Tradução - A ingerência das leis: problemas da juridificação das relações sociais (Jesús-María Silva Sánchez)

June 1, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Legal Theory, Direito, Teoria do Direito
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A INGERÊNCIA DAS LEIS: PROBLEMAS DA JURIDIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES SOCIAIS *

Jesús-María Silva Sánchez Catedrático de Direito Penal, Universidade Pompeu Fabra, Espanha.

Tradução Bruno Costa Teixeira Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

“L’amitié n’est pas régie par les lois civiles… L’amitié, en effet, implique une volonté de se tenir en dehors du droit. Si non, les amis fonderaient une association, une 1 amicale selon le droit. Et cela pourrait bien être la fin de leur amitié” (J. Carbonnier)

1. Introdução

1. Nas últimas três décadas, aproximadamente, o termo “juridificação” (em inglês, 2 juridification) tem ganhado espaço dentro das ciências sociais como tradução do 3 vocábulo Verrechtlichung, utilizado inicialmente na discussão alemã . É duvidoso, no entanto, que juridificação ou juridification foram inicialmente expressões de conteúdo 4 pejorativo tal qual a expressão alemã .

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Artigo publicado originalmente em espanhol sob o título: La injerencia de las leyes. Problemas de la juridificación de las relaciones sociales. Traduzido com a gentil permissão do autor. Este texto é baseado, essencialmente, na tese defendida no simpósio “Cambio cultural y cambio social” (9-11 de maio de 2007), organizado pelas Faculdades de Ciências Sociais e pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Navarra. 1 Citado por J. Freund, Le droit comme motif et solution de conflits, ARSP, Beiheft 8, 1974, pp. 47 e ss., 51. 2 Em francês se utiliza também “juridification” e, na língua italiana, o termo usado é “giuridificazione”. 3 A introdução do termo em voga na discussão alemã é do labor de Otto Kirchheimer, Zur Staatslehre des Sozialismus und Bolschewismus, In Zeitschrift für Politik 1928, pp. 593 e ss., 597. Com isso Kirchheimer queria se referir ao fato de que determinadas questões foram subtraídas à distribuição social de forças e inseridas na esfera do Direito. Há discrepância sobre se Kirchheimer queria se referir com isso ao Direito formal, ou ao Direito num sentido filosófico. 4 Esta última demonstra a idéia de um excesso desnaturalizador que seguramente se expressa melhor com o termo “hiperregulação” (em inglês: overregulation; em alemão: Überregulierung).

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2. Contudo, Verrechtlichung, juridification ou juridificação não são termos que 5 designem um fenômeno claro e uniforme . Pelo contrário, pode-se falar em juridificação em contextos muito distintos e com finalidades, assim mesmo, 6 diversas , algumas das quais não merecerão, aqui, qualquer consideração. De início, convém diferenciar suas pretensões críticas daquelas que são próprias à crítica marxista ao Direito como tal, visto como um mecanismo de dominação da 7 classe dominante . É sabido que, para o pensamento marxista, a vinculação do surgimento do Direito e do Estado à aparição na sociedade de uma diferenciação de classes sociais conduzia, coerentemente, à afirmação de que a supressão da sociedade de classes determinaria a desapropriação do Direito, do Estado e dos juristas. Muito bem, a supressão da sociedade de classes e a sua pretendida transformação em comunidade de iguais confiavam-se ao Estado e o direito socialistas: isso, no entendimento de que “o Direito é necessário para acabar com o 8 próprio Direito ”. Nesse processo, surgiu, ademais, nas democracias ocidentais, a proposta de recorrer a um “uso alternativo do Direito”, que expressaria uma “reapropriação social da função normativa”; acrescentando, em definitivo, “– por meio da crítica e do desgaste dos mecanismos de domínio do Direito burguês – os 9 poderes de autodeterminação da classe trabalhadora e das massas populares ”. Por 10 fim, tratar-se-ia de uma “reabsorção do Direito pela sociedade ”. 3. Pois bem, a alusão (crítica) aos processos de juridificação não favorece uma crítica ao Direito como tal. Na realidade, parte de que o Direito e seu modo de funcionar – o que pode ser denominado como juridificação, em sentido amplo – sempre existiram ao longo da História. Disso, em particular, cabe discutir a peculiar juridificação das sociedades modernas. Nesse sentido, e no seu uso mais difundido, a expressão “juridificação” designa tão somente a expansão das regulações jurídicas 5

Além da bibliografia que será citada neste artigo, vale consultar, dentre outros, Kübler (Hrsg.), Verrechtlichung von Wirtschaft, Arbeit und sozialer Solidarität, Frankfurt 1985; Maus, Verrechtlichung, Entrechtlichung und der Funktionswandel von Institutionen, In: Göhler (Hrsg.), Grundlagen der Theorie politischer Institutionen. Forschungsstand, Probleme, Perspektiven, Opladen 1987, pp. 132 e ss. 6 Blichner/ Molander, What is juridification?, In Centre for European Studies, University of Oslo, www.arena.uio.no, Working Paper n. 14, março 2005, p. 5, distinguem cinco dimensões da juridificação: a) a atribuição constitucional de mais competências ao sistema legal; b) a regulação legal de um número crescente de atividades; c) a resolução de um número crescente de conflitos por referência à lei; d) a atribuição de maior poder aos profissionais do Direito; e) o incremento da tendência dos cidadãos a pensar em si mesmos e nos demais como sujeitos de direito. 7 Conferir Capella, Sobre la extinción del derecho y la supresión de los juristas (1970), In sus Materiales para la crítica de la filosofía del Estado, Barcelona 1976, pp. 41 e ss., 42, ao indicar que parte “do convencimento de que todo direito é um mal”. 8 Capella, Materiales, p. 43. Uma vez obtida uma “comunidade”, deixam de ser necessárias a democracia, a liberdade política e a justiça, mas “[...] democracia, liberdade política e justiça são necessárias para a construção de uma comunidade, para tornar possível a tarefa de edificar fontes de verdadeira riqueza coletiva. Também o é determinado tipo de direito: um direito capaz de contribuir com sua própri liquidação” (p. 97). 9 Barcellona/ Cotturri, El Estado y los juristas (trad. Capella), Barcelona 1976, pp. 263 e 264-265. 10 Capella, Materiales, p. 119. Em relação ao Direito penal, de modo a fazer alusão a novas categorias “penais” que “uma vez depuradas por juristas ‘novos’ – por equipes capazes de utilizar as técnicas da sociologia, da psicologia, da educação etc. – darão de si uma ‘disciplina’ e umas funções que não serão já o direito penal e o penalista, senão ciência da patologia social e eficazes terapetas de uma comunidade capaz de se reconhecer a si mesma sem cinismo”.

