Tradução de \"A Teoria Pura do Direito\" (Pure Theory Of Law), de Andrei Marmor

June 6, 2017 | Autor: Ricardo Evandro | Categoria: Hans Kelsen, Andrei Marmor, Teoria Pura Do Direito
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A Teoria Pura do Direito (Pure Theory Of Law)
(Primeira publicação em 18 de novembro de 2002; revisão do conteúdo em 7 de julho de 2010).
Autor: Andrei Marmor.
Tradução: Ricardo Evandro S. Martins.

[1.1] A ideia de uma teoria pura do direito foi proposta pelo formidável jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen (1881–1973). (Veja nota bibliográfica) [1.1] Kelsen iniciou sua longa carreira como teórico do direito no início do século XX. [1.3] As filosofias jurídicas tradicionais daquele tempo eram, conforme Kelsen afirmou, irremediavelmente contaminada com ideologia política e moralizante de um lado ou, de outro, com tentativas de reduzir o Direito às ciências naturais ou sociais. [1.4] Kelsen encontrou falhas graves em ambas as teses reducionistas. [1.5] Deste modo, Kelsen, de modo contrário, sugeriu uma teoria pura do direito a qual rejeitaria o reducionismo de qualquer tipo. [1.6] Kelsen propôs que a teoria geral direito (jurisprudence) "caracteriza-se como uma teoria 'pura' do direito porque ela busca a cognição focada somente no direito" e esta pureza serve como seu "princípio metodológico básico" (PT1, 7).
1. A Norma Fundamental
2. Relativismo e Redução
3. A Normatividade do Direito
Bibliografia
Referências primárias
Referências secundárias
Outras referências da Internet
Entradas relacionadas

1. A Norma Fundamental
[2.1] O principal desafio para a teoria do direito, como Kelsen observou, é fornecer uma explicação sobre a legalidade e a normatividade do direito sem uma tentativa, contudo, de reduzir a teoria geral do direito, ou a "ciência do direito", à outros domínios. [2.2] O direito, sustentava Kelsen, é basicamente um esquema de interpretação. [2.3] Sua realidade, ou objetividade, reside na esfera de significado/sentido; nós aferimos um significado/sentido normativo-jurídico para determinadas ações e eventos no mundo (PT1, 10). [2.4] Suponha, por exemplo, que um uma nova lei é promulgada pelo Legislativo da Califórnia. [2.5] Como isto é feito? [2.6] Presumivelmente, algumas pessoas se reúnem em uma sala, debatem a questão, eventualmente levantam a mão em resposta à questão sobre se aprovam o documento ou não, contam o número de pessoas que dizem "sim", e, depois, promulgam uma sequencia de palavras, etc. [2.7] Agora, obviamente, as ações e eventos descritos aqui não são o direito. Dizer que a descrição é a sanção de uma nova lei (direito novo) é interpretar tais ações e eventos por uma maneira determinada. [2.8] Porém, é claro, a questão é por que certos atos ou eventos possuem um certo significado/sentido jurídico e outros, em contrapartida, não?
[3.1] A resposta de Kelsen para esta questão é surpreendentemente simples: um ato ou um evento ganha seu significado/sentido jurídico-normativo por outra norma jurídica que confere tão significado/sentido ao mesmo. [3.2] Um ato pode criar ou modificar o direito se ele for criado em concordância com outro, uma norma jurídica "superior" a qual autoriza esta criação naquele modo. [3.3] E a norma jurídica superior, por sua vez, é legalmente válida se, e somente se, ela tiver sido criada em concordância ainda outra norma "superior" a qual autoriza tal promulgação neste modo. Em outras palavras: é a lei nos Estados Unidos cujo o legislativo da Califórnia pode aprovar determinados tipos de lei. [3.4] Mas o que faz esta lei? A Constituição da Califórnia confere tal poder para o legislativo estadual para promulgar leis com certos limites prescritos quanto ao conteúdo e quanto a jurisdição. [3.5] Mas o que faz a Constituição da Califórnia legalmente válida? [3.6] A resposta é que a validade jurídica da Constituição da Califórnia deriva de uma autorização concedida pela Constituição dos Estados Unidos. [3.7] O que faz da Constituição dos Estados Unidos ser legalmente válida? [3.8] Certamente, não o fato de que a Constituição dos Estados Unidos se proclame ser "a suprema lei do país". [3.9] Qualquer documento pode dizer isso, mas, particularmente, somente o documento da Constituição dos Estados Unidos é atualmente a suprema lei dos Estados Unidos.
