Tradução: \"Como agir como se não se fosse livre: Uma defesa contemporânea do fatalismo\", de Frank Ruda

May 27, 2017 | Autor: Luiz Philipe de Caux | Categoria: Hegel, Descartes, Karl Marx, Fatalism, Freedom
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COMO AGIR COMO SE NÃO SE FOSSE LIVRE Uma defesa contemporânea do fatalismo Frank Ruda

“O homem é o ser cuja aparição faz com que um mundo exista “ Jean-Paul Sartre1 “Kill your middle class indecisions, now is not the time for liberal thought” Bloc Party Este artigo se baseia no pensamento de Descartes, Kant, Hegel e Marx a fim de oferecer uma abordagem crítica do estado subjetivo predominante hoje: a indiferença. Suas coordenadas conceituais são elaboradas sistematicamente e é mostrado em que sentido ela implica, em última análise, uma concepção problemática e mal compreendida de liberdade. Tendo como pano de fundo essa análise, o artigo defende o fatalismo como um meio possível para enfrentar estados de indiferença e, desse modo, dar um passo da análise crítica à formulação afirmativa de um princípio de orientação: age como se não fosses livre. Crítica e moral provisória Muitos pensadores contemporâneos insistiram em que há, no mundo de hoje, indiferença, irresolução e indecisão por toda parte. Alain Badiou chegou muitas vezes a argumentar que o sistema político atual depende não apenas da produção, mas também 1

Sartre, 1968, p. 301.

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da administração e da organização dessas indiferenças. Parece ser, então, o tempo devido para tratar da indiferença e para fornecer meios de enfrentá-la. As reflexões seguintes não devem, portanto, ser lidas apenas como um exercício conceitual apoiado na história da filosofia. Elas reclamam antes uma validade contemporânea. A análise da indiferença fornecida no que segue deve ser lida como um esforço de oferecer uma avaliação de um modo de subjetividade e de subjetivação que se pode dizer dominante hoje. Nesse sentido, a análise é crítica. Contudo, as investigações subsequentes não se limitam a uma abordagem puramente negativa e crítica do estado atual de indiferença; elas também propõem uma maneira de enfrentá-lo, a saber, o fatalismo. Mas aqui é necessário se falar com precisão: o fatalismo não é, em si mesmo, já um novo tipo de atitude subjetiva; não é já a emergência de um novo tipo de sujeito. Tomo antes o fatalismo como um dos meios estratégicos mais cruciais e importantes - no sentido de uma moral provisória cartesiana2 - de uma preparação subjetiva para que uma mudança real aconteça. As observações seguintes, portanto, não propõem uma ética, mas primeiro uma análise crítica de um fenômeno que governa o não-mundo contemporâneo e, em última análise, propõem uma diretriz para a luta; uma diretriz que busca superar a frustração, a nostalgia e a melancolia onipresentes hoje no regime de circulação dos corpos e da troca das linguagens. Indiferença e fatalismo Há uma passagem notável no último e, talvez, ao menos hoje, mais obscuro livro do primeiro filósofo moderno do sujeito, a saber, a obra As paixões da alma, de René Descartes. Nessa passagem, Descartes nota que em uma situação na qual não se sabe como agir ou da qual não se sabe o que pensar porque as coisas não são claras o bastante e ainda não se obteve conhecimento o suficiente para avaliá-la, uma certa dose de indiferença ou de irresolução pode ser de ajuda. Distanciar-se da situação e refletir pode ajudar – a irresolução “é causa de que... [a alma] disponha de tempo para escolher antes de se decidir, no que verdadeiramente apresenta certa utilidade que é boa”.3 No Descartes introduz este conceito em seus Discurso sobre o método, ao afirmar: “a fim de não permanecer irresoluto [irrésolu] ... formei para mim mesmo uma moral provis ria”, escartes, 2010a, p. 79. 3 Descartes, 2010b, p. 382. 2

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entanto, e é isso o que torna notável essa consideração, Descartes dá seguimento a esse pensamento sustentando que permanecer nesse estado de indiferença, num estado que se abstém da ação, “quando dura mais do que o necessário, e quando leva a empregar no deliberar o tempo requerido para o agir, é muito má”.4 Assim, o inicialmente instrutivo e útil modo da indiferença ou da irresolução pode muito facilmente se tornar um problema para o sujeito quando ele não é mais capaz de deixá-lo. E a irresolução no juízo e na ação, a indecisão (Descartes usa os dois termos quase como sinônimos) é um resultado de um tornar-se indiferente do próprio agente que deveria ter agido. Em vista desse diagnóstico, Descartes aborda também em seu As paixões da alma uma forma de enfrentar, superar e combater a irresolução - e irresolução, como se deve acrescentar, é “um tipo de receio”.5 O meio próprio para se enfrentar esse tipo de receio – receio que, deve-se recordar, sempre possui esse efeito de destituição subjetiva - e para superar aquela indiferença que era inicialmente útil leva o nome de fatalismo. 6 O que investigarei adiante é algo dúplice: em primeiro lugar, em uma espécie de tour de force através de algumas posições da história da filosofia, tentarei dar conta do que pode ser chamado de o problema da indiferença, que eu tomo, seguindo Descartes, como sendo ligado estreitamente, talvez mesmo como sinônimo do problema da irresolução. Assumo que essa caracterização também pode ser instrutiva para uma compreensão crítica de nossa situação contemporânea. Nessa primeira parte, recorrerei então a determinadas fontes a fim de esboçar os contornos de uma crítica do estado de indiferença. Na segunda parte, formularei uma defesa da solução cartesiana, uma defesa do fatalismo como meio de enfrentar o estado estagnante de indiferença. Isso implicará no esboço de uma pré-condição crucial para o conceito de liberdade.

Ibid. bid. termo francês usado aqui por escartes é “crainte”. 6 Para ser mais preciso, escartes propõe “coragem e ousadia” como meios diretos de enfrentar a irresolução, na medida em que são “uma pai ão e não um hábito...” escartes, 2010b, p. 383). odavia, quando ele fala, um pouco antes no livro, sobre um obstáculo específico que surgem de coisas que não dependem de nós (ibid, p. 367), Descartes afirma primeiro que “elas nos desviam de dedicar nossa afeição a outras coisas cu a aquisição depende de n s” ibid, p. 368) e podem ser combatidas assumindo-se “a Providência divina... uma fatalidade ou uma necessidade imutável” ibid.). Elaborarei em que sentido assumo que a situação que Descartes retrata a respeito da indiferença também pode ser superada por esse tipo de fatalismo - que também requer, constitutivamente, coragem. 4 5

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Indiferença e comportamento animal: Kant Em sua obra de 1873, A religião nos limites da simples razão, Kant nota: “Mas, em geral, interessa muito à doutrina dos costumes não admitir, enquanto for possível, nenhum termo médio moral, nem nas ações (adiaphora [moralmente indiferente]) nem nos caracteres humanos; porque em semelhante ambiguidade todas as máximas correm o perigo de perder a sua precisão e firmeza”.7 As máximas se tornam indeterminadas, imprecisas e instáveis se há algo como uma intermediariedade, indiferença, adiaphora.8 E, no mesmo livro, Kant descreve aquilo a que visa com essa espécie de imprecisão e instabilidade. “Uma ação moralmente indiferente (adiaphoron morale) seria uma ação resultante apenas de leis da natureza, ação que, portanto, não se encontra em nenhuma relação com a lei moral enquanto lei da liberdade, porquanto não é fato algum (...)”.9 O que Kant afirma aqui é algo de grande alcance e enorme importância. Para dizer em termos simples, ele diagnostica que tão logo os seres humanos agem de maneira indiferente, isto é, tão logo os seres humanos simplesmente não se importam, 10 eles não agem como se fossem livres. Agir da maneira que Kant chama de indiferente é o que define ações que podem ser descritas recorrendo-se a meras leis naturais.11 Isso significa que na medida em que alguém age com indiferença, isto é, de tal modo que suas ações se relacionam a algo, digamos, à sua finalidade ou objetivo, de maneira indiferente simplesmente não se importando com qual seja o resultado da ação, por exemplo - isso torna possível conceber essas ações como deriváveis, dedutíveis de meras leis da natureza. E as leis da natureza, como é claro para Kant, são exatamente o inverso do conceito e da lei da liberdade. Poder-se-ia dizer de outro modo: na medida em que as ações são ou se tornam indiferentes a respeito daquilo a que elas visam, elas não podem mais ser consideradas ações (nas palavras de Kant: atos [Taten]) em sentido próprio. Pois, para Kant, o Kant, 1992, p. 28. Entre colchetes: acréscimo do autor. Para um tratamento longo e sistemático do problema da indiferença de um dos primeiros popularizadores do pensamento de Kant, que ensinou Kant para, entre outros, Novalis e Schiller, cf. Schmid, 1989. 9 Kant, 1992, p. 29. 10 Aqui, claro, a questão que surge é: o que significa não se importar? 11 Indiferença traduz aqui o termo grego (e dos estóicos) adiaphora, que designava coisas intermediárias, que não são nem boas nem más, nem belas nem feias, etc. Para uma abordagem da indiferença dos estoicos, cf. Geier, 1997. 7

