Tradução - De novo: direito penal do inimigo? (Manuel Cancio Meliá)

June 1, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Direito, Direito Penal, DERECHO PENAL
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DE NOVO: “DIREITO PENAL” DO INIMIGO?# AGAIN: “CRIMINAL LAW” FOR THE ENEMY?

Manuel Cancio Meliá Professor titular de Direito Penal na Universidade Autônoma de Madrid, Espanha.

Traduzido por: Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira+ e Bruno Costa Teixeira*

Resumo: Neste trabalho se pretende examinar, brevemente, o conceito de direito penal do inimigo, a fim de saber qual o seu significado para a teoria do direito penal e avaliar suas possíveis aplicações e implicações político-criminais. A tese que será adotada é a de que o conceito de direito penal do inimigo supõe um instrumento idôneo para descrever um determinado âmbito, de grande relevância política, do atual desenvolvimento dos ordenamentos jurídico-penais. Palavras-chave: Direito penal do inimigo; Teoria do direito penal; Política criminal. Abstract: In this work it is intended to exam, briefly, the concept of criminal law for the enemy, in a way to know which is its meaning to the criminal law theory and evaluate its possible applications and implications political-criminal. It will be adopted the thesis that the concept of criminal law for the enemy supposes an suitable tool to describe a certain field, with great political relevance, of the actual development of the legal-criminal systems. Keywords: Criminal law for the enemy; Criminal law theory; Criminal policy.

# A parte inicial deste texto foi feita durante uma pesquisa conduzida com ajuda de bolsa outorgada pela Fundación Alexander Von Humboldt, das Universidades de Bonn e Munique. Foi publicado em JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Derecho penal del enemigo. Hammurabi, Buenos Aires, 2003, p. 57-102; versões posteriores – com pequenas modificações – foram publicadas em JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Derecho penal del enemigo. Hammurabi, Buenos Aires, 2005; traduzido ao português a cargo de André Callegari: JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Direito penal do inimigo: noções e críticas. Livraria do Advogado, Porto Alegre/ Rio Grande do Sul, 2005; a versão em alemão foi publicada em Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft 117 (2005), ps. 267 a 289; já a tradução para a língua italiana ficou a cargo de Federica Resta, publicada em DONINI (ed.), Diritto penal dello nemico, Giuffrè. Este trabalho, que completa os demais, faz parte dos projetos investigativos intitulados El nuevo sistema de sanciones penales (MEC, SEJ 2004-7025/ JURI; investigador principal: A. Jorge Barreiro) e Democracia y Seguridad: transformaciones de La política criminal (Comunidad de MadridUAM/2006; investigador responsável: M. Cancio Meliá). Agradeço aos professores Jakobs e Schünemann, assim como ao Dr. Müssig, por sua amável disposição ao diálogo. + Editor de Panóptica; Bacharelando em Direito pela FDV, Brasil. * Editor de Panóptica; Bacharelando em Direito pela FDV, Brasil; Bacharelando em Economia pela UFES, Vitória, Brasil.

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Introdução Na tentativa de esboçar os traços básicos do quadro, pode-se dizer de maneira simplificada que nos últimos anos os ordenamentos penais do “mundo ocidental” deram início a um desvio que os conduz de uma posição relativamente estática dentro do núcleo duro do ordenamento jurídico – em termos de tipo ideal: um núcleo duro no qual foram feitas com todo cuidado adaptações setoriais e no qual qualquer mudança de direção era submetida a uma intensa discussão política e técnica prévia – até um perigoso lugar na vanguarda do quotidiano jurídico-político, de modo a lhe introduzir novos conteúdos e a serem reformados setores de regulação já existentes com grande rapidez. Por conseguinte, os assuntos do cotejo político quotidiano rapidamente chegam, também, ao Código Penal. As mudanças diante da práxis político-criminal habitual até o momento não apenas dizem respeito aos tempos e às formas, como também têm alcançado, paulatinamente, os conteúdos tamanho grau de intensidade que se pode formular a suspeita – com a permissão de Hegel e da coruja de Atena – de que assistimos a uma mudança estrutural de orientação. Esta mudança estrutura, de modo muito claro – como aqui se procurará demonstrar –, o conceito de “direito penal do inimigo”, que foi (re)introduzido – de maneira um tanto quanto macabra antes mesmo (das conseqüências) do 11 de setembro de 2001 – recentemente por Jakobs1 na discussão da ciência do direito penal. Pretende-se examinar neste trabalho, em rigor, este conceito de direito penal do inimigo, a fim de saber qual o seu significado para a teoria do direito penal e avaliar suas possíveis aplicações e implicações político-criminais. Para tanto, de início, buscar-se-á esboçar a situação global da política criminal da atualidade. Em seguida, será possível abordar o conteúdo e a relevância do conceito de direito penal do inimigo a partir da perspectiva da teoria da prevenção geral positiva. A tese que será adotada é a de que o conceito de direito penal do inimigo supõe um instrumento idôneo para descrever um determinado âmbito, de grande relevância política, do atual desenvolvimento dos ordenamentos jurídico-penais. Aliás, enquanto direito positivo, o direito penal do inimigo apenas pertence nominalmente ao sistema jurídico-penal real: “direito penal do cidadão” é um pleonasmo, “direito penal do inimigo”, a seu turno, uma contradição. 1 Conferir JAKOBS, em Consejo General del Poder Judicial/ Xunta de Galicia (ed.), Estudios de Derecho judicial, nº 20, 1999, pp. 137 e ss. (= La ciencia del Derecho penal ante las exigencias del presente, 2000); idem, em ESER/HASSEMER/BURKHARDT (ed.), Die Deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende. Rückbesinnung und Ausblick, 2000, pp. 47 e ss., 51 e ss. (= en MUÑOZ CONDE [ed.], La ciencia del Derecho penal ante el nuevo milenio, 2004, pp. 53 e ss.); ver também, idem, Sobre la normativización de la dogmática jurídico-penal, 2003, pp.57 e ss.; idem, em HSU/YU-HSIU (ed.), Foundations and Limits of Criminal Law and Criminal Procedure (Livro em homenagem a Hung), Taipei, 2003 (= “Derecho penal del ciudadano y Derecho penal del enemigo”, em JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, 1ª ed., 2003; = supra, na presente publicação), pp. 41 e ss. (a coincidir no essencial: idem, HRRS 3/2004 - http://www.hrrstrafrecht.de/); idem, Staatliche Strafe: Bedeutung und Zweck, 2004 (= La pena estatal: significado y finalidad, no prelo, Civitas), pp. 40 e ss.; idem, “Terroristen als Personen im Recht?” (manuscrito no prelo para ZStW 117 [2005], fasc. 4; = supra na presente publicação: “¿Terroristas como personas en Derecho?”); o conceito foi introduzido pela primeira vez por JAKOBS no debate em seu escrito publicado em ZStW 97 (1985), pp. 753 e ss. (= Estudios de Derecho penal, 1997, pp. 293 e ss.); conferir também idem, Strafrecht Allgemeiner Teil. Die Grundlagen und die Zurechnungslehre, 2ª ed., 1991. (= Derecho penal, Parte General. Los fundamentos y la teoría de la imputación, 1995), 2/25c.

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1 Sobre o estado atual da política criminal. Diagnóstico: a expansão do direito penal 1.1 Introdução As principais características da política criminal praticada nos últimos anos podem ser resumidas ao denominador mínimo comum do conceito de “expansão” do direito penal2. Com efeito, atualmente pode-se convir que o fenômeno mais destacado e visível na evolução atual das legislações penais do “mundo ocidental” está na aparição de várias novas figuras, às vezes inclusive de inteiros novos setores de regulação, acompanhada de uma atividade de reforma de tipos penais já existentes realizada sob um ritmo muito superior ao de épocas anteriores. O ponto de partida de qualquer análise do fenômeno que pode ser denominado de a “expansão” do ordenamento penal está em uma simples constatação: a atividade legislativa em matéria penal, desenvolvida no decorrer das duas últimas décadas nos países circunvizinhos colocou ao redor do elenco nuclear de normas penais um conjunto de tipos penais que, vistos da perspectiva dos bens jurídicos clássicos, constituem hipóteses de “criminalização no estádio prévio” a lesões de bens jurídicos3, cujos marcos penais, ademais, estabelecem sanções desproporcionadamente altas. Em suma: na evolução atual tanto do direito penal material como do direito penal processual, é possível constatar tendências que, em 2 Um termo utilizado por SILVA SÁNCHEZ numa monografia, de grande repercussão na discussão dedicada a caracterizar em seu conjunto a política criminal das sociedades “pós-industriais” (La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 1ª ed., 1999; 2ª ed., 2001, passim; tradução alemã da primeira edição: Die Expansion des Strafrechts. Kriminalpolitik in postindustriellen Gesellschaften, 2003; sobre o livro de SILVA SÁNCHEZ, ver apenas LAURENZO COPELLO, RDPCr 12 [2003], pp. 441 e ss.); acerca da evolução geral da política criminal nos últimos anos, conferir também as exposições críticas dos autores da Escola de Frankfurt recolhidas em Institut für Kriminalwissenschaften Frankfurt a. M. (ed.), Vom unmöglichen Zustand des Strafrechts, 1995 (= La insostenible situación del Derecho penal, 2000); conferir também as contribuições reunidas em LÜDERSSEN (ed.), Aufgeklärte Kriminalpolitik oder Kampf gegen das Böse?, cinco tomos, 1998. Desde logo, são os estudos postos desde essa perspectiva teórica os que em muitos casos têm contribuído a pôr em marcha a discussão; conferir também a crítica de SCHÜNEMANN, GA, 1995, pp. 201 e ss. (= ADPCP, 1995, pp. 187 e ss.); a respeito, vide também, por todos, a análise crítica do potencial da aproximação “pessoal” da teoria do bem jurídico – essencial nas construções dos autores de Frankfurt – desenvolvida por MÜSSIG, RDPCr 9 (2002), pp. 169 e ss. (= “Desmaterialización del bien jurídico y de la política criminal. Sobre las perspectivas y los fundamentos de una teoría del bien jurídico crítica hacia el sistema”, 2001, passim). Na bibliografia espanhola mais recente, conferir apenas os trabalhos de SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, El moderno Derecho penal y la anticipación de la tutela penal, 1999, passim; MENDOZA BUERGO, El Derecho penal en la sociedad de riesgo, 2001, passim; ZÚÑIGA RODRÍGUEZ, Política criminal, 2001, pp. 252 e ss.; SOTO NAVARRO, La protección penal de los bienes colectivos en la sociedad moderna, 2003. De outra perspectiva, temporalmente mais ampla, ver a análise de orientação sociológica sobre a expansão como lei de evolução dos sistemas penais feita por MÜLLER-TUCKFELD, Integrationsprävention. Studien zu einer Theorie der gesellschaftlichen Funktion des Strafrechts, 1998, pp. 178 e ss., 345. Adota uma posição político-criminal de orientação completamente divergente daquela das vozes críticas antes citada – como já demonstra de modo eloqüente o título – agora GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica Del discurso de resistencia. A la vez, una hipótesis de trabajo sobre el concepto de Derecho penal moderno en el materialismo histórico del orden del discurso de la criminalidad, 2003; ver também, a relativizar a justificação do discurso globalmente crítico, POZUELO PÉREZ, RDPP 9 (2003), pp. 13 e ss. 3 Conferir JAKOBS, ZStW 97 (1985), p. 751.

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seu conjunto, fazem aparecer no horizonte político-criminal os riscos de um “direito penal paleorrepressivo4” com características antiliberais5. A deixar ainda mais simples, talvez excessivamente, este é um primeiro ponto de partida da situação político-criminal6 que caberia situar temporalmente nos anos 1980 e que delineia o que se poderia denominar a “crise própria” do Estado social em matéria criminal. Como se procurará expor em seguida, esta problemática expansiva que poderia ser resumida na idéia do “direito penal do risco” não é a única. Ora, na evolução mais recente há outros fenômenos de expansão que somam características distintas a esse quadro político-criminal de partida. 1.2 Os fenômenos expansivos Em primeiro lugar, cabe delinear uma imagem mais concreta e atual desta evolução político-criminal. A partir da perspectiva aqui adotada, esse desenvolvimento podese resumir essencialmente em dois fenômenos: o chamado “direito penal simbólico” e o que se pode denominar “ressurgimento do punitivismo”. Em todo caso, deve-se sublinhar desde o início que estes conceitos apenas identificam aspectos fenotípicosetoriais da evolução global e não se apresentam de modo clinicamente “limpo” na realidade legislativa. Ambas as linhas de evolução, a “simbólica” e a “punitivista” – tal a tese que neste trabalho será exposta – constituem a linhagem do direito penal do inimigo. A considerar apenas esta filiação na política criminal moderna poder-se-á apreender o fenômeno que aqui interessa. 1.2.1 O direito penal simbólico Têm particular relevância aqueles fenômenos de neocriminalização a respeito dos quais se afirma criticamente que apenas possuem efeitos meramente “simbólicos7”. Como assinala Hassemer desde o início dessa discussão, aquele que relaciona o ordenamento penal com elementos “simbólicos” pode criar a suspeita de que não leva em conta a dureza muito real e nada simbólica das vivências daquele que se vê submetido à persecução penal, detido, processado, acusado, condenado, preso8, isto é, a idéia de que se inflige um dano concreto com a pena para obter efeitos algo mais que simbólicos. Portanto, para se poder abordar o conceito, deve-se recordar até que ponto o moderno princípio político-criminal de que apenas uma pena socialmente útil pode ser justa tem sido incorporado (em diversas variantes) pelos 4 Sobre este conceito que foi exaustivamente discutido por HERZOG, Gesellschaftliche Unsicherheit und strafrechtliche Daseinsfürsorge, 1991, pp. 50 e ss. 5 Ver, por exemplo, HASSEMER, em PHILIPPS et al. (eds.), Jenseits des Funktionalismus. Arthur Kaufmann zum 65. Geburtstag, 1989, pp. 85 e ss. (p. 88); idem, em JUNG/MÜLLERDIETZ/NEUMANN (eds.), Recht und Moral. Beiträge zu einer Standortbestimmung, 1991, pp. 329 e ss.; HERZOG, Unsicherheit (nota 4), pp. 65 e ss.; ALBRECHT, em Institut für Kriminalwissenschaften Frankfurt a. M. (ed.), Zustand des Strafrechts (nota 2), pp. 429 e ss. 6 Conforme recentemente o quadro traçado por DÍEZ RIPOLLÉS, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (eds.), Derecho penal y política transnacional, 2005, pp. 243 e ss. 7 Ver sobre essa noção, por todos, amplas referências e classificações contidas em VOSS, Symbolische Gesetzgebung. Fragen zur Rationalität von Strafgesetzgebungsakten, 1989, passim; conferir também, mais sucintamente, SILVA SÁNCHEZ, Aproximación al Derecho penal contemporáneo, 1992, pp. 304 e ss.; PRITTWITZ, Strafrecht und Risiko. Untersuchungen zur Krise von Strafrecht und Kriminalpolitik in der Risikogesellschaft, 1993, pp. 253 e ss.; SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Anticipación (nota 2), pp. 56 e ss.; DÍEZ RIPOLLÉS, AP, 2001, pp. 1 e ss. (= ZStW 113 [2001], pp. 516 e ss.), todos com referências posteriores. 8 NStZ 1989, pp. 553 e s. (= PyE 1 [1991], pp. 23 e ss.).

