Tradução - A dogmática dos direitos fundamentais e as transformações do sistema constitucional (António-Enrique Pérez Luño)

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A dogmática dos direitos fundamentais e as transformações do sistema constitucional#

The fundamental rights dogmatics and the constitutional system transformations

Antonio-Enrique Pérez Luño Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilha.

Resumo: Este ensaio se ocupa dos aspectos que têm contribuído para a crise da teoria dos direitos fundamentais influenciada pelo positivismo jurídico. Os ordenamentos jurídicos e, particularmente, suas fontes normativas, têm sido diretamente afetados pelo fenômeno da prevalência do monopólio estatal de criação das normas jurídicas. Uma grande mudança tem sido verificada, no entanto, dentro dos sistemas legais, podendo ser referida a partir de três tipos de deslocamento: da unidade ao pluralismo; da plenitude à abertura jurisdicional; e, da coerência ao argumento. Neste trabalho esses novos fenômenos e suas repercussões são analisados em relação às liberdades.

Palavras-chave: Crise dos direitos fundamentais – Positivismo jurídico – Liberdades.

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Publicado originalmente em espanhol sob o título Dogmática de los derechos fundamentales y transformaciones del sistema constitucional, no periódico Teoría y Realidad Constitucional, n. 20, 2007. Traduzido e publicado em português com a gentil permissão do autor.

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Abstract: This essay studies the aspects that have contributed to the crisis of the theory of the fundamental rights inspired by the juridical positivism. The legal systems and, in particular, their normative sources, have been directly affected by the phenomenon of prevail of the state’s monopoly of creation of juridical norms. A deep change has been verified inside the legal systems that has been translated into a triple displacement: from the unit to the pluralism; from the fullness to the jurisdictional opening; and from the coherence to the argument. In this work these new phenomena and their repercussion are analyzed for the freedoms.

Keywords: Fundamental rights crisis – Juridical positivism – Freedoms.

Sumário: 1. Introdução: a teoria pura do direito e seu estado atual. – 2. O sistema constitucional de direitos fundamentais a partir da teoria do direito. – 2.1. Da unidade ao pluralismo. – 2.2. Da plenitude à abertura jurisdicional. – 2.3. Da coerência ao argumento. – 3. Conclusão: as transformações do sistema de direitos fundamentais e a crise do positivismo jurídico.

1 INTRODUÇÃO: A TEORIA PURA DO DIREITO E SEU ESTADO ATUAL

Nos últimos anos tem sido grande a preocupação dos estudiosos e investigadores do pensamento de Hans Kelsen pertencentes a vários lugares e culturas jurídicas para que se mantenha indene o legado doutrinário kelseniano ante o “assédio” científico de certas concepções contemporâneas, especialmente as que têm influência no desenvolvimento da teoria e da filosofia jurídica (Hart, Rawls, Habermas, Dworkin, Alexy, Häberle, dentre outros).

A meu ver, todo esse alarme e essa inquietude obsessiva para defender a teoria pura em relação a doutrinas e posturas teóricas e/ou metodológicas sobre o direito decorre de um erro de abordagem. A teoria pura do direito elaborada por Hans Kelsen é um modelo de coerência interna e, portanto, dificilmente contrariada desde as premissas sobre as quais se funda e desenvolve. Por isso, as doutrinas filosóficas e jurídicas que têm questionado e ainda questionam a teoria de Kelsen são muito pouco eficazes e convincentes quando tentam 28

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desdizê-la “desde dentro”, isto é, a partir dos próprios postulados que informam suas teses e das inferências de que eles advêm.

Os herdeiros teóricos de Kelsen se encontram absortos em construir um baluarte especulativo capaz de resistir ao confronto intelectual com as concepções jurídicas atuais, que julgam serem opostas ou, neste caso específico, revisionistas do legado científico do mestre vienense. Pessoalmente, não posso concordar com o que esta estratégia representa. A meu entende, o risco de revisão que supere a teoria pura do direito não está nas críticas eventuais que em relação a ela são diretamente contrapostas, senão quanto às novas coordenadas adotadas pelos sistemas jurídicos atuais e das que as novas concepções jurídicas têm tratado com maior precisão e adequação que a teoria pura do direito.

A teoria pura do direito se apresentava e se justificava como uma teoria explicativa do direito positivo. Como o ordenamento jurídico dos Estados de direito contemporâneos têm passado por uma importante transformação em seu sistema de fontes 1, assim como em seus postulados básicos, atualmente são necessárias novas teorias e paradigmas metodológicos capazes de cuidar melhor desta nova situação.

As reflexões a seguir têm o propósito de ecoar essa metamorfose que vêm ocorrendo aos ordenamentos jurídicos, especialmente em relação às suas repercussões no sistema dos direitos fundamentais.

2 O SISTEMA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DA TEORIA DO DIREITO

Na estrutura normativa das Constituições estão plasmados os estímulos da cultura jurídica de seu tempo. O sistema de direitos fundamentais, que define a parte dogmática das Constituições dos Estados de direito, indica esse tipo de influência. No desenho constitucional dessa matéria refletem-se algumas das concepções doutrinárias do sistema jurídico que mais influenciaram no momento de sua gestação. Disso se infere que, no constitucionalismo das 1

PÉREZ LUÑO, A.E. El desbordamiento de las fuentes del derecho. Sevilla: Real Academia Sevillana de Legislación y Jurisprudencia, 1993.

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últimas décadas, tenham ecoado algumas das concepções jurídicas mais relevantes e influentes desse período.

