Tradução de \"O que é a Ciência?\", Samir Okasha.

June 15, 2017 | Autor: Eros Carvalho | Categoria: Philosophy of Science, History of Science, Falsifiability, Demarcation Problem
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O que é a ciência?1 Samir Okasha O que é a ciência? Essa questão pode parecer fácil de responder: todo mundo sabe que assuntos como física, química e biologia fazem parte da ciência, enquanto assuntos como arte, música e teologia não fazem. Mas quando, como filósofos, perguntamos o que é a ciência, este não é o tipo de resposta que queremos. Não estamos pedindo por uma mera lista de atividades que são geralmente chamadas de 'ciência'. Antes, estamos perguntando qual característica comum todas as coisas nesta lista compartilham, i.e., o que é que faz algo uma ciência. Entendida desta maneira, nossa questão não é trivial. Mas você ainda pode pensar que a questão é relativamente direta. Não é a ciência certamente a tentativa de entender, explicar e predizer o mundo em que vivemos? Essa é sem dúvida uma resposta razoável. Mas ela é a história toda? Ademais, as várias religiões também tentam entender e explicar o mundo, mas a religião não é geralmente considerada como um ramo da ciência. De modo semelhante, a astrologia e a adivinhação são tentativas de predizer o futuro, mas a maioria das pessoas não descreveria essas atividades como ciência. Ou considere a história. Historiadores tentam entender e explicar o que aconteceu no passado, mas a história é geralmente classificada como uma arte, não como uma ciência. Como muitas questões filosóficas, a questão 'o que é a ciência' se torna mais complicada do que parece a primeira vista. Muitas pessoas acreditam que as características distinguidoras da ciência estão nos métodos particulares que os cientistas usam para investigar o mundo. Essa sugestão é bastante plausível, pois muitos cientistas empregam métodos distintos de pesquisa que não são encontrados em disciplinas não-científicas. Um exemplo óbvio é o uso de experimentos, que, historicamente, marca um momento decisivo no desenvolvimento da ciência moderna. Todavia, nem todas as ciências são experimentais – astrônomos obviamente não podem fazer experimentos com o céu, mas têm de se contentar com observações cuidadosas. O mesmo é verdadeiro de muitas ciências sociais. Outra característica importante da ciência é a construção de teorias. Os cientistas não registram simplesmente os resultados de experimentos e observação num longo livro – eles geralmente desejam explicar esses resultados em termos de uma teoria geral. Isto não é sempre fácil de se fazer, mas tem havido algum sucesso notável. Um dos problemas centrais da filosofia da ciência é entender como técnicas tais como a experimentação, a observação e a construção teórica habilitaram os cientistas a desvendar tantos segredos da natureza. 1

Primeiro capítulo de Okasha, Samir. Philosophy of Science: a very short introduction. Oxford University Press, 2002. Tradução de Eros Carvalho (UFRGS, 2014) para fins meramente didáticos.

