(Tradução) Bulygin - Sobre o Problema da aplicabilidade da lógica ao direito.

June 16, 2017 | Autor: Thiago Pádua | Categoria: Teoria do Direito, Teoria Geral do Direito
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SOBRE O PROBLEMA DA APLICABILIDADE DA LÓGICA AO DIREITO 1.

EUGENIO BULYGIN2. (Trad. Thiago Aguiar de Pádua3)

Com grande alegria recebi o convite para participar da homenagem a Ulrich Klug. Ademais dos motivos puramente pessoais, como uma amizade de longos anos que me vinculam a quem foi meu mestre, ocorrem também muitas razões objetivas para honrar Klug em seus setenta anos. Ulrich Klug não apenas é um dos juristas mais prestigiados da Alemanha por ser o primeiro a ter se encarregado da tarefa de aplicar as técnicas da lógica moderna ao direito, senão também é uma pessoa que soube unir seus conhecimentos teóricos com uma atitude exemplar no campo de sua ocupação prática. Klug tem consagrado sua atividade política, a qual sacrificou alguns anos de sua vida, não a acumulação de postos e honrarias, senão à realização consequente de seus ideais democráticos e liberais. Mas a apreciação de um pensador da categoria de Klug não pode consistir em uma mera enumeração de seus trabalhos e virtudes. A melhor forma de honrar um filósofo está na análise crítica de suas ideias. O livro publicado há pouco por Klug, que reproduz sua correspondência com Kelsen, me brinda com uma boa ocasião para isso. Nesta relação epistolar, que se prolonga ao largo de seis anos – de 1959 à 1965 -, faz reluzir o problema da aplicação da lógica ao direito. Sucessivamente, este problema deve ser considerado de perto, porque ainda quando tenha transcorrido já alguns anos, a pergunta sobre a existência de relações lógicas entre normas, em geral,

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BULYGIN, Eugenio. Sobre El Problema de la Aplicabilidad de la Logica al Derecho. Em: KELSEN, Hans; KLUG, Ulrich. Normas Juridicas y Analisis Logico. Trad. Jerónimo Betegón. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988, p. 9-26. Com a informação de que também foi publicado em livro de homenagem a Ulrich Klug, editado por Günter Rohlmann, “Festschrift für Ulrich Klug, Dr. Peter Deudner Verlag, Colonia, 1983, vol. I, p. 19-31. 2 Eugenio Bulygin é Advogado e Doutor em Ciências Sociais (Universidade de Buenos Aires). Presidente Honorário da Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social (IVR). 3 Thiago Aguiar de Pádua é Advogado. Mestrando em Direito (UniCEUB). Pesquisador do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC). Bolsista da Capes.

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e entre normas jurídicas, em especial, mantém sua atualidade. O pequeno livro que quero comentar aqui não apenas possui um elevado interesse histórico, senão também supõe, desde o ponto de vista teórico, uma importante contribuição para o esclarecimento de um dos problemas fundamentais da investigação lógico-normativa e da filosofia do direito; um problema que, ademais, ainda não encontrou uma solução reconhecida de maneira geral.

I

A carta de Kelsen de 6 de março de 1959 inaugura a correspondência com a pergunta acerca de se, na opinião de Klug, os princípios lógicos encontram aplicação às normas jurídicas ou em enunciados da Ciência do Direito ou em ambas. Isto, a juízo de Kelsen, não ficara claro das explicações de Klug em seu livro Juristische

Logik (1951). Esta pergunta supõe, manifestamente, uma diferença de princípio entre normas e proposições sobre normas; em síntese, proposições normativas. Disso deriva Kelsen que as normas são imperativas ou diretivas e que, enquanto tais, não podem ser caracterizadas como verdadeiras ou falsas. Como as relações lógicas da contradição e da implicação tem sido definidas tradicionalmente em termos de verdade, se segue disso que entre normas não existem relações lógicas. Pelo contrário, as proposições normativas são verdadeiras ou falsas; por essa razão não é problemática a aplicabilidade dos princípios lógicos às proposições normativas. Mas não é fácil (sempre) diferenciar as normas das proposições normativas, já que ambas podem ser expressadas por meio de enunciados idênticos. Em particular, os chamados enunciados deônticos (é dizer, enunciados nos quais figuram expressões deônticas como “dever”, “poder”, “proibido”, “obrigatório”, “permitido”, etc), são sistematicamente ambíguos; segundo as circunstâncias, pode resultar muito difícil averiguar se um enunciado determinado expressa uma norma ou uma proposição normativa. É significativo a respeito desta 2