A célebre Teoría del ordenamiento jurídico elaborada por Santi Romano (datada de 1918, embora aqui se faça referência à edição de 1963), a dimensão nomo-dinâmica do ordenamento jurídico apresentada por Hans Kelsen na segunda edição de sua Teoría pura del derecho (1960), bem como a certeira síntese de ambas concepções elaborada por Norberto Bobbio (1960), constituem fontes indispensáveis para a análise e para a compreensão da ideia do sistema de direitos fundamentais desenhado pelo constitucionalismo vigente num passo muito próximo 2. Em meu Los derechos fundamentales 3 ocupei-me de alguns aspectos básicos da formação do conceito de sistema na ciência jurídica contemporânea, das relações entre os conceitos de sistema e de ordenamento jurídico, da distinção entre os aspectos extrínsecos e intrínsecos dos sistemas constitucionais, assim como do debate doutrinário entre o monismo e o pluralismo como expressões definidoras dos ordenamentos jurídicos. Seria inútil reiterar o que lá expus. Entretanto, parece-me oportuno aludir às expressões constitutivas dos sistemas de direitos fundamentais, e às metamorfoses ocorridas nessa categoria constitucional nos últimos anos.

Aludir a um sistema constitucional dos direitos fundamentais sugere de imediato a questão da interdependência ou mútua implicação entre tais direitos; já que a unidade de sentido não aparece como uma qualidade das formulações normativas individuais de cada um dos direitos fundamentais, mas sim como uma característica de todos eles em conjunto.

O tema de interconexão orgânica e finalista dos direitos fundamentais, isto é, sua dimensão sistemática, tem suscitado um crescente interesse na dogmática constitucional recente. Não é em vão que o processo de sistematização dos materiais normativos é um fenômeno paralelo ao da formação do Estado moderno, e que tem adquirido progressiva importância à medida que tem crescido o número e a complexidade das regras que integram o direito positivo estatal. De aí que precisamente a sistematicidade seja uma das expressões definidoras dos

2

AGUIAR DE LUQUE, L. Democracia direta y Estado constitucional. Madrid: EDERSA, 1977; ALZAGA VILLAAMIL, O. Derecho político español según la Constitución de 1978. Madrid: EDERSA, 1996. 3 PÉREZ LUÑO, A.E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1984. (8. ed., 2004), pp. 137 e ss.

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ordenamentos jurídicos mais evoluídos, nos quais se dá como uma garantia à segurança jurídica. Com efeito, a sistematicidade permite que se conheça, interprete e aplique o direito de acordo com critérios precisos e rigorosos, que são bem mais confiáveis que o arbítrio e a casualidade 4.

Esta ideia de ordem e regularidade que irradia do conjunto normativo para projetar-se em seus ramos é que permite conceber os direitos e liberdades constitucionais como um sistema e, assim, abordar seu processo hermenêutico como uma busca do sistema, ou unidade de sentido sistemático das normas que individualmente consideradas permitem formular cada um dos direitos fundamentais. O Tribunal Constitucional * espanhol tal e qual as principais jurisdições constitucionais que nos são vizinhas tem sublinhado este aspecto ao recordar que a interpretação do alcance e do conteúdo dos direitos fundamentais “deve ser feita considerando a Constituição como um todo em que cada preceito busca seu sentido pleno valorando-o em relação com os demais, ou seja, de acordo como uma interpretação sistemática” (STC 5/1983, fl. 3).

A doutrina pautada numa decisão posterior em que, com referência a um dado importante na unidade de sentido dos direitos fundamentais – o de seu conteúdo essencial –, indica que o conteúdo dos direitos fundamentais “pode ser extraído em parte da própria Constituição, interpretada sistematicamente, já que a mesma é um todo em que cada preceito adquire seu pleno valor e sentido quando posto em relação com os demais” (STC 67/1984, fl. 2).

O explícito reconhecimento pela nossa mais elevada instância jurisdicional constitucional sobre o caráter “sistemático” de nossa tábua de direitos fundamentais deixa aberta a consideração sobre importantes questões.

Em primeiro lugar, suscita o temo da relação entre a ideia de sistema constitucional e a noção de ordenamento jurídico, também expressa no próprio texto da Constituição. De fato, a Lei Maior de 1978, diferentemente dos documentos precedentes de nossa história constitucional, 4

PÉREZ LUÑO, A.E. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución, 2003, pp. 268 e ss., e 295 e ss.; PÉREZ LUÑO, A.E. Obra citada, 1984, pp. 137 e ss. * N.T.: O autor utiliza-se das seguintes siglas: TC (Tribunal Constitucional); STC (Sentença do Tribunal Constitucional); SSTC (Sentenças do Tribunal Constitucional); CE (Constituição espanhola).

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utiliza literalmente a expressão ordenamento jurídico nos artigos: 1.1, ao enumerar os valores superiores do ordenamento jurídico; 9.1, quando estabelece a submissão dos cidadãos e dos poderes públicos à Constituição e ao restante do ordenamento jurídico; 96.1, onde prescreve que os tratados internacionais validamente celebrados, uma vez publicados oficialmente na Espanha, passam a integrar o ordenamento interno; e, 147.1, ao assinalar que os Estatutos das Comunidades Autônomas integram o ordenamento jurídico estatal.

A alusão explícita de nossa Constituição ao conceito de ordenamento jurídico não pode ser considerada como uma figura retórica ou um dado casual, porque responder às exigências do funcionamento do direito numa sociedade tecnicamente avançada. A Constituição espanhola, como norma suprema de um Estado de direito desenvolvido, ao referir-se à noção de ordenamento jurídico não faz senão reconhecer que o conjunto de regras que integram seu Direito positivo objetivo tem a ver com os princípios básicos de unidade, de plenitude e de coerência.

a) Unidade, porque sua estrutura constitui um todo único, claramente delimitado e específico, cujas características informam e se manifestam em cada um dos elementos que o integram: as normas são definidas a partir de sua pertença ao ordenamento jurídico, e não o ordenamento que se está em função das várias normas que o compõem. Isso permite dizer que todo o ordenamento jurídico possui uma norma ou uma regra fundamental que o identifica, e que orienta e guia a interpretação e a aplicação das normas que o integram. Em nosso ordenamento jurídico, a Constituição assume o papel de norma fundamental e em seu seio aparece como a cúspide da estrutura hierárquica do sistema o conjunto dos valores, princípios e direitos fundamentais, como se pode extrair dos artigos 1.1 e 10.1, do próprio texto constitucional.

