Tradução - As relações entre direito e moral (Paolo Comanducci)

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AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E MORAL*

Paolo Comanducci Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Gênova, Itália.

Tradução Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

1. Introdução

O objetivo deste ensaio é apresentar uma defesa do positivismo jurídico. Adoto aqui um sentido amplo de “positivismo jurídico”, que não inclui nem o positivismo ideológico, explicitamente, nem o estatismo e o formalismo interpretativo, implicitamente. A tese positivista que vou defender das velhas e novas críticas iusnaturalistas e pós-positivistas é a do positivismo metodológico, e que pode ser genericamente resumida assim: “é possível identificar e descrever o direito tal como é 1 ”. Esta tese tem como sabido ao menos dois corolários: a tese das fontes sociais do direito e a tese da não conexão necessária entre direito e moral. Vou afirmar que a tese positivista tem também ao menos uma pressuposição: a aceitação da grande divisão entre ser e dever, em sua formulação lingüística, como distinção entre descrever, por uma parte, e avaliar/prescrever, por outra 2 . Não tem, ao contrário, como pressuposição a tese meta-ética não cognoscitivista no marco moral: não a tem necessariamente, ainda que de fato muitos teóricos positivistas sejam não cognoscitivistas, e a maioria dos críticos do positivismo sejam cognoscitivistas. Nesta tese metodológica se podem reconhecer, ainda que não todos, muitíssimos positivistas, desde a escola da exegese até o realismo radical. Não quero, nem tampouco poderia apresentar aqui um balanço crítico das distintas versões do positivismo, nem tampouco uma defesa da que me é mais afim, isto é, um tipo de “realismo analítico”. Nem sequer apresentarei as críticas, internas ou externas, às distintas versões, nem as respostas dos positivistas. *

Artigo publicado originalmente em espanhol sob o título: Las relaciones entre derecho y moral. Traduzido com a gentil permissão do autor. 1 Sobre os distintos sentidos de ‘positivismo jurídico’ ver a clásica obra de N. Bobbio, El problema del positivismo jurídico, trad. de E. Garzón Valdés, Eudeba, Buenos Aires, 1965. 2 Sobre a grande divisão, ver B. Celano, Dialettica della giustificazione pratica. Saggio sulla legge di Hume, Giappichelli, Torino, 1994.

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Limitar-me-ei apenas a uma defesa de um dos corolários (a tese da não conexão necessária entre direito e moral 3 ), e com uma observação final sobre a importância do pressuposto sobre a separação entre ser e dever ser. A tese positivista da não conexão tem sido criticada ao menos de duas maneiras distintas, porque pode ser interpretada por pelo menos duas maneiras diferentes 4 : a) Como tese da não conexão justificativa; b) Como tese da não conexão identificativa. O problema da conexão justificativa pode ser resumido nesta pergunta: é possível justificar uma decisão jurídica sem recorrer necessariamente a argumentos morais? O problema da conexão identificativa pode ser resumido nesta pergunta: é possível identificar o direito sem recorrer necessariamente a um ponto de vista moral? Ou a juízos morais? Apresentarei algumas respostas a estes dois problemas.

2. A conexão justificativa

A solução do primeiro problema depende, sem dar lugar a dúvidas, de qual conceito de justificação se utiliza. Se com “justificação” entendemos a atividade que consiste em brindar razões em favor de uma conclusão – em nosso caso, de uma conclusão prescritiva e, especificamente, de uma decisão judicial –, e concebemos as razões como prescrições mais gerais e abstratas (é dizer, mais gerais), sob as quais é possível subsumir aquela decisão, então está claro que podem ser dadas justificações de decisões jurídicas que não fazem necessariamente referência a argumentos morais. De fato, no funcionamento normal dos sistemas jurídicos, são 3

