Tradução - Direito penal do inimigo: quimera dogmática ou modelo orientado para o futuro? (Karolina Víquez A.)

June 1, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Direito Penal, DERECHO PENAL, Direito Penal Do Inimigo
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DIREITO PENAL DO INIMIGO: QUIMERA DOGMÁTICA OU MODELO ORIENTADO PARA O FUTURO?1 CRIMINAL LAW FOR THE ENEMY: DOGMATIC CHIMERA OR AN ORIENTED-MODEL TO THE FUTURE?

Karolina Víquez A. Doutoranda pela Universidade de Hamburgo

Traduzido por: Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira+

Resumo: No presente ensaio faz-se uma breve exposição das principais características que compõem o que o professor Günther Jakobs denomina de direito penal do inimigo. Para isso, é contraposto o referido direito ao conceito de utopia, com o objetivo de descobrir se o direito penal do inimigo é uma mera descrição composta por elementos irreais ou, pelo contrário, se poderia se constituir como um modelo futuro para a manutenção da segurança da sociedade. Por fim, é pontuada a necessidade de uma reflexão sobre o futuro do direito penal do inimigo à mercê da proteção de perigos e não de liberdades. Palavras-chave: Direito penal do inimigo; Estado democrático de direito; Segurança, perigo e liberdade. Abstract: The following essay discusses the concept of “Law for the Enemy” by Professor Gunther Jakobs. In the ensuing discussion the term “Law for the Enemy” is compared with the term “Chimera” in order to examine if by “Law for the Enemy” a description is meant, consisting of unreal elements put together, or if in stark contrast to that, it could develop into a future model in favor of the assurance of the security of the citizens. In the end the necessity of dealing with “Law for the Enemy” is underlined, provided that is serves to avert dangers instead of liberty. Keywords: Criminal law for the enemy; Constitutional State of law; Security, danger and liberty.

Introdução 1

Traduzido do espanhol (Derecho Penal Del Enemigo: ¿Una Quimera Dogmática O Un Modelo Orientado Al Futuro?), com autorização expressa e gentil da autora, para o português e publicação exclusiva na Panóptica. + Editor de Panóptica; Bacharelando em Direito pelas Faculdades de Vitória, FDV, Brasil.

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O vocábulo quimera ou quimérico é utilizado metaforicamente para descrever coisas que têm características advindas de distintas fontes. Por exemplo, na mitologia grega quimera é um monstro mítico com partes de cabra, de leão e de serpente: uma criatura monstruosa criada por diversos inimigos. Deste modo, atualmente o termo quimera é popularmente conhecido como algo que se propõe à imaginação como possível ou verdadeiro, sem que o seja; de se dizer, é uma utopia. No desenvolvimento deste ensaio, pretende-se, de forma geral, expor quais as semelhanças entre os conceitos citados e o conjunto de enunciados considerados válidos para o estudo do que hoje se conhece por direito penal do inimigo. Para poder entender essa relação, o direito penal do inimigo será, em um primeiro momento, descrito como uma quimera, de modo a assinalar os seus principais atributos, a sua intenção de proteger a sociedade de um perigo iminente, os métodos pelos quais tal direito pretende eliminar o inimigo, o objeto para fazê-lo e seus efeitos negativos. Desde logo será questionado o conceito de quimera como utopia e/ou engano, resposta à qual se chegará por meio de uma breve descrição do fenômeno de “expansão do direito penal”. Em um segundo momento, estudar-se-á possibilidade de situar o direito penal do inimigo como um modelo futuro, suas conseqüências imediatas e sua diferenciação em relação ao direito penal vigente, o que permitirá, pelo menos de forma geral, terse uma perspectiva de como o mesmo se tem desenvolvido e das diferentes concepções dogmáticas que o integram. Em um terceiro momento e por fim, referirse-á ao papel do Estado de Direito na discussão do direito penal do inimigo e a interação entre política, inimizade (aversão) e guerra como conceitos inseparáveis, de modo a estabelecer os elementos necessários para fornecer a resposta à pergunta que motiva a realização do presente ensaio. 1. Descrição da quimera O conceito de direito penal do inimigo foi introduzido por Günther Jakobs em um congresso ocorrido em Frankfurt no ano de 1985, no contexto de uma reflexão sobre a tendência na Alemanha sobre a “criminalização anterior a uma lesão” do bem jurídico. Nesta exposição, Jakobs manifesta a necessidade de separar em casos excepcionais o direito penal do inimigo do direito penal dos cidadãos com o fim de conservar o Estado liberal; tese esta que naquele momento não teve maiores repercussões. Em 1999, em um Congresso realizado em Berlim, o conceito de direito penal do inimigo surgiu novamente, a partir de uma reflexão em relação aos delitos graves contra bens jurídicos individuais. A reação crítica provocada entre os juristas alemães após a intervenção feita por Jakobs neste último Congresso2, principalmente em virtude da diferenciação que o autor propõe entre o direito penal do cidadão dirigido a pessoas e o direito penal do inimigo destinado a não-pessoas e que é, de acordo com Jakobs, necessário para combater, por exemplo, o terrorismo.

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JAKOBS, Günther. “La autocomprensión de la ciencia del Derecho penal ante los desafíos del presente”. Traduzido para o espanhol por MANSO, Teresa. Em: ESER, Albin; HASSEMER, Winfried; BURKHARDT, Björn (Coordenadores alemães). La Ciencia del Derecho Penal Ante El Nuevo Milenio. Coordenador: CONDE MUÑOZ, Francisco. Valencia: Tirant lo blanch, 2004, p. 53-64, p.53.

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Para poder descrever o direito penal do inimigo como uma quimera, devemos começar por assinalar quais os atributos que ele possui que são procedentes de fontes distintas. Em primeiro lugar, na primeira fase da reflexão (1985), o direito penal do inimigo é composto por aqueles tipos penais que antecipam a punibilidade a atos que têm o caráter de preparatórios para acontecimentos futuros. Tais tipos penais não se incluem na pretensão do direito penal da “normalidade”, haja vista que lhes falta a lesão ao bem jurídico, a punibilidade encontra fundamento apenas na periculosidade do autor manifestada em uma ação dirigida à realização de um fato futuro. Neste mesmo contexto, Jakobs pretende explicar a existência de ditos tipos penais ao indicar o inciso II do artigo 30 do Código Penal alemão (StGB3), o qual se refere à tentativa de participação, uma vez que para o autor mencionado há uma contradição entre os princípios gerais do Código Penal alemão e o mencionado inciso II. É neste ponto que Jakobs passa a denunciar o papel do Estado de direito em relação à descrição do direito penal do inimigo. Por isso ele cita o artigo 30, vez que considera que uma delimitação clara de atos preparatórios e da tentativa punível constitui um postulado de primeira classe entre os próprios postulados de um “Estado de Direito4”. Para Jakobs, em um Estado de direito não se pode responsabilizar o indivíduo pelo que lhe é inerente, e, com isso, não se refere apenas à liberdade de pensamento, mas também a todo o “âmbito privado5”. Assim, de modo geral, este modelo reflete o 3

Jakobs cita o artigo 30 (§ 30) do Código penal alemão (StGB): “Tentativa de participación (1) Quien intente persuadir a otro para cometer un crimen o instigarlo a ello, será castigado conforme a las disposiciones relativas a tentativa del crimen. Sin embargo, se debe atenuar la pena según el § 49, párrafo 1.º Se aplicará análogamente el § 23, apartado 3.º (2) Del mismo modo será castigado quien se declare dispuesto, quien acepte el ofrecimiento de otro o quien concierte con otro para cometer un crimen o lo instigue a esto”. CÓDIGO PENAL ALEMÃO (StGB) de 15 de maio de 1871, com a sexta Reforma de 26 de janeiro de 1998. Traduzido para o espanhol por LÓPEZ DÍAZ, Claudia. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1999, p.63. Jakobs assinala que: “La punibilidad de la preparación del delito a través de la figura de la tentativa de participación degrada el límite de la tentativa, en todos los delitos graves (§ 12, apartado 1.º StGB) que son preparados en calidad de autores o de inductores por una pluralidad de personas, a la categoría de un límite relativo al marco de la pena, de importancia más bien secundaria; sin embargo, ello es aceptado como si fuese compatible con el sentido de una estricta delimitación de la tentativa punible. Valga esto como ejemplo de la mencionada ‘carencia de principios’”. JAKOBS, Günther. “Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtsgutsverletzung“. ZStW97, 1985, p. 751-785, p.752. Aqui é citada como parâmetro a tradução para o espanhol de: JAKOBS, Günther. Criminalización en el estadio previo a la lesión de un bien jurídico. Traducido por PEÑARANDA RAMOS, Enrique. Madrid: Civitas, 1997, p. 293-324, p.294. Para Jakobs o conceito de consumação é apenas formal, a “consumación se va a orientar a la formulación del tipo, no a criterios materiales, y en correspondencia con ello resulta materialmente inseguro determinar ya en términos generales que es el estadio previo”. JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 751. 4 “En casi todos los comentarios de la parte general del StGB (Código Penal Alemán) se califica la delimitación de la tentativa punible como un postulado de primer rango del Estado de derecho”. JAKOBS, Günther. “Kriminalisierung”, p.752. Neste mesmo sentido, Prittwitz assinala que “el Jakobs de 1985 mantuvo como el reconocimiento al ciudadano de una esfera de libertad frente al Estado, (y esto) constituye uno de los presupuestos que definen al Derecho penal propio de un Estado liberal y garantista, es decir, de un Estado de Derecho”. PRITTWITZ, Cornelius. “Derecho penal del enemigo: análisis crítico o programa del derecho penal”. Em: MIR PUIG, Santiago; CORCOY BIDASOLO, Mirentxu (diretores). La política criminal en Europa. Barcelona: Atelier, 2004, p.107-119, p.107. 5 “La ley puede recortar, ciertamente, del ámbito privado lo que corresponde a un comportamiento abstractamente peligroso, pero esto tiene que suceder sin tomar en cuenta el contexto de planificación del sujeto”. JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 773.