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próprio conceito de ação implica numa referência conceitual à liberdade. Ações indiferentes são ações às quais falta - para permanecer no interior da terminologia kantiana - a espontaneidade da liberdade. É por isso que elas podem ser reduzidas a e derivadas de uma espécie de causalidade natural e legal. Ações indiferentes funcionam, assim, como efeitos em uma cadeia de causalidade, e são, por isso, ações que tem o mesmo status de meros mecanismos causais: ações que já não são ações. Kant afirma, então, que há um risco de ações indiferentes terem lugar no interior do reino da liberdade, e o reino da liberdade, isso é evidente para Kant, é precisamente o domínio dos seres humanos. Isso implica em uma afirmação de grande alcance, a saber, a de que seres humanos podem agir como se não fossem livres, podem agir como se não agissem. Eles podem agir como se fossem semelhantes a máquinas, determinadas pela causalidade natural - e isso também quer dizer, como se poderia sustentar com Kant, que seres humanos também podem se comportar como animais, pois o comportamento animal pode ser descrito em termos comparáveis. Não se pode dizer que máquinas e animais agem livremente, pois suas ações são determinadas de modo heterônomo - suas ações são determinadas por algo outro, não por sua própria liberdade, não por seu livre arbítrio. Animais agem por instinto, o que é parte de sua natureza, isto é, de sua constituição corporal, e quando se investiga como e por que animais agem - e isso é o que um certo tipo de disciplina biológica faz -, não é o seu livre-arbítrio que está no foco principal da investigação científica.12 São antes suas carências corporais, carências de reprodução, alimentação etc., que os determinam. Animais não podem por si mesmos determinar (ou refletir sobre) sua natureza (corporal), mas é antes sua natureza que os determinam, e às suas ações. O que se pode deduzir do diagnóstico de Kant é o seguinte: na medida em que seres humanos agem numa maneira que pode ser definida como indiferente, agem estruturalmente de maneira similar a animais. Agem de um modo apoiado numa determinação heterônima, e não determinam o modo de sua própria ação. Algo os está determinando, e esse “algo” pode - ao menos de acordo com Kant - ser descrito em termos de leis da natureza. Essa é a tese que minha elaboração subsequente buscará desdobrar. Como é possível que seres humanos, animais humanos, possam agir de uma 12

Para uma visão global breve e instrutiva de uma abordagem filosófica do comportamento animal, cf. Simondon, 2012.

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maneira que não é propriamente humana (o que quer que isso queira dizer ou como quer que se possa considerá-lo) e em que sentido pode-se tomar a indiferença como uma apresentação categórica capaz de explicar esse tipo de ação. O que deveria ser afirmado é que Kant utiliza o próprio termo indiferença em um sentido bastante moderno, pois na filosofia medieval (em Guilherme de Ockam, por exemplo) ela ainda é compreendida como um nome para faculdade da vontade não causal (i.e., contingente) e de duas vias (i.e., indeterminada) 13 - como a faculdade, por exemplo, de escolher x ou não-x “indiferentemente”, o que equivale a dizer, sem nenhuma necessidade causal. O uso do termo por Kant indica que tornar-se indiferente nas próprias ações e juízos é o exato oposto da definição medieval do termo. A indiferença agora conduz ou mesmo implica precisamente na determinação causal ou heterônoma de uma ação. A questão é, portanto: o que significa agir de modo indiferente? Mais precisamente: indiferente a respeito de quê? Aqui pode ser de ajuda retornar a Descartes. Indiferença e erro: Descartes Uma passagem muito famosa da quarta das Meditações sobre a filosofia primeira de Descartes se mostra aqui instrutiva. Para recordar brevemente, antes dessa passagem, no decorrer de seu argumento, Descartes deu início a sua investigação afirmando que qualquer um - o que equivale a dizer: qualquer ser pensante, o que equivale novamente a dizer, qualquer ser humano - pode se enganar. Qualquer um pode cometer erros, principalmente em juízos, mas também em ações, qualquer um pode falhar e errar. Seres humanos podem, portanto, emitir juízos falaciosos, dar mancadas, e podem se enganar. Essa é a primeira característica trazida por Descartes, ao menos em suas Meditações. E os seres humanos podem principalmente e em primeiro lugar se enganar a respeito daquilo que consideram ser certo e verdadeiro. Tomam, então, por verdadeiro e por certo algo que não é nem uma coisa nem a outra. Após essa afirmação, Descartes especifica os diferentes meios pelos quais os seres humanos podem sustentar que é verdadeiro algo que, em verdade, não o é. Os meios do engano são variados. Os seres humanos se deparam com enganos em falas retóricas (mas também na linguagem 13

Isso é bastante explícito em Ockam. Cf. Ockam, 1967, p. 501. Ali, ele sustenta que indiferença e contingência são duas precondições da ação livre e voluntária.

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enquanto tal), em justificações teológicas das crenças, em argumentos filosóficos, em explicações científicas, em nossas opiniões ou na de nossos pais, professores ou amigos de longa data, em nossos hábitos, em nossos sentidos e, em última análise, mesmo em qualquer pensamento concreto (na medida em que podemos estar sonhando enquanto assumimos estar em vigília). Essa enumeração de todos os meios de se enganar conduziu Descartes famosamente nas primeiras três meditações a duvidar de tudo o que poderia ser considerado uma fonte de erro no juízo; qualquer fonte de engano deveria ser suspensa. E o resultado foi a famosa prova do cogito. Mas na quarta meditação ele continua a perguntar por que é que podemos errar, que podemos afinal cometer mancadas. Ele afirma: “Donde nascem, pois, meus erros? A saber, somente de que, sendo a vontade muito mais ampla e extensa que o entendimento, eu não a contenho nos mesmos limites, mas estendo-a também às coisas que não entendo; das quais, sendo a vontade por si indiferente, ela se perde muito facilmente e escolhe o mal pelo bem e o falso pelo verdadeiro. O que faz com que eu me engane e peque”.14 Minha vontade é tão livre, tão irrestrita e ilimitada que eu posso querer algo que eu não compreendo ou posso até mesmo compreender erroneamente. A vontade se torna, assim, indiferente. O saldo desse raciocínio é claro: posso me enganar porque sou livre. Enganos, portanto, parecem ser a prova mesma de minha liberdade; uma vez que é exatamente mediante a liberdade de minha vontade que sou mais parecido com Deus. A infinitude da vontade é o que mais me assemelha verdadeiramente a Ele. Como Descartes formula: “A vontade de Deus... não me parece todavia maior [do que a minha] se eu a considero formal e precisamente nela mesma”.15 Minha vontade é infinita em sua liberdade, e essa infinitude mesma é a fonte de meus enganos. Como isso pode ser? É que minha liberdade torna possível para mim querer mesmo duas coisas radicalmente incompatíveis ou incomensuráveis ao mesmo tempo. Isso significa, sistematicamente, que minha vontade é tão livre que eu posso querer x e não-x ao mesmo tempo. Isso parece ser a própria definição medieval de indiferença – uma vontade que tem a capacidade de ambos: afirmação e negação de uma opinião. Descartes, no entanto, é mais radical do que isso. Permitam-me citar outra passagem na qual isso aparece: 14 15

Descartes, 2010c, p. 174. Ibid, p. 173.

