Tradução - A natureza dos argumentos acerca da natureza do direito (Robert Alexy)

June 1, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Legal Theory, Legal positivism, Direito, Robert Alexy, Positivism
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A NATUREZA DOS ARGUMENTOS ACERCA DA NATUREZA DO DIREITO #

Robert Alexy Professor da Universidade de Kiel, Alemanha.

Tradução Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira Bruno Costa Teixeira

1. Três dimensões e dois níveis de reflexão

Saber o que alguém está fazendo ao fazer alguma coisa parece – pelo menos prima facie – ser um valor intrínseco. Saber o que alguém está fazendo ao fazer alguma coisa é reflexividade cognitiva e o valor intrínseco desta é uma das principais razões para se engajar na filosofia do direito. Isso é, por assim dizer, o valor filosófico mais puro da filosofia do direito. Essa razão filosófica intrínseca ou pura da filosofia jurídica não exaure, contudo, o seu valor. Adicionalmente a essa dimensão filosófica, a filosofia do direito tem tanto uma dimensão técnica quanto uma crítica. O valor técnico da filosofia do direito consiste na clarificação de conceitos jurídicos, na arquitetura do sistema jurídico e na estrutura da argumentação jurídica. Essa clarificação é conquistada por meio de uma análise conceitual e lógica. E, como em qualquer análise, há, também, o valor intrínseco mencionado. Sistemas jurídicos sempre estão correndo perigo de se tornarem muito complexos e de adquirirem elementos incompatíveis. A filosofia do direito pode ajudar aqui, pelo menos em certo grau, por meio de análise que contribua para a precisão, a transparência e a coerência. Isso pode ter consequências não apenas em áreas tradicionais da jurisprudência como também em áreas modernas – tais como, por exemplo, na aplicação de inteligência artificial ao direito. A filosofia jurídica não tem apenas um valor puramente filosófico e técnico, mas também um valor crítico. Este último tem a ver com a melhoria do direito positivo através do criticismo filosófico. A filosofia jurídica tem uma grande tradição a esse respeito. Por exemplo, os direitos humanos poderiam não ter sido institucionalizados sem o contributo da filosofia do direito. É certo que a responsabilidade crítica durará tanto quanto o direito durar. E, não obstante o fato de esses três valores estarem estreitamente conectados pode-se dizer que a filosofia do direito é valiosa por ter sua reflexividade em três diferentes dimensões: filosófica, técnica e crítica. Agora não é mais apenas o direito, objeto da filosofia jurídica, uma atividade. A própria filosofia do direito é uma atividade em si mesma. Ora, se reflexividade é um #

Artigo originalmente publicado em inglês com o título: The nature of arguments about the nature of law, e traduzido com a gentil permissão do autor.

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valor intrínseco, isso também tem de ser verdade em relação à filosofia legal. A reflexividade está sempre em perigo de reiteração infinita. Esse perigo, contudo, parece não ser real se nos movermos a um nível exatamente adiante e perguntarmos o que nós estamos fazendo quando nos engajamos na filosofia jurídica. Essa questão, novamente, é interessante por três razões. O seu valor filosófico é óbvio e seus efeitos técnicos são facilmente demonstrados. Ademais, a reflexão sobre o que nós estamos fazendo quando pensamos sobre o direito pode melhorar a nossa reflexão sobre o direito tornando-o mais preciso, transparente e coerente. A melhoria desse modo na reflexão de alguém sobre o direito pode contribuir para a melhoria do próprio direito. Finalmente, o papel da dimensão crítica no meta-meta-nível é definido pela questão de porque e como nós devemos estar ativos no meta-nível, isto é, na filosofia jurídica. Assim é que aquela reflexividade crítica ou normativa se junta à cognitiva no meta-meta-nível. Nós não apenas perguntamos o que estamos fazendo quando nos engajamos na Filosofia do Direito, mas também porque e como devemos nos engajar nela. A filosofia jurídica é argumentação sobre a natureza do direito. A reflexão sobre ela é, por isso, uma reflexão sobre a natureza dos argumentos referentes à natureza do direito. O direito, por sua vez, é entidade altamente complexa. Essa é a razão pela qual, como diz Joseph Raz, “a lista das propriedades básicas do direito é indefinida 1 ”. Todas, ou quase todas, as propriedades básicas do direito são tópicos de uma disputa aparentemente sem fim. O número de argumentos postos nessa disputa é, como sempre, maior que o número de problemas que eles enfrentam. Por isso é impossível considerar todos os argumentos encontrados na filosofia jurídica. Em razão disso, iniciarei este texto com uma tentativa de identificar os principais problemas em relação à natureza do direito e depois disso me concentrarei sobre certos aspectos desses problemas. Agindo dessa maneira, tornar-se-á claro – espero –, não apenas a matéria com que estou lidando quando procuro discutir a natureza de argumentos sobre a natureza do direito, mas também que propriedades básicas eu não levo em consideração.

2. Os três problemas centrais concernentes à natureza da lei

Se o direito como um todo é uma entidade única, então não é possível que os principais problemas da natureza do direito se prestem ao exame em completa separação, um depois do outro. Contudo, o fato de que os problemas estão conectados não significa que eles não possam ser distinguidos. Com essa condição, três problemas podem ser identificados e, tomados em conjunto, eles definem o problema da natureza do direito. O primeiro problema leva à seguinte questão: em que tipo de entidades o direito consiste e como essas entidades estão ligadas de tal forma que componham a imensa entidade que chamamos “direito”? O segundo problema tem a ver com a realidade social do direito, isto é, a dimensão real ou fatual do direito. Esse problema está subdivido em outros três. O primeiro é a relação entre direito e coerção ou força; o segundo, a relação entre direito e os procedimentos de institucionalização da criação e da 1

RAZ, Joseph. On the nature of law. Archives for Philosophy of Law and Social Philosophy, n. 82, 1996, pp. 1-25, 6.