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em âmbitos da vida previamente não regulados pelo Direito, assim como o aumento 11 de sua densidade, mediante a especialização, em âmbitos já regulados por aquele . Nas palavras de Habermas, é preciso distinguir entre a extensão do direito, isto é, a regulação jurídica de novos assuntos sociais regulados até então de maneira informal, e o adensamento do Direito, isto é, o esfarelamento da matéria jurídica 12 global em várias matérias particulares . Não é o Direito em si, senão seu excesso o 13 que se questitona . 4. A idéia de excesso requer, sem embargo, uma limitação: uma concepção acerca de quais são os termos ideais da extensão e intensidade da intervensão jurídica numa sociedade. Ou, em outras palavras, uma teoria da função social do Direito. E obviamente sobre isso é que cabe discutir. A polêmica sobre a abolição do Direito penal e a privatização dos conflitos constitui bom exemplo da referida especulação. Como se sabe, é majoritário o ponto de vista que entende a regulação jurídico-penal pública sofreu, diante da antiga instituição da vingança privada, um aumento significativo da previsibilidade e da proporcionalidade nas reações punitivas ante os delitos. Contudo, para alguns, a juridificação dos conflitos interpessoais (com a burocratização, neutralização e despersonalização) não tem feito senão somar novos males aos males já existentes. Em particular, ao aprofundar a afronta, ao invés de assentar as bases da reconciliação das partes do conflito. A crítica à juridificação é, aqui, uma crítica à formalização e à distância. 5. A discussão sobre a jurificação nas sociedades modernas, não obstante, não se tem concentrado fundamentalmente nesta dimensão, próprio do que Habermas denominaria a primeira, a segunda e inclusive a terceira ondas juridificadoras (a do Estado burguês, o Estado de Direito e o Estado democrático de Direito), senão, 14 sobretudo, na quarta . Em geral, tem tido por objeto um excesso que se manifesta não apenas em uma maior quantidade de leis (Gesetzesflut), como também em uma 15 mudança qualitativa delas . Na proposição de Teubner, tal mudança qualitativa se traduz na aparição de um novo tipo de direito, o direito regulatório, caracterizado por 16 sua racionalidade material em oposição à racionalidade formal . Esta juridificação responde, então, a um intento de alcançar a justiça por meio de mais Direito e mais Estado. E, sobre esta base, fica relativamente fácil associar o processo de juridificação (hiperregulação, hiperlegislação) ao desenvolvimento do Estado de bem-estar (welfare state). Mas talvez convenha começar um pouco antes. 11

Voigt, Verrechtlichung in Staat und Gesellschaft, In Voigt (Hrsg.), Verrechtlichung. Analysen zu Funktion und Wirkung von Parlamentalisierung, Bürokratisierung und Justizialisierung sozialer, politischer und ókonomischer Prozesse, Königstein 1980, p. 16; bem como Voigt, Gegentendenzen zur Verrechtlichung, In Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, Band 9, Opladen 1983, p. 17. 12 Habermas, Teoría de la acción comunicativa, II (trad. Jiménez Redondo), Madrid 1987, p. 504. 13 Conferir Bock, Recht ohne Maß. Die Bedeutung der Verrechtlichung für Person und Gemeinschaft, Berlin 1988. 14 Habermas, Acción comunicativa, II, p. 530-531. 15 Frenzel, Jenseits der Metaphorik von “Normenflut” und “Gesetzeslawine”, disponível em: www.jurawelt.com/artikel/9918, p. 6 e ss. 16 Teubner, Juridification. Concepts, Aspects, Limits, Solutions, In Teubner (ed.), Juridification of Social Spheres. A Comparative Analysis in the Areas of Labor, Corporate, Antitrust and Social Welfare Law, Berlin/ New York 1987, pp. 18-19.

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2. Delineamento. As ondas da juridificação