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“Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou de outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. E certamente a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem minha liberdade, antes a aumentam e fortalecem. De maneira que essa indiferença que sinto, quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que para o outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau da liberdade...”16 A indiferença é o sentimento de que não importa que escolha eu tome. Portanto, para Descartes, ela é o grau menor e mais pobre da liberdade. Isso porque eu não tenho qualquer inclinação para nenhuma das duas opções de minha escolha, nem em razão de algum conhecimento, nem em razão de um compromisso contingente. O conhecimento aumenta minha liberdade na medida em que me impele para uma das duas direções possíveis. Crenças e compromissos também o fazem, então, para Descartes. Todavia, indiferença é aquilo que resulta – como um afeto – quanto eu não me inclino para nenhuma das duas direções disponíveis, quando ambas tem a mesma validade para mim. Isso significa que tenho o sentimento de indiferença quando a liberdade se torna a mera existência de uma escolha. Não uma escolha que deve ser tomada, não uma escolha que está em vias de ou que deve se tornar efetiva ou realizada, na escolha efetiva de um dos dois lados. Liberdade de escolha, isto é, a possibilidade de escolher sem realmente escolher (na medida em que não me importa qual lado escolher), é o que produz indiferença. Uma vontade que quer X e não-X ao mesmo tempo é uma vontade indiferente. É por isso que a irresolução é, para Descartes, estruturalmente análoga à indiferença. E não se deve esquecer: é a indiferença, portanto, a fonte de meu errar e de meu cometer enganos. Por quê? Porque quanto me torno indiferente eu já cometi um engano. Assumi que a liberdade já estava efetivada na possibilidade de ter uma escolha e não na efetividade do escolher. A indiferença é o resultado de uma percepção errônea a respeito do próprio conceito, da própria concepção de liberdade. Realizo juízos falaciosos porque já realizei um juízo falacioso ao compreender assim a liberdade. Um tal conceito enganoso de liberdade assenta as bases para todos os enganos futuros que

16

Ibid, p. 173-4.

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irei cometer. É algo como a condição falaciosa de possibilidade, o transcendental falacioso de todos meus futuros erros. Kant demonstrou que tão logo me torno indiferente em minhas ações elas podem ser descritas em termos de relações causais naturais e deterministas. O que se pode concluir de Descartes é que o que significa ser indiferente, não em relação a algum objeto concreto do mundo, mas, mais fundamentalmente, nas próprias ações em geral: ser indiferente a respeito da própria constituição, essência ou natureza. Seres humanos são os mais semelhantes a Deus em razão da liberdade de sua vontade, mas tão logo eles se percebem erroneamente o que é a liberdade, eles percebem erroneamente o que é sua natureza. Eles a percebem erroneamente ao interpretá-la como realizada na mera possibilidade de uma escolha e, assim, se tornam indiferentes. Não se tornam, todavia, indiferentes apenas, para ser mais preciso, em relação aos dois lados da escolha, mas essencialmente em relação a si mesmos. Indiferença é o grau menor e mais pobre da liberdade, e isso porque ela é a liberdade em sua forma não realizada. Liberdade como possibilidade de escolha é liberdade como mera possibilidade de liberdade, e, portanto, não como liberdade. Liberdade de escolha implica para Descartes uma concepção de liberdade que enfatiza somente a possibilidade da liberdade, não sua efetividade ou realidade. Pode-se aqui se recordar que, em sua discussão do estoicismo grego, Alexandre Kojève uma vez se referiu ao estoicismo como a primeira ideologia.17 Por quê? Por implicar um gesto peculiar de autoconfiança soberana que funciona como justificação da própria inação prática do escravo, fundamentada pela seguinte pretensão ideológica: sou livre na medida em que sei que o sou. Uma pretensão que, como Hegel também sustentou, serve como a justificação perfeita da escravidão. Uma tal postura não é atacada apenas por Kojève, e por Hegel antes dele, mas também por Descartes. E a partir daquilo que já foi dito deveria ser claro o motivo: porque resulta em indiferença e irresolução, e não em ação no sentido próprio. E é precisamente esse estado de indiferença ou irresolução que é definido pela primeira mentalidade ideológica, talvez espontaneamente ideológica, do escravo, que pensa que é suficiente se agarrar à mera possibilidade de ter uma escolha sem efetivamente escolher e agir por seus próprios fundamentos.

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Kojève, 2002, p. 174. Cf. também o comentário sobre essa afirmação em Comay, 2011, p. 92 et seq.

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Resumindo, o resultado da presente investigação até então é: a indiferença na ação, como Kant sustentou, conduz a determinações heterônomas de minha vontade que me tornam uma máquina guiada pela causação natural, ou, numa palavra: fazem de mim um animal. Descartes complementou essa afirmação oferecendo uma interpretação de porque eu ajo como se fosse um animal. É porque tenho uma concepção errônea de liberdade; e, no entanto, é precisamente a liberdade que marca minha essência. Ajo, então, como se eu fosse um animal quando ajo de uma maneira que se apóia numa má compreensão de mim mesmo, de minha própria liberdade. Ajo de maneira semelhante a um animal se ajo como se fosse livre e estou me apoiando numa concepção enganada de liberdade. Isso é o que a categoria da indiferença indica. Por que, no entanto, como Kant defendeu, uma concepção errônea de liberdade me conduz a determinações heterônomas que, novamente, me conduzem a agir como se eu fosse livre apesar de não o ser, quando estou agindo como um animal? Indiferença e indeterminação: Hegel É aqui, como sempre, que Hegel pode ajudar. Em sua Fenomenologia do Espírito,18 assim como em sua Filosofia do Direito,19 ele oferece uma análise complexa de uma vontade que se subtrai de toda determinação concreta – não se sentindo inclinada a absolutamente nenhuma direção. Hegel sustenta que na medida em que uma vontade livre se recusa a se determinar e assume que a mera possibilidade de determinações já é a realização de sua liberdade, essa vontade é conduzida a contradições enormemente problemáticas. Ao insistir que a liberdade de escolha – sem a tomada de nenhuma opção concreta – é o paradigma da liberdade, a vontade livre hipostasia a indeterminação em face de qualquer determinação concreta. Ela busca, assim, ter o bolo e também comê-lo. Isso porque ela vê a liberdade apenas como liberdade de determinações, e, nisso, a identifica com a indeterminação – como a possibilidade de determinação sem a efetiva determinação. Ela considera que essa identificação delineia um conceito universal de liberdade. Todavia, contra sua própria

18 19

Cf. Hegel, 2011, pp. 410-457. Cf. Hegel, 2010, pp. 57-75. Para uma abordagem no conceito de vontade em Hegel, ver Ruda 2011, pp. 136-148.