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ceticismo da sociedade diante um perigo. Daí que, por exemplo, por meio de tais tipos penais sejam criminalizados comportamentos que representem a pertença a uma organização criminosa, de se dizer, que representem perigo social. Para esse autor, a doutrina penal como proteção de bens jurídicos não contribui para a limitação da “antecipação da punibilidade6”, e sim “induz a crer na legitimação de todo aquele que pode ser colocado em uma relação positiva com o conceito de bem jurídico. O que razoavelmente se pode qualificar como um ataque perigoso a um bem jurídico tem que ser, ao que parece, socialmente nocivo, caso se pretenda definir o estado de integridade da sociedade a partir da intangibilidade dos bens jurídicos7”. Nesta alheta, desde a proteção de tais bens, “o sujeito ativo da conduta é definido apenas pelo fato de que pode vir a constituir um perigo para o bem jurídico, ao que se acrescente de que cabe antecipar potencialmente sem qualquer limite o início de tal perigo8”. Seguindo essa tese, a função da pena como eliminação de um perigo se justifica, haja vista que o sujeito ativo da conduta, observado de modo limitado, desde a proteção de bens jurídicos, é concebido apenas como “fonte de perigo”. Tal seria o segundo atributo, aqui traçado, do direito penal do inimigo. O sujeito perigoso, rotulado como inimigo caracteriza-se por ter abandonado o direito permanentemente. Assim, no intuito de lhes fazer objeção, necessário que se estabeleça uma confrontação clara entre eles e a sociedade, uma guerra entre o Estado e o inimigo por meio de torná-los inofensivos. Ao que se deve dizer não se tratar de um castigo por uma conduta reprovável de dano social, e sim de eliminação preventiva da fonte de perigo que é o ser humano definido como perigoso9. Caso se mude o foco de atenção desde a revolta em si para o revoltoso, isto é, do direito penal do fato para o “direito penal do autor10”, ver-se-á que um direito penal do autor, 6

JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 752. Jakobs considera que uma concepção errada do princípio de proteção a bens jurídicos permite uma antecipaçõ da punibilidade. “El sujeto activo pierde así su esfera privada, su esfera de libertades, derechos y garantías, y es concebido tan solo como fuente de peligro. El agente se convierte en consecuencia, en un enemigo del bien jurídico”. JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 753. Para este autor, o direito penal deve garantir a vigência da norma, não a proteção de bens jurídicos. 7 JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 752/753. 8 JAKOBS, “Kriminalisierung”, p. 753. 9 NAUCKE, Wolgang.“Schwerpunktverlagerungen im Strafrecht“. Krit V. Heft 1, 1993, p.135-162‚ p. 145. O que poderia causa uma paradoxia, de que por exemplo, “el asesinato de una persona le interesaría al Derecho penal, sobre todo, como un hecho de inseguridad social y de peligro, y no como la desaparición de una vida individual que es necesario preservar”. NAUCKE, “Schwerpunktverlagerungen”, p.139. Deve-se assinalar aqui que, como aponta Lesch “una regulación del Derecho de orden público que persigue la defensa de peligros (..) no se encuentra tan sola en las correspondientes normas de Derecho administrativo sancionador, sino que también se halla en el Código Penal, (el autor se refiere aquí al Código penal Español) por ejemplo en los artículos 95 y ss., de la misma manera que sucede en el StGB (Código penal alemán) en los §§ 61 y ss. Según esto, el juez puede imponer para la protección de la generalidad las denominadas medidas de seguridad (en Alemania Maßregeln der Besserung und Sicherung)”. LESCH, Heiko. La función de la pena. Traduzido por: SÁNCHEZ Javier. Madrid: Dykinson, 1999, p.2. 10 “El Derecho penal del enemigo no estabiliza normas (prevención general positiva), sino demoniza determinados grupos de infractores; b) en consecuencia, el Derecho penal del enemigo no es un Derecho penal del hecho, sino de autor”. CANCIO MELIÁ, Manuel... “¿Derecho Penal del Enemigo?”. Em: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p.102 p. 93. Ver também Roxin, o qual faz referência a que as fortes tendências preventivo-especiais que existen desde os tempos de Liszt apontam na direção do direito penal do autor. “Así sucede que, aunque es cierto que bajo la vigencia del StGB (Código Penal Alemán) nunca se ha prescindido del Derecho penal del hecho, sin embargo este siempre a tenido que enfrentarse a las influencias

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relacionado por alguns como sendo uma “caça às bruxas, uma cruzada contra os malfeitores arqui-malvados, ou, mais recentemente, uma caça aos fantasmas11”, sugere que o temo “inimigo tem uma acepção mais pseudo-religiosa do que uma acepção tradicional-militar12”. E, por fim, em terceiro lugar, deve-se considerar que o direito penal do cidadão nunca se separará completamente do direito penal do inimigo. Embora o direito penal do cidadão se caracterize pela manutenção da vigência da norma13, e o direito penal do inimigo esteja orientado para combater perigos, isto não deve ser entendido como se os dois ocupassem esferas estanques do direito penal, e sim que são tendências opostas em um único contexto jurídico penal que se sobrepõem uma sobre a outra14. No direito penal do cidadão se encontra pelo menos uma pequena proteção diante de riscos futuros; assim como no direito penal do inimigo, incluído o terrorista, se pode tratar o inimigo como pessoa, ao lhe conceder dentro do processo penal os direitos de um cidadão que seja acusado15. Neste mesmo sentido, para separar um direito do outro deveria haver uma constante revisão normativa, haja vista que o fato de separá-los não impediria que as normas do direito penal dos cidadãos não se excedessem – como atualmente – no que tange à proteção diante dos riscos futuros. Do mesmo modo, o direito penal do cidadão degenera a figura do delinqüente habitual pelo delinqüente reincidente, e é por meio da mesma degeneração que se daria (no processo penal) a transição de pessoa (cidadão) a não-pessoa (inimigo). Desta forma, ao descrever Jakobs descreve o direito penal do inimigo, suas características e sua existência dentro do direito penal vigente, Jakobs propõe a separação do direito penal do inimigo, ainda que não em sua totalidade, do direito (cambiantes según las épocas en su configuración y intensidad) del Derecho penal de autor y que integrarlas en su seno”. ROXIN, Claus. Derecho Penal Parte General. Traduzido por: LUZÓN PEÑA, Manuel; DÍEZ Y GARCÍA CONLLEDO, Manuel; DE VICENTE REMESAL , Javier. Madrid: Civitas, 1997, p. 177. 11 Veja-se, nesta ordem: ZAFFARONI, Raúl E.”La creciente legislación penal y los discursos de emergencia”. En: Varios Autores. Teorías Actuales en el Derecho Penal. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1998, p. 613-620, p.618; CANCIO MELIÁ, “¿Derecho Penal”, p. 87; ARNOLD, Jörg. “Das Ende der Gespensterjagd”. Em: UWER, Thomas (Coordinador). Bitte bewahren Sie Ruhe. Leben im Feindrechtsstaat. Berlin: Schriftenreihe der Strafverteidigervereinigungen, 2006, p. 13-25, p.13. 12 CANCIO MELIÁ, “¿Derecho Penal”, p. 87. “Respecto del terrorismo de nuevo cuño, Scheerer S. ( Die Zukunft des Terrorismos. Drei Dzenarien 2002, págs. 7 y ss., 13 y ss.) identifica la patologización y la mitologización de las conductas en cuestión como verdaderas características decisivas en el discurso de combate contra el terrorismo”.CANCIO MELIÁ,“Derecho Penal”, p. 87. 13 Na construção funcionalista, a vigência da norma é um conceito central. «Su cuestionamiento y su restitución constituyen el principio y el fin de la prestación del sistema penal: el derecho penal lleva a cabo la prestación o el cometido de “contradecir la contradicción de las normas determinantes de la identidad de la sociedad”» POLAINA-ORTS, Miguel. “Vigencia de la norma: el potencial de sentido de un concepto“. Em: MONTEALEGRE Lynett (editor). El Funcionalismo en Derecho Penal. Libro homenaje a Günther Jakobs. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 9-526, p. 66. Véase, JAKOBS, Günther. “Das Strafrecht zwischen Funktionalismus und alteuropäischen Prinzipiendenken. Oder Verabschiedung des alteuropäischen Strafrechts?”. ZStW, Heft 4, 1995, p. 843-876, p. 844. “En este planteamiento, todos los conceptos son normativos, con lo cual se les libera de una carga de significa ontológico o naturalista, siendo creados en y para el derecho en cuanto sistema normativo”. POLAINA ORTS, “Vigencia de la norma”, p. 67. 14 JAKOBS, Günther. “Derecho penal del ciudadano y Derecho penal del enemigo”. Traducido por CANCIO MELIÁ, Manuel. Em: JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p.102, p. 22. 15 JAKOBS, “Derecho Penal del Ciudadano”, p. 41-42.