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participantes no discurso político-criminal. Contudo, apesar desse postulado (de que se satisfaz com a existência do sistema penal um fim, que se obtém um resultado concreto e mensurável, ainda que seja apenas – no caso das teorias retributivas – a realização da justiça), os fenômenos de caráter simbólico fazem parte de modo necessário da trama do direito penal, de maneira que, em realidade, é incorreto o discurso do “direito penal simbólico” como fenômeno estranho ao direito penal. Com efeito: desde perspectivas muito distintas, desde a “criminologia crítica” – e, em particular, desde o assim chamado enfoque do labeling approach9 – que acentua as condições da atribuição social da categoria “delito”, até a teoria da prevenção geral positiva, que entende delito e pena como seqüência de tomadas de posição comunicativa a respeito da norma10: os elementos de interação simbólica são a mesma essência do direito penal11. Então, que é que se quer dizer com a crítica ao caráter simbólico, se toda a legislação penal necessariamente tem características que podem ser denominadas “simbólicas”? Quando se usa em sentido crítico do conceito de direito penal simbólico se que, então, fazer específica referência a que determinados agentes políticos tão-só perseguem o objetivo de dar a “impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido12”, é de se dizer que nesses casos predomina uma função latente sobre a manifesta, ou, dito de outra maneira, que há uma discrepância entre os objetivos invocados pelo legislador – e os agentes políticos em sua maioria concordam com este – e a “agenda real” oculta por baixo aquelas declarações expressas13. Na “parte especial” desse direito penal simbólico tem especial relevância – que se mencione apenas este exemplo –, em diversos setores de regulação, a certos tipos penais nos quais se criminalizam meros atos de comunicação, como, por exemplo, os delitos de instigação ao ódio racial ou os de exaltação ou justificação à autoria de determinados delitos14. Um exame desta “parte especial” indica claramente que o

9 Ver, por todos, as referências em VOSS, Symbolische Gesetzgebung (nota 7), pp. 79 e ss. 10 JAKOBS, AT2, 1/4 e ss.; ver também BARATTA, PyE 1 (1991), p. 52, e a exposição de SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Anticipación (nota 2), pp. 90 e ss. Acerca das relações entre direito penal preventivo e direito penal simbólico. 11 Conforme, por todos, DÍEZ RIPOLLÉS, AP, 2001, pp. 4 e ss. 12 SILVA SÁNCHEZ, Aproximación (nota 7), p. 305. 13 Ainda que este fator – o que poderia chamar-se mendacidade política – não é o elemento decisivo para a valoração do fenômeno. Em certo sentido, pode-se afirmar que no setor de regulação do direito penal do inimigo, está “resolvida” a discussão, mantida até agora acerca do conceito de direito penal simbólico, sobre se o critério decisivo para valorá-lo é a mendacidade (desajuste entre fins proclamados e “agenda oculta”) ou, pelo contrário, a ilegitimidade dos efeitos da pena produzidos (conferir apenas DÍEZ RIPOLLÉS, AP, 2001, pp. 1 e ss., 14 e ss., com posteriores referências; outro ponto de vista em DÍAZ PITA/FARALDO CABANA, RDPP 7 [2002], pp. 119 e ss., 125 e ss.): pois aqui, como se procurará mostrar, ocorrem ambas as características ao mesmo tempo. 14 Conforme, por exemplo, sobre os delitos de luta contra a discriminação, LANDA GOROSTIZA, IRPL/RIDP 73, pp. 167 e ss., com referências ulteriores. Ver também sobre esses tipos de infrações CANCIO MELIÁ, em JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Conferencias sobre temas penales, 2000, pp. 139 e ss.; idem, JpD 44 (2002), p. 26. No direito comparado, em oposição à legitimidade dos preceitos análogos do Código Penal alemão, conferir apenas a contundente crítica de JAKOBS, ZStW 97 (1985), pp. 751 e ss.; a levar em conta, de todos modos, que no caso do ordenamento alemão – ao contrário da tipificação espanhola – a cláusula que relaciona estas condutas perturbação da ordem pública permitiria uma seleção dos fatos em questão em função da gravidade social dos mesmos. Ainda assim, têm surgido também nesse país vozes que – além das considerações de JAKOBS citadas há pouco – põem em dúvida a adequação do ordenamento penal neste contexto: ver, por exemplo, SCHUMANN, StV, 1993, pp. 324 e ss.; AMELUNG, ZStW 92 (1980), pp. 55 e ss. Diante do consenso político que concitam estas normas no caso alemão é significativo que o antecedente da

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direito penal simbólico não apenas implica na colocação em cena por parte de determinados agentes políticos, senão que, ademais, em certo modo é também a sociedade em seu conjunto que dá cabo a uma (auto)representação: “nós somos assim!”. Um exorcismo: “o racismo não faz parte dessa sociedade!” (isso fica “provado”, de fato, por uma determinada criminalização; com independência de que esta talvez seja completamente inadequada para chegar a um nível de aplicação razoável). Contudo, em todo caso, posto que o certo e evidente é que as coisas são justamente ao contrário, em tais casos não se confirma uma determinada identidade social, senão que esta se pretende construir mediante o direito penal15. Mais adiante poderá ser feita alguma consideração sobre as outras funções latentes do direito penal simbólico, manifestadas em seu descendente, o direito penal do inimigo16. 1.2.2 O ressurgir do punitivismo Reconduzir os fenômenos de ”expansão”, que cá interessam de modo global, apenas a estas hipóteses de promulgação de normas penais meramente simbólicas, não atenderia, todavia, ao verdadeiro alcance da evolução. Isso porque o recurso ao direito penal não apenas aparece como instrumento para produzir tranqüilidade mediante o mero ato de promulgação de normas evidentemente destinadas a não serem aplicadas, senão que, em segundo lugar, também existem processos de criminalização “à moda antiga”, isto é, a introdução de normas penais novas com a intenção de promover sua efetiva aplicação com toda decisão17, ou seja, processos que conduzem a normas penais novas que são aplicadas18, ou ao endurecimento das penas para normas já existentes. Deste modo se inverte o processo comum aos infração está no delito de “provocação à luta de classes”; ver LK11-VON BUBNOFF, comentário prévio aos §§ 125 e ss. 15 Com muita clareza, JAKOBS (AT2 [nota 1], 2/25c) expõe que tal direito penal simbólico (em concreto, em referência aos “delitos de proteção de um clima”) é tão mais necessário quão mais deficiente seja a legitimidade da lei penal. Isso como descrição, num primeiro momento, com independência de se estar normas (a criminalização como criação parcial de identidade em lugar de confirmação desta) podem ser legítimas (ou em que medida este é o caso). Paralelamente, JAKOBS afirma, em relação ao atual e incipiente direito penal internacional, que a diferença entre o estabelecimento de uma ordem e sua estabilização precisa de sua apreensão e elaboração teórica (Staatliche Strafe [nota 1], pp. 47 e ss.). Recorde-se, por outro lado, que JAKOBS tem sido um dos poucos autores alemães (ver GA, 1994, pp. 1 e ss.) que tem afirmado com determinação que os processos dirigidos contra antigos funcionários de segurança ou militares da República Democrática Alemã (no contexto dos homicídios cometidos na fronteira em relação daqueles que queriam abandonar a RDA) não são a aplicação do direito penal ordinário (pretende-se que a estes sujeitos, alguns deles condecorados pelo “cumprimento do dever socialista”, seja aplicado... o Código Penal da RDS então vigente!”). Neste sentido, não parece que a questão do tiranicídio ou do direito de resistência em geral deva se incluir na ordem do dia do direito penal ordinário; por definição, a violência que se aplicam em um processo revolucionário ou de resistência – com independência de sua legitimidade – não é a coação da pena (ver JAKOBS, “Terroristen als Personen” [nota 1], nota 17). 16 Infra 2.2.2. 17 Neste sentido, pode-se falar de uma expansão por intensificação; ver SILVA SÁNCHEZ/FELIP I SABORIT/ROBLES PLANAS/PASTOR MUÑOZ, em DA AGRA/DOMÍNGUEZ/GARCÍA AMADO/HEBBERECHT/RECASENS, La seguridad en la sociedad del riesgo. Un debate abierto, 2003, pp. 113 e ss.; sublinha que esta vertente da evolução político-criminal não tem sido abordada com profundidade suficiente (ao centrar-se a atenção no que se poderia chamar de “direito penal do risco”) na discussão teórica DÍEZ RIPOLLÉS, JpD 49 (2004), p. 28; conferir também idem, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (eds.), Derecho penal y política transnacional (nota 6), pp. 252 e ss., 256 e ss. 18 Se bem pode ser observado que em muitos casos se produz uma aplicação seletiva.

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movimentos de reforma das últimas décadas, no qual desapareceram diversas infrações – de se recordar apenas a situação do direito penal em matéria de condutas de cunho sexual – que já não se consideram legítimas. Neste sentido, adverte-se a existência no debate político de um verdadeiro “clima punitivista19”: o recurso a um incremento qualitativo e quantitativo no alcance da criminalização como único critério político-criminal; um ambiente político-criminal que, desde logo, não carece de antecedentes. Todavia, estes processos de criminalização – e isso é novo – em muitas ocasiões se dão com coordenadas políticas distintas na tradicional divisão de papéis que se poderia resumir na seguinte fórmula: esquerda política – demandas de descriminalização / direita política – demandas de criminalização20. Neste sentido, parece que se trata de um fenômeno que supera, em muito, o tradicional “populismo” na legislação penal: a história não se repete. Em relação à esquerda política, é especialmente interessante a mudança de atitude: de uma linha – simplificando, por óbvio – que identificava a criminalização de determinadas condutas como mecanismos de repressão para a manutenção do sistema econômico-político de dominação21 a uma linha que descobre as pretensões de neocriminalização especificamente de esquerdas22: delitos de discriminação, delitos em que as vítimas são mulheres maltratadas, etc.23. O quadro, contudo, estaria incompleto, evidentemente, se não se fizesse referência a uma mudança de atitude também por parte da direita política: no contexto da evolução das posições destas forças, também em matéria de política criminal, ninguém quer ser “conservador”, senão tão “progressista” (ou mais) que todos os demais grupos (= neste contexto: defensista). Neste sentido, a direita política – em particular, refiro-me à situação espanhola – descobriu que a aprovação de normas penais é uma via para adquirir matizes políticos “progressistas24”. Tanto quanto a esquerda política tem aprendido o quão rentável pode ser o discurso do law and order, antes monopolizado pela direita política, esta se soma, quando pode, à ordem do dia político-criminal que caberia supor, em princípio, pertencer à esquerda, uma situação que gera uma escalada em que ninguém já tem disposição de discutir de verdade questões de política criminal no âmbito parlamentar, e em que a demanda 19 Conferir CANCIO MELIÁ, em JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Conferencias (nota 14), pp.131 e ss., 135 e ss. 20 Assim, por exemplo, sublinha SCHUMANN a respeito das infrações na órbita de manifestações neonazistas que há um consenso esquerda-direita em relação à hora de reclamar a intervenção do direito penal StV, 1993, p. 324. Ver, neste sentido, ademais, as considerações sobre as demandas de criminalização da socialdemocracia européia em SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 69 e ss.; trata-se de uma situação em que qualquer coletividade tem “suas” pretensões de criminalização diante do legislador penal: conferir a exposição sintomática de ALBRECHT, em Vom unmöglichen Zustand (nota 2), p. 429; sobre a persecução de fins morais a fazer uso da legislação penal: VOSS, Symbolische Gesetzgebung (nota 7), pp. 28 e ss. 21 Ver SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), p. 57 e ss. Sobre esta mudanção de orientação; movimento paralelo nas ciências penais: a criminologia crítica com pretensões abolicionistas; ver o panorama traçado por SILVA SÁNCHEZ, Aproximación (nota 7), pp. 18 e ss. 22 “Go and tell a worker robbed of his week’s wages or a raped woman that crime doesn’t exist”, frase significativa do criminólogo YOUNG citada por SILVA SÁNCHEZ, Aproximación (nota 7), p. 23, nota 36. 23 Ver sobre isso, com particular referência à socialdemocracia européia SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 69 e ss., com referências posteriores. 24 Só assim se explica, por exemplo, que tenha sido precisamente a direito político, no governo em 1999, que impulsionou e aprovou uma modificação/ ampliação do delito de perseguição sexual, regulado no artigo 184 do Código Penal, que supõe uma volta de parafuso sobre a regulação pouco feliz introduzida no Código Penal de 1995.

