Tradução - Internacionalização do direito penal e da política criminal: algumas reflexões sobre a luta jurídico-penal contra o terrorismo (Manuel Cancio Meliá)

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Internacionalização do Direito Penal e da política criminal: algumas reflexões sobre a luta jurídico-penal contra o terrorismo#

Internationalization of Criminal Law and criminal policy: some reflections on the criminal justice fight against terrorism

MANUEL CANCIO MELIÁ Professor Titular de Direito Penal, Universidade Autônoma de Madrid, Espanha.

Resumo: O Direito penal constitui-se, a princípio, na manifestação jurídica por excelência da soberania estatal. Ao lado disso, a crescente globalização da economia e da sociedade promove o surgimento de uma criminalidade globalizada. Estabelece-se, então, um novo desafio para o Direito penal, ao mesmo tempo em que há a internacionalização do crime é preciso que também se internacionalize a política de combate ao crime. Aponta-se que a internacionalização do crime afeta, sobretudo, âmbitos diretamente relacionados com a economia mundial. E que este processo se torna ainda mais dinâmico em virtude do uso da tecnologia para acelerar a troca de informações, especialmente com o uso da internete. Neste passo, verifica-se ao mesmo tempo uma globalização do e uma convergência de discursos sobre o Direito penal. Neste ensaio, procura-se, então, fazer uma reflexão acerca destes discursos penais internacionalizados, inicialmente de uma perspectiva geral e, depois, especifica e exemplificativamente, a partir do terrorismo.

Palavras-chave: Direito penal. Internacionalização. Terrorismo. Política criminal.

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Abstract: The Criminal law, a priori, is the legal manifestation by excellence of the state sovereignty. The crescent globalization of the economy and society promotes the increase of a global criminality. Then, it is established a new challenge to the Criminal law, at the same time that there is the internationalization of the crime there is the necessity that the policy against the crime becomes international. This internationalization affects, thus, areas with a close relation with the global economy. And, this process becomes more dynamic with the use of the technology to accelerate the exchange of information, especially with the Internet. In this way, it is verified that there is simultaneously a globalization of and a convergence of discourses about the Criminal law. In this essay, it is done a reflection on these internationalized criminal discourses, firstly since a general approach, and, then, specific and exemplarily, since the terrorism.

Keywords: Criminal law. Internationalization. Terrorism. Criminal policy.

INTRODUÇÃO

Quando se fala da “globalização” ou da “internacionalização” do Direito penal, parecem estar claros quais são os pontos de partida básicos que delimitam e configuram a questão: por um lado, o Direito penal é considerado geralmente a manifestação jurídica por excelência da soberania do Estado. Com destaque especial na tradição jurídico-política a que se denomina europeucontinental, a ideia de codificação (das normas penais) – através do conteúdo político e jurídicoconstitucional do princípio da legalidade – lhe dá uma relevância que vai muito além de sua significação estritamente técnico-legislativa, a serviço da segurança jurídica. O Direito penal, e determinados elementos de sua configuração jurídico-técnica constituem, portanto, em princípio, um bloco (especialmente) particular num ordenamento jurídico estatal. Por outro lado, contudo – como se sublinha cada vez mais insistentemente na bibliografia –, a crescente globalização da economia (e da sociedade) não pode ocorrer sem que se gere, também, uma criminalidade

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globalizada, marcando uma nova agenda para o Direito penal: “frente a internacionalização do crime, urge responder com a internacionalização da política de combate ao crime 1”.

Este “crime internacional(izado)”, logicamente, afeta, sobretudo, âmbitos que se acham diretamente relacionados com a interconexão econômica do mundo, isto é, determinados delitos econômicos em sentido estrito, certas hipóteses transnacionais de responsabilidade pelo produto ou algumas modalidades de danos ambientais internacionais. Todavia, neste contexto também adquire especial relevância o desenvolvimento de uma espécie de islamita-terrorista internacional em uma rede de troca de informações, coordenada, sobretudo, pela internete – trata-se de uma nova fase evolutiva do fenômeno que já tem sido batizada como o “formato ‘terceiro milênio’ do terrorismo 2” – e que parece ter se constituído para as sociedades do Ocidente no arquétipo de uma organização criminosa internacional moderna, e, com isso, também do crime internacional da atualidade. Os principais setores desta criminalidade transnacional – e, com isso, as pontas de lança da política criminal ocidental do momento – estão provavelmente em determinada infrações econômicas com implicações internacionais, os delitos relacionados com o tráfico de drogas de escala internacional, diversas formas de danos ambientais de caráter transnacional, os delitos produzidos no contexto de movimentos migratórios e, como antes se dizia, na cada vez maior interação internacional de algumas organizações terroristas 3.

Em todos estes setores, o elemento coletivo – sob o rótulo da luta contra a criminalidade organizada – é decisivo para a definição dessas novas formas de criminalidade: trata-se sempre de organizações que têm uma influência essencial na mídia e na valoração do potencial de risco 1

MIRANDA RODRIGUES/LOPES DA MOTA, Para uma política criminal europeia. Quadro e instrumentos da cooperação judiciária em matéria penal no espaço da Unido Europeia, 2002, p. 15; cf. também, por exemplo: PRADEL, Revue Juridique Themis (RJT) 35 (2001), p. 241 e ss.; SCHÜNEMANN, GA 2003, p. 299 e ss. 2 WALKER, Crim.L.R. 2004, p. 314. 3 Ver, por exemplo, as seções previstas para o XVIII congresso da Associação Internacional de Direito penal (Istambul, 2009): extensão das formas puníveis de preparação e participação no delito, financiamento do terrorismo, medidas especiais no processo penal e direitos humanos, jurisdição universal (ver: www.penal.org/new/activites.php?langage=fr&Doc_zone=ACTIVITE&ID_doc=23). Sobre as ameaças globais ou transnacionais, cf.: PIETH, ZStW 109 (1997), p. 756 e ss., 761 e ss.; SILVA SÁNCHEZ, La expansión del Derecho penal Aspectos de la politica criminal en las sociedades postindustriales, 1999, 2. ed., 2001, p. 26 e ss.; SCHÜNEMANN, GA 2003, p. 302 e ss.; PICOTTI, in: Criminalitá transnaziona!e fa esperienze europee e risposte penali globali, 2005, p. 83 e ss., 85 e ss.; BRAUM, in: Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie Frankfurt am Main (ed.), jenseits des rechtsstaatlichen Strafechts, 2007, p. 29.

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pelos agentes políticos e da população, exercendo também, correspondentemente, um influxo determinante na configuração concreta dos conteúdos da política criminal prática neste âmbito 4.

No entanto, esta preeminência das organizações na criminalidade internacional não leva a que esta se identifique sempre, da perspectiva da origem social de seus autores, com uma pertinência a estratos dirigentes da sociedade em questão. Pelo contrário, a qualificação desta criminalidade neste contexto varia de modo muito notável, entre seu entendimento como “crime of the powerful 5” ou como “crime of the powerless 6”: neste sentido, pensa-se tanto em ameaçadoras “organizações de tráfico de pessoas” como nos paupérrimos patronos das embarcações de madeira que – sendo estes em ocasiões evidentemente autores (materiais) e, às vezes, vítimas – protagonizam a imigração clandestina nas costas do sul da Europa; no tráfico de narcóticos, aparecem no imaginário público tanto os temidos “carteis internacionais de drogas” como a presença em cárceres ocidentais de grande número de pequenos contrabandistas (conhecidos em espanhol como “mulas”).