As origens da ciência moderna Nas escolas e universidades de hoje, a ciência é ensinada de uma maneira amplamente a-histórica. Os livros-textos apresentam as ideias centrais de uma disciplina científica de uma forma tão conveniente quanto possível, com pouca menção ao longo e frequentemente tortuoso processo histórico que levou a sua descoberta. Como uma estratégia pedagógica, isto faz muito sentido. Mas alguma apreciação da história das ideias científicas é útil para a compreensão de questões que interessam aos filósofos da ciência. Na verdade, como veremos no capítulo 5, tem-se argumentado que uma atenção redobrada à histórica da ciência é indispensável para fazer boa filosofia da ciência. As origens da ciência moderna se deram em um período de desenvolvimento científico rápido que ocorreu na Europa entre os anos 1500 e 1750, ao qual agora nos referimos como revolução científica. Certamente buscou-se as investigações científicas também nos períodos antigo e medieval – a revolução científica não veio de lugar nenhum. Nesses períodos anteriores, a visão de mundo dominante era o Aristotelismo, nomeada assim depois do filósofo grego antigo Aristóteles, que desenvolveu teorias detalhadas na física, biologia, astronomia e cosmologia. Mas as ideias de Aristóteles pareceriam muito estranhas a um cientista moderno, assim como os seus métodos de pequisa. Para tomar um exemplo, ele acreditava que todos os corpos terrestres eram compostos apenas de quatro elementos: terra, fogo, ar e água. Essa visão está obviamente em desacordo com o que a química moderna nos diz. O primeiro passo crucial no desenvolvimento da visão de mundo da ciência moderna foi a revolução copernicana. Em 1542, o astrônomo polonês Nicolai Copérnico (1473-1543) publicou um livro atacando o modelo geocêntrico do universo, o qual colocava a Terra estacionária no centro do universo com os planetas e o sol orbitando em torno dela. A astronomia geocêntrica, também conhecida como astronomia ptolomaica posteriormente ao astrônomo grego Ptolomeu, encontra-se no coração da visão de mundo aristotélica, e permaneceu amplamente inalterada por 1800 anos. Porém, Copérnico sugeriu uma alternativa: o sol era o centro fixo do universo e os planetas, incluindo a Terra, estariam orbitando em torno do sol. Nesse modelo heliocêntrico, a Terra é considerada apenas outro planeta e, assim, perde o seu estatuto único que tradicionalmente lhe fora atribuído. A teoria de Copérnico inicialmente encontrou muita resistência, não apenas da Igreja Católica, que a considerou como conflitante com as escrituras e em 1616 baniu os livros que defendiam o movimento da Terra. Mas dentro de 100 anos a teoria copernicana tornou-se ortodoxia científica estabelecida.

A inovação de Copérnico não apenas levou a uma melhor astronomia. Indiretamente, ela levou ao desenvolvimento da física moderna através dos trabalhos de Kepler (1571-1630) e de Galileu Galilei (1564-1642). Kepler descobriu que os planetas não se movem em órbitas circulares em torno do sol, como Copérnico pensou, mas ao invés em elipses. Essa foi a sua 'primeira lei' crucial do movimento planetário; suas segunda e terceira leis especificam as velocidades com as quais os planetas orbitam o sol. Tomadas em conjunto, as leis de Kepler fornecem uma teoria planetária muito superior às que foram antes desenvolvidas, resolvendo problemas que desconsertaram os astrônomos por séculos. Galilei foi ao longo da sua vida um defensor da teoria copernicana, e um dos primeiros pioneiros do telescópio. Quando ele apontou o seu telescópio para os céus, ele fez uma série de incríveis descobertas, incluindo as montanhas da lua, um grande número de estrelas, manchas solares e as luas de Júpiter. Todas elas estavam em franco conflito com a cosmologia aristotélica, e desempenharam um papel essencial na conversão da comunidade científica à teoria copernicana. A contribuição mais duradoura de Copérnico, entretanto, reside não na astronomia, mas na mecânica, onde ele refutou a teoria de Aristóteles de que corpos pesados caem mais rápido do que os mais leves. No lugar dessa teoria, Galileu fez a sua sugestão contra-intuitiva de que todos os corpos em queda livre caem em direção à Terra na mesma velocidade, independente do seu peso. (claro que, na prática, se você solta uma pena e uma bala de canhão da mesma altura, a bala de canhão irá cair no chão primeiro, mas Galileu argumenta que isso se devia apenas à resistência do ar – em um vácuo, elas cairiam no chão juntas). Além disso, ele argumentou que a queda livre dos corpos acelera uniformemente, i.e., obtém incrementos iguais de velocidades em intervalos iguais; isto é conhecido como a lei de Galileu da queda livre. Galileu forneceu evidência persuasiva, embora não totalmente conclusiva, para essa lei, a qual constituiu a peça central da sua teoria da mecânica. Galileu é geralmente considerado o primeiro físico verdadeiramente moderno. Ele foi o primeiro a mostrar que a linguagem dos matemáticos pode ser usada para descrever o comportamento dos objetos reais no mundo material, tais como corpos em queda, projéteis, etc. Para nós isso parece óbvio – teorias científicas de hoje são rotineiramente formuladas em linguagem matemática, não apenas nas ciências físicas, mas também na biologia e na economia. Mas no tempo de Galileu não era óbvio: matemática era amplamente considerada como lidando com entidades puramente abstratas, e, portanto, inaplicável à realidade física. Outro aspecto inovador do trabalho de Galileu