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penal dos cidadãos. Pare esse autor, seria menos contraditório evitar que os mesmos direitos se misturem, do que continuar a tolerar a existência de fragmentos do direito penal do inimigo dentro do direito penal dos cidadãos16. Por tanto, a idéia que Jakobs pretende transmitir é que se reconheça que é preferível ou menos “perigoso” para o Estado de Direito declarar abertamente a inimizade frente ao “inimigo” do que continuar como até agora: ocultando-a e mantendo-a em silêncio. O direito penal do inimigo aspira diminuir o grau de contradição que existe dentro de um direito penal composto por um conjunto de normas legítimas e ilegítimas (ou “inimiga”). Tais tipos de propostas podem dar coerência à necessidade de um conjunto de normas “inimiga” ou excepcional, o que não deixa de ser motivo de preocupação. Assim, a existência de uma normativa “anormal” que em um período de “ameaça” salvaguarde os interesses dos “cidadãos” a sacrificar uma minoria – de não-pessoas – “perigosa e hostil”, consegue deixar de parecer insensata. Tanto mais quando se tem em mente que não é a primeira vez em que as mesmas exceções se executem ou ao menos foram levadas em conta pelo direito penal17. Mediante essa dedução e dos atributos anteriormente descritos do direito penal do inimigo é identificada a figura monstruosa chamada quimera, conforme dito no início deste ensaio. Deste modo fica pendente o questionamento de se o conjunto de atributos que compõe a quimera do direito penal do inimigo poderia escapar do plano inexistente, irrealizável ou imaginário. A resposta é o que se pretende apresentar a partir daqui. 2. Quimera: utopia ou engano? Nos últimos anos o direito penal tem experimentado um fenômeno de crescimento, a intervir em âmbitos que até então não haviam sido objeto de sua regulação, mediante a introdução de novos tipos penais no código penal ou de leis especiais, bem como, a ampliar os supostos tipos penais nos quais já havia intervindo ou a agravar a punição dos tipos tradicionais. Dito de outro modo, as penas estão a ficar mais duras e se delineia a introdução de novas sanções. Também se distingue a redução de garantias processuais para que se dê maior “eficácia” global na punição do delito. A este fenômeno se denomina “expansão do direito penal18”, e é por meio 16

Para Jakobs, “un Derecho penal del enemigo claramente delimitado es menos peligroso, desde la perspectiva del Estado de Derecho, que entremezclar todo el Derecho penal con fragmentos de regulaciones propias del Derecho penal del enemigo”. JAKOBS, “Derecho Penal del Ciudadano”, p. 56. Afirmação coerente com o escrito pelo autor dezoito anos antes de assinalar que “la existencia de un derecho penal de enemigos no es signo, por tanto, de la fortaleza del Estado liberal, sino un signo de que en esa medida simplemente no existe”. JAKOBS, ”Kriminalisierung”, p. 783. 17 “Todo el Derecho penal del siglo XX se teorizó admitiendo que algunos seres humanos son peligrosos y que sólo por eso deben ser segregados o eliminados, se los cosificó sin decirlo, se los dejó de considerar personas ocultando casi siempre esto con racionalizaciones”. ZAFFARONI, Raúl E. El enemigo en el Derecho penal. Bogotá: Ibáñez, Universidad de Santo Tomas, 2006, p. 212. 18 A esse respeito, Gracia Martín sustenta que: “el Derecho penal moderno tiene ante todo una dimensión clara y manifiestamente cuantitativa que se traduce en una importante ampliación de la intervención penal y, por ello, en un relevante incremento de su extensión actual en comparación con la que tenía en el momento histórico precedente. Se observa además por algunos, que esta ampliación tiene el aspecto de una tendencia que parece no encontrar límites. Por ello, son muchos los autores que, al evaluar la trascendencia del Derecho penal moderno para el conjunto del sistema consideran que, en el momento histórico actual, cabría hablar de la existencia de un movimiento de expansión del Derecho penal”. GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos para la lucha por la

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de sua descrição que se determinará se o direito penal do inimigo enquanto quimera existe ou não em um plano real. Assim, necessário que sejam assinaladas as características do fenômeno mencionado. Deve-se entender que a explicação para este sobressalto ou expansão na legislação penal surge da vontade política de dar resposta às demandas das “sociedades modernas19”, caracterizadas por novas formas de criminalidade organizada e de natureza econômica, a caber ao legislador, diante das novas necessidades de proteção, optar pela criminalização de novas condutas, assim como, por um sistema punitivo mais eficaz. É essa abordagem das reformas penais o que pode situar o delito como um “recurso teoricamente inesgotável e ao serviço do poder político20”. Por um lado, critica-se o fenômeno de “expansão” do direito penal por romper com os princípios de intervenção e de ultima ratio21. Por outro lado, critica-se que a “expansão” do direito penal está vinculada a um direito penal simbólico22, definido como um fenômeno que denuncia a crise da política criminal atual orientada às “conseqüências”. Tal direito penal concorda com as imagens da “insegurança global” e de uma “sociedade de risco23”. O direito penal simbólico identifica um determinado fato e um determinado autor, o qual é definido

modernización y expansión del Derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2003, p. 58. 19 O direito penal simbólico surge como característica de uma “sociedade de risco” moderna que ao não poder enfrentar as ameaças e perigos modernos, “riscos da modernização”, não apenas vai necessitar de um “vínculo causal”, como também e em um mesmo momento de uma responsabilidade jurídica e social. HASSEMER, Winfried. “Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos”. Em: BUSTOS RAMÍREZ, Juan (director). Pena y Estado. Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, p. 122, p. 23-36. Véase, HASSEMER, Winfried. ”Symbolisches Strafrecht und Rechtsgüterschutz“. NStZ. Heft 12, 1989, p.553-559. p. 553 y ss. HASSEMER, Winfried. “Sicherheit durch Strafrecht“. HRRS. Heft 4, April 2006, p.130-143. p. 135 y ss. Disponible en http://www.hrrstrafrecht.de/hrr/. Para Hassemer “Jakobs construye —influido por la teoría sistémica de Luhmann— su variante de una teoría de la prevención general positiva sobre la experiencia de expectativas frustradas en contactos sociales y en la necesidad de orientación y estabilidad y utiliza para ello la locura de la complejidad social y de la incertidumbre personal, las cuales caracterizan a una ‘sociedad de riesgo’”. HASSEMER, “Derecho Penal Simbólico”, p.33. 20 CHRISTIE, Nils. Una sensata cantidad de delito. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2004, 189 p. O professor Scheerer cita que “una vez que se cree en el «hecho» ficticio «de que hasta el momento ningún Estado y ninguna sociedad ha podido funcionar sin pena o sin una medida similar a la pena» (Jürgen Baumann), entonces tampoco hay que reflexionar en clave de futuro acerca de cuáles serían las condiciones sociales en las que el Derecho penal no sólo se podría mejorar de modo significativo, sino que harían posible una «sustitución» de principio ‘del Derecho penal por algo mejor’ (Gustav Radbruch). Con ello, se excluye ilegítimamente la posibilidad de una perspectiva crítica hacia la dominación, y de un cuestionamiento serio del Derecho penal ante el horizonte de la posibilidad de renunciar a él, del espectro de aquello de lo que puede hablarse racionalmente”. SCHEERER, Sebastian. “¿La pena criminal como herencia cultural de la humanidad?”. Traduzido por CANCIO MELIÁ, Manuel. Em: ESER, Albin; HASSEMER Winfried; BURKHARDT, Björn (Coordinadores Alemanes). La Ciencia del Derecho Penal Ante El Nuevo Milenio. Coordinador: CONDE MUÑOZ, Francisco. Valencia: Tirant lo blanch, 2004. t.I., p. 53-64, p.53. 21 POZUELO PÉREZ, Laura, “De nuevo sobre la expansión del derecho penal: una relectura de los planteamientos críticos”. En: MONTEALEGRE, Lynett (director). El Funcionalismo en Derecho Penal. Libro homenaje a Günther Jakobs. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 107-133, p. 110. 22 GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha , p. 146. 23 Vide: HASSEMER, “Derecho Penal Simbólico”, p.36.