dificuldade que a diferença básica entre normas e proposições normativas que hoje é em geral aceita, não fora claramente reconhecida durante um longo tempo. Não apenas os juristas, mas também os lógicos, necessitaram de muito tempo para chegar a sua compreensão, se bem que os primeiros chegaram à ela consideravelmente antes.4 O próprio Kelsen necessitou de bastante tempo para reconhecer com claridade a diferença; em seus primeiros escritos, a proposição jurídica não era uma descrição, senão uma sorte de reconstrução da norma.5 Também o fundador da moderna lógica deônticas, G. H. von Wright, expressou claramente pela primeira vez a diferença entre norma e proposição normativa em “Norm and Action” (1963). Em seu clássico ensaio “Deontic Logic” (1951), as fórmulas “Pp” e “Op” eram interpretadas como normas enquanto proposições verdadeiras ou falsas.6 A maioria dos lógicos que se ocuparam da lógica deôntica nos anos cinquenta e no começo dos anos sessenta tampouco advertiram para a diferença e trataram as expressões deônticas como proposições.7 Não é de se estranhar por isso que também Klug, em Juristische Logik (1951), não estabelecera nenhuma distinção básica entre norma e proposição normativa. As modalidades deônticas (tais como proibido, obrigatório ou permitido) são tratadas, não como operadores, senão como predicados; em consequência, as normas são proposições predicativas e não há necessidade de uma lógica normativa específica: a lógica geral de predicados de primeiro grau é suficiente, na opinião de Klug, para dar conta do raciocínio jurídico. Oito anos depois, todavia, mantém Klug o mesmo ponto de vista. Em sua resposta, de 27 de abril de 1959, reproduz seu parecer acerca de que a lógica é

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BULYGIN, Eugenio. Norms, Normative Propositions and Legal Statements, in: GUTTORN FLOISTAD (Comp.), Contemporary Philosophy, vol. 3: Philosophy of Action, Martinus Nijhoff Publishers, La Haya, 1982. 5 KELSEN, Hans. Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, Tubinga, 1911; e KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre, 1ª ed. Viena, 1934. 6 WRIGHT, G. H von. Deontic Logic, Mind 60 (1951); Veja-se também o prefácio aos “Logical Studies”, Londres, 1957. 7Veja-se, por exemplo, PRIOR, A. N. Formal Logic. Oxford, 1955; e, ANDERSON, A. R. The Formal Analysis of Normative System. New Haven, 1956.

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aplicável não só a proposições da Ciência Jurídica (proposições normativas), senão também às próprias normas jurídicas. Isso vem fundamentado na seguinte tese: a) Em ambos os campos se trata de sistemas de enunciados nos quais não podem ocorrer enunciados contraditórios (ponto 1, p. 10). b) Existem relações de consequência ou de derivação entre enunciados de dever (normas, imperativos, diretivas) (pontos 2 e 6). c) As normas são enunciados verdadeiros ou falsos (pontos 3, 4 e 5). Não existe, por tanto, nenhuma dificuldade por razões de princípio para a aplicação das regras da lógica às normas. (Se bem que quando Klug fala de enunciados de dever, evidentemente se refere às próprias normas, já que a respeito dos enunciados de dever que expressam proposições normativas não existe divergência de opiniões). Os dois primeiros argumentos (a e b) pressupõem precisamente o que tratam de demonstrar, a saber: que entre normas se dão relações lógicas. Porque se não se dão, não se pode falar de relações de derivação nem de contradição. E isto é exatamente o que Kelsen nega. Somente a tese c) pode, portanto, ser utilizada como argumento para a aplicação da lógica às normas; mas esta tese pressupõe mais – se se toma literalmente – do que provavelmente estaria Klug disposto a aceitar. Com efeito, se as normas são proposições acerca de um dever, surge em seguida a pergunta pela origem deste dever: Se constitui pela norma, ou existe independentemente dela? No primeiro caso, as normas são proposições extraordinariamente singulares, muito diferentes do resto das proposições pelas quais enunciam ou constituem ao mesmo tempo. Se estes tipos de proposições são, em geral, possíveis, é algo que não está claro. A segunda via conduz diretamente a postulação de atos normativos. Então uma determinada conduta é, por exemplo, obrigatória independentemente da norma e esta é simplesmente uma proposição acerca do dever ser da conduta: é verdadeira se, e apenas se, a conduta é realmente obrigatória. Esta concepção pressupõe assim uma ontologia muito complicada, segundo a qual, ademais de atos empíricos, também se dão atos normativos. Quem sabe seja defensável uma ontologia deste tipo, mas seguramente ela e incompatível com o positivismo jurídico, já que