Sobre o tema, conferir posicionamentos parecidos com os expostos no texto em: E. Bulygin, Is There a Conceptual Connection Between Law and Morality?, em A. Aarnio, K. Pietilä, J. Uusitalo (ed.), Interests, Morality and the Law, University of Tampere, Tampere, 1996; R. Caracciolo, L’argomento della credenza morale, em P. Comanducci e R. Guastini (comp.), Analisi e diritto 1994. Ricerche di giurisprudenza analitica, Giappichelli, Torino, 1994, pp. 97-110; P. Chiassoni, Osservatori positivistici e quinte colonne, em P. Comanducci e R. Guastini (comp.), Struttura e dinamica dei sistemi giuridici, Giappichelli, Torino, 1996, pp. 65-85; F. Laporta, Entre el Derecho y la Moral, Fontamara, México, 1993. São exemplos de posicionamentos contrários: R. Alexy, On Necessary Relations Between Law and Morality, em “Ratio Juris”, II, 2, 1989, pp. 167-83; J. C. Bayón, Partecipanti, osservatori, e identificazione del diritto, em Struttura e dinamica dei sistemi giuridici, cit., pp. 47-63; A. Calsamiglia, Una visione del diritto dal punto di vista del partecipante, em P. Comanducci e R. Guastini (comp.), Analisi e diritto 1996. Ricerche di giurisprudenza analitica, Giappichelli, Torino, 1996, pp. 57-76; E. Garzón Valdés, Algo más acerca de la relación entre derecho y moral (1992), também em E. Garzón Valdés, Derecho, Ética y Política, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1993, pp. 317-35; C. S. Nino, Diritto, morale e politica, em P. Comanducci e R. Guastini (comp.), Analisi e diritto 1993. Ricerche di giurisprudenza analitica, Giappichelli, Torino, 1993, pp. 105-31; C. S. Nino, Derecho, Moral y Política. Una revisión de la teoría general del Derecho, Ariel, Barcelona, 1994. 4 Conferir P. Comanducci, Diritto, morale e politica, em “Materiali per una storia della cultura giuridica”, 27, 2, 1997, pp. 365-78.

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dadas muitíssimas decisões as quais são justificadas sem que se recorra a argumentos morais, senão apenas a normas jurídicas. Neste sentido de “justificação”, uma decisão pode ser contingentemente justificada por uma norma jurídica, sem que se coloque o problema ulterior se também esta norma tem de ser, por sua vez, justificada. De fato, são dadas algumas decisões jurídicas que são justificadas a se recorrer a argumentos “morais”, especialmente quando se tratam de decisões do juiz constitucional. A Constituição, com efeito, é a fonte suprema: para justificar a atribuição de significado a algumas de suas cláusulas mais gerais, ou para solucionar um conflito entre princípios constitucionais, o juiz constitucional às vezes pode recorrer a princípios “morais”. Caso adotemos então esta definição de justificação, é verdadeiro, mas trivial, que inexista conexão justificativa necessária, senão apenas contingente, entre direito e moral 5 . A resposta pode ser distinta se por “justificação” entendemos a justificação última, é dizer caso se peça que estejam necessariamente justificadas as prescrições mais gerais e abstratas que justificam em última instância aquela decisão. Caso adotemos o conceito de justificação como a justificação última, então a resposta antes mencionada deixa de ser satisfatória: a decisão não está, neste sentido, justificada se não estão justificadas as razões que justificam aquela decisão. É exatamente esta a tese do movimento que, seguindo uma terminologia que está em moda, chamarei neoconstitucionalismo. Trata-se, em particular, de uma tese que se pode atribuir ao neoconstitucionalismo metodológico 6 . A tese neoconstitucionalista é a de que qualquer decisão jurídica, em particular a decisão judicial, está justificada se derivar, em última instância, de uma norma moral. Interpreto essa tese como uma resposta a um problema normativo (“qual deve ser a norma que funda ou justifica em última instancia a decisão judicial?”), e, portanto, a tese mesma reveste caráter normativo (“é uma norma moral a que deve fundar ou justificar em última instancia a decisão judicial”). Obviamente, a tese da conexão justificativa poderia também ser interpretada de outra forma: ou como resposta a um problema empírico (“de fato, quais são as normas que, num determinado contexto, fundam ou justificam em última instância a decisão judicial?”), ou como resposta a um problema teórico (“num modelo explicativo da decisão judicial, quais são as normas que fundam ou justificam em última instância a decisão judicial?). Creio que, se a interpretarmos como descritiva, esta resposta seria falsa (nas práticas judiciais de motivação das decisões, nos sistemas jurídicos contemporâneos, as decisões são explicitamente justificadas – também em última instância – oferecendo razões que são normas jurídicas e não 5

Nesta versão da tese segundo a qual “Es posible justificar una decisión jurídica sin recurrir necesariamente a argumentos morales”, la palabra ‘posible’ hace referencia a una posibilidad empírica. 6 Conferir P. Comanducci, Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico, in “Isonomía. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho”, 16, 2002, pp. 89-112.