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vontade, a vontade livre que hipostasia a indeterminação não alcança uma pretensão universal, mas uma pretensão meramente particular. Contra sua própria vontade – contra a vontade livre da vontade livre – essa identificação da indeterminação com a liberdade simplesmente se mostra como não sendo senão uma determinação particular da liberdade. Assim, em que pese buscar escapar de toda determinação, a vontade livre se determina, contra sua própria vontade, pela sua pretensão de indeterminação. Ser indiferente em relação à determinação, identificando indeterminação e liberdade, como se pode concluir de Hegel, não conduz à universalidade, mas bem ao fundo de uma mera particularidade, uma vez que a indeterminação, precisamente, não é um conceito universal, mas se restringe à negação abstrata de toda determinação concreta e, assim, não é senão um de dois lados da mesma moeda. De um lado está a determinação pura e simples, do outro a indeterminação (abstrata e, assim, particularizada). Entretanto, se a definição de um conceito não é derivada senão de uma negação abstrata de seu oposto abstrato, ele não é um conceito universal, mas apenas um conceito particular. À maneira da astúcia da razão – contra a vontade da vontade livre que quer a indeterminação como liberdade –, essa consequência não pode ser evitada. A insistência na liberdade como indeterminação, portanto, se vira de ponta cabeça contra sua vontade, literalmente, e determina a vontade livre. A vontade livre, ao buscar escapar da determinação, se torna, assim, determinada em seu próprio voo pelo ato de escapar. Essa determinação (a da insistência na indeterminação) não é, portanto, um resultado de um ato de autodeterminação livre: a vontade livre quis evitar a determinação e, apesar disso, acabou indo parar nela. É por isso que essa determinação involuntária da vontade se revela uma determinação heterônoma da vontade. Pois não é posta por si mesma. Ela se apoia em uma má compreensão da liberdade, pois a liberdade, precisamente, não é identificável com a indeterminação. Não é possível simplesmente se livrar da determinação. O que acontece, então, quando me abstenho de todas as determinações concretas, me torno indiferente em relação a elas e simplesmente insisto na possibilidade da determinação, de escolha, é que minha má compreensão do que é a liberdade se volta contra mim e nisso eu cometo uma violência contra mim mesmo.20 Isso porque eu reduzo meu próprio apelo à universalidade e à É por esse motivo que Hegel sustenta que, após o primeiro caso em que a liberdade foi identificada à indeterminação, a saber, a Revolução Francesa, depois que ela levou embora todas as determinações no

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liberdade a apenas uma pretensão determinada particularmente, a um conceito unilateral de liberdade como indeterminação. Esse é o resultado de uma atitude de indiferença contra toda determinação concreta. Hegel afirma, em sua Filosofia do Direito, que uma tal disposição de espírito pode, em última análise, ser definida como segue: “Uma vontade que não decide nada não é uma vontade efetiva; aquele que não possui nenhuma característica nunca chega uma decisão. A razão para a indecisão pode também residir em uma sensibilidade terna do ânimo, que sabe que, ao determinar-se, admite-se no interior da finitude... Um tal ânimo é um ânimo morto, o quão belo ele possa ser... a possibilidade ainda não é efetividade”.21 Pode-se sustentar que outra das afirmações de Hegel também é bastante adequada para caracterizar a vontade livre que abstrai de todas as determinações concretas e assume que ela é a mais livre em e através deste ato mesmo: a saber, a afirmação de que quando se é o mais morto, as palavras favoritas são 'vida' e 'avivar'. Quando se é menos livre, liberdade se torna a palavra favorita.22 A vontade livre que se torna não-livre mediante seu querer a indeterminação é uma entidade morta, pois mediante seu ato de querer ela se torna determinada heteronomamente e essa determinação possui um efeito mortificador para o núcleo universal mesmo do animal humano. Sem saber disso, e inclusive enquanto acreditava no inverso absoluto, eu ajo como se fosse livre apesar de não ser.23 Ao acreditar que estou agindo livremente, mas ao mesmo tempo sendo incapaz de agir livremente sob condições que ponho para mim mundo, o mundo teve então ele mesmo que se voltar em um certo ponto contra seus próprios protagonistas que encarnavam a determinação da indeterminação. A identificação de liberdade e indeterminação, que também vejo estar em ação na identificação de liberdade e liberdade de escolha, acaba levando à violência autoinduzida. Seria interessante, apesar de eu não poder fazê-lo aqui, relacionar isso de forma sistemática ao argumento sobre a tirania da escolha como desenvolvida em Salecl, 2011. 21 Hegel, 1989, p. 64-65 [N. do T.: Citação a partir da edição alemã da Suhrkamp, com tradução do tradutor deste artigo, uma vez que a edição brasileira não possui os adendos orais de sala de aula de Hegel (os ditos mündliche Zusätze)]. Seria importante demonstrar por que Hegel assume que no próximo parágrafo ele pode estender essa análise e desenvolver uma crítica da arbitrariedade a partir dela. Deixo essa demonstração para outra ocasião. 22 Não se poderia também assumir que esse diagnóstico mesmo é muito adequado para o mundo em que vivemos? Cercada de entusiastas, defensores, proponentes, advogados e apologetas da liberdade, quando a vida política é a mais morta, sua palavra favorita segue sendo “liberdade”. 23 Este é claramente um dos slogans ideológicos mais salientes hoje, pelo fato de que ele se dissimula como um enunciado completamente neutro e objeto sobre as condições subjetivas da ação: Age como se fosses livre! O imperativo prepara ainda o fundamento lógico para todas as injunções para gozar, consumir, ser flexível, criativo etc.

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mesmo, termino agindo precisamente como os animais fazem. Por que é assim? Porque, para Hegel, o animal é aquele que pode ser definido de modo mais básico pela afirmação de que ele não sabe seus limites como seus limites. Como Hegel afirma: “Se aquilo que tem uma falta não está ao mesmo acima de sua falta, a falta não lhe é uma falta. Um animal possui faltas para nós, não para si próprio”.24 O animal que possui uma falta, ao qual falta algo desde nosso ponto de vista, não tem a consciência de sua própria falta. É por isso que Hegel pode afirmar numa maravilhosa passagem de suas Preleções sobre O Belo na Arte que: “o homem é um animal, mas mesmo em suas funções animais ele se não comporta como um ser passivo [bleibt er nicht als in einem Ansich stehen, i.e., não permanece parado ou estático como um algo em-si], como o faz o animal; ao contrário do animal, adquire consciência das suas funções, as conhece e as eleva... à ciência consciente de si... porque ele sabe que é um animal, ele deixa de ser um animal”.25 Assim, ao insistir em um conceito indeterminado de liberdade, isto é, de liberdade de escolha, não experimento meus limites (postos por mim mesmo) como limites. Isso porque ajo como se eu fosse livre, e todavia não o sou; e, portanto, me coloco assim na posição de agir como se eu fosse um animal. Isso decorre diretamente de minha má compreensão de minha própria essência, ou seja, da liberdade. A má compreensão da minha própria natureza produz como efeito que eu não queira minha própria liberdade como realizada, mas que eu a queira como possível, como possibilidade. Incorro, assim, na situação de querer, contra minha vontade explícita, minha própria falta de liberdade. É a isso que o ser indiferente – indiferente a determinações – acaba, em última instância, se reduzindo. Esse resultado pode também ser articulado do seguinte modo: a indiferença em relação a determinações não apenas conduz a uma má compreensão da liberdade, no sentido de que sou determinado contra minha própria vontade, mas também conduz ao efeito de que ações (no sentido próprio do termo) se tornam indistinguíveis de não-ações ou pseudoações. Pois, como assumo, estou agindo sem tomar partido, mas estou tomando partido contra tomar partido. Penso que sou irresoluto, e todavia não sou. O ato mesmo que me faz indiferente está também me forçando a me determinar sem e contra a minha vontade. Ajo como se estivesse agindo, e, no entanto, uma vez que a verdadeira ação implica na liberdade, 24 25

Hegel, 1989, p. 59. Hegel, 1996, p. 103. Trad. modificada pelo tradutor deste artigo a partir do original alemão.