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indiscriminada de maiores e “mais efetivas” penas já não é um tabu política para ninguém. Do ponto de vista aqui adotado, esta evolução se produz com especial rapidez na Espanha. Depois do processo de descriminalização em diversos setores de regulação que, por razões política bem conhecidas, só se pôde completar a partir de 1977 (neste caso, tratava-se a melhor dizer de desentulhar as heranças remanescentes da legislação penal da ditadura do general Franco, que concluiu, mais ou menos, recentemente no Código Penal de 1995), a reforma do direito penal entrou em uma fase de abrandamento muito notável durante um tempo prolongado, de modo que se apresentaram vários projetos e anteprojetos de novo Código Penal – submetido a um exaustivo estudo e análise por parte da doutrina – até que em 1995 – de modo repentino e ao fim da temporada (justo antes da perda da maioria parlamentar pelos socialdemocratas no ano seguinte), e, portanto, sem discussão científica, na opinião pública ou, sequer, apenas debate parlamentar –, obteve-se o logro do chamado “Código Penal da democracia”. Como é natural, existe na discussão científica um debate em torno da qualidade técnica ou teórica deste Código Penal; não se pretende aqui colocar em dúvida que o novo texto eliminou muitos problemas dogmáticos. Entretanto, o único acerca do que não se pode discutir é que este Código é muito mais repressivo que o texto emendado (reformado parcialmente a partir de 1977) de 1973 (!). É um Código que, segundo Gimbernat Ordeig, “está influenciado pelo renascimento nos últimos anos da ideologia da ‘lei e ordem’, por um incremento descontrolado de novas figuras delitivas e por um insuportável rigor punitivo25”; do que tem dito Rodríguez Mourullo que “não segue nenhuma linha político-criminal coerente26”. Naturalmente, esta evolução não tem concluído com aquele contentamento de despedida jurídico-penal dos socialdemocratas. A maioria parlamentar da direita política existente em Espanha, desde 1996 até a primavera de 2004, tem feito cair uma verdadeira cascata de reformas penais sobre a imprensa do Boletim Oficial do Estado (em diversos setores) que no ano de 2004 (justamente para as eleições gerais) desembocou em uma espécie de revisão geral do Código de 1995, a adaptar, mediante o incremento generalizado dos marcos penais e a criação de novos tipos delitivos, a legislação penal espanhola ao novo clima político27. Isto tem sucedido – é essencial sublinhá-lo – com uma aprovação muito ampla de quase todas as forças políticas, especialmente em todos aqueles âmbitos que poderiam ter algo a ver com o terrorismo28; enquanto se pronuncia essa palavra, quase todos os agentes políticos 25 Em seu Prólogo à primeira edição do Código Penal de 1995 (Tecnos), 1996. 26 Em idem/JORGE BARREIRO et al., Comentarios al Código Penal, 1997, p. 18. 27 Conferir sobre as últimas reformas em Espanha, por todas, a sinopse em SANZ MORÁN, RDPen 4 (2004), pp. 11 e ss. 28 De fato, este é o âmbito no qual o perigo de contaminação do direito penal “normal” pela nova normativa de exceção é mais intenso; conferir também JAKOBS, Staatliche Strafe (nota 1), p. 46. É significativo, como sintoma do clima político-social, o uso já inflacionado do termo (as seguintes expressões têm sido utilizadas por diversas autoridades públicas nos últimos tempos na Espanha): desde o terrorismo “normal” (cometimento de infrações penais gravíssimas para a consecução de fins políticos), a passar pelos “terroristas domésticos” (homens que maltratam suas mulheres), os “ciberterroristas” (hackers que pretendem causar danos aos computadores atacados) ou os “terroristas ambientais”, até o “terrorismo florestal” (provocar incêndios florestais). Apenas falta somar ao anterior a conhecida tese “todos os terroristas são iguais” e a tese derivada, ao estilo de G. Stein, “um terrorista é um terrorista (é um terrorista...)” (com a intenção: e quem veja alguma diferença, igual de que classe, como, por exemplo, entre aqueles que atentam contra as tropas de ocupação no Iraque e os autores de fatos das Brigate Rosse, Action Directe, do ETA ou da Rote Armee Fraktion,

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iniciam uma corrida para chegar primeiro à frente (midiática) do “resoluto combate”. Por outra parte, até o momento não há indício algum de que a nova maioria parlamentar surgida depois dos atentados em Madrid de março de 2004 pretenda reverter algum elemento desta última contra-reforma. O modo mais claro de apreciar a dimensão deste fenômeno talvez esteja em recordar que inclusive conduz à reabilitação de noções – abandonadas há anos no discurso teórico dos ordenamentos penais continentais – como a da redução de danos29. Neste sentido, parece evidente, no que se refere à realidade do direito positivo, que a tendência atual do legislador é a de reagir com “decisão” dentro de muitos setores diversos de regulação no marco da “luta” contra a criminalidade, isto é, com um incremento das penas previstas. Um exemplo, tomado do Código Penal espanhol, são as infrações relativas ao tráfico de drogas tóxicas ou narcóticas e substâncias psicotrópicas30: a regulação contida no texto de 1995 dobra a pena31 prevista na regulação anterior32, de modo que a venda de uma dose de cocaína – considera uma substância que produz “grave dano à saúde”, o que dá lugar à aplicação de um tipo qualificado – supõe uma pena de três a nove anos de privação de liberdade (frente a, aproximadamente, um a quatro anos no Código anterior), potencialmente superior, por exemplo, à correspondente a um homicídio por imprudência grave (um a quatro anos) ou a um delito de aborto doloso sem consentimento da mãe (quatro a oito anos) nos termos previstos no mesmo “Código penal da democracia”, apoiado parlamentarmente pela esquerda política. Neste mesmo contexto, uma consideração da evolução havida nos últimos anos nos Estados Unidos – sem ter em conta as mais recentes medidas legislativas – pode ser reveladora de qual é a melhor palavra: da distancia que se pode chegar a alcançar – o ponto de chegada desta escalada: mediante a legislação de “three strikes” pode chegar a suceder que um autor que sob a aplicação do Código Penal espanhol nem sequer ingressaria na prisão33, em alguns Estados dos EUA sofra

evidentemente é compreensivo com os terroristas!), e já não faz falta um Código Penal, a bastar um Código de luta contra o terrorismo. Ou nada de Código, inclusive, apenas “luta”. Conferir também infra 2.2.4. 29 Ver SILVA SÁNCHEZ, em idem, Estudios de Derecho penal, 2000, pp. 233 e ss.; idem, La expansión (nota 2), pp. 141 e ss. 30 Sobre esta problemática no caso espanhol conferir por último e por todos GÓNZALEZ ZORRILLA, em LARRAURI PIJOAN (dir.)/CGPJ (eds.), Política criminal, 1999, pp. 233 e ss.; DE LA CUESTA ARZAMENDI, em BERISTAIN IPIÑA (dir.)/CGPJ (eds.), Política criminal comparada, hoy y mañana, 1999, pp. 87 e ss.; MUÑOZ SÁNCHEZ/DÍEZ RIPOLLÉS/GARRIDO DE LOS SANTOS, Las drogas en la delincuencia, 2004; respectivamente, com referências posteriores; em relação à enorme relevância que corresponde à realidade do sistema de Administração da Justiça e do sistema penitenciário a estas infrações, conferir os dados relacionados a respeito do caso espanhol em RDPCr 4 (1999), pp. 881, 892 e ss.; ver as considerações globais a respeito, por exemplo, em SCHÜNEMANN, GA, 2003, pp. 306 e ss. 31 A levar em conta a mudança no regime de cumprimento das penas privativas de liberdade; no Código anterior (texto emendado de 1973), como é sabido, o cumprimento efetivo situava-se na metade da extensão nominal da pena. 32 Conferir artigos 385 (Código Penal de 1995) e 344 (Código Penal TR 1973). 33 Por exemplo: um delito de roubo do artigo 242.3 junto com um de lesão do artigo 147.2 e outro de violação da condenação do artigo 468, todos do Código Penal.

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prisão perpétua, entendida esta, ademais, em sentido estrito (até a morte do condenado34). 1.2.3 Punitivismo e direito penal simbólico Com o que foi exposto até agora, já fica claro que ambos os fenômenos aqui selecionados como indicadores do panorama global não são, em realidade, suscetíveis de ser separados nitidamente. Assim, por exemplo, se é introduzida uma legislação radicalmente punitivista em matéria de drogas, isto tem uma imediata incidência nas estatísticas de persecução criminal (isto é, não se tratam de normas meramente simbólicas de acordo com o entendimento habitual), e apesar disso é evidente que um elemento essencial da motivação do legislador à hora de aprovar essa legislação está nos efeitos “simbólicos” obtidos mediante sua mera promulgação. E à recíproca, também parece que normas que, em princípio, caberia catalogar de “meramente simbólicas”, podem chegar a dar lugar a um processo penal “real35”. O que sucede é que, em realidade, a denominação “direito penal simbólico” não faz referência a um grupo bem definido de infrações penais caracterizadas por sua inaplicação, pela falta de incidência real na “solução” em termos instrumentais, senão que, como antes se indicava, identifica um especial significado simbólico do processo mesmo de criminalização, isto é, a especial importância outorgada pelo legislador36 aos aspectos de comunicação política a curto prazo na aprovação das correspondentes normas. E estes efeitos inclusive podem chegar a estar integrados em estratégias marqueteiras de conservação do poder político37, a chegar até a gênese consciente na população de determinadas atitudes em relação com os fenômenos penais que depois são “satisfeitas” pelas forças políticas. Dito com toda brevidade: o direito penal simbólico não só identifica um determinado “fato”, como também (ou: sobretudo) a um específico tipo de autor, que é definido não como igual, e sim como outro. É dizer, que a existência da norma penal – deixando de lado as estratégias a curto prazo de marketing dos agentes políticos – persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social mediante a definição dos autores como “outros”, como não partícipes dessa identidade. E parece claro que para isso também são necessários os traços vigorosos de um

34 Conferir BECKETT, Making Crime Pay. Law and Order in Contemporary American Politics, 1997, pp. 89 e ss., 96; sobre o caso do Estado da Califórnia, ver, por exemplo, os dados recolhidos em http://www.facts1.com. Conferir também as referências em SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 142 e ss. 35 Neste sentido, a respeito do artigo 510 do Código Penal espanhol – junto com o artigo 607.2 do Código Penal, que contém uma infração que penaliza a conduta de “difusão por qualquer meio de idéias ou doutrinas que neguem ou justifiquem” os delitos de genocísio- segue a ser significativa a condenação – em primeira instância –, de um sujeito franco-nazista, proprietário de uma livraria na qual vendia livros dessa orientação, a cinco anos de pena privativa de liberdade (concurso real entre ambas as infrações; Sentença do Julgado do Penal n. 3 de Barcelona em 16.11.1998). 36 Que é o que agora interessa; mas, supostamente, caberia identificar – e muitas – hipóteses de “aplicação simbólica” de normas penais. 37 Conferir as referências destas práticas a respeito do âmbito anglo-saxão em BECKETT, Making Crime Pay (nota 34), passim, e VON HIRSCH, em LÜDERSSEN (ed.), Aufgeklärte Kriminalpolitik (nota 2), t. V., pp. 31 e ss.