b) Plenitude, já que todo ordenamento jurídico aspira a ser uma estrutura completa, no sentido de ser auto-suficiente para regular todas as hipóteses que sejam suscitadas em seu seio, desde que possuam relevância jurídica. O estatuto constitucional dos direitos fundamentais se apresenta como um sistema pleno, enquanto pretenda responder a todas as exigências ou necessidades básicas individuais e coletivas de nossa conjuntura histórica. Essa vocação de plenitude manifesta-se em cláusulas como aquela do artigo 10.1, onde se alude ao pleno desenvolvimento da personalidade, em que tanto a jurisprudência quanto a doutrina alemãs 32

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(através da freie Entfaltung der Persönlichkeit, reconhecida no art. 2.1 da Grundgestz) têm visto como uma cláusula de garantia do sistema dos direitos fundamentais, possibilitando sua adaptação aos valores e necessidades flutuantes que emergem da consciência social.

c) Coerência, isto é, a tendência de todo ordenamento jurídico a estar de acordo com um conjunto de elementos entre os quais há uma ordem sistemática. Se a unidade do ordenamento jurídico aponta para a definição de seus sinais de identidade, e a plenitude para evitar possíveis lacunas em sua estrutura, a coerência se orienta à eliminação das antinomias ou contradições que podem surgir em seu seio. A partir disso, o sistema constitucional dos direitos fundamentais, ao supor a suprema expressão da ordem axiológica da comunidade, projeta sua unidade de sentido sobre todo o resto do sistema normativo, sendo o postuladoguia de todo o ordenamento jurídico e político, ao mesmo tempo em que religa a constituição formal com a constituição material.

Nestes últimos anos, tem ocorrido uma tendência orientada à matização do sentido dessas notas constitutivas do ordenamento jurídico e o seu consequente deslocamento por novas categorias que expressam os novos rumos da dimensão sistemática dos direitos fundamentais. Convém apontar aqui, por sua atualidade e como antecipação a projeções futuras, uma breve referência a esse fenômeno.

2.1 DA UNIDADE AO PLURALISMO

Um dos sinais mais relevantes da atual conjuntura dos sistemas de direitos fundamentais no constitucionalismo democrático tem sido o deslocamento de seu centro de gravidade do postulado de seu caráter unitário para o de seu significado pluralista.

É provável que Peter Häberle tenha sido o constitucionalista mais atento na captação e expressão dessa nova condição do sistema das liberdades. Esta multiplicidade dentro das facetas desses direitos se nutre de um amplo leque de procedimentos formalmente bem diferenciados e com distintos graus de efetividade.

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Em sua obra Pluralismo e Constitución. Estúdios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta, Peter Häberle define com precisão os elementos conformadores dessa instância pluralista até a que agora orienta o sistema dos direitos fundamentais e sua conseguinte interpretação. O modelo de pluralismo posto por Häberle manifesta-se como uma “multiplicidade de ideias e interesses, ou vice-versa, no seio de determinada comunidade política, dentro dos parâmetros do aqui e agora. Esta multiplicidade de facetas se nutre de um amplo leque de procedimentos formalmente bem diferenciados e com diferentes graus de efetividade”. Esse conjunto de ideias faz referência a hipóteses fáticas e a valores, concretizando-se em situações de consenso ou de conflito no seio das sociedades democráticas. A tensão dialética permanente em que se desenvolvem estes fenômenos e ideias conduz a certas alternativas. O pluralismo implica basicamente a “abertura” do sistema constitucional: “suas teorias e doutrinas, suas interpretações e intérpretes – sobretudo em nível de direitos fundamentais –, e sua inerente dogmática jurídica, ao lado de seu posterior desenvolvimento e progressos 5”.

No sistema constitucional espanhol dos direitos fundamentais há manifestações dessas tendências contrapostas representadas pelos princípios da unidade e do pluralismo.

1. De um lado, extrai-se da CE que nossos direitos fundamentais constituem um sistema de valores objetivos dotados de uma unidade de sentido e que representam a suprema expressão da ordem axiológica de nossa sociedade, assim como a da comunidade internacional à que pertencemos. A existência dessa unidade de sentido é que explica a razão de ser da solene afirmação constitucional da dignidade da pessoa, no próprio quício do Título I. Uma unidade de sentido que, continuando, se reitera com a exigência de que os direitos e as liberdades constitucionais sejam interpretados conforme a Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU e os tratados e acordos internacionais subscritos pela Espanha, em matéria de direitos fundamentais. Unidade que se reflete também no reconhecimento constitucional de um conteúdo essencial dos direitos fundamentais, o que supõe aceitar que estes possuem um núcleo prévio cuja objetividade deverá o próprio legislador respeitar (estas teses têm tido grande eco na jurisprudência constitucional, vide, por exemplo, as SSTC 11/1981, 13/1984, 196/1987, 71/1994 etc.). 5

HÄBERLE, P. Pluralismo y Constitución. Estudíos de teoría constitucional de la sociedad abierta. Trad. E. Mikunda. Madrid: Tecnos, 2002, p. 103.

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2. No entanto, ao lado dessa unidade básica, nossa ordem axiológica constitucional possui uma estrutura aberta e dinâmica, corolário do pluralismo político, consagrado, também, em nossa Lei Fundamental como valor superior de nosso ordenamento jurídico. Nosso estatuto de direitos e liberdades se encontra, deste modo, fundamento numa ordem política pluralista, consonante com uma sociedade aberta. Esta estrutura pluralista é que legitima os parlamentares à concreção e desenvolvimento legislativo dos direitos fundamentais, conforme as aspirações sociais expressadas pelas maiorias. Da mesma maneira, o próprio processo hermenêutico constitucional atua como um leito aberto às distintas exigências e alternativas práticas, isto é, como uma instância crítica capaz de “ponderar os bens”, a fim de resolver e canalizar os conflitos que podem ocorrer entre os diversos valores e interesses tutelados constitucionalmente (vide, sobre isso, as SSTC 101/1983, 32/1985, 163/1991, 30/1993 etc.).

