Tradução de \"A Passageira de Ipanema\", de François Luis-Blanc

May 24, 2017 | Autor: Isa Mestre | Categoria: Literatura, Novela histórica
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2010 Acabo de ser informado do falecimento da minha esposa, Irene. Repousa numa pequena cidade do Nordeste brasileiro, Ilhéus. Uma cidade onde se desenrolou o drama final da sua vida. É agora momento de ultrapassar a dor do fiasco aparente do nosso idílio, sacrificando o desejo imperioso de lhe escrever. Partilhei alguns anos da existência de um ser excecional, dotado de imensos talentos. Vi-o destruir-se perante os meus olhos e não soube como salvá-lo, nem como ajudar. Não é o desenlace que imaginava, nem aquele que desejava, eu que tive a arrogância de acreditar no poder redentor do amor. É preciso ter em conta que o tempo reescreve as nossas histórias. Quase vinte anos passaram desde o desaparecimento de Irene. Visitei recentemente o seu pai, que não via desde a minha única ida à Hungria. Vive como um aristocrata que domina as vicissitudes da sua época com o estoicismo da idade : tem noventa e quatro anos e sempre viveu em Budapeste. Sobreviveu aos mais terríveis episódios da história do século XX: guerras mundiais, revolução e domínio comunista. Hoje assiste ao regresso do seu país a um certo grau de democracia, sem ver, no entanto, devolvidos os direitos e posses da sua ilustre família antes da revolução. O seu último desejo é agora o de sepultar os restos mortais da sua filha na cripta familiar, no Panteão Nacional de Budapeste. Evocamos juntos, com emoção, as nossas lembranças (frequentemente muito diferentes), revemos fotos, relemos cartas de Irene. Pouco a pouco surge na minha mente uma visão diferente dos últimos momentos da minha amada no Brasil: como se emanasse um sentimento de felicidade.

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Irene aparece-me nas fotografias rodeada pelos seus animais: gatos, cavalos, vacas, galinhas de Angola e galos, sobre um terreno que desliza rumo ao oceano. Esta paisagem, com a sua casa rústica, semiescondida por plantações de coqueirais, assemelha-se ao sonho que ela perseguia ao chegar ao Brasil. Muitas vezes me tinha descrito algo assim: um refúgio, rodeada de animais, na solidão da natureza soberana. Deste modo, as nossas desavenças em Ilhéus não me parecem já completamente desprovidas de sentido. Ainda que não estivéssemos destinados a viver juntos este sonho tropical, longe da civilização ocidental. Pergunto-me muitas vezes se Irene conseguiu enfim ser feliz, conquistando a sua terra prometida no Nordeste baiano. Terra onde estão também os frutos do meu esforço. Hoje, o sabor amargo que guardava da nossa rocambolesca separação dissipou-se. Devo agora regressar a terras baianas para organizar o repatriamento na Hungria dos despojos mortais de Irene e dos seus poucos objetos pessoais para devolvê-los à sua família. Suponho que Cecília, a sua filha – hoje uma mulher de quase quarenta anos – estará desejosa por descobrir as suas raízes familiares e de compreender quais os motivos que teriam levado a sua mãe a tomar uma decisão tão radical como a de confiá-la para adoção, com apenas dois anos, a uma família suíça, no momento em que Irene deixava para trás a sua vida e o seu trabalho em Chur para expatriar-se definitivamente no Brasil. Se, por qualquer um acaso predestinado, daqueles que a vida nos reserva, este livro cair nas mãos da sua filha, então ele será o laço entre ela, a sua infância desconhecida e a história, por descobrir, da sua família. *