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punitivismo38 exacerbado, em escalada, especialmente, quando a conduta em questão já se encontrava ameaçada de pena. Portanto, o direito penal simbólico e o punitivismo mantêm uma relação fraternal. Pode-se, assim, examinar o surge de sua união: o direito penal do inimigo. 2 Direito penal do inimigo? Em seguida, procurar-se-á analisar o conceito de direito penal do inimigo para determinar seu conteúdo e sua relevância sistemática. Para isso, em primeiro lugar se apresentarão as definições determinantes que têm aparecido na bibliografia e se proporá alguma exatidão a essa definição conceitual. Para isso, é especialmente relevante a imbricação do fenômeno na evolução político-criminal geral, isto é, sua genealogia. Finalmente, serão esboçadas as duas razões fundamentais pelas quais, desde a perspectiva do sistema jurídico-penal atualmente praticado, o conceito de direito penal do inimigo só pode ser concebido como instrumento para identificar precisamente ao não-direito penal39 presente nas legislações positivas: por um lado, a função da pena neste setor, que difere da do direito penal “verdadeiro”; por outro, como consequência do anterior, a falta de orientação com base no princípio do fato. 2.1 Determinação conceitual 2.1.1 Direito penal do inimigo (Jakobs) como terceira velocidade (Silva Sánchez) do ordenamento jurídico-penal Segundo Jakobs40, o direito penal do inimigo se caracteriza por três elementos: em primeiro lugar, é constatado um amplo progresso da punibilidade, isto é, que, neste âmbito, a perspectiva do ordenamento jurídico-penal é prospectiva (ponto de 38 Por exemplo, da perspectiva da criminologia, YOUNG (La sociedad “excluyente”. Exclusión social, delito y diferencia en la Modernidad tardía, tradução e apresentação de BERGALLI, 2003) atribui especial importância à questão criminal nos mecanismos sociais de exclusão: “[...] a imputação de criminalidade sobre o outro desviado é parte necessária da exclusão” (p. 178); ver este ponto de partida (aplicado à custódia de segurança introduzida recentemente no ordenamento suíço) também em KUNZ, ZStrR 122 (2004), pp. 234 e ss., 239 e ss.; conferir infra 2.2.2. 39 De se dizer: um direito penal meramente formal, que difere estruturalmente da imputação que é praticada normalmente sob essa denominação; conferir infra 2.2.2. e 4. 40 Quem, como se assinalou, introduziu – em três fases, poderia ser dito, em 1985, 1999/2000 e 2003/2004/2005 – o conceito na discussão mais recente (JAKOBS, ZStW 97 [1985], pp. 753 e ss.; idem, AT2, 2/25c; idem, Estudios de Derecho judicial, n.20 [nota 1], pp. 137 e ss.; idem, em ESER/HASSEMER/BURKHARDT [eds.], Strafrechtswissenschaft [nota 1], pp. 47 e ss., 51 e ss.; idem, Staatliche Strafe [nota 1], pp. 40 e ss.; idem, “Terroristen als Personen” [nota 1], passim); exaustiva análise e valoração crítica dos escritos de Jakobs publicados até 2003 em PRITTWITZ, em MIR PUIG/CORCOY BIDASOLO/GÓMEZ MARTÍN (eds.), La política criminal en Europa, 2004, pp. 107 e ss. Certamente, caberia identificar – como sublinha SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), p. 165 com a nota 388 – muitos antecedentes materiais da noção de direito penal do inimigo, em particular, em determinadas orientações da prevenção especial anteriores à Segunda Guerra Mundial; conferir MUÑOZ CONDE, Doxa 15-16 (1994), pp. 1031 e ss. De uma perspectiva temporal mais ampla, e com orientação filosófica, ver a análise correspondente de PÉREZ DEL VALLE (CPC 75 [2001], pp. 597 e ss.), relativo às teorias do direito penal contidas nas obras de ROUSSEAU e HOBBES; conferir, por último, também a este respeito a perspectiva de ZAFFARONI, Investidura como doctor honoris causa por la Universidad de Castilla-La Mancha, 2004, pp. 19 e ss., 29 e ss. e de GRACIA MARTÍN, RECPC nº 7 (2005) http://criminet.ugr.es/recpc/ (sobretudo: III.). Em todo caso, cabe pensar que este aspecto – os antecedentes históricos – pode ser deixado de lado do ponto de vista da política criminal atual – não no plano global-conceitual, claro – a ter em conta as diferenças estruturais entre os sistemas políticos daqueles momentos históricos e o atual.

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referência: o fato futuro), em lugar de – como é o habitual – retrospectivo (ponto de referência: o fato cometido). Em segundo lugar, as penas previstas são desproporcionadamente altas: especialmente, a antecipação da barreira de punição não é levada em conta para reduzir em correspondência a pena ameaçada. Em terceiro lugar, determinadas garantias processuais são relativizadas ou, inclusive, suprimidas41. De modo materialmente equivalente, na Espanha Silva Sánchez tem incorporado o fenômeno do direito penal do inimigo em sua própria concepção político-criminal42. De acordo com sua posição, no momento atual estão se diferenciando duas “velocidades” no marco do ordenamento jurídico-penal43: a primeira velocidade seria aquele setor do ordenamento no qual se impõem penas privativas de liberdade, e no qual, segundo Silva Sánchez, devem ser mantidos de modo estrito os princípios político-criminais, as regras de imputação e os princípios processuais clássicos. A segunda velocidade viria constituída por aquelas infrações nas quais, ao se impor tão-só penas pecuniárias ou privativas de direitos – tratando41 Ver, em síntese, JAKOBS, Estudios de Derecho judicial, nº 20 (nota 1), pp. 138 e ss. Os trabalhos de JAKOBS têm desencadeado já uma incipiente discussão no âmbito alemão e no espanhol, de modo que a se poder verificar vozes marcadamente críticas. Nesta linha, atribuem a JAKOBS uma posição afirmativa sobre a existência do direito penal do inimigo, por exemplo, SCHULZ, ZStW 112 (2000), pp. 659 e ss.; a diferenciar o significado político-criminal da primeira (1985) e da segunda (1999/2000) aproximação, PRITTWITZ, ZStW 113 (2001), pp. 774 e ss., 794 e ss., 794 e ss. com nota 106; idem, em MIR PUIG/CORCOY BIDASOLO/GÓMEZ MARTÍN (eds.), La política criminal (nota 40), pp. 107 e ss., 119; SCHÜNEMANN, GA, 2001, pp. 210 e ss.; idem, GA, 2003, pp. 299 e ss., 312 e s.;AMBOS, Der allgemeine Teil eines Völkerstrafrechts, 2002, pp. 63 e ss., 63 e s.: “outorga a futuros regimes injustos uma legitiamação teórica”, ibidem, nota 135; inclusive se afirma que JAKOBS com estes desenvolvimentos se aproxima constantemente do pensamento “coletivista-dualista” e Carl SCHMITT; MUÑOZ CONDE, Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo. Estudios sobre el Derecho penal en el nacionalsocialismo, 3ª ed., 2002, pp. 116 e ss.; 4ª ed., 2003, pp. 121 e ss.; PORTILLA CONTRERAS, entretanto, nº 83 (2002), pp. 78 e ss., 81; idem, em LÓPEZ BARJA DE QUIROGA/ZUGALDÍA ESPINAR (coords.), Dogmática y ley penal. Libro homenaje a Enrique Bacigalupo, t. I, 2004, p. 694: “[...] justifica e tenta legitimar a estrutura de um direito penal e processual sem garantias”; DÜX, ZRP 2003, pp. 189 e ss., 194 e s.; LAURENZO COPELLO, RDPCr 12 (2003), pp. 455 e s.; amplamente APONTE, Krieg und Feindstrafrecht. Überlegungen zum “effizienten” Feindstrafrecht anhand der Situation in Kolumbien, 2004, pássim, pp. 76 e ss., 129 e ss., 312 e ss.; DEMETRIO CRESPO, NDP 2004/A, pp. 47 e ss.; ver a ampla análise, feita a contextualizar a aparição do direito penal do inimigo no conjunto da evolução político-criminal realizada por FARALDO CABANA, em idem (dir.)/BRANDARIZ GARCÍA/PUENTE ABA (coords.), Nuevos retos del Derecho penal en la era de la globalización, 2004, pp. 299 e ss., 305 e ss.; GÓMEZ MARTÍN, em La política criminal (nota 40), pp. 82 e ss.; KUNZ, ZStrR 122 (2004), pp. 234 e ss., 241 e ss.; LASCANO, em Universidad Nacional Mayor de San Marcos (ed.), XVI Congreso Latinoamericano/VIII Iberoamericano y I Nacional de Derecho Penal y Criminología, 2004, pp. 223 e ss.; MIR PUIG/CORCOY BIDASOLO, em La política criminal (nota 40), p. 20; ZAFFARONI, em Investidura (nota 40), pp. 19 e ss.; ver também DÍEZ RIPOLLÉS, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (eds.), Derecho penal y política transnacional (nota 6), pp. 263 e ss. Por outra parte, salvo SILVA SÁNCHEZ (sobre sua posição, ver a continuação do texto), têm feito referência à concepção de JAKOBS em termos mais bem descritivos ou afirmativo (nalguns casos) KINDHÄUSER, Gefährdung als Straftat, 1989, pp. 177 e ss.; FEIJOO SÁNCHEZ, RJUAM 4 (2001), pp. 9 e ss., 46 e ss.; PÉREZ DEL VALLE, CPC 75 (2001), pp. 597 e ss.; POLAINO NAVARRETE, Derecho penal, Parte General, t. I: “Fundamentos científicos del Derecho penal”, 4ª ed., 2001, pp. 185 e ss.; CANCIO MELIÁ, JpD 44 (2002), pp. 19 e ss.; GRACIA MARTÍN, Prolegómenos (nota 2), pp. 120 e ss.; conferir a nova e exaustiva tomada de posição, de caráter crítico, deste autor em RECPC 7 (2005). Recentemente, uma nova aproximação de JAKOBS à questão, num trabalho em que ele revista a teoria da pena por ele desenvolvida até o momento (Staatliche Strafe [nota 1], pp. 41 e ss.), desfaz toda dúvida sobre JAKOBS considerar legitimável um “direito penal do inimigo” ao menos em alguns casos; conferir sobre isso CANCIO MELIÁ, ZStW 117 (2005), pp. 267 e ss., 287 e ss. e infra 2.2.4. 42 Conferir SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 163 e ss. 43 Ver SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 159 e ss.

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se de figuras delitivas de novo cunho –, caberia flexibilizar de modo proporcional à menor gravidade das sanções esses princípios e regras “clássicos44”. Com independência de que tal proposta possa parecer acertada ou não – uma questão que excede destas breves considerações –, a imagem das “duas velocidades” induz imediatamente a pensar – como já tem feito o próprio Silva Sánchez45 – no direito penal do inimigo como “terceira velocidade”, no que coexistiriam a imposição de penas privativas de liberdades e, apesar de sua presença, a “flexibilização” dos princípios político-criminais e as regras de imputação. 2.1.2 Obrigações a) Delineamento Até aqui a descrição. A questão que agora se coloca é, naturalmente, que se de fazer no plano teórico-sistemático com essa realidade constatada. Falta algum elemento no quadro traçado? Além disso: há que se deter nessa constatação da existência do direito penal do inimigo? Há que se tentar limitá-lo à medida do possível, talvez “domando-o” ao introduzi-lo no ordenamento jurídico-penal46? Devese expulsar do ordenamento? Em suma: é legítimo47? Dito de outra forma: não está claro se é um conceito meramente descritivo ou afirmativo. Antes de procurar dar resposta a essa questão, parece necessário, entretanto, fazer algumas considerações acerca do conteúdo do conceito de direito penal do inimigo. A partir da perspectiva cá adotada, ambas as concepções teóricas antes delineadas são corretas enquanto elementos de uma descrição48. No que se refere ao alcance concreto destas normas realmente existente, há muito trabalho por fazer. Posto que se trata, como antes se indicou – e o próprio Jakobs sublinha em muitas ocasiões –, de uma definição típico-ideal, para determinar a “parte especial” jurídico-positiva do direito penal do inimigo seria necessário um estudo detalhado, tipo por tipo – que excederia, obviamente, o objetivo do presente trabalho –, de diversos setores de regulação49. Neste sentido, é seguramente certo (como tem afirmado Silva Sánchez50) que é necessário demarcar na praxis de análise da parte especial diversos níveis de intensidade nos preceitos jurídico-penais concretos, e que, no plano teórico, cabe avaliar que em seu alcance concreto, a 44 Conferir SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 159 e ss., 161 e s. 45 Na 2ª ed. de sua monografia La expansión (nota 2), pp. 163 e ss. 46 Sobre isso JAKOBS, Staatliche Strafe (nota 1), pp. 45 e ss. 47 Conforme o título da contribuição de PRITTWITZ em MIR PUIG/CORCOY BIDASOLO/GÓMEZ MARTÍN (eds.), La política criminal (nota 40), pp. 107 e ss.: “Derecho penal del enemigo: ¿análisis crítico o programa del Derecho penal?”. 48 O fato de que existe esse direito penal do inimigo no ordenamento positivo (SILVA SÁNCHEZ diz [La expansión, nota 2, p. 166] que sobre isso “não resta dúvida alguma”), e que pode ser descrito nos termos expostos, é algo que não é questionado; no que se pode ver, tampouco por parte dos autores que se têm manifestado em sentido crítico diante do desenvolvimento de JAKOBS (conferir, por exemplo, PORTILLA CONTRERAS, nº 83 [2002], pp. 77 e ss., 83, 91; DEMETRIO CRESPO, NDP 2004/A, p. 50; LAURENZO COPELLO, RDPCr 12 [2004], p. 455). 49 Conferir, por exemplo, o catálogo internacional exposto por PORTILLA CONTRERAS, nº 83 (2002), pp. 83 e ss., ou a análise de FARALDO CABANA, em idem (dir.)/BRANDARIZ GARCÍA/PUENTE ABA (coords.), Nuevos retos (nota 41), pp. 299 e ss., 305 e ss., 317 e ss., sobre a situação do ordenamento espanhol. 50 Numa contribuição se seminário, Universitat Pompeu Fabra (Barcelona), 5/2003.