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não como igual senão como outro24, o que dá base a um sistema punitivo mais gravoso. Este será o caso quando em respeito às leis penais se der uma oposição entre o real e o aparente, entre o “manifesto” e o “latente”, entre aquilo “verdadeiramente querido” e o “aplicado de outra maneira”; e se trata sempre dos efeitos reais das leis penais25. Definitivamente “um engano”, no sentido de que aquelas que não cumprem nem podem cumprir suas funções instrumentais manifestas de proteção porque tenham sido promulgadas apenas para a produção – função latente – de efeitos meramente simbólicos26, ou quando as mesmas “leis penais tenham unicamente como fim real calculado ‘a produção na opinião pública de uma impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido’27”. Do que foi anteriormente exposto, percebe-se que o direito penal simbólico, assim como o punitivismo, está de mãos dadas com o direito penal do inimigo. E ainda quando “não aparecem de modo clinicamente ‘limpo’ na realidade legislativa28” fazem parte da política criminal moderna29, de modo a não existir apenas no plano imaginário ou fantasioso. A função do direito penal do inimigo é, assim, até agora, na Alemanha, puramente simbólica30; não evidencia qualquer competência para a solução dos problemas atuais, de maneira a despertar possibilidades de solução que não podem ou que ao menos não deveriam ser cumpridas na realidade, a demonstrar uma forma puramente expressiva e repressiva de abordar determinados 24

“La existencia de la norma penal – dejando de lado las estrategias a corto plazo de mercadotecnia de los agentes políticos- persigue la construcción de una determinada imagen de la identidad social mediante la definición de los autores como ‘otros’ no integrados en esa identidad mediante la exclusión del «otro»”. CANCIO MELIÁ, ”¿Derecho Penal”, p. 78. 25 Vide, HASSEMER, “Derecho Penal Simbólico”, p.28. 26 Vide: HASSEMER, “Derecho Penal Simbólico”, p.30. GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha, p.148. 27 HASSEMER, “Derecho Penal Simbólico”, p.35. GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha, p.148-149. Véase, SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. Aproximación al derecho penal contemporáneo. Barcelona, J.M. Bosch Editor, 1992, p.305. 28 CANCIO MELIÁ, “Derecho Penal”, p. 65. 29 Fritz Sack com muito acerto se refere a uma mudança estrutural da política criminal, mediante o retorno do direito penal repressivo. Sobre o tema Sack adverte como manifestações: 1. “el retorno a la prisión como el camino real – del rey - del control del delito y la política de seguridad”, 2. “el rearme legislativo e institucional de los órganos de seguridad beneficia a los órganos ejecutivos, principalmente a la policía”, 3. ”las modificaciones en el ámbito del derecho penal juvenil”, 4. El “abuso sexual infantil, que se deja sindicar como punto de cristalización de una desenfrenada furia penal”; y por último, 5. ”la tendencia aquí descripta (el derecho penal del enemigo) de ningún modo representa una aparición recién con o a consecuencia de los ataques terroristas del 11 de septiembre contra el World Trade Center y el Pantágono. Se puede observar ya de mucho antes. Y esto último vale especialmente para Alemania”. SACK, Fritz. “Derecho penal del enemigo-Camino a una política criminal diferente”. Traduzido por: BÖHM, María Laura. Cuadernos de Doctrina y Jurisprudencia Penal. Criminología. No prelo. – Originalmente este texto tem o seguinte título em alemão: Feindstrafrecht Auf dem Wege zu einer anderen Kriminal Politik? Na Alemanha como discurso à redação da revista Bürgerrechte & Polizei/CILIP en ocasión de la entrega del Premio Werner Holtfort. Berlin, 27 de maio de 2005. [CILIP: Civil liberties and police – Editores da revista “Bürgerrechte und Polizei” (Derechos Civiles y Policía) (N.T.)]. 30 Distinto é o caso da América Latina, como bem aponta Zaffaroni: “En América Latina todo sospechoso es tratado como enemigo, aunque lo legitime el derecho procesal penal. Por lo general, no se introduce expresamente o se elude toda referencia clara a la categoría del enemigo en el derecho ordinario, porque por lo menos se intuye su incompatibilidad con el principio del estado de derecho, pero con la mala conciencia se legitima o ignora el trato que como tal se depara a un número enorme de personas”. ZAFFARONI, El enemigo, p. 252.

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conflitos: “não se trata em definitivo de mais que o cumprimento de rituais próprios da política que, tanto quanto mais simbólicos, mais expressivos, e, portanto, mais efetivos31”. 3. O direito penal do inimigo como um modelo orientado para o futuro Por considerar necessário que se conheça o discurso dogmático que Jakobs propõe, tratar-se-á, em primeiro lugar, sua proposta de delimitar claramente um direito penal para inimigos, e, em segundo lugar, se a normativa “inimiga” dentro do direito penal positivo poderia se orientar como um modelo futuro. Nessa ordem, primeiro deve-se assinalar que Jakobs concentra seu discurso dogmático-penal a tomar como base sua interpretação de Niklas Luhmann “a justificar a pena como fato de coesão do sistema político-social mercê à sua capacidade de restaurar a confiança coletiva, sobressaltada pelas transgressões, na estabilidade do ordenamento e, por conseguinte, de renovar a fidelidade dos cidadãos diante das instituições32”; de maneira que, quando o indivíduo atua de acordo com a norma, por meio da conduta que dele é esperada, atinge as expectativas, de modo que, ao agir de forma contrária, estaria a defraudá-las. Enquanto a função da pena é a manutenção da norma como modelo a ser seguido para um melhor relacionamento social, a pena não consiste na retribuição do mal pelo mal, e sim como uma prevenção geral positiva. A finalidade do direito penal pretende garantir a segurança de expectativas e a manutenção das normas de uma sociedade, que são tidas por fundamentais e que são estabelecidas em tipos penais. “O conceito de vigência da norma desempenha um potencial explicativo em vários âmbitos, dos quais se pode destacar: o objeto de proteção jurídico-penal (a própria estabilidade da norma versus bem jurídico), o aspecto subjetivo (pessoa versus indivíduo) e o método científico do sistema de direito penal (análise funcional versus análise sistêmica; de cada um desses aspectos decorrem efeitos dogmáticos de elevado valor33”. Esta teoria tem sido objeto de inúmeras críticas, haja vista que legitima os “delitos de dever” e que as normas são contrárias a uma visão garantista; sua visão funcionalista do direito penal afirma a validade da “norma abstrata” dá legitimidade às novas funções atribuídas à pena. Assim, como produto da renormalização de conceitos jurídico-penais, os conceitos de culpabilidade e de ação deixam de ser relevantes nem se vinculam essencialmente à missão que o direito penal tem de cumprir, a incluir-se que o conceito de sujeito ao que se imputa é definido desde sua funcionalidade34. Por isso, o sistema proposto por Jakobs não parece dar espaço ao

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EDELMAN, Murray. Politik als Ritual. Die symbolische Funktion staatlicher Institutionen und politischen Handels. Frankfurt/ New York: Campus Verlag, 1976, p. 32 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2004, p.275. “Jakobs no añade nada a la teoría de la desviación de Émile Durkheim, que había concebido en términos semejantes la pena como un factor de estabilización social destinado sobre todo para actuar sobre las personas honestas. Reafirmando sus sentimientos colectivos y cohesionando la solidaridad contra los desviados”. FERRAJOLI, Derecho y razón, p. 275. 33 Vide: POLAINA-ORTS,“Vigencia de la norma”, p. 63. 34 “Todo aquel que niegue su racionalidad de forma demasiado evidente o establezca su propia identidad de forma excesivamente independiente de las condiciones de una comunidad jurídica, ya no puede ser tratado razonablemente como persona en Derecho” JAKOBS, Günther. Sociedad, norma