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apenas tenho a ilusão de que estou agindo livremente. 26 A indiferença, portanto, significa também que há uma compreensão errônea do que é uma ação – esse é, como se poderia dizer, um dos erros, uma das primeiras inferências falaciosas que emergem do transcendental falacioso que estabeleci. O diagnóstico que se pode desenvolver a respeito da indiferença (e de suas implicações), alinhando Descartes, Kant e Hegel, é, portanto: seres humanos podem agir de uma maneira puramente análoga a um animal, o que quer dizer, não-livre, quando: 1) são determinados heteronomamente. Isso acontece quando 2) há uma má compreensão de sua própria natureza, isto é, da liberdade. 3) Aquilo que tem origem nessa compreensão, consequentemente, se volta contra o ser humano pela hipóstase e pela produção de um comportamento de modo análogo ao de um animal. Esse resultado se volta, portanto, contra o humano ao lhe impor uma determinação heterônoma. Produzindo indiferença: Marx Contra um pano de fundo sistemático, pode-se compreender uma afirmação que se encontra nos escritos de juventude de Marx. O jovem Marx formulou repetidamente a ideia de que o trabalhador que espera tomar parte no processo de acumulação do capital, ou que de fato participa dele, é reduzido ao puro funcionamento de sua constituição orgânica, i.e., corporal. 27 Marx fala do trabalhador como sendo parte de um rebanho, reduzido à mera função de seu estômago28 etc. Todavia, mesmo em sua juventude, Marx era suficientemente lúcido para não simplesmente culpar o trabalhador por esse efeito. Ele viu com clareza esse fato como um efeito provocado pelo próprio funcionamento da dinâmica capitalista e de sua economia política. O que ele sustentava, basicamente, era: o capitalismo reduz o trabalhador ao seu comportamento análogo ao

Aqui pode-se, é claro, lembrar da famosa análise elaborada por Slavo Žižek sobre como nas sociedades contemporâneas o ato de consumo vem acompanhado de um excedente ideológico que me faz acreditar que também estou agindo politicamente, por exemplo, quando compro um café na Starbucks e pago mais por ele para dar apoio a crianças que sofrem em algum lugar na África. De fato, faço aquilo que sempre fiz – consumir – e, todavia, sem sentir nenhuma culpa ou ser acometido por alguma má consciência, pois assumo que meu ato de consumo também implica num momento de engajamento político-social. 27 ovem Mar fala do trabalhador como um e emplo, para a economia política, do “animal de trabalho, [...] uma besta reduzida às mais estritas necessidades corporais”. Cf. Mar , 2010, p. 31. 28 Idem, p. 26. 26

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de um animal (e a questão é se 'redução' é o termo correto aqui),29 pois se apoia num conceito de liberdade falso e problemático e, assim, procura impor uma má compreensão da liberdade para todos. É por isso que o capitalismo produz indiferença. Isso não significa apenas, como o coloca Georg Simmel a respeito do dinheiro, que o capital “não apenas revela a indiferença da pura significação econômica mas é antes algo como a indiferença ela mesma”;30 mais que isso, ele produz uma indiferença – uma compreensão errônea perpetuada da liberdade – que, mais tarde, pode ser, e de fato é, administrada e organizada. No Capital, Marx mostrou que o dinheiro é um medium abstrato e indiferente não apenas porque ele torna possível trocar qualquer coisa por qualquer coisa e, portanto, não apenas porque ele faz desaparecer (como condensação de tempo e força de trabalho) os processos de produção que estão por trás de todo e cada produto, mas, antes, porque possuir dinheiro não gera opções de ação concretas, mas meramente abstratas.31 O capital torna possível a alguém se tornar capaz de fazer coisas (comprar, vender, acumular, consumir etc.). Mas quando se faz a pergunta “qual é a melhor coisa a se fazer com o dinheiro”, a resposta é clara. A melhor coisa a se fazer com o dinheiro é economizá-lo e acumular mais ou investi-lo e 'fazê-lo trabalhar para você'. Mas o que isso significa em última instância é que uma pessoa possui dinheiro, mas não o possui, ou não deveria gastá-lo, mesmo que obviamente o possa. Mas, uma vez que é muito mais sábio investi-lo para adquirir mais dinheiro, renuncia-se à ação direta (isto é, gastar o dinheiro). Assim, não é apenas o trabalhador que é reduzido ao status designado pela categoria da indiferença. Marx é muito explícito sobre o fato de que, para ele, o próprio procedimento da troca e a própria lógica do capital produz apenas opções abstratas de ações. Isso equivale a dizer: produz apenas ações que você poderia realizar, mas que lhe são mais convenientes se não forem realizadas. Essa dinâmica mesma também gera aquilo que Marx, no Capital, chama a “triste figura” do “capitalista 'abstinente'“.32 Isso quer dizer que mesmo quando se é um capitalista e se possui um bocado de dinheiro, também se está num estado de indiferença, pois poder-se-ia gastáPara uma análise extensiva deste diagnóstico em Marx e do todo da questão sobre como produção e redução se vinculam através de procedimentos de abstração, ver Ruda, no prelo. 30 Simmel, 2005, p. 53. 31 Sobre isso, cf. também Lohmann, 1992, pp. 81-129. 32 Marx, 2013, p. 674. Isso reflete, obviamente, aquilo que já o jovem Marx notou quando afirmou: “Quanto menos tu fores, quanto menos e ternares a tua vida, tanto mais tens...”, Mar , 2010, p. 142. 29

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lo por inteiro, mas a própria lógica do capital faz com que seja muito mais sábio permanecer na possibilidade de gastá-lo do que efetivamente gastá-lo.33 Mas Marx diagnosticou no capitalismo uma redução constante dos seres humanos a uma determinação heterônoma que os faz funcionar como coisas, isto é, como autômatos, máquinas, ou como meros corpos, animais descritíveis em termos meramente mecânicos.34 O verdadeiro problema é que eles ainda percebem suas não-ações abstratas como um modo de efetivar sua liberdade. Essa dinâmica geral, “a essência da produção capitalista, ou, se se quiser, do trabalho assalariado”, foi enquadrada por Marx como a lógica na qual o ser humano experimenta um constante “enriquecimento como o seu próprio empobrecimento”.35 Pode-se também dizer: sua própria carência de liberdade como liberdade. O que essa fórmula articula é um modo muito preciso de apresentar o aspecto sociopolítico daquilo a que me referi com a categoria da “indiferença”. É dizer, o enriquecimento como seu próprio empobrecimento também implica numa má compreensão da própria liberdade, e isso conduz a uma desqualificação da autodeterminação voluntária, o que acarreta uma determinação heterônoma e reduz o homem a apenas essa determinação. E, todavia, deve-se manter em mente que o capitalismo obviamente não é natureza, não é natural e, por isso, a animalidade à qual ele reduz o ser humano não é uma primeira natureza. No interior da cultura, qualquer forma de natureza já é mediada, isto é, já é segunda natureza e, nesse sentido, a animalidade à qual os seres humanos são reduzidos é uma segunda animalidade já processada, já adaptada e produzida. Em outras palavras: é indiferença produzida. O capitalismo extrapola e hipostasia um aspecto animal dos animais humanos, mas um aspecto que ele mesmo produz. E é também por isso que essa animalidade mesma é aberta à modificação, à mudança, à troca, à mercantilização (for modification, for (ex-)change, for commodification) – na medida em que corpos, coisas e também animais já podem funcionar muito facilmente como objetos, também podem ser comprados e vendidos. A consequência disso é que as pessoas não sabem que são indiferentes, e isso é Pode-se, é claro, perguntar se essa é ainda uma descrição adequada da dinâmica de mercado contemporânea. Assumo, no entanto, que ainda o é, desde que acrescentando que há ainda uma lógica peculiar no gastar o dinheiro que não se tem a fim de preservar o status quo no qual, novamente, não se gasta o dinheiro que se tem. 34 Ele reduz “a sua atividade [do trabalhador] ao movimento mecânico mais abstrato”, Mar 2010, p. 141. 35 Marx, 1968, p. 255 33

