Tradução - A metafísica dos direitos humanos (Carlos Bernal Pulido)

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PANÓPTICA A METAFÍSICA DOS DIREITOS HUMANOS

Carlos Bernal Pulido Universidade Externado de Colômbia (Bogotá)

1. INTRODUÇÃO Em Direitos humanos sem metafísica?, Robert Alexy sustenta como tese principal que os direitos humanos são direitos universais, fundamentais, abstratos, válidos e morais. Neste sentido, defende que a existência destes direitos depende de que sejam fundamentáveis e que isto parece prima facie possível de um ponto de vista religioso, biológico, intuitivo, consensual, instrumental, cultural, explicativo e existencial. Sem embargo, Alexy se envereda definitivamente por uma fundamentação que combina características explicativas e existenciais. Assinala, também, que estes direitos implicam uma metafísica construtiva, que pode ser entendida da seguinte maneira: os direitos humanos são conteúdos proposicionais ou semânticos que se situam num terceiro reino à la Frege, isto é, um reino em que existem objetos abstratos independentes da mente e que, como tal, não se situam no reino psicológico, de um lado, mas que, por outro, tampouco são objetos pertencentes ao reino do físico ou natural. Neste sentido, os direitos humanos são o significado das disposições que os estabelecem e são irredutíveis tanto a objetos naturais como a objetos psicológicos. Ademais, enquanto significados de expressões, os direitos humanos e sua fundamentação explicativa e existencial pressupõem o discurso e a participação de todos os seres humanos. Por esta razão, sua ontologia também pressupõe a ontologia básica do discurso, vale dizer, a existência de um conjunto de pessoas capazes de fazer afirmações com liberdade e igualdade, de criticar as afirmações que fazem os demais e de argumentar a favor de e contra as próprias afirmações e as afirmações dos demais. Esta colocação de Alexy me desperta todas as possíveis simpatias. No entanto, no meu modo de ver, constitui-se apenas como uma proposta de desenvolvimento de uma ontologia para os direitos humanos, que ainda deixa muitas perguntas sem resposta. O objetivo deste Panóptica, Vitória, vol. 7, n. 1 (23), 2012 ISSN 1980-7775

16 texto é aprofundar em algumas das possíveis questões que esta ontologia suscita. Como é bem sabido a metafísica, entendida como ontologia, é um ramo da filosofia que questiona sobre o que é o que existe, quais são as propriedades daquilo que existe e de que maneira se estruturam tais propriedade naquilo que existe. Pois bem, em relação à ontologia dos direitos humanos cabe perguntar que tipos de entidades compõem aquilo que denominamos direitos humanos, que propriedades revestem essas entidades e qual é a estrutura com que essas propriedades se organizam para conformar tais entidades. Este texto se dedica a responder estas interrogações, mas apenas enquanto referentes à acepção jurídica do termo direitos humanos, é dizer, entendidos como direitos do indivíduo garantidos pelos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Para começar, cabe dizer que os direitos humanos são uma espécie do gênero direitos jurídicos subjetivos. Neste sentido, os direitos humanos são direitos jurídicos subjetivos cuja differentia specifica assenta-se em seu caráter de direitos humanos. A formulação de um conceito de direitos humanos deve passar, portanto, em primeiro lugar, pelo entendimento do conceito de direitos jurídicos subjetivos e, em segundo lugar, pela identificação de quais são as propriedades constitutivas do caráter de direitos humanos dos direitos humanos.

2. O CONCEITO DE DIREITOS SUBJETIVOS De acordo com as regras que subjazem ao uso linguístico da expressão “direitos jurídicos subjetivos”, estes devem ser entendidos como direitos conferidos a seus titulares pelas normas jurídicas, vale dizer, pelas normas que integram um determinado ordenamento jurídico. Deste modo, se alguém aduz com razão que é o titular de um direito jurídico subjetivo, é porque no ordenamento jurídico tem validade uma norma jurídica que lhe confere o direito. Em alguns idiomas como o castelhano, o alemão, o italiano e o francês, é necessário se referir a estes direitos com o qualificativo “subjetivos” para denotar sua alusão a posições jurídicas atribuídas a um sujeito e para diferenciar com o conceito objetivo de

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17 direito, mediante o qual se faz referência aos sistemas ou ordenamentos jurídicos como um todo1. Os direitos jurídicos subjetivos suscitam interessantes perguntas que os têm situado no centro de diversas polêmicas. A fim de esclarecer o conceito de direitos jurídicos subjetivos, aqui interessam somente três questões. Em primeiro lugar, convém perguntar em que acepções se utiliza a expressão “direito” quando se faz referência aos direitos jurídicos subjetivos. Em segundo lugar, se coloca a questão de se todos os direitos jurídicos subjetivos têm a mesma estrutura ou se existem várias classes de direitos jurídicos subjetivos. Como se verá em seguida, a resposta à primeira pergunta conduz à diferença entre disposição, norma e posição jurídica. A resposta à segunda questão conduz à distinção entre diversas classes de posições jurídicas.