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aplicação de normas; e o terceiro, a relação entre o direito e a real aceitação ou aprovação. Os sujeitos de direito são pessoas com a capacidade de agir arrazoadamente e, em geral, com o interesse de fazê-lo. A aceitação da autoridade do direito como uma parte essencial de sua realidade social é, por isso, estreitamente ligada com o terceiro problema, que tem que ver com a adequação ou legitimação do direito. Aqui, a principal questão é a relação entre direito e moral e, considerar essa questão é considerar a dimensão ideal ou crítica do direito. Essa é uma tríade de problemas que, considerados em conjunto, define o núcleo da problemática referente à natureza do direito. Vale registrar que o nosso objeto não é a natureza do direito como tal, e sim a natureza de argumentos sobre a natureza do direito. A seguir, colocarei certos aspectos desses três problemas enquanto objetos de minha análise.

3. A natureza dos elementos do direito

A primeira parte da primeira questão, isto é, a questão de em que tipo de entidades o direito consiste, é, em rigor, a mais importante. Uma resposta clássica a essa questão pode ser encontrada em Hans Kelsen, quem, na primeira edição de sua obra Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), define o “direito como norma 2 ”, e normas como significado 3 , e o “único sentido” desse significado como “dever”. E, ainda, “dever” como uma “categoria 4 ”. Essa é a linguagem em que entidades abstratas são descritas. Kelsen insiste no sentido de que normas – e, por isso, o direito – não podem ser reduzidas nem a eventos físicos nem a processos psíquicos. Elas pertencem a uma realidade ideal, não à realidade natural 5 . A questão, contudo, caso exista, ao lado do mundo físico e do psíquico, a um mundo de semântica abstrata ou de entidades ideais, isto é, a um “terceiro reino” no sentido de Frege 6 , é um dos principais problemas da filosofia. Ele diz respeito à filosofia como methaphysica generalis sive ontologia. Isso nos mostra que uma classe de argumentos sobre a natureza do direito é genuinamente filosófica em sua natureza. Isso é aplicável não apenas a autores como Kelsen, que tenta empregar argumentos transcendentais para demonstrar que o “dever” como uma “categoria relativa a priori 7 ” constitui o direito como uma realidade ideal. Isso também se aplica a autores céticos, os quais tentam reduzir o direito ao psíquico ou mesmo a fatos físicos. Um exemplo de reducionismo pode ser encontrado em Karl Olivecrona, quem, com um olho em Kelsen, sustenta que “as regras de direito são uma causa natural – dentre outras – das ações dos juízes em casos de litigância bem como do comportamento genérico de pessoas umas em relação às outras 8 ”, e que o “dever” nada mais é que

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KELSEN, Hans. Introduction to the problems of legal theory. Trad. B. Litschewski Paulson e S. L. Paulson, a partir da primeira edição de Reine Rechtslehre, 1934. Oxford: Clarendon Press, 1992, p. 12. 3 Ibidem, p. 14. 4 Ibidem, p. 24. 5 Ibidem, p. 15. 6 FREGE, Gottlob. The thought: a logical inquiry. Trad. A. M. Quinton e M. Quinton. In: STRAWSON, P. F. (ed.) Philosophical logic. Oxford: Oxford University Press, 1967, pp. 17-38, 29. 7 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 24. 8 OLIVECRONA, Karl. Law as fact. Copenhagen: Einar Munksgaard, e Londres: Humphrey Milford, 1939, p. 16. Olivercrona explicitamente declara sua empresa como reducionista: “meu propósito é

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“uma expressão verbal em conjunção com certas emoções 9 ”. O problema do reducionismo, também, é um problema filosófico genuíno. De modo que não é apenas o não-cético, que defende soluções idealistas metafísicas ou epistemológicas, que argumenta filosoficamente. Afinal, um cético que endossa algumas espécies de naturalismo argumenta muito bem filosoficamente. Até esse ponto, nós chegamos à primeira resposta no que se refere à questão sobre a natureza de argumentos acerca da natureza do direito: uma classe de argumentos é genuinamente filosófica em sua essência, esses argumentos são aplicados para resolver problemas metafísicos (ou ontológicos) e epistemológicos. Mas o que são argumentos metafísicos e epistemológicos? Nesse ponto, não me deterei, a fim de que não me distancie muito do direito. Eu devo me contentar com a observação que argumentos metafísicos (ou ontológicos), que têm que ver com a questão do que há, e argumentos epistemológicos, que têm a ver com a questão de como nós podemos saber algo, não podem ser evitados na filosofia jurídica – não, de qualquer forma, se a filosofia do direito estiver nos informando sobre a natureza do direito.