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precisamente uma das razões que as torna indiferentes. Elas percebem suas própria carência de liberdade como sua liberdade – devido a uma concepção errônea de liberdade na qual se apoiam. Talvez seja ainda mais exato dizer que elas o sabem, mas não acreditam naquilo que sabem. Elas não sabem, ou não acreditam que sabem, que não estão numa relação adequada com sua própria essência e natureza, mas agem como se estivessem. Nos termos de Hegel, pode-se reformular isso dizendo que há uma contradição que diz respeito à relação entre conceito e realidade, mas que, na posse de um conceito mal interpretado, essa contradição desaparece. É por isso que, outra vez, seguem daí ainda outras falácias. Pode-se aqui suplementar esse diagnóstico com a recordação da afirmação de Heidegger sobre o caráter distintivo dos humanos e dos animais, a saber, o de que seres humanos são aqueles seres que tem (e se relacionam com, projetam no interior de) um mundo, enquanto animais vivem em um ambiente (no qual não é possível algo como um projetar).36 O que acontece quando há indiferença é que as pessoas perdem seu mundo (e também todo tipo de projetar). De acordo com um uma afirmação diagnóstica bem conhecida de Alain Badiou, o mundo de hoje não é mais um mundo, e o nome desse não-mundo, essa ausência de mundo, é, para ele, mercado. 37 O que é um mundo que já não é um mundo? É um ambiente, um ambiente de e para predadores e outras espécies animais “individualmente fracas e avidamente perseguidas”.38 Isso se deve ao fato de que o próprio conceito de mundo implica que ele pode ser criado e modificado. Um mundo é um produto – ao menos de projeções e de esforços coletivos – enquanto um ambiente é como é; nenhuma transformação sua pode ser vislumbrada em seu interior. Ambientes são como são e, ao menos até um grau muito fundamental, permanecerão como eram, a não ser que algo os modifique desde fora – como o cometa que se acredita ter extinto os dinossauros. Ambientes são naturais e se o mundo, ao não ser um mundo, se torna um ambiente, ele se torna também uma entidade desistoricizada – uma entidade sem história. Mundos são produtos de ações, interações, projeções, lutas e eventos. Lutas no interior de um ambiente não mudam nada, elas apenas mostram que Heidegger, 2011, pp. 258-350. Em sua versão mais recente, lê-se esse diagn stico da seguinte forma: “Ho e não há um mundo real constituído por homens e mulheres que vivem nesse planeta... pois o mundo que não existe, o mundo da globalização, é apenas um mundo de mercadorias e de trocas financeiras. É exatamente o que Marx previu há cento e cinquenta anos: o mundo do mercado mundial”, adiou 2014. 38 Marx, 2013, p. 718. 36 37

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vige o princípio da sobrevivência dos mais adaptados, isto é, que há algum tipo de competição natural(izada). No interior de um mundo, lutas podem vir a ser algo que induz a mudança do mundo, e mesmo que transforma aquilo que pensamos sermos capazes de fazer. No interior do ambiente natural do mercado – que, como deve ser claro, é um ambiente produzido – não há luta nem transformação imaginável na medida em que mesmo a liberdade é naturalizada e transformada em uma capacidade dada do corpo (por exemplo, a capacidade de desejar ou de expressar a si mesmo livremente). O que há, então, a ser feito? Como retornar à possibilidade impossível de uma luta, mesmo que uma luta contra a própria concepção errônea de liberdade? Como lutar contra a própria ideologia espontânea da vida cotidiana, uma ideologia que naturaliza a própria liberdade? Corpo e alma: Descartes I Em face do pano de fundo delineado, pode-se novamente buscar um apoio mais próximo na última obra publicada por Descartes, que talvez permaneça sendo a mais estranha delas, amplamente considerada como um livro radicalmente datado pela maior parte da literatura atual: suas Paixões da alma. Ali, como dito no início, Descartes propõe uma solução para o estado de indiferença que, além de soar genuinamente surpreendente, é, como sustentarei, uma solução absolutamente digna de ser ressuscitada e defendida: o fatalismo. Mas por que o fatalismo pode ajudar contra o estado de indiferença? Antes que se possa responder a essa pergunta, é preciso recapitular certos elementos das Paixões da alma. O título já indica que há algo corporal na alma; há paixões que ela experimenta. 39 Contra um dualismo simples entre corpo e alma – ainda que essa leitura ainda seja dominante hoje – , Descartes insiste que o livrearbítrio, que define minha essência, não pode ser o que é; isto é, uma vontade sem nenhuma manifestação corporal, o que equivale a dizer, sem nenhuma manifestação objetiva. A vontade não é vontade se não tiver efeitos que aparecem no mundo. Isto é, podem existir argumentos lógicos puros (pensamentos puros), existem percepções puras (efeitos corporais puros) e também existem coisas que são ao mesmo tempo relacionadas ao pensamento ou a percepções, i.e., à alma e ao corpo. Há coisas para as 39

Um comentário instrutivo sobre esse tópico geral em Descartes pode ser encontrado em: Nancy, 2004.

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quais o corpo não é a causa, mas que tampouco são meramente intelectuais, mas antes movimentam o corpo.40 A vontade é definida, neste livro, como algo que não é uma capacidade corporal, mas como uma instância que produz efeitos sobre o corpo. Pode-se, assim, deduzir retroativamente sua existência a partir de seus efeitos. Todavia, o corpo também pode produzir efeitos naquilo que lhe move, ele pode produzir efeitos sobre aquilo que produz efeitos sobre ele. Ele pode apresentar restrições corporais aos efeitos que a vontade pode produzir, ao delinear um âmbito específico do corporalmente possível, daquilo que o corpo pode fazer. Há, portanto, uma relação peculiar entre algo que é por inteiro finitude (corpo) e algo que é por inteiro infinitude (vontade). Mas essa relação possui dois lados.41 Não apenas porque possui dois polos, mas ainda porque os efeitos que um polo produz sobre o outro são radicalmente diferentes – uma relação que parece diferente a partir de cada um dos lados envolvidos. A vontade, a expressão da alma, pode tornar possível o que não é possível para o corpo por si mesmo e, portanto, não pode ser considerada uma capacidade do corpo. O corpo, por outro lado, limita os efeitos da vontade e é capaz de introduzir (pensamentos de) limitações na alma de tal modo a bloquear a infinitude da vontade. O vínculo entre alma e corpo é, assim, não uma simples relação, na medida em que assume formatos bastante diferentes dependendo de onde é percebido. Essa relação, que não pode de fato ser chamada de relação em sentido próprio, introduz o que Descartes chama de “combates” na alma42 – a alma luta contra os efeitos que o corpo produz sobre ela, suas paixões, a fim de sustentar uma compreensão adequada de sua própria liberdade e independência. E Descartes infere daí: isso “leva a alma a sentir-se impelida quase ao mesmo tempo a desejar e a não desejar uma mesma coisa; e daí é que se teve ocasião de se imaginar nela duas potências que se combatem”.43 Isso é o que pode acontecer quando a alma assume a perspectiva do corpo – um estado de indiferença pode surgir, no qual a alma deseja ao mesmo tempo tanto Para ser mais preciso: Descartes distingue entre atividades da alma que determinam ou a alma ela mesma ou o corpo, e entre percepções que ou são causadas pela alma ou pelo corpo. Portanto, pode haver percepções corporais que movem a alma – algo que permite a abordagem disso que chamo de indiferença. Cf. Descartes, 2010b, pp. 307-308. Deixo uma elaboração completa dessa distinção para outra hora e lugar. 41 Um modo mais preciso de dizer é: não há relação entre o corpo e a alma. 42 Descartes, 2010b, pp. 321-322. 43 Descartes, 2010b, p. 322. 40

