Latim, que era a disciplina mais explorada nos currículos voltados exclusivamente para a erudição clássica, também vai perder força. O Latim, que era ensinado em três cadeiras diferentes, passa a ser ensinado em apenas uma cadeira (1870); deixa de ser a disciplina que ocupa mais tempo no curso (1865); e não mais é lecionada nos dois últimos anos do curso (1877). Isso demonstra que a erudição, marca do currículo até a década de 1860, deixa de ser a característica mais marcante do currículo do ICPII, apesar de continuar presente. No entanto, esta mudança na disciplina História não é só conseqüência de uma mudança de tendência curricular, mas também de uma mudança na concepção de História. João Maria da Gama Berquó, substituto de Geografia e História no ICPII, publica dois livros de História Antiga em 1887: História Antiga do Oriente e História da Grécia e de Roma. Estes compêndios fazem parte de uma coleção intitulada História Universal (Noções) e constituem o volume I e II. Um primeiro elemento que pode ser percebido pela própria organização dos dois livros é que a história da Grécia, que antes era trabalhada em conjunto com as outras sociedades antigas, ganha destaque e é trabalhada junto com a História de Roma. Esta mudança por si só já é reveladora de uma mudança de concepção, pois antes a história da Grécia Antiga era considerada fabulosa ou mitológica e não era agrupada com a História de Roma, considerada propriamente histórica. Este livro contém uma Introdução que, assim como as “Idéias Preliminares” do compêndio de Moreira de Azevedo, trazem um resumo pontual sobre o que é a história. Esta introdução é dividida em quatro pontos: I. Definição da História; II. Divisões da História; III. Fontes históricas; e IV. Ciências auxiliares da história. I. – Definição

da

História – História é a ciência que tem por fim tratar dos

acontecimentos notáveis da vida da humanidade e estudar as leis que presidem ao progresso e decadência das sociedades humanas. [...] III. – Fontes

históricas

– Os documentos em que se baseia o historiador

para escrever a história denominam-se fontes históricas e podem ser: 1º. 76

A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

Tradicionais: como cantos populares, lendas, contos etc. 2º. Escritos: memórias, crônicas etc. 3º. Monumentos: inscrições, túmulos, moedas, medalhas etc. Na discriminação das fontes históricas deve o historiador empregar a crítica histórica (BERQUÓ, 1887, pp. I - II). Esta nova definição de História possibilitou a reunião da História da Grécia e de Roma num mesmo volume – a História agora é uma ciência que utiliza a crítica histórica para analisar as suas fontes. A História não mais se restringe à leitura acrítica das fontes textuais (a história já estaria escrita pelos antigos), nesta nova concepção da disciplina, o historiador deve cotejar as diferentes fontes e utilizar a crítica histórica para interpretá-las. A história da Grécia não mais precisa ser vista como fabulosa ou mitológica, pois o historiador pode usar a sua crítica para tentar distinguir o que é história e o que é mito, nem tudo que está escrito precisa ser aceito sem crítica. Parece que a tradição dos antiquários e sua crítica das fontes foi finalmente apropriada pela história filosófica que estuda a história das civilizações.

Conclusão Vimos como a erudição associada principalmente à tradição clássica marcou fortemente o currículo do ICPII, desde sua fundação até o final da década de 1860. O Latim era a uma disciplina central neste currículo e a História Antiga recebia um destaque especial dentro da História, chegando a constituir uma cadeira à parte e a ser ensinada nos últimos anos do curso. A concepção de História neste período inicial ainda estava associada a uma narrativa do passado na qual não se problematizavam as fontes textuais, o que levou a uma caracterização de toda a história anterior à de Roma como mitológica, fabulosa ou primitiva (daí a separação entre as matérias História Antiga e História Romana). A partir de meados da década de 1870, a tradição clássica deixa de ser o elemento central do currículo (apesar de continuar presente) e a concepção de história muda para começar a se apropriar da critica histórica e outros tipos de fontes que não apenas as textuais. Nesta nova concepção, a história antiga é apenas mais um dos períodos da história universal, sem nenhum destaque especial por estar ligada à tradição clássica.

Compêndios AZEVEDO, Moreira de. Compêndio de História Antiga. Rio de Janeiro: Garnier, 1876. BERQUÓ, João Maria da Gama. História Antiga do Oriente. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves & Cia., 1887. . História da Grécia e de Roma. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves & Cia., 1887.

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CAYX e POIRSON. Compêndio de História Antiga. Rio de janeiro: Tipografia imperial, 1840. DE ROZOIR e DUMONT. Compêndio de História Romana. Rio de janeiro: Tipografia imperial, 1840.

Bibliografia ANDRADE, Vera Lúcia Cabana de Queiroz. Colégio Pedro II. Um lugar de memória. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999. BANN, Stephem. As invenções da história. Ensaios sobre a representação do passado. Tradução Flávia Villas-Boas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1994. (Biblioteca básica). BITTENCOURT, Circe Maria F. Livro didático e Conhecimento Histórico: uma história do saber escolar. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1993. CARVALHO, José Murilo de (org). Bernardo Pereira de Vasconcelos. São Paulo: Editora 34, 1999. DORIA, Escragnolle. Memória Histórica do Colégio Pedro Segundo (1837-1937). 2ª ed. Brasília: INEP, 1997. FERREIRA, Márcia Serra. A história da disciplina escolar ciências no Colégio Pedro II (1960-1980). Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2005. FURET, François. A oficina da história. Lisboa: Gradiva, 1982. GASPARELLO, Arlette Medeiros. Construtores de identidade: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira. São Paulo: Iglu, 2004. GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Apresentação de Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. . O Currículo em Mudança: Estudos na construção social do currículo. Porto: Porto Editora, 2001. . Studying Curriculum: Cases and Methods. Great Britain: Open University Press, 1994. Studying School Subjects: A guide. London: Falmer Press, 1996. . Subject Knowledge: Readings for the Study of School Subjects. London: Falmer Press, 1998. HOBSBAWWN Eric e RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. MATTOS, Selma Rinaldi. O Brasil em lições: a história como disciplina escolar 78

A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

em Joaquim Manuel de Macedo. Rio de Janeiro: Access, 2000. MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec, 2004. OLIVEIRA, José Deusdedete. O ensino de história no Colégio Pedro II: uma leitura dos programas de ensino até o final do século XIX. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense. Niterói, 1993. VECHIA, Ariclê e LORENZ, Karl Michael. Programa de ensino da escola secundária brasileira: 1850-1951. Curitiba: Ed. Do A Autor, 1998.

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A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

A outra margem do pensamento ocidental: o ensino da filosofia antiga no Brasil em tempos de globalização Gabriele Cornelli (Dep. de Filosofia-UnB) É mais fácil mimeografar o passado, do que imprimir o futuro. Zeca Baleiro

Velharias entre metáforas71 A filosofia antiga no Brasil tem um sabor todo especial. O sabor de encontros e misturas, de ritmos frenéticos e centros calmíssimos, de cores antigas e novamente presentes, de fortes cheiros de suor e festa. Tem o sabor do Carnaval! Compreendo que tais sabores possam constituir uma idéia estranha, até mesmo bizarra. Mas desta outra margem do Ocidente, aonde nos encontramos, o convite é o de explorar a outra margem das metáforas utilizadas para se descrever as antigas tradições que fundamentam o pensamento ocidental. O Carnaval é uma dessas metáforas fortes, extremamente precisa: encruzilhada de povos e tradições, o Brasil é lugar de profundos encontros e sincretismos. Música, religião, política, culinária testemunham, entre outras práticas, esta realidade mestiça e dinâmica. Uma outra metáfora concerne o espaço: um espaço enorme, tão grande de fazer espaço mesmo dentro da alma da gente daqui. É neste espaço que acontecem os encontros do Carnaval: não um espaço vazio, virgem, como pretendem as ideologias colonialistas de todos os tempos, e sim, um espaço vasto e rico para permitir surpreendentes generosidades e acolhidas de surpreendentes diferenças. É por esse caminho das metáforas sobre o País que tentarei desenhar o percurso da filosofia antiga no Brasil. As páginas a seguir assumirão em diversos momentos um tom autobiográfico, pois é, no fundo, minha trajetória de professor de filosofia antiga que se encontra aqui refletida. Ou melhor, minha trajetória como professor das “velharias da filosofia”. É assim que carinhosamente costumo apresentá-las, em tom de provocação, aos meus alunos calouros. Estas “velharias”, obviamente, são os próprios “clássicos” da filosofia.

A situação da filosofia antiga no Brasil 71

 egistro, de início, meu sincero agradecimento, pela ajuda inestimável, ao amigo José Otávio Guimarães, que discutiu e revisou R comigo o presente texto.

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Comecemos por uma breve análise da situação da filosofia antiga no Brasil, para em seguida empreendermos reflexão sobre o seu ensino. Além de disciplina obrigatória no currículo de todos os cursos de graduação em filosofia no País, a filosofia antiga pode contar com diversos centros de pesquisa e boas revistas especializadas na área. Entre os centros de pesquisa podemos citar, sem dúvida, o Centro do Pensamento Antigo (CPA) da Universidade Estadual de Campinas (SP), que reúne pesquisadores de diferentes âmbitos dos estudos clássicos e que atualmente é sede da Sociedade Brasileira de Platonistas. Aí se publica uma revista de história e filosofia antigas, o Boletim do CPA72. Um grupo de especialistas em filosofia antiga desenvolve suas pesquisas na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, outro na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde o Programa de Estudos em Filosofia Antiga (PRAGMA) a revista Kleos73. Os dois primeiros centros criaram o Grupo de Pesquisa sobre as Sociedades Antigas (GIPSA), que realiza, periodicamente, seminários avançados de alto nível acadêmico. Na cidade de São Paulo, além da Universidade de São Paulo e a suas pesquisas já tradicionais sobre Aristóteles e o ceticismo antigo, coloca-se em evidência a Pontifícia Universidade Católica, com seu Centro de Estudos da Antiguidade Grecoromana, concentrado especialmente nos estudos platônicos, e que publica uma revista especializada, a Hypnos74. Por sua vez, a Universidade de São Paulo, em colaboração com a Universidade de Campinas, criou recentemente uma nova revista eletrônica: a Revista de Filosofia Antiga.75 Outra Universidade que vem se destacando no âmbito dos estudos platônicos é a PUC-Rio. Fora do eixo Rio-São Paulo-Minas merecem atenção especial os trabalhos desenvolvidos pelas Universidades Federais de Paraíba e Rio Grande do Norte. No que diz respeito ao tipo de pesquisa em filosofia desenvolvida nesses centros, uma das características mais evidentes é a interdisciplinaridade. Este concerto de diferentes disciplinas foi estimulado pela SBEC, Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, que reúne pesquisadores das áreas de filosofia, história, letras e arqueologia do mundo antigo.76 Este fórum de grande representatividade acadêmica, que publica, entre outras coisas, a revista Classica e organiza, a cada dois anos, um congresso nacional, é, de fato, o locus mais significativo desta interdisciplinaridade, mesmo que esta seja uma prática já bastante difundida nas diferentes Universidades, como é o caso dos já citados grupos de pesquisa CPA e GIPSA. Neste contexto, como último a chegar, está sendo gestado, exatamente nos meses finais da confecção deste artigo, o renascido Núcleo de Estudos Clássicos da Universidade de Brasília, que se quer em continuidade Para maiores informações sobre o Centro, cf. http://www.unicamp.br/ifch/cpa. Para o índice da revista, cf. http://www.ifcs.ufrj.br/pragma/kleos. 74 Para maiores informações sobre a revista, aconselha-se visitar o site do Instituto Hypnos: http://www.hypnos.org.br. 75 www.filosofiaantiga.com. 76 Para informações sobre as atividades e a agenda da Sociedade, cf. http://classica.org.br. 72 73

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A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

com uma tradição de estudos clássicos no Planalto Central já tradicional, e que teve no Prof. Eudoro de Souza e no Centro de Estudos Clássicos, sua máxima expressão. A relação nem sempre cordial, com o perdão de Sérgio Buarque, entre uma leitura de base analítica e uma aproximação mais clássica da literatura filosófica antiga, é uma outra característica do ambiente brasileiro, e constitui a versão tupiniquim de uma querelle metodológica de sabor muito europeu e de estilo inconfundivelmente anglosaxão. Importada, tal querelle resulta freqüentemente “artificial” por ser “aplicada” sobre uma realidade acadêmica de norma muito mais gaia (no sentido estritamente nietzschiano) e generosa no diálogo. Historicamente a filosofia era coisa de padres e freiras (poucas), e, portanto, é ainda, mesmo a filosofia antiga, muito cultivada no interior de instituições católicas e mesmo cristãs em geral. A pesquisa e o ensino, nestes ambientes, movem-se à vontade pela hermenêutica e de mãos dadas com a metafísica. Estas “escolas” foram responsáveis por introduzir, até recentemente, obras filosóficas de grande interesse editorial. Puderam, inclusive, atingir um público não-especializado, por mais que, com muita freqüência, tenham terminado por se orientar por temáticas ligadas quase exclusivamente a esta lectio específica. Uma última característica da filosofia antiga no Brasil revela-se na dificuldade de encontrar docentes especializados. Na falta dessa especialização, ou, pelo menos, na medida em que seria necessária e desejável, não é raro que a um docente pesquisador da obra de Heidegger seja confiado um curso sobre pré-socráticos. No último Simpósio Nacional de Filosofia Antiga, em Itatiaia, Rio de Janeiro, ocorrido em 2000, notou-se que mais da metade dos palestrantes eram originários de outras áreas da filosofia, e, portanto, de alguma forma, somente “de passagem” entre os temas e os autores do momento histórico em questão. Nesse sentido, ensejando, desde já, alguma avaliação preliminar, pode-se dizer que o desafio talvez mais importante para os próximos anos seja a da formação de uma geração de pesquisadores e docentes especializados em filosofia antiga. Para tanto, é recomendável manter e estender a mais alta competência filológica e histórica, necessária ao diálogo autônomo com os textos da tradição antiga. Neste sentido, o desenvolvimento de programas de pesquisa específicos e a introdução obrigatória do estudo dos idiomas antigos nos cursos de graduação em filosofia parecem-me condições indispensáveis para a profissionalização do professor de filosofia antiga no Brasil. No plano editorial encontramos outro grande desafio para o futuro. Para além do eterno problema da dificuldade em publicar obras originais, problema que não é só da área de antiga, há também aquele da publicação de traduções para o português de textos da Antiguidade clássica. A existência de boas traduções parece-me uma condição fundamental para que jovens candidatos à pesquisa e à docência possam ter 83

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acesso aos textos antigos: acesso àquela primeira e inesquecível leitura do Banquete ou da Carta a Meneceu que possa fazer “sentir” a vontade de continuar esta leitura dos antigos, sem mais parar. Outra demanda urgente é a afirmação de um estilo próprio à comunidade filosófica brasileira. Trata-se de construir uma tradição, uma escola, que defina, de maneira autóctone, uma campo particular de problemas que singularize os estudiosos brasileiros no interior da agorá global dos estudos em filosofia antiga hoje. Os centros de pesquisa e as revistas especializadas acima indicados mostram-se como tímidas tentativas de consolidação de estudos, autores e problemas. Tentativas que encontram enormes dificuldades, tanto do ponto de vista da competição com outras áreas de filosofia, como da obtenção de fundos para pesquisa e apoio institucional. Esse breve excursus sobre a situação da filosofia antiga no Brasil fez-se necessário, pelo menos do ponto de vista de um professor de história da filosofia, para contextualizar as reflexões e as propostas a seguir. Elas podem ser reduzidas a uma idéia fundamental, que é também o motivo central de minha presença nos “corredores” da educação e da didática: a solução de algumas das questões relativas à filosofia antiga em nossa terra pode emergir exatamente de uma reflexão e de uma definição de rumos elaborada, vivenciada em seu ensino.

A crise no ensino da história da filosofia antiga Pelos motivos que irei desenvolver a seguir, o ensino da filosofia antiga, ou em sentido mais amplo, o ensino dos grandes clássicos da filosofia, apresenta-se no Brasil, histórica e teoreticamente, como o aspecto mais saliente de sua crise, que se expressa na ambigüidade de dois significados do próprio termo, isto é como pedra de tropeço e como trampolim. Admiti-la é abrir novas possibilidades para a filosofia antiga hoje. O destino da filosofia antiga no Brasil depende também da concepção que a traditio filosófica assumiu por aqui. Por conta, especialmente, de uma certa “dependência” de uma matriz filosófica (e de ensino da filosofia) amadurecida em ambiente francês, onde se formaram muitos dos principais filósofos, docentes e pesquisadores brasileiros, a filosofia é fundamentalmente pensada como disciplina crítica e essencial à formação do cidadão. Basta aqui nos referirmos historicamente às Instruções Ministeriais de Anatole de Monzie (1925)77. Se é verdade que uma acepção fortemente política da necessidade da filosofia para o desenvolvimento da capacidade crítica do cidadão encontra fácil consenso no interior de uma autodefinição comum da disciplina e de seu ensino, essa mesma acepção põe porém tende a excluir ou instrumentalizar a “história

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 f. “Programme d’enseignement de la philosophie en classe terminale des séries générales”, Bulletin officiel du Ministère de C l’éducation nationale et du Ministère de la recherche, n° 28, du 12 juillet 2001 (www.education.gouv.fr/bo/2001/28/encarta.htm).

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A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

da filosofia”. Mais do que propriamente ser um problema teorético da tradição francesa, há um risco ligado sobretudo a uma compreensão da filosofia se poderia se chamar de cotidiana ou de sala de aula da filosofia em sua prática didático-pedagógica,. O risco existe, dentro de todas as salas de aula de filosofia no Brasil: é o de colocar de lado a história da filosofia, por não compreendê-la como bagagem essencial ao pensamento crítico e margem, ou binário, ou corrente disciplinar (no sentido foucaultiano) sobre o qual surfar mais ou menos livremente com as idéias. Ou sua “certidão de nascimento” – como diz Kohan (2003: 22). Não é o caso, neste momento, de explorar em detalhes aquela que pode ser considerada como a outra concepção, aquela historicista (de matriz gentiliana, por exemplo) e mostrar sua especial contribuição ao pensamento crítico. O risco seria o de reproduzir uma querelle que ninguém tem intenção de propor hoje em dia, e que seria excessiva no interior da economia deste ensaio. O que as breves anotações acima procuram mostrar é que a concepção da filosofia e de seu ensino no Brasil não favoreceu historicamente o desenvolvimento e a centralidade da componente histórica da mesma. Por outro lado, a história da filosofia, e especialmente a história da filosofia antiga e medieval, não foi vista, por aqui, como um tema “tradicional”. Isso se deve, provavelmente, à dificuldade de pensar a filosofia como uma disciplina dotada de um percurso histórico específico, de uma tradição, da mesma maneira como outras disciplinas tais que a história geral, a história da arte, a história das ciências etc. O desenvolvimento do pensamento ocidental, mesmo que permeie profundamente as outras disciplinas, não é tematizado como tal, “disciplinado” no interior de um percurso didático específico. No ensino médio, Platão e Descartes não são em geral percebidos, do ponto de vista do currículo, como obrigatórios, da mesma maneira como Carlos Magno, Rafael ou Planck. Essa “falha” didática constitui, para o mundo filosófico brasileiro, uma ausência de herança muito significativa para a compreensão, em perspectiva, da situação da filosofia antiga no Brasil. Ao mesmo tempo, porém, a crise apontada acima pode se revelar como lugar de novas possibilidades. Nesse sentido, não resisto à tentação de deixar aqui o testemunho pessoal, de um docente de origem e formação européia que se vê, por assim dizer, transplantado in terra brasilis. Na primeira a vez que lecionei na disciplina de História da Filosofia Antiga, na própria aula inaugural, logo me dei conta de uma situação que era para mim ao mesmo tempo inédita e estimulante. Na minha frente havia um auditório que não somente, em sua grande maioria, jamais estudara filosofia, mas que também nem sequer reconhecia imediatamente a relevância daquelas idéias que tinham constituído para mim, desde sempre, ao lado da tradição judaico-cristã, um eixo fundamental de minha visão do mundo e formação humana. Assim, encontrei-me, talvez pela primeira vez, na situação inesperada de ter que “dar razão de minha fé”, por assim dizer: de 85

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ter que provar “em campo”, por exemplo, as relações entre a relevância e a conexão profunda da concepção ontológica heraclitiana e estruturação da visão do mundo de pessoas que moram numa metrópole contemporânea (onde tudo corre, literalmente). A fatiga de “dizer-se de novo”, de procurar as motivações históricas, políticas e culturais de minha escolha pela filosofia antiga, foi, pelo menos até agora, amplamente premiada pelo sucesso do resultado: o de ver os olhos maravilhados de alunos e alunas ante os primeiros passos incertos e entusiásticos da filosofia grega. O que quero dizer é que, pelo fato da história da filosofia antiga não ser uma velha história, ouvida desde sempre, isso abre, a partir desta margem do mar em que nos encontramos, a possibilidade de que tal história venha a ser reescrita e reinventada em seus significados, como uma tradição ao mesmo tempo antiga e nova. Penso nessa reinvenção do lugar dos clássicos à luz da metáfora, já citada, do Carnaval. Os estudiosos do fenômeno carnavalesco costumam ralacioná-lo com o processo antropológico da marronização, do sincretismo mais profundo (Canevacci, 1996). Parece-me que o mesmo pode acontecer (e já, de alguma forma, está acontecendo) no ensino da filosofia antiga: uma assimilação e metabolização, da traditio antiqua caracterizadas por uma grande liberdade de composição e estupenda generosidade na encenação. Nesse caso, o Brasil mostra-se como um grande (o espaço, de novo!) laboratório dos novos tempos globais. Esse mix, esse sincretismo, é um movimento típico da globalização. Poderia ser, igualmente, um dos sinais de uma filosofia em tempos de globalização. Uma das características mais marcantes da globalização, de qualquer forma que seja considerada, e de maneira especial do ponto de vista cultural, é a da multidirecionalidade. Já dizia Canevacci (1996: 21): “o processo da globalização não é simplesmente um processo em que a cultura indígena é modernizada, mas também um processo em que a modernidade é indigenizada”. O trabalho de seleção, combinação, modificação das idéias, dos símbolos, dos valores, que ocupa cotidianamente as gerações globalizadas, não acontece numa via de mão única, ou em sentido exclusivamente homologador ou entrópico, do centro para a periferia; ao contrario um modelo mais elaborado de análise antropológica e sociológica (mas também econômica e política) permite-nos descobrir as muitas estratégias de recombinação que colocam em discussão o modelo centro-periferia, evidenciando movimentos periféricos no centro e centrais na periferia do mundo. Em virtude dessa multidirecionalidade e da autonomia de seleção da periferia que dela deriva, pode acontecer que o fr. 1 DK de Anaximandro seja lido, aqui, não somente à luz da ontologia milésima, da cosmologia ou antropologia de matriz órficodionisíaca, mas também por meio das tradições extremo-orientais, sempre na moda em nossos dias, ou ainda mediante uma visão do mundo dita “sem culpa” das tradições 86

A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL

indígenas e afro-brasileiras. Nesse sentido, é de grande interesse didático a tentativa de criar alquimias, no interior de percursos estruturados em filosofia antiga, entre elementos sincrônicos (o pensamento de diferentes autores sobre o mesmo tema) e elementos diacrônicos (que possam evidenciar o desenvolvimento das argumentações e dos problemas principais). O estudo da filosofia antiga, em nossos tempos globais, não é mais um templo inviolável, e talvez, sobretudo nestas margens, nunca tenha sido pensado nestes termos. Trata-se de um canteiro de obras – conforme a celebre expressão de Canguilhem – onde tudo pode acontecer, e onde diferentes materiais são cimentados numa estrutura que é o resultado de diferentes intenções e operações, mais ou menos especializadas. A partir de nosso ponto de observação – que considero altamente privilegiado, pelas razões há pouco expressas – o ensino da filosofia antiga em tempos de globalização compreende a necessidade de “provar” às outras tradições, aos outros saberes antigos e novos, a relevância da aventura da philosophía em seus começos. Isso é claro mediante um diálogo transcultural sem pretensões de absolutismo, no interior do qual a cosmologia grega antiga, por exemplo, possa postar-se em pé de igualdade com outras tradições cosmológicas. Proponho assim acelerar o processo de defenestração da filosofia antiga do templo; templo em que muitas vezes encontrou refúgio e de que traz sempre um injusto cheiro de mofo e sacrifício queimado. Caso contrário, a filosofia como tal, e a filosofia antiga de maneira especial, corre hoje um risco bem mais grave: o de uma possível cumplicidade com um projeto de globalização que, em seus traços mais marcantes e dolorosos, continua profundamente imperialista e colonizador: impondo com seu neoliberalismo um mercado e um pensamento único, cujos corredores bloqueiam de fato o livre trânsito de produtos e idéias. É esse outro lado da globalização que se respira nessa nossa outra margem do mundo. Além disso, esse projeto foi, em parte, sustentado, no passado e ainda hoje, pelas pretensões absolutistas de uma cultura ocidental européia que deita suas raízes exatamente no período clássico. O processo de metabolismo aqui configurado como assimilação sincrética e “marronização” (mas se podia dizer também carnavalização) parece-me uma das possibilidades para se fazer reviver a filosofia antiga em tempos globalizados e nos lugares periféricos de nosso mundo. É assim que ouso imaginar a filosofia antiga no futuro global: sua beleza e originalidade estarão exatamente na coragem de perder-se no diálogo com outras sabedorias, para, em seguida, reencontrar-se nova e rejuvenescida. Reencontrar-se também antiga como as coisas mais queridas, como os objetos longamente usados, de brechtiana memória. Antiga por seu uso, e não por ter sido guardada atrás de um vidro, para que não se quebre ou tome pó. Em suma, eis a minha receita para os novos tempos globalizados: que a filosofia 87

Gabriele Cornelli

antiga tome pó, que seja exposta aos novos ventos, encontre seu lugar nas encruzilhadas das culturas de nosso tempo. Se ela for mesmo tudo isso que acreditamos, não será quebrada, muito pelo contrário.

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Cultura material e tradição literária nos livros didáticos: a criação do mito espartano Maria Aparecida de Oliveira Silva78 (FFLCH/USP)

Produção acadêmica e livros didáticos Em uma breve busca nas prateleiras das bibliotecas universitárias, reservadas aos livros especializados em História Antiga, percebemos a presença marcante de obras relacionadas ao período clássico ateniense. Poucos livros tratam da história espartana, em geral, o que encontramos sobre Esparta são um ou dois capítulos em obras destinadas à história grega. Assim, vemos que o ponto de partida para o desconhecimento da história de Esparta está na Universidade, responsável não somente pela formação de pesquisadores, mas também de professores dos ensinos fundamental e médio das escolas públicas e privadas. No quadro acadêmico, notamos que as dissertações e teses relativas ao mundo grego centram-se na narrativa da história ateniense. Felizmente, a vitória espartana na guerra do Peloponeso impele os autores a relatar alguns episódios mais conhecidos sobre a cidade lacedemônia. Portanto, na linha cronológica dos acontecimentos históricos em Atenas, Esparta surge como um elemento constitutivo do mundo ateniense, uma vez que suplantou belicamente a cidade ateniense impondo seu regime político e cooptando seus aliados. Raros os pesquisadores que dedicam suas reflexões apenas à história espartana, fato que pode ser constatado ainda na historiografia estrangeira79. No caso dos historiadores europeus, há a explicação de que Adolf Hitler balizou sua política eugênica e militarista no modelo estatal espartano, como destaca Elizabeth Rawson (1991, p. 306-343), causando preconceitos contra a história de Esparta, e resultando no desenvolvimento dos estudos sobre Atenas como contraponto ao pensamento nazista. O estudo de Cristina Cobertta (1979, p. 80-81) demonstra o papel da historiografia alemã na idealização de Esparta e na reafirmação das idéias propagadas pelo III Reich, citando autores como Busolt, Burckhardt, Wade-Gery, Berve, entre outros. Então, o que enxergarmos é um abismo historiográfico entre os anos 50 e 70, nos quais os estudos sobre Esparta são rarefeitos, havendo uma retomada mais significativa no início da década de 80. No contexto brasileiro, podemos avaliar a quase ausência de estudos sobre Esparta como um reflexo de nosso incipiente caminhar 78

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Doutoranda em História Social pelo Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Bolsista do PDEE/ CAPES. Dos poucos autores brasileiros que publicaram artigos e livros sobre a história espartana, podemos citar as obras de Jose Francisco de Moura, destacamos aqui o seu livro: Imagens de Esparta. Xenofonte e a Ideologia Oligárquica. Rio de Janeiro: Fábrica de Livros, 2000; alguns artigos publicados por Maria Aparecida de Oliveira Silva e seu livro Plutarco historiador: análise das biografias espartanas. São Paulo: Edusp, 2006. No mais, há artigos publicados sobre a cidade por alguns pesquisadores que têm o estudo da cidade ateniense como foco principal.

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nos estudos clássicos, bem como resultado da influência da historiografia européia em nossa produção acadêmica. Em pequena quantidade também são as páginas voltadas para a história espartana nos livros didáticos. Nesse universo, os autores repetem exaustivamente a visão das fontes do período clássico, que ressaltam o arcaísmo das instituições espartanas e sua preferência pela vida simples e militar. A bibliografia citada reduz-se a manuais de história grega, cujas informações não se distanciam das fontes atenienses dos V e IV séculos antes de Cristo, que constroem uma visão mítica de Esparta, na qual seus cidadãos renunciariam sua vida privada em prol do bem estar público80. Quanto à cultura material espartana, os livros didáticos ignoram seus achados arqueológicos e, no máximo, reproduzem um busto identificado como sendo de Leônidas. É visível a predileção dos escritores de livros didáticos pela história ateniense, basta ao leitor volver as folhas de um desses livros para perceber o grande número de páginas dedicado à narrativa da história de Atenas. Em sua grande maioria, esses autores destacam os fatos ocorridos no conhecido “Século de Péricles”, atribuindo à cidade ateniense valores enaltecedores como a adoção de regime democrático e o grande desenvolvimento artístico e literário do quinto século antes de Cristo. Nesse sentido, tanto as fontes materiais quanto as literárias disponíveis contribuem sobremaneira para essas interpretações. No entanto, no meio acadêmico, é consenso de que a democracia ateniense também é fruto de idealização dos historiadores europeus (sobre as contradições da tradição cultural européia em sua elaboração do passado greco-romano ver GUARINELLO, 1994/5, p. 271). A nosso ver, alguns pontos obstaculizam a escrita da história espartana, em primeiro lugar, com exceção de algumas poucas fontes, sua história está embasada em narrativas produzidas por atenienses do período clássico ou por fontes tardias, como é o caso de Plutarco. Outro problema que se apresenta para uma interpretação mais equânime das histórias de Atenas e de Esparta é a escassez de vestígios materiais espartanos, em particular da época clássica. Somada a essas observações, há a propensão dos historiadores da Antigüidade em repisar os caminhos traçados pela historiografia tradicional, evitando questionamentos seja pela falta de uma visão crítica ou pela pressa em publicar suas obras.

Cultura material Ainda que vítima de bombardeios e de constantes saques, a riqueza de monumentos e de testemunhos arqueológicos em Atenas contrasta com o percebido na cidade espartana. Por um lado, na cidade ateniense, o Pártenon, a Acrópole, santuários, monumentos e teatros espelham a grandiosidade de sua arquitetura e de seu poder 80

 er, por exemplo, Pierre Ducrey, Guerre et guerriers dans la Grèce antique. Friburg: Office du Livre, 1985 e Pierre Russel, Sparte. V Paris: Éditions E. de Boccard, 1960.

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econômico. No bairro do Cerâmico, com seu imponente cemitério, vemos estelas, vasos e artefatos feitos em diferentes materiais, agregando-se ao visto na paisagem arquitetônica ateniense. Por outro lado, em Esparta, na planície do rio do Eurotas, encontramos apenas ruínas de dois santuários, um ofertado à deusa Atena Calcíeco e outro à Ártemis Órtia. Na região do vale do monte Taígeto resta apenas uma verde área cercada por construções modernas, arbustos e oliveiras. Somente nas proximidades da denominada Ágora espartana podemos visualizar seus vestígios e um grande teatro, ambos pertencentes ao período romano. A dissimilitude existente entre os achados arqueológicos atenienses e espartanos pode ser percebida ainda nos museus da Grécia. No Museu de Esparta e no Museu Nacional, este último situado na cidade de Atenas, os achados arqueológicos pertencentes à cidade lacedemônia são exíguos, se comparadas às peças provenientes da cidade ateniense. No Museu de Esparta, os testemunhos materiais são, em maior número, provenientes do santuário da deusa caçadora, as peças encontradas estão datadas entre o sétimo e o sexto séculos antes de Cristo. Do santuário dedicado à deusa Atena Calcíeco temos estatuetas em bronze e em terracota, vasos votivos e fragmentos de cerâmicas. Já do santuário de Ártemis Órtia são provenientes diversas máscaras votivas em terracota, estatuetas em bronze, há ainda pequenos relevos de animais, em especial de cavalos; peças ornamentais desenhadas em mármore e marfim. Próximo ao santuário de Ártemis, às margens do rio Eurotas, foi encontrado um cemitério de guerreiros espartanos, informação adquirida por intermédio do achado de estelas funerárias e de um grande vaso, com representações de guerreiros, datados do sétimo século antes de Cristo. No Museu Nacional de Atenas, encontramos somente achados provenientes do santuário de Ártemis Órtia. Nos grandes corredores do Museu há apenas um diminuto espaço reservado a pequenas peças provenientes do santuário da irmã gêmea de Apolo. Os artefatos, todos em marfim, são representações de prováveis divindades ou de basileus, de uma embarcação repleta de soldados espartanos; também foram encontrados elmos, armamentos, objetos ornamentais com cenas do quotidiano e de animais, como cavalos, tartarugas, serpentes, águias, leões, etc. Há ainda peças de uso pessoal feminino como pentes, espátulas, fíbulas e broches. Ao contrário de Atenas, cuja cultura material abrange vários séculos de sua história, cidade de Esparta nos apresenta objetos relativos a seus períodos arcaico e romano. Assim, há um vazio material entre a época arcaica e o período da dominação romana, aumentando o grau de dificuldade para os intérpretes da história espartana. Da época romana provêm estátuas, bustos, vasos, relevos, representações náuticas, moedas, lamparinas, peças ornamentais, que podem ser vistas no Museu de Esparta. Apesar de os romanos terem atingido tardiamente a cidade de Esparta, das três salas que compõem o Museu de Esparta, uma e a metade de outra estão reservadas ao período romano. Na 93

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paisagem espartana, como já foi dito, avistamos um grande espaço com colunas, sinais de habitações e comércios, que pode ser identificado como Ágora, além do teatro romano. Em suma, a disparidade entre a cultura material remanescente de Esparta e a de Atenas aliada a sua falta de divulgação atendem pelo desinteresse dos historiadores com relação aos achados espartanos no momento da escrita da história dessa cidade.

Tradição literária Na literatura grega, as referências à cidade de Esparta aparecem, principalmente no período clássico da Grécia. Embora a poesia épica de Homero já nos traga informações esparsas sobre essa cidade, de seus cantos pode-se depreender que o poder girava em torno do rei Agamêmnon, ou seja, da cidade de Argos. Em sua descrição sobre a composição do exército grego, Homero relata que: Os que moravam no vale escavado de Lacedemônia, dentro de Esparta, de Fáride e Messa, cidade de pombas; os habitantes, também, de Brisias e Augias amena, e os que em Amicla demoram e em Helo, cidade marítima, bem como os homens de Etilo e os que os muros de Laia habitavam, trá-los o irmão de Agamémnone, o herói Menelau de voz forte, dentro das naves sessenta; a departe eles todos se armavam. [...] vieram de Pilos os guerreiros, bem como os de Arena agradável [...] Pejadas se achavam de ousados guerreiros, Homens da Arcádia eles todos, famosos no ofício da guerra. (Ilíada, Canto II, vv. 581-611) Notamos que não há, em Homero, a existência de um exército espartano poderoso, conforme narrado nas fontes do século V a.C., Homero destaca os árcades como guerreiros exemplares. Quanto ao rei de Esparta, Menelau, ele nos é apresentado como um amante da guerra, não como um guerreiro. Nos versos que seguem, percebemos a sutil nomeação homérica para o rei espartano: Logo que o viu Menelau, o guerreiro discípulo de Ares, como avançava com passo arrogante na frente do exército, muito exultante ficou, como leão esfaimado que encontra um cervo morto, de pontas de galho, ou uma cabra selvagem; avidamente o devora, ainda mesmo que cães mui ligeiros lhes venham no encalço e pastores de aspecto robusto: dessa maneira, exultou Menelau quando viu Paris, o belo (Ilíada, Canto III, vv. 21-28) 94

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Para exemplificar melhor o nosso raciocínio, citamos algumas passagens em que, por três vezes, ocorre a repetição do epíteto; no canto III, o epíteto se repete no verso 136, nas palavras do rei Príamo o rei espartano é “o herói Menelau, de Ares forte discípulo”. Helena o repete no verso 206: “do herói Menelau, de Ares forte discípulo”. E Páris, no verso 339, o chama de “Menelau, de Ares forte discípulo”. No canto IV, o epíteto reaparece na fala da deusa Hera no verso 19 “e volte Helena ao poder do discípulo de Ares potente”. Ainda, no mesmo canto, a deusa Atena o nomeia “filho de Atreu, Menelau, de Ares forte discípulo”. É interessante destacar que Heitor é chamado de “semelhante a Ares potente” no canto VIII, vv. 215-216, ou seja, para Homero, Menelau era um seguidor do deus Ares e não um valente guerreiro como ele, tal papel cabia a Heitor. Distante da penúria material espartana exibida pelas fontes do séc. V a.C., na Odisséia (Canto I, vv. 285-286), Homero descreve a opulência do palácio de Menelau: para as banheiras polidas subiram, porque se banhassem, onde zelosas escravas os lavam e esfregam com óleo, mantos lanosos e túnicas sobre as espáduas lhes pondo. Sentam-se ao lado do Rei Menelau, em cadeiras lavradas. Água lustral lhes ministra a criada, num jarro gracioso, de ouro, deixando-a cair sobre as mãos em bacia de prata, pondo diante de dois, a seguir, uma mesa polida. A despenseira zelosa aparece, que pão lhes reparte, Como, também, provisões abundantes, que dá prazenteira. Vem, a seguir, o trinchante, trazendo nas mãos a travessa Com muita carne, e de todos ao lado áureos copos coloca. (Odisséia, Canto IV, vv. 49-59) A origem de tanta riqueza está no canto III, versos 311-312, Homero relata que Menelau trouxera muitas riquezas da guerra travada contra os troianos: No mesmo dia chegou Menelau, de voz forte na guerra, Tão opulento de bens quanto as naus comportavam de carga. É interessante perceber que Tucídides também faz menção à riqueza adquirida após a vitória grega sobre Tróia, estendendo suas proporções à cidade ateniense: os atenienses colonizaram a Iônia e a maior parte das ilhas; os peloponésios, a maior parte da Sicília, além de algumas regiões do resto da Hélade; todas estas colônias foram fundadas após a guerra de Tróia. (I, 12) Sabemos que, para a fundação de novas colônias, era preciso construir embarcações, dispor de homens e de armamentos, o que envolvia uma soma considerável de dinheiro, e, segundo a explicação tucididiana, tal feito se fez possível com as riquezas amealhadas em Tróia. Heródoto, por sua vez, nos fala de uma época em que Esparta estava desor95

Maria Aparecida de Oliveira Silva

ganizada, afirmando que Licurgo fora o responsável pela instituição de leis benéficas à sua sociedade: Com efeito, durante o reinado de Leon e Hegesicles em Esparta os lacedemônios foram vitoriosos em suas outras guerras, e somente tinham tido problemas contra Tegea. Ademais, antes disso seu governo era o pior de praticamente toda a Hélade, sendo más as relações entre os próprios lacedemônios e os alienígenas. Naquela ocasião eles mudaram suas leis para melhor; Licurgos, um espartano notável, foi consultar o oráculo de Delfos, e quando entrou no vestíbulo do templo a Pítia lhe disse imediatamente o seguinte:

“Eis-te em meu templo cheio de riquezas, Licurgos,



tu, caro a Zeus e aos deuses todos que residem



no Olimpos. Chamar-te-ei deus ou homem, Licurgos?