[4.1] O problema é que, aqui, a cadeia de autorização chega ao fim: Não há uma norma jurídica superior que autorize a promulgação da (originária) Constituição dos Estados Unidos. [4.2] Neste ponto, Kelsen argumentou, famosamente, que deve a validade jurídica da Constituição ser pressuposta. [4.3] Em algum nível, em cada sistema jurídico, temos uma norma autorizadora que, por sua vez, não foi a autorizada por nenhuma outra norma jurídica, e, portanto, tal norma tem que ser pressuposta para ser juridicamente válida. [4.4] O conteúdo normativo deste pressuposição é o que Kelsen tem chamado de Norma Fundamental. [4.5] A Norma Fundamental é o conteúdo da pressuposição da validade jurídica da constituição (primeira e histórica) do sistema jurídico relevante. (GT, 110–111).
[5.1] Como Kelsen observou, não há simplesmente alternativa. [5.2] Mais precisamente, qualquer alternativa violaria a determinação de David Hume contrária ao derivação do "deve-ser" de um "é". [5.3] Hume argumentou, famosamente, que qualquer argumento prático que conclui com qualquer declaração prescritiva, isto é, uma declaração do tipo que o "dever-ser" faz isto ou aquilo, teria que conter, ao menos, uma declaração prescritiva em suas instalações/localidades. [5.4] Se todas as instalações de um argumento são descritivas, dizendo-nos que isto ou aquilo é o caso, com isto, não há, deste modo, conclusão prescritiva que pode ser logicamente seguida. [5.5] Kelsen leva muito a sério tal argumento. [5.6] Ele observa que as ações e os eventos que constituem, ou então, como diz, que promulgam a lei, estão todos na esfera do que "é" o caso, eles estão todos na esfera de ações e eventos que encontram lugar no mundo. [5.6] O direito, ou as normas jurídicas, estão na esfera do "dever-ser", eles são normas que se propõem a prescrever conduta. [5.7] Assim, para que se obtenha uma conclusão do tipo de "deve-ser" de uma lista de instalações de "é", deve-se apontar para alguma instalação de "deve-ser" de fundo, um "deve-ser" que confere o significado/sentido normativo sobre o tipo relevante de "é". [5.8] A partir da chegada ao fim da real e jurídica cadeia de validade, nós inevitavelmente chegamos a um ponto onde o "dever-ser" tem que ser pressuposto; e esta é pressuposição da Norma Fundamental.
[6.1] A ideia de Norma Fundamental serve à três funções da teoria pura do direito de Kelsen: A primeira é para fundamentar uma não redutivista explicação sobre validade jurídica. [6.2] A segunda função é fundamentar uma não redutivista explicação sobre a normatividade do direito. [6.3] A Terceira função é explicar a natureza sistemática das normas jurídicas. [6.4] Estas três questões não estão desvinculadas.
[7.1] Kelsen corretamente notou que as normas jurídicas necessariamente vem (surgem) em sistemas. [7.2] Não existem normas jurídicas soltas. [7.3] Se, por exemplo, alguém sugere que "a lei requer uma vontade de ser atestada por duas testemunhas", deve-se sempre procurar qual o sistema jurídico que se está falando; é o direito dos Estados Unidos, canadense, alemão, ou o direito de algum outro sistema jurídico? [7.4] Além do mais, os sistemas jurídicos são eles mesmos organizados numa estrutura hierárquica, manifestando um grande pacto de complexidade, mas também uma determinada unidade sistemática. [7.5] Nós falamos do direito canadense, alemão ou outros, não porque somente há países separados em que há direito. [7.6] Eles são também sistemas jurídicos separados, manifestando uma certa coesão e unidade. [7.7] Esta unidade sistemática foi identificada por Kelsen pelos dois postulados a seguir:
[7.8] A cada duas normas que derivam suas validade, ao fim, da Norma Fundamental, pertencem (ambas) ao mesmo sistema jurídico.