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conduz diretamente ao Direito Natural. Mas nem sequer todos os jusnaturalistas estariam dispostos a estender esta concepção das normas às normas jurídicas positivas, ainda quando a aceitaram a respeito das normas de Direito Natural. E isso porque, desde logo, as normas jurídicas positivas parecem ser constitutivas: uma conduta adquire só com elas a qualidade de ser obrigatória e seria errôneo descrever a situação como se uma norma que prescreve, por exemplo, que se tem que circular pela direita fora uma mera proposição acerca de um dever já existente. Como já se havia dito, é duvidoso que Klug estivesse disposto a defender consequentemente uma concepção das normas positivas e de uma ontologia do tipo referido. Seja como for, não faz nenhuma tentativa, nem em seu livro e nem em sua polêmica com Kelsen, de defender a tese c) com os argumentos recém esboçados. Como veremos em seguida, elege um caminho totalmente diferente.

II

No manuscrito de 15 de maio de 1959 (p. 35), Kelsen expõe detalhadamente seu ponto de vista em relação a diferente estrutura lógica das normas e das proposições normativas e a não aplicabilidade da lógica às normas. Critica especialmente a concepção de normas como juízos ou proposições, e, se refere de forma explícita a Klug. A resposta de Klug de 17 de julho de 1959 contém argumentos novos e interessantes: insiste que as normas (fala de enunciados de dever, mas se refere evidentemente às normas) são, justamente, enunciados e que a lógica tem que ser válida para todo tipo destes, mas aceita a distinção entre norma e proposição normativa. Muito embora também agora as normas sejam caracterizadas como “enunciados nos quais um legislador enuncia algo acerca de um dever”, e que são verdadeiras ou falsas, Klug faz uma distinção de grande alcance entre a verdade das proposições normativas e a verdade das normas. Esta última radica não na correspondência com um fato, senão em que a norma seja um axioma ou esteja fundada em axiomas (é dizer, que seja dedutível a partir de axiomas). A isto Klug chama de 5

“verdade formal”, a diferença da verdade material das proposições normativas. Dela se segue que as normas podem ser verdadeiras ou falsas em um sentido completamente diferente da verdade dos enunciados ordinários, e se são caracterizadas como “enunciados” (proposições), então esta expressão adquire um significado muito distinto. Se poderia, quem sabe objetar que o argumento de Klug acerca da aplicabilidade da lógica às normas repousa sobre uma petitio principii, para demonstrar que as regras lógicas são aplicáveis às normas, Klug recorre ao conceito de “derivabilidade”, que já implica a existência de relações lógicas entre normas. Se não se dessem essas, tampouco existiriam normas derivadas ou verdade formal. Poderia contestar Klug que seu conceito de derivabilidade pode ser introduzido de forma puramente sintática, com ajuda de regras de inferência, sem recorrer ao conceito de verdade no sentido de correspondência, com o qual a objeção principal de Kelsen contra a existência de implicações lógicas entre normas se debilitaria. A presença de relações lógicas não pressupõe, portanto, a verdade material das normas. Ainda que seja possível uma tal definição de derivabilidade, puramente sintática, está fora de toda dúvida. Mas com ele não terminam as dificuldades. O comportamento lógico do conceito de verdade formal é muito peculiar. Em primeiro lugar, está referido na noção de sistema: uma norma é verdadeira ou falsa em um determinado sistema, e uma e a mesma norma pode ser verdadeira em um sistema e falsa em outro. Em segundo lugar, uma norma pode não ser nem verdadeira e nem falsa em um mesmo sistema, e isto ocorre quando o sistema não é completo, no sentido de que nem todas as normas são teses (isto é, axiomas ou teoremas) do sistema. E dificilmente se pode esperar que um sistema jurídico seja completo neste sentido! E mais, uma norma poderia ser ambas as coisas, verdadeira e falsa e um mesmo sistema se este é contraditório (praticamente também seria este o único caso em que o sistema é completo). E por razões estritamente lógicas, a coerência de um sistema jurídico não pode estar garantida, já que a questão sobre se as normas podem figurar como axiomas dos respectivos sistemas

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é algo que depende de atos contingentes (empíricos), como o ato de promulgação das normas ou sobre sua aceitação. Por ele é possível, e sucede com frequência, que um legislador dite normas contraditórias (incompatíveis) como axiomas do sistema. Houvera merecido a pena seguir explorando o caminho que toma Klug nesta carta. Desgraçadamente, ele não o fez; em sua carta seguinte (de 26 de abril de 1960) nos encontramos com um giro notável.