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noção de direito penal do inimigo proposta por Jakobs na primeira aproximação (1985) é consideravelmente mais ampla (incluindo setores de regulação mais próximos ao “direito penal paleorrepressivo” ou delitos de nova introdução dentro do setor da atividade econômica) que a da segunda e terceira fase (a partir de 1999), mais orientada com base em delitos graves contra bens jurídicos individuais (de modo paradigmático: terrorismo). Em todo caso, o que parece claro é que no ordenamento espanhol, o centro de gravidade do direito penal do inimigo está nos delitos51 relacionados com as drogas52, na relação do direito penal frente ao fenômeno da imigração53, em geral, no direito penal da “criminalidade organizada54”, e, sobretudo, no novo direito antiterrorista, primeiro na redação dada a alguns dos preceitos correspondentes no Código Penal de 199555, depois na reforma introduzida mediante a LO 7/200056, e finalmente mediante as reformas que entraram em vigor em 2004 neste campo57. A essência do conceito de direito penal do inimigo está, então, em que este constitui uma reação de combate do ordenamento jurídico contra indivíduos especialmente perigosos, que nada significa58, já que de modo paralelo às medidas de segurança supõe tão-só um processamento desapaixonado, instrumental59, de determinadas fontes de perigo especialmente significativas60: “[...] a expectativa de um comportamento correto não pode ser mantida contrafaticamente de modo ilimitado; mais ainda: não deve ser mantida ilimitadamente, já que o Estado há de procurar uma vigência real do direito, pelo que tem de proceder contra os enfraquecimentos do direito cuja próxima comissão se percebe. Uma expectativa normativa dirigida até uma determinada pessoa perde sua capacidade de orientação quando carece do apoio cognitivo prestado por essa pessoa. Em tal caso, [...] a expectativa normativa é substituída pela orientação cognitiva, o que significa que a pessoa – a destinatária

51 Além das características da criminalização, pode-se apreciar que também em direito penitenciário existe uma orientação ao “inimigo”; ver por todos FARALDO CABANA, em idem (dir.)/BRANDARIZ GARCÍA/PUENTE ABA (coords.), Nuevos retos (nota 41), pp. 317 e ss. 52 Conferir as referências acima na nota 30. 53 Conferir, por todos, a respeito da reação do direito penal espanhol diante do fenômeno, CANCIO MELIÁ/MARAVER GÓMEZ, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (eds.), Derecho penal y política transnacional (nota 6), pp. 343 e ss. 54 Ver SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, La criminalidad organizada. Aspectos penales, procesales, administrativos y policiales, 2005, passim. 55 Conferir a sintética descrição em CANCIO MELIÁ, em RODRÍGUEZ MOURULLO/JORGE BARREIRO et al., Comentarios (nota 26), pp. 1384 e ss. 56 Conferir CANCIO MELIÁ, JpD 44 (2002), pp. 19 e ss., 23 e ss.; idem, em FERRER et al., Derecho, libertades y razón de Estado, 2005, pp. 21 e ss. 57 Fundamentalmente, mediante as LO 7 e 15/2003. 58 Em termos do significado habitual da pena criminal na comunicação; sobre isso ver infra 2.2.2. 59 Desta perspectiva, ressalta o paralelismo com a idiossincrasia de determinadas tendência redutoras de dano na discussão estado-unidense que recebem a significativa denominação de managerial criminology, em particular, no que se refere à identificação de determinadas classes de autores sobre os quais seria especial “rentável” em termos preventivos impor medidas de redução de danos (selective incapacitation); ver, por todos, as exposições SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 141 e ss., 145 e BRANDARIZ GARCÍA, em FARALDO CABANA (dir.)/BRANDARIZ GARCÍA/PUENTE ABA (coords.), Nuevos retos (nota 41), pp. 43 e ss. 60 Conferir SILVA SÁNCHEZ (La expansión [nota 2], p. 163): “fenômenos [...] que ameaçam enterrar os fundamentos últimos da sociedade constituída em Estado”; “reações moderadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves” (ibid., p. 166).

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de expectativas normativas – se agrupa para se converter em fonte de perigo, em um problema de segurança que se deve abordar de modo cognitivo61”. Com esse instrumento, então, o Estado não fala com seus cidadãos, e sim ameaça seus inimigos62. b) Carências Contudo, a partir da perspectiva aqui adotada, essa definição é incompleta: apenas corresponde de maneira parcial com a realidade (legislativa, política e da opinião publicada). Em primeiro lugar: ainda sem concluir um estudo de materiais científicos relativo à psicologia social, parece claro que em todos os campos importantes do direito penal do inimigo (“cartéis da droga”; “criminalidade da imigração”; outras formas de “criminalidade organizada” e terrorismo) o que sucede não é que se dirijam com prudência e comuniquem com indiferença operações de combate, senão que se desenvolva uma cruzada contra malfeitores arquimalvados. Trata-se, portanto, mais de “inimigos” neste sentido pseudo-religioso, que na acepção tradicional-militar63 do termo64. Com efeito, a identificação de um infrator como inimigo por parte do ordenamento penal, por mais que possa parecer à primeira vista uma qualificação como “outro65”, não é, em realidade, uma identificação como fonte de perigo66, não supõe declará-lo um fenômeno natural a neutralizar, senão, pelo contrário, é um reconhecimento de competência normativa do agente67 mediante a atribuição de perversidade68, mediante sua demonização, e que outra coisa é Lúcifer senão um anjo caído69? Visto desta perspectiva, o processo simbólico, o elemento decisivo é que se produz uma exclusão de uma determinada categoria de sujeitos do círculo de cidadãos, pelo que se pode afirmar que neste âmbito, a defesa frente a riscos – que 61 JAKOBS, “Terroristen als Personen” (nota 1), II., texto posterior à nota 5; sem grifo no original. 62 JAKOBS, Cuadernos de Derecho judicial, nº 20 (nota 1), p. 139. 63 Por outro lado, como é sabido, no momento atual estão a se perder os contornos também da noção de guerra, a se mesclar com a de “segurança”; a respeito do caso espanhol, no que se refere à vulneração dos preceitos constitucionais relativos à declaração de guerra por meio da praxis e da legislação de desenvolvimento, ver, por todos, MELERO ALONSO, La declaración de guerra en el ordenamiento jurídico español (un mecanismo para el control jurídico de la participación del Estado español en conflictos armados), no prelo, Dykinson. Ver, também, paralelamente, o processo de militarização das forças de persecução penal, no exemplo do caso colombiano, descrito por APONTE, Krieg und Feindstrafrecht (nota 41), pp. 256 e ss. 64 Sobre o terrorismo de novo cunho, SCHEERER (Die Zukunft dês Terrorismus. Drei Szenarien, 2002, pp. 7 e ss., 13 e ss.) identifica a patologização e a mitologização das condutas em questão como verdadeiras características decisivas no discurso de combate contra o terrorismo. Em caráter geral sobre este fenômeno de “demonização”, enquanto parte de um novo paradigma criminológico centrado na noção de “exclusão”, ver a análise de YOUNG, La sociedad “excluyente” (nota 38), pp. 155 e ss., delineado com um enfoque amplo e com referências ulteriores. 65 Que simplesmente, é perigoso; de modo a não lhe fazer, num primeiro momento, uma censura, e sim a perseguir sua neutralização. 66 Conferir sobre os pressupostos do discurso da eficiência preventiva, também DÍEZ RIPOLLÉS, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (eds.), Derecho penal y política transnacional (nota 6), pp. 263 e ss., 273 e ss., com referências posteriores. 67 Conferir, a respeito desta idéia, também o texto infra 3.2.2. 68 Conforme o significativo título da coletânea editada por LÜDERSSEN: Aufgeklärte Kriminalpolitik oder Kampf gegen das Böse?, 1998. 69 Um dos nomes é, precisamente, o Inimigo.

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é o denominador essencial da agenda político-criminal explícita –, em realidade, é o de menos70. Neste sentido, a carga genética do punitivismo (a idéia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina com a do direito penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social), dando lugar ao código do direito penal do inimigo, ou, dito de outro modo, o direito penal do inimigo constrói uma nova fase evolutiva sintética dessas duas linhas de desenvolvimento. Este significado simbólico específico do direito penal do inimigo (ou: a paternidade do direito penal simbólico, que se tem perdido de vista diante do predomínio do discurso político-criminal pretendido instrumental-defensista), em segundo lugar, abre a perspectiva para uma segunda característica estrutural: não é (apenas) um determinado “fato” o que está na base da tipificação penal, senão também outros elementos com tal de que sirvam à caracterização do autor como pertencente à categoria dos inimigos71. De modo correspondente, no plano teórico, a ordem de determinação derivada do princípio da legalidade e suas “complexidades72” já não são um ponto de referência essencial para a tipificação penal. 2.2 O direito penal do inimigo como contradição terminológica 2.2.1 Delineamento Quando se aborda uma avaliação do direito penal do inimigo enquanto parte do ordenamento jurídico-penal, sobretudo se pergunta se deve ser aceito como inevitável segmento instrumental de um direito penal moderno. Para contestar esta pergunta, em primeiro lugar, pode-se recorrer a pressupostos de legitimidade mais ou menos externos ao sistema jurídico-penal em sentido estrito: não deve haver direito penal do inimigo porque é politicamente errôneo (ou: inconstitucional73). Em segundo lugar, pode-se argumentar dentro do paradigma da segurança ou efetividade no que a questão é situada habitualmente pelos agentes políticos que promovem este tipo de normas penais: o direito penal do inimigo não deve ser 70 Sublinha, na linha do texto, a mudança de paradigma em direção da exclusão (partindo da nova custódia de segurança suíça) também KUNZ, ZStrR 122 (2004), pp. 234 e ss., 241 e ss.; ver aqui infra 2.2.2. Em todo caso, ainda que fosse certo que o direito penal do inimigo realmente é antes de tudo um problema de defesa diante de riscos, isto é, se a questão central fosse em verdade a falta de “apoio cognitivo” – que JAKOBS não considera garantido no caso do “inimigo” – e se esta poderia ser sequer abordada com os meio do direito penal, ainda haveria que submeter essa “defesa” a uma análise de legitimidade; conferir a posição crítica sobre a concepção, paralela a esse desvio defensista, de um entendimento naturalista (“museal”, na famosa expressão de WELZEL, ZStW 58 [1939], pp. 491 e ss., 514 e s., 530) do bem jurídico como ponto de partida de uma política criminal inflacionária (sob o lema: deve-se perseguir o risco até seu abrigo na periculosidade individual do sujeito, a antecipar as barreiras tudo o que demandarem as necessidades de neutralização-defesa) desenvolvida por JAKOBS, ZStW 97 (1985), pp. 751 e ss., 783, 785; ver também infra 2.2.4. À margem disso, haveria que submeter à análise as condições de funcionamento interno do prognóstico de suposto risco por meio desta aproximação: tenha-se em conta que aqui não se quer abordar, precipuamente, uma análise de cada indivíduo “inimigo”, e sim a elaboração de tipologias de classes de diversos tipos de inimigos. Neste sentido, o próprio JAKOBS sublinha que em muitas ocasiões não se tratam de reações defensista-neutralizadoras diante de um indivíduo perigoso, e sim frente ao grupo hostil (“Terroristen als Personen” [nota 1], IV., texto posterior à nota 25). 71 Conferir sobre isso o texto abaixo 2.2.3. 72 Um termo que aparece, por exemplo, várias vezes na Exposição de Motivos da LO 7/2000 como um problema a superar. 73 No que se pode ver, esta é a argumentação que está na base das posições críticas existentes na discussão até o momento (ver as referências supra, na nora 41).