2.1. DISPOSIÇÃO, NORMA E POSIÇÃO Quem utiliza a expressão direito, no sentido dos direitos jurídicos subjetivos, pode fazê-lo pelo menos em três diferentes acepções com as quais pode se referir pelo menos a três coisas distintas: à disposição jurídica que constitui a ancoragem do direito nas fontes do sistema jurídico, à norma jurídica que estabelece o direito e que se deriva interpretativamente da disposição jurídica, o ao direito em sentido estrito que, nos altares da clareza, convém chamar posição jurídica2. Refere-se a uma disposição jurídica quem, por exemplo, usa o conceito de direito no seguinte enunciado: “O direito de associação é o direito protegido pelo artigo 16.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos”. As disposições jurídicas são os enunciados pertencentes às fontes do direito que estabelecem os direitos jurídicos subjetivos. Por causa de sua redação lapidar, as disposições jurídicas apresentam um alto grau de indeterminação

1 Esta ambiguidade das palavras “direito”, “derecho”, “Recht”, “diritto” e “droit” não se apresenta em idiomas como o inglês, em que a palavra “law” expressa o sentido objetivo do termo “direito” e a palavra “right” expressa seu sentido subjetivo. 2 Sobre a distinção entre disposição, norma e posição como elementos dos direitos fundamentais, ver: R. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, trad. de C. Bernal Pulido, 2. ed., Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2. ed., 2008, p. 214 e ss.

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18 linguística3. Como consequência da indeterminação linguística, de cada disposição podem-se derivar interpretativamente várias normas jurídicas. Entendidas de acordo com o conceito semântico de norma4, as normas dos direitos são o conjunto de significados prescritivos das disposições jurídicas que se obtêm pela interpretação5. Este conjunto de significados se expressa mediante proposições prescritivas que atribuem aos sujeitos de direito diversas posições jurídicas. Refere-se a uma norma que estabelece um direito quem, por exemplo, sustenta que “o direito de associação proíbe aos estados que tenham subscrito a Convenção Americana sobre Direitos Humanos impor injustificadamente aos cidadãos a afiliação a determinadas associações”. Esta proibição é o conteúdo de uma norma, que se deriva interpretativamente do artigo 16.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e que estabelece uma posição jurídica cujo titular é o indivíduo e cujo destinatário é o Estado.

2.2. AS POSIÇÕES JURÍDICAS Finalmente, as posições jurídicas são relações entre um ou vários sujeitos jurídicos6. Com bastante frequência, quando as pessoas aduzem ter direitos, fazem referência a posições jurídicas. Isso ocorre, por exemplo, quando alguém aduz ser o titular do direito de associação. Na teoria jurídica e na teoria ética se tem proposto variados sistemas de posições jurídicas. Bem conhecidos são os sistemas expostos por J. Bentham7, W. N. Hohfeld8 e Kanger9 (logo Aqui se entenderá, de acordo com T. Endicott, que a indeterminação linguística é uma “falta de clareza no significado das expressões lingüísticas que pode gerar uma indeterminação jurídica”. Por indeterminação jurídica se entende uma situação na que uma pergunta jurídica não tem um única resposta correta. Ver: T. Endicott, “Linguistic Indeterminacy”, Oxford Journal of Legal Studies, vol. 16, 1996, p. 669. 4 Sobre o conceito semântico de norma, ver: R. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, op. cit., p. 33 e ss. 5 Sobre a distinção entre disposição jurídica e norma jurídica, ver: R. Guastini, Le fonti del diritto e l’intepretazione, Milano, Giuffré, 1993, p. 17 e ss. 6 Sobre o conceito de posição jurídica, ver: L. Lindahl, Postion and Change. A Study in Law and Logic, trad. de P. Needham, Dordrecht, Reidle, 1977, primeiro capítulo. 7 J. Bentham, An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, London, Free Press, 1970, p. 299 e ss.; Idem, Of Laws in General, London, Athlone Press, 1970, p. 15. Este dilema foi bem difundido por H. L. A. Hart em: “Bentham on Legal Rights”, in A.W. B. Simpson (coord.), Oxford Essays in Jurisprudence, Second Series, Oxford, Oxford University Press, 1973, p. 171-201. 8 W. N. Hohfeld, Fundamental Legal Conceptions as Applied in Judicial Reasoning, New Haven, Yale University Press, 1919. 3

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19 refinado por Lindahl10). Um estudo crítico destes sistemas ultrapassa os propósitos deste texto. Aqui basta assinalar que as principais posições jurídicas que existem nos sistemas jurídicos e que constituem a parte essencial das obras dos autores mencionados são o direito a algo, a liberdade, a competência e a imunidade. Estas posições jurídicas podem ser definidas da seguinte forma, de acordo com aquilo que atribuem ao titular e ao destinatário das mesmas: - O direito a algo11 é uma posição jurídica em que o titular (doravante: T) tem um direito a que o destinatário (doravante: D) faça ou omita algo (doravante: X). De maneira correlata, D tem um dever de fazer ou omitir X frente a T; - A liberdade é uma posição jurídica em que T é livre diante de D para fazer X. De maneira correlata, D carece de um direito a algo para impedir que T faça ou omita X; - A competência é uma posição jurídica em que mediante uma ação ou um conjunto de ações de T pode-se modificar a situação jurídica de D. De maneira correlata, D tem uma sujeição. D está sujeito a que sua situação jurídica possa se modificar em consequência da ação ou das ações de T; - A imunidade é uma posição jurídica em que a situação jurídica de T não pode ser modificada pelas ações de D. De maneira correlata, D carece de competência para modificar, mediante suas ações, a situação jurídica de T.