III

A mencionada mudança consiste, primeiramente, em que Klug aceita agora expressamente que normas e proposições normativas possuem estruturas lógicas diferentes, e em segundo lugar, que as normas carecem de valores de verdade (p. 66). Mas às normas se lhes correspondem outros valores: valido e não válido, e estes se comportam exatamente igual a verdadeiro ou falso. Esta analogia formal entre verdade e validez permite, segundo Klug, construir uma lógica das normas que, certamente se diferencia da lógica das proposições (em que tem a ver com normas e não com proposições), mas que é isomorfa com aquela. A diferença se encontra somente em um plano semântico; desde um ponto de vista sintático, ambos os cálculos são idênticos. Portanto, se trata exclusivamente de um problema de interpretação. Para esta lógica das normas valem princípios análogos aos princípios da lógica proposicional ordinária, como por exemplo o “princípio lógico-normativo do

tertium non datur”, que diz: “ou a ‘norma-x’ ou a ‘norma-não-x’ é válida” (p. 67). A ela segue a muito interessante carta de Kelsen (de 4 de julho de 1960) que, em minha opinião, marca o ponto alto da discussão. A enxergo especialmente importante porque a ideia da analogia entre verdade e validez se vem estendendo muito e se apresenta, com distintas variantes, em muitos autores.8 Kelsen intenta

Veja-se, por exemplo, SCHREIBER, R. Logik des Rechts, Berlín-Gotinga-Heidelberg, 1962; e, KALINOWSKI, G. Über die Bedeutung der Deontik für Ethik und Rechtsphilosophie, Em: CONTE; HILPINEN; VON WRIGHT (Comp.). Deontische Logik und Semantik, Wiesbaden, 1977. 8

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demonstrar que a pretendida analogia, na realidade, não existe, por que o comportamento lógico de ambos os valores é diferente em aspectos relevantes. A carta de Kelsen começa com a pergunta decisiva: O que é a “normanão-x”? Analisa dois possíveis candidatos ao posto: 1) a norma que derroga a norma x, e, 2) a norma que ordena a omissão da conduta ordenada na norma-x. Em ambos os casos a situação mostra escassa semelhança com uma contradição lógica. De duas proposições contraditórias, uma sempre é verdadeira e a outra, falsa; no caso de uma derrogação, as duas normas são, em princípio, válidas e ambas perdem em um momento determinado a sua validez. A saber: a norma derrogada, enquanto norma derrogatória, adquire validez; a norma derrogatória, enquanto tenha realizado sua função, é dizer, a supressão da outra norma. O tempo desempenha aqui um papel importante em contraste com uma contradição lógica em que nenhuma das duas proposições perde a sua verdade, porque uma é (intemporal) verdadeira e a outra é (intemporalmente) falsa. Na derrogação não se dá nenhum conflito entre as duas normas e é inclusive possível que nenhuma delas seja válida; Ao contrário, duas proposições contraditórias não podem ser falsas. Quando uma norma ordena uma determinada conduta e outra norma proíbe a mesma conduta (o que é o mesmo, ordena a omissão desta conduta) se produz um conflito entre normas, mas também este conflito é muito diferente de uma contradição lógica. Se trata, melhor dizendo, de um antagonismo teleológico que cria uma situação socialmente indesejável, mas perfeitamente possível. Kelsen fornece uma série de argumentos para a fundamentação desta tese: 1. Para que possa existir um conflito entre normas, ambas têm que ser válidas, pois do contrário não se dá nenhum conflito. 2. A pergunta não é qual das duas normas vale e qual não vale, senão qual das duas deve perder sua validez. 3. A perda de validez não se deve a razões lógicas, senão à base de uma terceira norma, que vem a derrogar uma das duas (ou também as duas). Mas a