1. O Direito burguês da liberdade e da igualdade formal pretendera “emancipar” o indivíduo das estruturas medievais, rompendo os vínculos tradicionais de dependência, proteção e assistência. Em seu lugar, estabelecia um sistema de leis 17 gerais que garantiam os direitos subjetivos individuais . O espaço das vinculações tradicionais – o da sociedade e da economia – passava então a ficar vazio, isto é, 18 sem interferência do direito . Este, denominado por alguns de mundo da vida – esfera privada livre de relações sociais corporativas e dependentes do status – ficou 19 aberto a uma reconfiguração . Pois, concebido em termos fundamentalmente formais, o novo Direito – sem rebuço, o instrumento de um processo de 20 desjuridificação , a favor do poder administrativo centralizado e do mercado – aparecia como fonte de direitos reativos, sem proporcionar aos agentes sociais indicações de conteúdo, mas apenas maios jurídicos para a realizaçõ de seus interesses privados. 2. Não obstante, o Direito formal se revelou incapaz de neutralizar as posições de poder com suas seqüelas de desigualdade mediante a remissão ao mero jogo dos 21 interesses particulares . Nem sequer a progressiva juridificação da legitimação do Direito formal por meio do direito ao voto (na qual Habermas chama de “terceira 22 onda ”) mudava as coisas. Ou melhor: punha limites ao poder administrativo, deixava de pé o poder do mercado. O espaço da economia e da sociedade devia ser juridificado. 3. A aposta por uma materialização do Direito, então, revelava uma pretensão de modificação das estruturas de poder, mediante o favorecimento dos sujeitos mais 23 fracos . O Direito do trabalho e o da Seguridade social constitui o exemplo mais citado deste modelo. Pois, com efeito, mostram um Direito regulatório que vai mais além do Direito formal de qualquer obreiro outorgar qualquer tipo de contrato com 24 qualquer empresário . Sendo assim, o efeito de garantia de liberdades materiais que produzia este processo de juridificação vinha acompanhado por outros fenômenos. Por um lado, teve lugar uma mudança na qualidade do Direito. Este, 17

Habermas, Paradigms of Law, Cardozo L. Rev. 17 (1995-1996), pp. 771 e ss. 772. Conferir a interessante descrição de Bock, Recht und Gesellschaft unter den Bedingungen der Verrechtlichung, MschrKrim 5/ 1986, pp. 289 e ss., 291-292; E ainda, Verrechtlichung unserer Gesellschaft als Rahmenbedingung moderner Medizin, In Geschichte und Gegenwart 3/ 1996, pp. 131 e ss., 133. 19 Habermas, Acción comunicativa, II, pp. 506-507. 20 Pois eliminava todas as regulações jurídicas intermediárias. 21 Kleger, Lernfähige Demokratie und reflexiver Staat, In: Voigt (Hrsg.), Abschied vom Staat – Rückkehr zum Staat?, Baden-Baden 1993, pp. 443 e ss., 444. 22 Habermas, Acción comunicativa, II, pp. 509-510. 23 Habermas, Cardozo L. Rev. 17 (1995-1996), pp. 773 e ss., 775. 24 Conferir Boltanski/ Chiapello, El nuevo espíritu del capitalismo (trad. Pérez Colina/ Riesco Sanz/ Sánchez Cedillo) Madrid 2002, pp. 524-525. 18

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submetido a uma instrumentalização política e a certa trivialização moral , se converteu num mecanismo de direção e de planificação do quotidiano. E nessa 26 medida se “desjuridificava ”. O exemplo do Direito penal pode ser aqui significativo: frente ao Direito penal da pena retributiva, passou-se a propor o Direito intervencionista e asséptico da regulação das medidas de segurança, cuja gestão se pretendia remeter a burocratas da correção e do controle. 4. Por outro lado, o Direito interveio na sociedade e na vida, produzindo uma alteração de suas premissas básicas. Com efeito, este novo processo de juridificação – que na realidade se expressa melhor ao fazer alusão à estatalização (Verstaatlichung) e à proliferação legislativa (Vergesetzlichung) – resultava pouco flexível: padronizava relações vitais, com o que, ao não as contemplar em sua singularidade, gerava desigualdade. 5. Ademais, produziu um segmento de especialistas (técnicos do Direito, burocratas) 27 necessários para sua gestão . À burocratização e à juridicialização foi atribuído, então, um efeito de expropriação (neutralizadora) dos particulares no que se refere às suas próprias relações. E pôde ainda ser afirmado que um Direito distanciado (entfremdtes Recht) foi capaz de produzir uma abstração rígida e violenta das 28 relações sociais e humanas ; da economia e das relações de trabalho; da família e da escola; da medicina ou da solidariedade. Em síntese: que o Estado absorvia à sociedade, o público e ao privado, de modo a condicionar este à lógica daquele (ao poder e ao dinheiro). 6. A essa perspectiva poder-se-ia opor, certamente, que não se deve partir de uma concepção essencialista do político, do privado, do econômico ou do ordinário. Caberia acrescentar, ademais, que determinados atores sociais haviam mostrado um interesse na solução jurídica de seus conflitos privados, presididos pela 29 desigualdade, de modo a preferir relações despersonalizadas . Neste sentido, 30 também se tem feito referência certamente aos benefícios da juridificação . A partir de uma perspectiva um pouco distinta, mas convergente em essência, tem-se alegado a inevitabilidade da expropriação dos conflitos sociais, pois existem colisões irresolúveis no plano moral/ social que, sem embargo, podem ser resolvidas no

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Bock, MschrKrim 5/ 1986, pp. 290, 292. Aqui o significado da idéia de “desjuridificação” está associado à tradicional concepção do Direito enquanto mecanismo – único – de obtenção da justiça. 27 Seelmann, Rechtsphilophie, § 1 nº marg. 29; Bock, Geschichte und Gegenwart 3/ 1996, p. 135. 28 Seelmann, Rechtsphilophie, § 1, nº marg. 26; Teubner/ Zumbansen, Rechtsentfremdungen, Zeitschrift für Rechtssoziologie 21 (2000), pp. 189 e ss. 29 Para o mundo laboral, Blankenburg, Recht als gradualisiertes Konzept –Begriffsdimensionen um Verrechtlichung und Entrechtlichung, In Blankenburg/ Klausa/ Rottleuthner (Hrsg.), Alternative Rechtsformen und Alternativen zum Recht. Jahrbuch für Rechtssoziologie und Rechtstheorie, Bd. 6, Opladen 1980, pp. 83 e ss., 88; para âmbito privado, Berghahn, Verrechtlichung des Privaten – allgemeines Verhängnis oder Chance für bessere Geschlechtsverhältnisse?, In Kerchner/ Wilde, Staat und Privatheit, Opladen 1997, 189 e ss., 206 e ss., 210. 30 Conferir Schulze, Verrechtlichung – Deformation oder Performation?, exposição apresentada no seminário, Die Jurisprudenz zwischen Verrechtlichung und Rechtsferne der Alltagspraxis“, Düsseldorf, 17/ 18 de junho de 2005, pp. 12 e ss., 28 do manuscrito. 26