4. Direito e coerção

O segundo problema sobre a natureza do direito, isto é, o problema da realidade social do direito pode, como vimos, ser dividido em três subproblemas. Concentrareime no primeiro deles, a saber, o problema da relação entre direito e coerção – ou força. Parece ser um fato empírico que o direito geralmente inclui a aplicação de coerção baseada nas decisões de autoridades que representem a comunidade jurídica. Mas isso é necessário? A coerção pertence à natureza do direito? Isso será o caso se o conceito de direito incluir o conceito de coerção. A resposta a essa questão é contestada. Uma resposta positiva pode ser encontrada em um autor já mencionado, Kelsen. De acordo com quem o conceito de norma, ou a categoria designada por “dever” é o genus proximum, e o conceito de coerção, o differentia specifica do direito 10 . Isso se enquadra como um caso claro de inclusão do conceito de coerção dentro do conceito de direito. Posicionamento contrário é sustentado por Hermann Kantorowicz, que afirma que o valor de definições diferentes de direito “deve ser julgado por suas utilidades comparativas 11 ”. Ressalte-se, desde logo, que a inclusão do conceito de coerção – Kantorowicz usa a expressão “enforceability 12 ” (impositividade) – dentro do conceito de direito descartaria a obra de Grotius, Ius belli ac pacis (1625) na história da ciência jurídica, uma vez que esse trabalho tem a ver com o direito internacional na forma de direito natural, o que, por assim dizer, não é “imposto pelo direito dos tribunais 13 ”. Que tipos de argumentos estão disponíveis para resolver essa disputa sobre a questão da pertinência ou não da coerção à natureza do direito? Parece útil reduzir nosso retrato do direito de modo a fazê-lo corresponder com a existência de uma realidade objetiva”, ibidem, p. 27. 9 Ibidem, p. 21. 10 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 26. 11 KANTOROWICZ, Hermann. The definition of law. Ed. A. H. Campbell. Cambridge: Cambridge University Press, 1958, p. 6. 12 Ibidem, p. 59. 13 Ibidem, p. 14.

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distinguir duas classes de argumentos: argumentos conceituais baseados no uso da linguagem, e argumentos práticos ou normativos baseados na idéia de fazer o melhor de uma prática social sob a luz de suas funções ou tarefas. Levarei em conta, primeiro, o argumento conceitual. A análise do uso da linguagem é, como J. L. Austin apropriadamente apontou, “não a última palavra”, embora forneça um ponto de partida para análise ou – como Austin coloca – uma “primeira palavra 14 ”. Tentarei confirmar isso mediante um argumento conceitual como a primeira palavra e um argumento prático ou normativo como a última palavra. O argumento conceitual prossegue pelo confronto, do modo como utilizamos o termo “direito”, de duas teses sobre o relacionamento entre direito e coerção: a tese de coerção extrema e a tese de não-coerção extrema. A primeira sustenta que todas as normas de qualquer sistema jurídico são normas aplicáveis por sanções expedidas legalmente 15 e que coerção é a única motivação para todos os participantes cumprirem com o direito. Essa é a conexão mais latente entre direito e coerção. Já a tese da coerção extrema levanta sérios problemas lógicos e empíricos que não precisam ser levados em conta aqui. É suficiente dizer que uma tese desse tipo extremo não é pressuposta pelo uso comum do termo “direito”. Isso é, para dar apenas um exemplo, possível para designar normas não-aplicáveis da constituição como “direito” sem violar quaisquer regras de linguagem. Linguagem jurídica tanto como linguagem comum é menos rígida que a tese da coerção extrema. Aliás, muito mais interessante que essa tese é a tese contrária: a da nãocoerção extrema, que afirma que alguma coisa pode ser um sistema jurídico apesar de ela não incluir normas que possam, ou mesmo devam, ser aplicadas por autoridades, por indivíduos ou por Estados em defesa de seus direitos, então aquela coerção nunca poderá ser uma motivação para qualquer participante do sistema legal no sentido de cooperar com o direito. O significado inerente à expressão “direito” torna-a impossível de aplicar a um sistema de normas quando descrito por uma tese de não-coerção extrema. Tal sistema poderia ser um sistema moral no sentido kantiano, mas não um sistema legal. Isso é requerido pelo significado do conceito de direito, como utilizado atualmente, já que pelo menos algumas normas do sistema jurídico são aplicáveis e, aquela coerção, ao menos algumas vezes e para algumas pessoas, pode servir de motivação para cumprir com o direito. Nesse sentido, é analiticamente verdadeiro que o direito está conectado com a coerção 16 . O uso da linguagem pode mudar. E é por essa razão que eu me referi ao conceito de direito “como atualmente usado”. A necessidade de uma conexão entre direito e

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AUSTIN, J.L. A Plea for Excuses. In: AUSTIN, J.L. Philosophical Papers. Ed. J.O. Urmson e G.J. Warnock, 2ª ed., Oxford: Clarendon Press, 1970, pp. 175–204, 185. 15 Rudolf von Jhering chega bem perto a essa parte da tese da extrema coercio quando ele censura Georg Puchta por não ter “recuado diante do horror dessa monstruosa idéia de uma norma jurídica sem coerção legal”. A norma jurídica sem a função coercitiva é entendida como “um fim em si mesmo, fogo que não queima, luz que não brilha”. (JHERING, Rudolf von. Law as a Means to an End. Trad. I. Husik, a partir da segunda edição de Der Zweck im Recht, vol. 1, 1884, Boston Book Co., 1913, p. 241. 16 A afirmação de que o conceito de lei necessariamente inclui o conceito de coerção não quer dizer que o conceito de norma jurídica inclua aquele conceito. O fato de aquele sistema de normas ser um sistema legal pressupõe que certo numero de normas dele são coercitivas; isto, contudo, não pressupõe que todas as normas inerentes a ele possuem esta propriedade.