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conceito de dignidade humana. A pessoa perde sua individualidade e se vê como um mero instrumento lucrativo “do todo social”, a dever cumprir com um determinado papel para ser considerada parte do todo social: “há nesta visão um reducionismo da vida social à atividade útil, isto é, à atividade economicamente produtiva35”. Da breve exposição feita e a situar o conceito de direito penal do inimigo desde a teoria da prevenção geral positiva, pode-se resumir que ainda quando não se possa negar a existência do mesmo direito36, a “separação” normativa proposta por Jakobs – entre cidadãos e inimigos – não parece viável. Para este autor, enquanto o direito penal do inimigo otimiza a proteção de bens jurídicos, o direito penal dos cidadãos otimiza as esferas da liberdade. Não é muito claro em que lugar se situa a liberdade: no direito penal dos cidadãos ou entre a delgada linha que separa os mesmos37? Ademais, em uma perspectiva dinâmica, como sustenta Zaffaroni, “o direito penal do estado de direito não pode cometer a ingenuidade de dar espaço e muito menos seu instrumento orientador ao estado de polícia, a confiar que este se manterá dentro do que foi acordado e dividido38”. A realidade é que ao outorgar esse espaço ao Estado de Polícia, este acabará por se impor. A vigência de uma normativa especial para inimigos é uma medida mui agressiva, que descreve um direito penal sem garantias – inconstitucional – que “outorga a futuros regimes ‘injustos39’ uma legitimação teórica40”. Como o cidadão pode se sentir seguro quando o Estado, manifestamente, dele desconfia? E, neste ponto, é particularmente importante entender que: “o papel de uma concepção da pessoa na concepção da justiça política é distinto do seu papel num ideal pessoal ou coletivo ou num modo de vida mora e religioso. Numa democracia, os fundamentos da tolerância e da cooperação social sobre uma base de respeito mútuo ficam ameaçados quando as distinções entre esses diversos modos de vida e ideais não são reconhecidas. De fato, quando estes últimos assumem uma forma política, os termos eqüitativos da cooperação são fixados de maneira restritiva e pode tornar-se

persona en una Teoría de un Derecho penal funcional. Traduzido por CANCIO MELÍA, Manuel y FEIJOÓ, Bernardo. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 1996, p.50. 35 BUSTOS, Juan ; HORMAZÁBAL, Hernán. Nuevo Sistema de Derecho Penal. Madrid: Trotta, 2004, p.69. 36 “El hecho de que existe ese Derecho penal del enemigo en el ordenamiento positivo (Silva Sánchez dice [ La expansión (nota 2), p. 166] que sobre esto «no parece que se pueda plantear duda alguna»), y que puede ser descrito en los términos expuestos, es algo que no es cuestionado; en lo que se alcanza a ver, tampoco por parte de los autores que se han manifestado en sentido crítico frente al desarrollo de Jakobs”. CANCIO MELIÁ,“«Derecho Penal»”, p.84. 37 “The priority of the basic liberties implies that they cannot be justly denied to any one, or to any group of persons, or even to all citizens generally, on the grounds that such is the desire, or overwhelming preference, of an effective political majority, however strong und enduring. The priority of liberty excludes such considerations from the grounds that can be entertained”. RAWLS, John. “The Basic Liberties and Their Priority”. Em: Liberty, Equality, and Law. Selected Tanner Lectures on Moral Philosophy. MC MURRIN, Sterling M. (editor). Salt Lake: Utah University Press/ Cambridge: Cambridge University Press, 1987, p. 3-87,p.81. 38 ZAFFARONI, El enemigo, p. 229. 39 “The five kinds of primary goods enumerated in a Theory of Justice are: 1. The basic libertiesfreedom of thought and liberty of conscience, and so on. 2. Freedom of movement and free choice of occupation against a background of diverse opportunities. 3. Powers and prerogatives of offices and positions of responsibility. 3. Income and wealth, understood broadly as all-purpose means (having an exchange value). 5. The social bases of self- respect”. RAWLS, “The Basic Liberties”, p.22. 40 AMBOS, Kai. Der allgemeine Teil eines Völkerstrafrechts. Berlin: Duncker & Humblot,2002, p.63.

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impossível, para pessoas que tenham diferentes concepções do bem, cooperar livre e voluntariamente41”. De outro modo, em segundo lugar o direito penal do inimigo visto como um modelo orientado para o futuro, amplia-se dentro do ordenamento positivo que disfarçadamente oculta tal legislação de “luta ou inimiga”. Desta forma, pelo predomínio atual das tendências preventivas e as necessidades globais, dá-se pé à “excessiva” proteção de bens jurídicos universais, mesmo que estes se caracterizem por estar formulados de forma especialmente vaga. Entre os feitos delitivos que conformam esta “criminalidade organizada de novo cunho” podem-se mencionar, por exemplo, desde os abusos de poder no comércio internacional, infrações às normas de tráfico econômico nacional com o exterior, criminalidade informática; até o tráfico internacional de drogas, falsificação e tráfico de moeda, lavagem de dinheiro, tráfico de armas, tráfico de órgãos humanos, imigrantes etc. “Organizações dedicadas a tais atividades criminais contam com grande poder, de modo que conseguem escapar do controle político e jurídico do Estado42”. Noutras palavras, falamos de uma manifestação fora da normalidade, muito maior que aquela criminalidade econômica conceitualizada por Sutherland43 nos anos quarenta. “A criminalidade econômica representa a ‘criminalidade do futuro’ e contém um potencial de risco para as modernas sociedades incomparavelmente maior que a criminalidade tradicional44”. A globalização da economia traz outros desafios ao direito penal, o qual ante a globalização do delito se vê obrigado a dar soluções concretas. Soluções que até o momento não se tem podido outorgar. E é da conseqüência deste fenômeno, “a globalização”, que Fritz Sack analisa as palavras de Jakobs da seguinte maneira: “se ela [a ciência penal] não quiser reconhecer a necessidade do último [o direito de luta contra o inimigo] será marginalizada pela sociedade – economicamente dominada – por falta de efetividade45”. E, quase ao fim de sua exposição, Sack cita: “seria interessante

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No ensaio original em espanhol, a citação é a seguinte: “the role of a conception of the person in a conception of political justice is distinct from its role in a personal or associational ideal, or in a religious or moral way of life. The basis of toleration and of social cooperation on a footing of mutual respect in a democratic regime is put in jeopardy when these distinctions are not recognized; for when this happens and such ideals and ways of life take a political form, the fair-terms of cooperation are narrowly drawn, and free and willing cooperation between persons with different conceptions of the good may become impossible”. A tradução para o português encontra-se em: RAWLS, John. Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 195-196. 42 ALBRECHT, Hans Jörg. “Investigaciones sobre criminalidad económica en Europa: Conceptos y comprobaciones empíricas”. Em: Congreso internacional Facultad de Derecho de la UNED (directores). Modernas Tendencias en la Ciencia del Derecho Penal y en la Criminología. Madrid: UNED, 2001, p.673, p.263. 43 Vide, por exemplo: SUTHERLAND, Edwin H. White Collar Crime. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1961, p. 9. Sutherland definiu a delinquência de colarinho branco (“White Collar Crime”) como a violação da lei penal por parte de uma pessoa de alto nível sócio-econômico no exercício de uma atividade profissional. Para acompanhar melhor os debates ao redor do delito de colarinho branco; vide: GAYLORD, Mark Stratton. Edwin Sutherland and the origins of differential association theory. Columbia, Univ. of Missouri: Univ. Microfilms Intern., 1987, 287p. 44 Vide ALBRECHT , “Investigaciones sobre criminalidad”, p. 263. 45 SACK, “Derecho penal del enemigo”, 2005. Conforme a citação de Jakobs: “La principal tarea que se le impone a la ciencia del derecho penal: tiene que separar lo que circula bajo el nombre de derecho penal, es decir, someter a discución el complemento del derecho penal a través de un derecho de combate del enemigo. Sino quiere reconocer la necesidad de éste último, será