A jurisprudência de nosso Tribunal Constitucional tem seguido a tendência de conjugar, através do equilíbrio e da ponderação interpretativas, os postulados da unidade e do pluralismo em nosso sistema constitucional dos direitos fundamentais 6. Uma leitura inicial do artigo 139.1 da CE, que dispõe sobre a igualdade de direitos e obrigações de todos os espanhóis em qualquer parte do território do Estado, assim como do artigo 149.1, que corrobora com esta ideia ao prescrever a competência exclusiva do Estado no que se refere “[à] regulação das condições básicas que garantem a igualdade de todos os espanhóis no exercício dos direitos e no cumprimento dos deveres constitucionais”, poderia levar a pensar na existência de um monopólio absoluto estatal na fixação do sistema dos direitos fundamentais. Sem embargo, o alcance deste preceito não é consagrar uma única forma no regime de todos os direitos e liberdades, senão estabelecer a garantia de seu exercício em condições básicas de igualdade. Tese desenvolvida explicitamente por nosso Tribunal Constitucional ao manifestar que a igualdade de direitos e obrigações de todos os espanhóis em qualquer ponto do território nacional não pode ser entendida “como uma rigorosa e monolítica uniformidade do ordenamento da que resulte que, em igualdade de circunstâncias, em qualquer parte do território nacional, se têm os mesmos direitos e obrigações”. Dado que o poder legislativo de que as Comunidades Autônomas potencialmente gozam em nosso

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PÉREZ LUÑO, A.E. Obra citada, 2003, pp. 295 e ss.; PRIETO SANCHÍS, L. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2003, pp. 175 e ss.; VIDAL GIL, E. Los conflictos de derechos en la legislación y en la jurisprudencia españolas. Un análisis de los casos difíciles. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999.

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ordenamento tem uma estrutura complexa, “por meio da qual pode ser distinta a posição jurídica dos cidadãos nas diferentes partes do território nacional” (STC 184/1981, fl. 2). A doutrina corroborada por uma decisão posterior em que, com respeito à articulação simultânea da diversidade de estatutos subjetivos com a unidade do ordenamento, se estabelece que:

“não é, definitivamente, a igualdade de direitos das Comunidades o que garante o princípio de igualdade de direitos dos cidadãos [...], senão que é a necessidade de garantir a igualdade no exercício de tais direitos o que, mediante a fixação de condições básicas comuns, impõe um limite à diversidade das posições jurídicas das Comunidades Autônomas” (STC 76/1983, fl. 2).

Depreende-se de tudo isso que os Estatutos de Autonomia podem estabelecer o desenvolvimento do sistema constitucional dos direitos fundamentais que, respeitando as condições básicas da igualdade de seu exercício (no sentido de evitar qualquer tipo de privilégio, discriminação ou arbitrariedade em seu desenvolvimento estatutário), introduza modalidades que deem especial força àqueles direitos que sejam de interesse prioritário em seu respectivo âmbito territorial. Esta possibilidade tem especial relevância em relação à fixação do estatuto dos direitos econômicos, sociais e culturais, cuja eficácia depende da existência de uma infraestrutura que possibilite sua implantação. Tem sido instrutiva a experiência da República Federal da Alemanha, onde as constituições dos Länder têm desenvolvido e completado eficazmente o precário estatuto dos direitos sociais contido na Grundgesetz. Nosso ordenamento constitucional permite articular a unidade básica do sistema dos direitos fundamentais, com o pluralismo de seu desenvolvimento e aperfeiçoamento através dos Estatutos de Autonomia.

2.2 DA PLENITUDE À ABERTURA JURISDICIONAL

Outro dos sinais característicos do constitucionalismo atual, com imediata incidência nas liberdades, é o de uma paulatina relativização do postulado da plenitude da ordem jurídica e seu deslocamento pela garantia de uma multiplicidade de instâncias jurisdicionais tendentes a articular a garantia efetiva dos direitos fundamentais. O caráter completo e pleno do ordenamento jurídico era corolário de sua condição de sistema único e fechado. Por isso, quando hoje se afirma a dimensão plural e aberta do ordenamento, necessariamente se questiona a sua plenitude. 36

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Os ordenamentos jurídicos e, em especial, seu sistema de fontes, têm sido diretamente afetados pelo fenômeno do pluralismo. A superação do âmbito de referência estatal, produto da nova ordem de relações internacionais, tem sido traduzida em fontes que expressam uma supra-estatalidade normativa. Contudo, o deslocamento do centro de gravidade no processo de determinação das fontes jurídicas não apenas advém da aparição de poderes normativos superiores ao Estado. Paralelamente, tem-se produzido uma ampliação de competências normativas por parte dos entes sociais intermediários, situados entre o cidadão e o poder estatal. Hoje se assiste a um fenômeno de infra-estatalidade normativa manifestado no pluralismo de determinação das fontes jurídicas. Para aludir a essa situação tenho me utilizado da metáfora do transbordamento das fontes do direito 7.

Nesta nova conjuntura em que o ordenamento jurídico estatal se encontra transcendido por outras instâncias normativas, aludir à inexistência de lacunas em seu seio tem perdido grande parte do significado que poderia ter no período histórico anterior como garantia da segurança jurídica dos cidadãos 8.

Na atual conjuntura faz-se especial referência à abertura ao procedimento jurisdicional, mais que à plenitude do ordenamento jurídico, como garantia da tutela das liberdades. Essa tendência tem tido eco doutrinário na obra coletiva, Critical Legal Though, que é para os anos 1990 o que na década de 1970 foi o Congresso de Catânia sobre o Uso Alternativo del Derecho. Em sua contribuição a tal obra, Rudolf Wiethölter definiu a tarefa a ser cumprida nos anos seguintes pela teoria crítica do direito, como a “Procedimentalização” das categorias jurídicas 9. Essa tarefa foi concretizada, na própria obra, por Erhard Denninger, como um esforço pela garantia através do procedimento de equilíbrio de posições entre os membros da sociedade democrática, nas relações entre particulares e destes com os poderes públicos. Esse status activus processualis, que completaria a teoria dos status elaborada por Jellinek, constitui um fator-chave dos Estados de Direito para assegurar o exercício pleno de todas as liberdades. Este status processual é concebido como o reconhecimento de cada pessoa de participar ativamente e assumir sua própria responsabilidade nos procedimentos que lhe 7

PÉREZ LUÑO, A.E. Obra citada, 1993, pp. 76 e ss. PÉREZ LUÑO, A.E. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1991, 2. ed, 1994, pp. 30 e ss. e 78 e ss. 9 WIETHÖLTER, Rudolf. Proceduralization of the Category of Law. In: JOERGES, Ch.; TRUBEK, D.M. Critical Legal Thought: An American-German Debate. Baden-Baden: Nomos, 1989, p. 501. 8

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afetam, assim como nas estruturas organizativas. No plano dos direitos fundamentais, implica reconhecer a abertura à proteção jurisdicional das liberdades, assim como acolher formas de participação dinâmicas e ativas por parte dos interessados nos procedimentos tendentes à formação de atos jurídicos 10.