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coerção baseada no uso de linguagem é, portanto, uma necessidade relativa 17 . Isto é, uma necessidade relativa para a atual estrutura do conceito de direito. Uma necessidade absoluta da conexão entre direito e coerção poderia pressupor que a atual estrutura do conceito de direito é, também, necessária. Aqui, a segunda classe de argumentos mencionados acima, os argumentos práticos ou normativos, entra em jogo. Esses argumentos mostram que a estrutura atual do conceito de direito evidencia uma necessidade prática ou normativa. Argumentos práticos ou normativos são aplicados quando se argumenta que o direito é por si só ou algumas características do direito são necessárias para preencher certas funções ou tarefas ou para cumprir com certas normas ou valores. É comum distinguir três argumentos em que um esforço para estabelecer a necessidade prática do direito alcançado. Cada um desses três argumentos consiste de uma razão pela qual a moralidade em si é insuficiente para resolver os problemas da co-ordenação e da co-operação social. A primeira razão tem a ver com o problema do conhecimento prático. Há grandes questões práticas sobre as quais é possível um infindável debate. Kant, por isso, demanda que os direitos dos cidadãos sejam determinados pelo direito. Esse é um aspecto central da natureza oficial do direito 18 . A segunda razão é que a solução ao problema cognitivo não é suficiente. Na tentativa de assegurar os direitos dos cidadãos, a determinação desses direitos pela legislação e adjudicação deve ser completada, como diria Kant, pela “coerção externa publicamente legítima”. Determinação e aplicação não podem nunca produzir uma certeza jurídica perfeita, mas podem produzir uma certeza jurídica que seja adequada. Por esses meios, o direito supera o estado de natureza, onde nós “nunca podemos estar seguros da violência entre uma e outra pessoa 19 ”. Determinação e aplicação não apenas proíbem as atrocidades da guerra civil. Elas são também necessárias para proibir a erosão do direito que ocorrerá se ele puder ser violado sem custo. Apenas desse modo pode a “segurança” ser alcançada pelo que se tem como a base de uma “vida decente em sociedade e [a] persecução bem-sucedida de fins e projetos 20 ”. Determinação e aplicação são complementadas por meio de uma terceira razão para a necessidade do direito: organização. Numerosas demandas morais e objetivos desejáveis como os benefícios do desemprego ou o suporte de países necessitados não podem ser alcançados por meio de uma espontânea ação moral. Organização é necessária, e organização pressupõe direito. Determinação, aplicação e organização, consideradas juntas, promovem não apenas o valor da certeza jurídica, como também o valor da eficiência. Certeza e eficiência jurídicas são os valores formais e mínimos do direito. Aquele que aderir a esses valores deve endossar o direito, incluindo, quando necessário, sua aplicação por coerção. Esse é o ponto em que o argumento conceitual e o argumento prático ou normativo estão conectados. Não é por acaso que a atual estrutura do conceito de direito inclui 17

A contraparte da necessidade relativa é a necessidade absoluta, que implica na imunidade de um esquema conceitual a partir da revisão. A necessidade relativa não é uma necessidade de um esquema conceitual, e sim uma necessidade dentro de um esquema conceitual. Sobre o tema, ver: GRICE, H.P.; STRAWSON, P.F. In Defence of a Dogma. The Philosophical Review, n. 65, 1956, pp. 141–58, 157–8. 18 Ver: RAZ, Joseph. Obra citada, p. 17–18. 19 KANT, Immanuel Kant. The Metaphysics of Morals. Trad. M. Gregor. Cambridge: Cambridge University Press, 1991, p. 124. 20 POSTEMA, Gerald J. Law’s Autonomy and Public Practical Reason. In: The Autonomy of Law. Ed. R.P. George, Oxford: Clarendon Press, 1996, pp.79–118, 89–90.

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o conceito de coerção. Coerção é necessária se o direito é uma prática social que preenche suas funções formais básicas como definidas pelos valores da certeza e eficiência jurídicas. Entender uma prática social pressupõe entender seus valores subjacentes e concebê-la como uma tentativa de fazer o melhor desses valores na visão dos atuais obstáculos e confrontando valores que lhes sejam externos. Esse princípio hermenêutico explica porque o significado atual da expressão “direito” inclui o conceito de coerção. A prática social à qual nós nos referimos quando utilizamos o conceito de direito dever ter o uso da coerção à sua disposição caso isso seja tão bom quanto possa ser. Enquanto o mundo e seus habitantes humanos forem o que eles são, a necessidade prática de normas trazida pela ameaça de coerção existe. Essa necessidade prática está espelhada na necessidade conceitual da atual estrutura do conceito de direito. Considerando o entendimento de Kantorowicz, alguém pode objetar que tudo isso é aplicado somente ao direito conforme criado e administrado pelas autoridades de um sistema centralmente organizado, mas não ao direito internacional como encontrado na obra de Hugo Grócio Ius belli ac pacis. Isso, contudo, não é o caso, não obstante o fato de que o direito internacional atual não é o mesmo como encontrado no livro de Grócio. Especificamente, esse não é o caso por duas razões: a primeira é que existe a possibilidade de coerção legítima no direito internacional mesmo se faltarem sanções centralmente organizadas. O exemplo mais simples é o direito “inerente 21 ” de um Estado responder a um ataque armado pelo uso de armas. Nesse caso, a famosa frase de Kant “direito e autorização para usar da coerção significam uma única e mesma coisa 22 ” aplica-se sem modificação. Essa é a razão pela qual a tese da não-coerção extrema apresentada acima contém a cláusula “ou por indivíduos ou Estados em defesa de seus direitos”. Até então, minha preocupação tem sido com o argumento conceitual. O segundo ponto se afasta do argumento prático e da perspectiva hermenêutica. Um sistema de normas jurídicas carecendo de adjudicação e de aplicação centralmente organizadas é um sistema imperfeito de direito. Ser alguma coisa de um jeito imperfeito não significa, contudo, não ser aquela coisa.

5. Direito e moral

O terceiro problema central da natureza do direito é o problema do relacionamento entre direito e moral. Essa problemática compreende muitas questões, sendo a fundamental aquela que diz respeito à existência de qualquer tipo de conexão necessária entre direito e moral. As duas mais elementares e gerais respostas são as teses de separação e de conexão. A tese de separação diz que não há conexão necessária entre direito e moral; tese esta que não esgota o positivismo jurídico, que pode ser certamente encontrado em seu âmago. A tese de separação é, por isso, necessariamente pressuposta pelo positivismo jurídico. E isso significa que a negação dessa tese necessariamente leva ao não-positivismo. A negação da tese de separação é a tese de conexão, na medida em que esta ultima diz que há pelo menos um tipo de conexão necessária entre direito e moral. 21 22

Comparar, essa expressão com a do art. 51 da Carta da ONU. KANT, Immanuel. Obra citada, p. 58.

