Tradução para Legendas: uma proposta para a formação de profissionais

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Sabrina Lopes Martinez

Tradução para legendas: uma proposta para a formação de profissionais

Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de PósGraduação em Letras da PUC-Rio. Orientador: Marcia do Amaral Peixoto Martins

Rio de Janeiro Março de 2007

Agradecimentos Aos meus pais, Geraldo e Sheila, e ao meu irmão, Moacyr, por tudo. À minha orientadora, Marcia do Amaral Peixoto Martins, pelo incentivo para ingressar no Mestrado, pela orientação precisa, pelos comentários fundamentais e, no final, pela serenidade contagiante. A Maria Paula Frota, pelo apoio e disponibilidade demonstrados desde o curso de Especialização em Tradução, pelas conversas estimulantes, tanto dentro quanto fora da sala de aula, e pelo carinho. A Monika Pecegueiro do Amaral, por ter despertado em mim a paixão pela legendagem e pelos textos cedidos. Aos professores que se dispuseram a participar da banca de defesa: Maria Paula Frota, Heloisa Gonçalves Barbosa e Maria de Lourdes Sette. A Vera Lúcia Santiago Araújo, pelas valiosas dicas dadas no início deste projeto e pelos textos cedidos. A Christiane Ruffier, do Departamento de Legendagem da Globosat, pela colaboração e pelas informações compartilhadas. Aos professores do curso de Especialização em Tradução e do Mestrado, pelos ensinamentos. Aos informantes da pesquisa, pelas entrevistas. Ao pessoal da Gemini Vídeo, minha segunda casa, pela paciência e dedicação durante meu período de ausência. À Vice-Reitoria Acadêmica da PUC-Rio, pela bolsa de isenção de mensalidade. Às minhas colegas de Mestrado, grandes amigas conquistadas nestes dois anos de convivência, e a Lia Jucá, Flávia Lins e Lúcia Morgado, pelo carinho e apoio constante.

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Resumo

Martinez, Sabrina Lopes; Martins, Marcia do Amaral Peixoto (orientadora). Tradução para legendas: uma proposta para a formação de profissionais. Dissertação de Mestrado, Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

O mercado de tradução para legendagem de programas de TV sofre com a carência de profissionais, constatação que se baseia numa experiência pessoal de doze anos de atuação nessa área. A presente dissertação busca investigar os motivos dessa carência e propor as bases para um curso de formação de legendadores, a partir de uma perspectiva polissistêmica e descritivista da tradução e de uma visão pós-estruturalista do ensino. A proposta aqui apresentada fundamentou-se em um levantamento das competências e habilidades que todo tradutor para legendas precisa desenvolver, elaborado a partir de entrevistas realizadas com importantes atores do polissistema de tradução para legendagem, bem como na análise das normas, coerções e mecanismos de controle com os quais o legendador se vê obrigado a lidar em sua atividade. A reflexão desenvolvida contempla questões metodológicas e de conteúdo e aborda as peculiaridades que caracterizam a tradução para legendas, procurando oferecer uma alternativa que contraponha uma ênfase na formação ao caráter de treinamento que costuma estar associado à maioria dos cursos atualmente disponíveis. Pretende-se, dessa forma, garantir a maior aproximação e interação entre academia e mercado de trabalho, o que deverá redundar em benefício para ambos.

Palavras-chave Legendagem,

tradução

audiovisual,

Estudos

Descritivos

da

Tradução,

polissistemas, ensino de tradução, normas tradutórias.

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Abstract

Martinez, Sabrina Lopes; Martins, Marcia do Amaral Peixoto (advisor). Translation for subtitles: a proposed syllabus for translator education. MSc Dissertation, Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

The television subtitling market suffers from a shortage of professionals, as has been attested by twelve years of personal experience in the industry. The purpose of this research was to investigate the reasons behind this shortage and suggest the basis for implementing a course program on subtitling for TV from a descriptive and polysystemic perspective on translation and a poststructuralist view on education. The proposal presented was based on a list of competencies and abilities every subtitle translator must develop, elaborated from interviews with important actors in the translation for subtitles polysystem, and on the analysis of the norms, constraints and control mechanisms with which the subtitler must deal in his or her professional capacity. The considerations brought forth contemplate methodological and content issues and tackle the peculiarities of subtitling, aiming to offer an alternative to the emphasis on training rather than on education which is usually associated with most courses currently available. Thus, this dissertation intends to guarantee a greater interchange between university and industry, which should bring about benefits for both.