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morais). Se a interpretarmos como teórica, esta resposta creio que se transformaria em uma tautologia: dado que, por definição, toda justificação última, no domínio prático, se assume constituída por uma norma moral, então também a justificação última de uma decisão judicial está constituída por uma norma moral (ainda que existam justificações intermediárias que possam se definir como jurídicas). Detenhamo-nos, portanto, apenas no problema normativo, e perguntemo-nos que tipo de norma moral seria a que deveria fundar ou justificar, em última instância, uma decisão judicial (assumindo esta última como caso paradigmático de decisão no âmbito jurídico, ainda que se o discurso poderia ser ampliado também às decisões legislativas e administrativas). Vejo ao menos quatro soluções possíveis: - Que se trate de uma norma moral objetivamente verdadeira (no sentido de corresponder a “fatos” morais); - Que se trate de uma norma moral objetivamente racional (no sentido de ser aceitável por parte de um auditório racional ou em outro sentido equivalente); - Que se trate de uma norma moral subjetivamente escolhida; - Que se trate de uma norma moral intersubjetivamente aceitada. As primeiras duas soluções são objetivistas, as últimas duas são subjetivistas. Na primeira solução a norma moral é “subjetivo-independente”, nas outras é “subjetivo-dependente”, mas em formas respectivamente diversas. As primeiras duas soluções fazem referência a uma moral crítica, a terceira a uma moral individual, a quarta a uma moral positiva. Se assumirmos o ponto de vista do juiz, segundo os defensores da tese da conexão justificativa necessária entre direito e moral, o juiz deveria buscar a origem da decisão da controvérsia de uma norma moral, que fundaria, portanto, sua decisão. Mas, “moral” em que sentido? A primeira solução apresenta problemas ontológicos (duplicação do mundo) e epistemológicos muito sérios. Sobretudo em relação a estes últimos o juiz não teria outra alternativa senão eleger uma norma que acreditasse ser correta. Portanto, a primeira solução é redutível à terceira. A segunda solução não apresenta os mesmos problemas ontológicos que a primeira, mas apresenta também sérios problemas epistemológicos: não tanto porque não seja possível que o juiz encontre a norma moral que funde sua decisão, segundo as regras processuais e materiais de uma teoria moral (deixando a salvo os problemas epistemológicos que existem dentro de cada teoria: não pelo fato de as teorias procedimentais com freqüência não oferecem “códigos morais” racionais), senão porque existem várias e divergentes teorias morais, entre as quais o juiz deveria

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escolher. E, portanto, também a segunda opção é redutível à terceira 7 . Aceitar a terceira solução equivaleria à proposição de deixar completamente nas mãos dos juízes o modo de fundar e justificar suas decisões. O direito de classe legislativa (e constitucional) seria supérfluo do ponto de vista do juiz: o passo justificativo que consiste em fundar a decisão na lei, ou bem é inútil (porque a lei é conforme a norma moral) ou bem está proibido (porque a lei é contrária à norma moral). A certeza do direito ficaria confiada apenas à consciência moral de cada juiz: posto que teria de fundar suas decisões sobre normas morais universais, deveria então utilizar coerentemente estas normas para fundar suas próprias decisões futuras. Mas a coerência no momento das decisões de cada juiz (sempre que se possa alcançar, pois um juiz pode reformular seu próprio sistema moral, caso entenda que se equivocou no passado) não parece suficiente para garantir a previsibilidade das consequências jurídicas das ações ou das soluções dos conflitos (que, segundo uma opinião muito comum, constituem alguns dos objetivos mais relevantes da organização jurídica). Mas essa tese (e a primeira e a segunda que a ela são redutíveis) poderia ter um alcance mais limitado. Ao invés de afirmar que a justificação última das decisões judiciais deve ser constituída por uma norma moral, poderia ser interpretada nesta maneira mais limitada: em todas as ocasiões nas quais um juiz deve justificar a escolha entre teses – interpretativas ou de fato – todas elas admissíveis dum ponto de vista jurídico 8 , deveria escolher a opção que esteja justificada por uma norma moral (e não por um principio metodológico, um interesse pessoal, uma norma da moral positiva, um critério compartilhado na cultura jurídica etc.), ao menos em última instância. Também com este alcance mais limitado 9 , tal posição “moralista” do neoconstitucionalismo traz alguns problemas: se as escolhas do juiz estão justificadas por suas crenças morais (e não por um principio metodológico, um interesse pessoal, uma norma da moral positiva, um critério compartilhado na cultura jurídica etc.), nada impede que tais crenças sejam moralmente incorretas (do ponto de vista da moral crítica), ou contrárias aos valores morais compartilhados pela comunidade, ou contrárias a critérios aceitos pela cultura jurídica etc. Qual seria então a razão para levar os juízes a justificar dessa maneira suas decisões? Dado que, ceteris paribus, a justificação de uma decisão judicial baseada sobre uma norma moral escolhida pelo juiz comporta um grau maior de indeterminação do direito em relação a outros tipos de justificação (relativa e não absoluta), não vejo então razões para atribuir uma preferência generalizada à justificação “moral” sobre os outros tipos possíveis. Poderíamos, noutras palavras, dizer que deixar que o juiz baseie a fundamentação de sua decisão sobre suas crenças morais é um procedimento que tem, talvez, igual valor intrínseco, mas sem dúvidas menor valor 7