[7.9] Toda norma jurídica de um dado sistema jurídico deriva sua validade, ao fim, de uma Norma Fundamental.
[8.1] Se esses dois postulados são realmente verdadeiros é uma questão controversa. [8.2] Joseph Raz argumentou que eles são, ambos, na melhor das hipóteses, imprecisos. [8.3] Duas normas podem derivar suas validades da mesma Norma Fundamental, mas sem ambas obedeceram ao mesmo sistema, como, por exemplo, no caso de uma sessão ordenada por onde um novo sistema legal é criado pela autorização jurídica/legal de outra. [8.4] Também não é necessariamente verdadeiro que todas as normas juridicamente válidas de uma dado sistema tem suas validades derivadas de uma mesma Norma Fundamental (Raz 1979, 127–129).
[9.1] Seja como for, ainda que Kelsen tenha errado quanto aos detalhes da unidade dos sistemas jurídicos, a sua intuição principal continua verdadeira e muito importante. [9.2] É verdade que a lei é essencialmente sistemática assim como também é verdadeira a ideia de que a validade jurídica e a natureza sistemática da lei são intimamente ligadas. [9.3] Normas são juridicamente válidas em um dado sistema e elas tem que formar parte de um sistema de normas que, por sua vez, está em uma dado tempo e lugar.
[10.1] Este ultimo ponto nos leva à outra observação que é central à teoria de Kelsen, trata-se das relações entre validade jurídica e, como Kelsen chamou, "eficácia". [10.2] Este ultimo é um termo de arte nos escritos de Kelsen: Uma norma é eficaz se ela for realmente (de modo geral) seguida por uma população relevante. [10.3] Assim, "uma norma é considerada para ser juridicamente válida", escreveu Kelsen, "sob a condição que ela pertença a um sistema de normas, em ordem que, pelo conjunto, é/seja eficaz" (GT, 42). [10.4] Então a relação, aqui, é esta: eficácia não é uma condição de validade jurídica de normas individuais. [10.5] Qualquer determinada norma pode ser juridicamente válida mesmo se ninguém a siga/obedeça. (por exemplo, pense em uma nova lei recém promulgada; é juridicamente válida mesmo se ninguém tenha tido ainda uma oportunidade de cumpri-la. [10.6] Contudo, uma norma pode somente se juridicamente válida se ela pertencer a um sistema, uma ordem jurídica, que seja/é, em geral, na verdade, amplamente praticada por uma população determinada. [10.7] E, deste modo, a ideia de validade jurídica, como admite Kelsen, está intimamente ligada a esta realidade de uma prática social; um sistema jurídico existe, apor assim dizer, somente como uma realidade social, isto é, uma realidade que consiste no fato de que aquelas pessoas realmente seguem determinadas normas.
[11.1] Sobre a Norma Fundamental, é a eficácia uma condição de sua validade? [11.2] Pode-se pensar que Kelsen teria optado por uma resposta negativa, aqui. [11.3] Afinal, a Norma Fundamental é uma pressuposição que é logicamente exigida para aferir a validade da inteligibilidade da lei. [11.4] Isto parece ser o ponto central de uma explicação anti-reducionista sobre a validade jurídica: a partir do fato de que não podemos derivar um "deve-ser" de um "é", algum "deve-ser" precisa ter seu fundamento pressuposto, o qual nos permitiria interpretar determinados atos ou eventos como tendo significância jurídica. [11.5] Kelsen, todavia, muito explicitamente admite que a eficácia é uma condição de validade da Norma Fundamental: Uma Norma Fundamental é juridicamente válida se, e somente se, ela for realmente seguida/cumprida em uma dada população. [11.6] De fato, como veremos a seguir, Kelsen não teve escolha aqui. [11.7] E é precisamente por isto, ao menos, o motivo pelo qual este aspecto crucial se tornou questionável.