Keywords Subtitling, audiovisual translation, Descriptive Translation Studies, polysystems, translation teaching, translation norms.

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Sumário

1. Introdução 1.1. Estrutura da dissertação 2. Fundamentação teórica e metodologia 2.1. A Teoria dos Polissistemas e os Estudos Descritivos da Tradução 2.1.1. A Teoria dos Polissistemas 2.1.1.1. O polissistema de tradução audiovisual 2.1.2. Os Estudos Descritivos da Tradução

07 08 10 15 15 16 18

2.2. O ensino de tradução

23

2.3. Metodologia

26

3. A tradução para legendagem e suas peculiaridades

30

3.1. A tradução audiovisual na televisão brasileira

31

3.2. Os conceitos de tradução diagonal e diassemiótica e os problemas que eles causam

33

3.3. Principais normas da tradução para legendagem

37

3.3.1. Parâmetros técnicos

38

3.3.2. Parâmetros textuais microestruturais

39

3.3.3. Parâmetros textuais macroestruturais

41

3.4. Mecanismos de controle 4. O profissional de legendagem: características e mercado de trabalho 4.1. O perfil do legendador valorizado pelo mercado

45 48 48

4.1.1. Competência lingüística

49

4.1.2. Competência técnica

52

4.1.3. Competência rítmica

57

4.1.4. Competência cultural

58

4.2. A realidade do mercado

59

4.2.1. As diferenças entre os mercados carioca e paulista

59

4.2.2. Análise dos dados

60

5. Tradução para legendagem na universidade

65

5.1. O ensino de TAV nas universidades européias: uma história de sucesso

65

5.2. Proposta de um curso de formação de legendadores

66

5.2.1. Carga horária 5.2.1.1. Duração das aulas 5.2.2. Perfil do aprendiz e pré-requisitos

66 70 71

5

5.2.3. Teoria e prática

72

5.2.4. O uso do Systimes 4.0 como ferramenta didática

73

5.2.5. Disciplinas propostas

77

5.2.5.1. Tradução para legendagem I

77

5.2.5.2. Tradução para legendagem II

86

5.2.6. Avaliação 5.2.6.1. Critérios de avaliação

86 88

6. Considerações finais

89

Referências bibliográficas

92

Apêndice 1

97

Apêndice 2

98

Apêndice 3

99

6

1. Introdução A chegada da televisão por assinatura no Brasil, no início da década de 1990, suscitou uma demanda repentina por profissionais de legendagem, atividade até então restrita ao cinema ― meio no qual até hoje atuam poucos profissionais, que dão conta da tradução de todos os filmes estrangeiros lançados por mês no Brasil ― e ao mercado de vídeo, no qual predominavam a improvisação e a ilegalidade. Diante da urgência de se buscar pessoal para exercer a atividade da legendagem, profissionais das mais diversas formações (Direito, Comunicação e até Belas Artes) foram contratados no Rio de Janeiro. A convocação para o preenchimento das vagas era feita por meio de indicação e, uma vez aprovados no exame de tradução e português, esses profissionais recebiam um treinamento que se limitava a uma explicação rápida sobre como funcionava o software de legendagem usado à época. O aumento do número de canais por assinatura disponíveis levou ao crescimento da demanda por programas televisivos estrangeiros para preencher a grade desses canais, e a legendagem foi ganhando destaque como opção relativamente barata de tradução de produtos audiovisuais. Além disso, o advento de novas tecnologias digitais, como o DVD (Digital Versatile Disc), fez aumentar o interesse pela legendagem. Um DVD comporta versões legendadas em até trinta e dois idiomas de um mesmo produto, o que significa que até trinta e dois tradutores podem participar da legendagem de um único filme. A popularização dessa tecnologia no início dos anos 2000 criou um novo e rico mercado para os profissionais de legendagem. Nos últimos anos, a necessidade de treinar profissionais levou as produtoras de legendagem a investir em treinamento, seja oferecendo o curso nas próprias dependências, seja em parceria com algum professor ou instituição de ensino. Esses cursos são direcionados ao público em geral e têm como objetivo familiarizar os candidatos com os aspectos técnicos do ofício e com as regras e os padrões adotados pelo mercado de legendagem, mas não abordam ― nem poderiam, uma vez que são cursos de curta duração sem a pretensão de formar