Finalmente, no que diz respeito às repercussões desta criminalidade internacional sobre o Direito penal positivo, há que sublinhar já agora que nem sequer está claro se o Direito penal globalizado supõe uma ordenação positiva mais repressiva, ou, pelo contrário, mais frouxa: ao potencial expansivo da harmonização de ordenamentos penais, sublinhada com insistência na bibliografia 7, contrapõe-se com frequência a evidente desregulação que comporta a globalização econômica, repercutindo esta necessariamente também no Direito penal 8. 4

Ver os diversos pontos de partida nas análises recentes dos delitos de organização feitos em: SANCHEZ GARCfA DE PAZ, La criminalidad organizada, 2005, passim; HEFENDEHL, StV 2005, p. 152 e ss.; CANCIO MELIÁ, in: PAWLIK/ZAZCYK et al. (ed.), Festschrift für Günther Jakobs, 2007, p. 27 e ss. 5 Cf., por todos: SILVA SANCHEZ, La expamsión, 2. ed. (nota 3), p. 83; MIRANDA RODRIGUES/LOPES DA MOTA, Para uma política criminal europeia (nota 1), p. 14. 6 Assim, sobre o terrorismo: VOGEL, Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid (AFDUAM) 9 (2005), p. 116. 7 Esta é a tese principal de SILVA SANCHEZ (La expansión, 2.ed., [nota 3], p. 80 e ss., 85) neste contexto; ver, também, por exemplo: PIETH, ZStW 109 (1997), p. 758; BRAUM, in: Jemeits des rechtsstaatlichen Strafrechts (nota 3), p. 33 e ss.; sobre o ordenamento japonês, na mesma linha: IDA, in: www.rokyo-jurakongress2005.de/lda_de.pdf, p. 2 e ss. 8 Assim, por exemplo: SCHÜNEMANN, GA 2003, p. 299 e ss., 302, 303, 306 e ss., que caracteriza esta ambivalência como coexistência de um “imperialismo jurídico defensivo” (com isso faz referência aos obstáculos criados pelos EUA ao desenvolvimento de um Direito penal internacional efetivo) com um “imperialismo jurídico

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A tensão político-criminal que, segundo uma generalizada convicção, gera este “crime internacional” um tanto quanto amorfo descarrega-se, como é sabido, sobretudo em quatro vias de internacionalização do Direito penal 9: em primeiro lugar, é necessário mencionar uma nova compreensão, e uma intensificação generalizada, no campo da cooperação judicial, e, em um sentido mais amplo, na colaboração entre serviços de polícia. A tendência vai à direção da debilitação do princípio da territorialidade: da extradição (corporal) ao reconhecimento (ideal) de resoluções alheias 10. Em segundo lugar, como é natural, o ímpeto internacionalizador manifestase também na harmonização formal 11 dos ordenamentos nacionais através de tratados de Direito internacional, se bem que este processo – precisamente no que toca o seu caráter internacional – frequentemente se mostra “muito mais oculto 12”, já que depois da frequente transposição ao Direito nacional já não há uma consciência geral da origem das novas normas. Em terceiro lugar, o processo supranacional que tem lugar na UE – União Europeia 13 – que oscila entre a harmonização e a afirmação de uma competência legislativa autônoma da União 14 –, evidentemente é um centro de gravidade essencial da internacionalização na Europa, e cabe

ofensivo”, ou, inclusive, de uma “colonização jurídica” (a imposição internacional do programa político-criminal, de novo, dos EUA, em alguns âmbitos, como o da persecução internacional da corrupção privada ou o do tráfico de narcóticos); cf. também: BRAUM, in: Jenseits des rechtsstaatlichen Strafrechts (nota 3), p. 27 e ss. 9 Para estas reflexões de caráter preliminar pode ficar de fora a consideração da questão de qual é o grau de incidência das normas internacionalizadas sobre a realidade jurídico-aplicativa; caso se pretenda, por outra, oferecer uma imagem menos genérica que a que aqui se quer traçar, é imprescindível dar conta de uma análise conjunta além de uma análise meramente normativa, isto é, considerando o law in action em sentido amplo, para poder avaliar a profundidade estatal dos distintos fatores de internacionalização; cf., neste sentido, em caráter geral sobre as análises iuscomparativas, por todos: PERRON, ZStW 109 (1997), p. 290 e ss.; JUNG, JuS 1998, p. 2 e ss., ambos com ulteriores referencias e instrutivos exemplos. 10 Como se sabe, esta evolução tem alcançado particular densidade no marco da União Europeia; ver: MIRANDA RODRIGUES/LOPES DA MOTA, Para urna polftica criminal europeia (nota 1), p. 13 e ss.; AMBOS, Internationales Strafrecht. Strafanwendungsrecht. Volkerstrafrecht. Europiiisches Strafrecht, 2006, p. 12/19 e ss., 56 e ss. 11 PRADEL, RlT 35 (2001), p. 241 e ss., 248 e ss., que denomina estas tendências de harmonização dos ordenamentos penais nacionais “mundialização aparente” em contraposição com a “verdadeira” internacionalização que se produziria através do Direito penal interno supranacional. 12 PERRON, Z5tW 109 (1997), p. 281. 13 Segundo SIEBER [in: SIEBER/ALBRECHT (ed.), Strafrecht und KriminoltJgie unter einem Dach, 2006, p. 91 e ss.], apesar do fracasso do projeto de Constituição não se entende que o processo tenha acabado. 14 Sobre o estado da questão, ver, ultimamente, por exemplo, a partir de perspectivas distintas: BÖSE, GA 2006, p. 211 e ss.; BRAUM, wistra 2006, p. 121 e ss.; GÚMEZ-JARA DÍEZ, in: BAJO FERNÁNDEZ (ed.), Constitución Europea y Derecho penal económico, 2006, p. 326 e ss.; NIETO MARTÍN, RGDP 4 (nov. 2005), www.iustel.com.

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pensar que no futuro existirão processos similares em outros contextos geográficos 15. Por fim, há que se constatar uma intensificação também no campo do Direito penal internacional em sentido estrito: ainda que se discuta intensamente sobre a verdadeira densidade deste Direito penal global, parece claro que também aqui começou um novo ciclo evolutivo 16.

Com o breve esboço feito delimitou-se o campo em que, conforme a opinião geral na discussão teórica, tem lugar a atual globalização do Direito penal. Entretanto, a partir da perspectiva aqui adotada, junto com estas primeiras manifestações jurídico-positivas da internacionalização também se deve constatar a convergência – permita-se, por ora, uma formulação aproximada – de certos discursos sobre o direito penal, isto é, de certo modo, do entorno ideológico do Direito positivo. A seguir procurar-se-á fazer alguma reflexão sobre estes discursos penais internacionalizados. Primeiro a partir de uma perspectiva geral (2), depois, especificamente (e a título de exemplo) sobre o terrorismo (3).

2 PROCESSOS DE INTERNACIONALIZAÇÃO (IDEOLOGIA”)

2.1 CIÊNCIA DO DIREITO PENAL

Atualmente, um dos objetos essenciais à ciência do Direito penal em nossa tradição, a dogmática jurídico-penal (concretamente: a dogmática de origem alemã, praticada tanto em Portugal quanto na Espanha), parece estar (de novo) em crise. Sem embargo, se no passado mais recente a utilidade do trabalho dogmático se posicionou como um objeto de discussão teórica – em uma 15

Ver, por exemplo, a exposição em: AMBOS, Internationales Strafrecht (nota 10), §§ 9 e ss.; TIEDEMANN, ZStW 116 (2004), p. 945 e ss. No cerne desta discussão, as ondas da polêmica podem alcançar dimensões consideráveis; aqueles que se mostram críticos sobre a evolução europeia no âmbito do Direito penal, com frequência reprovam de modo bastante genérico uma atitude de europeísmo (e, com isso, também uma perspectiva nacionalista). Também neste caso, parece que será de utilidade optar por mais descrição e menos polêmica. Neste sentido, parece que a maior ajuda ao europeísmo está em uma atitude sossegada: a constatação de que na construção de casas é mais conveniente começar com as bases que com o telhado, a fim de que não se rechace o projeto de construção da casa (cf.: CANCIO MELIÁ, in Constitución Europea, v. nota 14 supra, p. 270 e ss.). 16 Cf. AMBOS, Internationales Strafrecht, v. nota 10 supra, §§ 5º e ss.