As críticas que apresento às posições objetivistas (e, em particular, às racionalistas) não impedem que tais posições possam desenvolver um papel muito útil como críticas externas (à la Ferrajoli) da decisão e da justificação judiciais. 8 Noutras palavras, em tais ocasiões o fundamento último da decisão segue sendo uma norma jurídica, e os passos principais da justificação judicial continuam a fazer referência às normas jurídicas. 9 Limitado, mas nem tanto: toda justificação judicial apresenta opç~oes, e, portanto, um leque de decisões juridicamente possíveis.

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instrumental – em busca de conseguir a certeza do direito – que outros procedimentos, como, por exemplo, o que consiste em basear a fundamentação em uma norma jurídica. Também escolhar a quarta solução (a do juiz “sociólogo” da moral positiva) comporta problemas epistemológicos para o juiz, se bem que não tão graves como as soluções precedentes. Os juízes, de fato, geralmente não possuem os instrumentos necessários para indicar quais são as normas da moral de um país. E se os obstáculos epistemológicos são demasiado sérios, então também a quarta solução seria redutível à terceira. Mas suponhamos que, ao menos às vezes, os juízes possam superar os problemas epistemológicos. Restam, sem embargo, dois tipos de problemas: - O primeiro é que não exista homogeneidade moral na sociedade, ou seja, normas morais compartilhadas (o que é comum nas sociedades contemporâneas); - O segundo é que as normas morais compartilhadas estejam já incorporadas em regras ou princípios jurídicos. No primeiro caso, a quarta solução é redutível à terceira (o juiz deve eleger a norma moral que preferir). No segundo caso – que parece ser o que com freqüência assumem os neoconstitucionalistas – a justificação moral é co-extensiva à justificação jurídica, e se converte em totalmente inútil. Nos casos em que a justificação baseada sobre uma norma moral é possível e não é inútil, a quarta solução recomenda ao juiz que decida e justifique sua decisão baseando-se, em última instância, em uma norma moral positiva. Se bem que a adoção desta última solução não garanta, de fato, a correção moral da justificação judicial (a moral positiva, de fato, bem poderia estar em contraste com a moral crítica, e não nos é possível sabê-lo), parece prudente efetivá-la em muitas ocasiões, nas quais os procedimentos que permitem a “juridificação” das normas morais compartilhadas não funcionam, ou não funcionam bem (ditaduras, domínio de pequenos grupos, manipulação do consenso etc.). Esta solução atribuiria ao juiz um papel “democrático”, de modo que possa suprir as carências dos mecanismos democráticos tradicionais, e “transforme” a moral positiva em direito. Poderíamos, noutras palavras, dizer que deixar que o juiz baseie a fundamentação de sua decisão sobre uma norma da moral positiva seria, nestas situações, um procedimento que tem maior valor instrumental – em vias de conseguir um direito mais “democrático” – que outros procedimentos, como, por exemplo, o que consiste em basear a fundamentação em uma norma jurídica. Mas em situações nas quais os mecanismos democráticos de formação da lei funcionam mais ou menos bem, tal solução 10 favorece uma particular versão (dirigida aos juízes, e não apenas ao legislador como propõem por o demais os

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Ainda se a consideramos em seu alcance mais limitado, segundo o qual se deve recorrer às normas morais apenas para escolher entre opções juridicamente admissíveis. Existem, ademais, casos nos quais é a mesma lei a que obriga o juiz a basear sua decisão em normas, ou standards, recolhidos da moral positiva.

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defensores do enforcement of morals) da tese segundo a qual o direito deve converter em vinculante a moral positiva. Do meu ponto de vista moral, que poderia em certo sentido ser definido como “liberal”, contra esta tese valem as bem conhecidas objeções de Hart 11 no debate com Lord Devlin. Mas para ilustrar estas objeções se necessitaria obviamente outro ensaio 12 .