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profissionais ― capacidades que poderiam ser desenvolvidas em um curso de formação mais abrangente. Este é justamente o objetivo principal do presente trabalho: propor as bases de um curso de formação de tradutores para legendas que não só aborde as ferramentas, normas e coerções básicas envolvidas nessa modalidade de tradução, mas também procure desenvolver outras competências e habilidades que um bom legendador deve possuir.1 Parto da premissa de que, como o ofício de tradução para legendagem é altamente especializado, para produzir legendas de qualidade e se estabelecer no mercado sem onerar os contratantes de seus serviços com cursos e meses de trabalho monitorado, o profissional precisa desenvolver competências específicas à atividade, além daquelas necessárias a todo tradutor.

1.1 Estrutura da dissertação

No próximo capítulo, exponho a fundamentação teórica e a metodologia adotadas na presente dissertação. Após uma breve apresentação das modalidades de tradução audiovisual e da minha visão de tradução, a Seção 2.1 traz um resumo da Teoria dos Polissistemas e dos Estudos Descritivos da Tradução, abordagens que informam todos os capítulos da dissertação. A Seção 2.2 trata do ensino de tradução. Nela, traço um contraponto entre a visão normativa e a abordagem pósestruturalista de ensino para me aliar às reflexões suscitadas pela última para a formação de tradutores. A seção final do Capítulo 2 traz a descrição da metodologia utilizada nas entrevistas com integrantes do polissistema de tradução audiovisual conduzidas para complementar este estudo. O Capítulo 3 trata das peculiaridades características da tradução para legendagem. Após traçar um panorama do ensino da modalidade na Europa e no Brasil, apresento uma breve contextualização das modalidades de tradução audiovisual presentes na televisão brasileira e em seguida abordo os conceitos de tradução diagonal e diassemiótica e as coerções que eles suscitam. Por fim,

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A denominação do profissional que traduz para cinema e vídeo ainda não foi estabelecida de forma consensual. Alguns empregam o termo ―legendista‖, outros, ―legendador‖, e no mercado de legendagem ele é chamado simplesmente de ―tradutor‖. Por motivos de clareza passo a adotar, a partir daqui, a denominação ―legendador‖.

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apresento os principais mecanismos de controle e normas atualmente em vigor no mercado de legendagem brasileiro. As principais competências e habilidades necessárias ao legendador são abordadas no Capítulo 4, e estão divididas em quatro categorias principais: lingüística, técnica, rítmica e cultural. A Seção 4.2 traz um breve panorama das diferenças entre o mercado paulista e carioca, bem como a análise dos dados das entrevistas realizadas com profissionais e estudantes de legendagem, nas quais foram identificadas as maiores carências apresentadas pelos candidatos a legendadores e as dificuldades enfrentadas pelos professores dos cursos de treinamento. O Capítulo 5 é dedicado à proposta de programa delineada nesta dissertação, cujo objetivo principal é promover o desenvolvimento das competências e habilidades necessárias à formação de profissionais de tradução para legendagem, procurando oferecer uma alternativa ao caráter de treinamento associado aos cursos hoje disponíveis. No início do capítulo, um panorama do ensino de tradução audiovisual na Europa destaca o sucesso da inclusão de disciplinas dessas modalidades nos currículos de graduação e pós-graduação de universidades européias. Em seguida, são apresentadas as bases do curso de formação propriamente dito, abrangendo carga horária, duração das aulas, perfil dos aprendizes e pré-requisitos necessários, além de possibilidades de integração entre teoria e prática. Os conteúdos a serem abordados nas disciplinas de tradução para legendagem são tratados na Seção 5.6, na qual traço os objetivos, delineio as bases do programa e proponho algumas atividades práticas. O capítulo se encerra com a especificação das formas e dos critérios de avaliação dos aprendizes. Finalmente, o Capítulo 6 apresenta as considerações finais do presente trabalho.