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plano “artificial” do Direito . Por isso, se faz uma valoração positiva da neutralização e da “artificialização” do conflito que ocorre no Direito, ao reconduzi-lo a seu procedimento, sua linguagem e seus recursos argumentativos. Adverte-se que deste modo, com efeito, também o libera da influência de amizades, clientelismo 32 etc. . 7. A perspectiva crítica, muito difundida, lamenta a perda de matizes que sofrem 33 uma relação social complexa quando reconduzidas à codificação jurídica . Que o Direito intervém em espaços nos quais ele não seria nem necessário nem sequer conveniente gera graves riscos tanto para a funcionalidade das estruturas relacionais pré-existentes em tais âmbitos como para a própria liberdade das 34 pessoas que nelas atuam . De acordo com Habermas, as estruturas pré-existentes, regidas por uma racionalidade comunicativa, seriam substituídas por outras, as do Direito, as quais são regidas pela razão instrumental. O Direito colonizaria o “munda da vida” em prejuízo de relações intersubjetivas e solidárias, assim como de soluções de conflitos que apenas se podem formalizar pagando o preço de sua 35 deformação . 8. Os efeitos da juridificação moderna podem ser expostos a partir de múltiplos exemplos. Assim, a juridificação do mercado se traduz em regulação estatal da economia. O Estado tem presença direta na economia como sujeito produtor de bens ou de serviços (setor público) quando aumenta sua dimensão intervencionista, fiscalizadora e prestacional. Mas é a própria vida o que se submete à regulação estatal. Assim, por exemplo, as relações familiares, a escola, a relação com o médico, que certamente têm um esqueleto jurídico, se abrem à intervenção burocrática e ao controle judicial, o que acaba produzindo disfunções no respectivo 36 contexto de ação integrado socialmente . No âmbito familiar podem se achar manifestações especialmente reveladoras do fenômeno. Por exemplo, a proliferação de contratos matrimoniais nos quais não se trata de configurar a construção de uma comunidade, senão de assegurar mediante regras jurídicas a “causa própria” de 37 cada um dos outorgantes . Mais além, todavia, se situa o Direito das chamadas técnicas de reprodução assistida, com suas projeções sobre a filiação e a dramática juridificação desta. A desnaturalização da relação entre pais e filhos que redunda em 31

Teubner/ Zumbansen, ZfRS 21 (2000), pp. 193-194. Teubner/ Zumbansen, ZfRS 21 (2000), pp. 190-191. 33 Conferir a descrição de Seelmann, Rechtsphilophie, München 1994, §1, nº marg. 21 e ss. 34 O exemplo de prevenção de riscos no trabalho pode ser útil para clarificá-lo: uma medida inicialmente protetora se converte, pouco a pouco, em um mecanismo por meio do qual os trabalhadores são submetidos a um controle e a uma violação de privacidade. Conferir Kleger, In Voigt (Hrsg.), Abschied, pp. 450-451; ver também Habermas, Cardozo L. Rev. 17 (1995-1996), pp. 778 e ss., a propósito dos problemas derivados do modelo de equiparação laboral entre homens e mulheres. 35 Habermas, Acción comunicativa, II, p. 245. 36 Ellscheid, Die Verrechtlichung sozialer Beziehungen als Problem der praktischen Philosophie, In Neue Hefte für Philosophie 17 (1979), pp. 37 e ss. 42 e ss., 44: sobre a concepção burocrática da intervenção jurisdicional. Os juízes, indica, não são sábios que procuram buscar com todas suas forças a melhor solução para a crise. 37 Conferir este e outros aspectos em Beck/ Beck-Gernsheim, El normal caos del amor. Las nuevas formas de la relación amorosa (trad. Schmitz), Barcelona 2001, p. 138 e ss., 217 e ss. 32

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coisificação dos filhos na seara dos processos judiciais se observa, mesmo assim, 38 no novo Direito de família (separação e divórcio ). Na escola, por sua vez, a juridificação constitui uma ameaça à liberdade pedagógica e à iniciativa do 39 professor . E riscos semelhantes são gerados para a relação médico-paciente no novo entorno do Direito das prestações sanitárias. Presidida inicialmente pela confiança e pelo abandono, de um lado, e pela dedicação, integrida e responsabilidade, por outro lado, sua juridificação massiva determina que essa relação passe a ser submetida a uma desconfiança calculada. Isso não implica diretamente uma destruição da relação em si. Contudo, o paciente visto como litigante determina o recurso à medicina defensiva. E esta redunda numa 40 coisificação do próprio paciente, que se vê intensificada pela burocracia sanitária . A introdução da coação e da ameaça degrada a interação, pois converte o outro em manipulável. 9. O delineamento crítico propõe, então, a volta às normas sociais, à racionalidade discursiva, a uma justiça desjuridificada e reconstrutiva. No âmbito do Direito penal, e segundo a conhecida expressão de Nils Christie, trata-se de expropriar o expropriador (o Estado) e devolver “seu conflito” (que chamamos delito) à 41 sociedade .