3. A conexão identificativa

O segundo problema, atualmente muito discutido entre os filósofos do direito, tem origem, por um lado, nas teorias iusnaturalistas, e, por outro, na distinção de Hart entre ponto de vista interno e externo. Parece-me, desenvolvendo e – espero – não traindo algumas idéias de Ricardo Caracciolo 13 e Eugenio Bulygin 14 , que é preciso distinguir entre pelo menos três diferentes posturas que afirmam a conexão identificativa entre direito e moral. Chamá-las-ei respectivamente: tese da conexão conceitual entre direito e moral crítica; tese da conexão necessária entre direito e moral crítica; tese da conexão empírica entre direito e moral positiva. Vou analisá-las e criticá-las separadamente. 3.1. A tese da conexão identificativa conceitual entre direito e moral crítica, ou objetiva ou verdadeira; isto é: a tese segundo a qual o conceito de direito possui uma avaliação moral, pode ser resumida da seguinte maneira: (a) “um sistema de normas S é direito se e apenas se é justo, ou seja, quando for conforme a moral crítica”. Pode-se criticar essa tese ao menos a partir de dois pontos de vista meta-éticos. De um ponto de vista não-cognoscitivista, não há um critério intersubjetivo para determinar se S é justo: haverá quem afirme que o é e quem afirme que não o seja. Então, como conseqüência do fato de que não há um critério para identificar a moral, não há um critério para identificar o direito, já que a moral objetiva ou verdadeira não existe, ou não é cognoscível. A tese (a) é sem sentido, tal como aquela da conexão conceitual entre os cavalos e os hipogrifos. A identificação de S é logicamente prioritária em relação ao juízo sobre a conformidade de S com a moral. De fato, para determinar que P é um “bom professor” é preciso previamente conhecer que é um “professor”. A proposta não-cognoscitivista (e positivista) é que a identificação de S se funda sobre critérios intersubjetivos não morais, assim como a (não-)identificação de S como direito. Apenas em seguida é que é feita a avaliação de S como direito justo ou injusto.

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Conferir H.L.A. Hart, Law, Liberty and Morality, Stanford University Press, Stanford, 1963. Para um primeiro exame da polêmica Hart-Devlin, conferir J. Malem, “La imposición de la moral por el derecho. La disputa Devlin-Hart” em R. Vázquez (comp.), Derecho y moral. Ensayos sobre un debate contemporáneo, Gedisa, Barcelona, 1998, pp. 59-79. Este volume constitui uma excelente introdução crítica ao debate contemporâneo sobre as relaç~oes entre direito e moral, também no âmbito do neoconstitucionalismo. 13 Conferir R. Caracciolo, L’argomento della credenza morale, citado. 14 Conferir E. Bulygin, Is There a Conceptual Connection Between Law and Morality?, citado. 12

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De um ponto de vista cognoscitivista, pode-se – mas não necessariamente se deve – afirmar a tese (a). Para sustentá-la é necessário ser cognoscitivista; no entanto, se alguém é cognoscitivista não é preciso que sustente a referida tese. Nem sequer é oportuno, de acordo com o argumento do “bom professor”: se apenas os bons professores são professores, os maus professores não o são, o que significa que não podemos falar em “maus professores”, como não poderíamos falar de “direito injusto”, e esta é uma dificuldade inútil que criaríamos à nossa maneira comum de nos expressar. A questão da aceitação da tese (a), como afirma Santiago Nino 15 , não é muito importante, porque se converte tão-só numa preferência lingüística entre uma ou outra definição estipulativa de “direito”. Sua suposta importância deriva apenas da carga emotiva associada à palavra “direito”, de se dizer, da idéia ulterior de que se deve obedecer ao direito, de que o direito é algo valioso. De todas as maneiras, afirmar a verdade da tese (a) implica afirmar a verdade de uma tese ainda mais controvertida e difícil de demonstrar, isto é, a tese do cognoscitivismo moral. 3.2. A tese da conexão identificativa necessária entre direito e moral crítica, ou objetiva ou verdadeira, pode ser resumida assim: (b) “Uma sistema de normas S é direito se e apenas se há funcionários que, de um ponto de vista interno, aceitam S, isto é, crêem que S é moralmente justo”. A crítica desta tese me parece muito simples. A existência também de apenas um sistema S1 (por exemplo, o sistema nazista), que, segundo os neoconstitucionalistas, não esteja de acordo com a moral crítica, ainda que os funcionários o aceitem acreditando que caso se adeque, refutaria a tese (b). A crença dos funcionários de que S1 é moralmente justo não constitui, de fato, nenhum argumento favorável à justiça de S1, e, por conseguinte, tampouco a favor da conexão entre direito e moral crítica. 3.3. A tese da conexão identificativa empírica entre direito e moral positiva pode ser resumida assim: (c) “Um sistema de normas S é direito se e apenas se (c1) todos os cidadãos, ou melhor, (c2) alguns cidadãos (por exemplo: todos, ou alguns dos funcionários) aceitam S, do ponto de vista interno, isto é, crêem que S é moralmente justo” (ainda sim essa crença pode ser falsa, avaliando-a a partir da moral crítica). Essa tese equivale a afirmar que S é direito caso esteja de acordo com a moral positiva de alguém: de todos os cidadãos (c1) ou de pelo menos alguns dos funcionários (c2). Em cada uma de suas formulações, a tese (c) é empírica. Caso adotemos a versão (c1), provavelmente o direito não teria surgido, porque não houve e não há nenhum sistema de normas moralmente aceito por todos os cidadãos. Deveríamos, portanto, deixar de falar em “direito”, esperando a aparição de uma comunidade unanimemente conformista no ponto de partida moral. Nem sequer na sociedade bem-ordenada de Rawls existiria o direito.