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2010 Hoje, no Outono da minha vida, não é o mito de Fausto revisitado que me inspira, mas sim o verdadeiro prazer de relembrar os meus passos, de tocar novamente nesse bocadinho de passado descoberto no fundo da minha gaveta. Escrevo este livro sentado na secretária do último ditador de Portugal. Trata-se de um bonito móvel de acaju maciço que comprei durante uma liquidação anunciada no jornal “O Globo”, ignorando a sua origem. No dia marcado, em Copacabana, estava diante da pessoa que originou esta venda, a viúva de Marcelo Caetano. Depois da Revolução dos Cravos e em exílio no Rio de Janeiro, desejava regressar a Portugal, após a morte do seu marido. “Os deuses, quando querem zombar-nos, acedem a nossos pedidos”, diz o ditado. Assim, encontro-me numa colina no Algarve, mirando o oceano, com o Brasil no horizonte, num recanto de paraíso terrestre, rodeado pelas minhas plantações de tangerinas, oliveiras e alfarrobas. Uma arca de Noé cheia de pássaros, lebres, cobras e camaleões. Um sonho tornado realidade quando eu próprio já não acreditava. Mas tenho que falar dos sonhos perdidos. Os sonhos do jovem que eu era há algumas décadas atrás, cheio de ideais e de ilusões, que queria enfrentar o mundo, navegar de um país para o outro, de aventura em aventura , evitando cair nas malhas do cinismo. ― Se a existência é este conjunto de imundices que presencio a cada dia, então que seja! Pensei. Que remexamos no lixo e vejamos o que pode extrair-se de lá. Projetando-me para há quarenta anos atrás, através da máquina do tempo, tento regressar aos passos do jovem que

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sonhava com a evasão além do Atlântico, ancorado ainda, porém, a uma vida convencional com esposa, filhos e uma profissão de médico. Todas as manhãs, ao volante do seu Peugeot 404, a mesma ideia obsessiva o atormentava. Tal como o apelo de um concerto em Ré menor de Bach, um leitmotiv na rádio, que o revisitava a cada momento determinante da sua vida. Esse era o tempo das ruturas. O tempo de interpor o Atlântico entre um novo continente e o mundo antigo, os seus milénios de culturas e de influências no mais profundo do meu ser. O tempo de atravessar “o grande oceano”, como anunciava o oráculo de I Ching. Afastar-se da sociedade ocidental, quebrar os laços familiares, para dar lugar à implosão mental. Romper com o cárcere social, com o risco de desintegração, para abrir-se às correntes de mundo virgem a descobrir. O salto para o desconhecido, através de um novo continente, era um desafio, uma iniciação, um apelo à coragem, um desejo de conquista. Precisava de enfrentaras suas debilidades, o seu medo da solidão. Privado do apoio da família podia entrar em colapso, perder-se no desafio. Ou, pelo contrário, caminhar rumo a um novo começo, avançar com determinação pelo desconhecido. Precisava de ter fé em mim, mesmo que os outros me acusassem de loucura.

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1975 Esta manhã o verão irradia a atmosfera do Rio de Janeiro num véu de bruma. A luz revela reflexos na superfície parda das cúpulas de granito. Desfruto da liberdade de

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viver longe das disputas triviais. Conduzo calmamente pelas alturas da floresta da Tijuca. A estrada penetra nos meandros das copas das árvores gigantes envoltas de lianas. O ar fresco é perfumado pelo intenso cheiro da terra molhada. Atravessando uma passagem estreita entre conjuntos de rochas ciclópicas, transformadas pela erosão em grutas e capelas, a estrada desemboca num planalto entre picos rochosos. Um portão fortificado abre-se diante de mim, representando a entrada de uma propriedade colonial. Um empregado abre o portão e mostra-me a vereda de cascalho que me conduz à garagem. Esta encontra-se adornada por estátuas de escravos africanos e leões. Dois papagaios, bem vivos, acolhem-me numa gritaria hostil. Ficam loucos quando se apercebem que trago um cão boxer dentro do carro. Trago duas garrafas de vinho francês para os meus hóspedes, seguro de providenciar-lhes um raro prazer. Sinto-me como um jovem conquistador aventureiro. Tal vez tivesse sido melhor partir uma perna ou dar um tiro no pé: a minha vida teria sido completamente diferente. O mordomo conduz-me rumo a um pátio florido onde debaixo das arcadas de um claustro pagão se ouvem risos cristalinos. Duas jovens elegantes mulheres conversam alegremente, esticadas buliçosamente à beira da piscina, enquanto saboreiam um vinho branco chileno. O meu coração dá um salto: ao lado da minha amiga americana Cindy, reconheço a estrangeira com cabelos escuros, de olhos violeta, com quem me cruzara numa tarde chuvosa, durante uma reunião social. Essa mulher despertara em mim uma insensata esperança, porém, todas as tentativas que fizera para captar a sua atenção se revelaram infrutíferas. Parecia ter-se evaporado após aquele primeiro encontro, como muitos estrangeiros que estão de passagem pelo Rio.