2.3. O DIREITO JURÍDICO SUBJETIVO COMO UM TODO Os direitos jurídicos subjetivos são, então, um todo, composto por uma disposição jurídica12, à que se junta interpretativamente um conjunto de normas jurídicas, que por sua vez estabelece uma frente de posições jurídicas de direitos a algo, liberdades, competências e imunidades e seus correlativos: deveres, não-direitos, sujeições e não-competências. Sempre S. Kanger, “New Foundations for Ethical Theory”, in R. Hilpinen (coord.), Deontic Logic: Introductory and Systematic Readings, Dordrecht, Kluwer, 1971, p. 36-58. 10 L. Lindahl, Postion and Change. A Study in Law and Logic, op. cit. 11 Ver, para o conceito de direito a algo: R. Alexy, Teoría de los derechos fundamentales, op. cit., p. 163. Este conceito é idêntico ao conceito anglosaxão de “claim right”. 12 É possível, então, que, sobretudo nos sistemas jurídicos em que a jurisprudência ou o costume sejam fontes relevantes do direito, existam direitos jurídicos subjetivos como um todo sem que exista uma disposição jurídica que os fundamente. Neste caso, seu fundamento estará em seu reconhecimento jurisprudencial ou consuetudinário. A jurisprudência ou o costume reconhecerão o caráter vinculante das normas que estabelecem os direitos jurídicos subjetivos de que se trate. 9

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20 que alguém se refere a um direito subjetivo como um todo, faz alusão ao conjunto de todos estes elementos. Deve-se assinalar que entre as posições jurídicas e as normas jurídicas existe um nexo de implicação necessária. Se uma posição jurídica existe, então deve ter validade uma norma que a estabeleça13. Os direitos a algo, deveres, liberdade, não-direitos, competências, sujeições, imunidades e não-competências estão estabelecidos por mandatos, proibições ou permissões contidos em normas jurídicas. Por sua vez, as normas jurídicas são estatuídas ou se juntam interpretativamente às disposições que pertencem às fontes do direito14. As normas jurídicas expressam o dever ser que tais disposições estabelecem.

3. O CARÁTER DE DIREITOS HUMANOS DOS DIREITOS HUMANOS Dito isso, deve-se agora perguntar qual é a differentia specifica dos direitos humanos? O que os caracteriza como uma espécie dentro do gênero dos direitos jurídicos subjetivos? Quais são as propriedades suficientes, as propriedades necessárias ou as propriedades suficientes e necessárias para que um direito jurídico subjetivo possa ser considerado como um direito humano, isto é, quais são as propriedades essenciais dos direitos humanos? Os candidatos podem contar com propriedades essenciais dos direitos humanos de variada natureza: formal e material.

3.1. PROPRIEDADES FORMAIS Para começar, aparecem certas propriedades de natureza formal. No caso dos direitos humanos, duas são as propriedades formais mais aludidas. Linguisticamente já é comum denominar direitos humanos apenas os direitos atribuídos aos indivíduos nos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos, dentro do sistema das Nações Unidas, o

Ver: H. Kelsen, Teoría pura del derecho, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1994, p. 121. Sobre o conceito de adscrição interpretativa, ver: C. Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, 3. ed., Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, primeiro capítulo. 13 14

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21 sistema do direito internacional humanitário e os três sistemas regionais, vale dizer, o sistema europeu, o interamericano e o africano. Conforme este uso linguístico – adotado neste texto – a locução apropriada para os direitos protegidos pela constituição dentro dos estados é a de direitos fundamentais. Se é assim, então dois são os candidatos mais representativos como propriedades formais dos direitos humanos: (i) a inclusão do direito em um dos instrumentos convencionais pertencentes ao sistema de proteção dos direitos humanos das Nações Unidas, ou pertencentes ao direito internacional humanitário, ou pertencente a algum dos três sistemas regionais, isto é, o europeu, o interamericano e o africano (doravante, por questão de brevidade: instrumentos internacionais sobre direitos humanos); e (ii) o reconhecimento do direito pela jurisprudência sobre os direitos humanos que é ditada pelos órgãos jurisdicionais ou quase-jurisdicionais competentes, e que pertencem aos sistemas de proteção dos direitos humanos antes mencionados, assinaladamente, a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas e os Tribunais Europeu e Interamericano de Direitos Humanos. É necessário deter-se, em seguida, sobre cada uma destas propriedades.