3. A opção pela desjuridificação

1. A reação à juridificação, que é como uma expropriação, é a desjuridificação (que deve ser entendida como desburocratização e deslegalização). Mas resulta utópico apresentá-la como uma panacéia. 2. Nesta conjuntura, afirma Habermas: “trata-se de impedir que os âmbitos sociais que dependem de modo funcionalmente necessário de uma integração social por meio de normas, valores e processos de entendimento, fiquem à mercê dos imperativos sistêmicos dos subsistemas Economia e Administração, que tendem à expansão em virtude de sua própria dinâmica interna, e que através do meio de controle ‘direito’ esses âmbitos acabam firmados sobre um princípio de socialização 42 que lhes resulta disfuncional ”. Contudo, isto nem sempre é factível. Por exemplo, no caso das prestações sociais, ausentes as condições da sociedade tradicional (parentesco, vizinhança etc.) assim como os pressupostos éticos e religiosos que a alimentavam (o cristianismo), a proposta de um retorno ao passado é questionável. Em relação a outro âmbito de possível juridificação, a mediação, isto é, um instrumento de Alternative Dispute Resolution, não é seguro que nela se logre um

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Beck/ Beck-Gernsheim, El normal caos, pp. 208 e ss., aludindo à necessária regulação jurídica da paternidade e da maternidade “pós-matrimonial”. 39 Acerca disso ver Habermas, Acción comunicativa, II, pp. 524 e ss.; 40 Bock, Geschichte und Gegenwart 3/ 1996, p. 140. 41 Christie, Conflicts as Property, British Journal of Criminology 1977, pp. 1 e ss. Sobre isso, Teubner/ Zumbansen, ZfRS 21 (2000), p. 190. 42 Habermas, Acción comunicativa, II, p. 527.

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melhor controle do abuso de poder . Talvez por isso é razoável buscar formas de compromisso nas quais a mediação possa atuar de maneira flexível e, ao mesmo tempo, se desevolva num limite de exigências da administração da justiça. Nesse sentido, como no anterior, trata-se, afinal, de que o Direito cumpra uma dupla 44 função: por um lado, de controle do poder ; por outro, de criação das condições positivas de atuação auto-responsável das pessoas. 3. Daí que, para alguns, a questão deva ser apenas a busca de alternativas dentro 45 do próprio Direito . Isto é, a busca de uma relativa desjuridificação em termos de subsidiaridade. Em alguns casos, isso se manifesta em que a garantia das condições-limite da resolução dos conflitos por parte dos prejudicados surge como alternativa preferível ao intervencionismo. Assim, no mundo dos negócios, diante dos que propõe, de algum modo, a substituição do Direito pelo modelo de autonormatividade representado pelos Códigos de Conduta, se alça a voz dos que propugnam a manutenção do controle jurídico, incorporando a este parâmetros 46 valorativos próprios da sociedade civil mediante as remissões correspondentes . 4. No âmbito da economia, produz-se a passagem de uma economia “dirigida” (ou intervida) a uma economia “contorlada”, na qual a privatização se vê acompanhada 47 de novas instituições de regulação, em situações de nítido formalismo . De todo modo, o limite do Estado regulador parece um Direito reflexivo, que estabelece um limite para a auto-reguação dos interventores. Não se trata de impor ordens ou proibições nem de incentivar e dar causa à própria atividade de moderação e 48 contenção dos interventores . Isso, em boa medida, mediante a remissão pública a formas de auto-regulação. A pretensão de melhor regulação, por adaptação às complexas circunstâncias da realidade, conduz precisamente ao aumento da auto49 regulação privada . Em definitivo, a regulação pública, ao invés de operar de modo direto, o faz mediante a regulação da auto-regulação ou, em todo caso, mediante o 50 enquadramento desta . 43

Jung, Mediation – ein Ansatz zu einer “Entrechtlichung sozialer Beziehungen”?, In Jung/ Neumann (Hrsg.), Rechtsbegründung – Rechtsbegründungen. Günther Ellscheid zum 65. Geburtstag, BadenBaden 1999, pp. 68 e ss. Mais bem parece que pode responder a razões de eficiência que favoreceriam ao poderoso. 44 Jung, In Jung/ Neumann (Hrsg.), Rechtsbegründung, pp. 72 e ss., 75. 45 Como assinala Bock, Geschichte und Gegenwart 3/ 1996, p. 140, haverá que aprender a conviver com a juridificação. 46 Fernández de la Gándara, Derecho, ética y negocios (discurso de abertura do curso 1993-1994), Alicante 1993, pp. 21, 23, 29. 47 Conferir, por exemplo, Braithwaite, The New Regulatory State and the Transformation of Criminology, In Garland/ Sparks (ed.), Criminology and Social Theory, New York, 2000, pp. 47 e ss., indicando, não obstante, que o novo modelo confia na autorregulação e em outras técnicas que substituem ao controle e ao mando direto. Sobre este último, conferir Shearing, Reinventing Policing: Policing as Governance, In AA.VV., Privatisierung staatlicher Kontrolle, Baden-Baden 1995, pp. 70 e ss. Ver também Loughlin/ Scott, The Regulatory State, In AA.VV., Developments in British Politics 5, New York 1997, pp. 205 e ss., 206-207. 48 Esteve Pardo, Autorregulación. Génesis y efectos, Cizur Menor 2002, p. 25. 49 Esteve Pardo, Autorregulación, pp.27-28. 50 Esteve Pardo, Autorregulación, p. 39. De forma detalhada, Darnaculleta i Gardella, Autorregulación y Derecho público: La autorregulación regulada, Madrid/ Barcelona 2005, pp. 37 e ss.