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Jules Coleman chama uma versão de positivismo jurídico que consiste em nada mais que a tese de separação “positivismo negativo” e declara que o positivismo negativo “existe, mas é desinteressante 23 ”. Defenderei a tese de que a separação e, com ela, o positivismo negativo, é falsa. O positivismo negativo, enquanto tese exclusivamente negativa, pode não ser muito interessante enquanto uma tese acerca da natureza do direito a partir do ponto de vista do positivismo. Entretanto, isso não significa que a tese de separação não é interessante. Quer dizer que, se sua opositora – a tese da conexão – estiver correta, a natureza do direito poderia aparecer sob uma luz completamente diferente. Afinal, se a natureza do direito é interessante, então o oposto de uma tese que coloca a natureza do direito sob uma luz completamente diferente é por si só interessante. A tese de conexão é verdadeira se existir pelo menos um tipo de conexão necessária entre direito e moral. Muitos tipos de conexões necessárias são concebíveis. Aqui, vale lembrar, a questão primária não é se existem conexões necessárias entre direito e moral. Nosso tópico principal é a natureza dos argumentos a favor e contra as teses de conexão ou de separação. Assim, devo concentrar-me nos dois argumentos em prol da tese de conexão e contra a tese de separação, os quais são bem diferentes quanto às suas naturezas um em relação ao outro: o argumento a partir da adequação e o argumento a partir da injustiça extrema. O primeiro é um caso paradigmático de um argumento conceitual. O segundo, um caso paradigmático de um argumento normativo.

5.1. O argumento a partir da adequação

O argumento a partir da adequação procede em dois níveis. Num primeiro nível, pode-se perceber que o direito faz uma reivindicação à adequação. Num segundo, há uma explicação de que essa reivindicação implica em uma conexão necessária entre direito e moral 24 . Como é possível demonstrar que o direito necessariamente levanta uma alegação acerca da adequação? Philip Soper argumenta que a questão sobre que tipos de alegações são feitas pelo direito é uma questão empírica 25 . E, se isso estiver correto, o direito poderá então decidir se deve ou não reivindicar a adequação. O argumento a partir da adequação, que procura provar não apenas uma conexão contingente entre direito e moral, como também uma conexão necessária, poderia entrar em colapso tão logo surgisse. Antes que qualquer tentativa seja feita para demonstrar que uma determinada reivindicação, a reivindicação da adequação, é necessariamente levantada, parece 23

COLEMAN, Jules. Authority and Reason. In: The Autonomy of Law, Obra citada, 1996, p. 287-319, 316. 24 A reivindicação pela adequação – ao lado de seu mal irmão gêmeo, o poder reivindicatório, que ainda será introduzido – é a reivindicação mais abstrata que pode ser trazida pelo direito. Uma reivindicação mais concreta é a reivindicação pela “autoridade moral legítima”, que, de acordo com Raz, é levantada pelo direito; ver: RAZ, Joseph. Obra citada, p. 16. Começando com a reivindicação mais abstrata tem-se a vantagem de cobrir as questões mais fundamentais. 25 SOPER, Philip. Law’s Normative Claims. In: The Anatonomy of Law, Obra citada, 1996, p. 215-47, 217, 230-1.

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relevante questionar o que significa o surgimento de uma reivindicação. Reivindicações podem apenas ser feitas por sujeitos capazes de falar e de agir. O “direito” faz uma reivindicação significa que as pessoas atuam sob os limites legais. Isso é mais óbvio no caso de atos institucionais como os legislativos ou os jurisdicionais. O âmago do argumento a partir da adequação é de que tais atos institucionais estão sempre conectados com o – normalmente implícito – ato nãoinstitucional de afirmação de que o ato legal é substancial e formalmente correto. Essa asserção sobre a adequação está associada à garantia – normalmente implícita – de justiciabilidade, e uma expectativa – novamente normalmente implícita – de aceitação 26 . A questão crucial é se é verdade que atos legais estão necessariamente conectados com uma assertiva – normalmente implícita – da adequação. Essa questão é uma questão de filosofia jurídica enquanto uma teoria sobre a natureza do direito. Em nosso meta-meta-nível nós temos de adicionar a seguinte questão: como é possível provar a veracidade da tese de que atos legais estão necessariamente conectados com uma reivindicação pela adequação constituindo uma asserção sobre a adequação? Que tipo de argumento pode ser aduzido para demonstrar isso? Tentarei responder essa questão com a ajuda de um exemplo. Considere um magistrado que tenha proferido o seguinte julgamento: “o réu está condenado a permanecer, por toda a vida, na prisão, em razão da interpretação incorreta de uma lei válida”. Este julgamento é de algum modo defeituoso. A questão é como uma característica peculiar do defeito pode ser explicada. Alguém pode pensar que o defeito é meramente convencional, tendo o juiz certamente violado convenções ou regras sociais que definem o papel do juiz. Entretanto, regras sociais também poderiam ser violadas caso ele tivesse anunciado seu julgamento dependurado em sua boca, fato que pode ser visto como inapropriado ou mesmo ultrajante para a situação, e que também revela o caráter absurdo do julgamento. A violação de uma convenção, por isso, não é suficiente para explicar a característica peculiar do defeito. Outra explicação poderia ser a assunção de um erro jurídico. Talvez em todos os sistemas jurídicos nosso juiz estaria violando normas jurídicas que demandem interpretações corretas de uma lei válida. Contudo, essas normas também poderiam ser violadas quando o juiz interpretasse leis válidas incorretamente, enquanto acreditasse e alegasse que sua interpretação estaria correta. Nesse caso, ele poderia cometer um erro jurídico, mas nada absurdo transpareceria. Isso mostra que um defeito legal não pode por si só explicar um veredicto absurdo. Que a absurdez tenha de ser entendida à parte da violação de regras jurídicas, é cada vez mais claro se nós imaginarmos um sistema jurídico que demande interpretações corretas, mas não contenha normas positivadas que proíbam juízes de declarar seus julgamentos incorretos. Um magistrado que erroneamente declare seu julgamento incorreto, sob essa condição, não teria cometido um erro. A absurdez, contudo, permanece. Uma terceira possibilidade surge ao se classificar o defeito como um erro moral. Assumamos que a interpretação incorreta leve à condenação de uma pessoa inocente. Esse é um erro moral sério; mas o erro moral seria o mesmo se o juiz tivesse condenado a pessoa inocente sem declarar que seu julgamento está errado. 26