3.1.1. A inclusão do Direito nos instrumentos internacionais sobre Direitos Humanos Em relação a esta propriedade surgem três possibilidades: ela pode ser considerada como uma propriedade suficiente e necessária, como uma propriedade necessária ou apenas como uma propriedade suficiente. Caso seja considerada como uma propriedade suficiente e necessária, quer dizer, então, que um direito jurídico subjetivo seria um direito humano se e somente se a disposição que o estabelece estivesse incluída dentro de um instrumento internacional sobre direitos humanos. Em outras palavras, os direitos humanos seriam aqueles e apenas aqueles que aparecem nos instrumentos internacionais sobre direitos humanos. Mesmo assim, todos os direitos incluídos em tais instrumentos teriam o caráter de direitos humanos. A favor desta interpretação pode-se dizer, por um lado, que ela daria certeza absoluta sobre quais são os direitos humanos, e, por outro, reconheceria a autoridade dos estados, que, ao

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22 subscrever os convênios internacionais sobre direitos humanos, têm estabelecido com autoridade o conjunto destes direitos. Contudo, esta interpretação não parece acertada. Há pelo menos dois argumentos que vão de encontro a ela. Em primeiro lugar, existem, desde logo, instrumentos internacionais que, ainda que não sejam diretamente instrumentos internacionais de direitos humanos, estabelecem direitos humanos. Em segundo lugar, do ponto de vista teórico, sempre é possível perguntar se acaso no conjunto dos instrumentos internacionais sobre direitos humanos falta algum direito humano. Enunciados como, por exemplo: “a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (x) é incompleta porque não contém o direito humano a x” tem pleno sentido. Isso não seria assim se a única propriedade definidora dos direitos humanos fosse a pertença de um direito às normas convencionais internacionais sobre direitos humanos. Portanto, estas razões fazem com que tampouco seja correto considerar a propriedade referida à pertinência de um direito aos instrumentos internacionais sobre direitos humanos como uma propriedade (somente) necessária para que dito direito seja um direito humano. A consideração desta propriedade como uma propriedade necessária implicaria que para que um direito fosse considerado como um direito humano seria imprescindível que fosse enumerado dentro de algum dos instrumentos internacionais sobre direitos humanos (ainda que não se tratasse também de uma propriedade suficiente, seria, então, possível que alguns dos direitos que aparecem em ditos instrumentos não pudessem ser considerados como direitos humanos). Pois bem, cabe dizer que sempre é possível que um direito que cumpra com alguma propriedade essencial formal ou substancial das que aqui se mencionou possa ser considerado como um direito humano apesar de não estar incluído em um instrumento internacional sobre direitos humanos. O que parece plausível é a afirmação segundo a qual a propriedade referente à pertença de um direito aos instrumentos internacionais sobre direitos humanos é um critério suficiente para que dito direito deva ser considerado como um direito humano. Dois argumentos respaldam esta afirmação. O primeiro alude à autoridade dos estados para estabelecer os direitos humanos no plano internacional. Os estados estão revestidos de suficiente autoridade para catalogar como direitos humanos os direitos que considerem que devam ter Panóptica, Vitória, vol. 7, n. 1 (23), 2012 ISSN 1980-7775

23 este status dentro do ordenamento jurídico internacional e que devem gozar da proteção reforçada que é característica deste tipo de direitos. Se os estados têm optado por brindar este status e esta proteção reforçada a algum direito específico, não se pode passar por cima nem emendar tal decisão soberana. O segundo argumento deriva do princípio de interpretação ampla dos direitos humanos. Segundo este princípio, os direitos humanos devem ser interpretados (ao menos prima facie) de maneira ampla. Isto quer dizer que se um direito subjetivo revista pelo menos uma propriedade para que seja considerado como um direito humano, assim deve ser considerado15. Neste sentido, todos os direitos subjetivos que aparecem nos instrumentos internacionais sobre direitos humanos têm pelo menos uma propriedade para ser considerados como direitos humanos, a saber, a propriedade formal de pertencer a um de tais instrumentos internacionais.

3.1.2. O reconhecimento do Direito pela jurisprudência sobre Direitos Humanos Também é uma propriedade suficiente, mas não necessária, dos direitos humanos, o fato de estarem reconhecidos na jurisprudência sobre direitos humanos, isto é, aquela que produzem os órgãos quase-jurisdicionais como a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas ou os órgãos jurisdicionais como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos de Estrasburgo ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos de São José da Costa Rica. Como já se antecipou, as disposições que estabelecem os direitos humanos se caracterizam por sua indeterminação. A indeterminação não é uma propriedade exclusiva destas disposições, mas um fenômeno generalizado na linguagem, que afeta todo tipo de enunciados. A indeterminação se apresenta a cada vez que um enunciado – as disposições que estabelecem os direitos humanos são enunciados – não explicita exaustivamente o conjunto de seus significados e, portanto, gera incerteza acerca de se um ou vários significados específicos podem lhe ser atribuídos.