Fazendo eco a essa inquietude, nosso TC tem reconhecido que: “para a ordenação adequada do processo existem tributos, formas e requisitos processuais que, por afetarem a ordem pública, são de necessária observância por sua racionalidade e eficácia”, e também que ele suponha aceitar a validez de obstáculos processuais que “sejam produto de um formalismo desnecessário e que não se compaginam com o direito à justiça” (STC 95/1983, fl. 5; v. também, em sentido análogo as SSTC: 3/1983, fl.1; 19/1983, fl. 4; 65/1983, fl. 4). Todavia reveste-se de maior interesse, do ponto de vista do reconhecimento pela nossa jurisprudência constitucional do direito à jurisdição, quando se afirma na decisão o seguinte: “o artigo 24.1. CE reconhece a todas as pessoas o direito a obter a tutela judicial efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos”. O TC entende que o conteúdo básico de tal direito,

[...] numa ordem lógica e cronológica, é o acesso à justiça, que se concretiza no direito de ser parte num processo e, como tem declarado este Tribunal Constitucional, poder promover a atividade jurisdicional que desemboque em uma decisão judicial sobre as pretensões deduzidas (STC 220/1993, fl. 2; vide também as SSTC 115/1984, 15/1985, 34/1989, 164/1991, 192/1992, 28/1993 e 101/1993).

No que diz respeito à tensão entre plenitude e abertura jurisdicional, os enfoques atuais das liberdades devem se inclinar a uma postura mediadora. Cabe demandar dos atuais empenhos teóricos e práticos sobre o significado dos direitos fundamentais um esforço de mediação entre as exigências, hoje praticamente inalcançáveis, da absoluta plenitude da ordem jurídica e um procedimentalismo entendido como respeito às garantias processuais e abertura à jurisdição que são as expressões informadoras das estruturas jurídicas das instituições democráticas.

2.3 DA COERÊNCIA À ARGUMENTAÇÃO 10

DENNINGER, Erhard. Government Assistance in the Exercise of Basic Rights (Procedure and Organization). In: JOERGES, Ch.; TRUBEK, D.M. Obra citada, 1989, pp. 461e ss.

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A coerência enquanto ausência de antinomias ou contradições normativas era uma condição facilmente predicável dos ordenamentos jurídicos caracterizados pelas notas de unidade e plenitude. Quando essas notas são questionadas, ao haver-se erodido a dimensão unitária, compacta, fechada e auto-suficiente dos sistemas jurídicos, e sua consequente decantação em relação ao pluralismo, a abertura e a complexa multiplicidade de sua estrutura normativa, a coerência tem exigido uma condição praticamente inalcançável. Assim, nos ordenamentos jurídicos dos Estados de direito atuais é quase impossível garantir a existência de antinomias, e se tende a substituir essa garantia de segurança jurídica pela exigência de um amplo aparato argumentativo tendente a motivar a racionalidade das possíveis contradições existentes entre as normas e/ou as decisões judiciais, que são inevitáveis em ordenamentos abertos e complexos.

Caso se possa considerar Peter Häberle como o maior expoente teórico do pluralismo constitucional, pela mesma razão se deve reputar Robert Alexy como o mais qualificado estudioso do papel da “argumentação iusfundamental”. Alexy, tal como foi supra apontado, tem dado especial atenção doutrinária aos processos atuais que tendem tornar clara a teoria argumentativa no seio dos processos reabilitadores da racionalidade prática. Na sua obra sobre a Teoría de la argumentación jurídicia, ele tem dado cabo de um importante esforço intelectual para sugerir regras e procedimentos a fim de garantir a racionalidade da argumentação jurídica. Pretende-se evitar, deste modo, que as iniludíveis valorações do jurista intérprete degenerem em juízos de valor subjetivos e arbitrários. A referência às normas materiais e processuais aplicáveis ao caso, a obrigatória consideração dos precedentes, assim como os modelos orientadores da Dogmática jurídica institucionalmente cultivada, constituem o horizonte em que se projeta a racionalidade prática no direito 11.

Talvez o principal mérito da investigação de Alexy esteja em seu esforço em estabelecer uma aproximação entre a argumentação jurídica a partir da racionalidade prática e a análise lógica e linguística do raciocínio jurídico. Alexy compartilha com os teóricos da argumentação a ideia de que a racionalidade jurídica não se pode reduzir a esquemas da lógica formal, e 11

ALEXY, R. Theorie der juristischen Argumentation. Frankfurt a.M: Suhrkamp, 1978 (Existe tradução para o espanhol de M. Atienza e I. Espejo, Teoría de la argumentación jurídica, publicada pelo Centro de Estudios Constitucionales, em 1990), pp. 32 e ss. e pp. 263 ss. [N.T.: Há, também, tradução para a lingual portuguesa, publicada sob o título Teoria da argumentação jurídica, e publicada pela Editora Landy.]

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rechaça que a interpretação do direito seja um ato de sua subsunção mecânica, tal como se extrai da atitude metodológica do positivismo legalista. Não obstante, entende que a racionalidade da argumentação jurídica não deixa de ser uma forma de “racionalidade”, que deve obedecer a premissas de correção e de rigor. O elemento básico para consegui-lo é o procedimento.