2. Relativismo e Redutivismo
[12.1] O senso comum diz que o argumento de Kelsen para a pressuposição da Norma Fundamental tem a forma de um argumento transcendental kantiano. [12.2] A estrutura é a seguinte:
[12.3] P é possível somente se Q
[12.4] P é possível (ou, possivelmente P)
[12.5] Portanto, Q.
[13.1] No argumento de Kelsen P representa o fato de que as normas jurídicas são prescrições de "deve-ser" e Q é o pressuposto da Norma Fundamental. [13.2] Em outras palavras, a pressuposição necessária da Norma Fundamental é derivada das condições de possibilidade para atribuir significado jurídico para ações e eventos. [13.3] Para interpretar uma ação como ação de criação ou modificação da lei é necessário mostrar que a significância jurídica de um ato-evento lhe é conferida por alguma outra norma. [13.4] Em algum ponto, como temos notado, nós necessariamente escapamos das normas jurídicas que conferem a validade relevante sobre os atos criativos de direito e, neste ponto, a validade jurídica tem que ser pressuposta. [13.5] O conteúdo desta pressuposição é a Norma Fundamental.
[14.1] Seria um erro, contudo, procurar uma explicação para o argumento de Kelsen na lógica do argumento transcendental kantiano. [14.2] (Kelsen, ele mesmo, parece ter mudado seu ponto de vista sobre isto ao longo dos anos; ele talvez tenha iniciado com um tipo de perspectiva neokantiana que pode ser discernida na PT1 (primeira edição da TPD) e, gradualmente, tenha transferido sua posição para uma versão humeana do seu principal argumento, a qual está evidente na GT (Teoria geral do direito e do estado)). [14.3] Kant empregou um argumento transcendental para estabelecer os pressupostos necessários de algumas categorias e modos de percepção que, como ao menos ele pensava, são essenciais para a cognição racional. [14.4] Eles formam profundas, universais e necessárias funções da cognição humana. [14.5] Basta lembrar que foi ao ceticismo de Hume sobre o conhecimento que Kant se esforçou para responder pelo argumento transcendental. [14.6] Kelsen, todavia, continua muito mais próximo ao ponto de vista cético de Hume do que ao racionalismo de Kant. [14.7] Em particular, Kelsen foi bastante cético em relação a qualquer fundamentação objetiva da moralidade, incluindo a teoria moral do próprio Kant. [14.8] A visão de Kelsen sobre a moralidade era de todo caminho relativista. (Mais sobre isto abaixo). [14.9] Segundo, e não desvinculado, como veremos, Kelsen rejeitou explicitamente a ideia de que a Norma Fundamental (no direito ou em qualquer outro domínio normativo) é algo como um recurso necessário ou categoria da cognição humana. [14.10] A pressuposição da Norma Fundamental é opcional. [14.11] Pode-se não aceitar a normatividade do direito; anarquismo, como uma rejeição da validade normativa do direito é certamente, pensava Kelsen, uma opção. [14.12] A Norma Fundamental é pressuposta somente por aqueles que aceitam o "dever-ser", isto é, a validade normativa do direito. [14.13] Mas não se está racionalmente obrigado a ter esta atitude:
[14.14] A Teoria pura descreve o direito positivo como uma ordem objetivamente válida e afirma que esta interpretação é possível somente sob a condição que a Norma Fundamental esteja pressuposta... [14.15] A Teoria pura, a qual caracteriza esta interpretação como possível, mas não necessária, e que apresenta a validade objetiva do direito positivo somente como condicional, ou seja, condicionada pela Norma Fundamental pressuposta. (PT2, 217–218).