Hesito, mas tu te pareces mais com um deus.”

Algumas pessoas dizem que a Pítia também lhe delineou toda a organização ainda hoje, vigente para os espartanos; mas, segundo dizem os próprios lacedemônios, Licurgo trouxe de Creta essas modificações quando se tornou tutor de Leobotes, seu sobrinho, rei de Esparta. Imediatamente após passar a desempenhar essa função ele mudou todas as instituições e teve o cuidado de evitar qualquer transgressão às mesmas; em seguida ele se ocupou especialmente das normas relacionadas com a guerra, das enomotias, das triecadas e das sissitias, e além disso dos éforos e do Conselho dos Anciãos. (I, 65) A imagem de Licurgo como legislador eficiente reafirma-se em Xenofonte (Constituição dos Lacedemônios, I, 2) e ainda pode ser observada em Estrabão (Geografia, VIII, 5, 5). Para essas fontes, as leis licúrgicas foram decisivas para a reestruturação social espartana. Plutarco estimou em cinco séculos o tempo de vida da Esparta de Licurgo. De acordo com a fonte, durante o período em que a cidade permaneceu regida pelas leis licúrgicas, ela se mantém a primeira pólis da Grécia: Então, Licurgo não estava errado ao pensar que a cidade seria a primeira da Hélade e de boa ordem e glória, enquanto mantivesse as leis. Por quinhentos anos Esparta tirou proveito das leis licúrgicas. Nenhum dos catorze reis ulteriores a Licurgo alterou seus preceitos (Licurgo, XXIX, 6)81. Nas palavras do filósofo ateniense, Platão, Licurgo instituiu leis transformadoras da ordem social, como relatou na República, ao ironizar a experiência administrativa de Homero: Meu caro Homero [...] diz-nos que cidade foi, graças a ti, melhor administrada, como sucedeu, com a Lacedemônia, graças a Licurgo, e com muitas outras cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? (República, 599 d-e).

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Tradução da autora.

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Por outro lado, para Aristóteles, Licurgo equivocou-se na educação das mulheres (Política, II, 6, 5), na distribuição da propriedade (II, 6, 10), no controle da natalidade (II, 6, 12), na instituição dos éforos (II, 6, 14) e na cobrança de impostos (II, 6, 23). Diante desses enganos, o legislador espartano é visto de maneira diferenciada pelo filósofo estagirita. Igualmente, Políbio analisou que as leis licúrgicas foram bem elaboradas (História, VI, 10, 1), mas constatou que eram circunscritas à política interna, que a falha de Licurgo foi ter estabelecido suas leis sem ter pensado na política de expansão territorial, como vemos na seguinte passagem: Licurgos garantiu a segurança constante de todo o território da Lacônia, e deixou aos próprios espartanos um legado duradouro de liberdade. Mas, quanto à anexação de territórios vizinhos, à supremacia na Hélade, e de um modo geral quanto a uma política exterior expansionista, aparentemente ele nada previu nesse sentido, seja em leis avulsas, seja no conjunto da constituição do Estado. Ficou faltando, portanto, após haver habituado os cidadãos à simplicidade e à frugalidade em sua vida privada, submetê-los a uma disciplina inspirada em princípios tais que a conduta política da coletividade se pautasse pela mesma noção de auto-suficiência e moderação. Entretanto, se ele os moldou para serem o povo mais sem ambicão e mais sensato na vida privada e em relação às instituições de sua cidade, deixou-os serem mais ávidos de glória, mais dominadores e mais ambiciosos que quaisquer outros diante dos demais helenos. (VI, 48) Desse modo, em presença das contradições existentes entre o relatado pelas fontes literárias e o exibido pelos achados arqueológicos em Esparta, modernistas e primitivistas deitam seus olhares de maneira diferenciada sobre sua história. Os primeiros descrevem a Esparta do século VIII a.C. inserida em um ambiente de grande desenvolvimento artístico, comercial e industrial (GLOTZ, 1926, p. 347), ou seja, uma cidade rica que se posiciona na vanguarda cultural do mundo grego (ROSTOVTZEFF, 1986, p. 92). Para os primitivistas, no final do século VIII a.C., a cidade é abatida por uma crise agrária responsável pela intensa corrente colonizadora no sul da península itálica (OLLIER, 1933, p. 16). No princípio do século VII a.C., ainda sem solução definitiva para o problema da falta de terras para seus cidadãos, a cidade encontra a solução para seu problema agrário na invasão do território messênio (HUXLEY, 1962, p. 65).

Conclusões A comparação das informações contidas nas fontes materiais e nas escritas sobre a cidade de Esparta nos conduz a dúvidas na interpretação de sua história. De um lado, as fontes escritas nos remetem a costumes espartanos estranhos ao mundo helênico, hábitos reconhecidamente arcaicos; de outro lado, as fontes materiais nos 97

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reportam ao conhecimento espartano de técnicas apuradas, principalmente na metalurgia. Os desencontros dessas informações fomentam o amplo debate entre primitivistas e modernistas acerca da natureza da organização social em Esparta. Os primitivistas encontram nas fontes escritas, em especial na obra de Plutarco, dados que confirmam o arcaísmo de suas instituições. Enquanto, os modernistas, apoiados na cultura material de Esparta, sustentam a tese de que a cidade desenvolveu práticas comerciais e artísticas em seu período arcaico, no entanto, foi obrigada a renunciar tais avanços para manter a Messênia subjugada. Em suma, a história de Esparta representa uma incógnita a ser desvendada, pois as fontes literárias retratam uma cidade eminentemente guerreira, ao passo que os objetos arqueológicos encontrados na cidade apontam para uma sociedade com características guerreiras, mas voltada para o desenvolvimento do artesanato, da cerâmica, da dança e da música. O descompasso entre a cultura material espartana e o relatado pelas fontes coloca em evidência os limites da ciência histórica, e questiona ainda o isolamento de historiadores que não interagem com as outras áreas do conhecimento, em particular a Arqueologia82.

Agradecimentos Agradeço o apoio institucional da CAPES, que me outorgou a bolsa PDEE/CAPES, para desenvolver minha pesquisa na École française de Rome. Sou grata ainda ao Prof. Dr. Yann Rivière, meu co-orientador no Programa de Doutoramento com Estágio no Exterior, o qual me concedeu autorização para usufruir as instalações da École française d’Athènes, o que me permitiu visitar os museus e os sítios arqueológicos citados neste capítulo.

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A obra de Pavel Oliva constitui uma exceção no estudo da história de Esparta, pois foi o único autor consultado a exibir em seu livro os achados dos santuários de Atena Calcieco e de Ártemis Órtia.

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Parte II Tradição Clássica e Sociedade

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Percepções Étnicas e a Construção do Passado Brasileiro André Leonardo Chevitarese (/UFRJ) Rogério José de Souza (UFRJ) As últimas décadas do século XX foram marcadas por violentos conflitos étnicos (HALL, 2000, p. 1)83. Guerras civis e confrontos entre países vizinhos, disseminados em diferentes pontos do planeta, têm sido lidos como verdadeiras “limpezas étnicas”84. Neste sentido, questões étnicas têm despertado as atenções dos cientistas sociais (PORTIGNAT e STREIFF-FERNART, 1998; OLIVEIRA, 1976), incluindo aqueles interessados em pensá-las em outras realidades históricas, como, por exemplo, na Antigüidade Clássica (HALL, 2000; CARDOSO, 2002, pp. 75-94). Para quem se interessa pelo tema da etnicidade, o período histórico onde ele se situa é o que menos importa, já que o historiador sempre será um agente social do seu próprio tempo presente. A proposta deste capítulo é o de analisar como o conteúdo de História Antiga Grega apresenta uma homogeneização étnica, com forte reforço para uma estética branca, reforçando a visão de um contínuo branco entre nós (os ocidentais brasileiros) e eles (os ocidentais antigos gregos). Como esta noção de alteridade, que pareceria, a priori, polar ou centrada em campos opostos, é na verdade complementar e de pertencimento. A fim de levar a cabo esta análise, será discutida a seguinte questão: o silêncio, ou melhor, a tentativa bem sucedida, de encobrimento do etíope85 do chamado “berço da civilização Ocidental”, entendido aqui especificamente como sinônimo de Antigüidade Grega, pela historiografia contemporânea (SAID, 1990; BERNAL, 1987). De fato, ainda hoje, quando lecionamos conteúdos históricos relacionados à Antigüidade e discutimos a presença do etíope interagindo com gregos na Hélade, é visível a perplexidade de muitos dos alunos diante de tal abordagem. Tem-se a sensação de que estamos falando algo novo, ou melhor, completamente revolucionário. É incrível, e ainda hoje continua nos causando surpresa, o quanto é difícil para os discentes, independentemente de serem negros ou brancos, admitirem a possibilidade de heróis ou mesmo de pessoas simples e comuns, no cotidiano das antigas cidades-Estados gregas, serem negros. O estranho é o fato de eles chegarem à universidade desconhecendo por completo a farta documentação literária, epigráfica e imagética produzida na Antigüidade que fala da presença etíope nas diferentes póleis gregas86. O espantoso  arvalho (2006:49), partindo dos dados disponibilizados por Eric Wolf, observa que no final dos 1980, 75% dos conflitos armados em C cursos no mundo ocorriam entre Estados e suas populações etnicamente identificadas. É no interior deste prisma que tem sido lido os conflitos ocorridos na Bósnia, em Ruanda ou no Iraque. Refiro-me, neste último país, se é que o Iraque ainda pode ser chamado de país, ao problema específico com os curdos. 85 Ao longo deste trabalho, o uso do nome etíope (aithiopes ou aethiopes, literalmente, pessoas de fisionomia queimada) quer significar o ser negro (Snowden Jr, 1996:113). 86 Os interessados poderão encontrar importantes pesquisas relacionadas a esta problemática: Izidoro (2005); Bispo (2006); e Souza (2007). 83

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aqui é a omissão, fruto da ignorância, a qual é a responsável direta por todos os tipos e formas de preconceitos, de pesquisadores de ponta renomados, de autores não tão conhecidos de livros didáticos e de professores universitários que formam futuros professores, quando silenciam ou negligenciam este tema em suas pesquisas, em seus livros, em suas aulas. Pedimos desculpas, como que nos antecipando por uma possível injustiça, motivada, talvez, pela excessiva generalização que será feita, mas, na História, considerando a forma como os currículos são organizados, só cabe ao negro ser escravo. Esta parece ser a sua sina, a sua vocação. Tal é o caso, quando se considera a sua inserção na História do Brasil: é praticamente impossível vê-lo fora desse campo. Poderíamos nos perguntar: porque ocorre esta associação? Porque ela tem haver, em parte, com a forma como são pensados os currículos dos cursos de História? Achamos que as questões acima passam por dois níveis de análise: 1º. De imediato, pela oportuna observação feita pelas historiadoras Theml e Bustamante (2005, pp. 9-16), ao definirem o fio condutor desses currículos. Segundo as pesquisadoras, ele se assenta na premissa de que o primeiro casal que habitou o mundo foi Adão e Eva e que seus filhos foram Cabral e Colombo. Implica dizer, tudo aquilo que se situa entre os pais fundadores e os filhos navegantes não serve para nada, é lixo87, e, como tal, só serve para ser jogado fora. Implica dizer, ou continuamos jogando fora interessantes experiências étnicas, ricas em aprendizados, ou devemos começar a revirar, desde já, nas latas de lixos da História, aquilo que jogamos fora, a fim de reavaliar os nossos horizontes de análise, o nosso próprio tempo presente. 2º. A partir da chegada da família real portuguesa no Brasil em 1808, seguida de desdobramentos, como a criação do império brasileiro, há uma forte necessidade de se construir uma idéia de nação, já que um país chamado Brasil está de pé desde 1500. A criação de algumas importantes instituições, tais como, Academia Imperial de Belas Artes (fundada em 1826), Biblioteca Nacional (fundada em 1810, muito embora só tenha sido franqueada ao público em 1814), Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (fundado em 1838) e Colégio Pedro II (fundada em 1837), fazem parte desse processo. A forma de se ler a História do Brasil passa por uma perspectiva europocêntrica, com Antigüidade Grega, Império Romano, Idade Média e Época Moderna constituindo-se como o passado desta nação. Implica dizer, o passado brasileiro se tornou europeu, sendo sinônimo de uma população branca. Nele não há lugar para índios88 e negros.  á uma interessante convergência de idéias entre a referida observação das duas pesquisadores e a triste constatação feita por H Elaine Pagels (Al ém de Toda a Crença. O Evangelho Desconhecido de Tom é. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004:85) acerca da (infeliz) afirmação do eminente teólogo Raymond Brown. Segundo ele, o que os ortodoxos cristãos rejeitaram foi apenas o lixo do século II EC. Brown ainda fez o seguinte acréscimo: “e que continua (ainda hoje) sendo lixo”. 88 Apesar do indianismo do século XIX, com sua forte ênfase na construção de uma origem mítica e unificadora do indígena (Rocha, 2006:207,214-215), não deve ser perdido de vista que na literatura brasileira da época, (1) esta questão gerava controvérsia entre os intelectuais (Rocha, 2006:205-208); (2) o índio deveria reconhecer a superioridade moral e material do europeu (Ro87

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Salvo no país, onde esses dois grupos são lidos como “não civilizados”, tendo serventia apenas como criados89 e escravos. Esse silêncio sobre os não-europeus, em particular, os núbios, sobretudo nos recortes temporais mencionados acima, é garantido pela força da branquitude. Chamaremos de branquitude esta consciência silenciada ou experiência branca que pode ser definida como “uma forma sócio-histórica de consciência” nascida das relações capitalistas e leis coloniais, hoje compreendidas como “relações emergentes entre grupos dominantes e subordinados”. Essa branquitude como geradora de conflitos raciais demarca concepções ideológicas, práticas sociais e formações culturais, identificadas com (e para) brancos como de ordem “branca” e, por conseqüência, socialmente hegemônica (ROSSATO e GESSER, 2001, p. 11). Trata-se de um ponto de vista, de um lugar a partir do qual as pessoas brancas olham a si mesmas, aos outros e a sociedade. Diz respeito também a um conjunto de práticas culturais que é normalmente não-marcado e não-nomeado, ou nomeado como “universal” ou normativo (FRANKENBERG, 2004, pp. 308-312). Naturalmente, a branquitude, enquanto lugar de poder, articula-se nas instituições acadêmicas e, conseqüentemente, nas produções historiográficas (exemplo que veremos mais adiante)90. A importância de estudos sobre essa “história branca” foi assinalada por Marc Ferro (1983, p. 22) ao ressaltar que embora esta história no Ocidente esteja em retrocesso, permanece bem viva na consciência coletiva. A seu turno, o historiador é tentado muitas vezes a ignorar que toda interpretação histórica depende de um sistema de referências e que esse sistema permanece uma filosofia implícita particular (CERTEAU, 1982, p. 67). Esta última se infiltra no trabalho de análise, organizando-o à sua revelia e remetendo-o à subjetividade do autor com versões acadêmicas de uma racialidade branca. Na historiografia clássica, por exemplo, esta referência, se faria em relação aos principais valores mantidos nas relações entre brancos e os não-brancos: uma hierarquização dos grupos étnicos raciais e, por vezes, uma visão racializada. Consolidou-se um modelo “do ser grego” que, mesmo quando silenciado, teria culminado com a hegemonia de um “tipo social”: o homem branco. Deve-se destacar que a classificação racial, nesse caso, é menos efeito de um “biologismo” do que de características fenotipicas, conjugadas a critérios historicamente construídos relacionados ao negro (ideologia e status social). Nesse sentido, a branquitude manifesta uma clivagem que supõe a exclusão do grupo étnico / racial negro dissonante, cha, 2006:213-214); (3) a política de extermínio de aldeias indígenas continuou sendo uma prática bastante conhecida (Braga, 2006:173-184; Rocha, 2006:210-212). No entanto, apesar de todas as formas de violência historicamente impostas às inúmeras populações indígenas, Rocha (2006:218) chama atenção que no Brasil, antes ser índio que negro. 89 Rocha (2006:212-213) observa que no caso dos meninos e meninas indígenas, eles eram muitas vezes capturados ou simplesmente retirados de suas comunidades e familiares para serem entregues a famílias “brancas”, que os tinham como criados. 90 Sabemos que o conceito de raça não tem qualquer validade biológica. No entanto trata-se de um termo social e politicamente construído potencialmente importante nas relações de opressão e exploração (d`Adesky, 2001).

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principalmente em relação às normas da estética helênica. Deve-se ressaltar que, nesse caso, o ideal anti-racista não é incompatível com esta premissa, o anti-racismo universalista de tipo biomaterilista analisado por André Tagueif, citado por d’Adeski (2001, p. 28), embora reconheça a unidade da espécie humana e considere as identidades especificas como transitórias ou secundárias, reduz o “outro” ao igual, numa perspectiva estritamente assimilacionista, tornando-se incapaz de reconhecer e respeitar a alteridade em si mesma. Ou seja, se nos referirmos as produções intelectuais, assim como ao duplo significado do silêncio no campo de estudos de Antiguidade grega91, esta corresponderia a um anti-racismo assimilacionista. No entanto, a moderna civilização branca e ocidental, fundamentada na tríade Antiga Grécia / Antiga Roma / Europa, continua no topo da pirâmide, pois personifica o grupo étnico racial “civilizado”. Sendo assim, a branquitude seria o “ponto cego” das produções destes intelectuais que, não podendo se ver, não compreendem que o eurocentrismo, tão criticado por diversas correntes da historiografia, encontra respaldo nas suas próprias produções historiográficas. Nossa hipótese é que isso ocorre simplesmente porque a branquitude constitui um dos pontos cegos paradigmáticos da ciência histórica. Refiro-nos a problemas ou questões que os próprios paradigmas, consubstanciados pelos agentes históricos engajados na prática institucional da historiografia, não permitem “ver” ou sequer toleram que sejam vistos. No presente momento, é preciso avançar para um tratamento epistemológico e teórico deste intrigante “ponto cego”, objeto-modelo potencial para uma nova definição da historiografia clássica brasileira, buscando produzir reflexões e indicações conceituais e metodológicas capazes de enriquecer a pesquisa e a prática docente desse campo investigativo. Neste campo de análise, nada mais interessante do que compreender a rica complexidade das relações sociais no interior da pólis ateniense, tida como um dos pilares da “civilização Ocidental”, a possibilidade de se analisar as relações entre indivíduos etnicamente definidos (por nós) como brancos e negros e ver que elas não eram mediadas por pressupostos racistas é fantástico92 (SNOWDEN JR, 1970; BÉRARD, 2000, p. 397 e pp. 406-407). Que excelente oportunidade de se pensar comparativamente dois momentos distintos deste mesmo “Ocidente”: um que pode ser pensado entre a Antigüidade grega até o início do período moderno; e o outro tomado a partir deste último marco até os nossos dias. O primeiro produzindo uma documentação bastante variada, onde a racialização

Muito embora, com Marcus Garvey, há aproximadamente oitenta anos atrás, tenha se iniciado uma História Antiga Afrocentrista, só em décadas recentes os pesquisadores ligados à Antigüidade Clássica têm voltado às suas atenções para esse tipo de produção historiográfica. Muito provavelmente a obra de Martin Bernal (1987) foi a responsável por esse despertar. Vale a pena destacar que há uma década atrás essa referida obra conheceu uma violenta crítica historiográfica (ver: Lefkowitz e Rogers, 1996). 92 Após analisar as imagens dos reis etíopes Ménon e Kepheus e da princesa Andrômaca na cerâmica ática, Bérard observou que heróis e heroínas nunca são representados com traços negroides. Esta característica seria explicada pelo o que ele (2000:402,405,409) chamou de racismo cultural, cujo traço seria mais a sua passividade do que a sua agressividade; mesmo não sendo inofensivo, ele não seria certamente perigoso, nem perverso. Esta espécie de racismo explicaria o porquê de os pintores áticos estabelecerem uma hierarquia bastante precisa, tornando-os incapazes de conceber uma figura heróica de prestígio como portadora de traços ligados à negritude. 91

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parece não ser tão determinante93, enquanto que o segundo momento, também ele rico em documentação, é mediatizado por contornos racializados. I. Em termos de mundo contemporâneo Ocidental, quando se fala de Édipo, logo vem à cabeça dos muitos ouvintes e leitores informações parciais, truncadas e superficiais do chamado “Complexo de Édipo”. Provavelmente, uma minoria deles poderia até relacioná-lo a Sigmund Freud. No entanto, somente alguns poucos ouvintes e leitores seriam capazes de associá-lo à tragédia de Sófocles (Édipo Tirano 977-983). Apesar de não ser objeto do nosso artigo, convém assinalar que tal leitura psicanalítica não teve quase nenhum impacto nos estudos históricos relacionados ao mundo antigo grego (VERNANT, 1988, 77-101). Interessa aqui, no entanto, para efeito de análise do objeto proposto, uma outra passagem desta mesma peça. De imediato, ela será apresentada em grego, de modo que o leitor que conheça a língua de Sófocles possa saber o lugar de onde parte a discussão. Em um certo ponto da tragédia, Édipo, já desconfiado de que ele possa ser o responsável pelos problemas que assolam Tebas, coloca algumas questões para Jocasta, esperando que ela lhe responda. A passagem é a seguinte (Sófocles. Édipo Tirano 740-743): OIDIPOUS (740) mhvpw m’ e*rwvta toVn deV Lavion fuvsin (741) tivn’ ei^rpe fravze, tivna d’ a*kmhVn h@bhς e!cwn. IOKASTH (742) mevlaς (ou mevgaς), cnoavzwn a!rti leukanqeVς kavra. (743) morfh`ς deV th`ς sh`ς ou*k a*pestavtei poluv. Partindo da citação em grego, constata-se uma grande quantidade de traduções. Para efeito demonstrativo, porém, foram selecionadas três delas, das quais, as duas primeiras estão em inglês, enquanto que a última está em português94:

Tradução I95. Oedipus: Do not ask me yet; but tell me about Laius, what he looked like and what stage in manhood he had reached. Iocasta: He was dark, but just beginning to have grizzled hair, and his appearance was not far from yours.

Para uma posição diferente, ver: Isaac, 2004. Para outras traduções em português, ver: Souza, 2007:51-60. 95 Sophocles. Oedipus Tyrannus. Tradução: Hugh Lloyd-Jones. Cambridge: Harvard University Press, 1994, vv. 740-743. 93

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Tradução II96. Oedipus: Not yet. Laius – How did he look? Describe him. Had he reached his prime? Jocasta: He was swarthy, and the gray had just begun to streak his temples, and his build… wasn’t far from yours.

Tradução III97. Édipo: Pergunta-me depois! Fala de Laio: Qual seu porte físico? Que idade? Jocasta: De porte grande, já com fios grisalhos, os traços dele aos teus se assemelham. Independentemente dos diferentes sentidos dados pelas traduções, dois aspectos saltam aos olhos: 1º. Na fala inicial de Jocasta, houve a escolha de palavras com significados: (1) dúbio (Tradução I), (2) sem qualquer sentido étnico (Tradução III), e (3) com contorno étnico (Tradução II); 2º. Quando se compara o texto grego escolhido pelos tradutores, os de língua inglesa trabalharam com aquele que traz o termo mevlaς (mélas), enquanto que o seu par da língua portuguesa optou por outro que usa a palavra mevgaς (mégas). Em suma, o que os dois aspectos apontados poderiam revelar de imediato é que a escolha da tradição manuscrita seria a responsável pela diferença de perspectiva entre as traduções de língua inglesa e portuguesa. Ela pode até explicar a diferença, mas, de forma alguma, ela dá conta dos vários aspectos envolvidos na questão. Por exemplo, a variante textual escolhida por Lloyd-Jones e Flages não fez com que o primeiro trabalhasse na sua tradução o elemento étnico, enquanto que o segundo procurou reforçá-lo na resposta dada por Jocasta a Édipo. Já a tradição manuscrita adotada por Vieira o omitiu por completo. Logo, a prioridade da discussão não deve ser o de tentar saber quando ocorram as duas tradições manuscritas da referida tragédia de Sófocles. Correse o risco de ela se resumir a um jogo de escolhas, com dois grupos de participantes: aqueles que optam pela letra gama, de um lado, e aqueles que preferem o lambda, do outro. A discussão deve seguir por um outro caminho. Considerem a passagem em questão, do ponto de vista da língua grega (seguindo a variante mevlaς): Édipo pede que Jocasta lhe descreva o antigo senhor de Tebas. De imediato, ela procura caracterizá-lo etnicamente, deixando claro que a sua cor de pele é preta. A seguir, ela o define como tendo cabelos grisalhos e sua aparência não diferindo muito da de Édipo. Implica dizer: a cor de pele, os cabelos grisalhos e a

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Sophocles. Oedipus Tyrannus. Tradução: Robert Fagles. New York: Peguin Books, 1984, vv. 740-743. Sófocles. Édipo Rei. Tradução: Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva, 2004, vv. 740-743.

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fisionomia de Laio eram semelhantes às de Édipo. Partindo das três traduções acima, têm-se assim duas possibilidades: 1ª. Para os tradutores ingleses, que seguem a variante mevlaς, Édipo apresentava (dubiamente, Lloyd-Jones, ou de forma consistente, Flages) feições negroides. 2ª. Para Vieira, que segue a variante mevgaς, o elemento étnico não existe na resposta dada por Jocasta a Édipo. O que ele quis enfatizar foi a estatura e os cabelos grisalhos. São estes dois elementos que aproximam Laio de Édipo. Neste último caso, o leitor brasileiro da tragédia Édipo Tirano fica sem saber qual era a cor de pele de Laio e, por conseguinte, a de seu filho Édipo, porque este elemento simplesmente não faz parte da versão grega utilizada pelo tradutor. Diante destas duas possibilidades de se interpretar o referido passo de Sófocles, seria oportuno perguntar: indivíduos com feições negroides faziam parte do mundo greco-romano? Para o contexto histórico de Sófocles, há documentos que atestam à presença de etíopes em Atenas? Ambas as respostas podem se constituir em excelentes indícios para dirimir o impasse colocado pelos dois grupos de traduções. Os trabalhos de Snowden, Jr (1970, 1991) continuam sendo referências para o estudo do negro na Antigüidade Clássica98. Muito embora, em termos de uma historiografia mais recente, Isaac (2004) tenha feito uma interessante análise acerca do racismo no mundo greco-romano, o seu trabalho falha ao não considerar o negro africano. Afinal, ele estudou diferentes grupos sociais, como por exemplo, fenícios, cartagineses, sírios, gauleses, germanos, judeus. Há, inclusive, um capítulo específico sobre a visão romana em relação aos gregos. Mas, pior do que não falar, foram os seus dois argumentos para essa omissão. Segundo Isaac (2004, pp. 49-50), (a) os negros africanos não tinham uma presença efetiva na Antigüidade Clássica. Ao contrário, poucos deles viviam entre gregos e romanos; e (b) a associação feita entre ser negro e ser escravo, perpetuando uma triste idéia de representação histórica do negro. Muito embora aqui não seja o lugar para aprofundar os dois argumentos de Isaac, já que acabaríamos nos afastando em muito do nosso objeto de estudo, convém observar os seguintes dados. Mesmo admitindo que os negros africanos não fossem maciçamente representados no mundo clássico99, há uma farta documentação produzida, por exemplo, pelos gregos100 acerca das suas percepções em relação aos etíopes. Esse material daria meios para o autor avançar nas suas discussões sobre grupos éticos específicos no contexto da cultura clássica. Por outro lado, essa documentação não parece tornar o binômio “ser

O leitor interessado poderá encontrar também boas discussões em: Bourgeois, 1971. Deixamos aqui a nossa indagação se do ponto de vista numérico, por exemplo, fenícios e judeus seriam mais bem representados no mundo greco-romano. Além do mais, fica a dúvida sobre as bases estatísticas utilizadas pelo autor para chegar a tal conclusão. Bérard (2000:409) adotou, ao nosso ver, uma posição historiográfica mais acertada. Mesmo reconhecendo que os negros fossem poucos na Grécia, ele não os excluiu das suas análises. 100 Para os contatos entre negros africanos e romanos, ver: Thompson, 1989. 98

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negro” = “ser escravo” sinônimo. Ao contrário, o espectro de situações onde o etíope aparece envolvido é tal que, restringi-lo à condição de escravo, é forçar demasiadamente os dados advindos dessa vasta documentação. Snowden Jr (1970, pp. 101-120; 1991, pp. 46-49) observou que do ponto de vista literário (desde a Ilíada e a Odisséia em diante) e da cultura material (das imagens nas superfícies de vasos tebano, ateniense (ver imagem 1), das esculturas, das estatuetas e terracotas), os antigos gregos demonstraram um conhecimento cada vez mais crescente dos etíopes. Esta observação sugere que se os dados sobre os etíopes eram esparsos, raros e indiretos na narrativa homérica, eles tenderam a aumentar, de forma significativa, com o passar do tempo. Com o estourar da guerra greco-pérsica, o contato entre gregos e etíopes passou a ser mais freqüente e direto, principalmente porque esses últimos eram integrantes do exército persa invasor (Heródoto 7:69). Há bons indícios de uniões mistas entre brancos e negros na cultura greco-romana (SNOWDEN JR, 1970, pp. 182,184 e 192-195; 1991, pp. 94-97). Um excelente exemplo é o busto de um jovem (ver imagem 2), datado do período romano. Esta forte presença de etíopes na Atenas Clássica não passou despercebida pelos tragediógrafos. Conforme observou Snowden Jr (1970, pp. 156-168), apesar de as peças envolvendo temas ou tópicos etíopes estarem hoje perdidas, sendo conhecidas apenas através de fragmentos, títulos e cenas feitas nas superfícies de vasos pelos pintores, Ésquilo, Sófocles e Eurípides exploraram o tema. Sófocles, em particular, escreveu uma tragédia de nome “Etíopes”, da mesma forma que em sua outra peça, de nome “Andrômaca”, a personagem que lhe dá o título deveria trazer características negroides. Não deixa de ser interessante observar que apesar de os etíopes terem lutado ao lado dos persas contra os gregos, não há, especificamente falando, nenhum sentimento anti-negro, ou que poderia ser chamado hoje de racismo, na tragédia grega (SNOWDEN JR, 1991, p. 48). Portanto, há bons indícios, do ponto de vista histórico, de que os atenienses, no geral, e de que os tragediógrafos, no particular, lidavam cotidianamente com a presença do etíope. Não há qualquer registro documental que venha sugerir que um herói grego não pudesse ter feições negras. Da mesma forma que não há qualquer impedimento para que Sófocles pudesse ter lido Laio como um etíope, da mesma forma que Édipo. Uma análise também do emprego da palavra mevlaς (mélas) na própria peça “Édipo Tirano”, deixa claro um certo incômodo nos três tradutores, algo como um nãodito, quando se trata de definir etnicamente uma personagem. Sófocles (Édipo Tirano 29,742,1278) utiliza a palavra mevlaς em três momentos específicos da sua tragédia (ver quadro abaixo).

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Quadro I. O Emprego do Termo Mevlaς (Mélas) e suas Respectivas Traduções na Tragédia Édipo Tirano. Verso

Lloyd-Jones

Flages

Vieira

29

Black

Black

Negro

742

Dark

Swarthy

Grande

1278

Dark

Darkness

Melanina

Não deixa de ser interessante observar as enormes semelhanças entre os três tradutores para os versos 29 e 1278. No verso 29, mevlaς aparece como um termo que qualifica o Hades, a morada das almas dos mortos. Ela é traduzida no inglês por black101 (LLOYD-JONES e FLAGES), como que acentuando a cor oposta à branca; o que não é dotado de (ou quase sem) luz (HORNBY, 1974, pp.84-85; MACDONALD BA(Oxon), 1972, pp. 133-134). O tradutor brasileiro também não tem dúvida quando a traduz por negro. No verso 1278, mevlaς está associada à cor do sangue que vaza dos olhos de Édipo. Lloyd-Jones utiliza a palavra dark, traduzida aqui por algo que é escuro (HORNBY, 1974, p. 218), como se referindo a um líquido escuro que escorre sobre a face de Édipo. Flages lança mão do termo darkness (HORNBY, 1974, p. 218; MacDonald BA(Oxon), 1972, p. 328), optando por reforçar a cor preta com tons ainda mais escuros. Vieira aplica a palavra melanina, conotando o líquido escuro que escorre por sobre a face de Édipo. Indiscutivelmente, a diferença entre os três tradutores está no verso 742. É justamente neste passo que reside à dificuldade de tradução. Como demonstrado, os tradutores não encontraram dificuldades de qualificar como preto ou escuro (1) o Hades e (2) o sangue que escorria dos olhos de Édipo. Mas, quando a questão diz respeito à cor da pele de Édipo, eles oferecem leituras divergentes. Lloyd-Jones optou por trabalhar com a palavra dark. Como assinalado, o seu emprego não tem uma relação direta com etnicidade. Para o tradutor, Laio era escuro. Mas, poder-se-ia perguntar: porque o antigo senhor de Tebas seria escuro? Seria por que ele pegou muito sol? Ou ele seria escuro por que caiu numa poça de água suja? A palavra inglesa dark, bem como a sua tradução para o português, escuro, claramente esvaziam o sentido étnico do contexto em que a palavra mevlaς é aplicada no verso 742. Lloyd-Jones opta pela dubiedade, a ter que se posicionar diante da cor de pele de Laio e, indiretamente, da de Édipo. Ele deixa que o leitor atento “escave” a palavra mevlaς, conferindo-lhe um significado mais preciso, pelo menos do ponto étnico. Flages optou em ser mais direto, ao lançar mão da palavra swarthy. Para ele, a

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Não deixa de ser curioso observar que no inglês Black também pode significar uma pessoa de pele escura, o que em português é sinônimo de Negro.

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cor natural da pele de Laio era preta (HORNBY, 1974, p. 873; MACDONALD BA(Oxon), 1972, p. 1362). Vieira coloca um outro tipo de problema: ele não esvazia ou camufla o sentido étnico que termo mevlaς coloca no verso 742. Ao contrário, ele simplesmente trabalha com uma outra variante textual grega. Muito embora não haja qualquer comentário na sua tradução, é possível conjeturar a sua dificuldade em lidar com a possibilidade de tiranos e heróis gregos serem negros, já que não há qualquer ressalva na sua tradução neste ponto da tragédia. No entanto, o indício que parece confirmar tal conjetura é a escolha da palavra grande para definir Laio na sua tradução. Achamos, porém, que a opção de uma variante textual por outra exigiria uma explicação, no sentido de demonstrar que a escolha se apóia sobre um determinado argumento102. Não nos lembramos de nenhum professor ou professora, desde as nossas aulas nos cursos fundamental, médio e universitário, que tivesse nos dito que os gregos eram brancos. No entanto, eles nem precisaram nos dizer. Era só olhar as imagens presentes nos livros didáticos dos cursos fundamental e médio que lá estavam representadas a estética branca. As semelhanças entre aquelas antigas imagens impressas nas páginas dos livros com aquelas de milhões de alunos com feições brancas eram fantásticas. Ao mesmo tempo, do ponto de vista estético, os reflexos dos antigos gregos eram bem diferentes dos outros milhões de discentes negros! Acreditamos que uma tradução que considerasse mais objetivamente o elemento étnico, em particular, aquele contido na referida passagem da tragédia de Sófocles, daria um importante passo no sentido de quebrar as tentativas de homogeneização étnica da antiga Grécia. Bem entendido, não é o caso de dizer que os helenos fossem negros. Não é esta a nossa preocupação, muito menos a nossa intenção. Mesmo porque, no caso dos antigos gregos, não há evidências que sustentem tal afirmação103. No entanto, ao incluir no “berço da civilização Ocidental” pessoas de pele escura, as quais foram lidas pelos autores da época, como no caso específico de Sófocles, como sendo gregas, e não negros africanos, muda radicalmente a perspectiva de análise histórica, além de quebrar importantes paradigmas estéticos. Partindo justamente deste campo de observação histórica, proporíamos a seguinte tradução para os referidos versos (740-743) de Sófocles: Édipo: Não me pergunte nada. Fale-me sobre Laios: como ele se parecia e que momento da sua vida ele havia alcançado?  ieira precisaria demonstrar a existência de dois problemas de fundo: (a) de imediato, que existem variantes textuais, como o fez V recentemente Bart D. Ehrman (O que Jesus Disse? O que Jesus não Disse? Quem Mudou a Bíblia e Por Qu ê. São Paulo: Prestígio, 2006) para o material neotestamentário; e (b) que os fortes indícios documentais associados à presença de etíopes na Atenas de Sófocles, bem como os relatos míticos que falam de heróis gregos em contato com etíopes e egípcios não servem como provas de interações étnicas. 103 Um excelente texto envolvendo esta e outras questões, seguida de importantes críticas às teses afrocentristas associadas à Antigüidade grega e às análises de Bernal, em particular, ver: Lefkowitz, 1996; Snowden, Jr., 1996; Vermeule, 1996; Coleman, 1996; Tritle, 1996. 102

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Jocasta: Ele era negro e começava precisamente a ter no rosto barba branca, e a sua aparência não era muito diferente da sua. Implica dizer, uma tradução que contemplasse, de forma clara, sem subterfúgios, a inclusão de indivíduos oriundos de padrões étnicos diferentes daquele convencionalmente adotado para representar o antigo grego, seria bastante salutar não apenas para um tipo de produção universitária, no geral, como para os inúmeros livros didáticos utilizados pelas redes de ensino fundamental e médio, no particular. Pode parecer pequeno, quase insignificante, mas esta pequena atitude poderia estimular o interesse, que seja, de uma única pessoa, fosse ela, um jovem ou uma jovem, a pensar as bases em que se assentam as relações raciais no Brasil.