O raciocínio jurídico não tem a ver com a sorte ou com a arbitrariedade, senão com “razões” que atuam como modelos justificativos da criação, interpretação e aplicação de normas. Essas justificações não se baseiam apenas em fatores estáticos (a conformidade das premissas com o conteúdo de regras jurídicas positivas ou meta-positivas – Direito natural –; ou a estrita dedução entre as premissas e suas consequências etc.); e sim num elemento dinâmico: o procedimento argumentativo 12.

Robert Alexy tem acolhido, desenvolvido e projetado na teoria do direito e dos direitos fundamentais a tese sobre o discurso prático e a teoria consensual da verdade de Jürgen Habermas. Segundo Alexy, um discurso prático é racional quando satisfaz as condições de uma argumentação prática racional. Quando estas condições são cumpridas, o resultado do discurso mostra-se correto. A teoria do discurso é, portanto, uma teoria procedimental da correção prática. As condições que garantem a racionalidade do procedimento do discurso são resumidas por Alexy em um sistema de regras que guiam a atividade da racionalidade prática. Estas regras respondem a uma dupla exigência: 1) As que garantem a correção estrutural dos argumentos e que impõem, entre outras coisas, sua não contradição, a clareza linguísticoconceitual, a veracidade das premissas empíricas utilizadas, a exaustividade dedutiva dos argumentos, a consideração das consequências, a valorização comparativa dos argumentos etc.; 2) As que garantem a imparcialidade do procedimento argumentativo e que fazem referência ao reconhecimento do direito de participar no discurso em condições de liberdade e de igualdade (qualquer pessoa capaz pode intervir no discurso, apresentar seus pontos de vista, desejos e necessidades; a ninguém que participe do diálogo se pode impedir que exerça suas faculdades reconhecidas pelas regras do discurso, através de uma coação estabelecida, extrínseca ou intrínseca ao discurso) 13.

12 13

ALEXY, R. Obra citada, 1978, pp. 177 e ss. ALEXY, R. Obra citada, 1978, pp. 213 e ss.

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Robert Alexy entende que a argumentação iusfundamental possui algumas peculiaridades em relação às demais formas de argumentação jurídica. A fundamentação dos direitos sobre valores éticos e sua vinculação com determinadas concepções e metas políticas exige que esta forma de discurso prático se atenha a regras procedimentais que avalizem sua racionalidade. Na tarefa de construir uma argumentação iusfundamental que responda a exigências de racionalidade Os Tribunais Constitucionais detêm uma especial atuação protagonista. Alexy conclui que para dotar de segurança a argumentação iusfundamental: “é razoável a institucionalização de uma justiça constitucional cujas decisões possam e requeiram ser justificadas e criticadas em um discurso iusfundamental racional 14”.

As teses de Robert Alexy permitem, no meu entender, inferir uma dupla consequência:

1ª. Que a teoria da argumentação iusfundamental tem suposto, de certo modo, um deslocamento da atual questionável coerência do ordenamento jurídico à coerência, em termos de racionalidade discursiva, das decisões jurisprudenciais atinentes aos direitos fundamentais.

2ª. Que a teoria da argumentação racional de Alexy não é ideologicamente neutra. Os pressupostos do procedimento discursivo são a liberdade e a igualdade, ou seja, os valores básicos do Estado de direito; e, por sua vez, a teoria do consenso obtida através da argumentação racional constitui o fundamento legitimador da legalidade do Estado de direito. Deste modo, nota-se certa circularidade nesta concepção argumentativa das liberdades: a argumentação exige a presença de determinados direitos para garantir sua própria racionalidade e imparcialidade; e os direitos fundamentais precisam da argumentação para poder ser interpretados e aplicados às situações concretas.

Na jurisprudência constitucional espanhola, bem como na de outros Estados de direito política e culturalmente vizinhos ao nosso, aponta-se o papel preponderante que assume a argumentação como garantia da segurança jurídica dos cidadãos. No sentido da ampla, quase constante referência do TC à fundamentação racional de seus argumentos e em relação com

14

ALEXY, R. Teoría de los derechos fundamentales. Trad. E. Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 554. [N.T.: Há, também, uma tradução para a língua portuguesa, sob o título Teoria dos direitos fundamentais, publicada pela Malheiros Editores.]

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aspectos que incidem na argumentação iusfundamental, podem-se distinguir três postulados básicos:

1º. A argumentação racional é considerada requisito básico para a tutela efetiva dos direitos fundamentais. Existe uma abundante jurisprudência em que expressamente se alude à motivação, em termos de argumentação racional das decisões, como elementos nuclear do direito constitucional à tutela efetiva. Assim, proclama nosso máximo intérprete da Constituição:

É entendimento reiterado deste Tribunal Constitucional que a tutela judicial efetiva, consagrada no artigo 24.1 da CE, compreende o direito a obter uma resposta fundada no Direito, como garantia máxima – dada a essência da função jurisdicional – diante à arbitrariedade e à irracionalidade na atuação dos poderes públicos (STC 131/1990, fl. 1).

Entendimento reiterado, entre outros, na sentença que sustenta:

A obrigação de fundamentar as sentenças que o artigo 120.3 da CE impõe aos órgãos judiciais, colocada em conexão com o direito à tutela judicial protegido pelo artigo 24.1 da Constituição – entendido como direito a uma resposta com base jurídica –, traz para o conteúdo desta garantia constitucional o direito de o jurisdicionado conhecer as razões das decisões judiciais e, portanto, a ligação das mesmas com a lei e com o sistema geral de fontes, da qual são aplicação (STC 14/1991, fl. 2).

2º. A argumentação judicial é concebida como um exercício de racionalidade tendente a evitar decisões arbitrárias. Um bom número de sentenças de nosso TC coincide com a exigência de uma motivação baseada em raciocínios argumentativos das decisões judiciais, como meio para evitar resultados contraditórios ou ilógicos. Isso implica em que os juízes deverão justificar racionalmente suas resoluções e sentenças. Assim como se expressa o TC nas seguintes linhas: É entendimento reiterado deste Tribunal Constitucional que uma aplicação da legalidade que seja arbitrária, manifestamente desarrazoada ou irracional, não pode ser considerada fundada no Direito e fere, por isso, o direito à tutela judicial [...]. Assim ocorre nos casos em que [...] a solução judicial contém contradições internas ou erros lógicos que fazem dela uma resolução manifestamente irracional por ser contraditória e, por isso, carente de motivação (STC 184/1992, fl. 2).