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derrogação não é um princípio lógico, e carece absolutamente de algo análogo, relacionado entre proposições. 4. A derrogação pode, mas não tem porque realizar-se; quando não existe nenhuma norma derrogatória, como as regras lex superior ou lex posterior, então as normas em conflito seguem ambas sendo validas e o conflito não se resolve. 5. Estas normas derrogatórias não são necessárias, pois se trata de normas positivas. 6. Uma diferença fundamental se dá entre verdade e validez: em relação à validez, é necessário um ato de promulgação; a respeito da verdade, não é preciso nenhum ato linguístico. 7. Finalmente, também é possível que nenhuma das duas normas em conflito seja válida; de modo que tampouco é aplicável o princípio do terceiro excluído. O anterior permite a Kelsen chegar as seguintes conclusões: a) O valor validez não corresponde ao valor verdade. b) Os princípios lógicos da contradição e do terceiro excluído não são aplicáveis a normas propositivas. c) Uma contradição lógica se dá somente entre duas proposições, das quais uma afirma a validez e a outra a “não-validez” de uma norma. O que disse Kelsen acerca do conflito entre normas me parece fundamentalmente correto, se bem que o próprio Kelsen somente chegou a esta concepção em seus últimos anos. Durante muito tempo havia sustentado que no Direito não se poderiam dar conflitos nem lacunas. 9 Tão só se podia anuir que o caso que menciona Kelsen não representa a única maneira pela qual se pode dar um conflito entre normas; existe outra forma de antinomia quando uma norma proíbe uma outra conduta e outra permite o mesmo comportamento.10 Mas também este conflito mostra escasso parentesco com a contradição lógica.

KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre, 2ª ed. Viena, 1960, p. 209 ss, e 251ss. ALCHOURRÓN, C. E; BULYGIN, Eugenio. The expressive Conception of Norms. Em: HILPINEM, R. (Comp.). New Studies in Deontic Logic. Dordrecht, 1981; 9

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Pelo contrário, a análise da derrogação que Kelsen oferece resulta bastante imperfeito. Em primeiro lugar, não está claro, em absoluto, se depois de tudo existem normas derrogatórias. Se por norma se entende um enunciado que ordena, proíbe ou permite algo, então o enunciado que derroga uma norma não é uma norma, já que de tal modo nada se proíbe, nem se permite, senão que se exclua ou se rechace uma norma. (Outra questão é que esta norma, como consequência do ato de derrogação, perde ou não sua validez).11 Kelsen é bem consciente desta dificuldade; por ela caracteriza a derrogação como uma função normativa específica: assim, as normas são enunciados que regulam comportamentos (ordenam, permitem, autorizam) ou derrogam uma norma. Esta regulamentação linguística – pois disso se trata – tem todo o aspecto de ser uma solução ad hoc. Demasiado fácil seria que se pudesse resolver problemas filosóficos por meio de uma definição! Daí que também esteja nada claro o que se quer dizer quando se fala da validez da norma derrogatória: se o enunciado derrogatório não é uma norma, então sua validez tem que significar algo diferente de validez da norma. Acerca disso, Kelsen, sem embargo, nada disse. A errônea interpretação que Kelsen faz dos enunciados derrogatórios o leva igualmente à errônea afirmação de que uma norma derrogatória só pode tornarse válida se outra (a por derrogar) já o seja. É perfeitamente possível rechaçar de antemão normas todavia não promulgadas.12 Também é mais do que duvidosa sua afirmação acerca de que no âmbito das proposições não existe algo análogo para a derrogação. Por suposto, as proposições também podem ser rechaçadas. Sobre isso tem aparecido abundante literatura nos últimos anos.13 Sem embargo, em um ponto Kelsen tem razão: indubitavelmente o enunciado derrogatório não é uma negação da norma a ser derrogada. Sua afirmação ALCHOURRÓN, C. E; BULYGIN, Eugenio. The expressive Conception of Norms. Em: HILPINEM, R. (Comp.). New Studies in Deontic Logic. Dordrecht, 1981; ALCHOURRÓN, C. E; BULYGIN, Eugenio. Sobre la existencia de las normas jurídicas. Valência/Venezuela, 1979. 12 ALCHOURRÓN, C. E; BULYGIN, Eugenio. The expressive Conception of Norms. Em: HILPINEM, R. (Comp.). New Studies in Deontic Logic. Dordrecht, 1981; 13 GÄRDENFORS, P. Conditionals and Changes of Belief. Em: NINILUOTOR; TOUMELA R. (Comps.) The Logik of Epistemology and Scientific Change. Amsterdam, 1979. 11

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de que nem em caso de derrogação e nem no caso de conflito entre normas exista uma norma que possa ser concebida como negação de uma norma dada permanece de pé. Deste modo, se derruba a analogia entre verdade e validez, e também, em consequência, o isomorfismo entre lógica das normas e lógica das proposições.