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André Leonardo Chevitarese / Rogério José de Souza

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Esporte e Construção de Identidades Fábio de Souza Lessa104* (LHIA/UFRJ ) Nada mais pertinente ao estudo das práticas esportivas do que a sua ligação à construção de identidades. Pensemos no caso brasileiro; afinal somos vistos, e frequentemente nos vemos, como o país do futebol. O futebol mais do que qualquer outra modalidade esportiva mexe com o nosso imaginário coletivo, desperta uma idéia de nacionalidade e evidencia a capacidade que o esporte possui de propiciar a inclusão e coesão sociais. Atualmente a realização dos Jogos Pan-americanos de 2007 no Rio tem focado as atenções para um total de pelo menos 33 modalidades esportivas que normalmente não conseguem despertar entre nós, brasileiros, a mesma paixão que o futebol; mas que de forma semelhante explicitam o ideal agonístico e o sentimento de pertinência e identidade sociais. A construção de identidades só pode ser entendida inserida na sua perspectiva relacional. Isto significa afirmar que a identidade depende para existir de algo exterior a ela; o que kathryn Woodward define como a outra identidade, que nada mais é do que a diferença/alteridade (WOODWARD, 2000, p. 9). Existe entre identidade e diferença não uma relação de oposição, mas de dependência (WOODWARD, 2000, pp. 39-40; SILVA, 2000, p. 96). No contexto da pólis, podemos dizer que os helenos dependem dos bárbaros para construírem a sua identidade: num sentido bem amplo, os helenos são os não-bárbaros. De acordo com Tomaz Tadeu da Silva, “a afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir” (SILVA, 2000, p. 82). Neste sentido, a construção de uma identidade implica na demarcação de fronteiras. No caso das práticas esportivas no mundo antigo grego isso se torna nítido, pois nos encontramos frente à fronteira entre gregos e não gregos: das práticas esportivas gregas estavam excluídos os não gregos. O processo de demarcar identidades e alteridades implica necessariamente em relações de poder. O esporte, na medida em que é um espaço de atuação exclusivamente cívica, explicita na cultura políade a construção de lugares sociais específicos de poder entre cidadãos e não cidadãos. As identidades e as diferenças são construções culturais, o que significa dizer que elas só podem ser compreendidas no interior dos sistemas de significações

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*Professor Adjunto de História Antiga do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da UFRJ. Membro do Laboratório de História Antiga (LHIA/UFRJ). Apoio financeiro do CNPq e da FAPERJ.

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Fábio de Souza Lessa

nos quais adquire sentido (SILVA, 2000, p. 78). No nosso caso em especial, esse sistema de significação é a cultura políade. E é neste contexto que analisaremos as práticas esportivas. O esporte também é lazer105. Grande parte da população tem nas práticas esportivas uma de suas principais formas de lazer. É uma diversão que possui o potencial de alcançar um público heterogêneo em todos os seus aspectos. Não tão somente nos seus perfis sócio-econômicos e culturais, mas também nos etários e de gênero: homens, mulheres, crianças, adultos, jovens, idosos..., todos, de formas múltiplas, interagem nas práticas esportivas. Logo, é um lazer que congrega e permite a coesão social. Devemos sempre ter em mente que o esporte não pode ser reduzido a uma ingênua diversão. Ele “é uma manifestação cultural poderosa, influente, que envolve emocionalmente um grande número de pessoas, e que hoje se apresenta como uma eficaz forma de negócios, capaz de mexer com sonhos e difundir idéias, comportamentos, atitudes” (MELO, 2006, p. 27). Neste artigo escolhemos analisar duas modalidades atléticas que compunham, entre os gregos antigos, o pentatlo: a corrida a pé e a luta106. A escolha se deu, entre outros fatores, devido a sua permanência nas disputas contemporâneas e por terem sido respectivamente, no mundo antigo grego, a primeira e a última das provas que compunham o pentatlo. Esta modalidade esportiva era, de acordo com Aristóteles, o conjunto de disputas que contemplava os atletas mais belos, porque eles são naturalmente adaptados para o esforço físico e para a velocidade (ARISTÓTELES. Retórica. I, 1361 b, 11); além de ser considerada o primeiro evento múltiplo na história do atletismo (VALAVANIS, 2004: 414).107 A estreita vinculação entre atletismo e o espírito olímpico é ressaltado no próprio site do Pan 2007. De acordo com o site: a primeira prova disputada nos Jogos Olímpicos da Antigüidade foi uma corrida de cerca de 192 metros. Por isso, a maioria das tentativas de reviver os Jogos Olímpicos no século XIX consistia em nada além de competições de atletismo. Disputas para ver quem é o mais rápido, quem salta mais longe ou mais alto ou quem arremessa a uma distância maior têm registros desde o ano 776 a.C. E, nos Jogos Modernos, se desdobraram em provas de pista (de velocidade, meia e longa distância, revezamento, com barreiras e obstáculos), de salto (em distância, em altura, triplo e com vara), de arremesso O próprio Ministério dos Esportes associa Esporte e Lazer. Segundo ainda o Ministério, “o papel ocupado pelo Esporte e o Lazer no mundo contemporâneo não pode ser outro senão o de instância de emancipação e desenvolvimento humano. Imperioso se faz, portanto, formular políticas públicas esportivas e de lazer que propiciem as condições necessárias para que tais objetivos sejam impreterivelmente alcançados” (www.esporte.gov.br). 106 As lutas olímpicas são consideradas algumas das modalidades mais antigas de que se tem notícia. Nos Jogos Olímpicos da Grécia Antiga já se disputavam combates de luta no estilo da atual greco-romana (www.rio2007.org.br). 107 O pentatlo foi introduzido na décima oitava Olimpíada em 708 a.C. 105

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(de peso, de disco, de dardo e de martelo), de rua (maratonas e marchas) e combinados (heptatlo e decatlo) (www.rio2007.org.br). Não podemos deixar de ressaltar que as práticas esportivas, um dos elementos que integravam a formação do homem grego, visavam, segundo Fábio Cerqueira: 1- ao preparo para a futura vida militar e para as competições atléticas realizadas nos festivais; 2- ao embelezamento dos seus corpos e à melhoria de suas condições de saúde (CERQUEIRA, 2001, p. 144). Certamente ao se referir ao embelezamento dos corpos, o autor pensa no seu fortalecimento, na sua rigidez e no delineamento de suas formas. Antes de prosseguirmos no estudo das duas modalidades esportivas selecionadas para análise, é necessário que pensemos o esporte como objeto de estudo. O esporte tem sido trabalhado como um campo de estudo relativamente autônomo, mesmo estando articulado com as questões de ordem política e econômica, isto porque tem-se sempre a idéia de que as práticas esportivas têm seu próprio tempo, mecanismos próprios de funcionamento, suas próprias crises, em síntese, uma dinâmica própria. Este quadro não é específico às sociedades contemporâneas. Nas pesquisas acerca das sociedades antigas, em especial a grega que se constitui em nosso locus de investigação, a situação é, digamos, semelhante. Outra questão que envolve as pesquisas acerca do esporte é o seu freqüente menosprezo no meio intelectual; sendo muitas vezes entendido como uma coisa vulgar, uma atividade lúdica direcionado exclusivamente para o lazer, envolvendo o corpo mais do que a mente, e sem valor econômico (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 17). No caso helênico, o esporte se constituiu em prática essencial para a construção das relações de cidadania, sendo uma área específica da paideía e um meio propiciador da coesão social. Neste sentido, podemos entender o esporte, entre os gregos, como um indicativo de modelos de sociabilidade, isto porque, “...o esporte também favorece o estudo das ações humanas em grupo, tendo em vista que o processo do jogo é exatamente este: uma configuração dinâmica de seres humanos cujas ações e experiências se interligam continuamente, representando um processo social em miniatura” (GENOVEZ, 1998, pp. 10-11). Percebemos que nas produções historiográficas sobre Antigüidade, o esporte, quando é lembrado como prática social, recebe pouca atenção. Ou é apreendido como constituindo uma história própria e, por isso, permanece ausente das investigações, ou é entendido como parte da paideía (educação/cultura) e/ou da vida religiosa dos homens antigos e, por isso, adquirindo um espaço secundário nas análises. É necessário mencionarmos que, no caso específico da historiografia brasileira sobre as sociedades antigas, notamos que são poucos os trabalhos publicados acerca da temática esporte.108 E com certa freqüência, estas pesquisas resultam em

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Ver: BARROS, 1996; GODOY, 1996; SARIAN, 1988; HIRATA, 1988; FLEMING, 1988, LESSA 2005 e 2006.

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um interesse imediato, estimulado diretamente pela realização dos jogos olímpicos do mundo contemporâneo. Defendemos que as práticas esportivas são capazes de evidenciar as mais tênues nuances das relações sociais, como a competição e a cooperação ou o conflito e a harmonia (GENOVEZ, 1998, pp. 2-8). Logo, o esporte é um importante veículo de inclusão social. Por isso, o nosso interesse pela construção de uma análise centrada nas práticas esportivas e articulada à construção de identidades. Nesta pesquisa, as práticas esportivas helênicas serão analisadas a partir da documentação imagética ática. De acordo com Neyde Theml, viver na pólis “era se reconhecer no olho do seu interlocutor e era construir imagens, fossem elas verbais ou pictóricas” (THEML, 2002, p. 15); sendo amplo o alcance das imagens representadas em suporte cerâmico. Fronteiras entre ricos – que consumiam os vasos ricamente decorados – e pobres e entre letrados e não letrados se diluíam. Outro aspecto que não poderíamos deixar de mencionar é a importância que as imagens pintadas nos vasos áticos têm para o conhecimento da sociedade ateniense, pois sem elas existiria uma lacuna expressiva em nosso conhecimento sobre os atenienses (RASMUSSEN & SPIVEY, 1993, p. XIII). Para os helenos, “criar imagens era dar vida, era criar o belo, era falar e divulgar em outra linguagem a vida na pólis” (THEML, 2002, p. 20). Assim como os textos escritos ou os testemunhos orais, as imagens são uma forma importante de documentação histórica, pois permitem aos historiadores chegarem à novas respostas para as questões anteriormente colocadas a partir exclusivamente da documentação textual ou levantarem novas questões (BURKE, 2001, pp. 12 e 17). Passemos à análise da primeira imagem109 – Figura 1 – representada em uma ânfora

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de figuras negras111, cuja temática é a corrida a pé, uma das competições mais

antigas dos jogos olímpicos.112

Aplicaremos às imagens o método semiótico proposto por Claude Calame que pressupõe a necessidade: 1º. de verificarmos a posição espacial dos personagens, dos objetos e dos ornamentos em cena; 2º. de fazermos um levantamento dos adereços, mobiliário, vestuários e os gestos estabelecendo repertório dos signos; 3º. de observarmos os jogos de olhares dos personagens. 3.1. olhares de perfil: o receptor da mensagem do vaso não está sendo convidado a participar da ação. Neste caso, o personagem deve servir como exemplo para o comportamento do receptor; 3.2. olhares de três quartos: o personagem que olha tanto para o interior da cena quanto para o receptor está possibilitando, a este último, participar da cena; 3.3. olhares em frontal: personagem convida o receptor a participar da ação representada (CALAME, 1986). 110 U sada para armazenar e conduzir vinho, óleo e outros artigos, para servir vinho à mesa e também como urna para cinzas do morto. 111 O estilo chamado de figuras negras se constitui pela apresentação dos elementos da decoração em tom escuro sobre fundo claro. 112 Por se tratar de uma ânfora panathenáica, prêmio recebido pelo vencedor nas competições das Grandes Panathenéias, festa em homenagem à Athená, na face não reproduzida no artigo temos, necessariamente, a representação da deusa tipicamente armada. Uma inscrição nesta face oferece não somente a designação oficial do vaso como um prêmio, mas também a assinatura da cerâmica – Nikias. 109

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A TRADIÇÃO CLÁSSICA E O BRASIL Figura 1

Localização: Nova Iorque – Metropolitan Museum of Art – inv. 14.130.12, Temática: corrida a pé, Proveniência: Não fornecida, Forma: Ânfora Panathenáica, Estilo: Figuras Negras, Pintor: Euphiletos, Data: 530-20 a.C., Indicação Bibliográfica: VALAVANIS, 2004, p. 412, fig. 504; YALOURIS, 2004, p. 182, fig. 70; www.metmuseum.org . Localização: Nova Iorque – Metropolitan Museum of Art – inv. 14.130.12, Temática: corrida a pé, Proveniência: Não fornecida, Forma: Ânfora Panathenáica, Estilo: Figuras Negras, Pintor: Euphiletos, Data: 530-20 a.C., Indicação Bibliográfica: VALAVANIS, 2004, p. 412, fig. 504; YALOURIS, 2004, p. 182, fig. 70; www.metmuseum.org .

O pintor representou cinco corredores, colocando em destaque as linhas incisivas que descrevem a musculatura deles. A vitória alcançada pela velocidade dos pés foi euforizada tanto pela literatura quanto pela imagética dos vasos áticos. Homero, por exemplo, através da fala de Odisseus nos diz o seguinte: é forçoso que algum também saiba que maior glória não há para um homem, enquanto está vivo, do que nas lutas das mãos ou dos pés sair sempre galhardo (HOMERO. Odisséia, VIII, 146-48). A ausência de vestimentas é um signo que nos permite afirmar ser os personagens pintados na imagem atletas. Há um consenso entre os especialistas contempo121

Fábio de Souza Lessa

râneos, construído a partir da análise de documentos de diversas naturezas, de que os atletas helênicos de qualquer idade competiam nus. A nudez explicitava a distinção entre fortes e fracos, além de civilizados e bárbaros, já que estes últimos competiam vestidos (SENNETT, 1997, p. 30). A precisão das idades dos corredores é outro signo interessante enfatizado pelo pintor. Todos os cinco personagens são representados barbados113, o que evidencia serem adultos. A prática do atletismo distinguia, entre os helenos, crianças, jovens e adultos (YOUNG, 2004, p. 24), que somente competiam entre si. Até mesmo porque, a vitória só era de fato considerada honrosa se a competição fosse entre os iguais (ísoi). A cena se passa num ambiente externo, haja vista a ausência de signos de interioridade na imagem e também o fato da própria modalidade requerer um espaço retangular, plano e amplo para que os corredores desenvolvessem sua velocidade máxima e para que numerosos atletas pudessem participar da competição (YALOURIS, 2004, p. 176). O artista euforiza a competição no estádio, pista grega para a corrida a pé. A posição das pernas e braços, além do próprio movimento dos corpos dos personagens em cena, denota a sincronia necessária à prática da corrida. Esta modalidade possuía algumas regras que garantiam uma competição honrosa, como: não impedir a ultrapassagem dos adversários por meio de empurrões, não derrubálos ou agarra-los, não cortar a pista obliquamente, não oferecer subornos, etc. (YALOURIS, 2004, p. 176). A observação mais atenta do posicionamento dos personagens na imagem, assim como dos seus movimentos, nos permite concordar com David C. Young, quando este especialista afirma que os métodos de corrida parecem não ser muito diferentes dos praticados atualmente. Assim como a cerâmica que estamos analisando, existem diversas outras que mostram um grupo de corredores próximos uns dos outros, tendo seus corpos arremessados para frente e seus braços impulsionados para frente e para trás. Como os modernos, eles correm verticalmente, com os movimentos de perna menos arcados e seus braços confortavelmente balançando para os lados (YOUNG, 2004, p. 25). Passemos para as próximas imagens – Figuras 2 A e B. Diferente da imagem anterior, nas faces externas dessa kýlix114 de figuras vermelhas115, temos cenas no interior da palestra116. Os halteres e o saco para o disco pendurados na parede (Figura 2A), além da coluna, atestam tal afirmação. Na figura 2A temos a representação das cenas pintadas no exterior da taça. Na parte superior vemos, em destaque, a prática da luta,

 último corredor apresenta barba menos nítida de ser observada que os demais. O A kýlix era uma taça para beber vinho. O estilo chamado de figuras vermelhas, mas característico do Período Clássico, apresenta os elementos da decoração em tom claro sobre fundo escuro. 116 Essencialmente um terreno para desporto, ao ar livre, quadrado e rodeado de muros, podendo servir para todos os desportos, exceto para corrida a pé, que acontecia no estádio. 113

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enquanto na parte inferior a ênfase é dada a outras modalidades, como o lançamento de dardos. Neste trabalho nos centraremos na análise da cena de luta (Figura 2B). A luta se constitui na temática central da imagem, porém existem referências à outras competições que constituíam o pentatlo: os halteres remetem ao salto, o saco para disco ao lançamento de disco e os dardos que se encontram atrás dos lutadores ao lançamento de dardo. Figuras 2 A e B

Localização: Museu da Universidade da Pensilvânia – Philadelphia MS 2444, Temática: luta, Proveniência: Etrúria, Forma: kylix, Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: de Antiphon, Data: 480 a.C., Indicação Bibliográfica: Perseus Vase Catalog (Philadelphia – MS 2444).

Os gestos demonstram a sincronia dos movimentos peculiares à luta e, ao mesmo tempo, a superioridade de um dos lutadores. Vemos que o atleta da esquerda se123

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gura com a sua mão esquerda o cotovelo direito do adversário, mantendo as mãos dele presas junto a terra. Com sua outra mão, o atleta que vence a luta alcança o pé do seu oponente. Todos esses movimentos estão sendo supervisionados pelo paidotribés.117 Nesta cena temos claramente exposta uma das relações de alteridade que constituem a pólis que pode ser explicitada através do esporte: a estabelecida ente vencedores e derrotados. Píndaro descreve o sentido da derrota nos jogos olímpicos para um cidadão e sua família. Segundo o poeta tebano, a derrota representaria a vergonha de um retorno sem glória, do silêncio que é necessário que se guarde e do refúgio onde será preciso se esconder (PÍNDARO. Olímpicas. VIII, 68-9). Diferente da imagem anterior, esta nos permite verificar as diferenças de idade dos personagens, pois o paidotribés foi representado barbado em oposição aos atletas imberbes. Nesta situação nos sentimos mais seguros no momento de diferenciar instrutor de atletas. Apesar de não ser nítida, contamos na cerâmica com a inscrição kalós, que faz referência à condição social de bem-nascidos dos atletas. Quanto aos jogos de olhares, todos os personagens presentes nas cenas que analisamos aparecem em perfil, forma mais comum de representação nas imagens áticas. No caso deste tipo de representação, a veiculação da mensagem não permite um diálogo direto com um enunciador-destinatário externo; isto é, não se estabelece uma interação com o público e a cena adquire a conotação de um exemplo a ser seguido pelos receptores (CALAME, 1986, p. 08). O olhar fixo do paidotribés para os movimentos executados pelos atletas na figura 2A (parte superior da taça) pode significar a atenção dispensada à verificação de algum aspecto a ser corrigido. Neste caso, a cena pode representar o momento de um treino. Estas imagens nos sugerem ainda mais duas questões: A primeira, é o grupo social que consumia esses vasos. Pela temática esses vasos se direcionam aos jovens atletas, pois as suas mensagens reforçam o que a pólis espera deles: força, coragem, resistência, velocidade, movimento, beleza, entre outras virtudes; já pela riqueza da decoração, a aquisição dessas cerâmicas estaria restrita aos segmentos sociais mais abastados. A segunda, é a ênfase no mundo masculino que se expressa pelo corpo desnudo em movimento (LESSA, 2005, p. 67). O corpo, que o mundo contemporâneo insiste moralmente em vestir, aqui é representado pelos helenos na sua nudez, literal e metafórica; explicitando as virtudes esperadas pela pólis dos seus cidadãos: força, agilidade de movimentos, coragem, exposição pública... O corpo desnudo dos helenos é elemento importante na construção da identidade dos grupos de cidadãos abastados.

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O paidotribés era responsável pela instrução do jovem nas modalidades esportivas.

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Sabemos que a representação apolínea dos corpos dos atletas, que predominava na grande maioria das imagens, atuava no sentido de forjar uma identidade coletiva dos cidadãos; não passando de um modelo idealizado que não correspondia a realidade complexa da pólis (ver: LESSA, 2006). Esse modelo de representação dos corpos estava tão arraigado na identidade ateniense que o corpo diferente do atleta se constituiu em material para as comédias aristofânicas. Na comédia As Rãs, o personagem Dionisos ridiculariza um atleta gordo e pálido: quase morri de rir nas Panathenéias vendo um homenzinho gorducho, muito pálido, que corria distanciado dos outros, com a cabeça baixa, incrível dificuldade (ARISTÓFANES. As Rãs, vv. 1089-98). Neste capítulo buscamos enfatizar que tanto no mundo antigo grego quanto na contemporaneidade, a prática esportiva é um elemento aglutinador, propiciando a coesão social e a construção de identidades. Vale ressaltar ainda, que sendo um mosaico de elementos simbólicos, conforme destaca Maurício Murad, as práticas esportivas “... ajudam a traduzir o homem e o ser social que ele é, seus desejos, seus paradoxos e perplexidades, seus contextos e contradições” (MURAD, 2005, p. 76). Na visão de Norbert Elias, o esporte é uma categoria de atividade social que se desenvolveu inserida no processo de civilização, estando a sua continuidade com os Jogos olímpicos gregos justamente no processo de civilização marcado pelo autocontrole dos comportamentos no conjunto das relações sociais (GARRIGOU e LACROUX, 2001, pp. 69-70). Na pólis a prática esportiva é elemento de civilização, por isso, os não-gregos estão afastados dos jogos, conforme já mencionamos. Enquanto uma prática social e cultural, as atividades esportivas, além de manterem a identidade dos cidadãos, se constituem em uma das formas de leitura da estrutura social políade, explicitando o seu caráter agonístico, visível através do ideal atlético.

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Tradição clássica, ensino e política na França da Terceira República José Antonio Dabdab Trabulsi (UFMG) A ciência e o ensino foram, ao longo da história, muito raramente percebidos de forma tão ligada à grande política quanto na segunda metade do século XIX. O otimismo no futuro iluminado pelos progressos do conhecimento era total. O meio mais eficaz de fabricar este futuro era, para os republicanos franceses, difundir o saber pela escola. Nós não podemos, portanto, compreender a abordagem da história, e seus importantes avanços nesta época, fora deste contexto. A Antiguidade clássica é um terreno de conflito. Ela é um refúgio para os que querem conter ou combater o cristianismo. Por isto, ela interessa. Mas ela é vítima de uma convicção oposta; é preciso modernizar a sociedade pelo ensino, e portanto, diminuir o espaço do latim. A religião politeísta é um contra-veneno para o cristianismo, mas o que fazer com sua moralidade duvidosa? De qualquer forma, esta época verá a elaboração de modelos historiográficos que duraram, e alguns até hoje. Donde a necessidade de lançarmos pontes entre as inquietações, os conflitos, os compromissos do momento, e as construções dos historiadores da religião antiga.

Evolução política Em meados do século XIX, vemos a cristalização das oposições que vão organizar durante muito tempo o imaginário político francês. O positivismo se desenvolve e domina a cena filosófica e, segundo a expressão de Renan, a ciência se torna uma religião. Com efeito, os progressos rápidos da ciência dão a impressão que se pode renunciar às explicações religiosas, pois as explicações científicas são mais globais e melhores (PROST, 1968, p. 160). O Juif errant, de Eugène Sue (1844-1845) tem um sucesso imenso, que mantém a França com a respiração presa aos seus capítulos sucessivos. Sue introduz operários e deserdados, marginais, mendigos e assassinos na literatura. Seu livro, que provocou muitas reações, tem como uma de suas molas o sentimento anticlerical, principalmente contra os jesuítas. Várias vezes (SUE, 1983, p. 1020), há oposição entre o padre e o cientista, entre os santos e os sábios antigos. Assim, “Marco Aurélio vale muito bem um são João; Platão, santo Agostinho” (Ibid., p. 1021). Este livro de imenso sucesso mostra que há, na época, uma grande receptividade popular aos argumentos anticlericais e, por extensão, anti-religiosos. Ora, em 1850, a lei Falloux vem como uma resposta aos acontecimentos de 1848; ela recoloca o ensino sob o controle do clero e pára uma evolução em direção à laicidade que tinha começado com Guizot (1833). Neste momento, os católicos queriam acabar, em especial, com a Universidade, considerada por eles uma forma de magistério moral e intelectual a uma só vez concorrente e ilegítimo (ALBERTINI, 1992, p. 11 129

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e PROST,1968, p. 174). Os republicanos, a exemplo de V. Hugo, condenam a lei. Este conflito contribui para consolidar a oposição entre a Igreja e a sociedade moderna. A reação violenta que representa este controle da Igreja vai abrir o caminho a um anticlericalismo de combate. Desde a lei Falloux até 1875, o lugar da Igreja no ensino não vai parar de aumentar; a Igreja está presente até na Universidade e, nos liceus, ensina-se a religião. No ensino primário, mesmo quando o mestre é laico, ele deve ensinar o catecismo e a história sagrada. Reza-se em classe (MAYEUR, 1973, p. 104). Ora, isto estava em flagrante contradição com o espírito do tempo. Este meio de século XIX assistia a mudanças intelectuais consideráveis. Como diz C. Nicolet: Revolução científica e intelectual fundada sobre os progressos das ciências ‘exatas’ (...) mas logo, também, ‘revolução’ evolucionista de Darwin que, apoiando-se no método experimental, ousa anexar ao espírito ‘positivo’ o domínio do biológico. Positivismo ou cientificismo definem assim, num clima de modernidade tanto mais vivamente afirmado que a Igreja o condenou em 1863, o espírito da época. (NICOLET, 1982, p. 151-152) Este espírito, logo esta política, de laicização, é o resultado de um processo de descristianização que começou antes da Revolução (VOVELLE, 1978), e não a sua causa a curto prazo, como o queriam os polemistas católicos da época, que acusavam maçons, judeus e protestantes (MAYEUR, 1973). É verdade, entretanto, que protestantes e judeus eram mais afinados com o espírito novo do que o catolicismo reacionário desses anos. Em relação ao protestantismo, observamos que a estrutura democrática das suas igrejas desenvolve o sentido cívico, enquanto que a prática do livre exame afina o sentimento de responsabilidade; uma moral rígida acompanhada pelos direitos da consciência individual, tudo isto faz com que observemos sem surpresa um grande número de protestantes entre os republicanos. Em relação aos judeus, a idéia de uma república laica, que prolongava a atitude emancipadora da Revolução, só poderia mesmo agradar, confrontada a um catolicismo conservador que obrigava, por vezes, os pequenos judeus a seguir o catecismo de forma compulsória. O debate endureceu na época de Victor Duruy, ministro da Instrução pública de 1863 a 1869. Ele era, segundo seus inimigos legitimistas, “livre pensador até a espinha” (ALBERTINI, 1992, p. 50). Duruy toma iniciativas a fim de conter o ensino das congregações, e lança iniciativas a favor de um ensino público secundário para as meninas, enquanto que o senso comum da época via no controle da Igreja sobre a educação destas uma das garantias mais fortes de perpetuar sua influência social. Isto, entre outras coisas, faz com que, no final do Império, a questão escolar se torne muito discutida (PROST, 1968, p. 182). O termo “laicidade”, por exemplo, aparece no suplemento do dicionário de Littré de 1871. 130

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Após a derrota militar contra a Prússia, impõe-se a idéia de uma transformação do ensino em geral, e do ensino clássico em especial. A superioridade militar do inimigo é explicada pela sua superioridade científica, universitária e escolar. Jules Simon, ministro da Instrução pública de Thiers, encoraja as línguas modernas, condena a maneira antiga de se ensinar o latim. Ele diz, em especial, que “se estudará doravante o latim para compreendê-lo e não para falá-lo” (ALBERTINI, 1992, p. 53). Entretanto, por alguns anos ainda, os sucessos da “Ordem moral” (1873-1877) (MAYEUR, 1984, p. 47sq.) retardarão estas reformas, mantendo no mesmo estado as humanidades clássicas. Após 1870, as questões escolar e religiosa é que vão definir a separação entre liberais e conservadores. No final de 1871, por exemplo, o positivista Littré é eleito para a Academia, o que provoca a indignação do bispo de Orléans (MAYEUR, 1973, p. 18). Nesta época, que segue a derrota e que acolhe bem o vocabulário da regeneração moral da pátria, os republicanos não podem ficar atrás neste campo. Assim, seja na boca de Thiers ou Mac-Mahon, o discurso “moral” é onipresente nos inícios da III República; não se trata, portanto, apenas, de um vocabulário da direita conservadora. Podemos lembrar, aliás, que foi um especialista da Antiguidade preocupado com a moralidade - como o demonstra sua argumentação contra a escravidão, antiga e moderna - H. Wallon (WALLON, 1988), que é o autor do texto que, aprovado com a maioria de um voto no Parlamento, fundou a III República na França (AZEMA e WINOCK, s.d., p. 85sq). A nova atitude em relação à religião e à escola é o fruto de um compromisso. J.-M. Mayeur explica assim as razões do sucesso republicano, durante muito tempo incerto: Assim, é nesta aliança entre uma fração da grande burguesia, as “camadas novas” e o povo das cidades e dos campos que reside o segredo da vitória republicana. (MAYEUR, 1973, p. 51) Este mundo tão diversificado está animado por algumas aspirações comuns, como a ascensão social, e é por isto que as reformas escolares estão no centro do debate político. À frente do combate laico, encontramos Gambetta, que se pronuncia repetidas vezes contra o clericalismo Gambetta que, em 4 de maio de 1877, faz o discurso que marcará por muito tempo o programa comum dos republicanos: Eu não faço senão traduzir os sentimentos íntimos do povo da França dizendo do clericalismo o que dizia um dia o meu amigo Peyrat: o clericalismo ? Eis o inimigo. (MAYEUR, 1973, p. 38.) Gambetta não é o único, longe disso, a desenvolver esta argumentação. Os discursos de Paul Bert mostram a associação entre o anticlericalismo e o culto da ciência. Para ele, a educação religiosa é incompatível com a ciência moderna. O mesmo P. Bert, ainda mais virulento que Gambetta, compara, num banquete republicano em Auxerre, o clericalismo ao philoxéra, doença que então dizimava os vinhedos da França: e ele 131

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então prescrevia os dois remédios: o sulfato de carbono e o artigo 7 da lei Ferry! (REMOND, 1985, p. 190). Nós vemos muito bem, neste caso, que os republicanos queriam mobilizar a ciência em todas as situações, para curar os males da França, sejam de natureza agrícola ou política e intelectual. Para Erckmann-Chatrian, bastaria dar uma olhada em qualquer lugar para observar os males da fé católica, mesmo em relação a outras religiões; segue então uma comparação sistemática em detrimento dos países católicos, o México em relação aos Estados Unidos, os cantões suíços católicos em relação aos cantões protestantes, as aldeias católicas da Alsácia em relação às luteranas ou judaicas, etc. O catolicismo romano é, em toda parte, sinônimo de atraso, obscurantismo, pobreza, falta de higiene. A República se apóia, portanto, sobre o positivismo, na sua confiança no ensino e na educação (indissociáveis), sua recusa da transcendência, sua fé na humanidade (MAYEUR, AZEMA e WINOCK, s.d., p. 159sq). A vida de Littré encarna muito bem as relações íntimas que existiam no século XIX entre ciência, religião e política, como bem mostrou, entre outros, C. Nicolet (NICOLET, 1982, p. 194sq). Littré, vulgarizador do positivismo, exerceu influência direta nos grandes nomes do regime republicano. O sucesso do positivismo preparava e reforçava o combate laico. F. Buisson explica, no Dicionário de pedagogia, a palavra “laico”, mostrando que vem do latim laïcus e do grego laïkos, derivado do laos, povo, nação (COUTEL, 1991, pp. 226-227). Vemos todo o interesse da sua demonstração pela etimologia. A laico, ele opõe “clero”, do latim clericus e do grego klêros, “lote”, “parte”, e mais tarde “a boa parte”, “os eleitos”. Tratar-se-ia, portanto, de uma oposição imemorial entre o geral e o particular, o povo e os eleitos, a Nação e a Igreja. Mas, o grande personagem desta reforma republicana da escola é Jules Ferry, ministro da Instrução pública de 1879 a 1885, duas vezes presidente do Conselho neste intervalo. Depois de Gambetta, é Ferry que “encarna a face do regime” (MAYEUR, 1973, p. 95); ele é um dos fundadores da república democrática e laica, que mantém o Estado liberal e toma iniciativas coloniais. No início da III República, a Igreja conserva uma força social importante, que inquieta os republicanos. Se eles pensam poder influir sobre o clero secular através da ação da Direção dos cultos (ligada ao ministério do Interior ou à Instrução pública), eles desconfiam das congregações, sobretudo da Companhia de Jesus, e especialmente do seu papel no ensino. Isto não é novo; nós vimos a mesma coisa trinta anos mais cedo, em Eugène Sue. É sobretudo após a morte de Gambetta (em 1882) que os republicanos aplicam seu programa, constituído pelas liberdades democráticas, laicidade do Estado e da Escola. Há iniciativas em todas as direções: eles abolem as disposições repressivas da Ordem moral; votam uma lei que dá liberdade de abrir e transferir os pontos de venda de bebida. Isto pode parecer anedótico, mas é muito sério, pois o cabaré se torna uma espécie de contra-igreja republicana (Ibid., 132

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p. 108). Dioniso, deus do vinho, terá seus “templos” e poderá ser, de várias formas, um deus republicano. Os republicanos queriam tirar do clero sua influência social e sua autoridade política. Na tradição da Revolução, cuja paixão, segundo Ferry, tinha sido de “ter constituído o Estado laico (...) ter acabado de tornar os órgãos da sociedade exclusivamente laicos (...) ter tirado do clero sua organização política, seu papel de corpo do Estado” (Ibid., p. 111). Para isto, eles contam, portanto, com a tradição revolucionária e com o positivismo. Como demonstrou R. Rémond (REMOND, 1985, p. 173), não é surpreendente que as paixões do combate entre clericalismo e anticlericalismo se concentrem sobre a educação, nem uma novidade; o mesmo tinha acontecido durante a Monarquia constitucional, a II República ou o Segundo Império. Mas, na maioria das vezes, em torno do ensino secundário ou universitário. Com a III República, a novidade é que é a escola primária que está no centro do debate. Ferry procede por etapas, em projetos de lei separados, que se referem à gratuidade, à obrigação, e à laicidade. Em 1882, a instrução religiosa não figura mais no programa e só pode ser ensinada fora das horas normais de aula. Ao contrário, na “instrução moral e cívica”, o mestre deve inculcar as “noções fundamentais que se encontram em todas as confissões religiosas e até fora delas”, segundo a expressão de F. Buisson (MAYEUR, 1973, p. 118). Esta laicidade da escola era para Ferry: A maior das reformas sociais e a mais séria, a mais durável das reformas políticas (...) quando toda a juventude francesa se terá desenvolvido, terá crescido sob esta tríplice estrela da gratuidade, da obrigação e da laicidade, nós não precisaremos mais temer o retorno do passado, pois nós teremos para nos defender (...) o espírito de todas estas gerações novas, formadas na escola da ciência e da razão, e que oporão ao espírito retrógrado o insuperável obstáculo das inteligências livres e das consciências liberadas. (Ibid., p. 113) A laicidade oscilará sempre entre a idéia de neutralidade do Estado entre os diversos cultos e a de uma filosofia racional ou anti-religiosa. Nos conflitos concretos, começa a se fixar uma espécie de “credo laico”, uma forma de ideal moral, mas sem dogma e sem padres; um “espiritual republicano” aspira a substituir o cristianismo. E nós não podemos dizer que se trata apenas das posições de alguns extremistas. Ferry, o pragmático, afirma também que “a teoria moral do positivismo é essencialmente, a substituição do amor da humanidade no lugar do amor de Deus”, ou ainda que “ a preocupação da salvação pessoal é, em si, anti-social” (PROST, 1968, p. 212). Ferry, herdeiro das Luzes e de Condorcet, enfrenta o cristianismo reacionário e anti-intelectual do seu tempo pela fé na razão e pela paixão republicana. Ele é ajudado por diretores, no ministério, que aplicam sua política e que, fato importante, permane133