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perguntar se esses críticos tratam com igual malícia o convencimento – comum à ortodoxia – da irrefreável transformação estrutural das sociedades modernas em sociedades neoliberais de mercado46”; a referir-se àqueles que têm criticado Jakobs por afirmar que não há nenhuma outra alternativa possível ao direito penal do inimigo. Como tem sido dito neste ensaio, o direito penal tem demonstrado não ter as “armas” suficientes para enfrentar as novas exigências da criminalidade, por exemplo, a dissolução que destaca Albrecht sobre as fronteiras entre criminalidade econômica e empresarial organizada e a criminalidade organizada clássica47, ou de enfrentar situações como a irrefreável transformação estrutural das sociedades modernas em sociedades neoliberais de mercado. Pode-se afirmar, então, que se está em pé de aplicar uma “normativa de combate”, que renuncia às garantias materiais e processuais do direito penal da normalidade para enfrentar “os desafios de nosso tempo”. E são estas características econômicas expostas em que o “direito e a economia são adversários”, as que a vulnerar o controle político do Estado de direito geraram uma crise de legitimação48. A entrar, assim, em grande contradição, haja vista o desenvolvimento do direito penal do inimigo como modelo futuro: como poderá continuar a falar de Estado de direito? Daí, como aponta Sack, a política e o legislador têm posto em marcha o rearme interno e a construção e ampliação de um Estado de segurança49. Assim se abandona a idéia “do Estado de direito liberalmente prescrito, do direito penal de culpabilidade liberalmente prescrito, para um Estado de direito da segurança, para um direito penal de segurança orientado preventiva e ordenadamente. Se o direito penal cai no redemoinho dessa lógica de segurança preventiva, ou seja, é instrumentalizado com fins de segurança, assume, então, obrigatoriamente, a estrutura desta idéia e perde proporção. Renuncia, portanto, a sua originária e prescrita lógica liberal própria do Estado de direito50”.

marginalizada por una sociedad dominada por lo económico, debido a su falta de eficacia”. JAKOBS,“La autocomprensión de la ciencia”, p.61. 46 SACK, “Derecho penal del enemigo”, 2005 . 47 GRACIA MARTÍN, Prolegómenos para la lucha , p.97. Hoy, expõe Albrecht, que “los mercados de la clase mencionada, es decir, de drogas, inmigración, prostitución, fraude de inversiones o blanqueo de capitales, precisan de una gran logística y de un management, y para ello se ofrecen las formas de economía legal”, e “en esta medida tiene sentido hablar de la disolución de las fronteras citada. Vide ALBRECHT , “Investigaciones sobre criminalidad”, p. 275; «el paradigma del derecho penal es el delito económico organizado tanto en su modalidad empresarial convencional, como en la llamada macrocriminalidad: terrorismo, narcotráfico o criminalidad organizada (tráfico de armas, mujeres o niños». SILVA SÁNCHEZ, José María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 2001, p. 99. 48 A capacidade do Estado social está cada vez mais deteriorada, haja vista sua autoridade ou legitimidade estar a desaparecer irremediavelmente. Surge a crise de legitimidade, os conflitos sociais podem tirar dos eixos as instituições de direção de de controle político existentes. 49 SACK, “Derecho penal del enemigo”, 2005. 50 HAFFKE, Bernhard. “Von Rechtsstaat zum Sicherheitsstaat?“. Kritische Justiz. 38/1, 2005, p. 1735, p. 20. “Ya es sabido que el análisis de sociología del derecho que realiza Jakobs se basa en las premisas de la ‘economización’ de la sociedad”. SACK, “Derecho penal del enemigo”, 2005.

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Desta forma, de orientar-se o direito penal do inimigo como um modelo futuro o faria não da maneira proposta por Jakobs, e sim por meio de sua extensão dentro do direito penal positivo. O mesmo – “direito” – se instauraria em razão da declaração de emergência51 mediante uma guerra contra inimigos previamente selecionados. Daí que a seguinte seção descreva a metodologia com que tal modelo pretenderia executar seus fins. 3.1. Fogo – para eliminar o inimigo Enquanto a execução do direito penal do inimigo como um modelo orientado para o futuro será vista nesta seção, como em nome da segurança se declarou fogo aberto ao sujeito denominado “inimigo52”, é por meio desta denominação que se encontra um dos pontos mais discutíveis da dialética de Jakobs: a diferenciação entre pessoas e não pessoas. Esta distinção tem sido bastante discutida, posto se ter argumentado que a lógica de seu discurso leva à negação do Estado de direito, e até se tem dito que ela segue a linha do projeto de Lei sobre o tratamento dos estranhos à comunidade (Gemeinschaftsfremde) proposto por Edmund Mezger53 durante a época do nacional-socialismo. Neste mesmo sentido, Zaffaroni, assinala que não deveria “causar tanto escândalo a proposta de Jakobs, uma vez que toda a tradição doutrinária penal legitima a exclusão dos estranhos da pena e sua eliminação ou neutralização por perigosos54”. Neste mesmo contexto, Jakobs sustenta que “o direito penal do inimigo é a regulação jurídica da exclusão dos inimigos, a qual se justifica no fato de estes serem atualmente não pessoas, e conceitualmente faz pensar em uma guerra cujo 51

“La emergencia: a) se funda en un hecho nuevo, pretendidamente nuevo o extraordinario; b) la opinión pública reclama una solución a los problemas generados por tal hecho; c) la ley penal no resuelve el problema, pero tiene por objeto proporcionar a la opinión pública la sensación de que tiende a resolverlo o a reducirlo; d) adopta reglas que resultan diferentes de las tradicionales en el Derecho Penal liberal, sea porque lo modifican en su área o en general, porque crean un Derecho Penal especial o alteran el Derecho Penal general”. ZAFFARONI, “La creciente legislación penal”, 613-620. 52 Vide Schmitt quando aponta que “Enemigo es sólo un conjunto de hombres que siquiera eventualmente, esto es, de acuerdo con una posibilidad real, se opone combativamente a otro conjunto análogo. Sólo es enemigo el enemigo público”. SCHMITT , Carl. Der Begriff des Politischen. Berlin: Duncker-Humblot, 1991, p. 38. Sobre isso, ver, também, Foucault: “Desde este punto de vista el examen de las teorías penales de la segunda mitad del siglo XVIII proporciona resultados bastante sorprendentes. Ninguno de los grandes reformadores, ya sean teóricos como Beccaria, juristas como Servan, legisladores como Lepelletier de Saint-Fargeau, ambas cosas a la vez como Brissot, proponen la prisión como pena universal o incluso mayor. De forma general el criminal es definido, en todas estas elaboraciones, como el enemigo de la sociedad”. FOUCAULT, Michel. “La Sociedad Punitiva”. En: FOUCAULT, Michel, «La Vida de los Hombres Infames», Buenos Aires: Editorial Altamira, p. 37-50, p. 39. 53 MUÑOZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger y el Derecho Penal de su Tiempo. Valencia: Tirant lo blanch, 2003, 4 ed., p.121 y ss. Sobre este tema Gracia Martín cita: “El concepto de persona que utiliza Jakobs está por encima del ser humano, pues es solo una construcción normativa que se atribuye a los hombres, si bien no a todos”. MARTÍN GRACIA, Luis. «Consideraciones críticas sobre el actualmente denominado ¨Derecho Penal del Enemigo”». RECPC. 07-02, 2005, p. 02:1-02:43. Disponible en: http://www.criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-02.pdf, p. 02:33. No caso colombiano, Jakobs “ha problematizado la noción de Persona. Es decir, ha cuestionado incluso la existencia de ‘persona’, tal cómo él la concibe con su interpretación particular de Luhmann: como presupuesto para la existencia social del derecho como modelo de institucionalización racional de expectativas”. APONTE, Derecho penal, p. 31. 54 ZAFFARONI, El enemigo, p. 212

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alcance, limitado ou total, depende de tudo aquilo que deles se teme55”. Pune-se o indivíduo não por seus atos, e sim pelo que representa dentro da sociedade, pelo que ele é. O processo penal se transforma em um momento de luta contra o terrorismo ou a delinqüência organizada, em uma relação entre amigos e inimigos. O juiz, como representante do Estado (como amigo) é às vezes inimigo do culpado (do inimigo ou não pessoa). E, assim, na linguagem de Jakobs, começa a se desenvolver um “jogo de palavras56” entre “pessoas como inimigos” ou “inimigos como pessoas”. O inimigo se encontra em permanente delito, a representar, assim, uma constante ameaça57. Pelo que “a guerra tem lugar com um legítimo direito dos cidadãos, em seu direito à segurança58”. É a partir da relevância absoluta da “ameaça” como critério central para a intervenção penal que se desestrutura inclusive a relação entre os próprios cidadãos: existe o risco de se impor socialmente uma lógica da inimizade59. Lógica que poderia encontrar relação em Carl Schmitt, ao se ocupar do inimigo político, quando se refere a que tal inimizade é reduzida à política e suas circunstâncias. Enquanto inimizade existe uma negação do outro; enquanto política, tal negação circunscreve-se ao âmbito público de luta entre unidades políticas. Quando a inimizade política se intensifica, aparece a possibilidade do conflito, da guerra: “a guerra procede a inimizade, já que está é uma negação ôntica de um ser distinto. A guerra não é senão a realização extrema da inimizade60”. Assim, a seguir o pensamento de Schmitt, se a político é em última análise inimizade, e esta pode, em certas circunstâncias, se intensificar até o conflito, então a guerra é uma possibilidade existencial da política. E é apenas em relação a esta característica que se poderia relacionar o anterior com o que coloca Clausewitz ao dizer: “a guerra não é simplesmente um ato político, e sim um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma gestão das mesmas com outros meios61”. Para este autor, “a guerra [...] em relação a suas tendências dominantes constitui uma maravilhosa trindade, composta pelo poder primordial de seus elementos, pelo ódio e pela inimizade que se podem enfrentar como um cego impulso da natureza; da caprichosa influência da probabilidade e da sorte, que a convertem em uma livre 55