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Ver: C. Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, op. cit., p. 621 e ss.

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24 A indeterminação que afeta em geral os enunciados recebe o qualificativo de indeterminação semântica, porque se projeta sobre o significado do enunciado. A indeterminação que caracteriza as disposições dos direitos humanos é uma espécie de indeterminação semântica denominada indeterminação normativa. Esta denominação se deve a que as disposições dos direitos humanos são enunciados aos quais se atribui uma pluralidade de significados normativos. Como consequência da indeterminação normativa, a toda disposição que estabelece um direito humano pode-se juntar uma multiplicidade de normas e de posições que não são explicitamente reconhecidos na disposição como tal. A indeterminação normativa se apresenta cada vez que uma disposição jurídica não explicita de maneira exaustiva o conjunto de seus significados normativos e, por conseguinte, impede ao intérprete conhecer a priori – ou seja, antes de uma fundamentação, pela simples leitura do texto jurídico – se uma ou várias normas ou posições podem ser consideradas como normas ou posições estabelecidas pela disposição. As disposições dos direitos humanos sofrem de indeterminação normativa. A indeterminação normativa de uma disposição de um direito humano pode ser examinada em abstrato e em concreto. No nível abstrato questiona-se se o texto de certa disposição permite ao intérprete conhecer a priori todas e cada uma das normas que estatui. De maneira categórica, pode-se asseverar que, deste ponto de vista, por sorte não muito relevante na prática, todas as disposições de direitos humanos são indeterminadas. Nenhuma disposição de direito humano, por mais específica que pareça, permite conhecer a priori todas e cada uma das normas que estatui direta e indiretamente. Quase todas as normas estatuídas indiretamente resultam não apenas do expressado pelo texto da disposição, mas também de outras premissas que complementam ao texto em sua interpretação. Ademais disso, a indeterminação das disposições dos direitos humanos também pode ser examinada em concreto. O questionamento que se coloca neste nível, o mais relevante na prática, é se o texto de uma disposição de um direito humano permite reconhecer a priori – sem necessidade de uma fundamentação explícita – se certa norma relativa a um direito humano vale como uma norma estatuída por aquela ou se certa posição relativa a um direito humano pode ser considerada como humanamente válida do ponto de vista de certo sistema de proteção dos direitos humanos.

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25 É preciso reconhecer que, por causa da indeterminação normativa – em abstrato e em concreto – das disposições que estabelecem os direitos humanos, faz-se imprescindível atribuir à jurisprudência sobre os direitos humanos a competência para reconhecer direitos humanos adscritos ou implícitos.

3.1.3. Conclusão em relação às propriedades formais Como conclusão do que até aqui foi dito, pode-se assinalar que um direito jurídico subjetivo deva ser considerado como um direito humano sempre que tiver pelo menos uma das seguintes propriedades formais: que esteja estabelecido no texto de um instrumento internacional sobre direitos humanos ou que esteja reconhecido como um direito humano pela jurisprudência.

3.2. PROPRIEDADES MATERIAIS É preciso advertir que as propriedades formais não bastam para definir o conceito de direito humano. Pense-se no seguinte. Sempre se pode perguntar se as normas convencionais reconheceram todos os direitos humanos ou se há alguns direitos humanos que ainda devem ser incluídos. Para responder esta pergunta é necessário valer-se de um conceito material dos direitos humanos. Então, surge a pergunta: que propriedades definem os direitos humanos de um ponto de vista material? Esta pergunta só pode ser respondida a partir de uma concepção filosófico-política do indivíduo e do indivíduo na sociedade. Do ponto de vista material, os direitos humanos constituem um dos principais eixos da relação entre o indivíduo e a comunidade política. Desde sua invenção como categoria jurídica, os direitos humanos têm desempenhado a função de limitar as intervenções do poder do Estado na liberdade privada, fundamentar subjetivamente o exercício da participação democrática e igualar a situação jurídica das

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26 pessoas no âmbito público16. A isto se adiciona que, por trás do advento do Estado social, os direitos humanos também assumiram o papel de garantir a provisão de um mínimo existencial e de promover a igualdade fática. Em razão dos direitos humanos, o indivíduo afirma-se dentro da comunidade e diante dela como um sujeito livre, autônomo, capaz de se determinar pública e privadamente e titular de certos interesses e necessidades, cuja proteção e satisfação fundamentam a própria existência da comunidade política, e do Estado, que é sua institucionalização jurídica. Correlatamente, para a comunidade política, os direitos humanos são, por sua vez, seu motor e seu freio, sua razão originária, a base de sua ação e o limite que impede as atuações abusivas e desproporcionais. Tal é a importância dos direitos humanos na articulação destas relações entre o Estado e o indivíduo que a comunidade internacional se converte em inspetora e garantidora de seu respeito. Deve-se observar que esta relação entre o indivíduo e a comunidade política surge já no plano moral da filosofia política e dali se projeta para o âmbito jurídico. Os direitos humanos do plano internacional não são nada distintos de uma institucionalização dos direitos humanos concebidos nas teorias filosófico-políticas no âmbito do direito internacional17. Na história recente da filosofia política do mundo ocidental existem pelo menos três diferentes concepções morais do indivíduo, ou com maior precisão – dado que se fala no âmbito moral e jurídico – da pessoa, a saber: a liberal18, a democrática19 e a do Estado social20. Em cada uma destas três concepções, o indivíduo aparece investido de diversas atribuições que lhe são inerentes e indispensáveis para seu desenvolvimento vital e que, portanto, são dignas de reconhecimento nos instrumentos convencionais sobre direitos humanos. É necessário estudar estas três concepções.