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época em que havia a esperança de se poder marginalizar a pena em sentido estrito através da ressocialização –, agora predomina a impressão de que a evolução que questiona as bases tradicionais da dogmática é impulsionada, antes de tudo, pelo próprio legislador, de modo que, uma vez convertido o impulso político-criminal em Lei, estar-se-ia minando desde dentro a elaboração dogmática. Não é já um programa alternativo ao Direito penal, abolicionista, o que questiona instituições básicas da dogmática jurídico-penal, senão que são certas inserções modernas no Direito positivo que geram a crise: no plano do injusto, diferenças nos padrões penais (pense-se, por exemplo, em certas penas para delitos graves contra bens jurídicos personalíssimos em comparação com as penas previstas no âmbito dos delitos de tráfico de drogas) aos quais falta uma possível explicação racional; na redação dos tipos, antecipações da punibilidade que praticamente dinamitam categorias dogmáticas inteiras, como as de autoria e participação, tentativa e consumação ou outras instituições centrais da teoria da imputação.

Apesar desta evolução, como é sabido, tem lugar, simultaneamente, em muitos ordenamentos penais ocidentais, a “questão de fé 17” de que se existe uma convergência científica de entidade comparável provavelmente deva ser contestada negativamente 18; no essencial, parece ainda plenamente adequada a imagem traçada por Fletcher, que vê um mundo jurídico-penal (ocidental) fundamentalmente bipolar, fracionado no círculo jurídico anglossaxão e no círculo jurídico continental, situando-se em volta do segundo vários círculos concêntricos ao lado da ciência do Direito penal alemã, especialmente influente 19. É certo que nos últimos anos pode-se verificar dentro do “primeiro círculo” (no que se poderia mencionar talvez junto à Alemanha e Itália, Portugal, América Latina e Espanha) um maior intercâmbio; particularmente, a ciência do Direito penal alemã tem mostrado ultimamente certa tendência a considerar também trabalhos publicados em outros idiomas 20, e também se pode dizer que em todo o continente jurídico-penal há um maior interesse pela teoria jurídico-penal de língua inglesa; todavia, não se pode dizer que 17

Assim: VOGEL, AFDUAM 9 (2005), p. 124. HIRSCH, ZStW 116 (2004), p. 835 e ss., propõe distinguir entre ciência nacional e ciência internacional do Direito penal. 19 In: ESER/HASSEMER/BURKHARDT (ed.), Die deutsche Strafrechtswissenschaft'vor der ]ahrtausendwende. Rückbesinnung und Ausblick, 2000, p. 235 e ss.; adota uma posição crítica sobre um “pensamento (de separação) esquemático em demasia” e de uma perspectiva exclusivamente ocidental, por exemplo: JuS 1998, p. 3 e ss. 20 Em sentido contrário: TIEDEMANN, GA 1998, p. 107 e ss.; ver sobre a questão, também: HIRSCH, ZStW 116 (2004), p. 851 e ss.; ROXIN, in Die deutsche Strafrechtswissenschaft, v. nota 19 supra, p. 378 e ss. e 381. 18

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haja um verdadeiro conhecimento mútuo. Se, por exemplo, se compare a relativa homogeneidade dos sistemas jurídico-penais latinoamericanos – e a relativa facilidade com que circulam as obras teóricas escritas em espanhol nos países dessa área – com a situação na UE, com suas enormes diferenças sistemáticas e a falta de comunicação generalizada com exceção de alguns poucos países, esta se assemelha a uma verdadeira Torre de Babel jurídico-penal 21. Neste sentido, é significativo que, apesar dos rápidos avanços na europeização dos ordenamentos penais estatais e da aparição dos primeiros sinais de um futuro Direito penal europeu, os ordenamentos europeus não tenham sido ainda objeto de um estudo comparado profundo 22.

2.2 PRAGMATISMO E IDEOLOGIA (PENAL)

Como já esboçado, um dos fatores desencadeantes da internacionalização do Direito penal parece estar no desenvolvimento (e na percepção social) do crime transnacional. Por conseguinte, constata-se nos impulsos legislativos nos campos internacionalizados do Direito penal uma orientação que seria antes de qualquer coisa pragmática 23, dirigida à satisfação das necessidades de persecução existentes 24. Desta perspectiva, parece compreensível que as frentes científicas permaneçam mais ou menos rígidas, apesar da internacionalização de fato: não é necessária uma aproximação científica se o encontro entre os diversos ordenamentos jurídicos se produz em suas periferias, no campo setorialmente limitado do combate contra o crime internacional. De acordo com esta imagem, o Direito penal globalizado afeta tão-somente aos setores de regulação globalmente relevantes, constituindo, assim, um segmento jurídico-penal não essencial, agrupado 21

Ver a argumentação de: KÜHL, ZStW 109 (1997), p. 777 e ss., 792 e ss.; cf. também as distintas perspectivas sobre o problema recolhidas em TIEDEMANN (ed.), Wirtschaftsstrafrecht in der europiiischen Union. Rechtsdogmatik -Rechtsvergleich ­Rechtspolitik (Freiburg-Symposium), 2002. 22 Parece significativo que naquilo que se pode verificar, não se tem alcançado o nível das “Vergleichenden Darstellungen” alemãs publicadas no início do século XX; constatam uma especial necessidade de haver estudos de Direito comparado no momento especial, por exemplo: JUNG (JuS 1998, p. 1 e 7); ROXIN (in Die deutsche Strafrechtswissenschaft, v. nota 19 supra, p. 378 e ss., 381 e ss.); ou, SIEBER (in SIEBER/ALBRECHT, v. nota 14 supra, p. 80 e ss., 93 e ss.). 23 Particularmente, sob o decisivo influxo da visão estadounidense do sistema penal; assim, por exemplo: VOGEL, AFDUAM 9 (2005), p. 118. 24 Cf. SILVA SÁNCHEZ, La expamión, 2. ed., v. nota 3 supra, p. 82 e ss.; VOGEL, JZ 1995, p. 331 e ss.. e 336; consequentemente, SIEBER (in SIEBER/ALBRECHT, v. nota 14 supra, p. 92) vê como uma das vantagens do processo de internacionalização uma “persecução efetiva da criminalidade transnacional”.

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na periferia de um núcleo que seguiria sendo estatal e estável. Com efeito, parece evidente que o fator da luta preventiva efetiva e de orientação policial ocupa uma posição central na comunicação pública sobre os fenômenos de globalização do Direito penal. Sem embargo, não se faz justiça à verdadeira profundidade do processo de internacionalização caso se conceba como uma espécie de deformação pragmática às margens do ordenamento penal. Se o Direito (penal) é um sistema social, sua situação não pode divergir radicalmente do sistema econômico globalizado, de caráter dominante, não pode se separar da “produção material”; pelo contrário, a “produção intelectual” também é globalizada: “Os produtos intelectuais das diversas nações se convertem em bem comum. A limitação e unilateralidade nacionais são cada vez mais impossíveis 25”. Também a internacionalização penal tem seu substrato ideológico-programático: nem tudo é mero pragmatismo dos agentes estatais no plano da persecução. Pelo contrário, o certo é que sob a trepidante atividade interestatal pode-se encontrar uma proliferação da internacionalização da política criminal, ou, mais concretamente, das perspectivas da teoria da pena que se encontram na base daquela (a que se pode denominar “ideologia penal”); é esta circunstância que explica – talvez como a consequência de maiores efeitos práticos de toda a evolução – a infiltração de novas concepções penais na política criminal prática dentro dos Estados. Esta globalização da política criminal [e não política criminal da globalização (econômica)], portanto, apresenta-se puramente pragmática, e, também, apresenta um substrato ideológico (de teoria da pena).