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porque não contribui à prevenção policial-fática de delitos74. Estes são, naturalmente, caminhos transitáveis, que de fato se transitam na discussão e que se devem transitar. Mas aqui se pretende – em terceiro lugar – esboçar uma análise prévia, interna ao sistema jurídico-penal em sentido estrito: o direito penal do inimigo (faticamente existente) faz parte conceitualmente do direito penal75? Com esta formulação, como é evidente, se implica que na utilização do conceito se arremata, sobretudo, uma descrição: a avaliação (política: situada fora da ciência do direito), em seu caso, cai por seu próprio peso uma vez dada resposta aos problemas descritivos. Deste modo, se introduz a questão, amplamente discutida, acerca de se estes tipos de concepções podem legitimamente levar a cabo tal descrição, ou se, pelo contrário, todo trabalho teórico neste contexto oferece sempre, ao mesmo tempo, uma legitimação (rechaçável). A este respeito, só há de se anotar aqui que na discussão incipiente em torno da idéia de direito penal do inimigo desde o princípio se percebem, às vezes, tons bastante rudes, que se dirigem, em particular, contra a mera (re)introdução da parelha conceitual direito penal do cidadão e do inimigo por parte de Jakobs. Sem pretender recolocar aqui a discussão global em torno do significado do sistema dogmático desenvolvido por Jakobs, acerca de sua compreensão como descrição ou legitimação76, há que se indicar que aquelas posições que sublinham os possíveis “perigos” ínsitos na concepção de Jakobs não têm sempre em conta de modo suficiente que essa aproximação, pontuada de estruturalmente conservadora ou, ainda, de autoritária, já 74 No plano empírito, parece que se pode afirmar que a experiência noutros países circunvizinhos ao nosso sobre as organizações terroristas surgidas nos anos 1960 e 1970 mostra que a aplicação deste tipo de infrações tanto não permitiu que se evitassem delitos como tem contribuído a atrair novos militantes às organizações em questão, retardando em certa medida o processo de dissolução endógeno (esse parece ser o caso, em particular, na República Federal da Alemanha, do passo da “primeira geração” da Divisão do Exército Vermelho [RAF, Rote Armee Fraktion] às sucessivas ondas de membros desse grupo terrorista; conferir, por exemplo, DÜX, ZRP, 2003, pp. 191 e s.). Por outra parte, não há que sublinhar especialmente que as questões de prevenção negativa e de eficácia da persecução penal se apresentam de um modo completamente diverso do habitual quando se trata de terroristas suicidas de orientação religiosa, organizados em pequenos grupos de ação autônomos. De todos os modos, é difícil que se possa isolar para uma análise “eficientista” apenas a questão da efetividade preventiva: pois dentro desse balanço deveria levar-se em considerações de modo muito especial que as normas destas características tendem a contaminar outros âmbitos de incriminação – como mostram vários exemplos históricos –, de que há boas razões para pensar que é ilusória a imagem de dois setores do direito penal (o direito penal de cidadãos e o direito penal de inimigos) que podem conviver num mesmo ordenamento jurídico (conferir também infra 2.2.4.). Fora isso, no balanço de “efetividade” há que se considerar, como antes se disse, que a mera existência do direito penal do inimigo pode representar – isso deveria ser óbvio – em alguma ocasião um êxito parcial, precisamente, para o “inimigo” (ver, por exemplo, a análise de SCHEERER, Zukunft des Terrorismus [nota 63], pp. 34 e ss., 50 e ss., no que recorda que a estratégia do terrorismo não estatal consiste desde suas origens sobretudo em alcançar a hegemonia em seu “próprio campo” por meio da curva ação-reação); sobre a falta de efetividade, conferir FEIJOO SÁNCHEZ, RJUAM 4 (2001), pp. 50 e ss.; sobre o caso concreto da introdução do chamado “terrorismo individual” no Código Penal espanhol de 1995, conferir, por exemplo, a análise das consequências contraproducentes que podem ocorrer, por ASÚA BATARRITA (em ECHANO BASALDÚA [coord.], Estudios jurídicos en memoria de José Mª Lidón, 2002, p. 69, nota 39). 75 Delineiam e deixam aberta essa questão tanto JAKOBS (em ESER/HASSEMER/BURKHARDT [eds.], Strafrechtswissenschaft [nota 1], p. 50) como SILVA SÁNCHEZ (La expansión [nota 2], p. 166). 76 Conferirer sobre isso novamente o próprio JAKOBS em idem, Sobre la normativización (nota 1), passim; ver, ademais, PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/ CANCIO MELIÁ, em JAKOBS, Estudios de Derecho penal, 1997, pp. 17 e ss., 22 e ss.; ALCÁCER GUIRAO, AP, 2001, pp. 229 e ss., 242 e ss.; idem, ¿Lesión de bien jurídico o lesión de deber? Apuntes sobre el concepto material de delito, 2003, passim; respectivamente, com posteriores referências.

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tem produzido em várias ocasiões construções dogmáticas com um alto potencial de recorte da punibilidade. Um pequeno exemplo, precisamente relativo ao direito penal do inimigo: segundo Muñoz Conde77, em relação com o conceito de direito penal do inimigo, e tendo em conta que o grande eco da teoria de Jakobs na América Latina78, é necessário sublinhar que essa aproximação teórica não é “ideologicamente inocente”, precisamente em países, como Colômbia, em que “esse direito penal do inimigo é praticado”. Com toda certeza, qualquer concepção teórica pode ser corrompida ou usada com fins ilegítimos; não se pretende aqui negar essa realidade. Porém, é um fato que a Corte Constitucional colombiana tem declarado recentemente inconstitucionais – aplicando expressamente o conceito de direito penal do inimigo desenvolvido por Jakobs – vários preceitos penais promulgados pelo presidente79. Em conclusão: não existem concepções teóricas (estritamente jurídico-penais) que sejam invulneráveis a um ordenamento penal frente a evoluções ilegítimas80. A resposta que aqui se oferece é: não. Para isso, serão propostas duas diferenças estruturais (intimamente relacionadas entre si) entre “direito penal” do inimigo e direito penal: a) o direito penal do inimigo não estabiliza normas (prevenção geral positiva), e sim demoniza (=exclui) determinados grupos de infratores; b) em consequência, o direito penal do inimigo não é um direito penal do fato, e sim do autor. Há que sublinhar de novo que estas características não aparecem com essa nitidez como o negro sobre o branco no texto da lei, senão que se encontram, sobretudo, em diversas tonalidades cinzentas. Mas parece que, conceitualmente, pode-se pretender fazer a diferenciação. 2.2.2 O direito penal do inimigo como reação disfuncional: divergências na função da pena Quando se argumentou que os fenômenos diante dos quais reage o “direito penal do inimigo” são perigos que põem em questão a existência da sociedade, que é a autoexclusão81 da condição de pessoa que gera uma necessidade de procurar uma especial segurança cognitiva diante de tais sujeitos, se ignora, em primeiro lugar, ser a percepção dos riscos – como é sabido em sociologia – uma construção social que não está relacionada com as dimensões reais de determinadas ameaças82. Da perspectiva aqui adotada, também neste caso se dá essa disparidade. Os fenômenos frente aos que reage o “direito penal do inimigo” não têm essa especial “periculosidade terminal” (para a sociedade) que se atribui a eles, e, como antes se 77 Em BARQUÍN SANZ/OLMEDO CARDENETE, “Conversaciones: Dr. Francisco Muñoz Conde”, RECPC 04-c2 (2002) [http://criminet.ugr.es/recpc]. 78 Esta influência também é constatada, em termos similares e com preocupação, por AMBOS, Völkerstrafrecht (nota 41), p. 64. Esta influência também é constatada, em termos similares e com precoupação, por AMBOS, Völkerstrafrecht (nota 41), p. 64. 79 Sentença C-939/02 de 31.10.2002, relator Montealegre Lynett. Uma questão distinta é, naturalmente, que efeito prático terá isso no desenvolvimento da atual guerra civil na Colômbia; provavelmente, exatamente o mesmo que uma solene proclamação do princípio de ultima ratio. Conferir a exaustiva análise da situação colombiana feita por APONTE, Krieg und Feindstrafrecht (nota 41), pp. 23, 29 e ss., 349 e ss. 80 Ver CANCIO MELIÁ, em JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Conferencias (nota 14), pp. 139 e ss., 147. 81 Por exemplo, JAKOBS, “Terroristen als Personen” (nota 1), IV., texto anterior à nota 25. 82 Conferir as considerações do próprio SILVA SÁNCHEZ, La expansión (nota 2), pp. 32 e ss., acerca da “sensação social de insegurança”; conferir. também MENDOZA BUERGO, Sociedad del riesgo (nota 2), pp. 30 e ss., ambos com referências posteriores.

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expôs, em realidade o direito penal do inimigo faticamente existente não é um mecanismo defensista. Ao menos entre os “candidatos” a “inimigos” das sociedades ocidentais, não parece que se possa julgar haver algum – nem a “criminalidade organizada”, nem as “máfias das drogas”, nem tampouco o ETA – que realmente possa por em questão, em termos “militares” como é afirmado, os parâmetros fundamentais das sociedades correspondentes num futuro previsível. Isto é especialmente claro caso se compare a dimensão meramente numérica das lesões de bens jurídicos pessoais sofridas por tais condutas delitivas com outro tipo de infrações criminais que se cometem de modo massivo e que entram, ao contrário, plenamente dentro da “normalidade83”. Então, que têm de especial os fenômenos frente aos quais responde o “direito penal do inimigo”? Que característica especial explica, no plano fático, que se reaja desse modo frente a precisamente essas condutas? Que função cumpre a pena neste âmbito? A resposta a esta pergunta está em que se tratam de comportamentos delitivos que afetam, certamente, a elementos essenciais e especialmente vulneráveis da identidade das sociedades em questão. Mas não no sentido entendido pela concepção antes examinada – no sentido de um risco fático extraordinário para esses elementos essenciais –, senão ante tudo, como já se adiantou, em um determinado plano simbólico84. É sabido que precisamente Jakobs apresenta uma teoria do delito e do direito penal na qual ocupa um lugar preeminente – dito de modo simplificado, claro está – o entendimento do fenômeno penal como pertencente ao mundo do normativo, dos significados, por contraposição ao das coisas. Desta perspectiva, toda infração criminal supõe, como resultado especificamente penal, a transgressão da norma, entendida esta como a colocação em dúvida da vigência dessa norma: a pena reage frente a esse questionamento por meio do delito reafirmando a validez da norma: prevenção geral positiva85. Pois bem, estas suposições de condutas de “inimigos” se caracterizam por produzir essa transgressão da norma em respeito de configurações sociais consideras essenciais, mas que são especialmente vulneráveis, mais além das lesões de bens jurídicos de titularidade individual. Assim, não parece muito aventurado formular várias hipóteses neste sentido: que o punitivismo existente em matéria de drogas pode estar relacionado não só com as evidentes consequências sociais negativas de seu consumo, como também com a escassa fundamentação axiológica e efetividade das políticas contra o consumo de drogas nas sociedades ocidentais; que a “criminalidade organizada”, naqueles países nos quais existe como realidade significativa, causa prejuízos à sociedade em seu conjunto, incluindo também a infiltração de suas organizações no tecido político, de modo que ameaça não só às fazendas ou outros bens pessoais dos cidadãos, senão ao próprio sistema políticoinstitucional; que o ETA, finalmente, não apenas mata, fere e seqüestra, senão que

83 No que se refere ao caso espanhol, esta disparidade entre a ameaça real e sua reconstrução no discurso político-criminal é patente no que se refere à atividade do ETA: as medidas de endurecimento mais recentes – com vigência a partir de 2000 – coincidem precisamente com uma inclinação muito evidente das ações violentas do ETA, com uma diminuição muito notável tanto em quantidade como em intensidade dos delitos cometidos. 84 Conferir acima 2.2.2.b). Ao lado da percepção dos “inimigos”, por exemplo, GARCÍA SAN PEDRO, Terrorismo: aspectos criminológicos y legales, 1993, pp. 139 e ss., caracteriza o terrorismo como “violência simbólica”; ver por todos nesta linha SCHEERER, Zukunft des Terrorismus (nota 64), pp. 17 e ss., com referências ulteriores. 85 Ver JAKOBS, AT2, 1/4 e ss.; 2/16, 2/25a, 25/15, 25/20.

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põe em questão um consenso constitucional muito delicado e frágil no que se refere à organização territorial de Espanha. Se isso é assim, é dizer, se é certo que a característica especial das condutas frente às quais existe ou se reclama como “direito penal do inimigo” está em que afeta a elementos de especial vulnerabilidade na identidade social, a resposta jurídicopenalmente funcional não pode estar na mudança de paradigma que supõe o direito penal do inimigo, senão que, precisamente, a resposta idônea no plano simbólico ao questionamento de uma norma essencial deve estar na manifestação de normalidade, na negação da excepcionalidade, isto é, na reação conforme os critérios de proporcionalidade e de imputação que estão na base do sistema jurídicopenal “normal”. Assim se nega ao infrator a capacidade de questionar, concretamente, esses elementos essenciais ameaçados86. Dito da perspectiva do “inimigo”, a pretendida auto-exclusão da personalidade por parte deste – manifestada na adesão à “sociedade” mafiosa em lugar da sociedade civil, ou no rechaço da legitimidade do Estado em seu conjunto, pontuando-o de “força de ocupação” no País Basco – não deve estar a seu alcance, posto que a qualidade de pessoa é uma atribuição87. É o Estado quem decide, mediante seu ordenamento jurídico, quem é cidadão e qual é o status que tal condição comporta: não cabe admitir apostasias do status de cidadão. A maior desautorização que pode corresponder a essa defecção pretendida pelo “inimigo” é a reafirmação da pertença do sujeito em questão à cidadania em geral, isto é, a afirmação de que sua infração é um delito, não um ato cometido em uma guerra, seja entre facções ou contra um Estado pretensamente opressor. Portanto, a questão de se pode haver direito penal do inimigo fica resolvida negativamente no plano da teoria da pena. Precisamente, desde a perspectiva de um entendimento da pena e do direito penal com base na prevenção geral positiva, a reação que reconhece excepcionalidade à infração do “inimigo” mediante uma mudança de paradigma de princípios e regras de responsabilidade penal é disfuncional de acordo com o conceito de direito penal. Neste sentido, cabe afirmar que o “direito penal” do inimigo jurídico-positivo cumpre uma função distinta da do direito penal (do cidadão): trata-se de coisas distintas88. O direito penal do inimigo praticamente reconhece, ao optar por uma reação estruturalmente diversa, 86 Sobre as infrações de terrorismo, assinala, por exemplo, ASÚA BATARRITA (em ECHANO BASALDÚA [coord.], EM Lidón [nota 74], p. 47) que “a anatematização indiscriminada dos métodos violentos e de sua ideologia favorece a tese de quem opta pelo método do terror, em seu propósito de serem identificados e famosos por suas idéias e não por seus crimes”; sobre a “ideologia das normalidade” como base (às vezes, apenas nominal) da regulação espanhola em matéria de terrorismo, ver CANCIO MELIÁ, JpD 44 (2002), pp. 23 e ss., com referências. 87 Que – como é óbvio – concretamente em nossas sociedades (Estados de direito atuais) essencialmente – e, desde logo, no que se refere a sua posição enquanto possíveis infratores de normas penais – corresponde a todos os seres humanos em virtude de sua condição humana; por isso, não pode haver “exclusão” sem romper o sistema; ver infra 2.2.4. 88 Sobre a posição pessoal de JAKOBS em relação à natureza jurídico do “direito penal” do inimigo, cabe fixar que ainda que não se encontre uma afirmação unívoca em alguns de seus escritos neste sentido, é possível inferir de várias de suas linhas de argumentação que o considera materialmente um direito de exceção, e não direito penal ordinário. Neste sentido, o “direito penal” do inimigo descrito por JAKOBS tampouco casa com sua atual definição dos critérios de avaliação da gravidade social de um fato a efeitos de determinar a medida da pena (ver JAKOBS, Staatliche Strafe [nota 1], p. 32; cfr., por outro lado, agora expressamente idem, “Terroristen als Personen” [nota 1], III., texto posterior à nota 25).