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sua liberdade quanto sua não-liberdade –, e a razão para isso está numa confluência da determinação que tem origem na alma e daquelas que emergem do corpo. Para lidar com esse tipo de conflitos, Descartes sustenta que é necessária uma definição diferente de autodeterminação livre. Ela não pode ser nem puramente intelectual e conceitual nem puramente corporal. Para esse fim, é preciso equipar a vontade, no combate, com “suas próprias armas”, “juízos firmes e determinados”.44 Quanto mais firme o juízo (manifestando a liberdade da alma), mais firme a realização da sua liberdade. Sua fortaleza só pode ser medida por seus efeitos, por suas ações.45 Ações que considero serem livres, autodeterminadas, mas que são ações determinadas heteronomamente, demonstram a carência dessa espécie de firmeza. Mas como é possível alcançar a certeza de que se é firme e determinado na própria vontade e na própria ação? De um lado, isso claramente tem a ver com conhecimento46 – conhecimento da situação em que se está e conhecimento do que é o bem e o mal. No entanto, do outro lado, o caráter firme dos juízos da vontade não pode ser completamente derivado do conhecimento. A razão disso está precisamente na noção cartesiana de verdade, uma vez que ela apresenta um pontolimite do conhecimento. É, então, crucial elaborar brevemente esse conceito de liberdade. A liberdade impensável: Descartes II Descartes oferece uma abordagem clara, ainda que difícil, da liberdade em seu Discurso do método. Ele começa com uma consideração simples: sou capaz de duvidar porque sei que posso errar. A partir daí, posso inferir que sou capaz de duvidar, pois tive a experiência do fracasso. Sou capaz de duvidar porque sei que não sou perfeito. É isso que torna possível obter negativamente o conceito de liberdade, pois possuo o conceito de falta (erro, fracasso) e uma compreensão própria desse conceito implica em seu Descartes, 2010b, p. 323. Se a alma perde o combate com as solicitações corporais, essa perda aparece sob o disfarce da paixão do medo (recorde-se que a indiferença é, como citado no início, uma espécie de medo), que “representa a morte como um extremo mal, que só pode ser evitado pela fuga” escartes, 2010b, p. 323) sto é crucial: se o corpo começa a determinar a alma e seus meios de determinar a si própria, a saber, a vontade, o efeito é um medo fundamental da morte que se assenta no reino da finitude. As consequências desastrosas de qualquer hipóstase da finitude tem sido analisadas por Badiou em: Badiou, 2013-2014. 46 escartes sintetiza isso sob o slogan: “a força da alma não basta sem o conhecimento da verdade”, Descartes, 2010b, p. 323. 44 45

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oposto. A experiência de “algo” negativo implica, negativamente, sua própria negação. A perfeição é a negação negativamente implicada da falta (que experimentei), a qual está contida no próprio conceito de falta. Uma vez que a falta é a experiência de uma ausência, pode-se aplicar o conceito de ausência sobre si mesmo. Isto é, como em Hegel, o significado da compreensão dos próprios limites como os próprios limites. A falta se torna reflexiva e conduz ao seu contrário lógico. Obtém-se, assim, a ideia de que deve haver algo que falta na falta e que esse algo é precisamente aquilo que perfeição quer dizer: a falta da falta.47 Após a experiência do fracasso, posso encontrar em mim negativamente implicada a ideia de perfeição – uma versão cartesiana da doutrina platônica da anamnese. E, na medida em que Descartes sustenta que minha própria imperfeição resulta de minha constituição, sou uma composição de duas substâncias distintas, i.e., o corpo e a alma. Portanto, aquilo que é perfeito deve necessariamente suspender a fonte de minha imperfeição.48 Por isso ele pode deduzir que algo perfeito – cujo nome clássico, é claro, é “Deus” – precisa existir, ou melhor: precisa ter existência. Pois aquilo que é perfeito não seria perfeito se não existisse. Perfeição é aquilo que precisa ser, como falta da falta, e uma vez que a falta inclui a ideia de limitação, aquilo que é perfeito precisa ser ilimitado, infinito. Tão logo cometo um erro, sou forçado a pensar algo que precede logicamente minha constituição, não posso senão pensar – se penso – a falta da falta. O argumento de Descartes é muito mais radical do que se concebe usualmente. Ele sustenta que “o que leva muitos a se persuadirem de que há dificuldade em conhecêLo [i.e., de conhecer Deus], e mesmo também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca elevarem o espírito além das coisas sensíveis e de estarem de tal modo acostumados a nada considerar senão imaginando, que é uma forma de pensar particular às coisas materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível”.49 Ele se opõe estritamente a uma tal limitação do pensamento. Se Deus não pode ter um corpo, então é preciso pensá-lo diferentemente. Tudo o que possui um corpo aparece em um mundo, em um discurso. Disso se pode inferir que Deus deve ser não-discursivo, não-mundano. Deus precisa ser ainda mais subtraído de qualquer Jacques Alain-Miller se referiu uma vez à falta da falta como “um lugar – onde não há nada”, Miller, 2002, 139. 48 Descartes, 2010a, pp. 88-89. 49 Idem, p. 90. 47

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materialização corporal do que o cogito. Ele deve ser aquilo que só pode ser apreendido no interior de um discurso, de um mundo, mas como aquilo que é ao mesmo logicamente 'anterior' a ele (uma vez que o criou): Ele é o pré-discursivo pósdiscursivamente apreensível, a falta da falta. Ele é aquilo que não podemos compreender discursivamente (imaginando-o). Mas podemos pensar que há algo que não podemos compreender. Posto de modo distinto: podemos pensar que há algo que não podemos pensar. Podemos pensar naquilo que terá sempre sido logicamente 'anterior' a qualquer discurso e que é impensável na medida em que o pensamento é essencialmente discursivo. Se toda existência – mesmo o cogito – pertence a um arranjo discursivo, Descartes demonstra que podemos pensar o que é, mas não existe. Podemos pensar um ser – “Deus” – mas pensamo-lo como algo impensável, pois ele não existe. Temos, assim, uma ideia clara e distinta do impensável, que é, portanto, completamente racional. Podemos pensar o impensável como aquilo que não podemos pensar, mas somo, todavia, forçados a pensar. Mas o que é pensado se se pensa aquilo que não se pode pensar? A resposta de Descartes

é:

liberdade.

Pensa-se,

portanto,

a

essência

do

ser

humano.

Consequentemente, Descartes é um dualista, mas um dualista peculiar. É um dualista porque pensa que há, de um lado, o pensamento, o discurso etc., e, do outro, há o impensável. O que isso significa? Nas Meditações, Descartes mostrou que posso errar porque, em um aspecto, sou absolutamente análogo a Deus, a saber, no que diz respeito à minha liberdade. Sou tão infinitamente livre que minha vontade pode querer A e nãoA ao mesmo tempo. É por isso que posso errar, mas isso também implica uma afirmação acerca da essência de Deus e, na medida em que lhe sou semelhante nesse aspecto, também acerca da essência dos seres humanos. Jean-Paul Sartre demonstrou que a liberdade de Deus, em Descartes, é a de uma contingência absoluta da vontade criativa (é por isso que Deus é o nome do infinito), em suma: Deus não tem a necessidade de criar, ele quer criar, e é contingente que ele o queira.50 Se a essência humana é análoga à de Deus, humanos são tão livres quanto ele é, e se Deus é o nome para o impensável, então isso quer dizer que minha essência não é uma essência natural. Pois Deus não é Sartre, 1968. Nesse aspecto, Descartes antecipa a tese de Meillassoux de que a contingência precede todo tipo de existência.