Esta política criminal internacionalizada parte de uma evolução em que o Direito penal passa a pertencer à primeira linha da política cotidiana, em um clamor que demanda em todas as partes uma maior intervenção da pena pública, e pode se caracterizar – em breve síntese – através de duas teses básicas: em primeiro lugar, a percepção social dos sucessos delitivos se reduz progressivamente à perspectiva da vítima: o tratamento jurídico-dogmático da figura da vítima concreta – no plano da aplicação, portanto – mostra que se trata de um elemento extraordinariamente ambivalente em termos político-criminais: coloca-se um verdadeiro dilema vitimológico, em que a introdução deste fator oscila entre a retirada da proteção pelo poder

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MARX/ENGELS, Maniftst der Kommunistischen Partei [1848], 54. ed., 1987, p. 49 e ss.

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público (privatização) que pode significar lhe atribuir responsabilidade (blaming the victim) e a exacerbação da desvalorização jurídico-penal da conduta do autor que pode implicar na colocação em primeiro plano de um suposto sofrimento individual da vítima 26. Esta ambivalência é expressão da relevância estrutural que para o Direito penal público moderno tem a posição da vítima: Hassemer chegou a vincular o mesmo nascimento deste Direito penal à “neutralização da vítima”, à sua dissolução no Estado como uma espécie de “vítima geral 27”. Pois bem: qualquer análise superficial da comunicação acerca dos fenômenos criminais mostra que esta se concentra, progressivamente, na perspectiva da vítima. No tratamento dos sucessos ocorrido (vítima concreta) nos meios de comunicação e no discurso político-criminal ativista em que se adota a posição – compartilhada por quase toda a população – de possível vítima, de vítima potencial 28. Parece claro qual é o rumo que toma tal redução unilateral da perspectiva sobre o delito: a absolutização da prevenção fática; o que a vítima (potencial) – definida apenas como tal – deseja é não chegar a sê-lo 29. Em segundo lugar, existe consenso político e social no discurso políticocriminal expansivo... ou, assim parece. Ainda sem entrar aqui na gênese concreta destes processos de evolução político-criminal 30, pode-se afirmar que é um verdadeiro lugar comum sustentar que existe um amplíssimo consenso social a respeito de segmentos decisivos da nova legislação penal. O consenso se converte em prática unânime, particularmente, no que se refere à regulação das infrações em matéria de terrorismo 31. Parece claro, a grandes riscos, que a 26

Ver: CANCIO MELlA, Conducta de la vfctima e imputación objetiva, 2. ed., 2001, p. 221 e ss., 229 e ss. Einfiihrung in die Grundlagen des Strafrechts, 2. ed., 1990, p. 70. 28 Ver, por todos: SILVA SÁNCHEZ, La expansión, 2. ed, v. nota 3 supra, p. 52 e ss. O exemplo mais acabado deste processo, com uma mobilização social (autônoma) mais que notável, pode-se verificar no “movimento de defesa dos direitos das vítimas” nos EUA, que tem influenciado decisivamente na adoção de regras de three strikes em muitos estados; cf.: DUBBER, Victims in the War on Crime. The Use and Abuse of Victims' Rights, 2002. 29 Ver, por todos, a exposição de SILVA SÁNCHEZ, La expansión. 2. ed, v. nota 3 supra, p. 52 e ss. 30 Ver: CANCIO MELlÁ, in JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, 2. ed., 2006, p. 90 e ss., com referências. De todo modo, deve-se sublinhar aqui que no plano fático pode-se constatar que esse consenso políticocriminal é, às vezes, um consenso induzido, fabricado: ver, por exemplo, os case studies sobre o âmbito estadounidense (começando pela famosa war on drugs na campanha presidencial de Bush I) em: BECKETT, Making Crime Payo Law and Order in Contemporary American Politics, 1997, passim. 31 “Desde logo, o cidadão se acostuma com o pano de fundo de determinados cenários [...] [de ações terroristas] à completa abolição de sua liberdade sem reconhecer o círculo vicioso: os Estados reagem ante o injusto com um mega-injusto” (ALBRECHT, ZStW 117 [2005], p. 854); as origens desta evolução são, é claro, muito anteriores à última década; ver o relato sobre a evolução quanto ao aspecto político espanhol nos anos oitenta do século passado em: TERRADILLOS BASOCO, Terrorismo y Derecho. Comentario a las LL.OO. 3 y 4/1988, de reforma del Código Penal y de la Ley de Enjuiciamiento Criminal, 1988, p. 31 e ss. Em todo caso, deve-se sublinhar que este consenso é difuso – como não podia deixar de ser –, atécnico, que se exaure normalmente quando solicita uma “resposta contundente”; ver a continuação no texto. 27

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população é favorável a “reações firmes”; contudo, é muito discutível que se possa ter como provada a existência do pretendido consenso social sobre medidas concretas ou instituições jurídico-penais. Neste âmbito, aparte da utilização política do fenômeno criminal, entra em jogo a própria posição e dinâmica dos meios de comunicação de massas, em particular, da televisão.

Em todo caso, pode-se constatar que a demanda indiscriminada de penas maiores e “mais efetivas” já não é um tabu político para ninguém; em todo o ocidente, e para agentes políticos de diversas orientações, o discurso que dá ao Direito penal um papel decisivo na prevenção fática do delito é ubíquo 32.

3 POLÍTICA CRIMINAL DA LUTA CONTRA O TERRORISMO

Finalmente, serão feitas algumas reflexões sobre a ideologia penal da internacionalização com base no caso dos delitos de terrorismo: um âmbito em que a mais recente escalada da violência tem produzido uma aceleração e uma densidade especial na globalização dos discursos. Estas considerações mostram que, apesar da manifesta inovação de um único pilar de apoio – como anteriormente se esboçou: prevenção fática –, pode-se constatar, também, a presença de um elemento de ideologia penal de características distintas: um mecanismo normativo distorcido, uma construção de identidade social. Em seguida, abordar-se-á a política criminal prática em matéria de delitos de terrorismo (3.1). Depois, serão recordadas algumas das características empíricas do terrorismo como fenômeno social (3.2). Sobre esta base, finalmente, poder-se-á fazer alguma avaliação das consequências da ideologia penal subjacente sobre o ordenamento jurídico-penal (3.3).

3.1 EFICIÊNCIA PREVENTIVA E DEMONIZAÇÃO

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Cf. a caracterização sintética da situação por HASSEMER, in Jenseits des rechtsstaatlichen Strafrechts (nota 3), 113; ver também: CANCIO MELIÁ, ZStW 117 (2005), p. 267 e ss., 273 e ss.

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Se o debate sobre o conceito do “Direito penal” do inimigo (um setor de regulação em que se adianta ao máximo a barreira da criminalização, elevam-se as penas drasticamente e restringe-se sensivelmente o estatuto processual do imputado 33) tem mostrado alguma coisa para as infrações em matéria de terrorismo é que a estrela no arsenal argumentativo a favor de regras completamente distintas para os inimigos (terroristas) está – de maneira paralela ao que acontece noutros setores de regulação envolvidos nesta evolução político-criminal, embora com maior intensidade – na questão da periculosidade dos atos dos terroristas e na consequente necessidade de sua prevenção instrumental34, ao se tratar de uma fonte de perigo especialmente significativa 35. Nas palavras do atual Ministro federal do interior alemão: “Na luta contra o terrorismo temos que fazer uso efetivo de todos os instrumentos que estão à disposição do terrorismo. O Direito penal é parte de uma missão de segurança do Estado de orientação preventiva. Temos que combater o terrorismo, também com o Direito penal, logo ali onde comece a ser perigoso, e não apenas quando tenham ocorrido atentados 36”. Em uma frase: aqui é especialmente evidente que se produz uma “mudança de orientação fundamental, da política reativa em face dos acontecimentos para uma polícia proativa e uma gestão de riscos 37”.