[15.1] Uma comparação com a religião, oferecida pelo próprio Kelsen, pode ajudar aqui. [15.2] A estrutura normativa da religião é muito similar com a estrutura do direito. [15.3] Ela tem a mesma lógica: as crenças religiosas sobre o que se deve fazer deriva diretamente das crenças sobre os mandamentos de Deus. [15.4] Os mandamentos de Deus, contudo, teriam validade normativa para aqueles que pressupõem a Norma Fundamental de suas respectivas religiões, ou seja, que deve os mandamentos de Deus ser obedecidos. [15.5] Assim, a normatividade da religião, assim como a do direito, funda-se no pressuposto de sua Norma Fundamental. [15.6] Mas em ambos os casos, como, de fato em qualquer outro sistema normativo, a pressuposição da Norma Fundamental é logicamente exigida somente por aqueles que consideram a normas relevantes como razões de suas ações. [15.7] Portanto, se você realmente pressupõe a relevante Norma Fundamental como questão de escolha, isto é uma opção ideológica, isto é, como se fosse algo não dito pela Razão. [15.8] Semelhantemente, a normatividade do direito, pressuposto por sua Norma Fundamental, é opcional: "Um anarquista, por exemplo, quem negou a validade de Norma Fundamental Hipotética de direito positivo...irá ver sua regulação positiva das relações humanas...como meras relações de poder" (GT, 413).
[16.1] Relativismo, todavia, vem (surge) com um preço. [16.2] Considere esta questão: Qual é o conteúdo da Norma Fundamental que se precisa pressupor a fim de render inteligibilidade ao direito positivo como uma ordem normativa jurídica? [16.3] A simples resposta é a que pressupõe, aqui, que é precisamente a validade normativa do direito positivo, ou seja, o direito que é realmente praticado por uma determinada população. [16.4] A validade da Norma Fundamental, como nós resumidamente falamos anteriormente, está condicionada à sua "eficácia". [16.5] O conteúdo da Norma Fundamental de qualquer dado sistema jurídico é determinado pelas reais práticas que prevalecem na comunidade relevante. [16.6] Como o próprio Kelsen repetidamente argumentou, um bem-sucedida revolução traz consigo uma radical mudança no conteúdo da Norma Fundamental. [16.7] Suponha, por exemplo, que em dado sistema jurídico a Norma Fundamental é aquela que a constituição promulgada pelo Rex One é vinculante. [16.8] Em um certo ponto, um coup d'etat (golpe de estado) se estabelece e um governo republicano é instalado de maneira bem sucedida. [16.9] Neste ponto, Kelsen admite, "este pressupõe uma nova Norma Fundamental, não mais a Norma Fundamental que delega o direito, dando autoridade ao monarca, mas uma Norma Fundamental que delega autoridade ao governo revolucionário". (PT1, 59).
[17.1] Tem Kelsen apenas violado sua própria adesão à determinação de Hume contra derivar o "deve-ser" de um "é", aqui? [17.2] Tem-se a clara impressão que Kelsen estava ciente de uma séria dificuldade em sua posição. [17.3] Em ambas as edições da Teoria Pura do Direito Kelsen se ocupa com a ideia de que talvez mude na Norma Fundamental de um sistema jurídico municipal juridicamente derivado de uma Norma Fundamental de direito público internacional. Isto é um princípio fundamental do direito internacional em que a soberania de um estado seja determinada pelo real controle sobre um território-população. (PT1 61–62, na PT2, 214–215, a ideia está apresentada com maior hesitação). [17.4] Mas isso levou Kelsen à conclusão bastante desconfortável de que há somente uma Norma Fundamental em todo o mundo, ou seja, a Norma Fundamental de direito internacional público. [17.5] Seja como for, a principal preocupação é outra. [17.6] A preocupação deriva do fato de que é muito difícil, se não impossível, manter ambas as posições relativistas e anti-reducionistas em relação a um dado domínio normativo. [17.7] Se você manter a posição de que a validade de um tipo de normas é inteiramente relativa para um determinado ponto de vista—em outras palavras, se o que está envolvido, aqui, é somente a real conduta, crenças-pressupostos e atitudes de pessoas—torna-se muito difícil destacar a explicação de que a validade normativa