3º. A exigência de argumentação racional não garante o acerto da decisão judicial. O TC adverte que o procedimento argumentativo contribui para que as decisões judiciais sejam 42

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elaboradas segundo modelos de racionalidade formal, sem que isso necessariamente influencie no resultado dessas inferências racionais representando a justiça material. Como exemplo significativo desta orientação, pode-se trazer a seguinte decisão do TC, em que se sustenta que

[...] o direito à tutela judicial reconhecido no artigo 24.1 da CE conduz ao direito de obter uma solução fundada no direito em relação à pretensão formulada perante o Juiz competente, o qual deve aplicar motivadamente as normas jurídicas aplicáveis e resolver razoavelmente a questão se lhe apresenta, embora o artigo 24.1 da CE não garanta o acerto do órgão judicial na solução do caso concreto (STC 55/1993, fl. 5).

3

CONCLUSÃO:

AS

TRANSFORMAÇÕES

DO

SISTEMA

DOS

DIREITOS

FUNDAMENTAIS E A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO

As considerações feitas não pretendem propugnar a tese da superação da superação da unidade, plenitude e coerência dos sistemas jurídicos. Sem uma adequada proporção de tais postulados, um ordenamento jurídico seria impensável. Contudo, com a mesma ênfase com que se reitera a importância desses ingredientes básicos dos ordenamentos normativos, devese admitir a erosão dessas categorias teóricas desde sua elaboração pelo positivismo jurídico formalista.

Os deslocamentos destes postulados por novas exigências e modelos funcionais dos sistemas jurídicos, se não significam sua abolição, trazem transformações e mudanças de inquestionável peso em seu significado e alcance. O positivismo jurídico formalista, em particular sua formulação mais acabada e influente, ou seja, a teoria pura do direito de Hans Kelsen, tem se mostrado incapaz de fazer frente e de explicar adequadamente essa metamorfose. Disso se extrai a profunda crise que aflige essa versão da ciência jurídica e conseguinte aparição de uma multiplicidade de teorias “pós-positivistas”, que, em muitos casos, negam abertamente os postulados-chave da teoria pura e a admissão encoberta de determinados pressupostos metodológicos e teóricos muito próximos das concepções iusnaturalistas 15.

15

PÉREZ LUÑO, A.E. Obra citada, 1984, pp. 58 e ss.

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A unidade, coerência e plenitude do ordenamento jurídico se referiam a uma concepção hierárquica de sua estrutura e funcionamento. A ideia kelseniana da “norma fundamental” (Grundnorm), evocava a imagem de uma norma suprema e que, por ser a primeira, não teria uma norma superior ou prévia. Esse sentido, primeiro ou último, conforme se queira entender, imprimia a todo o ordenamento uma estrita conformação hierarquizada, na que a teor da célebre teoria kelseniana da formação da ordem jurídica por graus ou níveis (Stufenbau der Rechtsordnung), a validade de cada norma dependia de sua estrita vinculação a e origem em uma norma imediatamente superior16.

Na parte que Hans Kelsen dedicou, na segunda edição de sua Reine Rechtslehre, à “dinâmica jurídica” (Rechtsdynamik), explicitava-se sua concepção hierárquica do ordenamento normativo. A construção por graus ou níveis do sistema jurídico implica na ideia hierárquica da ordem normativa na que cada norma se apóia em outra e serve, por sua vez, de apoio a outras até chegar à cúspide dessa estrutura escalonada onde está a norma fundamental (Grundnorm). Pela teoria kelseniana, de cada duas normas pertencentes a um ordenamento jurídico pode-se dizer que a superior precede à inferior, a qual é a seguinte ou consequente. Em tal ordem hierárquica é preciso uma norma que não tenha precedente, nem princípio e essa norma é, especificamente, a Grundnorm. Todas as outras normas do ordenamento são consequência dela e, ao seu próprio tempo, da validade dessa norma fundamental deriva a das normas que a ela se subordinam 17.

A dinâmica jurídica se estrutura, segundo Kelsen, como um todo ordenado, isto é, como um sistema cujos elementos integrantes ou normas formam um conjunto hierarquizado em função de um princípio básico que é a norma fundamental. Em sua obra póstuma Allgemeine Theorie der Normen, Hans Kelsen, ao explicitar a problemática lógica do fundamento de validade jurídica (Logische Probleme der Geltungsbergründung), assinala que a ordem sistemática do direito se estrutura a partir da validade, entendida como pertença ao sistema. O que significa 16

DELGADO PINTO, J. El voluntarismo de Hans Kelsen y su concepción del orden jurídico como un sistema normativo dinámico. In: Estudios en honor del Profesor José Corts Grau. Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Valencia, 1977, vol., I, pp. 175 e ss.; DELGADO PINTO, J. Sobre la vigencia y la validez de las normas jurídicas. Doxa, n. 7, 1990, pp. 101e ss.; GARCÍA AMADO, J.A. Hans Kelsen y la norma fundamental. Madrid: Marcial Pons, 1996, pp. 56 e ss.; PÉREZ LUÑO, A.E. Trayectorias Contemporáneas de la Filosofía y la Teoría del Derecho. 3. ed. Sevilla: Grupo Nacional de Editores, 2004, pp. 49 e ss. 17 KELSEN, H. Reine Rechtslehre. 2. ed. Wien: Franz Deuticke, 1960, pp. 198 e ss. [N.T.: Há, também, uma tradução para a língua portuguesa, publicada sob o título Teoria pura do direito, publicada pela Martins Fontes Editora].