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cem no cargo ainda muito mais tempo que o próprio ministro, tais como Louis Liard no ensino superior, Charles Zevort no secundário e Ferdinand Buisson no primário. Na tríade “gratuidade, obrigação, laicidade”, é a terceira parte que aparece como novidade revolucionária. Nos dois outros domínios, vários trabalhos já mostraram que a obra dos republicanos está em continuidade com os progressos decisivos registrados ao longo do século XIX (ALBERTINI, 1992, p. 64). Ora, nesta tríade, os católicos recusam tudo, pois eles temem a laicidade e percebem muito bem o caráter orgânico do pensamento republicano. A hierarquia católica, Pio IX, e sua condenação do século, endurecem a posição contra as reformas e obrigam os republicanos a dar um tom cada vez mais polêmico à secularização (PROST, 1968, p. 194). Ferry, pressionado pela esquerda, da qual ele tinha necessidade na Câmara, tenta dar soluções empíricas às questões onde um acordo não pode ser alcançado: crucifixo nas escolas, presença de um padre nos locais escolares, de que maneira falar de deus a uma criança, etc. A partir de 1890, há uma pausa; o campo laico constata a força da resistência cristã, e os cristãos constatam que não dispõem da força política necessária para se impor (Ibid., p. 198). Dois outros aspectos são muito importantes para esta “República dos republicanos” (Gambetta, Ferry). Inicialmente, a retomada da expansão colonial, no início por razões de orgulho nacional mais até do que por motivações econômicas. Os meios econômicos eram até bastante reticentes em relação a aventuras longínquas, de sucesso incerto e sempre muito caras (MAYEUR, 1973, p. 124 sq.). Mas (e isto é muito importante para o nosso tema) havia também o argumento “humanitário”, as “raças superiores” tendo o dever de civilizar as “raças inferiores”. A colonização traz Luzes e Progresso. Há portanto uma relação estreita entre política laica e política colonial, para além dos fatores puramente conjunturais. Nós observaremos, na análise historiográfica que se seguirá, o peso do vocabulário da “raça” em diversos autores. Mas, para voltar um pouco ainda sobre o caso de Ferry ou Paul Bert (“chefe” das Escolas Normais, e que morreu quando era governador da Indochina !), o progresso, a ciência, a razão, aparecem incompatíveis com as crenças e as civilizações tradicionais, donde a fundação da Aliança Francesa (em 1884), para difundir este ideal no ultramar. O outro aspecto é o problema moral. O ensino da moral divide cristãos e laicos. Os católicos não aceitam que haja uma moral fora da religião. Para eles, sem religião o campo fica aberto para a imoralidade. Segundo os republicanos, a moral é autônoma. Para alguns deles, a moral não existe sem metafísica, enquanto que para outros existe uma independência total da moral, que não é apenas uma espécie de resíduo socialmente útil da religião (PROST, 1968, p. 195). O acordo é difícil até entre republicanos; e esta é a razão pela qual os republicanos não podiam dar sinais de fraqueza quanto à moral. Donde uma espécie de surenchère sobre a moral nesta época, que não deixará 134

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de ter conseqüências no estudo de uma religião como o paganismo ou de uma divindade como Dioniso. Após 1890, a situação muda. O regime se fortalece, suas reformas já fazem parte da realidade, o perigo reacionário enfraquece e... o Papa muda de política, que se torna mais conciliadora em relação à República (MAYEUR, 1984, p. 147sq.). Enquanto que alguns republicanos levam em conta a nova situação, os laicos mais convictos vêem nisso apenas uma armadilha para enganar os republicanos. Tal é, por exemplo, a posição de Jaurès, de Bérenger, de Combes ou de Zola (REMOND, 1985, p. 197sq.). No fim do século há portanto uma crise no interior do anticlericalismo, já que passou a haver menos espaço para o combate tal como ele tinha sido conduzido no início do regime republicano. Ora, com o caso Dreyfus, dois outros temas passam a enriquecer o combate anticlerical: a aliança entre o exército e a Igreja contra a República e, por outro lado, o antisemitismo, nova encarnação da intolerância medieval, já que o jornal La Croix e uma parte do clero ficam no campo contrário à revisão do processo (Ibid., p. 205-206). Por outro lado, um novo impulso vem com os novos progressos, no início do século XX, da Maçonaria, da Liga dos Direitos do Homem e das sociedades de Livre Pensamento. Como diz M. Rébérioux: As cerimônias laicas confortam, nos livre-pensadores, o sentimento de pertencerem também a uma comunidade, a dos verdadeiros republicanos: batismos, casamentos, primeiras comunhões, enterros laicos, contraprocissões e manifestações contra a cruz nos cemitérios. Come-se carne na Sexta-feira Santa para afirmar sua liberdade de consciência, como se come a tête de veau no aniversário da morte de Luís XVI para ridicularizar os reis. (REBERIOUX, 1975, p. 45) A lei sobre as associações (de 1901) ataca as congregações e, sobretudo, o papel da Igreja no ensino. Nos anos que se seguem, Combes faz com que se fechem vários estabelecimentos, até que a lei de 1904 suprime todo ensino congreganista. Como diz ainda M. Rébérioux: Ao lado do anticlericalismo tradicional se exprime uma corrente ateísta militante que pretende se opor à difusão pelo canal escolar de todo e qualquer pensamento religioso. (Ibid., p. 67) Pressionada pela força dos militantes e pela política agressiva de Pio X, a França rompe relações diplomáticas com o Vaticano (1904) e vota (1905) a lei de separação entre a Igreja e o Estado, segundo a qual a República “garante a liberdade de consciência”, e “não reconhece, nem subvenciona, nem paga salário a culto de tipo algum”. Esta política põe fim ao Concordato, situação que, garantindo alguns direitos à Igreja, a obrigava a uma certa moderação. Com a separação, a Igreja fica liberada para uma oposição mais violenta (PROST, 1968, p. 209). Agora, os católicos começam a assumir 135

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várias reivindicações laicas de neutralidade na Escola, vendo que o cristianismo é cada vez mais criticado nos manuais, através de comparações (em sua desvantagem) com outras religiões. A história das religiões, com a relativização das crenças que ela implica, é, por si só, para a Igreja, uma ameaça. Se a lei de separação e o fechamento dos estabelecimentos congreganistas não acarretaram reações violentas, a realização dos inventários dos bens eclesiásticos provocou numerosos conflitos, seguidos de mortes (REBERIOUX, 1975, p. 85). Quando é dada aos padres a ordem de abrir os tabernáculos, os católicos falam de profanação. Toca-se no sagrado, e não é mais apenas a Igreja como organização que é atacada, mas também o local do Mistério. Isto é interessante, pois o mistério passa a ser muito discutido, e, ao mesmo tempo, como veremos, os historiadores da Antiguidade desta época se interessam muito pelos mistérios, pagãos e cristão. De 1905 a 1914, há um enfrentamento permanente. A lei republicana deixa de ser adotada em algumas regiões, os padres se recusam a ministrar os sacramentos às crianças que freqüentam a escola laica, o Vaticano condena a escola laica, neutra em matéria religiosa, e coloca no Index vários manuais escolares franceses. O governo não leva isso em conta, e não retira os manuais. Uma guerra civil surda, e às vezes até aberta, se desenvolve em torno da Escola, que se torna linha divisória entre a direita e a esquerda (PROST, 1968, p. 210). Mas é interessante observar que já neste momento, para uma ala avançada da esquerda, o anticlericalismo aparece como um combate burguês diversionista. Assim, para Jules Guesde: Durante muito tempo, para enganar a fome proletária, vos fizeram “comer o padre” (...) É no assalto da ordem capitalista que nós concentraremos doravante todos os nossos esforços. (REMOND, 1985, p. 219)

O ensino se transforma Vejamos agora os efeitos deste clima político e intelectual sobre o ensino. Como diz A. Prost, “a França do século XIX justapõe duas escolas: a escola dos notáveis e a escola de povo” (PROST, 1968, p. 10). Com Ferry e os republicanos, há a preocupação paternalista de uma promoção do povo, com uma aspiração real à igualdade, mas eles não questionam a distinção entre o primário e o secundário. A democratização do ensino primário não tem prolongamento no secundário, que recruta seus alunos na burguesia, nas classes médias e, no máximo, incluindo alguns bolsistas. Será preciso esperar o movimento socialista e a guerra de 1914 para que seja formulada a idéia de uma escola primária como uma primeira etapa (REBERIOUX, 1975, p. 75). No ensino primário, os professores, “hussards negros” da República, segundo Péguy, passam a idéia de que os homens se reúnem pela razão e se opõem pelas tradições religiosas. Ele deram uma dignidade moral a uma atitude que desde sempre tinha 136

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sido denunciada pela Igreja como uma obra do demônio, o que tornava sua expressão pública difícil, até para os mais convictos. Eles contribuíram, como mostra P. Albertini (ALBERTINI, 1992, p. 119), para reforçar o espírito crítico dos cidadãos contra igrejas e partidos. Sua insistência acerca dos valores da República como base da “identidade francesa” contribuiu para a assimilação das minorias e dos imigrantes. Sobre as diferenças entre o velho ensino e o novo, vejamos o que diz um dos seus mais eminentes formuladores, Paul Bert: O ensino pela via do catecismo é bom para formar crentes, na memória dos quais se impõe, no espírito dos quais se inculca à força, como uma marca de cera, um certo número de dogmas que eles deverão aprender e recitar sem a preocupação de compreender: mas é a pior da preparações para um cidadão inteligente e livre. É, ao contrário, a curiosidade de espírito que se precisa acordar, suscitar. É preciso desenvolver na criança a personalidade pensante (...) (COUTEL, 1991, p. 183) Ferdinand Buisson, por seu lado, no artigo “laicidade” do Dicionário de pedagogia e instrução primária, mostra que uma longa marcha tinha progressivamente secularizado o Estado, salvo o ensino primário, o que se mostrava essencial. E ele fixa os territórios: O professor na escola, o padre na igreja, o prefeito na prefeitura. Ninguém pode se dizer proscrito do domínio onde não entrou: é um fato que a distinção de atribuições nada tem de ofensivo contra ninguém, nem de prejudicial para nenhum serviço. (Ibid., p. 221) Mas o professor não deve simplesmente ensinar a ler, a escrever e a contar: É preciso portanto que o prefessor possa ser um mestre de moral ao mesmo tempo que um mestre de língua ou de cálculo, para que sua obra seja completa. (Ibid., p. 222) E Ferry, no debate parlamentar, quando era atacado acerca dos perigos “morais” de sua lei, e quando perguntaram a ele “que moral ?”, dizia: Mas simplesmente a boa e velha moral dos nossos pais, a nossa, a vossa, pois nós temos apenas uma. (Ibid., p. 223) No terreno concreto da vida social, houve vários anos de uma luta sem tréguas entre os professores da escola laica e os congreganistas, ou, após a interdição destes, com o padre. Assim, em determinada aldeia da Lozère (um exemplo entre mil), o livro de história dizendo que Joana Darc “tinha pensado” que escutou vozes, provocou a ira do padre e dos católicos, num caso que chegou até à imprensa regional e aos tribunais (REMOND, 1985, p. 195). Os livros de história eram um dos pontos sensíveis da questão, e mereceram muita vigilância. Ernest Lavisse, glória histórica do regime, fixa desta maneira o objetivo do ensino de história na escola: 137

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Ensino moral e patriótico: aqui deve chegar o ensino de história na escola primária. (ALBERTINI, 1992, p. 84) No outro extremo, as universidades viveram um longo sono até 1880. Em letras, elas só tinham por função compor os júris do baccalauréat e dar conferências mundanas. Um sentimento de carência aparece já sob Victor Duruy, com a criação da Escola Prática de Altos Estudos, para lançar a pesquisa, e as recomendações às universidades para que formassem verdadeiras turmas (PROST, 1968, p. 224). Mas foi a derrota na guerra que, atribuída à superioridade da pesquisa e do ensino alemães, marcou o início da renovação, logo encampada pelos republicanos. Quer seja antes da República ou a partir de sua fundação, os professores universitários são muito vigiados, o que limita sua participação nos debates públicos. Eles são em maioria laicos e de “centro-esquerda”, mas mais reservados do que militantes (Ibid., p. 80). Enquanto que no segundo terço do século, a pesquisa era feita fora da Universidade (na Escola Normal Superior, no Colégio da França, na Escola Prática de Altos Estudos -depois de 1868) ou, no nosso domínio, na Escola Francesa de Atenas), desde o seu início, a III República vai dar ao ensino universitário o seu perfil “definitivo”: multiplicação das universidades (uma por academia), Palácios Universitários, criação de vagas para professores, uma verdadeira formação na área de letras (o que é novidade) (MAYEUR, 1973, p. 149). Os historiadores, e principalmente da Antiguidade, estão em destaque. Depois de Duruy, Lavisse, Seignobos, Georges Weill, o helenista Waddington, Albert Dumont (primeiro diretor da Escola Francesa de Roma), Louis Liard; entre os grandes nomes do ministério, há freqüentemente especialistas da Antiguidade. Na área de letras, em 1880, há ainda uma licenciatura única, referente sobretudo às letras clássicas. Depois, passa-se à licenciatura com opção e, mais tarde, às licenciaturas separadas, em letras, em filosofia, em história. Os professores são em maior número, mais especializados, melhor remunerados. O orçamento do ensino superior, entre 1877 e 1914, é da ordem de 18% a 25% do orçamento da Instrução pública, que é, por sua vez, multiplicado por seis no mesmo período. Prédios prestigiosos, como a Nova Sorbonne, concluída em 1889, bolsas, bibliotecas, liberdade na fixação dos programas, forte representação nos Conselhos e Comissões de reforma do ensino; a República faz um grande esforço em benefício das universidades. Como diz P. Albertini: O ensino superior é, em muitos aspectos, a Igreja da República. Ele é para ela uma espécie de ministério da Verdade, que deve enfraquecer as verdades reveladas do catolicismo romano; ao mesmo tempo, deve promover a salvação intelectual da pátria, inspirando-se no exemplo do vencedor de 1871. (ALBERTINI, 1992, p. 107) 138

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Não é, portanto, por acaso, que vemos uma avalanche de ciência alemã nas notas de pé de página, nos trabalhos universitários franceses deste momento. As Faculdades de Letras, em especial, recebem por missão a de formar os formadores da República, e rivalizar em questões de método científico com a universidade alemã. As cátedras são diversificadas (no lugar das cinco tradicionais: filosofia, história, literatura antiga, literatura francesa, literatura estrangeira), separa-se o grego do latim, a geografia se desenvolve, e em história é feita uma divisão por períodos. As teses se tornam mais volumosas (510 páginas, em média, em 1900), e a tese latina desaparece em 1903. O positivismo se acompanha da historicização de todas as disciplinas literárias (Ibid, p. 109). A aspiração à exaustividade, o gosto pelo detalhe, a obcessão pelas fontes e pelo contexto nos aparecem hoje em dia como excessivos, mas todos estes aspectos representaram, na época, um salto qualitativo, que rompeu com o diletantismo de antes. Até a rivalidade com os alemães e o patriotismo fazem com que os pesquisadores franceses da época sejam cada vez mais informados sobre a pesquisa estrangeira. Os professores são “aristocratas da cultura”( Ibid., p. 122). Doutos e mundanos, eles têm relações de influência na diplomacia, na política, na Academia Francesa. Eles veiculam um modelo de brilhantismo e contribuem, num certo sentido, para prolongar a tradição dos estudos clássicos.

O ensino clássico O ensino clássico vê o prolongamento de uma época de turbulências e transformações que vem de longe. Entre 1795 e 1802, uma grande reforma no espírito das Luzes tinha diminuído radicalmente o espaço do latim e aberto o ensino em direção às ciências naturais e às matemáticas. Em seguida, retornou-se ao modelo dos jesuítas, e o latim se torna de novo hegemônico; faz-se um grande esforço de introdução do grego, que estava em baixa na França desde o final do século XVII. Com idas e voltas bruscas, a situação do ensino clássico é, em 1870, muito próxima do que era no século XVII (Ibid., p. 25sq ). Com este retorno, as elites querem construir o muro de um ensino afastado do século. A Antiguidade se torna “transhistórica”, adquire um valor ideal, irreal. Ensina-se uma moral antiga expurgada e conciliável com o cristianismo, o que obriga, como veremos, a muitas contorsões na interpretação da Antiguidade. Entretanto, as reformas no ensino da leitura, que muda rapidamente em meados do século XIX (PROST, 1968, p. 121), tendem a assimilar a leitura do latim a um exercício para formar cristãos, enquanto que o estudo da história antiga pagã se desenvolvia num sentido contrário, de contra-modelo que se opunha ao cristianismo. Declínio do latim e desenvolvimento da história antiga não são processos contraditórios, mas obedecem a uma mesma lógica de combate contra o cristianismo. Victor Duruy, por exemplo, um grande nome francês da história antiga em meados do século XIX, cria o ensino secun139

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dário especial (em 1863), ensino profissional que tem um sucesso imediato, mas que provoca reações entre os partidários dos estudos clássicos, que desfrutavam ainda de grande prestígio no fim do Segundo Império. Duruy aparece, na época, como um adversário do ensino clássico. Nas suas Memórias, ele se explica: O que eu vi nos outros liceus e colégios durante os meus dois anos de inspeção geral, me confirmou no pensamento que, se era excelente fazer, pelos estudos clássicos, letrados, advogados e médicos, não era menos importante dar aos futuros empregados do comércio, da indústria e da agricultura, os conhecimentos especiais que sua profissão reclamava.(Ibid., p. 58) Estas reformas abrem a “questão do latim”, que vai durar décadas. O latim era ainda preponderante por volta de 1870. Os republicanos pedagogos, fiéis ao espírito enciclopédico, hostis à tradição, diminuem seu espaço, reforçando, em seu detrimento, o grego e o francês (por exemplo, Ferry, em 1880). O discurso francês suplanta o discurso latino no baccalauréat. Mas, mesmo com esses golpes sucessivos, que se escalonam até 1905, haverá ainda dez horas de latim por semana na classe de sixième ! Raoul Frary, na Questão do latim (1885) denuncia os valores ligados ao latim (obediência, monotonia, recusa do livre exame) e propõe que ele seja substituído pela geografia (as “coisas” no lugar das “palavras”). Este é um argumento que tem receptividade nesta época positivista, mas que não deixa de provocar reações, tanto mais que Frary é, ele próprio, um puro produto das humanidades clássicas (Louis le Grand, Escola Normal, agregação de letras), encarnando assim esta figura tão tipicamente francesa do “príncipe regicida”, fenômeno constante dos estudos clássicos, que encontra sucessivas encarnações, de Victor Duruy a Pierre Vidal-Naquet... Temos, portanto, os que são a favor, os que são contra, e também, outros, que se interrogam sobre uma possível adaptação. Assim, Michel Bréal, em 1872: A infelicidade quer que, estas questões, na França, sejam sempre colocadas de forma absoluta. Discute-se se o latim e o grego são estudos úteis ou se é melhor suprimi-los. Mas poucos pensam em se perguntar se a maneira como nós praticamos o estudo das línguas antigas é a melhor, se queremos obter o proveito intelectual que a sociedade está no direito de exigir. Parece que se supõe (...) que a única alternativa que nos é oferecida, é de seguir ou de renunciar ao estudo das línguas clássicas.(Ibid., p. 58) Este tipo de reflexão participa do esforço de redefinição da funcionalidade do Antigo na sociedade contemporânea. Se não há consenso acerca da educação clássica, é porque até uma parte da burguesia é apegada a esta “seleção pelo latim”, que corresponde a um ideal de estudos desinteressados. As reformas de 1880, 1884, 1890 são debatidas de forma apaixonada porque parecem se referir aos próprios fundamentos da sociedade do momento. As “línguas mortas” conseguem conservar pelo menos 140

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um terço do horário no ensino secundário. Mas as críticas e as pressões, fortes, fazem mudar a abordagem desses estudos. Ernest Lavisse fala da seguinte forma, em 1902, das suas lembranças de uma educação isolada do real: Eu tenho o sentimento de ter sido criado num meio nobre, estrangeiro e distante. Eu vivi em Atenas no tempo de Péricles, em Roma no tempo de Augusto, em Versalhes no tempo de Luís XIV. (PROST, 1968 , p. 62) Este tipo de crítica justificou as reformas do fim do século. Mas o latim é salvo por uma nova atitude; não se trata mais de formar latinistas e helenistas. Pede-se a estas línguas que contribuam à formação geral do espírito. O argumento é o de que, mesmo que isso se revele mais tarde inútil aos futuros comerciantes e industriais, trata-se de uma espécie de ginástica intelectual insubstituível. Há, portanto uma “retirada estratégica”, que vai fixar esta nova “linha de defesa”, utilizada até à usura pelos classicistas durante um século. Uma outra linha de defesa será igualmente utilizada: a de favorecer o desenvolvimento das humanidades modernas, para poder assim melhor resistir às pressões por movimento no interior das disciplinas clássicas e, por outro lado, de se desembaraçar dos alunos menos dotados (Ibid., p. 255). Assim, se ganha em prestígio o que se perde em força hegemônica. Desta maneira, o modelo do latim, ou seja, o da tradução (versão) é onipresente, do início da sixième ao baccalauréat. Para os seus defensores, a versão fortalece a inteligência, prepara para o exercício do francês, permite compreender o clássico francês (do século XVII), cujos autores eram leitores de Tito-Lívio, Cícero e Tácito. Este modelo inspira então a versão alemã ou inglesa e as enfraquece, fazendo do “moderno” uma pálida cópia do antigo. Em balanço, poderíamos dizer que o fim do século XIX inaugura “a crise dos clássicos”. Jules Ferry, no seu famoso discurso “Sobre a igualdade de educação” (discurso da sala Molière), reivindica a herança de Condorcet e critica o ensino clássico: Condorcet, inicialmente, fundava o ensino sobre uma base científica. Naquele momento, o velho ensino literário da Igreja tinha ainda uma aparência brilhante; os colégios dos jesuítas formavam alunos incomparáveis pelo verso latino e para os exercícios de memória; esta tradição, de resto, não se interrompeu; eu conheci um jovem que tinha sido educado pelos jesuítas e que tinha tirado disso um grande proveito: ele podia, ao sair do colégio, recitar a Ilíada inteira, os doze cantos, começando pelo último verso. (Risos). (COUTEL, 1991, p. 104) O ensino clássico é ridicularizado. A República tem necessidade de outra coisa: formar cidadãos com razão e espírito crítico. A ambigüidade é que para este fim, a história antiga era uma excelente arma de combate, contra a história eclesiástica em especial (politeísmo contra Revelação; filosofia contra religião; liberdade cívica contra monarquia). Será preciso esperar o pensamento socialista para se ver a for141

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mulação de críticas mais corrosivas. Jean Jaurès, quando fala da república moderna, desde a Revolução, diz: Eles não buscaram se tranqüilizar pelo exemplo das repúblicas antigas ou das repúblicas helvéticas e italianas. Eles viram muito bem que criavam uma obra nova, audaciosa e sem precedentes. Não era a liberdade oligárquica das repúblicas da Grécia, repartidas, minúsculas, e apoiadas sobre o trabalho servil. Não era o privilégio soberbo da república romana, alta cidadela de onde uma aristocracia conquistadora dominava o mundo (Ibid., p. 50) Jaurès era, como podemos constatar, um bom leitor de Rousseau, mas num ponto ele se enganava redondamente. Os revolucionários buscaram sim, e com freqüência, se tranqüilizar com a evocação da Antiguidade. Mas isto não é mais possível de ser admitido na leitura de um socialista. Um republicano podia jogar a história antiga contra o latim; um socialista se inclinava a recusar os dois ao mesmo tempo. Mas isto nos leva para fora dos nossos limites, e precisamos voltar aos republicanos. Para eles, a comparação entre culturas, línguas, religiões, sociedades, é uma tradição, desde que a oposição entre ciência e religião tinha sido estabelecida. É neste contexto que a sociologia (comparativa por natureza) vai se desenvolver no fim do século. É neste contexto que os estudos antigos serão dominados pelo comparativismo indoeuropeu e, mais tarde, pelo comparativismo antropológico. Paul Bert (que opunha o ensino laico, que desenvolve a atividade, a ciência, o progresso, ao ensino religioso, que engendra a inação, a superstição) assinala as conseqüências do ensino laico no campo dos estudos históricos: No domínio moral, a mesma diferença. Em história, o ensino religioso não julga os homens pelos serviços gerais que prestaram ao mundo. A Igreja se preocupa pouco que tenham trabalhado para o progresso, para o desenvolvimento da civilização e pela libertação da Humanidade; não, ela os estima pelos serviços que prestaram à Igreja. Ela canoniza Constantino, o incestuoso; ela celebra Clóvis, o assassino; ela incensa Simão de Monfort, o exterminador ! (REMOND, 1985, p. 192) Paul Bert vai mais longe que a maioria dos republicanos, que queriam, sobretudo, mostrar que eles eram tão morais quanto os cristãos. Bert formula uma atitude agressiva, lançando a acusação de imoralidade no campo da Igreja e da leitura cristã da história. Assim, os republicanos franceses prestaram este enorme serviço, que foi o de mostrar a todos os cidadãos que não há neutralidade em matéria de ciência e, com mais razão ainda, que não há neutralidade na história. Gostaria de terminar este ponto evocando um caso individual muito rico e esclarecedor deste clima político e intelectual: o caso de Émile Guimet. Nascido em 1836, filho de um industrial de Lyon, Émile assume muito cedo a direção das usinas de seu 142

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pai. Ele viaja muito: em 1876, munido de uma ordem de missão do ministro da Instrução pública, ele parte para o Japão, onde visita templos e mosteiros. Ele tinha sido encarregado do “estudo das religiões” e, com a ajuda do futuro diretor do Museu Imperial de Tóquio (que foi um dos promotores da reforma do ensino no Japão), ele se aproveita da relativa desafeição pelo budismo (o imperador Meiji queria restaurar o xintoísmo, reputado como mais “nacional” que o budismo, “religião estrangeira”) para comprar mais de trezentas pinturas, seiscentas estátuas, mil volumes. Ele faz a exposição deste material na Exposição Universal, e pretende criar um museu das religiões. Modernização é uma palavra de ordem, na França como no Japão, e, nos dois casos, o ensino e a religião estão inextricavelmente misturados. Guimet tinha anteriormente, se interessado pelo Egito, onde esteve em 1865: “Então se perfilou diante de mim esta formidável história do Egito, com suas crenças complicadas, sua religião intensa, sua filosofia grandiosa, suas superstições mesquinhas, sua moral pura” (DE ROUX, 1991), diz ele. E vemos esta preocupação com a “moral”, que obcecava os que então se interessavam pelas religiões não-cristãs. Guimet afirma ter se dedicado à indústria para ser útil ao povo, à música para distraí-lo, feito escolas para instruí-lo e “se eu fundei o Museu das religiões, foi para dar aos trabalhadores o meio de serem felizes (...) Para obter este resultado, eu consultei a história das civilizações, eu procurei, em todos os países, quais os homens que quiseram fazer a felicidade dos outros, e eu descobri que foram todos os fundadores de religião” (Ibid.). Para homens como Guimet, a felicidade não está mais na escolha da religião correta, e sim no acesso a verdades diferentes. De volta, ele apresenta um relatório ao ministro, funda uma Escola Oriental em Lyon, abre um primeiro museu, inaugurado por Jules Ferry em pessoa em 1879. Ele logo pensa em transferir o Museu para Paris, e doa sua coleção ao Estado, em 1885, com a condição de que um museu seja construído na capital. De Roux, que nos relata estes acontecimentos, lembra que: O Conselho Municipal de Paris, que deve desembolsar um milhão de francos-ouro para a compra do terreno, reluta. A III República, radical e anticlerical, vê com desconfiança a construção de um templo, ainda que laico, dedicado a todas as religiões do mundo. (Ibid.) Um dos participantes do debate, M. Cattiaux, critica o projeto: Mesmo achando que a oferta do Sr. Guimet é muito generosa, eu penso que nós temos coisa melhor a fazer do que gastar um milhão na instalação de um museu das superstições. As religiões e seus fetiches deveriam estar enterradas há muito tempo; haveria menos tolices e menos guerras.” (Ibid.) Alexandre Millerand, radical, futuro Presidente do Conselho, defende o projeto: Colocar sob os olhos do público o passado das religiões desaparecidas é o melhor método, na minha opinião, de combater as religiões atuais. (Ibid.) 143

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O projeto foi aprovado, o prédio neoclássico construído perto do Trocadéro, e inaugurado por Sadi Carnot, em 1889. Lá vão se desenrolar visitas guiadas, conferências, comunicações, mas também cerimônias religiosas; edita-se uma revista, e rapidamente a biblioteca se torna uma referência no campo dos estudos orientais. Sob o impulso de Guimet, este templo politeísta cria raízes na Place d’Iéna. Nas palavras de Millerand, vemos muito bem o que podia, então, ser o interesse pelas culturas antigas e suas religiões: um meio, pela comparação e relativismo, de combater, de diminuir a importância da religião católica. A educação e a informação, contra o dogma e a Igreja.

Notas: * Para uma análise exaustiva da questão aqui abordada, o leitor pode consultar o texto completo na minha tese de titulação, Classicismo e liberdade. Belo Horizonte, UFMG, 1997, ou no meu livro Religion grecque et politique française au XIX siècle. Paris, L’Harmattan, 1998.

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História da Tradição Clássica no Brasil dos séculos XIX e XX. Egito antigo no Brasil: egiptologia e egiptomania. Margaret M. Bakos118 (PUC/RS) Raquel dos Santos Funari119 (Unicamp)

Como o Egito Antigo chegou ao Brasil? Inúmeros acadêmicos de História declararam que o seu interesse pelo curso foi despertado em aulas sobre o Egito antigo ao longo do primeiro e do segundo grau. Essa escolha se deveu aos seus bons professores, cujos nomes, inclusive, foram muitas vezes mencionados nos questionários que, há mais de dez anos, uma das autoras aplica aos alunos dos seminários em História Antiga, na PUCRS. Entretanto, encontram-se também outras origens para esse fascínio pelo antigo Egito, como a assistência a filmes, práticas de cunho esotérico, contatos com instituições seculares como a Rosa Cruz e a Maçonaria e, principalmente, leituras de artigos em jornais, revistas populares e romances clássicos. Aos treze anos de idade, a leitura do romance O Egípcio, de Mika Waltari foi um dos elementos a despertar-me forte interesse pelo antigo Egito, depõe, Ciro Flamarion Cardoso, Professor Titular de História Antiga, na Universidade Federal Fluminense. No Egito ainda permanece a única das sete grandes maravilhas da Antigüidade - as três pirâmides de Giza, as quais junto com a esfinge de Quefrem e dezenas de obeliscos se tornaram os três grandes ícones do imaginário coletivo da humanidade sobre a terra nilótica. Pela sua antiguidade, os valores simbólicos que lhe foram agregados, tais imagens são consideradas, de um lado, patrimônios da humanidade, mas de outro, elas fazem parte do cotidiano dos brasileiros, bastando para notá-los que a pessoa se conscientize de suas presenças.

Egiptologia, egiptofilia e egiptomania A egiptomania é uma das três maneiras de se manifestar interesse pelo Egito antigo. As outras duas são a egiptologia, ciência criada no século XIX, a partir da decifração dos hieróglifos por Champollion, que estuda tudo que é relativo ao antigo Egito, e a egiptofilia, que consiste no gosto pela arquitetura, objetos e textos egípcios ou que versam sobre eles. A egiptomania é o fenômeno mais antigo dos três: constitui-se na transculturação, isto é, na apropriação de elementos de uma cultura por outra, fato que implica, sempre, em mudança, transformação de conteúdo ou de expressão. (BAKOS,

 rofessora Doutora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com Pós doutorado em Egiptologia - University ColleP ge London - 1988/89. Líder do Grupo de Pesquisa, cadastrado no CNPq, sobre Egiptomania. www.pucrs.br/ffch/historia/egiptomania E-mail: [email protected] 119 Doutoranda em História, UNICAMP, participante do Grupo de Pesquisa Egiptomania, liderado pela Profa. Margaret M. Bakos.

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2005, p. 238) A egiptomania é o fenômeno que pode ser estudado tanto em relação a essa longevidade, manifesta pelo uso sistemático de três grandes ícones – pirâmides, esfinges e obeliscos –, como no que concerne ao entendimento, de cunho genealógico, do surgimento de casos isolados, particulares e localizados em diferentes contextos do planeta, de apropriação como é o caso de uma festa temática, sobre o Egito faraônico, a acontecer no extremo sul da América do Sul, no início do III milênio. (BAKOS, 2005, p. 238)

Egiptologia no Brasil A egiptologia, no Brasil, se formou a partir de exemplos fornecidos pela família real portuguesa, a partir de dois momentos. O primeiro se refere às primeiras políticas públicas de urbanização no Brasil. Ao final do século XVIII, a cidade do Rio de Janeiro se tornou o principal porto da colonia portuguesa americana e a capital do Vice Reino. Face à importância conquistada pela vila aos olhos da Coroa, um programa de urbanização da cidade foi élaborado, sob o modelo lisboense. O projeto, marcado pelo espírito das luzes, trouxe a influência egípcia à arquitetura brasileira, notadamente através do trabalho de Mestre Valentim, considerado o primeiro paisagista moderno brasileiros (BAKOS, 2004, p. 58). O segundo, trata-se da constituição da primeira coleção egípcia no páis, atualmente em exibição no Museu Nacional do Rio de Janeiro, por d. Pedro I. D. Pedro II, profundo estudioso de história universal, versado em hebraico e árabe, teve condições de discutir com competentes egiptólogos sobre os misteriosos significados dos textos em escrita hieroglífica. O imperador brasileiro chegou a visitar o Egito por duas vezes, em 1871 e em 1876. Na segunda viagem, foi presenteado por Quediva Ismael, então paxá egípcio, com um sarcófago da época Saíta, a célebre dinastia do século VII a.C. (BAKOS, 2004, p. 17) Os currículos nas escolas brasileiras, a partir dos modelos europeus, tradicionais e da realeza, deram à história um papel de excepcional importância, o que levou, por forte influência do positivismo, à valorização do passado humano e à criação, no século XX das Faculdades de História. (BAKOS, 1986, p. 156).

Egiptomania no Brasil A gênese da egiptomania é de difícil resgate neste país e no mundo, de um lado, porque seu surgimento é muito antigo, iniciando no contexto umbilical da história da humanidade; de outro, pela liberdade, multiplicidade, originalidade, beleza e variedades de técnicas empregadas nessas transculturações. (BAKOS, no prelo). A egiptomania começou no Brasil nos inícios do século XIX. Os exércitos de Napoleão Bonaparte invadiram Portugal , obrigando D. João VI, sua família e sua corte a virem para o Brasil. D. João VI, preocupado com a cultura, trouxe para cá material para 150

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montar a primeira gráfica brasileira, onde foram impressos diversos livros e um jornal chamado A Gazeta do Rio de Janeiro. Nesse momento, o Brasil recebe forte influência cultural européia, intensificada ainda mais com a chegada de um grupo de artistas franceses (1816) encarregado da fundação da Academia de Belas Artes (1826), na qual os alunos poderiam aprender as artes e os ofícios artísticos. Esse grupo ficou conhecido como Missão Artística Francesa. Esses artistas pintavam, desenhavam, esculpiam e construíam à moda européia. Obedeciam ao estilo neoclássico (novo clássico), ou seja, um estilo artístico que propunha a volta aos padrões da arte clássica (greco-romana) da Antigüidade. Os artistas da missão francesa fizeram as arquiteturas provisórias efêmeras, isto é, o Arco do Triunfo, pirâmides e obeliscos para dar uma impressão de monumentalidade ao Rio de Janeiro. Poucos sabem que o gosto e a prática pela transculturação de elementos da cultura egípcia antiga, no Brasil, chegaram até nós vindo não apenas da Europa, mas diretamente da África e do oriente, ao sabor de etnias, de credos e de valores mundanos muito diferenciados. O Egito é um país africano, seus monumentos e história são patrimônios da epopéia humana, fortemente arraigados e presentes no imaginário brasileiro na atualidade. O conceito de transculturação identifica essa passagem de transferências culturais da África para o Brasil, ao abandonar a expressão ‘re’utilização, zona de ensimesmamento, da repetição, adota-se, nesta pesquisa o prefixo ‘trans’que remete a ‘para além de’. Nesta ótica, todas as práticas de apropriação dos elementos constitutivos da cultura egípcia se tornam, além de exemplares únicos, em fragmentos preciosos de um fenômeno mais longevo de transculturação identificados e entendidos desta forma nesta pesquisa, no Brasil, e que vem atravessando espaços oceânicos e continentais em um movimento contínuo e intermitente: a apropriação, por outras culturas, de elementos do antigo Egito. Elas demonstram que a civilização ocidental foi construída tomando algumas peças de empréstimo ao chamado oriente antigo, denominação genérica que apaga a condição geográfica africana do Egito, ainda que o mosaico resultante fosse sempre diferente, essencialmente ele era o mesmo (BAKOS, no prelo). A egiptomania, considerada por alguns como um produto da campanha de Napoleão Bonaparte, ao Egito, no século XVIII, fato que levou à descoberta da Pedra de Roseta e à decifração da escrita hieroglífica, por Jean François Champollion, através do estudo de suas inscrições bilíngües, possui, na verdade, raízes no mundo antigo, com ênfase, no período greco-romano. As experiências de egiptomania serviram para atiçar, alimentar, renovar a ancestral chama da paixão dos ocidentais por aquilo o que, a seus olhos era fascinante: o exótico oriente antigo que, desde o século IV a.C, com a conquista do Egito por Alexandre da Macedônia despertava a curiosidade. A partir de então, pela bacia do Mediterrâneo oriental navegaram, do continente africano ao 151

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europeu, obras primas originais dos egípcios antigos que se, de um lado, construíram as coleções de peças egípcias dos museus do mundo inteiro, de outro, forneceram modelos para as práticas de egiptomania, essas também universais. A egiptomania, devido à sua importância e representatividade, constitui, como bem aponta Jean Marcel, um domínio próprio privilegiado e singular na história da arte. (HUMBERT, 1993, p. 21). No presente texto, esse processo gigantesco de transferências culturais serve de fundamento para a visão da presença do Egito antigo entre nós através, na maioria dos casos, dos olhares dos clássicos da antiguidade que criaram os modelos interpretados pelos criadores da egiptomania brasileira, independente do grau de instrução, de classe social e/ou da condição econômica que ocupam. A egiptomania é o espaço da união entre a ciência e a imaginação, do bom humor, da atração pelo sensual, pelo exótico, pela riqueza, pela monumentalidade, pela vida eterna e vende muito bem os produtos que anuncia. Neste sentido, a egiptomania é, atualmente, um dos veículos mais antigos para anunciar coisas modernas no Brasil e no mundo todo120!