destes fatos, os quais constituem o ponto de vista relevante (ou seja, os fatos sobre as ações, crenças, atitudes e etc, das pessoas). [17.8] Isto é basicamente o que significou anteriormente pelo comentário de que Kelsen não teve outra opção a não ser a de admitir que a validade de uma Norma Fundamental está condicionada na sua eficácia. [17.9] O relativismo normativo, o qual está inserido na concepção de Kelsen, força-o a fundamentar o conteúdo da Norma Fundamental nos fatos sociais que constituem seus contentos, ou seja, os fatos sobre ações, crenças e atitudes realmente entretidos pela população em questão. [17.10] E isto faz muito questionável quanto ao reducionismo poder ser evitado. [17.11] De fato, o que realmente Kelsen nos ofereceu aqui é um convite para dar uma explicação reducionista do conceito de validade jurídica em termos de um conjunto de fatos sociais, isto é, fatos que constituem o conteúdo de qualquer dada Norma Fundamental. [17.12] (Que é precisamente o tipo de redução que H. L. A. Hart ofereceu por conta de suas Regras de Reconhecimento enquanto regras sociais [veja Hart 1961, at p. 105, onde Hart faz a diferença entre suas concepções de regras de reconhecimento e a ideia Kelsen da Norma Fundamental.])
[18.1] O problema de Kelsen aqui não é devido ao fato de que ele era relativista em relação a cada sistema normativo, como moralidade, religião, etc.; não o escopo de seu relativismo que é relevante para a questão da redução. [18.2] O problema decorre do fato de que Kelsen estava certo sobre a direito/lei. [18.3] A Validade jurídica é essencialmente relativa aos fatos sociais que constituem o conteúdo da Norma Fundamental em toda e qualquer ordem jurídica. [18.4] Observe que a validade jurídica é sempre relativa a um tempo e lugar. [18.5] Uma lei promulgada pelo legislativo da Califórnia somente se aplica durante um certo período de tempo, após a sua promulgação e até um momento em que é modificada ou revogada. [18.6] E nós podemos ver o motivo: porque a validade jurídica é determinada pelo conteúdo da Norma Fundamental que é realmente seguida (cumprida) em uma dada sociedade. [18.7] As leis no Reino Unido, por exemplo, são diferentes das leis dos Estados Unidos porque as pessoas (principalmente juízes e outros funcionários), realmente seguem regras diferentes, ou Normas Fundamentais, conforme a terminologia de Kelsen, sobre o que conta como lei em suas respectivas jurisdições. [18.8] Uma vez que Kelsen admite que o conteúdo de uma Norma Fundamental é totalmente determinado pela prática, torna-se, assim, muito difícil entender como a explicação da validade jurídica que ele oferece é não-reducionista.


3. A normatividade do Direito
[19.1] Deixe-nos agora ver como Kelsen pensou que a Norma Fundamental ajuda a explicar o senso na qual o direito é um domínio normativo e explicar em que consiste esta normatividade. [19.2] O primeiro e crucial ponto para perceber é que, para Kelsen, a ideia de normatividade equivale a um "dever-ser" genuíno; ou seja, como uma demanda justificada em deliberação prática. [19.3] Um determinado conteúdo é considerado como normativo por um agente, se, e somente se, o agente considerar o conteúdo como uma razão válida para a ação. [19.4] Como Joseph Raz observou, Kelsen concorda com a tradição do Direito Natural neste aspecto em particular; ambos assumem que a normatividade do direito só pode ser explicado como se explicaria a normatividade da moralidade, ou da religião para aquele o assunto, ou seja, em termos de razões válidas para a ação (Raz 1979, 134-137). [19.5] Mas, então, o problema para Kelsen é como explicar a diferença entre a normatividade do direito lei e da moralidade; se o "dever-ser" jurídico é um "dever-ser" genuíno, o que torna uma obrigação jurídica distinta de uma obrigação moral? A resposta de Kelsen é que o "dever-ser" relevante é sempre relativo a um determinado ponto de vista. [19.7] Todo e qualquer tipo de "deve-ser", seja religioso, moral ou jurídico, deve pressupor um certo ponto de vista, um ponto de vista o qual seja constituída pela Norma Fundamental do sistema normativo relevante.