foi a sua ênfase na importância de testar hipóteses experimentalmente. Ao cientista moderno, novamente, isto pode parecer óbvio. Mas na época em que Galileu trabalhava, a experimentação não era geralmente considerada como um meio confiável para obter conhecimento. A ênfase de Galileu nos testes experimentais marca o começo de uma abordagem empírica do estudo da natureza que continua até hoje. O período que se seguiu após a morte de Galileu viu a revolução científica rapidamente ganhar impulso. O filósofo francês, matemático e cientista René Descartes (1596-1650), desenvolveu uma nova 'filosofia mecanicista' radical, de acordo com a qual o mundo físico consiste simplesmente de partículas inertes de matéria interagindo e colidindo umas com as outras. As leis governando o movimento dessas partículas ou 'corpúsculos' seriam a chave para entender a estrutura do universo copernicano, acreditava Descartes. A filosofia mecânica prometia explicar todos os fenômenos observáveis em termos de movimento desses corpúsculos insensíveis e inertes, e rapidamente se tornou a visão científica dominante na segunda metade do século XVII; em alguma medida, ela ainda está conosco hoje. Versões da filosofia mecanicista foram expostas por figuras como Huygens, Gassendi, Hooke, Boyle e outros; sua aceitação difundida marcou o final da queda da visão de mundo aristotélica. A revolução científica culminou na obra de Isaac Newton (1643-1727), cujas descobertas permanecem sem paralelo na história da ciência. A obra prima de Newton foi o seu Mathematical Principles of Natural Philosophy, publicada em 1687. Newton concordou com os filósofos mecanicistas que o universo consiste simplesmente de partículas em movimento, mas buscou melhorar as leis de Descartes do movimento e da colisão. O resultado foi uma teoria dinâmica e mecânica de grande poder, baseada em torno das três leis de Newton do movimento e do seu princípio famoso da gravitação universal. De acordo com esse princípio, todo corpo no universo exerce uma atração gravitacional sobre qualquer outro corpo; a força de atração entre os corpos depende do produto de suas massas e da distância entre eles elevada ao quadrado. As leis do movimento, então, especificaram como essa força gravitacional afeta os movimentos dos corpos. Newton elaborou a sua teoria com grande precisão e rigor matemático, inventando uma técnica matemática que agora chamamos 'cálculo'. Notavelmente, Newton foi capaz de mostrar que as leis de Kepler do movimento planetário e a lei de Galileu da queda livre (ambas com certas modificações menores) eram consequências lógicas das suas leis de movimento e gravitação. Em outras palavras, as mesmas leis explicariam o movimento dos corpos tanto no domínio terrestre quanto no domínio celeste e foram formuladas por Newton em uma forma quantitativa precisa.