IV

A resposta de Klug compreende duas cartas (de 7 de outubro de 1960 e de 8 de outubro de 1961). Se mostra de acordo com algumas das teses de Kelsen; assim, renuncia expressamente a analogia entre o valor validez e o valor verdade. Não obstante, Klug volta a chamar a atenção sobre o fato de que se trata de um problema de interpretação de um cálculo. Em cálculos abstratos não interpretados, o problema não se enraíza. Mas a controvérsia se refere à aplicabilidade da lógica às normas, vale dizer, se trata de um cálculo já interpretado! Na opinião de Klug, as explicações de Kelsen mostram, a respeito das normas, que um cálculo bivalente resulta inadequado; em consequência, propõe intentá-lo com cálculos polivalentes. Contudo, fundamentalmente, o cálculo dos sistemas normativos tem que ser possível, a não ser que as normas “em nenhum caso possam ser integradas em um sistema racional”. Em princípio, Klug tem razão: se as normas se expressam por meio de enunciados com sentido, então tem que ocorrer relações lógicas entre estes enunciados. Mas a pergunta decisiva, que flutua no ar e que não foi formulada por nenhum dos dois debatedores, é a seguinte: existem realmente enunciados com sentido que podem ser caracterizados como normas? A resposta a esta pergunta depende do que se entende por norma. Tenho a impressão de que Kelsen e Klug partem de concepções acerca do ser da norma radicalmente diferentes e então, tampouco seria de surpreender-se que não cheguem a um acordo em relação a aplicabilidade da lógica às normas.

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Estas duas concepções serão denominadas aqui como concepção expressiva e concepção hilética. Para a concepção expressiva, o especificamente normativo se encontra em um plano pragmático, não tanto pelo sentido do enunciado, mas pelo seu uso. Uma oração pode ser utilizada com diferentes finalidades (e sem que com isso modifique seu sentido): para afirmar algo, para prescrever, para perguntar, etc. O resultado destes diferentes atos linguísticos é então uma afirmação, uma prescrição (norma), uma pergunta, etc.14 A norma vem constituída assim por um ato linguístico e mais precisamente por um ato de ordenar ou de permitir. Por esta razão não existe norma sem o correspondente ato linguístico de promulgação (não há imperativo sem imperante!) e não se dão relações lógicas entre normas. Entende-se sem dizer que esta concepção conduz a um certo irracionalismo normativo.15 Se não existem relações lógicas entre normas, então estas tampouco podem ser um sistema. A racionalidade aparece então somente no plano das proposições normativas, já que só entre estas podem estabelecer-se relações lógicas. Para a concepção expressiva não pode existir, portanto, uma lógica das normas, e a lógica deônticas só pode adotar a forma de uma lógica das proposições normativas. A concepção expressiva vem se estendendo realmente muito, e não só entre juristas, ainda que neste âmbito pareça ser especialmente popular. Kelsen, como já se disse, parte da concepção expressiva, mas cabe observar que algumas de suas teses anteriores resultam incompatíveis com esta concepção. Veremos em seguida como nesta fase evolutiva não chega a divorciar-se totalmente de suas velhas ideias. Em sua obra, postumamente aparecida, “Allgemeine Theorie der Normen” 16, não se consuma de forma definitiva a sua volta ao expressivismo. Mas já nesta correspondência, muitas de suas afirmações só são compreensíveis à luz da concepção expressiva.

LEWIS, C. I. An Analysis of Knowledge and Valuation. La Salle: Illionois, 1946, p. 49; REICHENBACH. H. Elements of Symbolic Logic. New York, 1947, p. 337. 15 WEINBERGER, O. Normentheorie als Grundlage der Jurisprudenz un Ethik . Berlim, 1981; mas as consequências dele não têm por que ser tão desoladoras como crê Weinberger. 16 KELSEN, Hans. Allgemeine Theorie der Normen. Ed. K. Ringhofer; R. Walter. Viena, 1980. 14