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5. Esta mudança de paradigma, sem embargo, não tem lugar em outros âmbitos de juridificação do mundo da vida. Pelo contrário, é melhor advertir que enquanto no mundo da economia ocorrem as referidas transformações, o mundo das relações interpessoais, em particular nas mais restritas destas, se vê imerso em um renovado processo de juridificação. Um processo intervencionista que, ao mesmo tempo, produz intensos efeitos de descontrução. É a isso que se dedicam as páginas seguintes.

4. Valoração dos diversos processos de juridificação e suas características

1. Ali onde funcionam os mecanismos de segurança cognitiva, isto é, naqueles âmbitos em que as expectativas dos intervenientes são a princípio cumpridas, o Direito não é necessário. Mas o Direito é também dispensável naqueles âmbitos regidos por uma normatividade social em que: a) a frustração de expectativas se estabiliza razoavelmente mediante os próprios recursos sociais, que regeneram a orientação e a confiança necessárias para a vida em sociedade; e b) esta 51 normatividade social cumpre com as exigências de legitimidade . Como assinala Seelmann, o Direito pressupõe um modelo de socialização no qual os indivíduos se relacionam entre si em uma contraposição potencial de intetresses e necessitam de 52 uma decisão neutra que ponha fim ao conflito . 2. Em outros termos, onde reinam a desconfiança e a desorientação não é necessário o Direito, salvo se a orientação existente responda a pautas ilegítimas. Quer dizer, se o sistema social funcionar, mas não responder a pautas de justiça. A regulação jurídica se orientaria, portanto, à criação de confiança e de legitimidade: de modo a conseguir a justiça mediante a juridificação. Que a coatividade estatal própria do jurídico pode reforçar a confiança de determinadas expectativas parece claro. Nem tão claro, porém, é que a juridificação produza imediatamente legitimidade. Na verdade, o Direito está submetido aos mesmos problemas de legitimidade que as normas sociais; certamente pode ocasionar um plus de 53 legitimidade formal (pelo procedimento ), mas não necessariamente de legitimidade material (isto é, de justiça). Ademais, o recurso ao Direito como produtor de confiança e legitimidade é inadequado, na medida em que haja alternativas merecedoras de ser consideradas (ou ainda que elas não existam). 3. A crítica à juridificação, que pode ser aceita em ampla medida, não deveria, pois, conduzir à negação absoluta da necessidade de regulações jurídicas adapatadas às necessidades dos tempos e, por isso, eventualmente expansivas. A contribuição da existência de regulações públicas à proteção do bem comum e dos direitos básicos das pessoas é evidente. Como são, também, os perigos da aparição de espaços 51

Ellscheid, Neue Hefte für Philosophie 17 (1979), p. 43, aludindo a que a intervenção jurídica na família requer o fracasso da lógica própria das relações de proximidade (amor, fidelidade, paciência, generosidade) assim como das instâncias socias de condução (pressão moral de parentes, vizinhos, amigos etc.) 52 Seelmann, Rechtsphilophie, § 1 nº marg. 47. 53 Habermas, Cardozo L. Rev. 17 (1995-1996), pp. 773 e ss., 784.

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livres de Direito em âmbitos que, no entanto, têm enorme incidência na vida social e estão sujeitos às dinâmicas de poder de grupos sociais. 4. A questão não é, pois, a juridificação em si, senão sua finalidade e sentido em um âmbito determinado e, caso os tenha, os mecanismos dos quais se serve. A primeira é uma questão de política jurídica ou de teoria social. A segunda, por sua vez, é substancialmente técnica. Assim, a juridificação pode carecer de sentido quando a intervenção jurídica não for adequada para a resolução do problema, ou for menos adequada. Do mesmo modo, também não se justificará quando seus efeitos negativos forem maiores do que os positivos. Em relação aos mecanismos de juridificação, estes podem não ser adequados quando não levarem em conta a realidade social sobre a qual se projetam. 5. Como assinala Ollero, “a peculiaridade da normatividade jurídica e a possibilidade de utilizar a força, não devem levar a uma regulação exaustiva da vida social, o que entraria em freqüente conflito com sua normatividade expontânea e provocaria um perigoso desgaste. Quanto à norma jurídica chega a asfixiar a espontaneidade da sociedade, esta será de imediato refém da queda de prestígio e capacidade de 54 obediência ”. A idéia é, portanto, aproveitar o potencial normativo da sociedade, respeitando-o e controlando-o; livrando-se da crença ingênua em uma harmonia 55 espontânea do entrecruzamento das forças sociais ; mas favorecendo que as instituições sociais sustentem a vida jurídica. 6. Na medida em que a juridificação sofre um nível mais intenso de institucionalização, deve ser valorada positivamente quando reforça instituições sociais consolidadas, seja mediante seu fomento, seja mendiante previsão de sanções para os riscos que as afetem. Por outro lado, nos âmbitos abertos a iniciativas sociais, a juridificação (desde fora e a priori) deve ser valorada negativamente na medida em que pode restringir ou formalizar excessivamente tais iniciativas. A regulação jurídica é indispensável somente em âmbitos novos, nos quais, junto à especial importância dos interesses em jogo, nota-se uma incapacidade para o desenvolvimento de uma normatividade social da densidade suficiente. Contudo, precisamente nestes âmbitos, convém alertar sobre a aparição de modelos de juridificação indiferente aos interesses regulados ou desconstrutora de instituições. 7. Diante do exposto, é inevitável emitir juízos diferenciados sobre os diferentes processos de juridificação. Inevitavlemente haverá processos de juridificação justificados e outros injustificados, necessários e desnecessários. A este respeito, convém considerar, ademais, por um lado, a dimensão instrumental e, por outro lado, a dimensão simbólica da juridificação. Por exemplo, uma regulação jurídica da prostituição geraria – ou ao menos se diz isso – o efeito instrumental de um maior controle dessa atividade, melhores condições de saúde etc. Mas, por sua vez, é inegável que produziria um efeito social-expressivo de aceitação. Algo especialmente grave, porque tal atividade compromete de modo sério a dignidade das pessoas. Daí que se deva considerar a opção alternativa: a proibição jurídica (inclusive jurídico-penal) da prostituição, em particular pelo que faz a seus usuários. 54 55

Ollero, Derecho y sociedad, Madrid 1973, pp. 111-112. Ollero, Derecho y sociedad, pp. 115-116.