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excepcional, a competência normativa (a capacidade de questionar a norma) do infrator. Por isso, de certo modo, enquanto o discurso legitimatório do direito penal do inimigo positivo na discussão político-criminal parece afirmar que é algo “menos” que o direito penal da culpabilidade (a reação imprescindível, porém serena, sem reprovações, tecnocrática frente a um risco gravíssimo; uma reação frente a um perigo examinado de modo neutro), em realidade é algo “mais” (a construção de uma categoria de representantes humanos do mal, algo mais grave que ser “simplesmente” culpável). Mediante a demonização dos grupos de autores, isto é, mediante a exclusão do círculo de mortais “normais” que está implícita nestas modalidades de tipificação – uma forma exacerbada de censura –, da inclusive maior ressonância aos seus feitos. Dito de outro modo – combinando ambas as perspectivas –, a demonização tem lugar mediante a exclusão (definição como outro): “o inferno, são os outros89”. Com caráter geral, o conceito inclusão/exclusão adquire, ao que parece, cada vez maior relevância teórica para as ciências sociais: se está a converter o binômio inclusão/exclusão no meta-código do século XXI, que funciona como mediador de todos os demais códigos, solapando, ademais, simultaneamente a própria diferenciação funcional, e dominando com o potencial explosivo da exclusão de grupos populacionais inteiros outros problemas sócio-políticos90?”. De fato, desde a perspectiva da teoria social de sistemas, Luhmann91 tem formulado inclusive a tese de que a diferenciação moderna entre inclusão e exclusão é estruturalmente mais profunda do que nunca o foi a diferenciação em classes sociais92. Em conseqüência, a função da pena no direito penal do inimigo provavelmente tem a ver com a criação (artificial) de critérios de identidade entre os excludentes mediante a exclusão; uma função cuja incompatibilidade com a teoria da prevenção geral positiva não necessita sublinhar. Dito nas palavras do próprio Jakobs: “a pena não luta contra um inimigo; tampouco serve ao estabelecimento de uma ordem desejável, senão só à manutenção da realidade social93”. 2.2.3. O direito penal do inimigo como direito penal do autor Corresponde agora arrematar uma brevíssima reflexão em torno da manifestação técnico-jurídica mais destacada da função divergente da pena do direito penal do inimigo: a incompatibilidade do direito penal do inimigo com o princípio do fato.

89 SARTRE, Jean-Paul, Huis clos (suivi de les mouches), Gallimard-folio, París, 1983, p. 92. Esta imagen surgiu numa conversação com Pablo Guérez Tricarico y Enrique Peñaranda Ramos (Universidad Autónoma de Madrid). 90 TEUBNER, “Globalización y Derecho”, em CANCIO MELIÁ (ed.), AFDUAM 9 (2005), p. 200 (sem grifos no original); na atual situação mundial, é inevitável recordar a guerra distante, permanente e ameaçadora – tão distinta da guerra tradicional (conferir spura, nota 63), e que é outra forma de exclusão, precisamente, dos “inimigos”, e de construção de identidade de um bando – tal como é representada no livro de George ORWELL, 1984: neste sentido utilizado por TEUBNER, realmente war is peace na realidade hoje (ORWELL, Nineteen eightyfour, Penguin Books, Londres, 1984, p. 27), ou, no âmbito que cá interessa: exclusão (de uns) é inclusão (de outros); conferir o restante do texto. 91 Das Recht der Gesellschaft, 2ª ed., 1997, pp. 582 e ss. 92 Op. cit., pp. 582 e s., com nota 64. 93 JAKOBS, PJ 47 (1997), p. 163.

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Como é sabido, o direito penal do inimigo jurídico-positivo ofende, assim se afirma habitualmente na discussão, em diversos pontos o princípio do fato. Na doutrina tradicional, o princípio do fato se entende como aquele princípio genuinamente liberal de acordo com o qual deve ficar excluída a responsabilidade jurídico-penal por meros pensamentos, isto é, como rechaço de um direito penal orientado com base na “atitude interna” do autor94. Caso se leve este ponto de partida coerentemente até suas últimas conseqüências – mérito que corresponde a Jakobs95 –, fica claro que numa sociedade moderna, com boas razões funcionais, a esfera de intimidade adstrita ao cidadão não pode ser limitada aos impulsos nervosos: parafraseando o título de uma canção popular alemã – Die Fedanken sinf frei –, algo mais que os pensamentos há de ser livre. Isto cristaliza na necessidade estrutural de um “fato” como conteúdo central do tipo (direito penal do fato em lugar do direito penal do autor). Caso se examine, ante este pano de fundo – por exemplo, no direito penal espanhol relativo ao terrorismo depois das últimas modificações legislativas ocorridas – a ampla eliminação juspositiva das diferenças entre preparação e colaboração com uma organização terrorista96, dificilmente pode parecer exagerado falar de um direito penal de autor: mediante sucessivas ampliações se tem alcançado um ponto no que “estar aí” de algum modo, “fazer parte” de alguma maneira, “ser um deles”, ainda que seja apenas em espírito, é suficiente. Só assim se pode explicar que no Código Penal espanhol de 1995 – por mencionar um só exemplo entre vários – se tenha introduzido a figura do “terrorista individual97”, uma tipificação que não quadra de nenhum modo com a orientação da regulação espanhol neste setor, estruturada em torno à especial periculosidade das organizações terroristas. Esta segunda divergência é, igual que o que sucede respeito de a função de a pena que a produz, estrutural: não é que haja um cumprimento melhor ou pior do princípio do fato – o que ocorre em muitos outros âmbitos de “antecipação” das barreiras de punição –, senão que a regulação tem, desde um princípio, uma direção centrada na identificação de um determinado grupo de sujeitos – os “inimigos” – mais que na definição de um “fato”. O direito penal do inimigo não é compatível, portanto, com o direito penal do fato. 2.2.4 Algumas conclusões a) Diagnóstico Da perspectiva da política criminal, parece que se pode afirmar que o fenômeno do direito penal do inimigo nas legislações atuais não é conseqüência de um fato 94 Ver, por exemplo, STRATENWERTH, Strafrecht Allgemeiner Teil I. Die Straftat, 4ª ed., 2000 (= Derecho penal, Parte General, t. I: “El hecho punible”, 2005), 2/25 e ss.; recentemente, com um pouco mais de detalhe, conferir HIRSCH, em Festschrift für Klaus Lüderssen zum 65. Geburtstag, 2002, pp. 253 e ss. 95 A argumentação decisiva está em ZStW 97 (1985), p. 761 (como se recordará, trata-se do mesmo trabalho em que também se introduziu o conceito de direito penal do inimigo); um ponto de partida – a normativização do princípio do fato e, com isso, da noção de esfera privada neste contexto – que, no que se pode ver, não mereceu uma grande atenção na discussão alemã. 96 Conferir, sobre diversos tipos individuais, a análise em CANCIO MELIÁ, JpD 44 (2002), pp. 23 e ss. 97 Conferir CANCIO MELIÁ, JpD 44 (2002), pp. 25 e s.

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externo – de um atentado como desencadeante ou de uma maioria política circunstancial – à própria evolução dos sistemas jurídico-penais. Muito ao contrário, uma análise dos desenvolvimentos e dos estudos político-criminais prévios à atual onda de direito penal do inimigo nos boletins oficiais mostra que sua origem tem suas raízes em momentos históricos anteriores ao atual98. Também parece claro que, precisamente pelo fato de que não se trata de um fenômeno conjuntural e não é devido a fatores exógenos, o atual direito penal do inimigo não é um simples retorno de uma política criminal autoritária, senão uma fase evolutiva nova. No plano da teoria do direito penal, resulta evidente que um “direito penal” do inimigo não é compatível com a teoria da prevenção geral positiva, posto que nela a pena cumpre uma função divergente e incompatível com o elemento essencial da culpabilidade-igualdade99. Como conseqüência disso, o “direito penal” do inimigo – dedicado essencialmente a definir categorias de sujeitos – é, de modo estrutural, um direito penal do autor. b) Perspectivas 1. Se frente às considerações aqui feitas se delineia a objeção de que com elas se confunde a realidade com o desejo, no sentido de que se converte artificiosamente a inimigos reais em pessoas, em cidadãos fictícios100, isto é, naturalmente, certo de uma perspectiva meramente fática (no plano psicossocial, pode ser o caso de amplos setores da população, identificados com as potenciais vítimas, ou no plano da psicologia individual, no caso de muitos autores, os quais com freqüência se auto-definem, de fato, como “inimigos”); mas esta constatação não afeta em nada à razão: a graça do direito penal moderno, precisamente (e de uma teoria que o descreva adequadamente), está em que a pena não reage nem frente à maldade (contra pecadores) nem frente à nua periculosidade (contra enfermos), senão frente a manifestações de sujeitos culpáveis que põem em questão as características (essenciais) da configuração da sociedade (se assim se quiser: contra cidadãos equivocados). Não há inimigos no direito penal, pelo que de fato, todos os seres humanos são cidadãos (ou, caso se queira: se lhes eleva artificialmente a essa

98 Por isso, a questão delineada por DEMETRIO CRESPO (NDP 2004/A, pp. 47 e ss.) no título de seu trabalho (“¿Evolución o involución?”) deve-se contestar de modo unívoco com o primeiro dos conceitos (noutra linha DEMETRIO CRESPO, local citado, pp. 49, 67 e ss.). Ver também a argumentação de DÍEZ RIPOLLÉS, em BACIGALUPO/CANCIO MELIÁ (ed.), Derecho penal y política transnacional (nota 6), pp. 243 e ss., 252 e ss. 99 De fato, no que se refere à teoria dos fins da pena em JAKOBS, cabe constatar ultimamente um processo de reorientação que com caráter geral atribui a determinados efeitos cognitivos da pena, que ainda eram secundários em escritos anteriores, uma noca posição sistemática (conferir JAKOBS, Staatliche Strafe [nota 1], pp. 5 e ss., 26 e ss., passim; ver o expresso abandono de pontos de vista anteriores na p. 31, nota 147). Como parece claro, no é este o lugar adequado para abordar essa mudança de orientação na teoria penal de JAKOBS. Entretanto, pode-se formular a hipótese de que – sit venia verbo – um JAKOBS anterior talvez teria dito sobre a nova configuração da teoria da pena que se deste modo já não se encontra em missa e a repenicar, ao menos caso se proponha salvar um hiato demasiado grande entre significado (confirmação da vigência da norma) e finalidade (segurança em termos fático-naturais), entre pena e política. Talvez também teria escrito que a única finalidade (no direito penal de um Estado que a grandes riscos está em funcionamento e é legítimo) é o significado. Conferir sobre essa problemática CANCIO MELIÁ/FEIJOO SÁNCHEZ, “¿Prevenir riesgos o confirmar normas? La teoría funcional de la pena de Günther Jakobs”, estudo preliminar a JAKOBS, La pena estatal: significado y finalidad, no prelo, Civitas. 100 Assim JAKOBS, Staatliche Strafe (nota 1), pp. 47 e s.