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Recordo-me que naquele dia uma linha invisível me impediu de falar com ela. Curiosamente foi Ana, a minha mulher, que iniciou com ela uma longa conversa, junto à lareira, no intervalo do lanche, sem que eu pudesse sequer acompanhar os detalhes da conversa. Em seguida interroguei-a acerca dela e cheguei à conclusão que vinha de St. Moritz e se instalara no Brasil para iniciar uma nova fase da sua pintura. Naquele momento, um pensamento atravessou-me o espírito: seria ela a mulher ideal, a musa, o fermento de criação que eu tanto esperava? Sentia necessidade de descobrir o mundo desta estrangeira cuja pintura, ainda desconhecida, já exercia uma estranha atração sobre mim. Hoje, nesta manhã radiosa, rompo o muro de silêncio da minha musa. Revejoa sorridente e maliciosa, brincando com Cindy. Dou um beijo amigável à minha amiga americana e seguro a mão de Irene ― assim me apresentam a desconhecida - e beijo-a com a atenção reforçada de um olhar penetrante. Prefiro esconder o quanto ela me atrai a ter uma atitude mundana. Com um ar ligeiro, acompanhado pelos gritos extasiados dos amigos, pergunto onde posso deixar o champanhe francês. Em seguida junto-me ao grupo reunido em torno da piscina, apanhando sol . O lugar tem o encanto dos antigos casarões ao largo da costa de Nápoles. A piscina ocupa o centro de um terraço adornado por arcos romanos cobertos de heras. Atrás, perfilam-se cumes de granito, ladeados pela luxuriante floresta. De um lado e de outro pavilhões barrocos adornados de azulejos e de fontes rococó enaltecem a atmosfera romântica do lugar, com uma profusão de cores proporcionada pelos hibiscos e buganvílias. A sombra azulada do oceano desenha-se no horizonte. Esta natureza explosiva ignora os barulhos da cidade, criando um recanto de harmonia onde a canícula, a beleza, a leve ebriedade do vinho nos conduzem à euforia. Quando

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o calor aperta, nada melhor que um mergulho na água fresca antes de deixar novamente o sol brincar sobre os corpos bronzeados. O buffet é servido bastante tarde, os grupos formam-se ao acaso dos encontros. Estou, acima de tudo, dedicado a decifrar os mistérios de Irene, até nas suas conversas mais fúteis. Sinto um clima de confiança mútua. Expresso-lhe o meu desejo de ver os seus quadros. O crepúsculo cai e os convidados, pouco a pouco, retiram-se. Ela propõe-me que passe no seu atelier e convida-me a levá-la até lá. O seu atelier está situado em Copacabana. Fico dececionado ao constatar que Irene reside num imóvel barulhento, na esquina de um bairro popular. Penetramos no interior de uma sala e de um quarto estreitos e mal ventilados. Tenho a consciência que a sua condição de artista a condena a uma certa pobreza. A descoberta de quadros amontoados desperta em mim fortes emoções. Explosão de cores, de formas atormentadas onde domina a agressividade da cidade e a ameaça de uma sociedade cruel contra uma jovem desarmada. Julgo compreender o mal-estar da minha nova amiga. Irene permanece imóvel a meu lado, atenta às minhas reações. Deslizo o meu olhar sobre as pinturas de pescadores, através das formas esculturais de homens que me recordam o estilo do pintor brasileiro Portinari. São inspiradas em cenas da Baía de Todos-os-Santos, cidade onde Irene viveu alguns meses. As velas, os barcos frágeis a perder-se no horizonte, refletidos através do azul pastel. ― Gosto destas marinas. Em contraste, as paisagens da cidade moderna são quase insustentáveis. Depois dum olhar dirigido a Irene, acrescento: ― deve ter sofrido muito no Rio... Ela permanece em silêncio. Reparo que, abandonado sobre uma cadeira num canto do quarto, se encontra um ramo de flores, pintado com o vigor de Van Gogh. Reparo