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que cada uma das normas singularmente consideradas exibe a qualidade da validez como traço distintivo de sua integração e pertença ao ordenamento jurídico. Em função do princípio da validade, as normas que formam os sistemas jurídicos, aparecem ordenadas de forma que as inferiores se fundam nas superiores, até chegar à norma fundamental. Esta concatenação normativa se funda, definitivamente, em que a validade das normas inferiores é inconcebível sem a validade das superiores e, em última instância, sem a fonte de toda validez do ordenamento, que é a que flui da Grundnorm 18.

Da inexistência de um fundamento último ou um termo na concatenação normativa, então todo sistema não seria válido. Na concepção kelseniana do ordenamento jurídico, a Grundnorm desempenha essa função de princípio da validade, de que desta flui e informa todas as outras normas que integram o sistema; trata-se do princípio que vai determinar que todas elas sejam válidas.

A “nomodinâmica” kelseniana implicava, em definitivo, numa visão hierarquizada do ordenamento jurídico, que permitir explicar e conjugar suas três notas ou postulados básicos. A unidade, porquanto tal ordenamento fosse concebido como uma entidade indivisível, compacta e inteiriça, cujo traço constitutivo de identidade (validez) se transmite aos elementos singulares (normas) que o integram. A plenitude, porquanto essa estrutura sistemática que é o ordenamento aparecia como um todo completo e fechado, que não admitia fissuras, hiatos ou vazios, isto é, lacunas no seio desse conjunto normativo. A coerência, que, a sua vez, era também corolário dessa totalidade normativa hierarquizada e imbricada, cuja sistematicidade

resultava

inconciliável

com

qualquer

tipo

de

contradições

ou

incompatibilidades (antinomias).

Na interessante troca de cartas mantida por Hans Kelsen com Ulrich Klug, entre 1959 e 1965, sobre os aspectos lógico-formais e sistemáticos da teoria pura do direito, estão explicitados e desenvolvidos alguns dos aspectos aqui apontados em relação à estrutura hierárquica do ordenamento jurídico e suas consequências quanto à validade normativa 19. 18

KELSEN, H. Allgemeine Theorie der Normen. Wien: Manzsche Verlag-und Universitätsbuchhandlung, Wien, 1979, pp. 203 e ss. [N.T.: Há, também, uma tradução para a língua portuguesa, publicada sob o título Teoria geral das normas, publicada pela Safe.]; vid., também: KELSEN, H. Obra citada, 1960, pp. 196 e ss., 228 e ss. 19 KELSEN, H.; KLUG, U. Rechsnormen und logische Analyse. Ein Briefwechsel 1959 bis 1965. Wien: Franz Deuticke, 1981.

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Esta explicação teórica do ordenamento jurídico constituiu a expressão formal mais brilhante, acabada e influente do positivismo jurídico, na medida em que, nas décadas anteriores, era um modelo explicativo adequado para refletir a estrutura e o funcionamento dos sistemas jurídico-positivos vigentes. Como se percebe que as notas básicas conformadoras dos sistemas jurídicos atuais têm sofrido uma profunda metamorfose, cujos aspectos principais no âmbito do sistema dos direitos fundamentais têm sido objeto das reflexões que aqui foram feitas, coloca-se agora a questão inafastável da aptidão da teoria pura do direito de lidar com essas mutações.

A morfologia do ordenamento jurídico, inferida a partir da concepção kelseniana, invocava a imagem de uma pirâmide ou estrutura piramidal, cujo vértice era ocupado pela Grundnorm. Ante dessa representação, o atual significado dos sistemas jurídicos reclama uma simbolização que se aproxima mais de uma abóbada que a uma pirâmide. Essa estrutura abobadada implica a confluência, invólucro ou interação de um conjunto de arcos ou cobertas esféricas que fecham o espaço compreendido entre muros ou colunas. Os atuais deslocamentos da unidade ao pluralismo, da plenitude à abertura jurisdicional e da coerência à argumentação, a cuja análise se procedeu logo acima, na esfera do sistema de liberdades, induzem e avalizam esse novo enfoque.

O jurista contemporâneo, habituada â circunferência do horizonte explicativo tradicional informado pela teoria pura do direito, não vê a hora de encaixar nessa perspectiva do positivismo jurídico o novo significado dos ordenamentos normativos. Se até o presente a teoria jurídica iuspositivista havia padecido de um excesso de concentração num ponto de gravitação único e hierárquico (Grundnorm), ao qual convergiam todos os processos normativos, a partir de agora deverá acomodar seu enfoque sobre ordenamentos jurídicos policêntricos. Esta nova perspectiva metodológica, para assumir o significado atual dos sistemas jurídicos, denuncia a crise do iuspositivismo kelseniano. Impõe substituir a imagem piramidal, isto é, hierarquizada da ordem normativa, por um horizonte no que a totalidade do sistema será obtida pela interseção de uma pluralidade de estruturas normativas, de procedência heterogênea e que empilhadas formarão um panorama do ordenamento jurídico bastante parecido como uma abóbada.

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Não se pode deixar de advertir, ao concluir estas reflexões, que aos riscos próprios de qualquer critério teórico ou metodológico da ciência jurídica, acrescem-se quando se trata de explicar categorias ou questões contemporâneas. Neste caso, a dificuldade de ter de reduzir a conceitos a realidade problemática, heterogênea e dinâmica da experiência jurídica, se vê acrescida pela necessidade de enfrentar circunstâncias in fieri, que estão surgindo e que, de modo algum, podem ser consideradas uma experiência concluída. O filósofo ou teórico do direito que procura acompanhar as transformações que ocorrem no presente, realiza uma forma de ursprüngliche Geschichte, na acepção hegeliana, que tem a seu favor ser, por sua vez, cronista e autor de fatos dos quais lhe é dado possuir uma vivência direta ou imediata, mas, em contrapartida, carece da segurança que proporciona o distanciamento. De aí que as considerações aqui apresentadas sobre a crise do iuspositivismo, em função da metamorfose operada nos sistemas jurídicos atuais e, em particular, no sistema dos direitos fundamentais, pretenderam apenas traçar um marco referencial de orientação de tendência, mais que um esquema rígido, completo e definitivo.

Tradução

Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

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