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2. Fundamentação teórica e metodologia A tradução audiovisual (ou TAV) se subdivide em quatros modalidades principais: dublagem, voice-over, legendagem aberta (ou interlingual) e legendagem fechada (chamada também de legendagem intralingual ou closed caption). Na dublagem, o canal acústico com a língua original do produto audiovisual é substituído pelo canal acústico com as falas traduzidas e interpretadas por dubladores. No voice-over, o áudio original não é apagado, como acontece na dublagem; ele é apenas baixado, e a voz de um locutor é gravada sobre ele. Na legendagem aberta é feita a inserção do texto traduzido em formato de legendas na tela de exibição, de forma sincronizada com o áudio no idioma original. O closed caption é uma modalidade de legendagem ― porém com características técnicas distintas ― feita na mesma língua do produto audiovisual, com o objetivo de auxiliar deficientes auditivos e pessoas com dificuldade de compreensão da língua oral. Na presente dissertação, eu me atenho à tradução para legendagem de programas de TV, atividade que exerço há mais de doze anos no Rio de Janeiro, primeiro como legendadora e revisora contratada da Globosat, maior programadora de TV por assinatura do Brasil, depois como freelancer e, atualmente, como sócia da produtora Gemini Vídeo. Desde 2000, exerço na empresa a função de responsável por seu departamento de legendagem, traduzindo e revisando programas, treinando e supervisionando estagiários e trainees e fazendo o controle de qualidade do produto final. Além disso, comecei a lecionar em 2005 a disciplina Tradução para Legendagem, incluída naquele ano entre as optativas da grade curricular do bacharelado em Letras, habilitação Tradução (Inglês – Português), da PUC-Rio. Essa minha experiência como legendadora, professora, revisora, supervisora de legendadores e prestadora de serviços de legendagem me levou a conhecer a fundo esse mercado, que sofre com um problema crônico: a falta de profissionais bem preparados, que possuam as competências e habilidades necessárias para oferecer um produto final de qualidade. Foi dessa constatação que surgiu o tema desta dissertação, já apresentado na Introdução.

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Autores como Díaz Cintas (2004), Delabastita (1990) e Gottlieb (1994b) observam que muitos estudiosos descartam a TAV como objeto de estudo, sob a alegação de que a modalidade não seria uma tradução propriamente dita, por verse ―muitas vezes restringida pelas respectivas coerções de condensação de texto e sincronização labial‖, sendo que, ―em muitos casos, essas coerções ocupam uma posição mais alta na hierarquia de prioridades do tradutor do que considerações sobre sintaxe, estilo ou léxico‖2 (Delabastita, 1990: 99). ―Outro obstáculo‖, destaca Díaz Cintas, ―é a natureza polimórfica dos programas audiovisuais. Não é tão trabalhoso lidar com dois textos escritos, nas línguas fonte e meta, quanto é lidar com listas de diálogos, videoteipes ou DVDs, televisores, videocassetes etc.‖3 (2004: 51). Além disso, o estudo da TAV pressupõe conhecimentos, entre outros, de linguagem cinematográfica, televisiva e de comunicação de massa, dificuldades que também levam alguns teóricos da tradução a situar a modalidade fora do escopo de sua disciplina. Embora a quantidade de pesquisas acadêmicas em TAV tenha crescido consideravelmente nas últimas duas décadas, a grande maioria delas se restringe ou a descrever as principais características técnicas e operacionais dessa atividade, ressaltando as dificuldades no trabalho do tradutor, ou a relatar casos concretos [...], destacando questões problemáticas [...] que, ainda que ajudem a constituir um corpus de estudo nesta área [de tradução para legendas], são de difícil generalização devido a seu caráter predominantemente empírico. (Carvalho, 2005: 20)

Há, portanto, uma carência de fundamentos teóricos e metodológicos adequados à elaboração de estudos sistemáticos, o que dificulta a convergência dos resultados dessas pesquisas isoladas para a melhoria da qualidade das práticas, de métodos de ensino especializados e do desenvolvimento da teoria (ibidem). Se analisarmos o caso da legendagem, veremos que ela difere da tradução textual, que se caracteriza por ser um tipo de comunicação monossemiótica, por sua natureza polissemiótica, ou seja, há outros canais (ou signos) envolvidos na comunicação, que tanto podem dificultá-la quanto facilitá-la. Esses canais são:

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[...] often governed by the respective constraints of text compression and lip synchronicity. In many cases these constraints occupy a higher position in the translator's hierarchy of priorities than do considerations of syntax, style or lexicon. 3 Another obstacle lies in the polymorphic nature of audiovisual programmes. It is not as laborious to work with two written texts, in the source and target languages, as it is to work with dialogue lists, videotapes or DVDs, television sets, video players, etc.