A física newtoniana forneceu o pano de fundo para a ciência dos próximos 200 anos ou mais, substituindo rapidamente a física cartesiana. A confiança científica cresceu rapidamente nesse período, em grande medida devido ao sucesso da teoria de Newton, na qual se acreditou amplamente como tendo revelado os trabalhos verdadeiros da natureza e como sendo capaz de explicar tudo, ao menos em princípio. Tentativas detalhadas foram feitas para estender o modo de explicação newtoniano para mais e mais fenômenos. Os séculos XVIII e XIX viram ambos avanços científicos notáveis, particularmente no estudo da química, ótica, energia, termodinâmica e eletromagnetismo. Mas, na maior parte, esses desenvolvimentos foram considerados abrangidos pela concepção newtoniana mais ampla do universo. Os cientistas aceitaram a concepção newtoniana como essencialmente correta; tudo o que restou a ser feito era preencher os detalhes. A confiança na imagem newtoniana foi destruída nos primeiros anos do século XX, graças a dois desenvolvimentos revolucionários na física: a teoria da relatividade e a mecânica quântica. A teoria da relatividade, descoberta por Einstein, mostrou que a mecânica newtoniana não fornece os resultados corretos quando aplicada a objetos de massa muito grande ou a objetos se movimentando a velocidades muito elevadas. A mecânica quântica, reciprocamente, mostrou que a teoria newtoniana não funciona quando aplicada a uma escala muito pequena, de partículas subatômicas. Tanto a teoria da relatividade quanto a mecânica quântica, especialmente a última, são teorias muito estranhas e radicais, e fazem afirmações sobre a natureza da realidade que muitas pessoas acham difícil de aceitar ou mesmo de entender. A emergência delas causou uma perturbação conceitual considerável na física, que continua até os dias de hoje. Até agora a nossa breve descrição da história da ciência ficou principalmente na física. Isto não é um acidente, pois a física é ao mesmo tempo historicamente muito importante e, em um sentido, a mais fundamental de todas as ciências. Os objetos que as outras ciências estudam são eles mesmos feitos de entidades físicas. Considere a botânica, por exemplo. Os botânicos estudam plantas, que são em última instância compostos de moléculas e átomos, que são partículas físicas. Assim a botânica é obviamente menos fundamental do que a física – embora isso não significa dizer que ela é menos importante. Este é um ponto ao qual retornaremos no capítulo 3. Mas mesmo uma breve descrição da origem da ciência moderna seria incompleta se omitisse a menção às ciências nãofísicas. Na biologia, o evento que se destaca é a descoberta de Charles Darwin da teoria da evolução por seleção natural, publicada em A origem das Espécies, em 1859. Até então acreditou-se amplamente que as diferentes espécies foram separadamente criadas por Deus, como o livro do Gêneses ensina.

Mas Darwin argumentou que as espécies contemporâneas de fato evoluíram de outros acentrais, através de um processo conhecido como seleção natural. A seleção natural ocorre quando alguns organismos geram mais descendentes do que outros, dependendo de suas características físicas; se essas características são então herdadas pelos seus descendentes, ao longo do tempo a população se tornará mais e mais adaptada ao ambiente. Embora esse processo seja simples, em um amplo número de gerações, ele pode causar uma espécie a evoluir em uma outra totalmente nova, argumentou Darwin. A evidência apresentada por Darwin era tão persuasiva que a sua teoria foi aceita como ortodoxia científica no começo do século XX, a despeito da oposição teológica considerável. Trabalhos subsequentes forneceram confirmação notável da teoria de Darwin, a qual compõe a peça central da visão de mundo da biologia moderna. O século XX testemunhou outra revolução na biologia que ainda não se completou: a emergência da biologia molecular, em particular a genética molecular. Em 1953, Watson e Crick descobriram a estrutura do DNA, o material hereditário que transforma os genes em células das criaturas vivas. A descoberta de Watson e Crick explica como a informação genética pode ser copiada de uma célula para outra e assim passada adiante de pai para filho, explicando assim por que o descendente tende a assemelhar-se aos seus pais. A descoberta abriu uma excitante nova área da pesquisa biológica. Nos 50 anos seguintes desde o trabalho de Watson e Crick, a biologia molecular desenvolveu-se rapidamente, transformando o nosso entendimento da hereditariedade e de como os genes constituem os organismos. A tentativa recente de fornecer uma descrição no nível molecular do conjunto completo dos genes em um ser humano, conhecido como o Projeto Genoma Humano, é uma indicação de quão longe a biologia molecular foi. O século XXI verá desenvolvimentos excitantes neste campo. Mais recursos foram dedicados à pesquisa científica nos últimos cem anos do que tinha sido antes. Um resultado foi a explosão de novas disciplinas científicas, tais como a ciência da computação, a inteligência artificial, a linguística e a neurociência. Possivelmente o evento mais significativo nos últimos 30 anos foi o surgimento da ciência cognitiva, a qual estuda vários aspectos da cognição humana tais como a percepção, a memória, a aprendizagem e transformou a psicologia tradicional. Muito do ímpeto da ciência cognitiva vem da ideia de que a mente humana em alguns aspectos é similar a um computador e, assim, que os processos humanos mentais podem ser entendidos comparando-os com as operações que os computadores realizam. A ciência cognitiva está ainda na sua infância, mas promete revelar muito sobre o funcionamento da mente. As ciências sociais, especialmente a economia e a sociologia, floresceram no século XX, embora muitos acreditam que elas ainda estão atrás das ciências naturais em termos de sofisticação e rigor. Essa é uma questão