Práticas de egiptomania no Brasil A egiptomania é o fenômeno mais antigo de transculturação, isto é, de apropriação de elementos de uma cultura por outra, fato que implica, sempre, em mudança, transformação de conteúdo ou de expressão. Nas palavras de Agnes Heller, o universal no homem é a linguagem; nenhuma é superior ou inferior a outra: todas desempenham suas funções de modo adequado. O marco teórico triunfal da linguagem e do discurso revela o nascimento da consciência da generalidade refletida. Segundo a autora, o criador, o artista, a personalidade particular pode possuir as condições de reflexão direta sobre a generalidade, a humanidade. As pessoas confinadas em suas integrações particulares não reconhecem a si próprias no passado da humanidade e, às vezes, sequer conseguem, valorizar as trocas culturais entre o presente e o passado tão à vista de seus olhos. Essa é uma das razões que conferem aos estudos da egiptologia uma condição de superioridade em relação às pesquisas sobre egiptomania. Assim, a egiptologia, ciência que estuda as coisas egípcias, de forma científica, tradicional, cartesiana, tornou-se, pelos seus princípios metodológicos racionais e lógicos, mais valorizada que a egiptomania, que analisa práticas muito mais antigas, valorizando os aspectos emocionais das criações. É que essa última não condiciona a apropriação de elementos do antigo Egito, ao conhecimento específico e erudito de seu significado original, à época de sua criação, 120

Jean Marcel Humbert tem realizado pesquisas sobre Egiptomania em todo o mundo e, atualmente, na China. Entrevista concedida a autora em setembro de 2004, em Paris.

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mas à sensibilidade daqueles que a utilizam, seja para expressão artística, seja para a venda de algum um produto. (BAKOS, 2003, p. 275). À luz desse pensamento pode-se pensar sobre os exemplos de práticas de egiptomania presentes no cotidiano brasileiro: João freqüenta a Academia Pirâmide, em Natal, faz negócios imobiliários com a Construtora Pirâmide, em Porto Alegre, com a Hórus Engenharia, em Curitiba/ PR - Campo Grande/ MS e com a Imobiliária Pirâmide - Capão da Canoa/ RS. Ele se auxilia da Disk Entulho Pirâmide, de São Paulo/ SP, para limpar as caliças, busca a Pirâmide Portões automáticos, para segurança, a Ótica Pirâmide - Porto Alegre/ RS para fazer suas lentes. A Pirâmide Gás - Porto Alegre/ RS abastece sua cozinha, enquanto o futuro da família ele reserva à Pirâmide seguros - Porto Velho/ RO. Ele volta ao Pirâmide Palace Hotel , Natal, com coisas boas para os amigos compradas no Faraó Pães e doces - São Paulo/ SP, e mimos do Akhenaton (objetos para presente) - Porto Alegre/ RS (BAKOS, 2004, p. 145). João teve todas essas escolhas, mas o próximo a cruzar com símbolos do Egito antigo no Brasil, pode ser você. Eles existem às centenas, basta você se dar conta disso. Reconhecer que o receptor é também o sujeito no processo de criação de egiptomanias é instigante e requer novas posturas metodológicas, baseadas em pressupostos que avancem em direção a um novo modelo teórico. Significa que o fenômeno pode ser estudado, tanto em relação a essa longevidade através do uso sistemático dos três grandes ícones já referidos – as pirâmides, as esfinges e os obeliscos –, como através do entendimento, de cunho genealógico, dos significados de cada caso isolado, importantes para a criação das identidades particulares de cada local do planeta em que foi localizado e/ou produzida, objeto deste capítulo, voltado para o Brasil. (BAKOS, 2005, no prelo).

Um estudo de caso: O Egito dos filmes e as crianças brasileiras Em 2001, uma das autoras iniciou uma pesquisa sobre os conhecimentos prévios que os alunos de escolas públicas e privadas do ensino fundamental, em especial da quinta série, trazem sobre o Egito Antigo para a sala de aula. A pesquisa realizada com 595 alunos (316 meninos e 279 meninas), demonstrou que as informações eram retiradas de desenhos animados, programas de canais comerciais e televisão a cabo, novelas, reportagens de jornais, revistas e especialmente de filmes. Assim, neste estudo de caso, foi analisado como muito da percepção que os alunos da quinta série, que ainda não estudaram o Egito enquanto conteúdo curricular está marcado pelo contato com as imagens cinematográficas e como isso pode condicionar a criação de sua identidade brasileira, a partir da experiência cinematográfica sobre o Egito Antigo.

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Cinema e Egito No século XX, o tema Egito foi levado ao cinema muitas vezes. Em cerca de cem anos, dezenas de filmes sobre múmias egípcias foram feitos. O primeiro grande filme do gênero foi a Múmia, de 1932, estrelado por Boris Karloff. Depois vieram A Mão da Múmia (1940), O Túmulo da Múmia (1942), A Praga da Múmia (1944), Na sombra da Múmia (1944) e A Múmia (1959). Recentemente cineastas de Hollywood voltaram a investir no tema e produziram A Múmia (1999), uma refilmagem do clássico de 1932. O filme rendeu quase 500 milhões de dólares, ocupando o trigésimo primeiro lugar na lista das maiores bilheterias de todos os tempos. Dois anos depois, Hollywood lançou o Retorno da Múmia, uma continuação cheia de efeitos especiais que mostra a múmia do poderoso Imhotep, pronta para andar pela Terra, em busca da imortalidade numa espetacular aventura, com efeitos especiais cheios de suspense e aventura. O cinema, “fruto da articulação de códigos e elementos distintos: imagens em movimento, luz, som, música, fala, textos escritos; tem a seu dispor imensas possibilidades de produzir significados. Tudo depende do modo como são combinados luz e sombra, velocidade e câmera, captura dos espaços, ângulos de filmagem e, acima de tudo, da seqüência temporal em que os planos (imagens entre dois cortes) são organizados na montagem”.121 No caso específico da grande maioria dos filmes ligados ao Egito, assistimos a articulação de ação, suspense e aventura que possibilita espectador desenvolver o que Pierre Bourdieu, chama de “competência para ver”, isto é, uma disposição, valorizada socialmente, para analisar, compreender e apreciar qualquer história contada em linguagem cinematográfica. Segundo pesquisa feita por Rosália Duarte, professora do departamento de educação e do programa de pós-graduação em educação da PUC do Rio de Janeiro, diferente da escrita, cuja competência pressupõe domínio pleno de códigos e estruturas gramaticais convencionados, a linguagem do cinema está ao alcance de todos e não precisa ser ensinada, sobretudo nas sociedades e grupos audiovisuais, em que a habilidade para interpretar os códigos e signos próprios dessa forma de narrar é desenvolvida desde muito cedo. A maior parte de nós aprende a ver filmes pela experiência, ou seja, vendo (na telona ou na telinha) e conversando sobre eles com outros espectadores. Para Marcos Napolitano, autor do livro Como usar o cinema na sala de aula, da editora Contexto, a história é uma das disciplinas mais afeitas a atividades com o cinema. O chamado “filme histórico” é um dos gêneros mais consagrados na história do cinema mundial. Vale lembrar, que geralmente o filme histórico revela muito mais sobre a sociedade contemporânea que o produziu do que sobre o passado nele encenado e representado. 121

Duarte, Rosália. Cinema & Educação. Autêntica, Belo Horizonte, 2002.

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O olhar do expectador, a partir de dois filmes: O Retorno da Múmia e O Príncipe do Egito Em pesquisa inicial com um grupo de alunos de quinta série do ensino fundamental, analisaremos dois filmes conhecidos desta faixa etária. O aluno pré-adolescente começa a desenvolver um olhar sobre o mundo e suas regras de funcionamento, ele percebe as diferenças entre os vários sistemas culturais, épocas históricas e diferentes civilizações. Geralmente, os gêneros preferidos dos alunos nessa idade são aventuras e ficção científica. As meninas tendem a demonstrar interesse por filmes românticos, embora esta divisão seja sempre problemática. Os filmes que falam do Egito Antigo são particularmente mencionados pelos alunos desta faixa etária, especialmente a partir da refilmagem de A múmia e do Retorno da Múmia. No filme O Retorno da Múmia, Os meninos demonstraram grande interesse pela cena em que os escorpiões saem da boca da múmia, em sua busca pela imortalidade. As cenas de lutas, ação, aventura são consideradas por eles como as “mais sensacionais e legais”. Já as meninas reagem, em geral diante das mesmas cenas com sensações de aflição, nojo, elas sentem-se assustadas, fecham os olhos para não verem, adoram, mas morrem de medo e às vezes sentem calafrios, prendem a respiração e gritam. O filme O Príncipe do Egito, uma aventura épica conquistou o público em todo o mundo ocidental, tornando-se um dos maiores filmes de animação de todos os tempos. A história de dois irmãos - um deles nascido com sangue real e o outro órfão, com um passado secreto - desperta reações interessantes deste expectador. Os meninos chamam a atenção para a construção das pirâmides, o trabalho escravo e a abertura do Mar Vermelho. As meninas mencionam a cena em que a mãe deixa o filho no rio, a escrava fugindo com o filho no colo e a morte do faraó. As diferenças apontam um dado bastante interessante, quando observamos relação subjetiva como as meninas, em geral, com dez e doze anos, apresentam cenas do filme o Príncipe do Egito ligadas aos filhos e à maternidade.

O Egito cinematográfico e a identidade das crianças A partir de análise inicial é bastante interessante observar como os filmes sobre o Egito apresentam um olhar masculino, branco e ocidental. O modo como o cinema lida com o feminino também é fruto de convenções e de natureza muito mais cultural do que técnica. Segundo a pioneira no estudo da mulher no cinema, E. Ann Kaplan, autora de A mulher e o cinema “as mulheres existem para serem olhadas”. Nos filmes O Príncipe do Egito e O Retorno da Múmia, podemos observar a maneira como os filmes buscam reafirmar o “papel das mulheres”, como cuidarem dos filhos, casarem-se, servirem ao marido e principalmente amarem incondicionalmente. Por fim vale lembrar que os filmes sobre o Egito buscam conquistar o expectador, até o final, com elementos 155

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nos quais cada um possa reconhecer e ou projetar seus sentimentos, medos, desejos, expectativas e valores.

Conclusão Tanto o estudo acadêmico do Egito Antigo, como das suas percepções, na forma da Egiptomania, demonstram sua relevância para a compreensão das tradições clássicas no Brasil. Por um lado, desde o início da nação, o fascínio pelo Egito marcou os passos iniciais da formação da nacionalidade, como no notável caso da Corte do Rio de Janeiro e dos seus órgãos de representação, como o Museu Nacional. Por outro lado, como procuramos mostrar neste capítulo, o impacto dos temas egípcios, que se restringia à elite, ampliou-se de maneira exponencial, a partir do século XX. Uma abordagem inovadora – genealógica - dos significados de cada caso específico, como particular de cada local do planeta em que foi localizado, produzido ou utilizado, insere-se nas recentes discussões da teoria historiográfica. Aplicada ao Brasil, demonstra sua fertilidade, ao permitir que lancemos novas luzes sobre nossas próprias identidades e representações sociais. O Egito Antigo - distante no tempo e no espaço - mostra-se muito presente, fecundo motor das nossas raízes clássicas brasileiras.

Agradecimentos Agradecemos aos organizadores do volume e mencionamos o apoio institucional do Curso e do Programa de Pós-graduação em História da PUCRS, CNPq, NEE/UNICAMP e do Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP, a responsabilidade pelas idéias restringe-se às autoras.

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Classicismo e coleções de moedas no Brasil Maria Beatriz Borba Florenzano122 (MAE/USP) As moedas antigas, fora de uso, fora da circulação das mercadorias, foram colecionadas por governantes, monarcas e por pessoas de poder praticamente desde a sua invenção no final do século VII a.C. Com efeito, são atestados entesouramentos de moedas desde o início do século VI a.C.; entesouramentos encontrados em boa parte das vezes em templos ou em outros locais consagrados aos deuses (FLORENZANO, 2000: passim). O que representam esses tesouros? Reserva de valores, economias ou há algum outro sentido nessas primeiras coleções de moedas? Para compreendermos o sentido primeiro do colecionismo de moedas é preciso entender a natureza desse objeto multifacetado, tão pequenino e tão poderoso ao mesmo tempo; capaz de transformar-se em qualquer objeto do desejo ou da necessidade; capaz de representar uma autoridade com todas as suas características; capaz de transmitir mensagens ideológicas, de poder, de religião; capaz de absorver tendências artísticas e de transmiti-las a locais próximos e distantes de sua origem. Carregada de idéias, a moeda desde o seu aparecimento foi e continua sendo um objeto emblemático da riqueza material, mas também da autoridade que a fabrica e que mantém o monopólio da sua produção. Foi e continua sendo um objeto que fascina e que instiga a observação e a curiosidade daquele que, eventualmente, por ele se interessar. As moedas antigas foram, pois, colecionadas por inúmeras razões, pela riqueza que representavam, pelo passado que carregavam, como lembrança de algum acontecimento, por sua beleza ou valor artístico, pela magia que desde o inicio a ela se atribuiu. Se as primeiras coleções de moedas na Grécia arcaica e clássica foram, em sua maioria, constituídas em associação a santuários e templos, posteriormente, no período helenístico, coleções ligadas mais ao poder terreno foram formadas quando os monarcas do Egito (os Ptolomeus) e da Síria (os Selêucidas) começaram a reunir objetos de arte –entre eles, com muita probabilidade, moedas- em suas respectivas cortes. Mais tarde, a partir do momento em que Roma começou a sua expansão, primeiramente na Península Itálica e depois na Sicília e no Mediterrâneo Oriental, os objetos da arte grega, inclusive moedas, começaram a afluir a Roma, a ser copiados extensivamente, a ser desejados pela elite que os toma por prêmio de seu poder sobre a helenidade e os usa como marca da legitimidade desse poder. Na Roma imperial, quando a procura por objetos de arte grega passa a ser uma verdadeira febre, também as moedas antigas encontram um espaço privilegiado. Nessa

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Museu de Arqueologia e Etnologia – USP

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época, moedas especiais eram fabricadas para serem distribuídas como presentes do Imperador aos senadores ou a membros destacados da sociedade. Mas, não apenas foram fabricadas moedas especiais ou até medalhas123 para serem distribuídas; moedas antigas, fora de uso, também foram distribuídas em ocasiões especiais como bem lembra Suetônio: nummus omnis notae, etiam veteres regios et peregrinos. (apud CLAINSTEFANELLI, 1965: 10) As moedas eram também colecionadas em época romana por sua excentricidade. É Plínio, no século I d.C. que relata que “métodos espúrios tornam-se objeto de estudo e uma amostra de denários falsificados é cuidadosamente examinada e a moeda adulterada é comprada por um preço ainda superior ao das moedas genuínas.” (HN, xxxiii,132) A procura por objetos da arte antiga esmoreceu durante a Idade Média, e nesta época não se registra a formação de coleções. Não que as moedas antigas não fossem conhecidas, ou guardadas, mas simplesmente as coleções de objetos da arte pagã em geral deixaram de fazer parte da agenda de reis cristãos. Mesmo assim, as moedas antigas, se achadas, foram guardadas individualmente, sobretudo, como talismãs, como objetos mágicos. É o caso das moedas gregas, romanas ou judaicas trazidas por peregrinos que retornavam da Terra Santa, ou ainda o caso famoso de um tetradracma de Rodes (BABELON, 1901: col.7) que foi identificado como um dos “trinta dinheiros de prata” recebidos por Judas ao trair Cristo e por isso foi guardado como relíquia por fiéis. Afora estas situações muito especiais, não há referências ao colecionismo de moedas na Europa durante o período medieval. Foi apenas na alta Renascença, a partir do século XIV, que começaram a se formar na Europa as grandes coleções de moedas no modelo que nos é familiar hoje, ou seja, a reunião de quantidades significativas de peças em grandes Gabinetes Numismáticos, associados a Bibliotecas ou a Museus. Não vamos aqui entrar nas características deste período da História da civilização européia, mas podemos afirmar com segurança que foi a procura pelos ideais do classicismo romano e em seguida grego que levou à formação das grandes coleções de moedas tão típicas deste período. 124 Pode-se afirmar também que os diferentes Estados Nacionais que se constituíram na Europa a partir do final da Idade Média, se apropriaram da Antigüidade clássica em vários dos seus aspectos de sorte a constituir uma ancestralidade para si, dando uma autoridade fundamentada na antiguidade e dando maior legitimidade aos novos pode-

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As medalhas apesar de seu aspecto físico muito semelhante ao das moedas propriamente ditas, diferem destas na medida em que não são batidas com pesos ou medidas adequados aos padrões monetários adotados no momento. Citamos aqui os dois livros que consideramos os dois grandes clássicos da historiografia do Renascimento, J. Burckhardt A cultura do Renascimento na Itália (S. Paulo, Cia das Letras, 1991 [1860]) e E. Panowsky Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental (Ed. Presença, 1981 [1960], textos fascinantes onde as razões da retomada consciente da Antiguidade clássica nesta época encontram explicações absolutamente convincentes.

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res que se formavam àquele momento. Foi neste contexto que as moedas tornaram-se objetos muito privilegiados de coleção. Em primeiro lugar, foram colecionadas as peças romanas que ilustravam a saga de cada imperador, que materializavam suas feições e ilustravam suas ações. Foi apenas depois de terem sido colecionadas as moedas romanas, que foram colecionadas as moedas gregas e, depois ainda, aquelas que iam sendo produzidas pelos novos governos ou que haviam sido fabricadas, em menor escala, durante a Idade Média. Francesco Petrarca (1304-1374), sem dúvida o maior nome do início da Renascença, nas suas Epistolae de rebus familiaribus descreve as moedas que comprou de camponeses durante sua estada em Roma; moedas em que conseguia distinguir com emoção os nomes e os traços dos imperadores romanos. O próprio Petrarca teria oferecido ao Imperador Carlos IV algumas moedas romanas de ouro e de prata, para que o monarca se “inspirasse, em seu governo, nos Imperadores Romanos”.(apud CLAINSTEFANELLI, 1965: 13) A partir daí, a busca por moedas, assim como por outros objetos da antiguidade clássica, se intensifica. As grandes famílias italianas como os Farnese, os Barberini, e os Medici passam a incorporar moedas em seus acervos de antiguidades. Da mesma forma o fizeram as casas reais da Inglaterra, da França, da Espanha, os Hapsburgos e os membros da nobreza inglesa, espanhola, francesa, e assim por diante. Já no século XIV as grandes coleções européias de moedas que hoje podem ser visitadas e estudadas estavam formadas ao menos em seu núcleo principal. Deve ser observado que enquanto os demais objetos antigos como as esculturas e fragmentos arquitetônicos, a pequena estatuária, os relevos, os vasos de argila pintados e tantos outros foram destinados a galerias ou a Gabinetes de curiosidades, as moedas receberam um espaço privilegiado, especial, muitas vezes junto às Bibliotecas reais ou às Bibliotecas da nobreza. Foram criados medalheiros, mobiliário sofisticado, com centenas de pequenas gavetas/bandejas, adequados à guarda, conservação e exame ágil das coleções monetárias. São famosos os medalheiros do Arquiduque Ferdinando do Tirol (1529-1595) colocado no Castelo de Ambras perto de Innsbruck do Rei Luis XIV (1651-1715) da França (o qual, diz-se, ia olhar suas moedas todos os dias) em Versailles (CLAIN-STEFANELLI, 1965: 15 e 22). Do século XIV ao XVIII, praticamente todos os governantes europeus, da rainha Cristina da Suécia (1626-1689) a Frederico II (1691-1732), príncipe de Saxe-Gotha, além de figuras importantes da nobreza ou da burguesia financeira ou comercial, interessaram-se em constituir grandes coleções de moedas gregas e romanas mas, sobretudo destas últimas. No transcorrer destes séculos, muitos membros da elite européia possuíam apenas as coleções de moedas, mas a maioria reservava um espaço especial às séries monetárias clássicas em coleções maiores de objetos variados da antiguidade clássica e também de objetos exóticos das terras longínquas como as Américas e o Oriente. Parece 161

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que “não havia príncipe nem lorde que não se orgulhasse de possuir moedas, ainda que muitos dentre eles sequer soubessem ler”.(apud BABELON, 1901:col. 103) Ao procurarmos entender o sentido destas coleções de moedas formadas a partir do século XIV, dois fatos chamam a atenção. O primeiro diz respeito à distinção que logo se fez entre moeda e os demais objetos colecionáveis da antiguidade clássica. A moeda não era um objeto preferido dos antiquários mais simples, por exemplo, que se detinham colecionando esculturas, pedaços delas, estatuetas e tantos objetos que o homem antigo havia produzido. As moedas foram parar quase sempre em mãos da elite e em grandes quantidades, formando séries, ganhando mobiliário específico e salas separadas para a guarda, profissionais contratados para a sua identificação e classificação. Por outro lado, as moedas ganharam, sobretudo a partir da invenção da imprensa e da subseqüente ´popularização’ dos livros, um estatuto mais consolidado como documento, como fonte de informação sobre fatos e eventos da antiguidade. Parece-me que a partir daí articula-se a associação mais tarde nos séculos XVII e XVIII dos Gabinetes Numismáticos às Bibliotecas. As moedas mais encontradas e as mais colecionadas eram, sem sombra de dúvida, as moedas romanas. Estas, bem mais do que as gregas, mencionam com precisão fatos reconhecíveis: o nome e muitas vezes o retrato da autoridade emissora ou de um seu ancestral familiar, durante a República o grupo de triúnviros monetários e durante o Império, o imperador mas às vezes o Senado Romano; a data da emissão, a oficina que bateu a moeda, se em Roma ou em alguma província, a referência a algum fato promovido por quem bate a moeda, a marca de valor. A moeda é assim um objeto tridimensional, como a escultura, como um fragmento arquitetônico, como um relevo de mármore, como uma pintura mural, um mosaico ou um parafuso de porta; mas é também um documento escrito, que traz informações precisas e passíveis de uma interpretação própria aos documentos escritos. A moeda romana, sobretudo, pode servir a uma história factual, cronológica, na medida em que apresenta datas, seqüências de imperadores, retratos das famílias imperiais, registros de ações do imperador, ou de leis promulgadas. Além disso, por seu tamanho, por sua portabilidade, pelo valor intrínseco de sua matéria prima (sempre o metal), foi conveniente e possível que estes pequenos objetos com escrita se acomodassem e associassem às Bibliotecas.125 Por outro lado, como um certo tipo de documento do passado as moedas romanas que eram aquelas mormente colecionadas, como viemos de mencionar, faziam entender melhor os textos antigos de Tito Lívio, Plínio o Velho e tantos outros que eram os textos que estavam sendo retomados e lidos pelos eruditos da época. Neste sentido, é importante lembrar que foi justamente o diretor da Biblioteca Nacional de Paris, Guillaume Budé (1467-1540), grande savant frances, que por primeira vez sistematizou o papel 125

Diferentemente dos milhares de documentos epigráficos, que também são objetos escritos, desajeitados, com formatos diferentes e muitos deles enormes que dificilmente poderiam associar-se espacialmente com as Bibliotecas.

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da moeda antiga como documento pois, ao estudar as moedas romanas, não viu nelas a simples ilustração do texto latino, mas associando filologia e objeto procurou uma compreensão aprofundada do texto. Foi ele que, em primeiro lugar, organizou as moedas romanas cronologicamente e de acordo com pesos e metais para assim montar os sistemas monetários e tornar compreensível o que Tito Lívio e outros autores romanos queriam dizer quando mencionavam denários, dupondios ou sestércios. A moeda assim, tornou-se uma porta de entrada ao mundo clássico. À medida que as moedas colecionadas eram identificadas e organizadas, o seu estudo, sua interpretação, tornava-se mais accessível. No século XVII, ela assume definitivamente o papel de documento do passado mais do que objeto de arte. De acordo com Babelon, falando do grupo de ‘numismatas’ que se reunia mensalmente em torno do embaixador prussiano em Paris, E. Spanheim, no final dos anos 1600, colecionadores e estudiosos da moeda impuseram-se a esta época, a tarefa de ilustrar a história romana por meio das moedas. (BABELON, 1901: col.154) Assim a tônica do século XVIII, com relação ao colecionismo passa ser completar séries, buscar todas as moedas batidas por cada governante e publicar catálogos completos e ilustrados das coleções. Mas podemos ainda perceber outras funções cumpridas por estas coleções monetárias formadas na época moderna na Europa. Basta lembrar de Petrarca que sentia um verdadeiro prazer em colecionar moedas romanas de acordo com o que ele próprio dizia ao referir-se ao deleite que sentia ao identificar nelas a efígie dos imperadores e decifrar as minúsculas legendas. Além disso, como mencionamos já, para Petrarca, as “moedas romanas poderiam inspirar de uma forma positiva os governantes de sua época”. Da mesma forma, Afonso V de Aragão, Rei da Sicília (1416-1458), carregava seu pequeno gabinete de marfim repleto de moedas romanas para olhá-las sempre e assim “inspirar-se nas virtudes daqueles cujas imagens estavam ali representadas”. Henrique IV, rei da França (1589-1610), chegou a afirmar que desejava “uma coleção de moedas para embelezar a casa real, apoiar a educação do príncipe herdeiro e oferecer aos artistas contemporâneos bons exemplos para imitar”. (CLAIN-STEFANELLI, 1965:21) E Luis XIV, quando em 1683 transferiu o Gabinete de Numismática para Versailles explicou que queria tê-las bem perto de si porque ao examiná-las “sempre tinha algo novo para aprender”. Podemos dizer então que o classicismo era, na época moderna européia, sinônimo de exemplo e que a antiguidade clássica era apropriada de sorte a prover modelos morais e estéticos para o presente vivido naquela época.(POLLITT, 1972:1) A moeda romana como produto da esfera oficial, ligada diretamente ao poder político imperial, representava a eficácia desse poder que havia sido exercido por um longo período e havia criado as condições materiais para a produção artística grandiosa ainda visível na Europa, sobretudo na Península Itálica. As grandes coleções de moedas entraram por essa via no colecionismo geral da época, na apropriação consciente da antiguidade 163

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clássica que atuou na construção de uma identidade ‘nacional’ aos Estados europeus em formação.(ANDRÉN, 1998:10) No final do século XVIII e na primeira metade do século XIX, o viés grego do classicismo entra definitivamente na agenda européia. Estudantes, pesquisadores viajam à Península balcânica à procura de conhecimentos sobre as artes, a filosofia, os princípios morais. Diários de viagens, desenhos de monumentos são feitos no retorno e são facilmente vendidos. Objetos pequenos e grandes são trazidos. A Grécia, torna-se neste contexto a escola da Europa, afinal é a pátria das artes, é a educadora dos gostos e os diferentes governos disputam as antiguidades gregas encontradas aqui e ali; disputam também autorizações da Grande Porta para a exploração dos vestígios materiais da Grécia antiga; mantêm emissários no Império turco encarregados de encontrar antiguidades passíveis de serem trazidas para a Europa. As coleções de moedas gregas e romanas crescem consideravelmente neste contexto em todos os países e reinos europeus. A tendência, de formar coleção de séries completas que vinha já desde a Renascença acentua-se à medida que cresce a procura por um maior ‘cientificismo’ iniciada no Século das Luzes e tão característica ao século XIX. É então que passa a ser uma verdadeira febre entre os colecionadores a estruturação de catálogos de coleções, muitas vezes ilustrados, com a listagem de moedas, que são descritas uma a uma. Colecionadores associam-se em sociedades científicas numismáticas que promovem encontros com regularidade e patrocinam a publicação de periódicos.(ETIENNE, R. e F., 1991: 44 ss.) Boa parte destas coleções permaneceram ligadas a Bibliotecas como em um reconhecimento de que as moedas eram documentos de História da mesma forma que os livros. É o caso das várias coleções privadas hoje no Cabinet de Médailles de Paris ligado à Bibliothèque National ou daquelas coleções belgas que formam o acervo do Cabinet de Numismatique da Biblioteca real belga. Lembro que também no Brasil –como veremos adiante-- o primeiro núcleo da coleção de moedas do MHN, foi abrigado por alguns anos pela Biblioteca Nacional, de onde saiu para vir ao Museu Histórico em 1922. Outras coleções, de reis e nobres passaram a fazer parte dos grandes Museus enciclopédicos/universalistas criados no século XIX como o British Museum, o Museu Vaticano, o Museu Nacional de Nápoles, o Museu Antropológico Nacional de Madrid e assim por diante. De toda forma, estes Museus separaram as moedas em Gabinetes Numismáticos (Coin Cabinets) onde os medalheiros associavam–se sempre à bibliografia pertinente ao estudo das peças. Ao procurarmos entender a história do colecionismo de moedas no Brasil a partir do século XIX, não podemos deixar de lado essa tradição européia resumidamente exposta acima que serviu, em última instância, como modelo para a formação das coleções de moedas no Brasil. Por um lado, constatamos que em nosso país o colecionismo obedeceu ao mesmo motor que deu origem às grandes coleções de moedas européias, ou seja, a procura por um passado em que a nação brasileira pudesse jogar a suas raízes. Não se estranhe, pois, que as moedas mais colecionadas foram as portuguesas, 164

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pois a Independência em relação à metrópole era vista, do ponto de vista cultural, mais como uma passagem para a idade adulta do que uma ruptura. (ABREU, 1991:95) Mas, por outro lado, o colecionismo de moedas também desenvolveu características próprias as quais se explicam pela situação de nosso país, de ‘periferia’ do mundo ocidental. É sabido, e acima apenas mencionamos, que a descoberta da América e a exploração do Oriente trouxe a necessidade de conhecer mais os povos com os quais a Europa entrava agora em contato; nesse sentido, muitos dos Gabinetes de curiosidades europeus passaram a se constituir pela reunião de elementos da natureza --que se mostrava tão diferente da natureza européia-- e por objetos e artefatos fabricados pelas populações indígenas. Na trilha deste modelo de Gabinete de curiosidade é que se procurou formar as primeiras coleções armazenadas em ‘museus’ na América Latina e também no Brasil. Na verdade, estes primeiros Museus que se estabeleceram deste lado do Atlântico, como bem demonstraram tantos pesquisadores, entre eles Maria Margareth Lopes, “constituíram-se no contexto dos processos de ruptura definitiva do antigo sistema colonial” e acabaram por tornar-se “lugares privilegiados para onde convergiam os produtos da investigação dos territórios” convertendo-se também em “símbolos responsáveis por gerar e consolidar as novas identidades nacionais que se forjavam”. (LOPES,1998: 126) Desta feita, estes museus ainda que tenham sido constituídos de acordo com uma concepção enciclopédica/universalista, foram direcionados para a coleta e o estudo de materiais da natureza e não raro estiveram associados a jardins botânicos e zoológicos. O caso do Museu Real (mais tarde Imperial e mais tarde ainda Nacional) fundado no Rio de Janeiro em 1818 é típico: durante todo o século XIX dedicou-se à coleta de um acervo de objetos provindos da natureza, tão diversificada em um território tão grande como o brasileiro. (LOPES, 1998: 132-141). As moedas ficaram assim, no nosso meio, em um segundo plano: afinal, como construir de imediato uma identidade nacional com coleções de moedas da metrópole da qual se procurava de início afastar? Como construir de um momento a outro uma identidade com o mundo clássico (que havia sido trabalhada na Europa ao longo de séculos) que permitisse acolher as moedas gregas ou romanas como representantes de modelos de virtude e de moral políticas? Quero crer que por estas razões as coleções de moedas na América Latina e no Brasil, começam a adquirir maior importância no colecionismo somente a partir da segunda metade do século XIX, no momento em que uma elite recém constituída buscava uma posição ao lado das elites européias. Nossa elite, ou pelo menos uma parte dela mais sensível à erudição e ao conhecimento, copia os hábitos e os costumes dessa elite européia. Como parte desses hábitos, é introduzido o gosto pela antiguidade e no bojo deste a coleção de moedas: nesse momento, em nosso país, começam a ser colecio-

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nadas principalmente as peças portuguesas e as brasileiras126 e, em menor escala, as moedas mais antigas, gregas e romanas e outras moedas européias mais recentes. São todas coleções da segunda metade do século XIX. Foram colecionadores famosos desta época e do início do século XX, D. Pedro II e sua mulher a Imperatriz Tereza Cristina da casa de Bourbon de Nápoles, Julius Meili, Pedro Massena, Augusto de Souza Lobo, Amália Machado Coelho de Castro (viscondessa de Cavalcanti), Francisco Ferreira Soares, Miguel Arcanjo Galvão, Antonio Pedro de Andrade, o Conselheiro Sobragy, Guilherme Guinle, Bernardo d’Azevedo da Silva Ramos, Joaquim Sertório. Alguns destes colecionadores publicaram estudos numismáticos ou catálogos de suas coleções. É o caso do cônsul suíço Julius Meili que é considerado o pai da Numismática brasileira. Estas coleções, mormente constituídas por moedas brasileiras e portuguesas, encontram-se hoje, em sua totalidade ou em parte, conservadas em museus brasileiros. Dentre estes, aquele que conserva o núcleo principal da coleção ‘real’ brasileira (de Pedro II e de Tereza Cristina) e que mantém a coleção mais completa de peças portuguesas e brasileiras e de peças clássicas (gregas e romanas), é, sem sombra de dúvida, o Museu Histórico Nacional, criado em 1922 no Rio de Janeiro. Antes de tratar das moedas do Museu Histórico, porém, é preciso mencionar que o núcleo inicial desta coleção veio da Biblioteca Nacional. Há referências esparsas sobre moedas que teriam sido trazidas pela Imperatriz Teresa Cristina juntamente com os demais objetos clássicos de sua coleção, quando de seu casamento com o D. Pedro II; moedas essas que teriam integrado o núcleo inicial da coleção clássica do Museu Nacional127, mas que hoje não se encontram mais lá. Uma destas indicações encontra-se nos documentos que tratam da criação do núcleo de Numismática da Biblioteca Nacional. De acordo com Rejane Maria Lobo Vieira, no início da década de 1880, o diretor da Biblioteca Nacional, o erudito Ramiz Galvão, iniciou uma ofensiva para a constituição de uma coleção de moedas brasileiras junto à Biblioteca Nacional. (VIEIRA, 1995: 98) É interessante notar que Ramiz Galvão justifica o seu pedido ao ministro Homem de Melo alegando que as moedas haviam sido colocadas no Museu Nacional por um vício de organização, acreditando-se que eram apenas objetos de curiosidade (seriam estas as moedas de Tereza Cristina?). Na verdade, segundo o diretor da Biblioteca Nacional, “moedas e medalhas são objetos subsidiários da história e portanto deviam estar ao lado dos livros e não dos objetos de historia natural” (apud VIEIRA, 1995: 98). Ainda segundo Vieira, Ramiz Galvão não foi bem sucedido em trazer o fundo numismático do Museu Nacional para a Biblioteca (o que ocorreu bem mais tarde, na década de 1890), mas deu início ali a uma coleção de moedas importante que, ainda mais tarde, em 1922, passou para o Museu Histórico Nacional. 126 127

Portugal havia criado uma casa da moeda no Brasil em 1693. Comunicação pessoal de Haiganuch Sarian.