JAKOBS,“La autocomprensión de la ciencia”, p.60-61. Vide, por exemplo, em Gracia Martín, ao assinalar que “si el derecho penal del enemigo se construye a través del reconocimiento de sus destinatarios como no personas, entonces parece que abría que partir de la existencia de esta especie de no personas ya en la realidad previa de derecho penal del enemigo, pues de lo contrario sería el propio Derecho penal del enemigo el que construiría dicho concepto de un modo completamente auto referente y, por ello, circular”. GRACIA MARTÍN, “Derecho Penal” p. 02:28. Neste ponto, Gracia Martín cita Schünemann, haja vista que o têm pontos de vista coincidentes ao afirmar “que el derecho penal del enemigo se construye mediante una argumentación circular”- GRACIA MARTÍN, “Derecho Penal” p. 02:28. 57 O que significa que, por estar o inimigo em uma constante defraudação de expectativas, por não ter capacidade cognitiva, é uma mera fonte de perigo. 58 JAKOBS,”Derecho Penal del Ciudadano”, p. 56. 59 “En marzo de 2005 tuvo lugar en Alemania un congreso a instancia de la revista Strafverteidiger y dedicado al tema del derecho penal del enemigo. Ajuicio de diversos profesores, en su exposición Jakobs aparece como defensor claro de este modelo de derecho penal basado en la enemistad”. APONTE, Derecho Penal, p.45-46. Ver, também, Albrecht, “en este esquema el ciudadano es concebido más como un menor de edad, él mismo no puede diferenciar lo que es bueno o malo para él o para otros; de esa diferenciación lo desea preservar el Estado mediante la amenaza de castigo frente a otros,-los enemigos-“. ALBRECHT, Peter Alexis. “Das Strafrecht auf dem Weg vom liberalen Rechtsstaat zum sozialen Interventionsstaat“. KritV, Heft 3, 1988, p. 182-209, p. 202. 60 SCHMITT, Der Begriff des Politischen , p. 33. 61 VON CLAUSEWITZ, Karl. De la Guerra. Barcelona: Labor, 1992, p. 58 56

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atividade da alma; e da subordinada natureza de um instrumento político, pelo que recai puramente no campo do raciocínio62”. Daí que, por fim, tudo nesta guerra dependa da “estratégia” do jogo63 político de intensificar a intimidação por meio da “ameaça”. Em suma, a idéia a resgatar para nossos efeitos é apenas que a inimizade fosse prévia à guerra, o estatuto tão “amplo” que adquire a categoria inimigo, no sentido de que qualquer grupo humano pode receber – agora pela via do direito penal – uma declaração de guerra e inimizade – a rendê-la à sorte do “poder de fogo” que o Estado possui. De outro modo, visto por outra ótica, o direito penal do inimigo é um instrumento de superação de um conflito de legitimação do Estado de direito. Assim, a crise surge quanto às instituições do controle político que o conformam se submetem aos conflitos sociais existentes, situação que inevitavelmente o fragmenta. Posto que põe em evidência a ineficácia deste em dar soluções ante as novas demandas da sociedade, por exemplo o já mencionado desenvolvimento econômico. Por conseguinte, um Estado de direito ineficaz, incapaz de recobrar a confiança cidadã, cuja atuação deixe de ser razoável, necessariamente perderá sua legitimidade. Daí que, diante das novas exigências da sociedade moderna, o Estado de direito se veja obrigado a reestruturar a normativa que o compõe, e a criar novos modelos de intervenção penal. O direito penal do inimigo origina-se em um estado se insegurança, no qual a população cede – convencida por uma nova política criminal – seu direito à liberdade em troca do direito à segurança. Dito de outra forma, ante o estado de crise, a manifestação de um ou vários sujeitos como fonte de perigo era apenas latente, contudo é mediante o etiquetamento estatal que tal manifestação se apresenta. O Estado se encarrega de identificar o perigo e a população se solidariza – mediante a inimizade – a lutar por sua sobrevivência. Gera-se, pois, uma reação massiva contra o inimigo, de modo a se justificar as medidas repressivas em nome da segurança. Assim, neste contexto, o papel do direito penal é o de um simples instrumento subordinado à ideologia da política vigente; e é, no tangível retrocesso da normativa que integra o Estado de direito, que se evidencia não só a falta de capacidade por parte dos governantes de respeitar as bases constitutivas do mesmo, como também a origem do direito penal do inimigo como mera opção política. O atentado de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos da América, o atentado de 11 de março de 2004 à central ferroviária de Atocha (Espanha) e as recentes demonstrações de força por parte do terrorismo em 7 e 21 de julho de 2005 em Londres (Grã Bretanha), têm colocado o terrorista como o “inimigo” primordial do novo milênio64. “Daí em diante não apenas os governos dos Estados Unidos e do assim chamado mundo ocidental, como também entidades e alianças como a OTAN, o Grupo dos 7, ou, na realidade, dos 8, ANSEA, OEA e muitas outras ressaltam que a principal ameaça à segurança e à liberdade provém das redes de terrorismo 62

VON CLAUSEWITZ, De la Guerra, p. 44. Jessie expõe uma aplicação da teoria dos jogos aos fenômenos sociológicos para um futuro. JESSIE, Bernard. “The Theory of Games as a Modern Sociology of Conflict”. The American Journal of Sociology. n 5, vol. 59, 1954, p. 411-424, p.418. 64 Para autores como Geulen o inimigo é uma figura que se contrói. GEULEN, Christian. “`Enemy Mine`: Über unpolitische Feindschaft”. Em: GEULEN, Christian; VON DER HEIDEN, Anne; LIEBSCH, Burkhard (directores).Vom Sinn der Feindschaft. Berlin : Akademie Verlag , 2002, p. 78-108, p.11. 63

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internacional (Al-Qaeda) bem como de sua cooperação real ou potencial com failed states e/ou rogues status65”. Neste mesmo sentido, Scheerer afirma que “o conflito terrorista é um conflito de reconhecimento, ou seja, que envolve profundamente as questões de legitimação da dominação política e provoca, portanto, por parte do Estado, não só simples medidas de persecução penal como também um esforço ‘intelectual-moral’ para instruir a população de acordo com os fins estatais de autolegitimação66”. Mediante uma interpretação absolutamente expansiva e contrária ao princípio da legalidade, haja vista ser sua definição abstrata e imprecisa, aplicam-se aos tipos delitivos “antiterroristas” condutas individuais e coletivas. Esta luta – como conceito – prioriza os interesses coletivos e a atitude coercitiva do Estado diante dos direitos individuais, a vulnerar, assim, o princípio da dignidade humana67. É dizer que ao contrário do que persegue o Estado de direito são submetidos à negociação política os direitos outorgados pela justiça68. Finalmente, não se limita o poder punitivo do Estado, posto que o direito penal do inimigo como tal é uma seleção política e os critérios políticos nascem dentro do próprio Estado. Se uma alteração do modelo clássico de legalidade69 penal – induzida pelo paradigma do inimigo – “expressa-se em uma acentuada personificação do direito penal de emergência, que é bem mais um direito penal do réu que um direito penal do delito70”; diante da “ameaça”, a atenção é posta sobre o indivíduo perigoso; “tratase, em termos gerais, da consolidação paulatina do paradigma da prevenção como paradigma dominante no sistema do direito penal71”. Isto posto, interpreta-se que, para Jakobs, o Estado de direito não é capaz de dar cabo da guerra contra o terrorismo, haja vista que isso implicaria tratar os inimigos como sujeitos de direito. Enquanto que em um Estado de direito prático ou otimizado, a situação seria diferente e lhe daria a possibilidade de não se fragmentar