Ver: ALEXY, Robert Alexy. Law and Correctness. In: Current Legal Problem (Legal Theory at the End of the Millennium. Ed. M.D.A. Freeman, n. 51, 1998, p. 205-21, 208.

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O defeito moral poderia ser até maior por motivos de desonestidade. Não obstante, os dois julgamentos diferem bastante com respeito à questão da absurdeza. O julgamento sem a cláusula de inadequação poderia ser apenas moralmente ultrajante; o julgamento com essa cláusula é também absurdo. Nem o defeito convencional, nem o jurídico e nem o moral explica o absurdo e o caráter um tanto quanto esquisito da cláusula de inadequação. Isso decorre, como é freqüente no caso em que alguma coisa absurda está em questão, de uma contradição. Tal contradição emerge porque a reivindicação de uma correta aplicação do direito é sempre feita em uma decisão judicial, embora indevidamente o desfecho dessa reivindicação possa acabar por vir a ser, e quaisquer dos pensamentos e desejos do ator possam ser contraditórios. Reivindicações compreendem – como mencionado – asserções. No caso de nosso julgamento ser a asserção de que o julgamento está correto, essa asserção, estando implícita no ato de julgar, contradiz a asserção explícita conectada com o julgamento que está errado. Essa contradição entre o implícito e o explícito é o que explica a absurdeza. Que tipo de argumento é esse? Trata-se de um argumento? O argumento consiste de uma “outra” conclusão que conduz a uma contradição performativa, que é uma contradição entre uma asserção explícita e outra implícita, onde esta é adotada para ser necessariamente pressuposta pela representação da ação que contém a asserção explícita. Se alguém utilizar o termo “conceitual”, num sentido amplo, compreendendo a estrutura necessária dos atos do discurso, pode-se concluir que o juiz, em nosso exemplo, comete um erro conceitual e que este erro revela a necessidade conceitual da reivindicação da adequação no direito. Pode-se afirmar que esse contexto não é suficiente para provar a necessidade da reivindicação pela adequação no direito. O erro conceitual e, com ele, a absurdez foram afastados. É preciso apenas que se renda à reivindicação pela adequação. Com segurança, isso poderia demarcar uma mudança radical na prática atual e no que o direito significa atualmente, embora tal mudança seja possível. Para isso, é preciso tão-só entender o direito em todas as suas ramificações como uma expressão de poder, desejo e decisão. Deste modo, a reivindicação pela adequação poderia ser substituída por algo como um poder reivindicatório. Essa alternativa esclarece o sentido de que a reivindicação pela adequação é necessária. Render-se a essa reivindicação é abandonar a prática que é definida pelas distinções de certo e errado, verdadeiro e falso, objetivo e subjetivo, e justo e injusto. Mesmo a categoria do “dever” poderia desaparecer, de se dizer que alguém tem uma obrigação legal, seguindo o critério do sistema legal em questão, significa ser correto que alguma coisa está por ser feita. Um “dever” que é mais que uma expressão de desejo pode somente ser definida por meio do conceito de adequação. Isso demonstra que o terceiro problema da natureza do direito, o problema da relação entre direito e moral, está internamente conectado, através do conceito de adequação, com o primeiro problema, isto é, a questão sobre em que tipos de entidades o direito consiste. Na verdade, nós poderíamos tentar descartar completamente a atual prática constituída por categorias de verdadeiro, adequação, objetividade e “dever” e substituí-la por uma prática constituída por nada mais que poder, emoção, subjetividade e desejo. Contudo, isso poderia significar abandonar o direito. Uma prática social constituída por nada mais que poder, emoção,