que retomaremos no capítulo 7. O que é a filosofia da ciência?

A principal tarefa da filosofia da ciência é analisar os métodos de pesquisa usados nas várias ciências. Você pode se perguntar porque essa tarefa cabe aos filósofos ao invés dos próprios cientistas. Essa é uma boa questão. Parte da resposta é que olhar para a ciência a partir de uma perspectiva filosófica nos permite sondar mais fundo – revelando assunções que estão implícitas na prática científica, mas que os cientistas não discutem explicitamente. Para ilustrar, considere a experimentação científica. Suponha que um cientista faça um experimento e obtenha um resultado particular. Ele repete o experimento algumas vezes e continua obtendo o mesmo resultado. Depois disso, ele provavelmente parará, confiante de que se continuasse repetindo o experimento, sob exatamente as mesmas condições, ele continuaria obtendo o mesmo resultado. Essa assunção pode parecer óbvia, mas como filósofos queremos questioná-la. Por que assumir que repetições futuras de um experimento darão o mesmo resultado? Como sabemos que isto é verdadeiro? É improvável que o cientista gaste muito tempo ponderando estas questões de certo modo curiosas: ele provavelmente tem algo melhor para fazer. Elas são essencialmente questões filosóficas, as quais retornaremos no próximo capítulo. Assim, parte do trabalho da filosofia da ciência é questionar assunções que os cientistas tomam como certas. Mas seria errôneo sugerir que os cientistas nunca discutem questões filosóficas eles mesmos. Na verdade, historicamente, muitos cientistas tiveram um papel importante no desenvolvimento da filosofia da ciência. Descartes, Newton e Einstein foram exemplos proeminentes. Todos eles estavam profundamente interessados em questões filosóficas acerca de como a ciência deve proceder, quais métodos de investigação ela deve usar, quanta confiança nós devemos depositar nesses métodos, se há limites para o conhecimento científico e assim por diante. Como veremos, essas questões ainda se encontram no coração da filosofia contemporânea da ciência. Assim, as questões que interessam aos filósofos da ciência não são 'meramente filosóficas'; ao contrário, elas ocuparam a atenção de alguns dos maiores cientistas. Tendo dito isso, deve ser admitido que muitos cientistas hoje têm pouco interesse na filosofia da ciência e sabem pouco a seu respeito. Embora isso seja lamentável, isto não é uma indicação de que as questões filosóficas não são mais relevantes. É muito mais uma consequência da natureza crescentemente especializada da ciência e da polarização entre as ciências e as humanidades que caracteriza o sistema de educação moderno.