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Sobre a situação político-criminal geral, ver, por todos, a síntese fundamental elaborada por SILVA SÁNCHEZ, La expansión. 2. ed., v. nota 3 supra, passim, e, muito recentemente, o profundo estudo de BRANDARIZ GARCÍA, Política criminal de la exclusión. El sistema penal en tiempos de declive del Estado social y de crisis del EstadoNación, 2007. Neste contexto, tem adquirido enorme importância na discussão a noção de “Direito penal do inimigo”; sobre o conceito, ver: JAKOBS, ZStW 97 (1985), p. 753 e ss.; IDEM, HRRS 3/2004; IDEM, Die Staatliche Strafe: Bedeutung und Zweck, 2004, p. 40 e ss.; IDEM, in CANCIO MELIA/GÓMEZ-JARA DÍEZ (ed.), Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión, 2006, t. 2, p. 93 e ss. Sublinhando a potência analítica do conceito, e sua incompatibilidade com um Direito (penal) de um estado de Direito: CANCIO MELIÁ, ZStW 117 (2005), p. 267 e ss.; IDEM, in JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, 2. ed., v. nota 30 supra, p. 85 e ss. Do ponto de vista aqui adotado, a polêmica internacional gerada sobre este conceito tem sido muito frutífera; ver os numerosos trabalhos recolhidos em: CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ, Derecho penal del enemigo, 2 vol. (v. supra). 34 V. na Alemanha: JAKOBS, in IDEM/CANCIO MELIA, Derecho penal del enemigo, 2003, p. 42; também: IDEM, ZStW 117 (2005), p. 847; no mesmo sentido: ROELLECKE, JZ 2006, p. 265 e ss. e 269; SCHAUBLE, ZRP 2006, p. 71; aceita estes termos de discussão, ainda que partindo de uma posição oposta, por exemplo: ALBRECHT, ZStW 117 (2005), p. 855. 35 Cf., por exemplo, em termos mais gerais: SILVA SÁNCHEZ (in La expansión, 2. ed., v. nota 3 supra, p. 163): “fenômenos [...] que ameaçam socavar os fundamentos últimos da sociedade constituída em Estado”; “reações cingidas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos excepcionalmente graves” (ibidem, p. 166). 36 SCHÄUBLE, ZRP 2006, p. 71. 37 WALKER, Crim. L. R. 2004, p. 315.

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Como se sabe, a internacionalização anteriormente esboçada tanto do Direito penal como dos discursos penais, é especialmente intensa neste campo: no que se refere a uma internacionalização do Direito penal, sobretudo depois dos ataques de 11-09-2001 pode-se falar de uma atividade frenética nos esforços internacionais de harmonização 38 e nas iniciativas de harmonização e de cooperação dentro da UE39. Todavia, a colheita de internacionalização real, iuspositiva, é bem mais escassa: embora a queda da URSS tenha facilitado o caminho, ainda não se alcançou o mínimo denominador comum que deveria levar a uma definição internacional do terrorismo; inclusive dentro da UE, pelo que se pode ver, a Decisão Paradigma sobre a questão não tem produzido modificações decisivas nos ordenamentos penais (com exclusão daqueles que careciam da regulação) estais, ainda que tenham surgido problemas de coerência internos das distintas regulações 40. Por outro lado, parece claro que os discursos penais relativos ao terrorismo – e, na base deste, a representação nos meios de comunicação, que garante (sobretudo, quando há imagens) aos atos terroristas em todo o mundo uma posição de preferência na imprensa convencional, na televisão e na internete – são verdadeiramente globais. Neles tem-se resumida toda a problemática de uma maneira que se pode chamar terminal, pelas dimensões apocalípticas que assume quase sempre no discurso público a referência à periculosidade dos terroristas: diante de modos completamente irrestritos que mostra o mais recente terrorismo de inspiração religiosopolítica de orientação islâmica, resumidos nos atentados de 11 de setembro de 2001, de 11 de março de 2004 e de 7 de julho de 2005 41, a questão que se coloca é, nada mais e nada menos, a de

38

Cf. por exemplo: CHERIF BASSIOUNI (ed.), La cooperazione intemazionale per la prevenzione e la repressione della criminalitá organizzata e del terrorismo, 2005. 39 Ver, antes de qualquer coisa, a decisão paradigma de 13.6.2002; cf.: AMBOS, Internationales Straf recht (nota 10), 12/17. 40 Manifestam-se criticamente sobre a relevância intrínseca da Decisão paradigma (e/ou sua transposição ao Direito do Estado membro) sobre os distintos ordenamentos estatais: FIGUEIREDO DIAS/PEDRO CAEIRO, RLJ 135 (2005), p. 70 e ss. e 88 e ss.; GARCÍA RIVAS, RGDP 4 (2005). p. 1 e ss., 13 e ss. e 19 e ss.; PICOTTI, in Criminalitá transnazionale, v. nota 3 supra, p. 115 e ss.; STEIN, GA 2005, p. 433 e ss. e 444 e ss.; WALKER, Crim.L.R. 2004. p. 324. 41 Examinam-se as páginas que LAQUEUR dedica em uma obra geral ao terrorismo na Europa no ano de 1992 (Europe in Our Time. A History 1945-1992. p. 446 e ss.), chama atenção a tranqüilidade de espírito com a que se examina o fenômeno em comparação com a logomarca das abordagens neste momento.

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se nossa sociedade está disposta a sucumbir aos riscos advindos do terrorismo, ou estará, por outra, preparada para assumir restrições às liberdades 42.

Apesar do domínio praticamente incontestado desta argumentação preventivista, sem embargo, já no plano empírico deve-se constatar que não há qualquer certeza sobre a eficácia preventiva de determinadas medidas jurídico-penais. Assim, por exemplo, não está claro se no processo de dissolução das organizações terroristas surgidas nos anos sessenta e setenta do século passado tiveram algum papel significativo normas de exceção introduzidas no ordenamento penal 43. Aqui o ponto de partida está, pelo contrário, na constatação de que é muito difícil avaliar qual tem sido o papel concreto da existência de determinadas regras jurídico-penais (embora pareça razoável pensar que se poderá quantificar, em alguma medida, a influência da organização dos serviços de polícia preventiva 44): esta questão, como em outros âmbitos de regulação, subtrai-se de afirmações empíricas de certa consistência. Por outra parte, não há especialmente que se sublinhar que as questões de prevenção negativa e de eficiência da persecução penal se apresentam de um modo completamente diverso do habitual (isto é: muito pior 45) quando se trata do novo terrorismo a que se referiu alhures: de terroristas suicidas 46 de orientação religiosa 47, 42