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SCHEREER, Sebastian. “Problemas en la prognosis del terrorismo”. Traducido por BÖHM, María Laura. Em: RIVERA BEIRAS, Iñaki; SILVEIRA GORSKI, Héctor Claudio; BODELÓN, Encarna; RECASENS, Amadeu (Coordinadores). Contornos y pliegues del Derecho Homenaje a Roberto Bergalli. Barcelona: Anthropos, 2006, p. 512. 66 SCHEREER, “Problemas en la prognosis”, p. 512. 67 “Cada persona posee una inviolabilidad fundada en la justicia que incluso el bienestar de la sociedad como un todo no puede atropellar”. RAWLS, John. Teoría de la justicia. México D.F.: Editorial F.C.E., 1979, p.19. 68 “En una sociedad justa los derechos concedidos por la justicia no están sometidos a la negociación política ni al cálculo del interés social...”. RAWLS, Teoría , p.20. 69 Sobre el principio de legalidad véase HASSEMER, Winfried. “Derecho penal y filosofía del Derecho en la República Federal de Alemania”. Doxa, núm. 8, 1990, p. 173-186. Disponible en: http://www.cervantesvirtual.com/FichaObra.html?Ref=15401, p.176 y ss. Hassemer se refiere a que “todavía hoy es el principio de legalidad “nulla poena, nullum crimen sine lege” el criterio fundamental que inspira el derecho penal del Estado de derecho”. HASSEMER, “Derecho penal y filosofía”, p.177. E continua, “el principio de legalidad se ha convertido así en uno de los símbolos más característicos del Estado de derecho. En el se centran las esperanzas de que tanto el sistema como la administración de justicia penal sean transparentes, controlables y sinceros”. HASSEMER, “Derecho penal y filosofía”, p.178. 70 Véase FERRAJOLI, Derecho y razón, p.820.Cuando el mismo se refiere a los caracteres del derecho penal o de excepción. 71 APONTE, Alejandro. ¿Derecho penal del enemigo o derecho penal del ciudadano? Bogotá: Temis, 2005, p. 13.

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ante o ataque de seus inimigos72. Daí a necessidade de que o Estado de direito, ante os ataques terroristas, flexibilize suas pretensões, por meio do direito penal do inimigo, a fim de não perecer. Desta feita, apesar de considerar a descrição de Jakobs muito acertada – enquanto põe em evidência a outra face da normativa penal – poderia cair em contradição, porque a existência do “inimigo” implica a guerra – e quem se ocupa da guerra a não ser a política – e é a existência da guerra que asfixia o Estado de direito73. Assim, em relação a isso, há que se admitir que o Estado de direito tende a manchar suas mãos. Como mostra Marxen, desde o século XIX o exercício do poder punitivo do Estado obedece cada vez mais às leis da funcionalidade política, de modo a poder se notar “uma tendência a longo prazo pelo desenvolvimento de um direito penal do inimigo74”. É por meio da excessiva influência política que se confirma a lesão aos princípios básicos do conceito de Estado liberal de direito. Denota-se a tendência por parte das instituições públicas em ter recolocado a resposta aos interesses dos cidadãos, em possibilitar arbitrariamente seus próprios interesses. Sobre isso, Arnold assinala como “a política e o poder, isto é, a violência estatal, procuram utilizar o direito penal para seus fins; o perigo de que, deste modo, o caráter de limitação e de contraposição que o Estado de direito liberal clássico suporta se rompa, não se pode subestimar. Precisamente o direito penal coloca o Estado em posição de alcançar onipotência política75”. Urina-se um direito penal que não é apenas politicamente previsível como também politicamente dependente. Por conseguinte, seria pouco razoável continuar a contemplar o Estado de direito como liberal ou social, quando já se tenha etiquetado os inimigos dentro do direito positivo. O que conduzirá necessariamente à guerra. Pos isso, “as mudanças nos comportamentos requerem também mudanças nas reações. E nada mais que isso assinala Jakobs com o direito penal do inimigo: uma evolução jurídica sem avaliações76”. Conclusão: uma quimera ou um modelo futuro? O direito penal do inimigo é uma quimera em vista de que se compõe por diferentes características combinadas decorrentes de fontes distintas. Para a sua existência, como se observou no desenrolar deste ensaio, ele precisa que diferentes instituições 72

JAKOBS, Günther. “Terroristen als Personen im Recht?”. Wie viel Sicherheit braucht die Freiheit? 30. Strafverteidigertag Frakfurt am Main, 24. al 26. de Marzo, 2006, p.49-53, p.53. 73 Assim, cita Zaffaroni: “La introducción del enemigo en el derecho ordinario (no propiamente bélico o de guerra) de un estado de derecho, lo destruye, porque borra los límites del derecho penal invocando la guerra, y los del derecho humanitario invocando la criminalidad”. ZAFFARONI, El enemigo, p. 226. 74 MARXEN, Klaus. “Die Rechtssprechung des Völksgerichthofs”. KritV, 1992, p. 64 e ss. , com referências adicionais. Citado por: ARNOLD, Jörg. “La «superación» del pasado de la RDA ante las barreras del derecho penal del Estado de Derecho”. Em: ROMEO CASABONA, Carlos María (director). La insostenible situación del Derecho Penal. Área de Derecho Penal de la Universidad Pompeu Fabra (ed. Española). Granada: Comares, 2000, p. 307-340, p. 337. 75 ARNOLD, Jörg. “La ‘superación’ del pasado de la RDA ante las barreras del derecho penal del Estado de Derecho”. Em: ROMEO CASABONA, Carlos María (director). La insostenible situación del Derecho Penal. Área de Derecho Penal de la Universidad Pompeu Fabra (ed. Española). Granada: Comares, 2000, p. 307-340, p. 311. 76 SCHEERER, Sebastian; BÖHM, María Laura; VÍQUEZ, Karolina. “Seis preguntas y cinco respuestas al Derecho Penal del Enemigo“. Em: CANCIO MELIÁ, Manuel; GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos (coordinadores). Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión. Madrid: Edisofer, Buenos Aires: Euros Editores S.R.L., Montevideo: B de F Ltda., 2006, II volumes, vol. 2, p. 917-938, p. 922.

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se mesclem para identificar e permitir que se torne o inimigo inócuo. Todavia, o direito penal do inimigo não poderia ser descrito como quimera a partir da acepção de que esta seja uma fantasia, haja vista que, enquanto as normas que dão respaldo à sua existência cumprem, na atualidade, um papel meramente simbólico ou ilusório: ele tem dado ensejo, no presente, a efeitos muito reais, de modo a não se descartar sua vigência e/ou que venha a ser posto em prática no futuro. Em suma, o direito penal do inimigo é e não é ao mesmo tempo uma quimera: é uma quimera porque associa diversos elementos provenientes de fontes distintas; e não é uma quimera porque está muito distante de ser mera utopia. Como foi dito alhures, o confronto entre o direito penal e a criminalidade organizada é inevitável, assim como a crise na qual se encontra o direito penal, vez que é um instrumento punitivo subordinado ao capricho das decisões políticas cujo objetivo parece ser a conservação de uma aparente política criminal de segurança. A figura do direito penal do inimigo como modelo futuro também não pode ser plenamente afirmada; é que o direito penal do inimigo sem o direito penal dos cidadãos não tem espaço. Trata-se de uma tese que não se pode descartar de todo, uma vez que a chamada “legislação inimiga” continua a existir dentro do direito positivo, e é este conjunto de normas que se encarregará de identificar ou conceber o inimigo em um momento de crise e de colocar-se como um meio de resolução do conflito. Assim, se as bases de contenção de o poder punitivo não forem fortificadas racionalmente, o direito penal do inimigo continuará a se desenvolver sem que dependa de nossa opinião. A levar em conta a descrição do direito penal do inimigo, aqui feita, considera-se que ainda que o professor Jakobs proponha uma solução à contradição que implica a existência de normas voltadas ao inimigo dentro de um Estado de direito liberal, sua posição peca por ser deveras perigosa, o que, contudo, não é suficiente para que não seja válida: o estudo da descrição referida revela a outra face de nosso sistema normativo e destaca os pontos fracos do Estado de direito, de maneira que não se trata de tomar partido de posicionamentos radicais, e sim de reflexões exaustivas. A descrição do direito penal do inimigo deve ser confrontada com a realidade, a qual pode nos ajudar a ampliar o caminho para uma teoria mais racional. O que se verá daqui em diante, a maneira pela qual o direito penal do inimigo se desenvolve, evidenciará um Estado de direito liberal em vias de extinção, que a diferença de necessitar de opositores radicais à doutrina de Jakobs, necessitará de fundamentos sólidos de liberdade e de justiça. É assim como entre a utopia da quimera e a expectativa de um direito penal do inimigo como modelo orientado para o futuro, apenas subsiste uma legislação punitiva que avança a passos largos e com isto a obter “coerência” em seus discursos de segurança e dispensando mais teimosia.

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