Você pode estar ainda se perguntando sobre o que a filosofia da ciência é no final das contas. Pois dizer que ela 'estuda os métodos da ciência', como dizemos acima, não é realmente dizer muito. Ao invés de tentar fornecer uma definição mais informativa, consideraremos diretamente um problema típico da filosofia da ciência. Ciência e pseudociência. Retomemos a questão com a qual começamos: o que é a ciência? Karl Popper, um influente filósofo da ciência do século XX, pensou que a característica fundamental de uma teoria científica é que ela deve ser falsificável. Chamar uma teoria de falsificável não é dizer que ela é falsa. Antes, significa que a teoria faz algumas predições definidas que são capazes de ser testadas contra a experiência. Se essas predições se mostram erradas, então a teoria foi falsificada ou refutada. Assim, uma teoria falsificável é uma que podemos descobrir ser falsa – ela não é compatível com todo curso possível da experiência. Popper pensou que algumas teorias supostamente científicas não satisfazia essa condição e, por isso, não merecia ser chama de ciência de modo algum; ao contrário, elas eram meramente pseudociências. A teoria psicanalítica de Freud foi um dos exemplos favoritos de Popper de pseudociência. De acordo com Popper, a teoria de Freud poderia ser reconciliada com quaisquer descobertas empíricas. Qualquer que fosse o comportamento do paciente, os freudianos poderiam encontrar uma explicação dele em termos de sua teoria – eles jamais admitiriam que a teoria deles estava errada. Popper ilustrou esse ponto com o seguinte exemplo. Imagine um homem que empurra uma criança em um rio com a intenção de matá-la e outro homem que sacrifica a sua vida para salvar a criança. Os freudianos podem explicar os comportamentos de ambos os sujeitos com igual facilidade: o primeiro estava reprimido e o segundo alcançou a sublimação. Popper argumento que através do uso de conceitos como repressão, sublimação e desejos inconscientes, a teoria de Freud poderia ser feita compatível com qualquer dado clínico e, assim, ela era infalsificável. O mesmo era verdadeiro da teoria de Marx da história, Popper sustentou. Marx afirmou que em sociedades industrializadas em torno do mundo, o capitalismo daria lugar ao socialismo e finalmente ao comunismo. Mas quando isto não aconteceu, ao invés de admitir que a teoria de Marx estava errada, os marxistas inventaram uma explicação ad hoc de por que o que aconteceu estava perfeitamente consistente com a teoria deles. Por exemplo, eles poderiam dizer que o progresso inevitável ao comunismo foi temporariamente retardado pelo surgimento do Estado de bem-estar

social, o qual 'suavizou' o proletariado e enfraquecei o seu ardor revolucionário. Desta maneira, a teoria de Marx poderia ser feita compatível com qualquer curso possível de ventos, assim como a de Freud. Assim, nenhuma das teorias qualifica como genuinamente científica, de acordo com o critério de Popper. Popper contrastou as teorias de Freud e Marx com a teoria de Einstein da gravitação, também conhecida como relatividade geral. Diferentemente das teorias de Freud e Marx, a teoria de Einstein fez uma predição muito precisa: os raios luminosos de estrelas distantes seria defletidos pela campo gravitacional do sol. Normalmente, esse efeito seria impossível de observar – exceto durante um eclipse solar. Em 1919, o astrofísico inglês Sir. Arthur Eddington organizou duas expedições para observar o eclipse solar do ano, uma para o Brasil e outra para a ilha do Príncipe, longe da costa atlântica da África, com o objetivo de testar a predição de Einstein. As expedições observaram que os raios luminosos foram de fato refletidos pelo sol, quase exatamente na importância que Einstein tinha previsto. Popper ficou muito impressionado por isso. A teoria de Einstein fez uma previsão definida e precisa, que foi confirmada pelas observações. Caso se tivesse verificado que os raios luminosos não defletiram pelo sol, isso teria mostrado que Einstein estava errado. Assim a teoria de Einstein satisfaz o critérios de falsificabilidade. A tentativa de Popper de demarcar a ciência da pseudociência é intuitivamente bastante plausível. Há certamente algo suspeito numa teoria que pode ser forçada a se ajustar a quaisquer dados empíricos. Mas alguns filósofos consideram o critério de Popper como abertamente simplista. Popper criticou freudianos e marxistas por explicar como irrelevante qualquer dado que parece conflitar com suas teorias, ao invés de aceitar que as teorias foram refutadas. Isto certamente parece um procedimento suspeito. Entretanto, há evidência de que esse procedimento é rotineiramente usado por cientistas “respeitáveis” - os quais Popper não gostaria de acusar como engajando em pseudociência – e que levaram a descobertas científicas importantes. Outro exemplo da astronomia pode ilustrar isto. A teoria gravitacional de Newton, da qual falamos antes, fez predições sobre a trajetória que os planetas deveriam seguir enquanto orbitam em torno do sol. Na maior parte, essas predições foram corroboradas pela observação. Entretanto, a órbita observada de Urano diferiu consideravelmente do que a teoria de Newton previu. Esse quebracabeça foi resolvido em 1846 por dois cientistas, Adams, na Inglaterra, e Leverrier, na França, trabalhando independentemente. Eles sugeriram que havia outro planeta, ainda não descoberto, exercendo uma força gravitacional adicional sobre Urano. Adams e Leverrier foram capazes de calcular a massa e a posição que esse planeta deveria ter para que a sua atração gravitacional fosse