Ver a formulação dramática JAKOBS (in JAKOBS/CANCI0 MELIA, Derecho penal del enemigo, 2. ed., v. nota 30 supra, p. 75 e ss.): “[...] quem defende a posição de que no Estado de Direito sempre tudo deve se converter em realidade, deveria saber que aquele ‘tudo’ na realidade concreta vem acompanhado por um ‘ou nada’”. 43 Esse parece ser o caso, em particular, na República Federal da Alemanha, do passo da “primeira geração” da “Divisão do Exército Vermelho” [RAF, Rote Armee Fraktion] às sucessivas ondas de membros desse grupo terrorista; cf., por exemplo, Dencker, StV 1987, p. 117 e ss.; DÜX, ZRP 2003, p. 191 e ss.; sobre o caso paralelo da legislação antimáfia, por todos: MOCCIA, La perenne emergenza. Tendenze autoritarie nel sistema penale, 2. ed., 1997, p. 53 e ss. 44 Assim, por exemplo: WALKER, Crim.L.R. 2004, p. 327. Vide os perturbadores dados que oferece SCHEERER (Die Zukunft des Terrorismus. Drei Szenarien, 2002, pp. 67 Y ss.) sobre a concreção das predições de especialistas de diversas áreas sobre a iminente produção de um atentado como os ocorridos em 11.9.2001; igualmente perturbadores são as decisões no sistema de inteligência e judicial que puderam advertir no caso espanhol, posteriormente, sobre os atentados de Madrid de 11.3.2004; vide: DE LA CORTE IBAÑEZ, Athena Paper 21 (1112007), p. 9 e ss., com referências ulteriores. 45 SCHÜNEMANN in HEGER, ZStW 117 (2005), p. 882, afirma que neste âmbito o Direito penal sempre fracassa. 46 Uma modalidade de atuação de especial poder propagandísticos no interior do “campo” do terrorista, já que “[...] o rol do mártir integra as melhores virtudes dos outros dois estereótipos [...]: o das vítimas e o dos herois ou guerreiros” (DE LA CORTE, in BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid JJ-M. Un análisis del mal y de sus consecuencias, 2005, p. 204). De todo modo, como sublinha AULESTIA URRUTIA, Historia general del terrorismo, 2005, p. 237 e ss., devem-se diferenciar origens e orientações diversas dentro do que se poderia chamar terrorismo suicida e não perder de vista o fato de que não se trata de um fenômeno novo (op. cit., p. 239 e ss.). 47 Cf. sobre este fenômeno: WALDMANN, Terrorismus. Provokation der Macht, 1998, p. 61 e ss. e 63; JUERGENSMEYER, Terror in the Mind of God. The Global Rise of Religious Violence, 3. ed., 2003, passim;

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organizados em pequenos grupos de ação autônomos, embora com conexões transnacionais 48. Neste sentido, no que tange a suas formas de organização na atualidade, se tem dito, com efeito, que sua estrutura obedece mais ao modelo da franquia orientada em um sistema de nodos sem a hierarquia vertical “clássica 49”. Parece claro que no caso destes grupos, seria impossível desarticular – usando apenas meios de persecução criminal e duradouramente – uma organização multicêntrica e carente de uma verdadeira estrutura funcional em seu conjunto.

A fixação político-criminal pela prevenção fática não se acha, portanto, respaldada pela comprovação dos efeitos reais de determinadas medidas penais. Isto é indicativo de que esta fundamentação permanece superficial, enquanto outros elementos decisivos da evolução do discurso jurídico-penal estão latentes. Em uma frase: sob a aparência da tomada de medidas (dolorosas, no entanto) eficazes, do discurso preventivista, na realidade aparece o motor da demonização como multiplicador social do Direito penal do inimigo 50. Este processo de definição da identidade social mediante exclusão de determinadas categorias de sujeitos, convertido em linha diretriz do Direito penal, explica algumas das características do processo de internacionalização que antes se esboçou em caráter geral. Neste sentido, sobre esta base é possível compreender a preeminência do elemento coletivo em todos os âmbitos da nova política criminal: o mecanismo de categorização, de definição de um (ameaçador) coletivo como inimigo somente funciona se referir-se a grupos de autores, não a indivíduos. Também fica claro como é possível que apenas alguns dos fatores de criminalidade transnacional ingressem verdadeiramente na agenda político-criminal, e outros não: apenas aqueles segmentos de criminalidade que possam se identificar como cometidos por categorias de sujeitos ameaçantes para a identidade LUTZ/LUTZ, Global Terrorism, 2004, p. 82 e ss.; SAGEMAN, Understanding Terror Networks, 2004, passim; ALONSO, in Madrid ll-M (nota 46), p. 113 e ss., 123 e ss., 128 e ss. 48 Sublinha este risco das novas formas de terrorismo, por exemplo: REINARES, Terrorismo y antiterrorismo, 1998, p. 211 e ss. 49 De fato, o normal é referir-se a estas organizações, em particular, a Al Qaeda, como “rede”; ver: LUTZ/LUTZ, Global Terrorism (nota 47), p. 82 e ss.; DE LA CORTE/JORDÁN, La yihad terrorista, 2007, cap. 6, respectivamente, com referências ulteriores. Sobre as mudanças nos modos de atuação e organização deste novo terrorismo, ver: ALONSO, in Madrid 11-M (nota 46), p. 113 e ss., 123 e ss., 128 e ss.; especificamente em relação à rede estabelecida na Espanha que organizou os atentados de 11.3.2004 em Madrid: JORDAN, in op. cit., p. 79 e ss., 83 e ss. (cf. o quadro, especialmente significativo por suas diferenças radicais com um organograma clássico, em p. 85), 89 e ss., 97 e ss., 101 e ss.; DE LA CORTE/JORDAN, La yihad terrorista, cap. 7.3, respectivamente, com referências ulteriores. 50 Ver, com mais detalhe: CANCIO MELIÁ, ZStW 117 (2005), p. 267 e ss.

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social. No que aqui interessa, então, basta constatar que fundamentação da especificidade das infrações de terrorismo não pode recair exclusivamente sobre a espiral interminável da “necessidade” preventivo-fática. Para progredir na análise, parece conveniente considerar o funcionamento do delito terrorista como estratégia de comunicação, como provocação do poder 51.

3.2 AÇÃO E REAÇÃO

Como se sabe, os delitos de terrorismo têm por intenção provocar reações do Estado até atingir, como ponto de chegada de sua estratégia, a rebelião popular. Esta estratégia não apenas implica na ação face os inimigos, que devem ser intimidados, como também ante os amigos: como indica Scheerer, a estratégia do terrorismo não-estatal consiste, desde suas origens, sobretudo em alcançar a hegemonia em seu “próprio campo” através da espiral ação-reação 52. Em um aspecto mais geral, é constante a referência ao terrorismo, antes de tudo, como mecanismo de comunicação social 53, isto é, como “método” de ação política utilizado por vários grupos54; esta comunicação se dirige tanto ao próprio “campo” como ao campo alheio, com diversas mensagens: “ao invés de tratar os atos de terrorismo como ‘violência sem sentido’”, devem ser considerados “[...] como uma espécie de linguagem violenta 55”. O fenômeno do terrorismo não se pode apreender se não se tiver em contar a estratégia de comunicação que se encontra depois dos atos de violência: “[...] esta é a dialética da estratégia da luta antiimperialista: que mediante [...] a reação do sistema, a escalada da contrarrevolução, a transformação do estado de exceção político num estado de exceção militar o inimigo se identifique, [...] e, assim, mediante seu próprio terror, levante as massas que lhes são contrárias, intensifique as contradições, torne inevitável a luta 51

Esta é uma tese estendida para compreender o terrorismo no campo das ciências sociais; ver, por exemplo: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 27 e ss., com referências ulteriores. 52 Zukunft des Terrorismus (nota 44), p. 34 e ss. e 50 e ss. 53 Cf., por exemplo, a definição proposta por DE LA CORTE [BAÑEZ, La lógica del terrorismo, 2006, p. 42 e s. 54 Vide, por exemplo: DE LA CORTE IBAÑEZ, La lógica del terrorismo (nota 53), p. 32. 55 SCHMID/DE GRAAF, Violence als Communication. Insurgent Terrorism and the Western News Media, 1982, p. 1; ver, também, por exemplo: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), pp. 49 (recordando a autoidentificação do terrorismo anarquista de fins do século XIX como “propaganda através do fato”), 29 e ss., 56 e ss. (quanto ao papel dos meios de comunicação); DE LA CORTE IBAÑEZ, La lógica del terrorismo (nota 53), p. 42, 48 e s.