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subjetividade e desejo não poderia ser um sistema jurídico 27 . Seria, na verdade, um sistema de força bruta, manipulação e resposta emocional. O preço de abandonar o direito poderia ser alto. Nós não poderíamos apenas perder as vantagens da coordenação social e da co-operação reguladas pelo direito. Uma vez a reivindicação pela adequação sendo deixada de lado, nossas ações e discursos poderiam ser essencialmente diferentes do que eles são agora. As mudanças poderiam se referir não apenas ao caráter de nossa comunidade, mas também a nós mesmos. Nós poderíamos não ser mais as mesmas pessoas. A prática definida pela adequação e seus conceitos correlatos de objetividade, verdade, e “dever”, não é, portanto, apenas uma prática entre as demais, como Scrabble é um jogo entre outros. A decisão entre ela e suas alternativas é uma decisão existencial. Isso tudo significa que a reivindicação pela adequação é necessária num duplo sentido. Isto é, no primeiro sentido, necessária se nossa comunidade é constituída pelo direito, não há direito sem a reivindicação da adequação; isso é uma conexão conceitual. Entretanto, como a possibilidade de substituição da reivindicação da adequação por um poder reivindicatório mostra, é possível haver interação humana sem o direito. A reivindicação pela adequação é, por isso, somente necessária dentro de uma prática específica; então, a necessidade em questão é apenas uma necessidade relativa. Acima, eu sustentei que um “dever” que é mais que uma expressão de desejo pode somente ser definida por meio de um conceito de adequação. Poderia isso ser verdadeiro, a necessidade relativa da reivindicação pela adequação pode se aproximar à tese de Kelsen de que “o ‘dever’ designa uma categoria relativa a priori 28 . No segundo sentido, a reivindicação pela adequação é necessária a partir de seu próprio impacto existencial. Isso implica na necessidade prática que é mais forte que a coerção, o que eu discuti mais acima. A necessidade de coerção está enraizada nos valores de certeza e eficiência jurídica. A necessidade resultante disso é pelo menos primariamente uma necessidade prática instrumental ou extrínseca. O impacto existencial da reivindicação pela adequação cria uma necessidade prática intrínseca. Um positivista poderia concordar com tudo isso e ainda sustentar que isso não implica haver uma conexão necessária entre direito e moral. Tudo o que ele/ela precisa dizer é que a reivindicação pela adequação tem um conteúdo jurídico puro e que esse conteúdo não possui quaisquer implicações morais. A questão, além do mais, é se a reivindicação pela adequação levantada pelo direito possui algum conteúdo moral. Aqui, essa questão deve apenas ser examinada em relação à adjudicação. Duas coisas devem ser consideradas. Primeiro, que o direito necessariamente tem, como defende Hart, uma textura aberta 29 , e, segundo, aqueles casos anteriormente explicados, que são comumente chamados “casos difíceis” (hard cases), não podem ser decididos apenas sobre razões consideradas exclusivamente a partir do direito positivo. Nesta situação, duas são as possibilidades. A primeira é a de que a decisão é tomada sem quaisquer razões, o que, contudo, é excluído pela reivindicação pela adequação. A segunda é a de que a decisão é tomada sobre razões que não são 27

Ver: ALEXY, Robert. The Argument from injustice. A Reply to Legal Positivism. Trad. B. Litschewski Paulson e S. L. Paulson. Oxford: Claredon Press, 2002, p. 32-4. 28 KELSEN, Hans. Obra citada, p. 24. 29 HART, H. L. A. The Concept of Law. 2a. ed. Oxford: Clarendon Press, 1996, p. 128.

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extraídas do direito positivo 30 . Existem diferentes tipos de razões fora da classe de razões extraídas do direito positivo. A gama de razões compreende considerações de utilidade, tradição e idéias comuns sobre o que é bom e mal, tanto como sobre princípios de justiça. Pode-se considerar a questão de onde entre essas razões nãojurídicas está desenhada a linha divisória entre considerações morais e não-morais. Não se pode duvidar, contudo, de que considerações de justiça pertencem ao conjunto de razões morais. Quando as razões do direito positivo se esgotam, a reivindicação pela adequação considera todos os tipos de razões, onde elas são boas razões para uma decisão judicial, contanto que seja dada prioridade às considerações de justiça sobre outras considerações que também não sejam baseadas no direito positivo 31 . Isso é suficiente para estabelecer que a reivindicação pela necessária adequação se refere a razões morais onde a decisão não pode ser tomada apenas com fulcro no direito positivo. A reivindicação pela adequação implica não apenas no poder legal de o juiz aplicar razões morais em casos difíceis, implica também na obrigação legal de fazê-lo, sempre que possível. Do ponto de vista do positivismo jurídico, essa é uma conexão necessária entre o direito positivo e a moral. Essa conexão necessária tem por conseqüência que as decisões moralmente defeituosas são também legalmente defectivas. Do ponto de vista de uma ampla concepção não-positivista do direito, isso equivale a uma inclusão de razões morais dentro do direito 32 . Muito mais poderia ser dito sobre o papel dos argumentos morais no raciocínio jurídico 33 , embora o que se tem mostrado seja suficiente para demonstrar que a reivindicação pela adequação implica numa conexão necessária entre moral e argumentos legais positivados no raciocínio jurídico. A reivindicação pela adequação está necessariamente presente em todos os sistemas jurídicos, de modo que se pode dizer que se ela estiver ausente é porque o sistema não é jurídico. Então, é supérfluo embasar a incorporação de princípios morais pela virtude de sua adequação no direito por meio de um papel de reconhecimento considerado como “prática normativa convencional 34 , como afirma Coleman. A incorporação de princípios morais não é uma questão de convenção. Se esse fosse o caso, poderiam, então, haver alternativas para a incorporação ou eleição daquilo que deveria ou não ser incorporado. Esse, contudo, como demonstra a reivindicação pela adequação, não é o caso. A incorporação é necessária. Caso faça sentido construir uma regra de reconhecimento, uma questão que eu não discutirei aqui, então não se trata de uma questão de direito positivo caso essa regra de reconhecimento incorporar princípios morais pela virtude de sua adequação, e sim uma questão do conceito de direito. Esse ponto é obscurecido pelo conceito de Coleman de “positivismo inclusivo 35 . O argumento a partir da adequação é um argumento conceitual – no sentido amplo acima apresentado – pela conexão necessária entre direito e moral. A conexão 30

Ver: RAZ, Joseph. The Problem about the Nature of Law. In: RAZ, Joseph. Ethics in the Public Domain. Oxford: Clarendon Press, 1989, pp. 211-20. 31 Ver: ALEXY, Robert. The Special Case Thesis. Ratio Juris, n. 12, 1999, p. 374-84, 378-9. 32 Ver: ALEXY, Robert. Law and Correctness, pp. 217-18. 33 Ver: ALEXY, Robert. A Theory of Legal Argumentation. Trad. R. Alder e N. MacCormick. Oxford: Clarendon Press, 1989, pp. 211-20. 34 Ver: COLEMAN, Jules. Obra citada, p. 316. 35 Ibidem, p. 287.