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Algo que muitos contestam por entender que supõe uma ingerência do Estado na 56 esfera privada . O objetivo de determinar qual é a opção preferível: a ausência de regulação, a regulação ou a proibição põe em evidência as dificuldades de valoração 57 dos processos de juridificação . 8. Por isso, e ainda que certamente sem pretensão alguma de exaustividade, distinguirei cinco classes de processos de juridificação e alguns elementos para sua respectiva valoração: são as que denomino juridificação “protetora”; juridificação “emancipadora”; juridificação “simbólica”; juridificação vindicativa”; e juridificação “moralizanre”. 9. Boa parte dos processos de juridificação em curso tem – de modo real ou aparente – uma vocação protetora. A título de exemplo cabe aludir à intervenção do Direito como mecanismo de proteção frente aos novos riscos da técnica; e a intensa juridificação das respostas às diversas formas de violência (escolar, juvenil em geral – incivismo –, laboral – mobbing –, ou muito particularmente a violência contra as mulheres). Em boa medida trata-se aqui de que o Direito afronte as conseqüências do fracasso social (família, sistema educativo). Sem embargo, isso conduz o próprio Direito ao fracasso, na medida em que não tenha lugar uma juridificação atenta às raízes dos problemas, que passe a fomentar iniciativas sociais neste ponto. 10. Ademais, alguns dos processos de juridificação, que aparentemente surgem com uma vocação protetora, na prática produzem o efeito de criação de espaços de desproteção. Uma nova juridificação está a determinar, com efeito, que âmbitos tradicionalmente sujeitos à proteção do Direito se remetam à moral individual, enquanto a intervenção neles se regula basicamente como um “risco permitido” de natureza procedimental. Como exemplo, pode-se aludir aqui à legislação em matéria de investigação biomédica. 11. A juridificação “emancipadora” (que também poderia se caracterizar como juridificação do desejo) expressa o processo atual de dissolução do conceito tradicional de direito subjetivo. Leis como as de divórcio, de técnicas reprodução assistida, de uniões homossexuais e de troca de sexo demonstram esse fenômeno; mas também as disposições relativas à expensão da pílula do dia seguinte a menores, entre outras, poder-se-iam situar no mesmo limite. De todas elas, caberia afirmar que marcam a transformação do processo de institucionalização e desinstitucionalização social. Mas isso seria equivocado. Não se está a produzir um fenômeno de mudança institucional, senão apenas um processo desconstrutivo. As “novas” instituições (os novos modelos de família, por exemplo) não são, na realidade, instituições, pois carecem de algumas das notas características destas, como a estabilidade e a subtração à vontade cambiante dos indivíduos que nela ingressam. Portanto, o Direito que fomenta tais fenômenos, ao mesmo tempo em que – por exemplo – torna impossível contrair um matrimônio civil juridicamente indissolúvel, se manifesta como um instrumento de desconstrução social. Do mesmo modo como a juridificação liberal havia rompido os vínculos econômicos, esta nova 56

Conferir a descrição de modelos e uma proposta regulacionista em Tamarit Sumalla/ Torres Rosell/ Guardiola Lago, ¿Es posible una política criminal europea sobre prostitución?, Revista de Derecho y proceso penal 15, 2006, pp. 197 e ss., 216 e ss. 57 Conferir Rey Martínez/ Mata Martín/ Serrano Argüello, Prostitución y Derecho, Cizur Menor 2004.

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onda juridificadora procede à ruptura dos vínculos pessoais . A juridificação emancipadora aparece, assim, a serviço da produção de um modelo social atomizado, ou de desvinculação, em que o Estado faça frente tão-só aos indivíduos isolados. 12. À classe da juridificação simbólica pertencem, por exemplo, seguramente as leis de paridade ou de discriminação positiva, que pretendem compensar discriminações 59 anacrônicas de cunho pejorativo . E não muito distante desta classe é, depois de tudo, a juridificação vindicativa. Esta, com efeito, pretende a conformação de um Direito sobre a história, cujo conteúdo acaba por ser substancialmente simbólico. Desta forma nas leis de memória histórica, de superação (jurídica) do passado ou contra a impunidade. 13. Especial interesse deve ser atribuído, contudo, à juridificação moralizante, cujas diversas manifestações jogam muita luz sobre o papel que o Direito e o Estado estão assumindo em um novo modelo social atual. Com efeito, por um lado, o Direito aparece como o veículo de uma nova moral assumida pelo Estado como própria e que este pretende inculcar nos cidadãos (constituindo-se, assim, em um paradoxo gestor da moral). Expressões alarmantes desta moral estatal são as disposições proibitivas em matéria de tabaco ou de álcool para menores de dezoito anos, coetâneas, por exemplo, com a atitude complacente frente às relações sexuais 60 precoces . Ou as disposições proibitivas de “hábitos insensatos” (fumar em lugares fechados, circular sem capacete ou sem sinto de segurança) que convivem com outras crescentemente orientadas à disponibilidade da vida em contextos “eutanásicos”. 14. A outra dimensão da juridificação moralizante é a conformação dos conteúdos do Direito penal como critérios morais, fontes de orientação moral. Num mundo em que as dificuldades de orientação cognitiva são cada vez maiores, parece razoável a busca de elementos de orientação normativa. Mas uma moral pós-convencional, na qual o indivíduo, desligado da tradição, se erige em juiz supremo da qualidade moral de seus atos, não assegura o cumprimento efetivo de seus preceitos. A certeza requer que normas moralmente válidas se convertam em normas legalmente 61 vinculantes . E, dentro destas, o Direito penal ocupa um lugar especialmente importante. Com efeito, em uma sociedade na qual falta consenso acerca de valores positivos, parece que ao Direito penal corresponde a missão fundamental de gerar 62 consenso e reforçar as comunidades . 58