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revolucionária 56”. Ainda no argot específico, a questão está clara: a intenção fundamental na provocação do poder, na estratégia política concreta, é, antes de qualquer coisa, obter uma mudança de status simbólico: dito em uma palavra, o reconhecimento da condição de beligerante, como elemento definitivo para ampliar sua influência social em seu “campo”. Para isso, os terroristas são os primeiros interessados em diversas facetas da militarização da linguagem e dos modos de atuação, também em relação com suas ações voltadas para o exterior: os atentados são “ações” ou “operações”, os presos “prisioneiros”, pequenos grupos de indivíduos que se ocultam sob nomes falsos pretendem ser “exércitos 57”.

Esta estratégia de comunicação, como óbvio, depende, todavia, do estabelecimento de uma ficção: as organizações terroristas não estão, precisamente, em condição de utilizar instrumentos verdadeiramente militares em seu confronto com o Estado 58. O terrorismo é sempre o recurso de uma organização débil em termos de força militar 59. Por isso, necessidade de um equivalente funcional a essa força militar 60. Este equivalente está precisamente no uso dos meios especificamente terroristas: a seleção de metas distintas às de agredir com o objetivo de gerar uma intimidação em massa que equivalha à ameaça do uso do poder militar 61. Independente de 56

Texto da RAF (1977), recolhido em: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 27. Ver: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 171 e ss. 58 Por isso diz WALZER (Guerras justas e injustas. Un razonamiento moral con ejemplos históricos [trad. da 3. ed. em inglês]' 2001, p. 269) que do ponto de vista militar “[...] o terrorismo é uma maneira de evitar o combate com o inimigo. Representa uma forma extrema da estratégia da ‘aproximação indireta’”; ver, no mesmo sentido: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 35. 59 Cf., por exemplo: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 35; ver os critério que propõe DE LA CORTE IBAÑEZ (La lógica del terrorismo [nota 53], p. 46 e ss.) para diferenciar a atividade terrorista de outras formas de violência política (a guerra convencional e la guerra de guerrilhas). 60 Um detalhe significativo neste sentido é que um dos precedentes mais distantes do uso da intimidação em massa como estratégia política, o da atuação do grupo sectário dos assassinos na Idade Média no Oriente próximo, surgiu – enquanto organização dedicada ao assassinato político em massa – precisamente uma vez constatada a debilidade do grupo no início de sua atividade militar “regular” (ver: DE LA CORTE IBAÑEZ, La lógica del terrorismo [nota 53], p. 24). Em geral, o caráter de “equivalente funcional” do método terrorista dentre as estratégias de subversão violenta vem demonstrado pela combinação do uso do terrorismo com métodos militares como a guerra de guerrilhas; ver: DE LA CORTE IBAÑEZ, op. cit., p. 33, 44 e s. Neste âmbito, parece adequado distinguir – uma vez definido o terrorismo fundamentalmente como um determinado método de atuação política violenta – entre o uso táticoocasional e o uso estratégico do terrorismo; ver, por exemplo: REINARES, Terrorismo y antiterrorismo (nota 48), p. 20 e ss. 61 WALZER, Guerras justas e injustas (nota 58), p. 269 e s., 271 e ss., estima que o terrorismo como violência aleatória generalizada (em contraposição ao assassinato político, que em sua opinião havia caracterizado as ações de militantes anarquistas de fins do século XIX e princípio do século XX) surge apenas uma vez que, na Segunda Guerra Mundial, se incorpora ao arsenal de opções operativas militares. 57

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qual seja o critério de seleção dos objetivos 62 (membros de um exército ou das forças de segurança; representantes políticos ou dos poderes econômicos; cidadãos de uma determinada nacionalidade ou pertencentes a um determinado grupo social ou étnico; na última fronteira que a este respeito representa o terrorismo milenarista-islâmico), este mecanismo depende essencialmente de que os efeitos atemorização se estendam muito além das pessoas efetivamente atacadas. Por isso é essencial na estratégia o caráter aleatório 63 da identificação concreta dos indivíduos dentro da categoria neutralizada e eleita como “objetivo” (termo a que, novamente em paralelo ao âmbito militar, deve-se adicionar o adjetivo “legítimo 64”).

3.3 CONSEQUÊNCIAS PARA O DIREITO PENAL E PARA A CIÊNCIA DO DIREITO PENAL

Que o Estado não deve se acomodar sobre esta aposta de ação-reação apresentada pela organização terrorista, é evidente de uma perspectiva principialista-normativa, quando se pensa no Estado de Direito como conjunto estático e estabelecido de princípios, contra o qual se dirige precisamente o programa político da atividade terrorista. Com toda clareza, este risco foi apresenta por Rudolphi há quase trinta anos: “Se se quer evitar que o Estado de Direito seja esvaziado e minado desde dentro pela luta contra o terrorismo, há que se prestar uma estrita atenção a que não se renuncie de modo algum aos princípios próprios do Estado de Direito. Há que evitar que nosso Estado de Direito nem sequer por aproximação se converta naquela imagem que os terroristas, desconhecendo radicalmente a realidade, injuriosamente dele já agora têm. Pois bem, nesta última instância suporia o triunfo suporia o triunfo dos terroristas sobre o Estado

62

Pode-se afirmar que na seleção das vítimas dos ataques por parte das organizações terroristas há um processo de aprofundamento na despersonalização no terrorismo moderno; de critérios de seleção mais próximos ao assassinato político, já fazendo uma seleção cada vez mais ampla dos “inimifos”, até incluir o conjunto da população; ver: WALDMANN, Terrorismus (nota 47), p. 49 e ss.; WALZER, Guerras justas e injustas (nota 58), p. 271 e ss. 63 “Essa aleatoriedade é a característica determinante da atividade terrorista”, WALZER, Guerras justas e injustas (nota 58), p. 269. 64 Precisamente, pode-se pensar que neste cálculo terrorista (usar bens jurídicos individuais de máxima categoria para fazer, ilegitimamente, política, convertendo a violência em parte de uma representação) está o fundamento de um injusto de específica gravidade nos delitos terroristas; vide: CANCI0 MELIÁ, “Sentido y límites de los delitos de terrorismo”, no prelo para: GARCIA VALDÉS et al. (ed.), Libro homenaje a Enrique Gimbernat Ordeig (4/2007).

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de Direito 65”. Esta consideração também deve ser levada em conta no plano fático-político. Neste sentido, um Direito penal exacerbado pode se converter em um fator real de potencialização da persistência 66 de infrações terroristas ao se integra no desenho de ação das organizações: “[...] como ninguém ignora, uma prática comum na estratégia das organizações terroristas consiste em induzir o Estado de direito a entrar nessa destrutiva forma de conflito consigo mesmo recorrendo a medidas excepcionais 67”. Esta consideração não deriva de uma determinada tradição jurídica (continental), somente afeta as bases comuns do Estado ocidental: dito nas (já famosas, apesar de recentes) palavras de Lorde Hoffmann, membro da Câmara dos Lordes britânica, incorporadas à sentença referida à Lei antiterrorista britânica de 2001, segundo a qual esta seria incompatível com a Constituição britânica na formulação aprovada pelo Parlamento: “Tal faculdade [de detenção sem prazo e sem existência de indícios judicialmente verificados], de qualquer forma, não é compatível com nossa Constituição. A verdadeira ameaça à vida da nação, no sentido de um povo vivendo de acordo com suas leis e valores políticos tradicionais, não provém do terrorismo, e sim de leis como estas. Esta é a verdadeira medida do que o terrorismo pode lograr ser. É o Parlamento quem deve decidir se outorga aos terroristas tal vitória 68.