Ver: M. Stolleis, Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland, Münch, Beck, 1992, t. II, p. 114 e ss. R. Alexy, “Die Institutionalisierung der Menschenrechte im demokratischen Verfassungsstaat”, in S. Gosefan und G. Lohmann (ed.), Philosophie der Menschenrechte, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1999, p. 246 e ss.; no mesmo sentido: F. I. Michelman, “Brauchen Menschenrechte eine demokratische Legitimation?”, in H. Brunkhorst, W. Köhler und M. Lutz-Bachmann (ed.), Recht auf Menschenrechte, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1999, p. 53; e: J. Habermas, “Die interkulturelle Diskurs über Menschenrechte”, Ibidem, p. 216. 18 Ver, sobre o conceito liberal de pessoa: J. Rawls, El liberalismo político, trad. de A. Doménech, Barcelona, Grijalbo-Mondadori, 1996, p. 49 e 338. 19 Ver, sobre o conceito democrático de pessoa: K. Günther, “Welche Personenbegriff braucht die Diskurstheorie des Rechts? Überlegungen zum internen Zusammenhang zwischen deliberativer Person, Staatsbürger und Rechtsperson”, in H. Brunkhorst und P. Niesen (eds.), Das Recht der Republik, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1999, p. 83 e ss. 20 Ver, sobre o conceito de pessoa no Estado Social, como titular de certas necessidades básicas: E. Tugendhat, Lecciones de ética, Barcelona, Gedisa, 1997, p. 325 e ss. 16 17

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27 3.2.1. As faculdades básicas liberais da pessoa De acordo com a tese liberal, a finalidade do Estado é proteger o exercício da liberdade e os bens personalíssimos do indivíduo. Locke, por exemplo, sustentou que a legitimidade do poder do Estado descansa sobre a base da proteção da “vida, liberdade e propriedade” do indivíduo ou, em suas palavras, que “o fim supremo e principal dos homens ao se unirem em repúblicas e se submeterem a um governo é a preservação de suas propriedades21”. Pos sua vez, Kant assinalou que a principal diretriz da ação do Estado é o conhecido “princípio geral do Direito”, segundo o qual “uma ação é conforme ao Direito quando, segundo ela, a liberdade de arbítrio de cada um pode se conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei geral22”. Este princípio mostra claramente como Kant atribui ao Estado, e em particular à legislação, a função fundamental de proteger e harmonizar a liberdade de todos os indivíduos. Mas em que consiste essa liberdade? Qual é seu conteúdo como atributo inerente ao indivíduo? Nas últimas décadas, John Rawls procurou dar uma resposta a esta pergunta mediante seu conceito liberal de pessoa. De acordo com Rawls, a pessoa se caracteriza por duas faculdades morais que constituem o núcleo de seus atributos como sujeito livre. A primeira faculdade moral consiste na aptidão de possuir um sentido da justiça – capacidade de ser “razoável”, na terminologia deste autor23 –. Por sua vez, a segunda faculdade define-se como a “capacidade para ter uma concepção do bem” – capacidade de ser “racional24” –. A primeira faculdade moral se identifica com a disposição humana para participar de maneira consciente na cooperação social e para respeitar os termos em que esta se desenvolve. A segunda faculdade moral, por seu turno, refere-se à capacidade de termos objetivos e de “perseguir uma concepção do que consideramos que na vida vale a pena25”. Entre as duas faculdades existe uma relação manifesta: enquanto a primeira alude aos pressupostos individuais da associação política, a segunda ajusta as possibilidades que esta associação reconhece ao indivíduo.

J. Locke, Dos ensayos sobre el gobierno civil, Madrid, Espasa Calpe, 1991, p. 293. I. Kant, Introducción a la teoría del derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1978, p. 80. 23 J. Rawls, El liberalismo político, op. cit., p. 49 e 338. 24 Ibidem, p. 338. 25 Ibidem. 21 22

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Estas duas faculdades morais seriam do ponto de vista liberal as propriedades materiais que funcionam como critério para determinar quais são os direitos humanos do indivíduo que devem ser protegidos por toda comunidade por toda comunidade política justa. Das faculdades morais da pessoa deriva o inventário de liberdades que devem ser levadas em conta pelos fundadores do Estado e que logo devem se materializar no catálogo de direitos humanos e direitos fundamentais26. De acordo com Rawls, deste catálogo somente podem fazer parte as liberdades que sejam “essenciais” para o desenvolvimento das capacidades da pessoa, isto é, as liberdades de pensamento e de consciência, as liberdades políticas de associação, as liberdades físicas e de integridade da pessoa e os direitos e liberdades implícitos no princípio da legalidade27.