E a aparição de “leis de dependência” não faz nada senão o confirmar. E muitas disposições penais. 60 Que se reflitam nas diretrizes para os livros de texto em matéria de “educação” sexual ou, agora, de educação para a cidadania, assim como nas normas sobre instalação de máquinas de preservativos em escolas, bibliotecas etc. 61 Conferir esta caracterização do ponto de vista de Habermas em García Amado, Habermas y el derecho, In García Amado (coord.), El Derecho en la Teoría Social, Madrid 2001, pp. 357 e ss., 381382. 62 Kunz, Liberalismus und Kommunitarismus in Straftheorie und Kriminalpolitik, In Internationale Perspektiven in Kriminologie und Strafrecht. Festschrift für G. Kaiser zum 70 Geburtstag, Berlin 1998, tomo I, pp. 859 e ss, 864, o que resta como conseqüência da insegurança nas expectativas, assim como da perda de orientação social e da inoperatividade de uma moral vinculante de modo geral. 59

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15. Sem embargo, este modelo de juridificação tem conseqüências óbvias. Que tenda, em particular, a se converter em excepcional o que uma conduta, que não seja contrária ao Direito, seja socialmente reprovada como imoral, adotando-se 63 contra ela as reações sociais correspondentes . Isso, de início, tem o efeito de 64 favorecer o próprio desenvolvimento da delinquência . A juridificação moralizante é, pois, em si mesma criminógena. Ademais, é discutível sua autêntica capacidade 65 orientadora, dada a mutabilidade do Direito positivo . Isso por não estar entre as limitações do Direito para chegar a seus destinatários e concordar com todos os 66 setores da vida .

5. Balanço

1. Vivemos em um novo e intenso processo de juridificação. Este processo se explica, seguramente, por uma situação de desarme social – e de crise – no mundo das relações interpessoais estreitas (o que não se dá, em contrapartida no mundo econômico dos contatos mais anônimos ou estereotipados). Este desarme convive com uma intensa fé no Estado e uma confiança desmedida na capacidade de rendimento do Direito. 2. Neste contexto, deve-se propor o acometimento de um processo de sucessiva desjuridificação e rejuridificação. Em primeiro lugar, cabe modificar as leis que estão impulsionando os processos de desinstitucionalização. Imediatamente, juridificar o apoio às iniciativas e instituições sociais mediante leis de proteção e fomento que respeitem o princípio de subsidiariedade. Frente a um Direito que coloniza, tratar-seia de propor um Direito que abriria caminhos ou, ao menos, que não colocaria obstáculos à emergência: isto é, que propiciaria a emergência do especificamente humano mediante a liberdade criadora, a responsabilidade cívica e a personalização dos encargos sociais. Em uma palavra, a intervenção na tarefa comum a partir das 67 intervenções concertadas das pessoas em termos de solidariedade . Deste modo, trata-se de conseguir uma revitalização da sociedade civil (Zivil-, Bürgergesellschaft), com o fim de que esta alcance um novo protagonismo.

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E desenvolvendo-se a correspondente consciência individual de culpa. Como destaque da denominada “teoria institucional da anomia”, uma das causas do aumento da delinqüência é a preeminência da economia e a relativa impotência e desvalorização das instituições não econômicas, como a família, a educação, a religião etc. Conferir Messner/ Rosenfeld, Crime and the American Dream, 2ª edic., 1997. 65 Não se pode pretender a mesma vinculação objetiva e obrigação interna que outras normas (como os dez mandamentos). Como assinala Roellecke, Gesetz in der Spätmoderne, KritV 1998-2, pp. 241 e ss., 248 e ss., a mutabilidade do Direito positivo não é compatível com a idéia de “personalidade” ou de “caráter”. 66 Frenzel. Disponível em: www.jurawelt.com/artikel/9918, p. 9. 67 Llano, ¿Emergencia o colonización? In: El mismo, El diablo es conservador, Pamplona 2001, pp. 173 e ss., 177, 181, 183. 64

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3. Isso se deve marcar num processo de juridificação em sentido forte (ou 68 “justificação ”) do Direito positivo. O que, noutros termos, significa que este, além das legitimações procedimentais ao uso, oriente de fato seus conteúdos ao serviço da justiça (bem comum). Para isso, o Direito deve se libertar do poder e do 69 dinheiro , quando achar sua autêntica dimensão no conjunto das normas sociais. Frente à visão do Direito como expressão de dominação, trata-se trata de conformálo como o apoio do dominado que busca transformar o poder em Direito. Isto é, 70 enfim, como poder verdadeiramente legitimado .

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A expressão foi proposta pelo Prof. Dr. Rafael Domingo no debate que se seguiu à exposição. Saindo, portanto no passo da crítica do movimento dos Critical Legal Studies: conferir a descrição de Seelmann, Rechtsphilophie, §1 nº marg. 30-31. 70 Ollero, Derecho y sociedad, p. 107. 69

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