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A fundação do Museu Histórico Nacional por iniciativa de Gustavo Barroso em 1922, foi objeto de inúmeros e variados estudos. É ainda hoje cercada de polêmica e de interpretações variadas. De modo geral, pode-se afirmar com alguma segurança que a intenção de Barroso centrava-se na questão de “fazer o povo amar e respeitar a pátria, resgatar uma tradição nacional e forjar um sentimento cívico”.(SANTOS, 1998, 24) De acordo com Maria Célia Santos, Gustavo Barroso pretendia que o Museu fosse uma instituição das elites, pois a elas era atribuído o papel de fundadoras da nação brasileira e o museu deveria assim representar a ação das elites na edificação nacional, entendendose por elite “o escol, a nata, aqueles que comandam , inauguram.” (SANTOS,1998: 24 e ABREU,1991: 96) Neste contexto de formação de um museu dedicado à preservação de uma determinada memória nacional, a formação e a preservação de coleções monetárias adquire um sentido específico. Inicialmente lembremos que a grande coleção de moedas originalmente formada na Biblioteca Nacional com o núcleo inicial que veio do Museu Nacional (antes Museu Real/Imperial) e ao qual se acrescentaram doações variadas de particulares inclusive de D. Pedro II, foi reivindicada em 1922 por Gustavo Barroso quando da constituição do acervo inicial do Museu Histórico Nacional. (VIEIRA, 1995: 99) Nas palavras do próprio Gustavo Barroso: “A Numismática, ciência das moedas e das medalhas, tem merecido de todos os países uma proteção especial. Nas nações européias ela constitue a preocupação de muitos sábios. Raros ignoram a importância que se dá em França ao famoso Cabinet de Médailles, carinhosamente fundado por Luiz XIV, e o valor extraordinário das coleções reais da Itália, que dão ensejo à publicação de inestimável preço. E só assim se justifica o aparecimento de obras maravilhosas como o tratado de Babelon [referência ao Traité de Monnaies grecques et romaines: Théorie et doctrine publicado em 1901 por Ernest Babelon]. As moedas, medalhas e sinetes são documentos de alta valia para os estudos de arqueologia e história. Foi a sigilografia bizantina que guiou as mãos de mestre de Gustavo Schlumberger nas suas majestosas epopéias da Constantinopla do século X. Por moedas e medalhas, um autor célebre já conseguiu fazer a história do poder temporal dos papas. E bastará acrescentar o concurso prestado pela numismática à egiptologia, à assiriologia, à história das civilizações da Hellade, do Latium, da Etrúria, da Judéia, da Síria e da Armênia.” (em entrevista de 1929, apud VIEIRA, 1995:105). Ora, o que se torna claro nestas palavras de G. Barroso que serviram de justificativa para a inclusão de moedas em sua política de aquisições para o Museu Histórico Nacional é que os sentidos geralmente dados às grandes coleções européias de moedas foram por ele totalmente assimilados. Por um lado, Gustavo Barroso vincula as coleções de moedas –até emotivamente- à realeza mas, por outro, como Ramiz Galvão já o fizera, as associa à construção do conhecimento histórico. As moedas acham-se assim 167

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associadas ao poder, às elites responsáveis pela formação das nações e por outro lado são documentos da história dos povos, entendida como a história política, do poder.128 Vale lembrar que no Curso de Museus instituído por Barroso no Museu Histórico em 1932, também foi criada uma disciplina sobre Numismática que visava justamente o aprofundamento dessa área como uma área subsidiária da História em que a moeda aparecia como documento.129 Vista no conjunto dos acervos constituídos no Museu Histórico Nacional por G. Barroso, a coleção de moedas trabalhava também no sentido de dar uma identidade ao estado brasileiro, construindo uma parte da história ‘nacional’ através das efígies e inscrições de reis portugueses e dos imperadores brasileiros e confirmando assim as raízes da nação brasileira. O caso da formação da coleção numismática do Museu Paulista, em São Paulo, apesar de menos carregado de sentidos, apresenta também algum interesse na recuperação do classicismo por meio do colecionismo de moedas. Como é sabido, o Museu Paulista, foi criado no final do século passado, em 1890, de acordo com uma concepção enciclopédica/universalista à qual nos referimos acima, e que no caso brasileiro voltavase para abrigar especialmente coleções naturalistas. Seu núcleo inicial teve origem na coleção do coronel Joaquim Sertório que além de objetos curiosos da natureza brasileira, incluía um pequeno lote de moedas. (RIBEIRO, 1999) Note-se que em 1894 foi contratado um naturalista para classificar as moedas de acordo com critérios ‘científicos’. (RIBEIRO, 1999). A este núcleo inicial foram sendo realizados acréscimos de lotes de moedas sem qualquer critério definido: moedas romanas, barra de ouro produzida nas Minas Gerais, cédulas, medalhas, moedas brasileiras. De acordo com Ângela Ribeiro, somente a partir de 1916, o Museu adquire um caráter histórico e etnográfico mais definido. E em 1946 pode-se dizer que foi criado um Gabinete de Numismática nos moldes europeus com a contratação de um funcionário numismata (o colecionador Álvaro da Veiga Coimbra). Desde o início o Gabinete de Numismática do Museu Paulista assumiu a tarefa de mostrar como a moeda era um documento para a reconstrução da nossa história. Com efeito, Álvaro da Veiga Coimbra responsabilizou-se por ministrar aulas em uma ‘cadeira’ criada para ele no Departamento de História da Universidade de S.Paulo, na década de 1950. Apesar de ser um colecionador, Coimbra demonstrou em sala de aula como a moeda podia se transformar em documento da história das sociedades passadas. Suas aulas foram publicadas na Revista de História da USP com o título de ‘Noções de Numismática’.

Devemos lembrar que culturalmente nosso país era sobremodo influenciado pela França, onde nesta época imperava uma história ‘evenementielle’, ligada à recuperação dos fatos políticos em detrimento de uma história mais ligada à sociedade como um todo. Os Annales ainda não estavam totalmente consolidados para, digamos assim, exportar a sua influência. Note-se como entre as referências de Barroso duas vêm da França: o rei Luis XIV e E. Babelon. 129 Os responsáveis por essa ‘cadeira’ de Numismática foram inicialmente o dr. Edgar de Araújo Romero e em seguida a d. Yolanda Portugal e sua sucessora D. Dulce Ludolf; os três chefes sucessivos da Divisão de Numismática do Museu. 128

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Na década de 1990 a Universidade rediscutiu os objetivos do Museu Paulista e este assumiu definitivamente o caráter de Museu de História, sobretudo de História de São Paulo. Seu Gabinete de Numismática, com moedas gregas, romanas portuguesas e brasileiras (além de outras mais recentes de países europeus) foi, no entanto, preservado, possuindo hoje uma coleção composta por 4000 moedas brasileiras; 1500 portuguesas e 5000 estrangeiras, além das cédulas, medalhas, distintivos e outros pequenos objetos emblemáticos. Entre tantos brasileiros que colecionaram moedas antigas no século XIX, gostaria de citar aqui o caso de um colecionador especial, Bernardo D’Azevedo da Silva Ramos. Filho de uma família de ricos comerciantes de Manaus, Bernardo Ramos pertencia a uma elite duas vezes provinciana: provinciana por ser brasileira em relação à elite européia e provinciana em relação à elite brasileira sediada mais ao sul, na capital. Como bem chamou a atenção o historiador Francisco Marshall em uma palestra ministrada na Universidade de Columbia em Nova York (2003), Bernardo Ramos tinha uma preocupação especial em tornar o nosso país um verdadeiro herdeiro de uma tradição milenar mediterrânica: não apenas se dedicou ao estudo da Antigüidade clássica e das línguas antigas como realizou estudos epigráficos detalhados que foram, inclusive, publicados, ‘demonstrando’ como o Brasil havia sido aportado pelos antigos fenícios. Mas, o dado que mais nos interessa é que no conjunto das atividades realizadas por Bernardo Ramos, há a constituição de uma coleção de moedas gregas, romanas, bizantinas, brasileiras, portuguesas que formam um expressivo conjunto de 12 000 peças. Coleção que além de tudo foi publicada em 4 volumes, em 1900, na Itália pela Tipografia della Reale Accademia dei Lincei, sob os auspícios da Universidade de Gênova. Em sua morte, legou a coleção de moedas ao Estado do Amazonas, com a condição que fosse criado um Museu Numismático para abrigá-las. Esperaríamos que ao tratar do colecionismo de moedas relacionado à tradição clássica na formação da idéia de Nação Brasileira, as coleções de moedas gregas e de moedas romanas fossem as personagens principais. No entanto, a história da formação das coleções numismáticas brasileiras mostra-nos que as moedas gregas e romanas foram, na verdade, muito pouco colecionadas, se comparadas às moedas brasileiras e às moedas portuguesas. Como dissemos acima, construir um relacionamento do conteúdo histórico dessas moedas com a história recentíssima do Brasil era uma tarefa que poucos eruditos brasileiros estavam preparados a fazer. Assim, parece-me que se podemos falar em tradição clássica na formação das coleções numismáticas brasileiras, esta está localizada sobretudo no próprio fato de procurar montar coleções que tivessem ligação com o passado ao qual se procurava atribuir o papel de antecessor histórico da nação brasileira que se formava naquele momento.

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A Gota d’Água, ou a Medeia em nós

Marta Mega de Andrade130 (LHIA/ PPGHC/ UFRJ)

A peça Medeia,131 de Eurípides, foi apresentada aos espectadores no teatro de Dioniso, em Atenas, dentro das festividades das Grandes Dionisias de 431 a.C. Desde então, Medeia não ganhou apenas reapresentações; ela ganhou versões, adaptou-se a questões ligadas a momentos históricos particulares. A longevidade desta peça é discutida por uma obra coletiva recentemente editada por E. Hall, F. Macintosh & O. Taplin,132 em que os autores traçam para Medeia uma biografia milenar, em um inventário que cobre o intervalo entre 1500 e 2000, focalizando o eixo Europa-América do Norte. Desta biografia, os diversos capítulos da obra retiram momentos em que determinada montagem reflete, em seu âmbito particular, conflitos que perpassavam a época de um modo global — questões como as da condição / participação feminina (na esfera pública), etnias/ segregação (anti-semitismo, apartheid), exílio e estados de guerra — usando para isso a força da personagem como mulher, reafirmada pelo status de grande atriz das protagonistas desde o século XIX. F. Macintosh, por exemplo, descreve o parentesco entre a Medeia de Eurípides e as personagens femininas do teatro de Ibsen, no contexto da percepção do paradigma da new woman pela sociedade vitoriana (MACINTOSH, 2000, p. 77).133 Assim sendo, podemos dizer que, da Medeia de Sêneca até a última apresentação de A Gota d’Água, na semana passada, a peça de Eurípides atravessou as épocas como se acenasse para um grande universal — fosse ele o “trágico” ou o jogo com o temor oculto à força das mulheres, ou simplesmente o “teatro” — recortado pelo reflexo da (grande) história no seu âmbito (particular) que chamaremos, agora, “lugar de produção” do teatro.  rofessora e Pesquisadora LHIA/ PPGHC/ UFRJ. Este texto foi escrito tendo em vista questões que foram surgindo ao longo do P curso “A Política e o Gênero: estudo comparado de Medeia e A Gota d’Água”, durante o primeiro semestre de 2006 no PPGHCUFRJ. Ele é dedicado aos alunos que participaram ativamente da discussão de uma perspectiva histórica e comparativa no enfoque dessas obras a partir da questão do gênero: Joelma Nascimento, Priscila Falci, Sheila Romero e Thiago Porto. Apoio CNPq. 131 Tendo como substrato um enredo complexo, formado por recortes de narrativas míticas em torno do ciclo do argonautas, a peça de Eurípides retira desse substrato o tema do fim da união entre o herói Jasão e a princesa Medeia, da região da Cólquida às margens do Mar Negro. Como parte da façanha de apropriar-se do velocino de ouro, o herói Jasão contou com a cumplicidade de Medeia, que traiu sua família e com ele fugiu para a Grécia, onde aparece ao mesmo tempo como companheira de Jasão e uma temível feiticeira. Eurípides entra na narrativa para encontrar Medeia e Jasão como habitantes de Corinto, onde ambos se exilaram junto com escravos e dois filhos. Em Corinto, portanto, Jasão estabelecera o seu oikos. Contudo, nem Jasão nem Medeia pertencem a esta cidade, embora Jasão seja um herói grego. Sua estirpe nobre e real coloca-o em posição de hospitalidade com relação rei Creonte, o que de certa forma leva o rei de Corinto a oferecer a ele sua filha em casamento. Jasão abandona então a sua casa, para unir-se à casa do rei de Corinto. A peça tematiza o abandono da casa, o desespero de Medeia transformado em vingança. Medeia se diz ápolis, “sem cidadania”, longe do oikos paterno que lhe daria algum auxílio contra a traição do leito por parte de Jasão. Diante de um coro formado por mulheres de Corinto, Medeia pede a elas silêncio para perpetrar sua vingança, no que obtém êxito. Através de uma série de subterfúgios e usando seus dons de magia, a protagonista mata a noiva, o pai da noiva e seus dois filhos com Jasão, fugindo em seguida numa apoteótica entrada em cena de uma carruagem de fogo enviada pelo sol. 132 M edea in Performance, 1500-2000. Oxford: Oxford University Press, 2000. 133 “ For with her ‘unwomanly’ fluent articulation and repudiation of the inequalities of the marital state, and her actions serving as a reminder that motherhood is not something fixed but of necessity redefinable in each context, Medea becomes the prototype for the 1890s New Woman”. 130

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Ora, a postura daquele que compreende uma peça de teatro, e mais ainda, uma peça engajada de teatro, como um reflexo da história de sua época, conduz a uma abordagem bastante comum do “artefato cultural” como um corpo maleável, adaptável, sempre, a assuntos mais profundos, mais relevantes do ponto de vista da “grande história” de um período que ele pode, no limite, representar. Foi assim que A Gota d’Água pôde ser retomada, e o foi tanto no campo da História Cultural, quanto no campo da Literatura e da Comunicação, a partir desta perspectiva do “artefato cultural” como, primeiro, um “produto” específico, definindose sua especificidade pelo seu caráter representativo, mais do que pelo seu aspecto de produto (efeito e vetor de relações sociais); segundo, como uma fonte derivada, “secundária” e passiva, posta diante de relações e fatos exteriores à própria fonte, conformadores de sua identidade que, no entanto, nada teriam em comum com o “artefato cultural”, a não ser esse espaço em que se daria, de fora, a forçosa moldagem desse mesmo “artefato” como representativo de — um período de exceção, um discurso populista, um reflexo superestrurutal do capitalismo e/ ou das políticas de Estado. Dentro deste enfoque das relações entre o teatro como “artefato cultural” e a “política” como âmbito determinado da vida social, a peça de Chico Buarque e Paulo Pontes foi percebida e, em alguns casos, analisada, como fazendo parte de um conjunto de produções do teatro nacional popular das décadas de 60 e 70, que tinham, grosso modo, um objetivo de resistência intelectual à ditadura militar e à censura, buscando o reencontro com o povo como expressão da identidade cultural brasileira (MACIEL, 2004). E, sem dúvida, este era mesmo o movimento global, no qual engajavam-se dramaturgos e encenadores como Chico Buarque, Paulo Pontes, José Celso Martinez Corrêa, Augusto Boal, Fernando Peixoto, dentre muitos outros (ARRABAL, 2005, p. 206-233). Em 1972, Oduvaldo Vianna Filho apresentou o teledrama Medeia, que era uma adaptação da tragédia de Eurípides para a televisão tendo como tema um contexto brasileiro, naquele que foi o período mais conturbado de censura às formas de expressão no Brasil (PACHECO, 2005, pp. 260-291). O teledrama inspirava-se nessa tragédia grega para contar uma estória, que tinha como pano de fundo o cenário da vida urbana em um conjunto habitacional da periferia. Esta adaptação de Medeia deu origem a um projeto continuado por Paulo Pontes e Chico Buarque após a morte de Vianinha, em 1974, de levar para o teatro uma peça em que as complexidades da realidade brasileira daquele momento pudessem ser vivenciadas no contexto específico de uma experiência sensorial e cognitiva que esse espaço teatral poderia agenciar. Foi assim que, em 1975, estreou no Rio de Janeiro A Gota d’Água, peça toda escrita em versos para ser 172

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declamada e cantada, procurando com isso, segundo seus autores, fazer do debate, poesia, e da poesia, palavra resgatada, re-valorizada (PONTES e BUARQUE, 2002, p. 18). 134 Na peça, Medeia não é mais Medeia e, sim, Joana, mulher madura que deixa o primeiro marido para ir viver com Jasão, mais novo do que ela, na Vila do Meio-Dia. Com ele, Joana tem dois filhos, e a peça vem encontrá-los quando o samba de Jasão — A Gota d’Água — estoura nas rádios graças ao patrocínio de Creonte, homem rico e a quem Joana e seus vizinhos devem o pagamento das prestações de suas casas. Jasão abandona, então, Joana, para casar-se, de “papel passado”, diríamos, com Alma, a filha de Creonte. Esta situação vem encontrar uma outra, que envolve os vizinhos em geral: a impossibilidade de pagar as prestações das casas. Imediatamente, estabelece-se um paralelo entre o abandono de Joana e a situação de subordinação ao poder econômico a que se submetem os vizinhos, na Vila do Meio-Dia. E a fragmentação ou fraqueza das solidariedades frente à força do argumento econômico, leva à solidão final de Joana, por um lado, e de Egeu – homem consciente, ponderado, que pregava a união contra o reajuste das prestações, assim como defendia a união em torno da situação da Joana — por outro. No final, dívidas anteriores perdoadas, empregos concedidos, vizinhas e vizinhos participam da festa de casamento, enquanto Joana, sozinha com seus deuses, arquiteta a vingança que não vai funcionar, restando apenas a saída de matar a si mesma e aos filhos com o veneno destinado à nova esposa. Da experiência de apresentação da peça em 1975, podemos fazer o resgate de alguns testemunhos da crítica, por um lado, e dos autores, por outro lado. Sábato Magaldi, por exemplo, em duas críticas publicadas pelo Jornal da Tarde, referindo-se a uma montagem de 1976 no teatro Tereza Rachel (Rio de Janeiro) e a outra, de 1977, no teatro Aquarius (São Paulo), aponta para o sucesso de público, saúda a tragédia brasileira pelo alto grau de preocupação dos autores com o realismo, 135 e sugere uma abordagem em que se constrói uma linha de continuidade entre um Eurípides, dramaturgo, e um teatro brasileiro e seus dramaturgos. Não se aventura em comentários de conteúdo, mas nos passa uma experiência do espetáculo quando analisa a cenografia e a coreografia. Pelo conjunto de suas formulações, Magaldi indica que a peça foi bem sucedida em termos de recepção de uma crítica especializada — que, de resto, reservara julgamentos um tanto negativos para peças anteriores, como

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“Nós escrevemos a peça em versos, intensificando poeticamente um diálogo que podia ser realista, um pouco porque a poesia exprime melhor a densidade de sentimentos que move os personagens, mas quisemos, sobretudo, com os versos, tentar revalorizar a palavra”. Isto quer dizer, o que a consciência moderna pode aceitar como verossímil. Mas há também um outro lado da questão sobre o qual talvez Magaldi não pudesse falar abertamente: o ideário do CPC recuperado pelo Opinião, que fazia do teatro popular um teatro real, materialista, cuja inspiração deveria vir da coletividade e do concreto da vida do povo, fugindo ao solipsismo burguês. Cf. MOSTAÇO, E. Teatro e Política. São Paulo: Proposta, 1982.

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Roda Viva, de Chico Buarque ou Check Up, de Paulo Pontes — e que foi muito bem recebida pelo público, apesar das dificuldades operacionais encontradas para encenar um texto sobretudo poético, que previa o intercâmbio entre diversos sets ou espaços: um, feminino, marcado pelas conversas e ações das mulheres e do grupo de vizinhas; um, masculino, centrado entre o botequim e a oficina de Egeu, onde se passavam as conversas masculinas. Além desses, havia ainda um terceiro espaço — o de Creonte com sua cadeira-trono — e a constante interlocução entre todos eles. O que não é possível verificar, neste como em outros testemunhos da crítica especializada, é o resultado (ou qual é o resultado) do projeto consciente de ação sobre o público por parte dos autores da peça, inserido na crítica da realidade brasileira dentro dos moldes do teatro nacional popular. Algumas análises posteriores, como a de Fernando Peixoto em Teatro em Pedaços (PEIXOTO, 1980) procuram explicitar as intenções dos autores de A Gota d’Água, a partir de dentro do movimento, por assim dizer, e dão também o testemunho de um sucesso de público (cerca de 250 mil espectadores em salas de teatro brasileiras, em um espaço de pouco mais de um ano) que seria, segundo o próprio Fernando Peixoto, uma demonstração de que o teatro popular era valorizado pelo público brasileiro, que respondia a um anseio ou uma demanda. Enquanto isso, a crítica especializada parecia girar em torno do teatro como obra fechada, e carecemos de um testemunho mais vivo, exterior e, se podemos assim pressupor, “inocente”, por parte do público espectador daquele momento. Uma investigação a esse respeito ainda está em aberto, apesar dos bons estudos que vem sendo feitos até o momento pelo grupo do Núcleo de Estudos em História Social da Arte e da Cultura (NEHAC- UFU). 136 Passemos ao testemunho dos autores. Na edição em livro de A Gota d’Água, encontramos uma apresentação do texto feita por Paulo Pontes e Chico Buarque, onde os autores expõem suas intenções e propõem, assim, um contexto para a peça, baseado em três eixos que funcionam, de fato, como três “dilemas” interligados: 1) uma reflexão sobre a assimilação da classe média pela racionalidade da acumulação capitalista que, realizada em um quadro de dependência, torna-se predatória e tem como conseqüência o encurralamento das classes subalternas;137 2) um caminho para o reencontro (das classes médias) com a expressão cultural 136

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- Pode-se conhecer o trabalho do grupo através dos artigos e resenhas publicados na revista eletrônica Fênix, em www.revistafenix.pro.br. “O inconformismo e a disponibilidade ideológica de setores da pequena burguesia foram, em muitos momentos de nossa história, instrumentos de expressão das necessidades das classes subalternas. Amortecendo-os, as classes dominantes produziram o corte que seccionou a base dos segmentos superiores da hierarquia social. Isoladas, às classes subalternas restou a marginalidade abafada, contida, sem saída. Individualmente, ou em grupo, um homem capaz, ou uma elite das camadas inferiores pode ascender e entrar na ciranda. Como classe, estão reduzidas à indigência política”. Op. cit., p. 13.

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da identidade nacional, que só pode emergir na escuta ou na sintonia com o povo brasileiro;138 3) um instrumento de valorização da palavra como forma de expressão capaz de, na dimensão da cultura, “dar à luz” a extrema complexidade do vivido em forma de logos, de discurso.139 Ora, no contexto proposto pelos autores e no qual eles inserem a peça como produto cultural, além deles mesmos em uma certa agência, pretende-se, ao menos, atingir de alguma forma a compreensão da realidade que rege a experiência das classes médias urbanas, em uma palavra, sua consciência. É claro que a obra não pode ser reduzida a isso, nem o entendimento que dela tem e terão os autores, na medida em que eles também são dela espectadores, a partir do momento em que a obra ganha vida própria. Mas o que nos importa aqui é que, apresentado a um público pagante, dentro de salas de teatro em moldes tradicionais, a ação mais imediata do texto encenado deve ser também e, neste contexto apenas, limitada ao entendimento possível dessas classes médias urbanas. E a crer na repercussão da crítica, parece que a marca da peça será, aqui também, a figura feminina de grande força cênica, uma “diva” do teatro brasileiro (Bibi Ferreira), encenando a traição ao juramento de amor universal, de fato consagrando a protagonista como uma mulher forte e concentrando em sua força a agonia (ou a derrisão) do mundo; em síntese, o elemento trágico. Mas há um outro elemento que se configura, de fato, como o ponto central, o nó e a chave daquilo que R. Williams chamara de “tragédia moderna” (WILLIAMS, 2002). Trata-se da lógica capitalista que encurrala as classes subalternas, subjugando-as e negando a cada desenlace as possibilidades de superação e emancipação 140. O fio do “trágico”, entre os atenienses e nós, pode ser assim traçado. Pois se atentarmos para alguns importantes estudos sobre a relação da tragédia grega com o seu tempo, cito nominalmente o trabalho de J-P. Vernant e P. Vidal-Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga (VERNANT e VIDAL-NAQUET, 1988) compreenderemos que a tragédia na polis liga-se ao homem (cidadão) colocado na “encruzilhada” de uma decisão, diante de uma tarefa em que não pode contar com uma instância que seja responsável em seu lugar, seja ela o livre arbítrio, as leis da natureza, ou a racionalidade de causas e efeitos. Assim, à beira do abismo, “ Ela [a classe média] só tem chance de sair da perplexidade quando se descobre ligada à vida concreta do povo, quando faz das aspirações do povo um projeto que dê sentido à sua vida. Isso porque o povo, mesmo expropriado de seus instrumentos de afirmação, ocupa o centro da realidade — tem aspirações, passado, tem história, tem experiência, concretude, tem sentido. É, por conseguinte, a única fonte de identidade nacional”. ibid., p. 15. 139 “O que aconteceu, na verdade, é que as transformações foram se acumulando no interior da sociedade sem que a cultura, posta à margem, se desse conta. Até um ponto em que o processo social ficou muito mais complexo do que a cultura era capaz de entender e formular. E este passou a ser o centro da crise da cultura brasileira: criou-se um abismo entre a complexidade da vida brasileira e a capacidade de sua elite política e intelectual de pensá-la. (...)” ibid, p. 17. 140 Trata-se do que Maciel denomina “perspectiva nacional-popular do elemento trágico”. Cf. MACIEL, D. A. V. “Das Naus Argivas ao Subúrbio Carioca – percursos de um mito grego da Medeia (1972) à Gota d’Água (1975)”. Fênix, vol 1, ano 1, no. 1, 2004. 138

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o cidadão delibera, decide e, contudo, nada o resguarda, de forma que aquilo que decide não está em suas mãos e segue o destino, a Tyché. O trágico é, assim, o insolúvel, o encadeamento que, já traçado por forças além da compreensão, lança o homem-cidadão no mais profundo terror da própria liberdade, na compreensão de que ele não domina a própria liberdade. E ninguém, de fato, tem esse domínio, nem os deuses, pois a Tyché se traça desde a origem dos tempos. Na “tragédia brasileira”, o insolúvel é a fragmentação da consciência, imposta por um poder que se exerce coagindo, mas também incitando, cooptando, produzindo. Se o cidadão grego é levado ao terror (e à catarse) como espectador de sua absoluta liberdade, o “povo”, do qual falam Chico Buarque e Paulo Pontes, não mais vê liberdade alguma; percebe fragmentos, junta-os e com eles “se vira”. Os autores de A Gota d’Água aproximaram-se disso naquele momento, e viram a ameaça ao “povo” como ameaça à identidade da nação brasileira, pois ameaça de corte, de sufocamento do âmbito vivo de nascimento da “cultura”. E o que viram, eles recolocaram na perspectiva do movimento comunista, para o qual as classes médias têm grande relevância no processo histórico de emancipação das classes subalternas em direção à expressão da nação verdadeira que é Povo. Assim é que, diante do fracasso da transformação do grupo de vizinhos em coletividade, e da coletividade fazer a resistência, resta à Joana de A Gota d’Água um último e grande Não, que é o que representa o suicídio e o assassinato dos filhos. Lembremos que a Medeia de Eurípides não morre, mas escapa em apoteose num carro do Sol. E que se ela mata os filhos, não é para interromper a marcha do poder sobre o mais fraco, mas para triunfar em toda a sua força sobre o inimigo, literalmente acabando com a sua raça. Este sentido do “trágico moderno” é compartilhado por outros autores, diretores, dramaturgos engajados no movimento do teatro nacional popular. Fernando Peixoto, em sua apresentação para A Gota d’Água, de dezembro de 1975, diz: O povo, ultimamente impedido de assumir seu espaço no palco brasileiro, é o protagonista desta tragédia moderna. Não um povo idealizado ou paternalizado, tratado de forma ingênua ou sentimental. É um povo real, vivo, dilacerado, contraditório, buscando no difícil cotidiano os possíveis códigos de ética, dominado por paixões violentas que o cegam ou definem suas esperanças. Neste nível, todos os personagens, mesmo os secundários e o coro, são sujeitos, possuem suas contradições objetivas nítidas, expostas com clareza e poesia. O que transforma o texto numa conquista inalienável da dramaturgia nacional popular brasileira.141

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Texto citado em http://chicobuarque.uol.com.br/construcao/tea_gotadagua.htm.

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Um ano mais tarde, retomando um depoimento sobre a peça, o mesmo Fernando Peixoto afirma: É preciso sobretudo recolocar em debate a realidade e seus laços, suas armadilhas, suas nuances. O choque ideológico que o texto evidencia e a postura de discussão que revitaliza, fazem de Gota d’água mais que um simples texto teatral de qualidade. Esta tragédia nacional-popular é um depoimento político e um incentivo ao debate democrático. 142 Em 1980, a crítica parece continuar a ser positiva, realçando o frisson provocado na platéia conquistada pela peça, especialmente por sua linguagem poética. Mas o trabalho não é unânime, e Yan Michalski chega a citar que a peça foi acusada de populismo quando de seu lançamento, em 1975.143 Este outro lado da recepção, podemos pressenti-lo na síntese que Tânia Pacheco fez das relações entre o teatro, o poder e a censura na década de 70, pois aí A Gota d’Água não é mencionada como obra ligada à resistência política.144 E em seu comentário ao teatro dos anos 70, Mariângela Alves de Lima demonstra uma certa má-vontade com a experiência tradicional da montagem teatral isolada, para a qual a autora cita o exemplo de A Gota d’Água como uma peça capaz de grande sucesso de bilheteria mas que, ao cabo, não deixa rastros e nenhuma nova idéia que possa ser levada adiante por um grupo.145 O sentido do “trágico” na tragédia moderna não parece chegar a todos com a mesma força, ou ao menos com a força desejada e imputada na peça pelos seus autores. Devemos escapar, contudo, à dicotomia entre a compreensão e a incompreensão, pois, ao cabo, a boa e a má-vontade em relação à Gota d’Água são resultados de sua apresentação e, assim, do modo como foi recebida, do modo como aconteceu para um público, que espero ter ao menos sugerido o quanto pode ser heterogêneo quando pensado “no varejo” dos depoimentos. O último testemunho citado de Fernando Peixoto nos traz de volta a uma perspectiva da relação entre A gota d’Água e a política. Ele não dá conta de atitudes do público, mas oferece uma visão sobre o impacto esperado do texto sobre um debate político. Formula, assim, a proposição de que o texto de A Gota d’Água é, antes de tudo, político. Menciono esta precedência do político diante das outras possibilidades que são suscitadas pela recepção da crítica, do público, e pela carta de intenções dos autores mesmos. A crítica via na peça um ato cênico de qualidade, acima de tudo, esquivando-se da exploração do conteúdo político do texto; o público, como entidade abstrata, já o vimos, é difícil homogeneizar e muito difícil ainda de visualizar e conformar

Ver. op. cit., p. 278. Um clássico sempre vigoroso, Jornal do Brasil 01/07/80, Caderno B. Era comum acusar de populismo montagens ancoradas no teatro empresarial e no incentivo da política cultural do estado. 144 op. cit. No artigo, Pacheco cita em ordem cronológica as peças que foram censuradas no todo ou em parte. 145 “Quem faz o teatro”. ibid. p. 246. 142

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suas expectativas a uma ou outra linha de interpretação.146 Quanto aos autores, embora claramente engajados em um projeto político para a cultura, eles buscam, na apresentação do texto, valorizar a relação entre a expressão trágica no teatro e a abordagem das contradições do vivido. Como compreender tudo isto — depoimento político, ato cênico de qualidade, expressão trágica do vivido — como parte de um debate político ou de um projeto político para a cultura? Que relação é esta, afinal, em que texto e autores tornamse agentes em uma dimensão política da cultura?147 É aqui, na iminência deste “salto”, que uma boa leitura, atenta e cuidadosa, da história da tragédia na polis ateniense clássica precisa ser feita. Os estudos históricos sobre a tragédia são quase unânimes em apontar a sua profunda ligação com a democracia ateniense, o que de certa forma já vimos em parte, ao tratar da problemática da deliberação e da liberdade do cidadão. Em sua obra clássica sobre a paideía grega, Werner Jaeger (JAEGER,1986) relaciona os poetas trágicos aos sofistas e filósofos, como agentes em uma empreitada formadora do homem para a cidadania. J-P. Vernant e P. Vidal-Naquet (1988), responsáveis em larga medida pelo questionamento histórico da tragédia e do trágico, retirando-o da perspectiva do universal e humano da literatura e da filosofia, apontaram para a tragédia e para o teatro como discurso e espaço políticos, porque ligados de uma forma indissociável, vital mesmo, ao universo espiritual da polis (VERNANT, 1984). J. Ober e Barry Strauss (OBER e BARRY, 1992, pp. 237-270), por sua vez, exploraram a relação entre retórica política e discurso trágico, demonstrando a conexão da retórica dos tribunais e assembléias com a valorização de uma experiência compartilhada da escuta do texto das tragédias. Charles Segal (SEGAL, 1994, pp. 173-198) mostrou que, no que concerne às experiências sensíveis, o espectador das tragédias era o mesmo espectador dos discursos das assembléias; até mesmo porque o espaço do teatro e os espaços de decisões políticas e jurídicas tinham a mesma conformação arquitetônica: o anfiteatro. Tragédia e política compartilhavam, então, na polis, de uma mesma experiência do espaço público. Mas a tragédia grega não é um elogio da polis, não é um panegírico. Ao contrário, a questão parece sempre a de se colocar os cidadãos diante do artifício humano, da obra humana que é a cidade, fadada, como o homem, ao declínio.148 Ela não é contrária ao devir, ao acaso, ao destino, mas, antes, ela força seus espectadores a enfrentá-los

Em entrevista a Fernando Peixoto, em 1976, Paulo Pontes credita o sucesso de público ao reconhecimento da mensagem popular da qual a peça é expressão. Cf. PEIXOTO, op. cit., pp. 279-285. - Eis uma pergunta extremamente vaga, mas cuja relevância acaba por ter que ser enfrentada quando se tem em vista os diversos meandros percorridos pelo debate ao longo do século XX, da escola de Frankfurt à antropologia cultural. Optei por seguir uma via alternativa a esses debates, posto que a discussão da industria cultural, da cultura de massas, ou simplesmente da relação entre cultura, significado e poder prestava-se menos aos objetivos deste capítulo do que uma proposta ou ensaio de “co-leitura”, de comparação, entre a dimensão política do teatro trágico ateniense por um lado, e o engajamento do teatro nacional popular, por outro. 148 - Sobre o teatro e a questão da polis como artifício humano, cf. ANDRADE, M.M. A “cidade das mulheres”: cidadania e alteridade feminina na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: LHIA, 2001. 146

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e, por isso, pode ser tomada já na Antiguidade como formadora, como instrumento da paideía.149 Vemos a dificuldade de fazer uma ligação direta entre a (obra) Tragédia e a (grande) Política, já que, de certo modo — porque busca uma exploração religiosa dos homens como agentes políticos — a tragédia ateniense clássica é propriamente “da polis” (politikós). Não faz sentido, aqui, falar em “representação cultural” da realidade social, como não faz sentido separar esse âmbito “cultural”. Assim, se podemos falar de uma peça de teatro brasileira moderna como um produto cultural, o mesmo jargão não se aplica a uma peça como a Medeia, de Eurípides. Poderíamos dizer que esta última não acontece como “artefato cultural”. Neste sentido é que prefiro acompanhar a análise de Christianne Sourvinou-Inwood, para quem a Tragédia Grega, antes de ser palco, performance, trama, representação (elementos que se seguem na tradição aristotélica da Arte Poética), era o lugar público daquele que vislumbrava a cena de um discourse of religious exploration (SOURVINOU-INWOOD, 2003, p. 1)150 e, exatamente por isso, podia realizar-se como uma prática política e “pedagógica”. Neste âmbito em que não se pode dissociar política, religião e formação, a Medeia, de Eurípides, quis dizer muitas coisas. Infelizmente, não temos uma apresentação do autor, nem notas críticas, nem testemunhos diretos de espectadores, mas um texto recomposto ao longo de séculos e alguns escólios, ou comentários feitos por estudiosos dos períodos helenístico e romano. Dentre essas muitas coisas, tive oportunidade de estudar à fundo uma delas que é a conformação, na peça, de um debate sobre a cidadania aliado a uma perspectiva sobre as relações de gênero (ANDRADE, 2003, pp. 115-147). Uma discussão não tanto da traição de Jasão, mas da condição de Medeia como apolis, literalmente sem-polis ou sem cidadania, e os limites daquilo que podia esperar das leis da cidade que a abrigava, é central para se compreender o drama. Diante desses limites, colocam-se duas vias: uma masculina, ligada ao direito positivo da cidade e “protetora” de Jasão e Creonte; outra feminina, ligada a uma obscura remissão ao “juramento do leito”, justificando uma solidariedade indissolúvel entre o coro de mulheres de Corinto (“cidadãs”) e a reparação de Medeia. A solidariedade feminina é inexorável, e ultrapassa os ditames da cidadania e da polis, porque enraizada em uma estrutura arcaica, que é o juramento e o direito à reparação. Portanto, descobrimos aqui - Neste ponto, poderia ser lembrado que essa relação entre a tragédia e a paideía é largamente tributária de um discurso de elite, preocupado com a formação do bom cidadão. Pode ser. Mas também devemos considerar, primeiro, que representações teatrais como as das Grandes Dionisias aconteciam dentro de um festival religioso, com uma abrangência em termos de público apenas comparável, guardadas as proporções, aos desfiles de escolas de samba nos dias de hoje. E a relação visceral entre o teatro de Dionisos, em Atenas, e a estrutura políade, pode ser inferida da quase obrigatoriedade do cidadão ateniense assistir as peças, com a subvenção da cidade (theoricon). Assim, os concursos teatrais em Atenas atingiam um público heterogêneo tanto em termos de classes sociais quanto em termos de gênero e etnias. 150 - “But what I am arguing is something different: that tragedy was perceived by the fifth century audiences not as a discrete unit, a purely theatrical experience, simply framed by ritual, but as a ritual performance; and that te deities and other religious elements in the tragedies were not insulated from the audience’s religious realities, but were perceived to be, to a greater or lesses extent, somehow close to those realities, part of those realities, in ways that need to be defined.” SOURVINOU-INWOOD, C. Tragedy and Athenian Religion. New York: Lexington Books, 2003, p. 1. 149

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uma tragédia da polis que é a da perda de domínio sobre o elemento feminino do qual, por mais que pareça afastada, não pode, contudo, livrar-se. Sob esse ponto de vista, Joana não é mesmo Medeia. Nem as mulheres da peça de Chico Buarque e Paulo Pontes são “coríntias”. A solidariedade é, aqui, impossível, a não ser como consolo e conformação. É claro que isso remete, em parte, à configuração das relações de gênero na sociedade brasileira daquele momento, e, de forma geral, ao papel reservado às mulheres pelas ideologias burguesas. Mas ao mesmo tempo, os autores não escolheram propositalmente dissolver a solidariedade feminina presente em Medeia para dar lugar a Joana, embora o façam. De fato, eles perceberam outra coisa que a figura de Medeia representaria, hoje; algo que poderia exprimir, de alguma forma, e assim, ajudar a esclarecer, um determinado contexto de relações de poder que urgia compreender. Pois a Medeia burguesa não se presta a efígie de uma mulher comum; ela é uma diva que encanta e aterroriza ao mesmo tempo; é Maria Callas, Sarah Bernhardt, Bibi Ferreira. O grito dolorido e visceral da Medeia moderna é a aporia, o lugar impossível do poder, onde ele pára, não incide porque lhe escapa um ponto de aplicação. Por isso, a figura de Medeia faz aflorar um limiar de suspensão e desterro. Como deixar irromper esse limiar, quando um regime autoritário funciona justamente instigando — e gravando nos corpos e mentes — a crença segundo a qual não há supressão possível da coerção do poder, a não ser que se elimine a própria resistência? Entre Medeia e Joana, o trespassamento da coerção cede lugar ao pathos da inútil sublevação. Os espectadores de classe média, habituados a produtos da indústria cultural como o cinema e a televisão, participavam dessa experiência teatral a partir de dentro da lógica de confirmação dos produtos dessa indústria. Isto porque, embora o teatro se preste menos ao mecanismo da reprodução dos mass media, uma parte do conjunto daqueles que pensam e vivem do teatro não menos se percebe — e cada vez mais deseja ser — agenciadora de um produto cultural, produzido por trabalhadores da cultura, consumido por um público e incentivado e regulado pelo estado nacional. Por isso, esse público de classe média ocupa seu espaço em uma estrutura em que o ator principal, os atores em geral, e os autores, em particular, tem uma posição; ele sofre com o encanto e o temor do desterro trágico, mas num espaço controlado e assegurado por estruturas do habitual e por relações e posições reconhecidas. Devemos lembrar, por exemplo, que, além de Bibi Ferreira, Chico Buarque já era compositor de grande sucesso, e Vianinha e Paulo Pontes eram autores do seriado A Grande Família. Em que medida são essas estruturas (controláveis), e em que medida é a mensagem nacional popular que leva o público ao teatro, não podemos definir e nem considero que isto seja realmente fundamental. Mas o que não pode permanecer fora da investigação é o fato de que a peça nacional popular foi feita para ter sucesso diante de um determinado público consumidor de bens culturais. 180

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E por que? Certamente não para fundamentar juízos de valor que servem apenas para desmerecer uma obra poética a que devemos muito mais do que o nosso respeito. Mas porque esse fato coloca em perspectiva a ligação entre “tragédia moderna” e o “trágico” como o vimos, ou seja, como dimensão política, religiosa e “pedagógica” na democracia dos atenienses, ligação esta que se estabelece, principalmente, pela via dessa paideia formadora do homem político (e do homem crítico). Falávamos de uma função pedagógica da Tragédia grega, mas agora devemos compreender o funcionamento dessa paideia que A Gota d’Água, com toda a propriedade, introduz na perspectiva do movimento nacional popular na cultura. Ela não pretende “educar o povo”. Mas ela quer, muito mais do que provocar sentimentos, formar opinião e, para isso, mobiliza instrumentos extremamente eficazes, tanto do ponto de vista das estratégias de produção quanto do ponto de vista prospectivo da recepção. A poesia e a rima, a música; o contraste entre espaços de gênero; a força expressiva da grande atriz; a personagem de Medeia, encarnando a injúria e a vingança universais; a popularidade dos autores; o espaço apropriado do espectador tradicional. Por isso mesmo, não basta vincular A Gota d’Água à metáfora da exploração dos trabalhadores, porque é preciso dar conta de efeitos bem menos visíveis do ponto de vista institucional, bem menos visíveis, ainda, porque concernentes à doxa151. Os autores podem ser vistos como agentes em relação a doxa, como articuladores que, de certo modo fabricam (fazem “arte”) com a doxa, o que podemos entender por enquanto simplesmente como “formadores de opinião”, se incluirmos nesse processo a formação também da opinião do autor e do autor mesmo, como indivíduo posicionado em um campo. Deste ponto de vista é que a peça engaja-se num contexto político, e não apenas o representa ou o reflete. E assim, a incidência política de A Gota d’Água é bem mais heterogênea do que sua vinculação ao movimento nacional popular ou às engrenagens da indústria cultural deixa entrever. Ela “mexe” com as relações de gênero para, ao mesmo tempo, lidar com o dilema da subordinação e da impotência. Mas nesse procedimento, desconstrói as relações de poder cristalizadas, demonstrando que “submeter-se como uma mulher” determina a realidade de classe dos trabalhadores, e ultrapassa a vida e as condições de existência de mulheres e de homens. Ela propõe uma representação da cultura popular que se reconhece no formato do jornal do povo, o tablóide sensacionalista que os homens da peça lêem no set do botequim, e, ao propor, solidifica, cristaliza uma visão de mundo para a classe média. Ela critica a lógica das relações econômicas que vai tomando con151

A noção de doxa é discutida por Pierre Bourdieu em diversos momentos de sua obra. Interessa-nos o aspecto inconsciente que faz da doxa a superfície (aparente) do senso comum, a moeda de troca das relações simbólicas, tendente à reprodução do campo e das relações objetivas de dominação. É neste sentido que a doxa pode acolher a opinião, a saber, retirando-se da opinião (o que se diz, aquilo em que se acredita e aquilo em que se quer fazer acreditar) qualquer substrato (subjectum) primário de livre-arbítrio ou escolha do sujeito de razão. Pois antes de aparecer às consciências como o ponto de vista de alguém (ou de um grupo), a doxa é o evento que torna possível qualquer expressão. Cf. BOURDIEU, P. Le Sens Pratique. Paris: Minuit. 1980, esp. pp 51-165; A Economia das Trocas Linguísticas. São Paulo: EDUSP, 1998, esp. pp.81-126.