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também num autorretrato com expressão sinistra, de uma verdade opressiva. O rosto lívido da pintora banhado por um ramo de lírios, evocando a morte de Ofélia. Tenho a confirmação do seu talento, e sinto-me inquietado perante esta imagem angustiante. ―És tu essa mulher? ― Sim, no momento da minha saída do Hospital, há alguns meses, suspira ela, com sorriso enigmático. ― Estavas irreconhecível! Os teus traços pareciam marcados pela morte. O teu olhar tem uma luz alarmante. Irene tenta esconder o mal-estar que sinto ser provocado por mim. Explica, em tom de piada, que o mau aspeto é apenas o resultado de ter degustado demasiados frutos do mar e moqueca durante as suas férias em Salvador. Conta-me que regressou de lá com uma hepatite que a levou diretamente para a Santa Casa, o hospital dos pobres. Em seguida Irene parece libertar uma confidência difícil e diz-me, olhando-me cara-a-cara: ― Sentia-me enfraquecida pelo desconforto da minha vida nesta época. Vivia num quarto de empregada onde o calor era insuportável. E não comia o suficiente. Enquanto se explica, atenta, com olhar intenso nas minhas reações. Sinto-me emocionado com a sua confissão espontânea acerca de um passado de miséria. Admiro-a mais ainda pelo facto de ter lutado tão arduamente para integrar-se no Brasil. Que força secreta lhe permitiu enfrentar estas provas que a sua pintura denuncia tão claramente? Sinto-me cada vez mais intrigado por esta mulher que irrompeu na minha vida. Sinto-me retido por um pudor inexplicável, desamparado no limiar desta descoberta cativante que pode não passar de uma aventura passageira. Irene, longe de se sentir importunada pelo meu pedido, parece desejosa de abrir-se mais. Talvez procure

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algum conforto. Não quero arriscar quebrar o laço de entendimento que nasce entre nós. Encontro um pretexto. Ainda não é muito tarde, aceitará acompanhar-me a Santa Teresa onde lhe revelarei um pouco do meu universo? Acede alegremente ao meu pedido e acrescenta com piada: ― Vamos continuar a festa. ― Tenho champanhe no frigorífico; tudo deverá ser fora do comum esta noite! Este momento ganharia uma importância inesperada mas não me faria ainda adivinhar a tormenta que se tornaria a minha vida. Naquele momento só pensava no desejo de conhecer melhor a sua personalidade fascinante. Nunca sonhando com uma conquista fulgurante. Santa Teresa foi, no início do século XX, o bairro dos artistas, celebrado pelas suas colinas e pelos seus casarões coloniais erigidos nos cumes, mergulhados em bosques tropicais. Como pano de fundo, as montanhas multicoloridas do Sumaré e do Corcovado. Hoje um amontoado de favelas cobrem as suas encostas com as suas cabanas acrobáticas de tábuas pintadas, pitorescas quando vistas de longe mas sórdidas numa realidade de miséria humana que se amontoa na lama por vezes lavada pelas chuvas torrenciais, levando consigo todas as imundices que se acumulam nas ruas. A partir da minha casa, abrigada no cume de um monte verde, situado acima do barranco, onde se encontram as favelas, ouve-se uma certa agitação popular que, ao longe, me dá a impressão de animação e cor. Mostro a Irene as escadas que nos conduzem da rua até ao pátio de entrada, decorado de azulejos portugueses, azuis e brancos, onde proliferam hibiscos e buganvílias. O perfume das frangipanas e dos jasmins em flor flutua sobre a noite. Irene penetra na sala de estar e sente-se como se estivesse suspensa no espaço: descobre, atrás do terraço com vidraças, uma janela para o horizonte escuro da baía