[20.1] Em outras palavras, a concepção de Kelsen sobre normatividade jurídica acaba por ser uma forma de Lei Natural completamente relativizada a um certo ponto de vista. [20.2] No entanto, na teoria de Kelsen o ponto de vista relevante é distintamente um ponto de vista jurídico, e não alguma concepção geral de moralidade ou Razão. [20.3] Que estas duas normas básicas, ou pontos de vista, podem vir à parte, é bem demonstrado pelo comentário de Kelsen que "mesmo um anarquista, se ele fosse um professor de direito, poderia descrever o direito positivo como um sistema de normas válidas, sem ter que aprovar esse direito" (PT2 218n). [20.4] O anarquista não endossa o ponto de vista legal como sendo aquele que reflete suas próprias opiniões sobre o que é certo e errado. [20.5] O anarquismo é aqui entendido precisamente como uma rejeição da validade normativa do direito, no entanto, mesmo um anarquista pode fazer uma discussão sobre o que o direito, neste ou naquele contexto, exige; e quando o anarquista faz tal argumento, ela deve pressupor o ponto de vista jurídico, ele deve discutir como se ele aprovasse a Norma Fundamental do sistema jurídico relevante. [20.6] Joseph Raz chamou estes tipos de declarações de "declarações normativas destacadas", pois o anarquista argumenta como se ele aprovasse a Norma Fundamental, sem realmente endossa-la. [20.7] Outro exemplo que Raz deu é este: suponha que um padre católico é um especialista no direito judaico; o sacerdote pode fazer vários argumentos interpretativos sobre o que realmente exige a lei judaica neste ou naquele contexto. [20.8] Em tal caso, o sacerdote deve discutir como se ele aprovasse a Norma Fundamental da lei judaica, mas é claro que, sendo católico, ele realmente não a apoia, pois a lei judaica não reflete a sua própria opinião sobre o que é certo e errado (Raz 1979, 153-157).
[21.1] Então aqui é o que emerge até agora: o conceito de normatividade, o senso no qual o conteúdo normativo está relacionado com as razões para a ação, é a mesma em todos os domínios normativos. [21.2] Considerar algo como normativo é a considerá-lo como justificado, assim como um requisito garantido na deliberação prática. [21.3] No entanto, a diferença reside na distinção de pontos de vista. [21.4] Cada Norma Fundamental determina, por assim dizer, um certo ponto de vista. [21.5] Assim, verifica-se que a normatividade (contrário a de Kant) consiste sempre em imperativos condicionais: se, e somente se, um apoia um ponto de vista normativo certo, determinado pela sua Norma Fundamental, então, as normas que se seguem (cumprem) são motivo que se dão, por assim falar. [21.6] Isso permite que Kelsen mantenha o mesmo entendimento sobre a natureza da normatividade do mesmo modo como a concepção do Direito Natural entendia, ou seja, as razões normatividade para a ação sem ter que confundir a normatividade da moralidade com do direito. [21.7] Em outras palavras, a diferença entre normatividade jurídica e, digamos, normatividade moral, não é uma diferença na normatividade (a saber, sobre a natureza da normatividade, per se), mas apenas no ponto de vantagem relevante, o qual é determinado pelas suas diferentes Normas Fundamentais. [21.8] O que faz normatividade jurídica única é a singularidade de seu ponto de vista, isto é, do ponto de vista jurídico.