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natural; ele é o criador da natureza. É por isso que minha essência deve ser – ainda que eu apareça, quando existo, como uma entidade natural – não natural ou mesmo anatural. Minha liberdade é a-natural e sou, ao mesmo tempo, um ser natural. Todavia, e essa é a pretensão de Descartes, não se deve nunca naturalizar uma essência. Pois tão logo alguém concebe a liberdade meramente como uma capacidade que se possui naturalmente (incorporada no próprio corpo), já está concebendo erroneamente a liberdade e caindo em um estado de indiferença. Contra isso, a pretensão de Descartes é a seguinte: não há relação entre o humano e o animal, entre corpo e alma – são substâncias distintas – mas há algo como um animal humano, uma corporificação da não-relação. Não há relação entre a alma e o corpo, mas já algo como uma corporificação dessa não-relação mesma, que é o animal humano. Agindo-como-se-não-se-fosse-livre: o fatalismo A

partir

desse

fundamento,

Descartes

desenvolve

seu

argumento

maravilhosamente contraintuitivo a favor do fatalismo. Uma vez que a liberdade não é uma capacidade que possuo naturalmente, ela resulta da contingência (isto é, de algo impensável). Liberdade não é uma capacidade, mas um resultado. É necessário haver algo que torna a liberdade possível. Só sou livre quando sou forçado contingentemente a ser. Por isso, a partir do momento em que se começou a conceber o cogito, é-se forçado a pensar aquilo que só se pode pensar como algo que não se pode pensar (i.e., Deus). Que o pensamento é forçado a pensar aquilo que ele não pode pensar, isso significa a noção mesma de pensamento implica que seu conceito próprio tem origem em uma determinação que não tem origem no próprio pensamento, mas em algo outro ou em outro lugar. Isso também vale para a liberdade. Sou forçado a pensar, e sou forçado a ser livre. Sou não-livre tão logo concebo minha liberdade como algo que está em meu poder. Isso faz da liberdade uma capacidade. Mas representar a liberdade em termos de uma capacidade que tenho (e isso é o que funda a indiferença) – por paradoxal que possa soar – implica em entregar-se à arbitrariedade como uma forma fraca de contingência. O que está, assim, implicado na ideia de liberdade como capacidade não é apenas um conceito errado de liberdade, mas também um conceito errado de contingência.

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Isso porque logo que começo a enfatizar o talvez, o “pode ser”, a possibilidade dos dois lados de uma escolha em detrimento da escolha de um dos dois lados, eu não apenas tomo partido da indeterminação mas também da ideia de que as coisas poderiam se dar de qualquer maneira. Concebo a contingência, consequentemente, em termos de arbitrariedade. Pode-se, portanto, derivar daí que a indiferença também é o nome de um status no qual qualquer via está bem para mim.51 A indiferença enfatiza a arbitrariedade de duas vias possíveis que podem até mesmo se mostrar conceitualmente como contraditórias; e, tão logo ajo assim, enfatizo algo que pode ser, mas que também pode não ser. Com isso, tomo partido de uma forma fraca de contingência. Não de uma contingência que me permitiria fazer uma escolha – contingência como a origem da liberdade – mas de uma contingência da escolha e de seu resultado. Tomo partido, com isso, daquilo que Descartes chama de “fortuna”.52 Tão logo penso que possuo o poder de escolher qual será o curso do mundo ou da história e permaneço no interior dessa mera possibilidade, tenho a impressão de que poderia determinar o mundo a qualquer momento que queira. No entanto, o que ocorre, de fato, é que fico dependente dos contextos de fortuna arbitrários que já sempre me determinam de maneira heterônoma. Quando acredito que a realidade e a efetividade de minha liberdade está em sua possibilidade mesma, hipostasio essa possibilidade e termino sendo determinado pela arbitrariedade. Para evitar essa hipóstase de uma contingência fraca, apenas uma coisa pode ajudar: a defesa da necessidade absoluta, do determinismo total. 53 A ideia que Descartes avança é a seguinte: é preciso assumir que tudo já está pré-determinado, mesmo que nunca se possa e nunca se vá saber de que modo. Essa disposição da mente é a única que evita que eu caia na posição idealista de assumir que eu poderia determinar qualquer coisa, e que todas as coisas estão em meu poder, isto é, que liberdade é uma capacidade. Uma tal postura, em primeiro lugar, suspende a identificação de liberdade e capacidade. E permite assumir o impacto determinado completo da contingência (de Deus), que, em Em termos políticos, isso implica obviamente não apenas na abolição da política, mas também no próprio procedimento no qual qualquer eleição parlamentar se baseia fundamentalmente. 52 Fortuna é, portanto, para escartes, uma “quimera que provém apenas do erro de nosso entendimento”, escartes, 2010b, p. 368. 53 Deve estar claro aqui que Descartes está estritamente alinhado a Hegel e Freud – na medida em que Hegel sempre defendeu a necessidade (e a totalidade) absoluta e Freud, o determinismo psíquico absoluto. 51

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última instância, se torna necessidade. Isso é precisamente o que ele chama de fatalismo. Para assumir essa posição, como ele sustenta, é preciso coragem (ou mesmo ousadia).54 Por quê? Pois, em primeiro lugar, a postura fatalista parece implicar a abolição mesma da liberdade. E, de fato, ela é a abolição da liberdade: da liberdade como uma capacidade. O que Descartes propõe é que se aja como se não se fosse livre. É isso que estabelece a condição mesma da liberdade efetiva. Pois, com isso, evita-se todo gesto objetificante, que poderia transformar a liberdade em uma capacidade, criar indiferença e conduzir a determinações heterônomas, em última análise até mesmo a uma compreensão errônea da heteronomia. É preciso assumir completamente que não se tem objetivamente nada em seu poder55 e que nunca será possível saber nada sobre os planos de Deus, i.e., da contingência. Mas é exatamente isso o que torna possível conceber minhas ações de um modo puramente subjetivo. Agindo como se eu não fosse livre – ou seja: sendo um fatalista – afirmo uma determinação que não posso deduzir de minhas capacidades, a saber, a de que apenas sou livre quando me ocorre de ser forçado a fazer uma escolha. Assim, não apenas me torno instrumento de um Outro, da vontade de Deus (Descartes não está seguindo a lógica de Eichmann); torno-me antes ainda mais responsável por minhas ações, pois tudo é determinado, mas, de que modo, isso é absolutamente incerto. É por isso que, em certo sentido, não devo me preocupar com o modo como se é determinado. Pois até mesmo o Outro – aqui, Deus – é, portanto, determinado pela contingência, o que quer dizer que tampouco Deus tem planos sobre seus planos (ele também é determinado pela contingência). Para Descartes, tenho de assumir que sou determinado (sou forçado a ser livre ou a pensar, forçado por algo que não brota de meu pensamento ou minha liberdade), e isso implica que no coração do humano, na origem de minhas ações verdadeiramente humanas, então, está algo que o determina de um modo que não pode nos deixar indiferentes. Pelo fatalismo, afirma-se essa possibilidade impossível de que as ações verdadeiramente humanas sejam possíveis, apesar de não haver nenhuma garantia objetiva (nem em mim nem no mundo) para elas. Isso também é afirmar que o animal humano é, em seu coração, um A coragem “dispõe a alma a se entregar poderosamente à e ecução das coisas que ela quer fazer, de qualquer natureza que se am”, escartes, 2010b, p. 383. A ousadia é definida como “uma espécie de coragem que dispõe a alma à execução das coisas que são mais perigosas”, idem, ibidem. E livrar-se da liberdade como uma capacidade minha é uma manobra bastante perigosa. 55 Descartes afirma aqui algo semelhante a Badiou: Não temos nenhum poder contra a verdade. Cf. Badiou, 2005. 54

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ente inumano. Se se assume isso, pode-se evitar a espécie de indiferença que delineei acima. O fatalismo, a defesa da necessidade absoluta, pode ser considerado uma ferramenta para uma renovação de um humanismo verdadeiramente inumano, de ações reais e de ações do real, em suma: de liberdade. Era o que Descartes pensava, e para mim isso parece válido especialmente hoje: apenas uma fatalista pode ser livre. Isso porque não há nada sobre o que ter esperanças, nada no que se fiar, e em certo sentido não há nada sobre o que tenhamos algum poder. Mas isso evita que se caia na armadilha de agir como se se fosse livre. Portanto, hoje ainda mais, sustento que é preciso arriscar ser um fatalista. Dever-se-ia arriscar seguir o novo grito de batalha: aja como se não fosses livre. [Tradução: Luiz Philipe de Caux] Referências BADIOU,

Alain.

We

Have

no

Power

Against

Truth.

2005.

Disponível

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