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Para a compreensão hilética, ao contrário, as normas são orações com um sentido específico, normativo ou prescritivo; existe, pois, uma diferença semântica entre normas e proposições. Assim, uma norma é um ente ideal independente de todo ato linguístico, tal qual com relação às proposições. Mas se diferencia delas precisamente em seu sentido, que não é descritivo, senão prescritivo. E naturalmente entre enunciados com sentido podem estabelecer-se relações lógicas. Para tanto não faz falta aceitar que as normas tenham valores de verdade: a diferença entre o sentido (descritivo) das orações proposicionais e o sentido prescritivo das orações normativas radica precisamente em que as últimas não são verdadeiras e nem falsas. Klug reconheceu claramente que sua tese anterior de que as normas devem ser consideradas como enunciados verdadeiros ou falsos era irrelevante para sua posição. Se pode admitir que às normas não corresponde nenhum valor de verdade e todavia sustentar que entre normas se dão relações lógicas. Mas isto torna imprescindível uma lógica específica das normas e é precisamente este passo que Klug renuncia a dar. Ao invés disso, intenta apresentar uma alternativa ao posto de norma de negociação “não-x”. Em sua carta de 8 de outubro de 1961 disse expressamente: “para a formalização do conflito normativo mencionado, a título de exemplo o símbolo F(x) significa a norma: x deve amar seu inimigo... A negação de F(x), escrita F(x), enuncia então que: a norma de que x deve amar seu inimigo não é válida.” Mas isso representa uma confusão inadmissível de dois níveis de linguagem: a norma “x deve amar seu inimigo” pertence a uma linguagem; a oração “a norma de que x deve amar seu inimigo não é válida” pertence, ao contrário, a outra linguagem que, em relação à primeira, é uma metalinguagem: se trata de uma oração que enuncia algo sobre a norma F(x), a saber: que não é válida. Em consequência, a fórmula F(x) não expressa uma norma, senão um enunciado (metalinguístico) acerca da norma F(x). Mas a negação de uma norma deveria ser assim mesmo, uma norma! A confusão entre normas e proposições normativas se faz patente na definição que Klug oferece sobre a contradição lógico-normativa: “Existe uma contradição lógico-normativa (em um cálculo bivalente) quando sobre uma e a mesma

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norma se afirma a sua validez e sua não validez ao mesmo tempo” (p. 89). Mas isso não é uma contradição lógico-normativa, senão uma contradição lógico-proposicional ordinária sobre a qual Kelsen já havia chamado a atenção; se trata de uma contradição entre duas proposições normativas, e não entre duas normas.

V

Em seu extenso manuscrito “Recht und Logik”, que como assinala Klug, marca o real final da discussão, Kelsen resume seus pontos de vista acerca da relação entre a lógica e as normas jurídicas, e é precisamente aqui onde se inserem manifestamente certas incongruências em sua proposição. Como já havia assinalado, Kelsen parte nesta correspondência de uma concepção de norma inteiramente nova que resulta incompatível com seus pontos de vista anteriores. Mas ele mesmo não parece estar consciente deste fato, pois junto com suas novas ideias aparecem também determinados vestígios das velhas que resultam incompatíveis com àquelas. Limitar-me-ei a mostrar duas destas incongruências relacionadas com o conceito de validez e com o problema das relações lógicas entre as normas. Aparecem no manuscrito duas definições do conceito de validez incompatíveis entre si. De uma parte, se define a validez como existência da norma (p. 95), dependendo esta do ato de criação: uma norma é válida, ou existe, desde o momento em que é criada até o momento de sua derrogação. Aqui a validez é um conceito fático: os atos de criação e derrogação são fenômenos fáticos empiricamente verificáveis. E somente estes fatos são relevantes para a validez. Somente quando a validez é interpretada neste sentido fático se compreendem as afirmações de Kelsen sobre não haver nenhuma norma sem uma vontade que as estabeleça (p. 96) e de que não existem normas derivadas. Tudo é consequência da concepção expressiva das normas.