Em todo caso, é difícil poder-se separar em uma análise “eficientista” apenas a questão da efetividade preventiva: com efeito, é um autêntico lugar comum a ideia de que dentro deste balanço dever-se-ia considerar de modo muito especial que as normas com estas características tendem a contaminar outros âmbitos de incriminação – como mostram vários exemplos históricos 69 –, de modo que há boas razões para pensar que é ilusória a imagem de dois setores do Direito penal (o Direito penal de cidadãos e o Direito penal de inimigos) que possam dividir 65

ZRP 1979, p. 214. GIMÉNEZ GARCÍA, JpD 30 (1997), p. 20, fala da possibilidade de que a reação jurídico-penal se converta num “elemento de coesão do terrorismo” 67 Voto particular (magistrados MARTÍN PALLÍN, GIMÉNEZ GARCÍA, ANDRÉS IBAÑEZ) à Sentença STS 197/2006, de 20.2.2006, nono in fine. 68 [2004] UKHL 56, § 97 (Lord Hoffinann), sem destaque no original. On appeal ftom: [2002] EWCA Civ 1502 A (FC) and others (FC) (Appellants) v. Secretary o/State Jor the Home Department (Respondent) X (FC) and another (FC) (Appellants) v. Secretary o/State Jor the Home Department (Respondent), de 16.12.2004. Cf. o texto completo da resolução em: http://www.publications.parliament.uk/palld200405/ Ildjudgmt/jd041216/a&oth-1.htm; a passagem da argumentação de Lord HOFFMANN, em: http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200405Ildjudgmt/jd0412161 la&oth-6.htm. 69 Ver, por exemplo: TERRADILLOS BASOCO, Terrorismo y Derecho (nota 31), p. 33, 56: “inegável vocação expansiva”. 66

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espaço vital num mesmo ordenamento jurídico: “[...] o mais grave da legislação antiterrorista [...] é que se tem a imagem distorcida de que se vá aplicar apenas e exclusivamente aos terroristas 70”.

Com efeito: o argumento do controle mediante juridificação que exclui os que se mostrem partidários de setores de regulação destas características não pode convencer 71. Neste contexto, poderia se pensar em uma espécie de tese dos vasos comunicantes: quanto menos estrito o Estado de Direito, menos crimes de Estado nas cloacas – ainda que, no que se possa vislumbrar, tal argumento não seja expressamente adotado, parece provável que seja implicitamente considerado – deve-se descartar de plano: aparte de que tampouco aqui existe evidência empírica que indique que os Estados que flexibilizem determinados critérios de imputação – ou precisamente por isso – optam por um menor nível de atuação ilegal através de mecanismos juridicamente mais opacos (serviços de inteligência ou organismos militares), há indícios de que pode chegar a ocorre o contrário (ou, ao menos, que pode afirmar-se isso com a mesma justificação, ou falta dela, que a tese do controle por juridificação). Pense-se somente, na atualidade, na convivência, na política dos EUA, do reconhecimento aberto de zonas de intervenção sobre sujeitos sem direitos formais (a doutrina dos enemy combatants como tertium junto com delinquentes e prisioneiros de guerra 72) não tem impedido a existência de fato de zonas de atuação secretas (um exemplo atual são os traslados especiais a centros de tortura em outros países investigados, atualmente, pelo Parlamento Europeu no que se refere ao seu trânsito pelo território da UE 73). E exemplos paradigmáticos da convivência de um Direito penal (formal) de combate e as vias de fato de diversos serviços parapoliciais os oferecem as numerosas ditaduras históricas 74. De fato, parece que o prognóstico mais razoável é o contrário: que não poderão conviver pacificamente porque a

70

Assim: BUSTOS RAMÍREZ, in LOSANO/MUÑOZ CONDE, El Derecho ante la globalización y el terrorismo. ‘cedant arma togae’ 2004, sintetizando o perigo para o valor segurança jurídica, p. 403 e ss., 406 e s. e 408. 71 Ver: TERRADILLOS BASOCO, Terrorismo y Derecho (nota 31), p. 33 e 56; SANDER, in Jenseits des rechtsstaatlichen Straftechts (nota 3), p. 260 e ss. e 262; BRANDARIZ GARCÍA, Política criminal de la exclusión (nota 33), p. 199 e ss., 249 e ss. 72 Ver as amplas referências contidas em: http://web.amnesty.org/ /pages/guamanamobay-index-eng. 73 Cf. o informativo do deputado Fava em: http://www.statewatch.org/cial Irepores/ep-cia~imerim-reportenglish.pdf. 74 Sobre la convivência e mistificação progressiva do sistema jurídico-penal formal e aparato de repressão informal no caso do regime nazista, ver: MARXEN, in DIESTELKAMP/STOLLEIS, Justizalltag im Dritten Reich, 1988, p. 101 e ss.; STAFF, Justiz im Dritten Reich. Eine Dokumentation, 1978, p. 54 e ss., 58, 59 e ss.

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presença de uma regulação em termos de Direito penal do inimigo acaba por estender sua lógica mais além do campo de regulação inicial.

Se, finalmente, no âmbito da ciência penal, se procura traduzir o paradigma internacionalizado de combate da ideologia penal dominante sobre a linguagem da teoria, parece evidente que aqui se coloca a questão básica de todo Direito penal moderno sobre os limites da obrigação social da prevenção para o sistema jurídico-penal: trata-se das “devastações da prevenção 75”. Esta é uma questão que se deve dizer, desde logo, não ser nova na discussão teórica. Se um problema central da teoria da penal, submetido à análise a partir de diversas perspectivas durante toda uma grande tradição, é o eixo central de uma evolução político-criminal atual e esta venerável discussão praticamente não aparece de modo algum na discussão pública, parece claro que o déficit é de caráter fundamental. O discurso unilateral da política criminal prática deve ser contestado por uma análise dos fins concretos da pena em cada caso. Mais ainda, em um plano internacional: deve haver menos mera técnica regulatória e mais debate acerca dos fundamentos para gerar um debate (científico) internacional.

Com isso, torna-se claro que não se tem avançado muito no acompanhamento (ou na limitação) da internacionalização expansiva nos termos que correspondem em um Estado de Direito; todavia, ao menos parece constatar-se que a fixação (social e política) generalizada do Direito penal internacionalizado em objetivos fora de seu alcance (manifestamente, na prevenção fática; latentemente, numa construção forçada de identidade social mediante a exclusão de categorias de autores-inimigos), mesmo que impossíveis, não deve ficar sem um contradiscurso científico. Que este não tenha tido tanto peso até o momento não se pode explicar simplesmente com base no rude esprit du temps 76, que silenciaria qualquer discurso jurídico; também há que constatar

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HASSEMER, in Jenseits des rechtsstaatlichen Straftechts (nota 3), p. 103. Neste sentido, diz acertadamente NAUCKE (Strafrecht. Eine EinfUhrung, 9. ed., 2000, 4/21) (sobre a criminalidade organizada): “[...] as expectativas sobre os êxitos preventivos da punição crescem; a tendência a respeitar a delimitação e restrição jurídica da pena decresce”. 76

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Revista Eletrônica Acadêmica de Direito

Law E-journal

PANÓPTICA

deficiências de comunicação no sistema científico: a ciência do Direito penal tem de aprender a falar 77.

Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

77

Assim o título do artigo do jornalista PRANTL, in ESER/HASSEMER/BURKHARDT (ed.), Die deutsche Strafrechtswissenschaft (nota 19), p. 339 e ss.

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