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condição). Os “ataques” de sujeitos imputáveis ou são atos de guerra em sentido estrito, ou são delitos, tertium non datur101. 2. A seguir neste contexto de argumentação, de modo a saltar entre riscos fáticos e reações jurídico-penais102, também pode se afirmar que talvez a posição aqui defendida – o rechaço do direito penal do inimigo no plano da teoria do direito penal – seja (normativamente) correta, mas socialmente irrelevante103, porque não processa a (indiscutida) explosão jurídico-positiva do direito penal do inimigo realmente existente. Nem tampouco esta linha crítica realmente alcança as reflexões aqui propostas: num primeiro passo, a diferenciação conceitual entre direito penal do cidadão e “direito penal” do inimigo só implica isso mesmo, o estabelecimento de uma diferença entre esta classe de lei penal e as características essenciais do que até agora tem sido considerado direito penal em nossa vizinhança jurídico-política. Então, neste primeiro passo analítico se adverte que um ulterior aprofundamento desta evolução conduz a um “direito penal” distinto, e também desde uma perspectiva teórica modesta (positivista) a respeito da ciência do direito, mais cética frente à força de legitimação interna da ciência do direito penal104, talvez possa valorar-se como análise útil quando se perfilam os riscos de uma possível mudança de paradigma105. 3. Além do diagnóstico, a agenda político-criminal que deriva da perspectiva aqui abordada é simples, embora exista. Não se olha até o outro lado, a permanecer numa torre de marfim teórica106. A ordem do dia político-criminal é a seguinte: devese eliminar o “direito penal” do inimigo que está a entrar nas legislações penais. Uma primeira razão está em que é ilusória a idéia de um confinamento do “direito penal” 101 Dito de uma perspectiva mais geral, não é que aqui se afirme que o único Estado de direito possível é o ideal (conferir JAKOBS, “Terroristen als Personen” [nota 1], III., texto anterior às notas 16 e 17), senão que especificamente se diz que a incorporação do binômio pena-inimigo é categoricamente incompatível com o Estado de direito. 102 Casos em que – ao menos no plano descritivo – “a pena é um instrumento para um fim policial, um passo na luta pela segurança”; JAKOBS, “Terroristen als Personen” (nota 1), I., texto posterior à nota 4. Sobre a tensão entre ambos os extremos no sistema de JAKOBS com caráter mais geral, ver PEÑARANDA RAMOS, RPDJP 2 (2001), pp. 413 e ss. 103 O que, sobretudo da perspectiva de uma construção teórica como a de Jakobs, que pretende ser uma aproximação à realidade social do direito, implica que esta seria uma posição teórica talvez internamente coerente, mas, em todo caso, errônea. 104 Conferir JAKOBS, AT2, 1/1, 1/8, 1/18 (o modelo defendido “pressupõe que a ordem social merece os custos que se impõem ao infrator da norma”), 1/20 (“a pena só pode ser legitimada pelo valor do ordenamento para cuja manutenção se castiga”); ver também idem, ZStW 107 (1995), pp. 25 e ss., 33 e ss. e 37; MÜSSIG, Schutz abstrakter Rechtsgüter und abstrakter Rechtsgüterschutz, 1994, pp. 89 e s. e 140 e ss.; PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, em JAKOBS, Estudios (nota 76), pp. 17 e ss., 26 e ss. 105 Conferir a argumentação paralela de JAKOBS, Staatliche Strafe (nota 1), pp. 47 e s. e a respeito supra nota 15. 106 Não deixa de resultar atraente para quem tem seguido a trajetória de JAKOBS que agora se possa ver como submete a critica a certa “prepotência normativista” por “desconsiderar as condições da realidade do direito”, o que implica que posições como a aqui defendida significam “viver nas nuvens – Wolkenkuckucksheim – dos postulados, do que, desde logo, pode-se criticar magnificamente essa realidade do direito, mas, isso sim, sem que ele tenha conseqüência alguma” (JAKOBS, “Terroristen als Personen” [nota 1], nota 9; sem grifos no original). Do ponto de vista aqui adotado, seja qual for o posto de observação, o que se vê com clareza é que esta questão – acerca de se é necessário um direito de exceção – não é que não se quer delinear, e sim que é uma questão jurídico-política sobre a qual cabe ter opiniões diferentes, não um elemento conceitual do direito penal. Conferir a continuação no texto, 4.

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do inimigo a determinados limites mediante sua juridificação107. Como se pode inferir do esboço da evolução político-criminal mais recente exposto nas páginas anteriores, em realidade o problema não consiste num dualismo entre uma concepção normativa (direito penal da culpabilidade: censura jurídica frente a um cidadão) e outra cognitiva (“direito penal” do inimigo: controle duma fonte de perigo) do direito penal. O que sucede é que o “direito penal do inimigo” constitui não uma regressão a meros mecanismos defensistas, senão um desenvolvimento degenerativo no plano simbólico-social do significado da pena e do sistema penal. Os eixos estruturais do “direito penal” do inimigo se transmitem assim – através de argumentações de identificação simbólica – a novos setores de regulação com maior rapidez do que o faria uma argumentação racional com base em riscos mensuráveis; dito de outro modo, o “direito penal” do inimigo contamina com especial facilidade – como um pouco de óleo industrial um meio aquático natural – o direito penal comum108. A regressar ao plano teórico interno do direito penal, esta agenda político-criminal se vê confirmada pelo fato de que o direito penal (do cidadão) não pode absorver (nem conviver com) o discurso defensista-demonizador próprio do “direito penal” do inimigo: se precisamente de uma perspectiva como a do sistema funcional (positivista) desenvolvido por Jakobs, o sistema penal é internamente cego a determinados pressupostos de legitimidade, tampouco pode processar determinados pressupostos fático-cognitivos ao lado dos autores culpáveis mais além dessa culpabilidade. É neste sentido que antes se dizia que no direito penal – uma vez reconhecida a cidadania política geral como base do binômio autonomiaresponsabilidade –, todos os sujeitos imputáveis são cidadãos aos efeitos jurídicopenais, por definição109. O direito penal da culpabilidade não pode tomar nota dum prognóstico de periculosidade individual ou coletivo de determinados autores responsáveis. Não é que não se queira abordar a questão do que fazer com esses autores, é que jurídico-penalmente nada se pode fazer mais além da pena. Isso é assim porque o direito penal mostra uma definição funcional que o restringe à 107 Conferir JAKOBS, Staatliche Strafe (nota 1), pp. 45 e s.; idem, “Terroristen als Personen” (nota 1), IV., texto posterior à nota 25. 108 Isso fica evidente no plano empírico caso se pense nas várias instituições que, a proceder do direito penal antiterrorista, têm sido incorporadas ao direito penal ordinário em caráter geral. Um exemplo com raízes histórica ainda mais profundas é o da regulação dos atos preparatório no Código Penal alemão (JAKOBS, Staatliche Strafe [nota 1], pp. 45 e s.): esta regulação, que supõe uma antecipação de barreiras de criminalização, mostra a facilidade com a que permanece (e, como ocorre neste caso, é ampliada em seu alcance) uma norma devida a um contexto conflitivo (o enfrentamento entre a igreja católica e o chanceler Bismark, chamado Kulturkampf, em fins do século XIX) que pertence a um passado já muito remoto. 109 De fato, JAKOBS segue atualmente (ver ZStW 117 [2005], pp. 247 e ss.) a manter noutros pontos da construção teórica um nível de “resistência normativista” que casa bem com o ponto de vista aqui defendido, e não tanto com a última posição de JAKOBS neste âmbito da periculosidade individual do “inimigo”: como é sabido, os mais recentes avanços nas ciências neurológicas parecem indicar que a vivência subjetiva de “liberdade” na tomada de decisões não passa disso, uma “vivência”, no sentido de que seria uma reconstrução mental de um processo que não começa na decisão, e sim, previamente, num estrato inconsciente da mente (expresso na conhecida frase: “não fazemos o que queremos, e sim queremos o que fazemos”). Para JAKOBS (ZStW 117 [2005], pp. 247 e ss., pp. 259 e ss.), entretanto, que isso seja assim desde o ponto de vista físico é irrelevante, já que com independência da ausência de “liberdade” neurológico-fática, o estabelecimento de responsabilidade (cego a determinados elementos empíricos de “ausência de liberdade”) segue a lógica da imputação a um sujeito definido como competente: “[...] existe correspondência entre autonomia e responsabilidade, não entre livre-arbítrio e responsabilidade” (ZStW 117 [2005], p. 266).

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resposta derivada da culpabilidade: se no direito civil ou no direito eleitoral a personalidade, como é óbvio, é relativa – corresponde o direito de propriedade a quem não pode alienar, por exemplo –, no direito penal, ao se estabelecer com a pena um mecanismo para contradizer afirmações relevantes (pronunciadas pelos autores culpáveis, por aqueles que têm voz neste contexto), todos os sujeitos que intervêm como sujeitos relevantes (como apenados) têm de ser culpáveis: os que não o forem são expulsos do sistema jurídico-penal em sentido estrito (merecem medidas civis ou medidas de segurança), e os que o são só podem aparecer como culpáveis. Neste sentido, inclusive se poderia dizer que num direito penal concebido como reafirmação da vigência da norma, isto é, dirigido estruturalmente a sujeitos responsáveis, não é sempre apenas um direito penal do cidadão, e sim é inclusive o direito do cidadão por antonomásia, já que reconhece do modo mais intenso que o ordenamento conhece a autonomia de organização própria de um cidadão, atando a dor penal aos atos por ele previstos. Não é, assim, que da perspectiva cá adotada não se queira reconhecer o problema dos sujeitos culpáveis perigosos, da ausência de um prognóstico sem reincidência, senão que se afirma que o direito penal apresenta uma barreira de definição que lhe impede catalogar deste modo a determinados sujeitos se, ao mesmo tempo, afirma seu caráter responsável. Dito da perspectiva do direito em seu conjunto; claro que para sua efetividade, para sua vigência real, é necessário certo “apoio cognitivo” – do contrário, não seria mais que uma ordem possível, um sistema normativo postulado, não um direito real. Mas esta é uma condição prévia, extra-sistemática e global (um pré-suposto) – referida à vigência do ordenamento em seu conjunto – do ordenamento jurídico (penal), não uma análise individual interna desse ordenamento, a determinar autor por autor110. 4. A discussão em torno da conveniência de medidas excepcionais além do ordenamento jurídico-penal, portanto, não é uma questão que pertença ao direito penal em sentido estrito, senão um problema de política legislativa. Em todo caso, antes de determinar se parecem materialmente adequadas aquelas opções políticocriminais do “direito penal” do inimigo, há que assinalar a óbvia fraude de etiquetas que supõe a usurpação do rótulo de direito penal por parte das medidas de exceção que conhecemos como “direito penal” do inimigo111; neste sentido, chamar as coisas pelo seu nome tem indubitável importância e, as medidas de exceção deveriam ser identificadas, antes tudo, formalmente como tais. Sem embargo, a entrar a fundo na questão é necessário que um direito de exceção, chame-se como se chama? Como cabe deduzir do breve trajeto pelas linhas básicas da situação político-criminal atual levado a cabo em páginas anteriores, da perspectiva aqui adotada não há no horizonte do “direito penal” do inimigo, em nenhum dos setores, riscos que realmente mereçam o estado de exceção112. Por 110 Paralelamente, GÓMEZ-JARA (“Normatividad del ciudadano versus facticidad del enemigo: sobre la necesaria autoorientación de la normativización jurídico-penal” [manuscrito]), recorda que geralmente, a existência do Estado de direito depende de alguns fatores externos a ele, ou, dito doutro modo, que não se podem garantir com meios jurídicos. 111 É a partir do pequeno detalhe formal de que o ordenamento prevê mecanismos jurídicoconstitucionais específicos paras as medidas de exceção. 112 Do ponto de vista cá adotado, esta constatação não é em absoluto afetado pelo fato que, como conseqüência dos atentados de 11.09.2001 em Nova Iorque, em diversos países se tenha estabelecido uma regulação do estado de necessidade que se pode apresentar quando uma aeronave está no poder de um grupo terrorista que a pode usar como arma ofensiva contra um edifício etc. JAKOBS, ademais (“Terroristen als Personen” [nota 1], III., texto correspondente à nota

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outra parte, no plano da prevenção fática, é sabido que, em numerosos casos, são muito mais efetivos adequados instrumentos políticos e policiais (sem contar com as possibilidades – legais – de serviços de inteligência bem orientados) que a resposta do ordenamento jurídico-penal. Em particular, há que se prestar atenção a determinadas medidas de controle impostas a um infrator culpável com posterioridade à pena privativa de liberdade (distanciamentos, controle de movimentos, e outros), tal como estão a começar por se executar. Em todo caso, do ponto de vista aqui defendido, a questão de se a sociedade preferirá sucumbir113 ou assumir notícias de âmbitos de liberdade e ampliações massivas dos meios de intervenção estatal – em cuja cúspide se encontra a “pena” exacerbada que é a pena draconiana imposta ao inimigo – simplesmente não procede, não se delineia; não se vê abismo algum caso se observe a realidade. É esta, em todo caso, uma apreciação de caráter político-criminal (ainda que queira dar-se outra resposta à questão colocada) que excede a mera descrição ou sistematização. Certamente: “uma sociedade não esclarecida e um direito penal esclarecido não caminham juntos114”. Mas, teremos, afinal, chegado a esse ponto?

18, referido no § 14.3 da Lei alemã da Segurança Aérea; no caso espanhol, ver o artigo 16 d) da LO 5/2005, de 17.11.2005, de Defesa Nacional), afirma que o fato que o ordenamento jurídico autorize ao Estado matar sujeitos completamente inocentes tem uma “força explosiva sistemática” que dificilmente se pode subavaliar: se quem nenhuma responsabilidade possui se pode ver privado da vida, como não se pode aplicar uma pressão especial sobre quem é responsável pela situação? Apesar da aparente força de convicção dessa argumentação, todavia, a comparação não parece correta, já que os títulos de que deriva a intervenção nos bens dos cidadãos afetados são completamente divergentes em ambos os casos: por um lado, se trata de sujeitos que se vêem envolvidos num estado de necessidade muito especial e aos que se impõe uma intervenção gravíssima – sua morte – em seus bens por uma razão típica do estado de necessidade, ante um risco que ameaça: esse é o “título” do dano que se lhes impõe. Por outro lado, sem embargo, no caso dos terroristas, o título é pena – posto que no caso de meros suspeitos, não se pode fazer mais que uma presunção de responsabilidade, e, portanto, não pode haver mais que as medidas cautelares autorizadas pela lei –, a pena que lhes corresponde por haver cometido uma infração criminal no passado. Trata-se, portanto, de um argumentum a maiore ad minus incorretamente formulado, já que os termos de comparação não são homogêneos. 113 JAKOBS, em idem/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, 1ª ed., p. 42; Ver também idem, “Terroristen als Personen” (nota 1), III., texto correspondente à nota 17. 114 JAKOBS, AT2, 2/20; ver, a respeito, PEÑARANDA RAMOS/SUÁREZ GONZÁLEZ/CANCIO MELIÁ, em JAKOBS, Estudios (nota 76), pp. 37 e ss.

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