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Conferir C. S. Nino, Introducción al análisis del derecho, segunda ed., Astrea, Buenos Aires, 1980.

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Caso adotemos a versão (c2), a tese é provavelmente verdadeira. Contudo, por um lado, é trivial, e não seria impugnada nem pelos não-cognoscitivistas nem pelos positivistas. Por outro lado, a tese não é muito interessante, porque, de um ponto de vista empírico-sociológico, há outros elementos mais importantes que constituem o que poderíamos chamar de o “cimento” de um sistema jurídico: a força, o interesse, a ambição etc. Isto é, há muitos tipos de conexões empíricas entre o direito e os demais fenômenos sociais. Não se vê por qual motivo, na identificação do direito, um se deva limitar (ou privilegiar) a conexão do direito com a aceitação moral dos funcionários, e não levar em consideração, por exemplo, sua conexão com uma máquina coercitiva, ou com os interesses dos cidadãos.

4. Conclusão

Na introdução, afirmei que a tese do positivismo metodológico tem ao menos uma pressuposição: a aceitação da grande divisão entre ser e dever, em sua formulação lingüística, como distinção entre descrever, por um lado, e avaliar/ prescrever, por outro. Todavia, creio que não é preciso ser não-cognoscitivista para ser positivista metodológico. Os cognoscitivistas podem ser positivistas, mesmo que alguns construtivistas (que não são cognoscitivistas) possam não ser positivistas metodológicos, já que reduzem todas as descrições a avaliações, refutando a tese central do positivismo metodológico. Cabe questionar-se: é possível ser cognoscitivista, e aceitar a grande divisão? Creio que sim. Mesmo que se reduzam todas as avaliações morais e descrições, os cognoscitivistas, com efeito, aceitam que há descrições que eu chamaria de “genuínas” (isto é: de fatos empíricos), e podem ademais distinguir as descrições das avaliações não morais. Pode-se ser cognoscitivista moral, é dizer, acreditar conhecer o que é justo – e, portanto, afirmar que um enunciado como “S é justo” é verdadeiro ou falso – e, no entanto, pode-se seguir descrevendo o que é direito – afirmar, por exemplo, que “S é direito” – sem ligar necessariamente o direito com a moral, ou seja, seguir distinguindo duas descrições: “S é (ou não) justo” e “S é (ou não) direito”. Os teóricos (ou sociólogos) católicos do direito, que afirmam ser o direito nazista direito, ainda que direito injusto, não só de fato existem, como que, ademais, pareceme que não se contradizem. Eles afirmam, por exemplo, que não se deveria ter obedecido aquele direito, ainda que de fato fosse obedecido. Ao contrário dos construtivistas, os cognoscitivistas podem admitir uma mera identificação descritiva, não moral, de direito. Em conclusão, o desafio mais importante ao positivismo me parece constituído, atualmente, não pelo iusnaturalismo e pelo cognoscitivismo moral, senão por aqueles que o atacam em sua base epistemológica (em suas raízes empiristas e neopositivistas), pondo em debate a grande divisão entre ser e dever ser.

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