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Por outro lado, a validez é definida como obrigatoriedade: é que uma norma para ser válida deve ser obedecida (p. 93). Isto é um conceito totalmente diferente: uma norma criada pode não ser obrigatória e uma norma não promulgada pode muito bem ser vista como obrigatória (como normalmente sucede com as normas morais). Este segundo conceito de validez não é fático, senão normativo; é dizer, uma afirmação acerca da validez da norma não é uma alegação empírica e sim uma prescrição, isto é, que a norma deve ser obedecida. Validez como obrigatoriedade é totalmente incompatível com a concepção expressiva das normas. Em outro escrito17 tentei demonstrar que o conceito normativo de validez é igualmente incompatível com o conceito de positivismo de Kelsen, já que então os enunciados da ciência jurídica que afirmam que uma norma é válida seriam prescritivos e não descritivos, e isto Kelsen não pode admitir de nenhuma forma, a não ser que estivesse disposto a renunciar a seu ideal de consciência valorativa e puramente descritiva. Com suas novas ideias (isto é, com seu expressivismo) esta definição concorda menos ainda. Em segundo lugar, Kelsen afirma com insistência ao longo de toda a correspondência e também em “Recht und Logik” que não existem relações lógicas entre normas, e especialmente que não cabe falar de contradição ou de relações de implicação (p. 111 e 114). Por esta razão, tampouco se dão normas derivadas: toda norma, para existir, precisa de um ato de criação. Também isto é uma consequência de seu expressivismo. Sem embargo, surpreendentemente, Kelsen afirma que apesar de tudo se dão relações lógicas entre normas, a saber: a relação lógica de subsunção que permite fundar uma norma particular em uma norma geral (p. 114). Em que consiste esta fundamentação ou subsunção, que não pode ser uma relação de implicação, é um mistério e Kelsen não faz esforço algum para revelar este segredo. Não faz falta dizer que esta doutrina entra em uma contradição crassa com seu expressivismo. Em seu comentário de 20 de julho de 1965, Klug repete substancialmente os argumentos já analisados e insiste na alegação de que as normas

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BULYGIN, Eugenio. Enunciados jurídicos y positivism. “Análisis Filosófico”, 2, 1981.

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devem ser concebidas como estruturas linguísticas e que a lógica tem aplicação imediata a toda estrutura de linguagem. Ademais, chama atenção para um “moderno caso de aplicação de leis lógicas às normas”, como o caso do uso da informática na aplicação do Direito. As explicações de Kelsen sobre lógica, contidas em sua última carta, de 28 de julho de 1965 tem pouco interesse, exceto como sintoma de sua antiquada concepção de lógica. A ele se refere Klug em seu epílogo. Certamente é uma pena que Kelsen haja estado pouco familiarizado com a lógica moderna, já que mesmo sem o aparato lógico teve intuições muito valiosas. O conhecimento da lógica moderna lhe permitiria apresentar suas teorias de forma muito mais precisa, e evitaria alguns erros.

VI

Mesmo quando as duas partes em discussão partem de pressupostos radicalmente diferentes e acabam preservando em suas respectivas posições, este intercâmbio de correspondência oferece uma imagem sumamente viva de uma genuína discussão filosófica. Ambos intentam fazer valer distintos argumentos e invalidar os do adversário. Com ele, o problema ganha em claridade, e em muitos problemas filosóficos uma aproximação clara pode ser mais importante que a sua solução. A questão é que resulta muito difícil dizer qual das duas concepções é a correta. De uma parte, a concepção das normas apresentada por Klug se apoia em intuições claras: que na linguagem prescritiva das normas são empregadas certas expressões como “não”, “e”, “ou”, entre outras, pelo estilo que desempenham uma função muito similar às conectivas lógico-proposicionais é algo que está fora de toda discussão. Entretanto, como devem se definir sem referência a valores de verdade está menos claro. Também parece intuitivamente certo que as normas se apresentam como premissas ou conclusões em raciocínios lógicos; sem embargo, não é fácil 16

integrar estas intuições em uma teoria coerente. Neste sentido, há de se destacar que o fundador da lógica deônticas e um dos mais importantes filósofos de nosso tempo, G. H. von Wright, quem durante largo período de tempo representou a opinião de que entre normas existem relações lógicas, tem passado ao final a manter um ponto de vista contrário.18 Já que são muito grandes as dificuldades para salvar a concepção hilética (colocadas em manifesto, em parte, por Kelsen), e não se vislumbra com claridade como pode superá-las, me inclino pela opinião de que não há um teste decisivo para se preferir uma concepção frente à outra. E no entanto, não se tem encontrado um teste desse tipo, a questão acerca da eleição permanece sem solução. Não necessito mencionar que minhas eventuais observações críticas estão destinadas somente para ressaltar a admirável sagacidade dos dois contendores, pois mesmo a crítica mais aguda é compatível com a maior admiração, já que nada pode estar mais afastado do espírito filosófico do que a aceitação acrítica de opiniões alheias.

18

WRIGHT, G. H. von. Problems and Prospects of Deontic Logic. A Survery. Em: AGAZZI (Ed.). Modern Logic. Dordrecht, 1980.

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