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ta dessas classes médias, confrontando seus valores (novos) com o valor (antigo) da solidariedade de comunidade, nos dilemas que justapõem Jasão e Alma, Jasão e Creonte. Por fim, ela permite que surja diante do espectador esse confronto entre a situação de extrema subordinação e o estrangulamento das possibilidades de resistência. Seria, enfim, a relação reflexiva entre o artefato cultural e a história da política e das forças econômicas a única possível para a compreensão do nexo entre teatro e política? Creio ter demonstrado que não, pois é preciso compreender como se coloca, se postula mesmo, o teatro como uma instância que não apenas reflete (sobre) o contexto, mas o constitui como um contexto possível. Gostaria, então, de propor abordar essa tripla relação entre teatro, política e cultura, de maneira que uma peça como A Gota d’Água possa ser compreendida como um evento que, por si mesmo, “dobra” um contexto, ou uma conjuntura, fazendo nascer aí, em seu lugar de produção, um campo de possibilidades. Ao final, poderíamos sugerir encaminhamentos para o debate de expressões como teatro e política, por um lado, e política cultural, por outro lado, da seguinte maneira: 1) o teatro não se relaciona com a política de fora, como se o lugar do teatro e o da política fossem naturalmente separáveis; o teatro é política, política como partilha, recorte e conformação, como doxa e proposição. 2) só pode haver uma “política cultural” em um momento histórico em que a “cultura” existe como âmbito reificado, separado da vida comum e do senso comum. Sem essa pré-condição, a expressão “política cultural” seria, simplesmente, uma tautologia. O teatro é política, porque uma encenação teatral cria suas ramificações e transforma a vida cotidiana, bem como a opinião, de diversas maneiras. É preciso refletir sobre isso, sobre esse caráter histórico, seu alcance, seu limite, suas dimensões, que podem fornecer a chave de uma ação política, e não simplesmente representá-la, descrevê-la, ajudar a falar sobre ela. Acredito que o campo da História Cultural pode ter mais a dizer a este respeito do que já foi dito, dentro dessa linha de abordagem das relações entre as produções teatrais e a política. E isto, desenvolvendo um caminho duplo de questionamento: primeiro, perguntando-se sobre esse processo de apropriação (não tanto de reprodução) em que, por exemplo, a adaptação de uma tragédia grega enseja um contexto de discussão política que, aparentemente, nada tem a ver com a tragédia (histórica) ou com a Atenas clássica; perseguindo, portanto, logo de início, um viés comparativo, como aquele defendido por Veyne ao propor, como problema, a questão dos invariantes na explicação histórica.152 Depois, assumindo uma postura que, 152

 perspectiva de Veyne quanto ao invariante é invertida. Tendemos a perceber o invariante como aquilo que não varia, ou o que A tende a escapar das transformações históricas, porque concebemos o invariante como um dado empírico. Para Veyne, o invariante é conceitual, como por exemplo o gênero , o teatro, o imperialismo, como conceitos da História. Trata-se, assim, de uma espécie de filtro, através do qual torna-se possível explicar historicamente e, sempre, atualmente, fatos históricos. E, talvez, fatos históricos só existam na medida em que, antes deles, existem esses invariantes com os quais uma atualidade pode compreender

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na falta de melhor resumo, chamarei “desconstrucionista”, pois o que é preciso desvelar não é simplesmente o nexo entre a produção teatral, as políticas públicas e a cultural industry, ou entre a abordagem das peças e a opção entre cooptação ou resistência; isto já foi por demais explorado. É preciso expor os diversos processos que produzem, concomitantemente, uma peça apresentada, seus autores e espectadores, suas intenções e seus usos, indicando que nenhuma constante empírica, seja ela o sujeito ou o texto, pode permanecer incólume no movimento tão simples do fazer-se histórico, ou seja, acontecer. Pois, antes de ser empiricamente um “artefato cultural”, a peça de teatro acontece como um “artefato cultural” dentro de uma conjuntura. Não me cabe fazer um balanço positivo ou negativo de todas as ramificações da questão política em A Gota d’Água. Mas ainda é preciso estudar mais isso tudo não só em relação a esta peça como a outras, que foram analisadas no campo da História apenas em sua relação à “Grande Política”. E seria um equívoco imaginarmos que, com isso, nos distanciamos do fundamental resgate de um momento obscuro da história brasileira, que não queremos de forma alguma que se repita. Diante do autoritarismo, não há nada mais subversivo que o contraditório, o plural. Por isso, esse período histórico deve ser compreendido no todo contraditório que ele é, para além da racionalidade que lhe foi conferida pela direita ou pela esquerda. Acredito que esta pode ser a grande contribuição da história cultural, não como história de objetos culturais ou história de discursos, mas como a história dos modos pelos quais “artefatos culturais” e “lugares de produção” foram erigidos como espécies de barreiras sensíveis às investidas unilaterais e unívocas dos pretensos lugares de poder; e se neste projeto for possível retornar a uma compreensão (grega) de que a política e o logos dizem respeito a uma mesma dimensão das relações humanas, tanto melhor.

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Brasileiros e romanos: colonialismo, identidades e o papel da cultura material Pedro Paulo A. Funari (Unicamp)

Introdução: o discurso colonial na Arqueologia O papel da Arqueologia e da cultura material em geral na construção e na legitimação das identidades culturais tornou-se central, nos últimos anos, na teoria e na prática arqueológicas (Jones 1997), particularmente desde a queda do comunismo. A relação entre a Arqueologia e a construção de identidades esteve no centro da disciplina desde seu início, no século XIX, mas foi apenas com as abordagens contextual e pós-processual que uma avaliação crítica dessa relação tornou-se usual. O World Archaeological Congress e sua ênfase no caráter sócio-político da Arqueologia, desempenharam, então, um papel vital (Ucko 1995). Entretanto, o rápido desenvolvimento dos nacionalismos na Europa e em outros locais do globo, e a propagação da globalização enquanto um enquadramento interpretativo popular contribuíram para a percepção de que a construção da identidade e a cultura material deveriam ser interpretadas como estando inextricavelmente inter-relacionadas. Nesse contexto, a teoria do discurso colonial é particularmente relevante. Originalmente, desde os anos de 1970, ao menos, a teoria do discurso colonial focava sobre o poder da ideologia colonial e como a retórica e as representações auxiliavam o processo histórico da dominação imperial de povos vassalos (Hingley 2000: 6). Pensadores como Edward Said (1978) e Bernal (1987) haviam demonstrado como a sujeição de povos, pelos poderes coloniais, havia sido construída enquanto um conjunto complexo de descrições, tidas como científicas, de força e fraqueza, colonizadores e colonizados. O passado foi utilizado para sustentar grandes colonizadores, como os franceses e os britânicos, em detrimento dos fracos nativos, fossem eles do Oriente Próximo, indianos, africanos ou americanos. O papel da cultura material na moldagem desses desequilíbrios não foi marginal, mas os pensadores sociais estavam, acima de tudo, preocupados com narrativas acadêmicas produzidas por cientistas sociais e outros estudiosos da sociedade. O foco recaía em como os indo-europeus haviam sido alçados a seres superiores em relação aos semitas, apesar dos outros povos vassalos estarem, em certa medida, associados aos semitas, considerados tradicionalmente inferiores. Estudos da cultura material apenas tardiamente voltaram-se para a análise do discurso colonial, e esse movimento na Arqueologia está ligado a uma abordagem crítica da história da disciplina, como foi mais notavelmente proposta inicialmente por Trigger (1989). Diferentemente dos relatos internalistas da Arqueologia anteriores, a história da disciplina tem sido, cada vez mais, contextualizada a partir das circunstâncias, em 185

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constante mudança, sociais, culturais e políticas da sociedade como um todo. Essa abordagem inovadora leva em consideração as condições históricas que permitiram a existência da disciplina, como também as circunstâncias nas quais o conhecimento foi produzido (Patterson 2001: 5). Esse movimento levou à publicação de diversos livros, volumes editados e artigos sobre esses temas, sobre a Arqueologia e sobre a construção das nações (Diaz-Andreu & Champion 1996, com referências anteriores; Olivier 2001, sob uma perspectiva francesa; sobre o Brasil, Funari 1999). O objetivo desse artigo é demonstrar como a cultura material romana foi utilizada no Brasil para construir identidades, inicialmente por meio de um interesse antiquário, mas existente até os dias de hoje, quando vemos uma mistura de imagens populares e acadêmicas interagindo. A Arqueologia romana desempenhou um papel de fomentação de uma imagem da classe alta brasileira. Desde o século XIX, aquela classe identificou os idealizados romanos com as elites brasileiras optando em momentos distintos por características distintas. A Arqueologia acadêmica recente desenvolveu-se nesse contexto histórico e social, o que resultou em uma prática mista.

Antigüidades romanas no contexto imperial brasileiro A corte real portuguesa foi transferida para o Rio de Janeiro no encalço do avanço de Napoleão sobre a Europa continental, e trouxe para os trópicos, pela primeira vez, toda a pompa do poder imperial. O estado foi rebatizado de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e a capital do império foi estabelecida no Rio de Janeiro. Esse movimento levou à importação da Biblioteca imperial e ao estabelecimento de um Museu Imperial, inspirado no Louvre e no Museu Britânico. O Museu foi criado como uma prova material do esplendor do Império Português, que então alcançava quatro continentes, apesar de que seu continente base, no coração da Europa, tivesse sido abandonado aos franceses (Lopes 2000). Após a expulsão dos franceses a corte retornou a Lisboa, mas a antiga capital do Império nos trópicos manteve-se como um anfitrião com insígnia imperial, sem contar todo o gosto da cultura material clássica. O filho do rei de Portugal, Pedro, foi deixado no Rio de Janeiro, e logo, reivindicou o Brasil como seu país independente, o que conseguiu em 1822, ao ser aclamado como o primeiro Imperador brasileiro. Pedro I e sua corte eram europeus e, então, civilização era sinônimo de uma cultura européia. Os modelos gregos não eram considerados os mais apropriados, já que a Grécia era tida como democrática e efeminada demais, além de ser uma civilização que havia sido derrotada pelas armas. O catolicismo era outra fonte possível de modelos, se levarmos em consideração o papel que este desempenhou, durante séculos, em Portugal, e muito mais ainda porque logo foi declarada como a religião oficial do Estado pela nova monarquia. A simbiose entre poder real e controle católico sobre a sociedade possuía 186

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raízes profundas, mas os clérigos encontravam-se sob o controle direto do governante. O catolicismo também ficou associado ao período colonial tardio, particularmente às cidades barrocas do século XVIII, com os traçados de suas ruas inspirados no Portugal medieval. Este não era um modelo adequado para o novo Império (Funari 1999b). Já Roma era esse modelo. Roma Imperial e o poder autocrático eram modelos para o império brasileiro e para o novo “poder moderador” de Pedro I, inspirado na auctoritas do período romano. Com a Constituição, que foi imposta pelo imperador, o “poder moderador é a chave de toda a organização política e era propriedade particular do imperador” (artigo 98). Esse conceito vem de moderari, do latim clássico, onde aparece em autores muito conhecidos, como Cícero e sua descrição de Deus como deus, qui regit, et moderatur, et mouet id corpus (Rep. 6, 24, 26). Moderação, como “restrição”, foi a chave para o governo discricionário do imperador (reipublicae moderatio, como em Cícero Leg. 3, 2, 5). Pedro I deixou o Brasil para tornar-se Pedro IV em Portugal e seu filho, Pedro II, tomou as rédeas do poder até o final da monarquia em 1889. Em sua infância, Pedro II foi educado nos clássicos, tendo aprendido diversas línguas, hebreu, grego e latim, além das modernas. Logo ficou conhecido como o governante “iluminado”, em razão de seu gosto pela academia e pela ciência (Langer 2000; 2001). Casado com uma princesa de Nápoles, pôde ter acesso a materiais arqueológicos romanos tanto da área de Nápoles, como por exemplo, de Pompéia, mas também de escavações em outras partes da península italiana. Este material enriqueceu o Museu Nacional, como foi rebatizado o antigo Museu Imperial. O Museu Nacional possuía tanto maravilhas naturais como cultura material de todos os continentes, de maneira análoga ao que deveria possuir um museu devidamente “civilizado”. O Instituto Histórico e Geográfico também teve um importante papel na exploração e na interpretação da cultura material (Ferreira 1999). Atenção especial foi dada aos materiais trazidos das províncias do Império, e os nativos brasileiros foram considerados como os gauleses em relação aos romanos, conquistados mas integrantes do Império. As antigüidades romanas foram particularmente importantes, por diversas razões simbólicas. Primeiramente, a corte brasileira era uma corte européia. Não era portuguesa, pois isto a limitaria e também a ligaria diretamente a Portugal, de um modo que sua reivindicação por um status independente seria minimizada. Seu caráter europeu era melhor representado por Roma do que por qualquer poder europeu então existente. Além disso, o caráter aristocrático do Brasil, a presença esmagadora da escravidão, o governo autocrático, um território imenso, todos esses elementos contribuíam para sua identificação com a Roma Imperial. Os textos de Júlio César eram leitura básica durante o Império, e o Museu Nacional refletiu este eulogium das antiguidades romanas.

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A República e o novo papel dos ideais romanos A oposição à monarquia foi liderada pelos republicanos, cujo modo de vida não era menos aristocrático do que o da corte, mas cujos ideais estavam embasados em um colegiado da elite. O “poder moderador” era um dos principais alvos dos republicanos e a devolução do poder para as aristocracias locais foi interpretada como um retorno aos bons tempos da República Romana. Com a República, a partir de 1889, o poder migrou da corte para as novas aristocracias proprietárias de terras, de fora da corte do Rio de Janeiro, mais notadamente, em São Paulo e em Minas Gerais. O Museu Nacional perdeu muito de seu apelo enquanto ícone de identidade. As novas elites viraram as costas para os símbolos autocráticos imperiais romanos e preferiram inventar seus próprios antepassados, os bandeirantes (ou “carregadores da bandeira”). Estes foram interpretados como os verdadeiros fundadores da nação, no início da colonização, enquanto conquistadores do oeste, escravizadores dos índios rebeldes. O próprio nome bandeirante foi inventado, pois documentos contemporâneos fazem referências aos paulistas, isto é, às pessoas de São Paulo. Os paulistas eram aqueles com ascendência misturada, do nativo brasileiro com o português, que no início do período colonial penetrou no interior. Eles não falavam português, como ocorria nas cidades coloniais da costa, e sim um tipo de tupi, conhecido então como uma linguagem comum. No entanto, para a nova elite, paulista não era um nome útil a se manter, pois fazia referência a um dos estados da nação. O Estado de São Paulo, graças, primeiramente, às plantações de café, e posteriormente, à industrialização precoce, estava rapidamente tornando-se o estado mais poderoso do país. Sua elite governava alinhada a diversas outras elites estaduais, mas acima de todas, com a de Minas Gerais, a antiga área colonial de mineração. Desse modo, o bandeirante logo deixou de ser um paulista, não falava o tupi e não era o resultado espúrio de uma mestiçagem étnica. O bandeirante foi inventado enquanto um imaculado romano republicano: corajoso, conquistador, um gigante. De maneira análoga aos romanos, os bandeirantes eram tidos como capazes de civilizar o outro, os povos dominados, ao misturá-los e transformá-los em verdadeiros bandeirantes. Assim descreveu Myriam Ellis (1963: 280). Os bandeirantes mestiços recebiam, de seus ancestrais masculinos, seu espírito indômito, a coragem, a audácia, a mobilidade, já seus ancestrais femininos davam-lhes seu amor pela liberdade, seu entusiasmo inquieto e seu desejo nômade pela conquista do oeste. Esses pioneiros brasileiros também eram romanos, pois opunham-se aos colonizadores espanhóis. Os pioneiros, conta a história, conquistaram o Brasil dos espanhóis, que possuíam, legalmente, o direito sobre uma vasta área a oeste da linha de Tordesilhas. Os espanhóis e seu estilo de vida cultivado eram repudiados como efeminados, suas cidades sendo dominadas pela organização de um traçado de ruas em xadrez. Eles eram assimilados aos gregos decadentes, subjugados pelos rústicos romanos, os 188

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bandeirantes. Essa reconstrução da oposição colonial entre os portugueses e os espanhóis na América do Sul foi diretamente relacionada à oposição republicana brasileira com relação a Argentina, vista como o protótipo do grego efeminado em oposição ao macho romano bandeirante. Enquanto os valores romanos, utilizados durante o Império brasileiro, foram aristocráticos e restritos a um número limitado de membros da corte, a nova ideologia possuía o potencial de se tornar popular, como havia acontecido anteriormente. A cultura material desempenhou um papel crucial nessa difusão, por meio da invenção de uma nova iconografia (Funari 1994). O mito do bandeirante produziu resultados ideológicos de longa duração, como notou Pierre Monbeing (1952: 107-18): Il s’est créé un mythe du Bandeirante dont l’efficacité psychologique est certaine. Quand on veut célébrer un fazendeiro, défricheur de forêts, planteur de villes, il n’est pas de plus beau titre à lui décerner que celui de Bandeirante. Quand on dit d’un homme qu’il est un vrai Bandeirante, on a tout dit. Faisons sa part à une emphase toute latine et ne nous étonnons pas trop de voir le Bandeirante recevoir une promotion indirecte et posthume de colonisateur. Criou-se um mito do bandeirante cuja eficiência psicológica é certa. Quando queremos celebrar um fazendeiro, um desbravador de florestas, um fundador de cidades, não há título mais adequado a lhe conceder do que o de bandeirante. Quando falamos que um homem é um verdadeiro bandeirante, não há necessidade de algum outro elogio. Dando espaço a uma ênfase de todo latina, não nos surpreenderemos muito em ver o bandeirante receber uma promoção indireta e póstuma como colonizador. Essa ideologia materializou-se na construção de imagens dos bandeirantes. A cultura material era essencial para propagar a imagem romana desses guerreiros (Funari 1995). O Museu Paulista, em São Paulo, foi renovado para receber o centenário brasileiro de 1922 enquanto um Museu Bandeirante que aspirava a se tornar um novo Museu Nacional, objetivo que até hoje existe no seio deste museu. Os bandeirantes foram esculpidos e pintados como romanos republicanos. Sua roupas inventadas, não muito parecidas com as dos romanos, eram inspiradas na seueritas romana. Representações públicas dos bandeirantes, presentes por toda a parte, seguiram esta iconografia, seja em estátuas, construções, pinturas em diversos suportes, não esquecendo os textos escolares. O estudo do latim nas escolas fundamentais e médias foi muito difundido em razão da propagação, na Nova República, de novas escolas, que pela primeira vez alcançaram as pessoas comuns. Os bandeirantes e o latim estavam no centro da educação popular até os anos de 1960, quando o latim foi abandonado e os militares patrocinaram a introdução de cursos, extremamente conservadores, de “moral e cívica”. Apesar de outras identidades nacionais serem ideologicamente fomentadas, a 189

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assimilação entre o bandeirante e o romano permaneceu como uma imagem poderosa, tanto que um grande pensador brasileiro, antropólogo e ativista social, Darcy Ribeiro, em seu opus magnum sobre o Brasil, publicado nos anos de 1990, conclui que o país é a nova Roma! Nunca existiu uma ideologia romana no Brasil que fosse consciente e preponderante. Ao invés disso, sempre houve uma pletora de outros ícones e modelos de identidade. Tanto para as pessoas comuns quanto para o pensadores e construtores de identidades, as identidades brasileiras sempre foram múltiplas. Permanece o fato que a materialidade romana desempenhou um papel, com freqüência não reconhecido, durante diferentes momentos da história brasileira.

O estudo acadêmico das antigüidades romanas no Brasil e o discurso colonizado O estudo acadêmico da Arqueologia romana no Brasil é muito recente. Apesar do latim ter sido estudado por séculos, o estudo da história romana é um desenvolvimento tardio, que tomou corpo apenas após a introdução da vida universitária no Brasil, nos anos de 1930. A Arqueologia desenvolveu-se no Brasil ainda mais tarde, a partir dos anos de 1960. A Arqueologia, particularmente, sofreu durante a ditadura militar (Funari 1999a; 2002), entre 1964 e 1985, mesmo que a Arqueologia clássica, tida como apolítica e abertamente reacionária, não tivesse sido alvo dos militares (Funari 1997). A Arqueologia do mundo romano foi desenvolvida, em primeiro lugar, como uma maneira de se estudar as coleções armazenadas no Museu Nacional (Rio de Janeiro) e no Museu de Arqueologia e Etnologia (São Paulo). A necessidade de estudos sobre as coleções arqueológicas levou a um contato mais próximo, dos arqueólogos romanos locais, com seus colegas europeus. Desde os anos de 1980, arqueólogos romanos brasileiros têm trabalhado em conjunto com centros de pesquisa europeus, particularmente com os britânicos, espanhóis, italianos, mas também com os franceses e com os portugueses. Brasileiros têm escavado sítios romanos (por exemplo, Garraffoni, Cavicchioli, Silva 2001; Pollini 2002), têm estudado coleções romanas em museus europeus e, mais notavelmente, têm produzido livros e artigos publicados na Europa, em língua estrangeira, como o inglês (cf. Funari 1997, com referências). A Arqueologia acadêmica romana não está diretamente relacionada às imagens usadas pelos ideólogos imperiais ou republicanos, mas tampouco pode escapar ao contexto geral dos romanos enquanto modelos para os brasileiros. Em reação a esse estado de coisas, a Arqueologia romana, por vezes, torna-se mais intensamente atenta aos usos ideológicos da cultura material do que outras áreas arqueológicas, tanto no Brasil quanto em outras partes do mundo. Provavelmente, não é coincidência que o pós-processualismo foi primeiramente introduzido no Brasil no campo da Arqueologia romana, e que arqueólogos romanos interessaram-se por temas tais como contar às 190

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crianças sobre a pré-história brasileira! (por exemplo, Guarinello 1994; Funari 2002). A Arqueologia romana, por si só, não tem força suficiente para desmontar as imagens inventadas sobre os brasileiros, mas pode contribuir para desafiar as percepções colonizadas de identidade.

Agradecimentos Devo agradecimentos aos seguintes colegas: Martin Bernal, Lúcio Menezes Ferreira, Renata Senna Garraffoni, Richard Hingley, Siân Jones, Johnni Langer, Margaret Lopes, Tamima Orra Mourad, Laurent Olivier, Thomas Patterson, Airton Pollini, Bruce G. Trigger, Peter Ucko. As idéias são minhas e, portanto, sou o único responsável por elas. Devo também mencionar o apoio institucional do World Archaeological Congress e do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP).

Bibliografia BERNAL, M. Black Athena: the Afroasiatic roots of classical civilization. Londres: Free Association Press, 1987. ELLIS, M. As bandeiras na expansão geográfica do Brasil. In: HOLLANDA, Sérgio Buarque (ed.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1963, pp. 273-296. FUNARI, P. P. A. Rescuing ordinary people’s culture: museums, material culture and education in Brazil. , In: STONE, Peter G. e MOLINEAUX, Brian L. (eds.). The Presented Past, Heritage, museums and education. Londres: Routledge, 1994, pp. 120-136. . A cultura material e a construção da mitologia bandeirante: problemas da identidade nacional brasileira. Idéias. 2,1, pp. 29-48, 1995. . European archaeology and two Brazilian offspring: classical archaeology and art history. Journal of European Archaeology. 5, 2, pp. 137-148, 1997. . Brazilian archaeology, a reappraisal. In: POLITIS, G. e BENJAMIN Alberti (eds). Archaeology in Latin America. Londres, Nova Iorque: Routledge, 1999, pp. 17-37. . Algumas contribuições do estudo da cultura material para a discussão da História da colonização da América do Sul. Tempos Históricos. Cascavel, 1, pp. 11-44, 1999. . Class interests in Brazilian archaeology. International Journal of Historical Archaeology. 6, 3, pp. 209-216, 2002. . Os Antigos Habitantes do Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.

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Pedro Paulo A. Funari

GARRAFFONI, R. S., Cavicchioli, M., Silva, G. J. 2001. Escavação arqueológica em uma cidade romana: a experiência de três brasileiros. Boletim do CPA. 6, 11, pp 149-153, 2001. GUARINELLO, N. L. Os Primeiros Habitantes do Brasil. São Paulo: Atual, 1994. Hingley, R. Roman Officers and English Gentlemen. The imperial origins of Roman archaeology. Londres: Routledge, 2000. JONES, S. The Archaeology of Ethnicity: constructing identities in the past and present. Londres: Routledge, 1997. LOPES, M. M. O Brasil descobre a ciência científica: os museus e as ciências naturais no século XIX. São Paulo: Hucitec, 2000. FERREIRA, L. M. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a construção da Arqueologia Imperial. Revista de História Regional. 4, 1, pp. 9-36, 1999. LANGER, J. 2000. Ruínas e mito: a Arqueologia no Brasil Império. Curitiba, Tese de Doutorado - UFPR, 2000. . Os enigmas de um continente: as origens da Arqueologia americana. Estudos Ibero-Americanos. 27, 1, pp. 143-158, 2001. MONBEING, P. Pionniers et Planteurs de S. Paulo. Paris: Armand Colin, 1952. OLIVIER, L. A Arqueologia francesa e o regime de Vichy. In: BENOIT, H. e FUNARI, P. P. A. Funari (eds). Ética e Política no Mundo Antigo. Campinas: IFCH, 2001, pp. 219-252. PATTERSON, T. C. A Social History of Anthropology in the United States. Oxford: Berg, 2001. POLLINI, A. Paestum. Sondage 214. In: Mélanges de l’Ecole Française de Rome. Chroniques,114, 1, 2002, pp. 486-487. SAID, E. W. Orientalism: Western conceptions of the Orient. Londres: Penguin, 1978. TRIGGER, B. C. A history of Archaeological Thought. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. UCKO, P. (ed), Theory in Archaeology, a World perspective. Londres: Routledge, 1995.

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“Pão e Circo”: Uma expressão romana no cotidiano brasileiro153 Renata Senna Garraffoni154 (UFPR)

Introdução Panem et Circenses ou “pão e circo” é, talvez, uma das expressões latinas mais conhecida e empregada no cotidiano brasileiro. Quem nunca disse ou ouviu de alguém que basta comida e diversão para acalmar as multidões? Da Copa do Mundo aos discursos dos candidatos às eleições a expressão aparece, seja para criticar aos brasileiros que se deixam levar pelo mundo do futebol ou aos adversários políticos e suas estratégias de campanha ou ações no governo. Se destacarmos estes dois universos, a expressão “pão e circo” pode aparecer em noticiários esportivos ou nos cadernos de política da imprensa escrita. Mas não é incomum, no entanto, encontrar a expressão em livros didáticos, filmes, novelas, romances, revistas... Espalhado pela mídia ou livros, sejam eles romances, didáticos ou acadêmicos, a famosa máxima de Juvenal atravessou séculos, se transformou em senso comum e, às vezes, confunde as pessoas que pensam ser uma expressão cunhada no seio da sociedade brasileira. Embora para muitos a expressão tenha um claro significado, isto é, uma maneira de troca de favores com função política explícita, é importante destacar que a máxima possui uma história e, desde que foi cunhada, passou por distintas interpretações, influenciando o cotidiano das pessoas em diferentes países e moldando conceitos empregados para entender espetáculos públicos antigos e modernos. A partir desta constatação, a idéia destas linhas que escrevo é propor uma reflexão sobre o momento em que o termo é empregado pela primeira vez ainda em época, suas interpretações entre os acadêmicos do século XIX, momento em que se desenvolve a noção de perigo eminente de revolta das massas desocupadas para, em seguida, pensarmos a influência dessas percepções no entendimento de um tipo de espetáculo romano muito particular; as lutas de gladiadores. Esta proposta visa não só a busca por interpretações mais plurais do passado romano como também uma reflexão sobre as relações do presente com o passado, ou seja, como expressões antigas permeiam nosso cotidiano com sentido bastante diferente do original.

Este texto foi produzido a partir de reflexões anteriores e readaptadas para a presente publicação. Para outros aspectos sobre a noção de “pão e circo” não comentadas aqui, cf. Garraffoni, 2005a e Garraffoni, 2005b. 154 Professora de História Antiga no Departamento de História da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Doutora em História pelo IFCH/UNICAMP, pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos Estratégicos e Centro do Pensamento Antigo, ambos da Unicamp. 153

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Quando Juvenal escreve “panem et circences” Muitos podem estar perguntando: mas de onde surgiu a expressão que tem condenado os romanos à parasita do Estado e as massas modernas à alienação? Para respondermos esta questão é preciso voltar nossos olhos para o século II d.C., quando Juvenal escreve sua obra Sátiras. Como ocorre com a grande maioria dos autores latinos, pouco se sabe com segurança sobre a vida de Juvenal. Muitos estudiosos modernos têm investigado seus dados biográficos, mas as informações são dispersas e, muitas vezes, confusas. Acredita-se que tenha nascido em Aquino, entre os anos de 62 a 67 d.C. vindo a falecer por volta de 130 d.C155. Conta-se que em um momento de sua vida, quando Juvenal já não era mais tão jovem, teria perdido status e dinheiro, vivendo como cliente: situação que levou muitos estudiosos a interpretarem como motivo para o pessimismo expresso em seus escritos. Balasch, estudioso das Sátiras, afirma que a originalidade da poesia de Juvenal consiste em sua grande capacidade de elaborar sínteses poderosas de elementos tradicionais e de seu cotidiano156. A particularidade dos escritos de Juvenal estaria, portanto, no fato de apresentar uma visão pessimista da sociedade romana que, muitas vezes, beira o trágico: descreve um mundo que engloba desde a aristocracia até as camadas mais populares da sociedade romana e altera graça com um humor picante, chegando em alguns momentos expressar fúria e ira. Por descrever inúmeras situações cotidianas nos seus detalhes mais íntimos o texto de Juvenal se tornou uma referência importante para os estudiosos modernos que buscavam informações acerca dos baixos estratos sociais romanos. Muitos deles, ao descreverem as camadas populares romanas, o fazem de maneira que ecoa os textos de Juvenal. Mas como seria, então, o trecho no qual aparece a máxima? No início da Sátira X Juvenal diz:

Iam pridem, ex quo suffragia nulli vendimus, effudit curas; nam qui dabat olim imperium, fasces, legiones, omnia, nunc se continet atque duas tantum res anxius optat, panem et circenses (JUVENAL. Sátiras. X. VV. 75-80) 157. Há muito tempo, desde quando não vendemos mais os votos, [o povo] vertia as preocupações, pois em uma outra época concedia comando, honras, legiões, tudo. Agora se limita e deseja ansioso duas coisas: pão e circo. Se for analisada fora de seu contexto, a máxima de Juvenal remete à tentadora

 ara apresentar estes dados biográficos me baseei nos comentários destas duas traduções das Sátiras: JUVENAL, Satire, 1998 P e JUVENAL et PÉRSIO, Sátiras, 1991. 156 Cf. detalhes de seus comentários na pág. 46 da edição de 1991. 157 A tradução deste e dos demais textos em língua estrangeira é de nossa autoria. 155

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possibilidade de interpretar os romanos como desinteressados pelos acontecimentos políticos a sua volta e amante dos prazeres mundanos. No entanto, uma leitura que considere a Sátira X em sua totalidade, percebe-se uma situação muito distinta: há, na sátira, uma dura crítica àqueles que vão ao templo pedir aos deuses riqueza, glória, beleza e juventude. Para estabelecer esta crítica, Juvenal compõe seu texto estereotipando ao máximo as características destas pessoas, pois segundo seu argumento, as pessoas que pediam isto estariam se condenando uma vez que riqueza, glória, juventude sempre acabariam gerando inveja e levariam a um fim trágico. Neste sentido, inicia narrando a história do pretoriano Seiano que, ao conseguir acumular uma grande riqueza, acabou traído e morto. Seu corpo fora arrastado no meio da multidão, esta que Juvenal deprecia e descreve como amante de pão e circo. Que humilhação maior poderia haver para o corpo de cidadão romano que ser arrastado entre aqueles de mais baixa categoria social? Esta descrição detalhada compõe uma imagem poética de grande força moral, pois ao mesmo tempo que Juvenal degrada a figura de Seiano, também o faz com as camadas populares romanas. Se nos atentarmos para o trecho destacado, nota-se que Juvenal utiliza uma série de advérbios como iam pridem, olim ou ex quo, aqui traduzido como desde, para indicar com clareza que houve um tempo em que as pessoas possuíam preocupações entre elas a capacidade de governar e liderar, características esperadas de um cidadão romano de virtude. Para isto usa o verbo dare em um sentido de conceder ou dar ordens e termos significativos como, por exemplo, imperium (autoridade, comando). Em um jogo de imagens, diante de um pretor morto e humilhado caminhava um povo apático que, no momento, vivia ansioso e só podia desejar pão e circo. De uma maneira resumida, pode-se dizer que o conteúdo da sátira é uma crítica ferrenha àqueles que se dirigem aos deuses com pedidos considerados por ele como vãos. Tanto é assim, que ao terminar a sátira, Juvenal oferece ao leitor um conselho: peça aos deuses por virtude e terás uma vida tranqüila (Juvenal. Sátiras, X, v. 364). Neste sentido, é possível supor que a imagem degradada da plebs se encontra em um contexto mais amplo para compor um texto ao mesmo tempo divertido e moral. Assim, acredito que a crítica de Juvenal não está no ócio, valor que era apreciado pela aristocracia da qual faz parte, mas sim nos prazeres mundanos que, em excesso, impedem o cidadão de ter participação ativa em seu universo social. É a partir deste contexto satírico que a máxima chega aos ouvidos modernos e acaba desdobrando sentidos diversos do original. Gostaria de comentar estas relações nas linhas a seguir.