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do Rio, desenhada pelas luzes distantes da cidade. Os sopros quentes levam o rumor surdo das favelas, ritmado pelo canto obcecante das cigarras. Ilumino a piscina diante dos olhos maravilhados da minha linda visitante. As palmeiras e a mangueira gigante iluminam-se como uma abóbada de sombra verde que protege o espelho d’agua nas horas mais quentes do dia. O terreno prolonga-se por uma plantação de bananeiras. Preparo rapidamente umas sanduíches, verto o champanhe nos copos; tenho dificuldade em refrear a minha curiosidade diante das aventuras da minha companheira da noite. ― A Cindy contou-me que deixaste a Hungria para viver na Alemanha. Fizeste-o no momento da revolta contra os Russos? ― Não, quando se deu a invasão eu tinha apenas doze anos. Deixei a Hungria mais tarde, quando me casei, ainda muito jovem, com um Alemão para obter o meu visto de saída. Nesse momento só tinha uma ideia na minha cabeça: fugir dos constrangimentos do regime comunista. Adivinho-lhe uma série de sofrimentos por detrás destas breves palavras mas fico em silêncio, com medo de despertar lembranças dolorosas. É ela que, espontaneamente, começa a contar um episódio vivido durante a repressão russa: ― Recordo-me de ir à padaria com a minha mãe e a minha tia, pois estávamos há vários dias sem abastecimento. Eu era ainda uma menina, mas lembro-me perfeitamente da cena. Um grupo de soldados russos apareceu do outro lado da rua. Não viam mais que três mulheres inofensivas, mas por provocação, ou por divertimento, dispararam algumas rajadas de metralhadoras na nossa direção. As balas passaram por cima das nossas cabeças. Parece que ainda consigo ouvir os seus silvados. Tivemos sorte: o portão de um edifício estava aberto e

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atirámo-nos para o chão para nos abrigar. Os soldados não insistiram mas eu vi bem os seus rostos de bestas, sem o mínimo reflexo de humanidade, quando passaram por nós. Eram jovens Mongóis, máquinas de matar e fazer sofrer, treinados desde a infância para os jogos brutais da guerra. Este foi o primeiro choque, e o mais terrível, da minha vida. O absurdo daquele gesto de força gratuita contra seres indefesos, e a visão das ruas repletas de sangue e fogo, de escombros, de tanques incendiados e de cadáveres não me deixaram nenhuma ilusão sobre a Humanidade. O reflexo trágico desta cena brilha no olhar de Irene. Recordo-me destes acontecimentos em 1956 que tínhamos comentado na família e que haviam marcado minha mente de jovem. Mas existe um abismo entre as notícias na rádio, os grandes surtos populares idealizados, e a experiência direta destes horrores cujo impacto sobre a sensibilidade de um jovem não consigo imaginar. Uma ferida imposta, sem remédio nem cicatrização possível. Seria esta a secreta razão para a Irene procurar refúgio nos doces encantos tropicais do Brasil? Diante da alegria inocente demostrada por Irene, pergunto-me se o sofrimento pode passar por um ser puro, sem marcá-lo de amargura. O silêncio da minha companheira desta noite transforma a música em surdina. A voz de soprano liberta-se divinamente no diálogo dos cravos com os coros. Já nos afastamos tanto da repressão russa em Budapeste! Espero aproveitar esta noite para desvendar os mistérios de Irene. Pergunto-lhe gentilmente: ― Como tomaste a decisão de vir para o Rio? Ela hesita um momento, passa a mão pelos seus lindos cabelos negros num gesto que lhe é familiar, e, sentindo confiança, prossegue: ― Fiz uma exposição no Rio, há três anos, seguida de uma estadia em Salvador da Baía. Tinha gostado tanto do Brasil que não resisti mais de três meses ao inverno da

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