responsável pelo comportamento estranho de Urano. Pouco depois, o planeta Netuno foi descoberto quase exatamente onde Adams e Leverrier previram. Agora claramente não devemos criticar o comportamento de Adams e Leverrier como não-científico – pois ele levou à descoberta de um novo planeta. Mas eles fizeram precisamente o que Popper criticou que os marxistas estavam fazendo. Eles começaram com uma teoria – a teoria da gravidade de Newton – que fez uma predição incorreta sobre a órbita de Urano. Ao invés de concluir que a teoria de Newton estava errada, eles mantiveram a teoria e tentaram explicar as observações conflitantes postulando um novo planeta. De modo semelhante, quando o capitalismo não mostrou nenhum signo de que estava dando lugar ao comunismo, os marxistas não concluíram que a teoria de Marx deveria estar errada, mas mantiveram a teoria e tentaram explicar as observações conflitantes de outras maneiras. Assim, não é claramente injusto acusar os marxistas de fazer pseudociência se permitimos que o que Adams e Leverrier fizeram conta como boa, na verdade exemplar, ciência? Isso sugere que a tentativa de Popper de demarcar ciência da pseudociência não pode ser completamente correta, a despeito da sua plausibilidade inicial. Pois o exemplo de Adams/Leverrier não é atípico. Em geral, cientistas não abandonam as suas teorias sempre que elas entram em conflito com os dados observacionais. Geralmente, eles procuram por maneiras de eliminar o conflito sem ter de abandonar sua teoria; este é um ponto que retomaremos no capítulo 5. E é importante relembrar que virtualmente toda teoria científica conflita com algumas observações – encontrar uma teoria que se ajusta a todos os dados perfeitamente é muito difícil. Obviamente, se uma teoria conflitua com mais e mais dados persistentemente, e nenhuma maneira plausível de explicar o conflito é encontrada, a teoria eventualmente terá de ser rejeitada. Mas pouco progresso seria feito se os cientistas simplesmente abandonassem suas teorias no primeiro sinal de dificuldade. A falha do critério de demarcação de Popper lança uma importante questão. É realmente possível encontrar alguma características comum compartilhada por todas as coisas que chamamos de 'ciência' e não compartilhada por nada mais? Popper assumiu que a resposta a essa questão era que sim. Ele sentia que as teorias de Freud e Marx eram claramente não-científicas, assim deveria haver algumas características que lhes faltavam e que teorias científicas genuínas possuem. Mas se aceitamos ou não a avaliação negativa de Popper de Freud e Marx, a sua assunção de que a ciência tem uma 'natureza essencial' é questionável. Ademais, a ciência é uma atividade heterogênea, englobando um amplo espectro de diferentes disciplinas e teorias. Pode ser que elas compartilhem algum conjunto fixo de características que definem o que é ser uma ciência, mas pode ser que não.

O filósofo Ludwig Wittgenstein argumentou que não há um conjunto fixo de características que definem o que é ser um 'jogo'. Ao invés, há um aglomerado vago de características que definem o que é ser um 'jogo'. Mais precisamente, há um aglomerado vago de características a maioria das quais são possuídas pela maioria dos jogos. Mas qualquer jogo particular pode não ter qualquer das características do aglomerado e ainda ser um jogo. O mesmo pode ser verdadeiro da ciência. Se for assim, um critério simples para demarcar ciência da pseudociência é improvável de ser encontrado.

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