3.2.2. As faculdades básicas da pessoa democrática Também a teoria democrática tem esboçado uma concepção do sujeito, composta por um conjunto de atributos ou faculdades básicas cuja proteção, mediante a forma dos direitos humanos, representa o fundamento e a finalidade de toda comunidade política. A chave desta concepção se encontra no conceito de autonomia e aparece já exposta in nuce no ideal de Rousseau, de “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum à pessoa e aos bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça mais que a si mesmo e permaneça, assim, livre28”. A teoria democrática propugna a atribuição ao indivíduo da maior capacidade possível para dar normas a si mesmo; defende um entendimento do homem como sujeito soberano, capaz de se autogovernar, que tem o direito de não obedecer senão a seus próprios desígnios. Esta ideia central da teoria democrática conheceu nas últimas décadas um vigoroso auge na teoria do discurso construída por J. Habermas e alguns outros autores que seguem sua linha teórica. O conceito de pessoa democrática ou de pessoa deliberante é o mais relevante dos desenvolvimentos da teoria do discurso se a observamos do ponto de vista dos direitos humanos. Assim como Rawls esboçou um conceito liberal de pessoa, os defensores da teoria Ibidem, p. 330. Ibidem, p. 328. 28 J. J. Rousseau, El contrato social, Madrid, Taurus, 1969, p. 25. 26 27

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29 do discurso têm exposto as características antropológicas que sua concepção pressupõe, ou seja, também têm enunciado um conjunto de faculdades básicas da pessoa que funcionam como propriedades materiais para a definição de quais devem ser os direitos humanos numa sociedade. Como é bem sabido, na teoria de Habermas a chave de funcionamento do Estado e do Direito encontra-se no chamado princípio do discurso. De acordo com este princípio, somente devem ser consideradas como normas válidas aquelas a que todos os afetados possam assentir na qualidade de participantes nos discursos racionais29. Desta equivalência entre o princípio do discurso e o princípio democrático segue que o conceito de pessoa pressuposto pelo princípio democrático se identifica com o conceito de pessoa que exige o princípio do discurso; ou, em outros termos, que as faculdades básicas da pessoa democrática são as faculdades básicas de uma pessoa deliberante em um discurso racional. O princípio do discurso pressupõe uma pessoa capaz de deliberar e de prestar seu assentimento. Esta circunstância permite explicar porque, do ponto de vista da teoria do discurso, o conceito de pessoa se articula basicamente em torno da capacidade de discernimento de cada indivíduo (Zurechnungsfähigkeit). Esta capacidade se define como a habilidade indispensável que cada pessoa deve possuir para fazer parte da comunicação30. A capacidade de discernimento engloba duas faculdades suscetíveis de ser predicadas à pessoa: de uma parte, a capacidade de fazer afirmações e de defendê-las da crítica com razões convincentes; e, de outra, a capacidade de ser crítico com as afirmações dos demais e com as suas próprias, vale dizer, as aptidões de crítica e autocrítica, somando-se à última a faculdade de autocorreção31. Estas faculdades são do ponto de vista da teoria democrática aquilo que os direitos humanos devem proteger. Assim, em seu conjunto, como conceito democrático de pessoa, são os pressupostos do status de cidadão. Por esta razão, do ponto de vista da teoria democrática, os direitos humanos prioritários são os direitos políticos e a dimensão participativa de outros

J. Habermas, Facticidad y Validez. Sobre el derecho y el Estado democrático de derecho en términos de teoría del discurso, Madrid, Trotta, 1998, p. 172. 30 J. Habermas, Teoría de la acción comunicativa, Tomo II: Crítica de la razón funcionalista, Madrid, Taurus, 1987, p. 110. 31 K. Günther, “Welchen Personenbegriff braucht die Diskurstheorie des Rechts? Überlegungen zum internen Zusammenhang zwischen deliberativer Person, Staatsbürger und Rechtsperson”, op. cit., p. 83 e ss. 29

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30 direitos liberais e prestacionais como a liberdade de expressão e informação ou o direito à educação.