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resultante da reivindicação pela adequação é, contudo, não obstante sua necessidade conceitual, fraca. Trata-se somente de uma conexão qualificatória e não classificatória. Pode-se defender uma conexão classificatória quando se sustenta que normas ou sistemas de normas se enfraquecem ao encontrar um critério moral particular não contam como normas jurídicas ou como sistemas jurídicos. Uma conexão qualificatória demanda muito menos. Pode-se defender tal conexão quando se sustenta que normas ou sistemas de normas que se enfraquecem ao encontrar um critério moral particular podem, todavia, possivelmente contar como normas jurídicas ou sistemas jurídicos, embora como normas jurídicas legalmente defectivas ou como sistemas jurídicos legalmente defectivos. A reivindicação pela adequação apenas conduz a uma conexão qualificatória. Isto, todavia, não deixa de ser interessante. A conexão qualificatória significa que decisões jurídicas moralmente equivocadas são necessariamente juridicamente equivocadas. Deste modo, uma dimensão ideal é incorporada ao direito, afetando sua imagem de forma fundamental.

5.2. O argumento a partir da injustiça extrema

A questão remonta se há também uma conexão classificatória. Tal conexão é expressa pela fórmula de Gustav Radbruch, que foi aplicada pelos tribunais alemães depois da queda do nacional-socialismo (nazismo) em 1945 e depois do colapso da República Democrática da Alemanha em 1989. Kent Greenawalt sustenta que a questão “do ‘direito-injusto’ tem perdido importância 36 ”. Em sentido contrário, a aplicação da fórmula de Radbruch pelos tribunais alemães demonstra que essa questão não tem perdido importância: de fato, ela continuará tendo importância enquanto houver sistemas jurídicos injustos ou perversos. A mais curta formulação concebível da fórmula de Radbruch é a seguinte: injustiça extrema não é direito. Essa fórmula não requer qualquer sorte de encaixe completo entre direito e moral. Ela permite que normas apropriadamente questionadas e socialmente eficazes sejam válidas como direito mesmo quando forem bastante injustas. Isso, em casos de injustiça extrema, é o que dá preferência à justiça substancial sobre a certeza jurídica. Assim, constrói-se no direito um limite mais afastado. Eu não pretendo discutir a adequação da fórmula de Radbruch aqui, até porque já fiz isso em outro lugar 37 . Deste modo, eu me concentrarei na questão sobre a natureza dos argumentos apresentados em conexão com a disputa sobre o problema se mesmo a injustiça extrema pode ser considerada como direito válido. Minha tese é de que embora todos os tipos de argumentos que têm sido considerados até então são aplicáveis, o papel decisivo é feito por uma mistura de argumentos normativos e filosóficos. Argumentos semânticos não têm aqui importância. O significado da expressão “direito” não exclui nem a fórmula de Radbruch nem a sua negação. O argumento a partir da adequação, que é outro tipo de um argumento conceitual, oferece uma 36

GREENAWALT, Kent. Too Thin and Too Rich: Distinguishing Features of Legal Positivism. In: The Autonomy of Law. Obra citada, pp. 1-29, 9. 37 Ver: ALEXY, Robert. The Argument from Injustice…, pp. 28-31, 40-62.

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razão para não se conceber uma injustiça extrema como direito, mas não determina como lidar com o problema da retroatividade após a ruptura de um sistema injusto. O problema da nulla poena sine lege é o principal problema, e é um problema prático ou normativo, que tem a ver com o peso do princípio da nulla poena sine lege em relação à justiça substancial. A confiança na imunidade jurídica a partir da acusação por parte daqueles que têm sido ou que se tornarão ativos num estado injusto é protegida pelo princípio da nulla poena sine lege, enquanto os direitos de vítimas passadas e futuras da injustiça extrema juridicamente imposta são protegidos pelo princípio da justiça substancial. É característico da natureza dos argumentos sobre a natureza do direito que a solução desse problema normativo depende não apenas de argumentos normativos como também de argumentos genuinamente filosóficos sobre a possibilidade de conhecimento moral ou de justificação moral. Hart defende que nada acompanha o conceito de direito a partir do simples fato de que princípios morais são “racionalmente defensáveis” ou “perceptíveis 38 ”. Fica, então, aberta a questão de se saber se isso está correto. Em qualquer caso, o inverso está correto. Se todos os julgamentos sobre justiça não são nada mais que meras expressões de emoções, decisões, preferências, interesses ou ideologias, em suma, se as teses meta-éticas do relativismo e do subjetivismo radical estavam corretas, muito pouco poderia ser dito em favor do conceito nãopositivista de direito expresso pela fórmula de Radbruch 39 . Então, no fim de nossa jornada pelo reino dos argumentos sobre a natureza do direito, nós chegamos num tipo de argumento com o qual nós começamos: o argumento genuinamente filosófico.

38

HART, H. L. A. Positivism and the Separation of Law and Morals. In: HART, H. L. A. Essays in Jurisprudence and Philosophy. Oxford: Clarendon Press, 1983, pp. 49-87, 84. 39 Em 1932, Radbruch formulou isso da seguinte forma: “relativismo, para que o método seja entendido, é a conjuntura recebida no sistema como um de seus componentes essenciais”. RADBRUCH, Gustav. Legal Pilosophy. Trad. Kurt Wilk. In: The Legal Philosophies of Laskm Radbruch, and Dabin. Introd. Edwin W. Patterson. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1950, pp. 43-224, 116 (§10) (trad. alterada pelo autor).

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