A idéia de “pão e circo” no século XIX No século XIX, época em que a História se define como ciência, o estudo do 195

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mundo clássico, em especial o romano, esteve muito presente, pois era muito comum os eruditos daquele período estabelecerem relações entre o passado antigo e seu presente para constituir a História dos Estados nacionais que, então, nasciam. Neste contexto, muitos dos conceitos empregados para o estudo do passado clássico foram cunhados e inúmeros debates surgiram para marcar as diferenças e semelhanças entre os romanos e os modernos. Dentre todos estes debates, um nos interessa particularmente e diz respeito a maneira como o ócio foi interpretado nesse momento. Esta discussão é bastante relevante, pois a historiografia recente tem indicado como muito das percepções que construímos dos povos da Antigüidade esta relacionada com a questão do trabalho e o ócio. Ellen

Meiksins Wood (1988), por exemplo, ao escrever seu estudo so-

bre a democracia na Grécia Clássica, inicia pela discussão tradicional na qual esta só foi possível graças à escravidão. Essa estratégia adotada pela autora permite com que ela retome os pensadores dos séculos XVIII e XIX, indicando que esta noção é retirada de uma parte de uma reflexão filosófica grega e moldada por interpretações bem posteriores. Wood argumenta que entre vários pensadores dos séculos XVIII e XIX partiram de pressupostos conservadores e antidemocráticos nos quais definiamse os cidadãos como aptos ao trabalho político e não o físico, destinado aos escravos, gerando assim o mito da plebe ociosa que impedia a participação popular da vida pública158. Este mesmo raciocínio pode ser aplicado aos estudiosos do mundo romano, no que diz respeito à participação política dos populares romanos durante ao período imperial. A noção de que os romanos pobres eram apáticos e apreciadores de espetáculos também não é natural e foi construída a partir das percepções de estudiosos do século XIX que atrelavam ócio à falta de vontade de trabalhar. Mommsen, historiador alemão de renomado prestígio na época, pode fornecer pistas para uma maior compreensão deste assunto. Ao escrever O Mundo dos Césares expressa, de maneira clara, sua postura vinculada aos ideais liberais e burgueses. Assim, logo no primeiro capítulo, em um item que se dedica a analisar os ricos e pobres que viveram em finais da República e início do Império, tece duras críticas ao ócio romano. Com relação à aristocracia, o autor destaca o excesso de luxo como ponto central de seus ataques ao tempo livre que os membros da elite detinham, já no que concerne aos pobres, estes são apresentados ao leitor como eternos freqüentadores de tavernas, lupanares, arenas e teatros: O plebeu romano preferia estar horas inteiras olhando com a boca aberta ao teatro a trabalhar; as tavernas e os lupanares eram tão freqüentados que

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Para um comentário mais detalhado, cf. Garraffoni 2002.

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os demagogos exploravam, a seu gosto, os proprietários destes estabelecimentos para seu próprio proveito. (MOMMSEN, 1983, p. 41). Embora o autor não cite a consagrada expressão de Juvenal que mencionei a pouco, a idéia de ócio no sentido de pessoas desinteressadas pelo trabalho e amantes dos espetáculos, está intrínseca neste comentário. Para além disso, na continuidade de seu texto desenvolve um argumento acerca dos combates de gladiadores de uma maneira singular: Mommsen recrimina as lutas a partir de um ponto de vista muito particular na qual a crueldade não estava no sangue derramado, mas sim no fato do gladiador ser obrigado a abrir mão de seu maior valor, a liberdade. Se submeter a torturas e à arena em troca de comida e dinheiro é visto pelo autor como algo inconcebível, assim como o fato de muitos populares assistirem e participarem de diferentes categorias de espetáculos. Já na obra de Friedländer, contemporâneo de Mommsen, a crítica ao ócio é mais enfática. Diferentemente de Mommsen que menciona os espetáculos en passant se consideramos a proporção da obra citada, Friedländer escreve um texto mais longo no qual expõe seus argumentos e interpretações acerca dos espetáculos, pois acredita que eles podem oferecer elementos para que os modernos possam compreender aspectos distintos da situação moral e espiritual que pairava entre os romanos nos idos do Império. Neste período, os espetáculos encontravam-se em um momento de resignificação, uma vez que já tinham perdido seu caráter religioso inicial e se tornavam um instrumento de manobra política para que a aristocracia pudesse ganhar as graças do povo romano. Esta interpretação já aparece nas primeiras páginas em que se dedica aos estudos dos espetáculos: Mas chegou a um momento em que os espetáculos não dependiam mais da boa vontade ou do capricho dos imperadores. Converteram-se, desde muito cedo, em uma necessidade obrigatória da Roma imperial. Entre a população da capital predominavam as massas despossuídas, uma turba mais brutal, mais grosseira e mais corrompida que a das capitais modernas, pois em nenhuma parte e nem em nenhuma época do mundo chegou a concentrar-se a luz de todas as nações como na de Roma de então, uma vez que era, além disso, duplamente perigosa, pois estava formada em grande parte por gente ociosa. (...). As conhecidas palavras – panem et circenses – nas quais Juvenal resume o ideal que ia se reduzindo as aspirações de um povo que em outra época detinha um poder supremo e conferia a tudo, autoridade, períodos, legiões, em uma palavra, todo o poder do estado não era, evidentemente, mas que a repetição de uma frase conhecida e que circulava, portanto, como dito proverbial (FRIEDLÄNDER, 1947: 498) 197

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Este trecho indica uma visão muito comum naquele momento sobre as camadas populares romanas: sua inferioridade perante outros segmentos da população. Os termos empregados como “massa” e “turba” para se referir aos populares, aliado a adjetivos como “grosseira”, “brutal”, “corrompida”, além de tornar estas pessoas um amontoado homogêneo, produz uma imagem negativa das preferências populares. Assim, a maneira como Friedländer interpreta a expressão juvenaliana panem et circenses, como provérbio e não sátira, produz uma poderosa imagem em que o estado, devido à ociosidade da população deveria se encarregar de garantir seu sustento, distribuindo alimentos e organizando mais espetáculos, para evitar tumultos causados por uma grande quantidade de pessoas sem atividades o dia todo159. Se partirmos deste ponto de vista é possível supor que, quando Friedländer emprega o trecho de Juvenal para analisar o aspecto cultural desta sociedade, o faz a partir de sua experiência, ou seja, em um contexto de desenvolvimento capitalista no qual se valoriza ao máximo o trabalho e o otium aparece como uma potencial ameaça à ordem estabelecida. A própria maneira como o pesquisador alemão elabora seu texto é uma expressão desta idéia, pois compara os marginalizados romanos com os modernos e considera os primeiros mais perigosos por constituírem uma maior quantidade de pessoas ociosas. Assim, embora destaque a idéia de ócio, seu significado é não é o mesmo que o antigo, uma vez que indica mais uma preocupação moderna com o desemprego e as revoltas que acometiam as cidades deste momento que o conceito romano em si. Sob este ponto de vista é possível afirmar que Friedländer, assim como muitos de seus companheiros do século XIX, analisa a expressão de Juvenal a partir de sua ótica burguesa e sua vivência cotidiana, generalizando, portanto, uma imagem, que na origem era satírica, convertendo-a em uma categoria analítica que, aos poucos, foi se cristalizando na historiografia como um conceito. Ao longo da historiografia clássica, a idéia de ócio, controle de população, parasitismo do Estado e alienação das massas é atrelada uma a outra de diferentes maneiras, dependendo de quem a interpreta. Este movimento constituiu um mosaico de interpretações na qual prevalecia a idéia de que os espetáculos, em especial os combates de gladiadores, eram fundamentais para manter a paz e a ordem social, silenciando as camadas populares em detrimento dos interesses políticos da elite. Esta poderosa imagem cruzou o século XX, estigmatizando as camadas populares antigas e, a partir de uma associação direta com o passado, as classes trabalhadoras modernas foram marcadas pela noção de alienação e acomodação diante das adversidades. É somente nos anos de 1960, em especial a partir dos questionamentos 159

Weeber em um livro recente sobre os espetáculos romanos afirma que Friedländer teve um papel importante na perpetuação deste paradigma depreciativo das camadas populares romanas (Weeber, 1994: 166).

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da historiografia marxista inglesa e da idéia da “história vista debaixo”, que as camadas populares antigas e modernas passam a ser pensadas com mais pluralidade e as atividades de massa, sejam os espetáculos antigos como os esportes modernos, começam a serem entendidos como fenômenos sociais e culturais, permitindo a seus espectadores a possibilidade de atuarem como sujeitos de sua História. Vejamos alguns aspectos relevantes destes debates para o entendimento de um fenômeno tão particular como os antigos combates de gladiadores.

Desdobramentos do conceito no século XX Os conceitos elaborados no século XIX seguiram vivos por meados do XX, se fortalecendo nos anos 1940/50. Entre as várias obras de historiadores do período, alguns muito conhecidos pelo público brasileiro, exemplos desta tendência não faltam. J. Carcopino, ao escrever Roma no apogeu do Império (CARCOPINO, 1990), para uma coleção francesa sobre História da Vida Cotidiana, expressa esta visão de forma contundente. A maneira como o historiador elabora seu discurso acaba dividindo o Império em duas categorias distintas: a elite detentora de sabedoria e riqueza e a plebe pobre e desocupada que se aglomerava nos espetáculos. Neste sentido, Carcopino desenvolve seus argumentos a partir de uma documentação que enfatiza o modo de vida da elite e constrói o cotidiano romano com base em uma clara oposição binária, pois destaca a beleza exuberante da Vrbs, seus amplos edifícios públicos e as enormes domus em contraposição às ruas tortas e pouco iluminadas nas quais se localizavam as insulae, isto é, abrigos verticais onde vivia a população mais humilde. Embora mencione as camadas populares com bastante freqüência, o quadro que desenha é desfavorável; fala sempre em sujeira, incêndios, roubos, falta de segurança e de higiene entre as habitações160. Esta situação, segundo Carcopino, era extremamente incômoda para a elite romana, pois favorecia a organização de revoltas161. Neste sentido, os espetáculos em geral e as lutas de gladiadores em específico ao lado da distribuição de alimentos teriam um papel bem definido, o de manter a população romana ocupada e satisfeita evitando, assim, a possibilidade de qualquer tipo de conflito. A partir desta afirmação, percebe-se que o cotidiano traçado pelo historiador também reforça a representação dos romanos como pessoas sem atividades, marginalizadas e apreciadora de divertimentos exóticos como os espetáculos que ocorriam nas arenas. A inovação de Carcopino, que o diferencia dos colegas precedentes, está no argumento que segue o desenvolvimento de seu texto, isto é, este quadro caótico

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 abe destacar aqui que Carcopino se baseia, principalmente, em Juvenal para descrever o meio de vida das camadas populares. C “ Um povo que boceja está maduro para a revolta. Os césares romanos não deixaram a plebe bocejar, nem de fome nem de tédio. Os espetáculos foram a grande diversão para a ociosidade dos súditos e, por conseguinte, o instrumento seguro de seu absolutismo” (CARCOPINO, 1990: 248).

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e sanguinolento só viria a melhorar no final do Império com a chegada do cristianismo, religião que salvaria o povo desta vida profana, nefasta e violenta. Outro autor que segue esta linha interpretativa é Pierre Grimal. Na obra A vida em Roma na Antigüidade (GRIMAL, 1981), desenvolve um argumento muito semelhante ao de Carcopino, ou seja, os pobres, gladiadores, bandidos, salteadores, escravos, enfim, os marginalizados, estão todos aglomerados sobre o rótulo de povo e aparecem relacionados: os bandidos que cometiam crimes brutais eram condenados à arena e lutavam como gladiadores para divertir a população que, em geral, vivia desocupada e adorava tais espetáculos sangrentos. Esta percepção indica os frutos desta idéia de uma população romana como massa amorfa, homogênea e sem vontade própria, comandada indistintamente pela elite detentora de recursos para diverti-la e alimentá-la. Tal situação permaneceu presente nas interpretações modernas sobre o mundo antigo até Paul Veyne, nos anos de 1970, propor uma das primeiras críticas a ela. Em seu livro Le Pain et le cirque (VEYNE, 1976) apresenta uma leitura do ponto de vista da tradição francesa de História total e, conseqüentemente, se estrutura a partir de um método interdisciplinar encontrandose nos limites entre a Sociologia e a História: sua grande fonte de inspiração é Max Weber e, por isso, Veyne faz uso constante de suas categorias de analise como, por exemplo, tipo ideal. Em seu modelo interpretativo, cada aspecto dos combates de gladiadores possuía um propósito particular. Os nobres manifestavam sua virtude ética pagando pelo espetáculo (seria o evergeta – termo cunhado por ele para explicar a atitude política da elite romana em pagar por espetáculos públicos) e a plebs iria assistir para encarar o imperador e conseguir vantagens políticas. Ao criar este embate povo/imperador, Veyne desloca a noção de espetáculo, indicando uma outra possibilidade: mais do que uma manobra para entreter e silenciar, as arenas e teatros seriam os palcos das manifestações populares. Embora a sua perspectiva seja monolítica, tratando o povo romano com algo homogêneo e com os mesmos valores, Veyne abriu a possibilidade de se pensar outros tipos de relação entre as camadas populares e os espetáculos de gladiadores. Por isso, muitos estudiosos recorreram a esta interpretação, chamada por Weeber de “reverso da medalha”. Assim, em muitos estudos dos anos de 1980/90, se aceita a idéia da elite proporcionar jogos para o povo romano, no entanto, a ênfase não está mais na ociosidade dos populares, como era comum no século XIX, mas sim na possibilidade de manifestação política, isto é, na transformação da arena em um local de reivindicações às necessidades populares (WEEBER, 1994; WIEDEMANN, 1995; GUNDERSON, 1996; ALMEIDA, 2000; CORASSIN, 2000). Embora este trabalho de Veyne tenha permitido uma guinada nos estudos sobre 200

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os espetáculos romanos, acredito que algumas ressalvas precisam ser feitas. Muitas vezes há, em seu livro, uma excessiva generalização expressa na constante oposição entre elite e povo que acaba aprisionando a diversidade étnica, de relações sociais e de gênero sobre a qual a sociedade romana era constituída. Outro aspecto ofuscado por esta interpretação é o dinamismo que os espetáculos possuem nos distintos séculos: a cada momento a sociedade se relacionava de maneira diferente com os eventos que presenciavam e esta particularidade praticamente desaparece do texto de Veyne. Para além destas duas ressalvas, uma terceira faz-se necessária. Nesta visão em que se privilegia a função política dos espetáculos os gladiadores raramente são citados, aspecto curioso se pensarmos que eram os protagonistas dos combates. Sob este ponto de vista, da mesma maneira que os espectadores são transformados em um coro único de vozes, os gladiadores de personagens centrais, são reduzidos a coadjuvantes, quando não são esquecidos por completo. Entender o cotidiano das pessoas que freqüentavam tais espetáculos, suas percepções e relações com os eventos e com seus protagonistas é, portanto, um desafio e instiga a busca de interpretações alternativas, pois modelos como os comentados aqui não permitem muito espaço para pensar sobre esta questão. Para que isto seja possível é preciso destacar, em primeiro lugar, a necessidade de extrapolar a noção política dos espetáculos e entendê-los como parte da cultura romana. Não pretendo aqui negar que possuíam uma faceta política, mas lembrar aos leitores e leitoras que os combates também podem ser percebidos no campo religioso e simbólico, expressando artes de viver e relações particulares com a vida e morte. Percorrer estes caminhos permite um olhar crítico sobre a noção de “pão e circo” como simples manipulação política e abre a possibilidade de se contextualizar os combates no seio de uma sociedade permeada por valores militares que, como nos lembra Clavel-Lèvêque (1984), constituem rituais complexos e constroem visões de mundo particulares.

Considerações Finais A idéia de pão e circo em seus diversos contextos interpretativos proporcionou a valorização de um único aspecto dos combates de gladiadores, isto é, o político, em detrimento de outras possibilidades. Falamos de ociosidade, parasitismo do Estado, politização das arenas, mas pouco se comentou sobre o cotidiano destes homens e mulheres que combateram nas arenas romanas, o que nos leva a pensar nos limites desta linha de interpretação que aprisiona os sujeitos impedindo que sejam agentes de sua História. Como já afirmava Weeber há algumas décadas, após os diversos estudos a respeito do mundo romano é praticamente impossível imaginar todo um Império, nas proporções que adquiriu o romano, formado por uma gigantesca massa apática, mendicante e ociosa. Muitos estudos, de diferentes correntes de pensamento, têm expres201

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sado, nos últimos vinte anos, as nuanças e os meandros do cotidiano popular romano, ressaltando sua riqueza cultural e étnica, buscando caminhos de análises alternativos que tem feito com que repensemos muitos dos conceitos empregados para a interpretação das relações entre estes homens e mulheres que compunham esta complexa malha social romana. Neste sentido, a proposta de leitura aqui expressa indica, por um lado, minha preocupação em inserir a interpretação dos combates de gladiadores em um contexto teórico-metodológico que visa a busca de meios alternativos para ouvir as vozes dispersas dos gladiadores e seus espectadores e de caminhos menos totalizantes para o estudo dos gostos das camadas populares. Por outro lado, tal proposta aponta também para uma reflexão dos termos que muitas vezes empregamos em nosso cotidiano: conhecer as origens e as implicações políticas de uma expressão como “pão e circo” significa, também, manter uma postura crítica diante dos usos do passado em nosso presente. Seja na interpretação do combate em seu momento histórico, como nos usos do termo estudado no cotidiano brasileiro, acredito ser imprescindível uma postura crítica diante das generalizações excessivas que muitas vezes tendem a apagar a diversidade e hierarquizar preferências culturais. Neste sentido, encerro esta reflexão acreditando que ouvir e perceber as diferentes artes de viver é uma alternativa instigante tanto para evitar a repetição de conceitos acriticamente, como para buscar por meios mais plurais para entender as sociedades em suas temporalidades.

Agradecimentos: Gostaria de agradecer a André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e a Maria Aparecida de Oliveira Silva pelo convite em participar desta iniciativa. Cabe mencionar, também, que o diálogo com Lourdes Feitosa e Pedro Paulo Funari também foi muito importante para a redação deste trabalho. Ressalto que a responsabilidade das idéias aqui expressas recai apenas sobre a autora.

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Academia Imperial das Belas Artes Rossano Antenuzzi de Almeida162 (IPHAN/ MNBA)

Introdução A produção escultórica e pictórica, enquanto referência cultural, já se fazia presente bem antes da chegada do colonizador português ao Brasil, por volta de 1500. Figuras antropomorfas e zoomorfas, objetos (urnas funerárias, vasos e machados – em argila e/ou pedra) e pinturas rupestres – a partir de pigmentos minerais (óxido de ferro) ou vegetais (urucum, genipapo, carvão) executados pelos índios, para fins utilitários, cerimoniais e transcedentais de magia. Com o início da colonização, século XVI, deu-se a chegada dos primeiros habitantes do continente europeu e, conseqüentemente, foram trazidos novos hábitos e costumes. Várias ordens religiosas – Jesuítas, Beneditinos e Franciscanos – para aqui convergiram não só para manter a unidade religiosa entre os colonizadores, mas também para transmitir aos nossos primeiros habitantes o santo ofício. Juntamente com as primeiras ordens, chegaram os primeiros mestres e artistas que atuaram diretamente na construção das primeiras talhas dos altares, púlpitos, baixos-relevos das fachadas, imagens e pinturas sacras. De norte a sul do País - Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, São Paulo e Rio Grande do Sul - ergueram-se as primeiras igrejas, oficinas e seminários, variando em estilo e material empregados (argila,

pedra- sabão e madeira); o que

caracterizou cada uma delas. Essa produção, compreendida entre os séculos XVI e início do XIX, de caráter eminentemente religioso, esteve a serviço da propagação da fé católica, compondo principalmente a arquitetura religiosa. Até então, não havia um ensino sistematizado de artes. Era um aprendizado orientado pelo conhecimento prático de influência barroco-rococó. O fazer desta produção era considerado muito mais um ofício, não havendo conseqüentemente uma autonomia de mercado. As primeiras tentativas de se criar um ensino artístico mais especializado, ainda nesse período, ficou a cargo do professor e artista Manuel Dias de Oliveira, com formação na Itália, em 1808, a partir de uma carta-Régia.

Academia Imperial das Belas Artes No início do século XIX, ocorreu uma significativa mudança no panorama

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Especialista em Museus de Arte/ técnico IPHAN/ MNBA.

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Rossano Antenuzzi de Almeida

sócio-político-econômico brasileiro com a transferência da Família Real Portuguesa em 1808. D. João VI, não aderindo a política externa francesa do bloqueio continental contra a economia inglesa, decretada por Napoleão Bonaparte em 1806, transferiu-se com sua corte constituída de aproximadamente 15 mil pessoas para o Brasil. Sua instalação deu-se na cidade do Rio de Janeiro, sendo o país então elevado a categoria de Reino Unido ao de Portugal e Algarves. Esta transferência possibilitou uma estruturação administrativa até então inexistente. Teve início a urbanização da cidade, assim como uma série de medidas até então modernizantes para a época citadas pelo arquiteto Morales de Los Rios in Nicolas de E. Taunay (1983:9), dentre as quais destacamos: a abertura dos portos ao comércio estrangeiro; a liberdade de comércio e de exploração de indústria; a concessão de prêmios e medalhas a quantos aclimassem árvores de especiarias ou cultivassem vegetais indígenas ou estrangeiros, úteis ao comércio e a indústria; a fundação de livraria pública e da Imprensa Régia e o benévolo acolhimento de ilustres cientistas estrangeiros e a conseqüente concessão de efetuarem expedição pelo interior do país. Era de interesse do príncipe regente que estas medidas fossem complementadas com a criação de um estabelecimento de ensino teórico-prático voltado para o aprendizado artístico e técnico-profissional. Nesse sentido, foi instituída por decreto em 1816 a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, que posteriormente passou à denominação de Academia Imperial das Belas Artes – desde então será grifado AIBA. A sistematização pedagógica do ensino artístico no Brasil aos moldes europeu, fazia parte de um pacote de medidas que visavam a modernização do país, ainda que dentro de uma ótica colonialista, providenciadas pelo príncipe regente D. João VI quando aqui refugiou-se com a sua corte no início do século XIX. Segundo o decreto: Atendendo ao bem comum que provém aos meus fiéis vassalos de se estabelecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, em que se promova e difunda a instrução e conhecimentos indispensáveis aos homens destinados não só aos empregos públicos da administração do Estado, mas também ao progresso da agricultura, mineralogia, indústria e comércio de que resulta a subsistência, comodidade e civilização dos povos, maiormente neste continente, cuja extensão, não tendo ainda o devido e correspondente números de braços indispensáveis ao amanho e aproveitamento do terreno, precisa dos grandes socorros da estética para aproveitar os produtos, cujo valor e preciosidade podem vir a formar do Brasil o mais rico e opulento dos reinos conhecido; fazendo-se portanto necessário aos habitantes o estudo das Belas Artes com aplicação referente aos ofícios mecânicos, cuja prática, perfeição e utilidades dependem dos conhecimentos teóricos daquelas artes 206

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e difusivas luzes das ciências naturais, físicas e exatas; e querendo para tão úteis fins aproveitar desde já a capacidade, habilidade e ciência de alguns dos estrangeiros beneméritos, que tem buscado a minha real e graciosa proteção para serem empregados no ensino e instrução pública daquelas artes (TAYNAY,1983,19). Conforme o decreto acima, a proposta inicial não era a implantação de uma escola voltada única e exclusivamente para o ensino das Belas Artes, mas também a de dar um suporte técnico aos habitantes da nova Colônia que despontava na América, o que consequentemente viria de encontro às expectativas de se estabelecer uma política mercantilista. Tal situação perdurou até 1820, quando em 12 de outubro instituiu-se novo decreto, mudando o nome para Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil como veremos no texto transcrito de Morales de Los Rios in Taunay: Tendo consideração a que as artes do desenho, pintura, escultura e arquitetura civil, são indispensáveis à civilização dos povos, e instrução pública dos meus vassalos, além do aumento e perfeição que podem dar aos objetos de indústria, física e história natural: hei por bem estabelecer em benefício comum nesta cidade e Corte do Rio de Janeiro, uma Academia que se denominará – REAL ACADEMIA DE DESENHO, PINTURA, ESCULTURA e ARQUITETURA CIVIL (TAUNAY, 1983, 166). Apesar destes dois decretos, o prédio ainda não havia sido concluído, o que ocorreu em 19 de outubro de 1826 quando pelo aviso da inauguração assinado em 18 de setembro de 1826 passou a se chamar Academia Imperial das Belas Artes. Esta denominação perdurará até o final do século XIX que, com o advento da República, passou a se chamar Escola Nacional de Belas Artes. Pelo que podemos constatar, o que vingou de fato foi a criação de uma instituição voltada para o ensino artístico em contra posição ao decreto de 1816 que também visava a instrução técnica. Para atuar na nova Instituição, foi incumbido o ministro das Relações Exteriores e secretário de D.João VI, o Sr. Antônio de Araújo Azevedo (Conde da Barca), de requisitar ao então embaixador extraordinário de Portugal junto a Corte de Luís XVIII, D. Pedro José Joaquim Vito de Menezes Coutinho (Marquês de Marialva), a formação de um grupo de artistas e artífices franceses para a implantação do estabelecimento acima citado. Tendo consultado Alexandre de Humbolt, este o apresentou ao crítico de arte Joaquim Le Breton ; tiveram início as primeiras negociações que, com a saída do Marquês de Marialva de Paris, continuaram a ser intermediadas pelo diplomata Francisco José Maria de Brito. Era o primeiro passo para por fim a maneira empírica pela qual vinha sendo conduzido o nosso ensino artístico. 207

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A organização e vinda deste grupo à Corte, desencadeou uma série de retaliações tanto do lado francês quanto do luso-brasileiro. A representação diplomática francesa, na figura do conde-geral Maler, sentia-se desconfortável com a presença destes auto - exilados - em sua maioria - que tinham servido ao regime bonapartista definitivamente aniquilado em 1815 com a restauração da

monarquia pelos Bourbons. Pelo

lado luso-brasileiro, a acolhida não foi das mais calorosas, pois havia um ódio natural por parte dos portugueses uma vez que Portugal havia sido invadido pelas tropas de Napoleão Bonaparte quando da sua expansão imperialista pela Europa no início século XIX. Outros eram de opinião que se deveria trabalhar inicialmente pela estabilidade econômica e pelo ensino técnico-profissional. Apesar dessa série de entraves, o grupo foi organizado e seus componentes desembarcaram na cidade do Rio de Janeiro em 26 de março de 1816 sob a chefia de Joachim Lebreton, ex-secretário do Instituto de França e era composto por: Pedro Dillon – secretário; Nicolas Antoine Taunay – pintor de paisagem; Jean Baptiste De Bret - pintor de história; Auguste – Henri-Víctor Grandjean de Montigny – arquiteto; Charles – Simon Pradier – gravador; Segismond Neukomm - compositor, pianista e organista; François Ovide - engenheiro mecânico; François Bonrepos - assistente de escultor; Charles – Henri Lavasseur e Louis Symphorien Meunié – especialista em estereotomia; Nicolas Magliorí Enout – mestre serralheiro; Jean-Baptiste Level – mestre ferreiro; Louis-Joseph Roy e Hippolythe Roy (pai e filho) –carpinteiros; Fabre e Pilite - surradores de pele. Estes artistas franceses, que para aquí convergiram após a queda de Napoleão Bonaparte, inauguraram um novo capítulo no nosso panorama artístico, até então pautado no barroco-rococó colonial de forte apelo emocional uma vez que, vieram imbuídos dos princípios cívicos norteadores da Revolução Francesa e dos seus ideais artísticos classicizantes ou neoclássico formulados pelo esteta alemão Johann Joachim Winckelmann. Este ideais artísticos de forma simplificada e emoção comedida, em consonância com o racionalismo Iluminista, contrapunham-se a aristocracia palaciana do Ancien Régime, traduzido nas artes plásticas pelo estilo artístico denominado rococó. A respeito deste ideário clássico nas artes, Baez pontua: o universo plástico da arte neoclássica vai representar a reforma moral contida no ideal da Revolução de 1789. A verdadeira moral se encontrava na Antigüidade grega na medida em que representava um modo idealizado, construído a partir de seus próprios padrões, sem ajuda divina, suficientemente e severo para se tornar aceito num mundo ávido por reformas. Um mundo controlado pelo homem e guiado pela razão, cuja ética ou padrões morais deveriam ser modificados pelo homem a partir de um trabalho sério e disciplinado (BAEZ, 1985,15). Um outro aspecto a ser destacado, foi a convivência do grupo acima com Ja208

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cques-Louis David, um dos artistas mais atuantes na construção do imaginário revolucionário. Recorremos ao Prof. Carvalho que nos elucida: com relação a construção do imaginário“ [...] é parte integrante da legitimação de qualquer regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça mas, de modo especial [...] as aspirações, os medos e as esperanças de um povo[...].(CARVALHO, 1990, 10). Para David, “classicismo não era apenas um estilo, uma linguagem artística. Era também uma visão do mundo clássico como um conjunto de valores sociais e políticos. Era a simplicidade, a nobreza, o espírito cívico, das antigas repúblicas; era a austeridade espartana, a dedicação até o sacrifício dos heróis romanos. O artista devia usar sua arte para difundir tais valores. (CARVALHO, 1990,11)”. Novos paradigmas temáticos foram introduzidos na produção cultural, em especial na pintura, na escultura e na arquitetura oitocentista: na pintura – temas mitológicos, temas alegóricos, temas indianistas, retratos, cenas de gênero, paisagens e fatos históricos. Na escultura, podemos observar esse fato na significativa produção de bustos, estátuas de alegorias, mitos gregos e figuras indígenas, relevos com cenas mitológicas e religiosas, figuras de personagens da história do Brasil, placas comemorativas, maquetes de monumentos comemorativos e monumentos tumulares. Na arquitetura, seguindo o modelo de MALTA (1996, 215), destacamos dentre outros elementos formais: simetria e proporção em plantas-baixas e fachadas com as linhas básicas de composição bem marcadas e equilíbrio entre os cheios, vazios e ornamentos; pés-direitos mais altos para favorecer uma monumentalidade; ordem de pilastras encimadas por entablamentos e platibanda coroada com frontão triangular; frontão triangular com tímpano decorado com baixos-relevos ou apenas perfurados por óculos; baixos-relevos em portões, tímpanos e frisos com motivos ornamentais mitológicos, alegóricos da Antiguidade clássica como também dragões, sereias e animais marinhos. Historicamente, a implantação das várias Academias pela Europa ocorreu no século XVIII, numa relação com o ideário Iluminista – movimento intelectual surgido na França, no século XVIII que se caracterizava por procurar uma explicação racional para todas as coisas – eram avessas aos exageros do barroco-rococó, procurando simplificar ao máximo suas formas. No Brasil, a Academia Imperial das Belas Artes foi criada por iniciativa do Estado, oriunda de um modelo francês extremamente rígido, já em desuso na Europa. Os artistas que para aquí vieram, tinham como objetivo manter esse mesmo status favorecido pelo modelo acima citado. Suas propostas seriam alcançadas graças a forma rígida de como controlavam a Academia, numa sucessão de reformas dos seus estatutos. Toda essa ortodoxia seria respaldada em uma administração política conservadora e numa elite local intelectualmente colonizada e seduzida pela cultura européia. 209

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Do quadro acima exposto, o resultado seria o de uma produção cultural mascarando a realidade local – agrária / escravocrata, isenta de liberdade de expressão. Também eram incentivados pelas diversas direções da Academia a se manterem à parte de qualquer processo e/ou movimento que viesse a desestruturar este sistema, através da criação de diversos mecanismos como Exposições Gerais dos seus trabalhos, premiações e do tão cobiçado PVE – Prêmio de Viagem ao Exterior – que simbolizou a glória maior de reconhecimento e prestígio social. Criado em 23 de outubro de 1845, na gestão do então diretor Sr. Félix Emílio Taunay entre 12 de dezembro de 1834 a 8 de abril de 1851, o PVE visava dentre outros, o aperfeiçoamento técnico – artístico dos alunos da Academia no exterior. Os premiados saíam do Brasil com uma bolsa num período inicial de 2 anos que posteriormente, pela Portaria de 31 de outubro de 1855 do Ministro do Império, Sr. Couto Ferraz - na gestão do então diretor, Sr. Manuel de Araújo Porto-Alegre no período de 22 de abril de 1854 a 3 de outubro de 1857, foi regulamentado para 5 anos. Os bolsistas, que se distribuíam entre os ateliês e escolas de Paris, Roma e Florença, recebiam instruções severas por parte da direção da instituição do que deveriam e podiam executar, conforme veremos na transcrição de parte da portaria, citada na tese de doutorado do prof. José Carlos Durand in Morales de Los Rios: Instruções: O aluno da Academia que obtiver o prêmio de primeira ordem irá estudar à custa do Estado, e terá uma pensão anual de três mil francos, pagos em trimestres, adiantados; a pensão será contada desde o dia em que for premiado pelo corpo acadêmico. O pensionista quinze dias depois de chegar a Paris escolherá um mestre e participará ao ministro do Brasil para que este o apresente e recomende. O mestre deve ser membro do Instituto e professor da Escola de Belas Artes, a fim de o

encaminhar nos concur-

sos e dar-lhes entrada nos estabelecimentos públicos e nos particulares de nomeada. O pensionista não poderá receber a sua pensão sem apresentar à Legação um atestado de freqüência passado pelo mestre. Deverá além do estudo diário e particular que fizer na aula do mestre, concorrer aos lugares de aula de modelo vivo na Escola de Belas-Artes se for pintor, escultor ou gravador. (...) O pensionista que por duas vezes consecutivas for recusado pela Escola de Belas-Artes de Paris, e ficar fora do número de alunos admitidos e chamados nos anfiteatros, e o que não cumprir fielmente o disposto acima, será imediatamente mandado para o Brasil, perdendo a pensão. O que no fim de três anos não obtiver uma medalha ou menção honrosa nos concursos de emulação da Escola de Paris ou não justificar esta falta, será reenviado e perderá toda pensão. De seis em seis meses, entregará à Legação os seus trabalhos bem acondicionados e prontos para serem remetidos 210

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à Academia. O que for premiado em alguma das exposições gerais de belasartes que se fazem em Paris, Bruxelas, Londres, Berlim ou Munique, receberá mil francos mais de gratificação anual até completar o seu tempo. O que tiver satisfatoriamente cumprido com os seus deveres em França durante três anos, poderá viajar (...) Os pensionistas que durante três anos, estudarem em França, serão obrigados a mandar semestralmente (...) escultores duas academias nuas, em gesso, e uma cópia de baixo-relevo indicada pela Academia. Em Itália, no primeiro ano, um busto de mármore, e nos dois outros, uma estátua da mesma matéria; a negação lhes fornecerá o mármore devido (DURAND,1989,11). Se por um lado este rígido controle dos bolsistas no exterior interferia na percepção e reflexão acerca dos vários movimentos artísticos que estavam eclodindo na Europa, mais especificamente em Paris, na segunda metade do século XIX, tais como: o romantismo, o realismo e o impressionismo. Por outro, permitia aos membros da Academia manterem vivo entre nós o repertório Neoclássico que já havia dado sinais de esclerose no continente europeu.

Considerações Finais A AIBA, Instituição de caráter público e ideológico, foi responsável pela implantação do gosto acadêmico entre nós. Gosto esse, que permanece latente no imaginário coletivo da sociedade brasileira do que venha ser a “boa arte”. A arte com “A” maiúsculo, digna de ser admirada e apreciada nos grandes museus. Parte do legado de toda a produção cultural oitocentista da AIBA, em especial pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e medalhas integram o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, localizado na cidade do Rio de Janeiro. A área central dessa cidade, também guarda, na sua arquitetura pública urbana, reflexos desses elementos arquitetônicos estruturais clássicos (frontão triangular, colunas - dóricas, jônicas e coríntias e baixos-relevos) trazidos em 1816. Dentre os inúmeros exemplos, destacamos: a antiga praça do comércio, atual centro cultural Casa França-Brasil, cujo projeto data de 1819 do arquiteto integrante da Missão Francesa, Grandjean de Montigny; a fachada do atual Instituto de Filosofia e Ciências Socais da UFRJ, localizado no Largo de São Francisco, datado de 1834-35 ; Monumento cívico à D. Pedro I, localizado na Praça Tiradentes, datado de 1862; a interessante fachada do prédio do Automóvel Clube do Brasil, datado de 1855, localizado na Rua do Passeio cujo em seu frontão encontra-se o baixo-relevo de um índio alado conduzindo as musas; a fachada com frontão triangular, escadarias, colunas dóricas e alto pé-direito do Arquivo Nacional, antiga casa da moeda do Brasil, datado de 1858 e localizado nas cercanias da Central do Brasil, em frente ao campo 211

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de Santana; a fachada da Santa Casa de Misericórdia, datada de 1840 e localizada na rua Santa Luzia; Mesmo depois do fim da AIBA, a reforma urbana do prefeito Pereira Passos no início do século XX, vai utilizar o estilo eclético e vamos ter a continuidade da presença do uso desses elementos arquitetônicos clássicos como, por exemplo, o conjunto em torno da Cinelândia: a fachada do prédio da antiga Escola Nacional de Belas Artes, atual Museu Nacional de Belas Artes, datado de 1908 com cariátides, colunas jônicas, e frontão triangular; o Teatro Municipal, datado de 1909, com suas colunas em estilo coríntio e escadarias, a Biblioteca Nacional, datada de 1910, com frontão triangular, baixo-relevo , colunas em estilo coríntio e escadarias. Um pouco mais distante do centro, destacamos: O Solar Grandjean de Montigny, na PUC, datado de 1823, o pórtico da Academia Imperial das Belas Artes, datado de 1826, no Jardim Botânico e a fachada do atual Fórum de Cultura da UFRJ, antigo Hospício de Alienados D.Pedro II, datado de 1852. Finalizando, gostaríamos de destacar um exemplo clássico da arquitetura funcional da Antigüidade, o Aqueduto da Carioca, datado de 1750, portanto, anterior a chegada dos franceses, localizado na Lapa, atualmente conhecido como Arcos da Lapa e um dos símbolos da cidade do Rio de Janeiro.

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