3.2.3. As necessidades básicas da pessoa pressuposta pelo Estado Social

Por fim, também a teoria do Estado Social perfilha uma imagem do sujeito que deve ser protegido pelo Estado e que se compõe, desta vez, não de um conjunto de faculdades, senão de necessidades básicas. Segundo esta linha de pensamento, nenhuma concepção sobre o conteúdo dos direitos humanos, enquanto fundamento do Estado, pode desconhecer que “grandes setores da comunidade não podem se valer por si mesmos32”. Apesar de o Estado e o Direito protegerem as faculdades básicas (liberais e democráticas) das pessoas que fazem parte destes setores da população, esta proteção não é suficiente para que possam satisfazer suas necessidades básicas. De acordo com Tugendhat, um dos principais defensores da teoria do Estado Social no âmbito da filosofia política, o sistema de direitos humanos não pode se sustentar sobre a errada presunção de que a sociedade é inteiramente formada de indivíduos capazes, autônomos e autossuficientes, que intervêm em condições de igualdade na tomada de decisões políticas. Por esta razão, sua base não pode estar no conceito de liberdade, e sim no de necessidade ou, com maior precisão, de necessidades básicas da pessoa. A ideia de necessidades básicas da pessoa não é inteiramente incompatível com o liberalismo. Detrás das noções de liberdade negativa e de autonomia, que fundamentam a concretização dos direitos humanos em deveres de abstenção, subjaz também o reconhecimento de que o indivíduo tem a necessidade de escolher e de decidir seu próprio destino. Não obstante, a ideia de necessidade se estende sobre outros planos não tratados pelo pensamento liberal e pelo pensamento democrático. Esta ideia também põe relevo na situação de carência dos bens indispensáveis para a subsistência e para exercer as liberdades, em que se encontram vastos setores da população dos Estados, é um fato de relevância social. Disto se segue que o imperativo de satisfazer as necessidades básicas de toda a população fundamente certas regras de cooperação que também integram o conteúdo dos direitos humanos. Estas regras 32

E. Tugendhat, Lecciones de ética, op. cit., p. 338 ss.

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31 de cooperação desenvolvem o princípio de solidariedade33, conformam os direitos humanos prestacionais e prescrevem deveres de ação que têm um duplo efeito de irradiação34. Ditos deveres se projetam, em primeiro lugar, sobre o próprio afetado – a quem seu status inicial como pessoa autônoma lhe impõe uma obrigação de autoajuda –, e sobre seus familiares e achegados, que têm com o afetado um vínculo de solidariedade muito estreito. Sem embargo, se estas obrigações positivas não podem ser satisfeitas nesta primeira instância, se transpassam de modo subsidiário a todos e cada um dos membros da sociedade que se reúnem no Estado para procurar o correspondente dever prestacional35. A execução destes deveres prestacionais deve prover o mínimo vital a todos os indivíduos e os bens necessários para que o exercício de sua liberdade e seus direitos políticos. Assim, se o Estado não pode dar conta da provisão necessária para a satisfação destes direitos, então a comunidade internacional deve se encarregar dela.

3.2.4. Conclusões relativas às propriedades materiais As propriedades materiais definidoras dos direitos humanos devem ser entendidas como propriedades suficientes e alternativas que um direito jurídico subjetivo deve possuir para poder ser considerado como um direito humano. Deste modo, um direito jurídico subjetivo há de ser considerado como um direito humano se protege alguma das faculdades básicas do conceito liberal de pessoa (sua capacidade de ser racional ou sua capacidade de ser razoável), alguma das faculdades básicas ligadas à capacidade de discernimento própria do conceito democrático de pessoa ou alguma das necessidades básicas que a teoria do Estado Social atribui ao indivíduo, é dizer, alguma das necessidades básicas que satisfazem o mínimo vital ou a procura existencial ou alguma das necessidades básicas indispensáveis para o exercício das liberdades ou dos direitos democráticos. Assim, dentro da concepção liberal da pessoa protege-se o direito à igualdade

M. Borgetto assinalou que o princípio de solidariedade cumpre a função de fundamentar, em alguma medida, certos direitos sociais. Nesta dimensão, a solidariedade é entendida como um “dever coletivo de ajuda mútua”, como um “verdadeiro princípio de ação política”. Ver: M. Borgetto, La notion de Fraternité en Droit Public Français, Paris, LGDJ, 1993, p. 398. 34 E. Tugendhat, Lecciones de ética, op. cit., p. 341 e ss. 35 Do mesmo modo, J. J. Gomes Canotilho tem feito ver que o imperativo que se desprende dos direitos sociais vincula a todos os membros da sociedade e se torna efetivo sobretudo mediante a ação dos contribuintes, que proporcionam ao Estado os recursos necessários para atender às prestações necessárias para a satisfação dos direitos sociais. Ver: J. J Gomes Canotilho, “Metodología ‘Fuzzy’ y ‘Camaleones normativos’ en la problemática actual de los derechos económicos, sociales y culturales”, Derechos y Libertades, n. 6, 1998, p. 39 e ss. 33

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32 jurídica, ao passo que a concepção de pessoa do Estado Social protege o conceito de igualdade fática.

Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira Revisão de Thomas da Rosa de Bustamante

Carlos Bernal Pulido Professor de Direito Constitucional e Filosofia do Direito, Universidade Externado de Colômbia (Bogotá). Julio Pinheiro Faro Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Advogado. [email protected] Thomas da Rosa Bustamante Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Projessor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais.

[Recebido em 02-02-2010] [Aprovado em 20-12-2010] Artigo submetido a double blind peer review.

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