[22.1] Nós podemos pôr de lado as dificuldades que tal visão levanta com respeito à moralidade. [22.2] Obviamente, muitos filósofos rejeitariam a visão de Kelsen, pois, para ele, as razões morais para a ação só se aplicariam a quem optasse por endossar a Norma Fundamental da moralidade (seja ela qual for). [22.3] Mesmo se Kelsen estiver bastante equivocado sobre esta natureza condicional dos imperativos morais, ele deve estar talvez certo sobre a o direito. [22.4] O que é questionável, no entanto, é se Kelsen consegue fornecer uma explicação não-redutivista da normatividade jurídica, dado o fato de que a sua concepção validade jurídica acabou por ser redutora, afinal. [22.5] O problema aqui não é simplesmente a relatividade de um ponto de vista, o problema reside na falta cometida por Kelsen para fundamentar a escolha do ponto de vista relevante em qualquer coisa como Razão ou razões de qualquer tipo. [22.6] Evitando qualquer explicação sobre o que poderia fundamentar a escolha de um agente ao endossar o ponto de vista jurídico, ou de qualquer dada Norma Fundamental, Kelsen deixou as questões mais imperiosas sobre a normatividade do Direito sem resposta. [22.7] Em vez de fornecer uma explicação sobre o que faz a pressuposição do ponto de vista jurídico-racional, ou o que faz as exigências do direito requisitos obrigatórios, Kelsen nos convida a parar de perguntar.
Bibliografia
Referências primárias
As publicações acadêmicas de Kelsen se estendem por quase sete décadas, periodo o qual ele publicou dezenas de livros e centenas de artigos. Apenas a cerca de um terço desta vasta literatura tem sido traduzida para o inglês. Os dois livros mais importantes de Kelsen sobre a Teoria pura do direito são a primeira edição de sua Reine Rechtslehre, publicada em 1934 e recentemente (2002) traduzido. A segunda edição, que Kelsen publicou em 1960 (traduzida em 1967) é uma versão consideravelmente ampliada da primeira edição. Além disso, a maioria dos temas desses dois livros também aparecem em Teoria Geral do Direito e do Estado de Kelsen. Estas três obras são citadas no texto da seguinte forma:
[PT1]
1934/2002. Introduction to the Problems of Legal Theory, B.L. Paulson and S.L. Paulson, trans., Oxford: Clarendon Press.
[PT2]
1960/1967. Pure Theory of Law, M. Knight, trans., Berkeley: University of California Press.
[GT]
1945/1961. General Theory of Law and State, A. Wedberg, trans., New York: Russell & Russell.
Other relevant publications in English include What is Justice?, UC Berkeley Press, 1957, 'The Pure Theory of Law and Analytical Jurisprudence', 55 Harvard L. Rev. (1941), 44, 'Professor Stone and the Pure Theory of Law: A Reply', (1965), 17 Stanford L. Rev. 1128, and 'On the Pure Theory of Law' (1966), 1 Israel L. Rev. 1.
For a complete list of Kelsen's publications that have appeared in English see the Appendix to H. Kelsen, General Theory of Norms (M. Hartney trans.) Oxford, 1991, pp. 440–454.
Referências secundárias
Harris, J.W., 1980, Legal Philosophies, chapter 6, London: Butterworths.
Hart, H.L.A., 1961, The Concept of Law, chapter 3, Oxford: Clarendon Press.
–––, 1970, 'Kelsen's Doctrine of the Unity of Law', in H.E. Kiefer and M.K. Munitz (eds), Ethics and Social Justice, pp. 171–199, New York: State University of New York Press.
Marmor, A., 2001, Objective Law and Positive Values, Oxford: Oxford University Press.
–––, forthcoming, Philosophy of Law, The Princeton Series in the Foundations of Contemporary Philosophy (S. Soames ed.), Chapter 1, Princeton: Princeton University Press.
Paulson, S., 2002, Introduction to Kelsen's Introduction to the Problems of Legal Theory, p. xvii, Oxford: Clarendon Press.
Raz, J., 1980, The Concept of a Legal System, (2nd ed.) Oxford: Oxford University Press.
–––, 1979, 'Kelsen's Theory of the Basic Norm' in Raz, The Authority of Law, pp. 122–145, Oxford: Oxford University Press.
Tur, R.H. & Twining, W. (eds), 1986, Essays on Kelsen, Oxford: Clarendon Press.


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