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1) 2) 3) 4)

O canal acústico verbal: diálogo, vozes de fundo; às vezes letras de música O canal acústico não-verbal: música e efeitos sonoros O canal visual verbal: créditos e letreiros O canal visual não-verbal: composição e fluxo de imagens 4 (Gottlieb, 1994b: 265)

Uma vez que o legendador não tem o controle de todos os canais envolvidos na comunicação e precisa se adequar aos outros componentes semióticos do produto audiovisual; e uma vez que a legendagem envolve a mudança do código oral para o código escrito e requer uma redução substancial do diálogo original, os estudiosos que rechaçam a legendagem como objeto de estudo argumentam que ela não pode ser considerada uma forma de tradução se adotarmos, por exemplo, o conceito de tradução de Jakobson (1969), segundo o qual, ao traduzir de uma língua para outra, substituem-se mensagens em uma das línguas, não por unidades de código separadas, mas por mensagens inteiras de outra língua. Tal tradução é uma forma de discurso indireto: o tradutor recodifica e transmite uma mensagem recebida de outra fonte. Assim, a tradução envolve duas mensagens equivalentes em dois códigos diferentes. (p. 65)

Quem se identifica com essa visão mais restrita da tradução pode alegar que, como há outros canais envolvidos na comunicação audiovisual e só um deles (o canal acústico verbal5) é substituído, e de forma resumida, a mensagem não é inteiramente traduzida no caso da legendagem. Ao perceberem que os conceitos historicamente enunciados de tradução, texto, original e significado deixam de funcionar quando tentam aplicá-los à TAV, alguns estudiosos preferem evitar esse campo de estudo que, em termos quantitativos, é o tipo de tradução mais consumido na atualidade (cf. Díaz Cintas, 2004). No entanto, o conceito de tradução está se ampliando. Ele já deixou de abranger apenas o texto escrito e hoje envolve atividades tão distintas quanto a interpretação simultânea, a localização de software, a dublagem e a legendagem. Além disso, uma publicação de referência no campo dos Estudos da Tradução, a Routledge Encyclopedia of Translation Studies, dedica um verbete à legendagem e a apresenta como um ―tipo de tradução‖ (1998: 245). Citando mais uma vez Díaz Cintas (2003: 194), 4

(1) The verbal audio channel: dialog, background voices; sometimes lyrics; (2) The non-verbal audio channel: music and sound effects; (3) The verbal visual channel: captions and written signs in the image; (4) The non-verbal visual channel: picture composition and flow 5 Há ocasiões em que o canal visual verbal (créditos e letreiros) também é substituído.

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[u]ma definição de tradução que exclua áreas abrangentes da atividade profissional é claramente limitada. Vivemos numa sociedade heraclitiana, em constante evolução. Nossas formas de comunicação mudam, assim como nossas necessidades, e, nesse sentido, o espetacular desenvolvimento da tecnologia tem um impacto inevitável. Portanto, é necessário encarar a tradução de uma perspectiva mais flexível e heterogênea, que leve em conta uma vasta gama de realidades empíricas e que seja capaz de incluir em seus limites atividades tradutórias novas e potenciais [,] [...] como [a tradução] de jogos por computador, 6 páginas da Internet e CD-ROMs.

Se pretendo estudar a TAV no contexto dos Estudos da Tradução e propor as bases de um curso de formação de tradutores para legendas, é necessário que eu apresente a minha visão de tradução, que fatalmente se refletirá na minha visão de ensino e na fundamentação teórica que permeará esta dissertação. Segundo a tradição logocêntrica, o significado das palavras é estável e está dado no texto, que permite apenas uma interpretação correta. Essa percepção de linguagem tem efeito direto sobre a noção de tradução, que é encarada como um processo de transferência de significados de uma língua para outra. Desde que interprete os significados contidos no texto corretamente, um bom tradutor será capaz de transferi-los sem dificuldades, com a ajuda de glossários e dicionários, para a língua-meta. Se isso não ocorrer, a falha é atribuída ao tradutor. O ideário pós-estruturalista há muito superou essa abordagem tradicional, que ainda é o senso comum fora do meio acadêmico. Os teóricos identificados com o pós-estruturalismo defendem que a tradução não é uma operação meramente lingüística, mas também política, ideológica e cultural. As idéias deixam de estar dadas no texto e prontas para serem resgatadas pelo tradutor; o significado é visto como produto de uma construção, e o contexto em que se produz a tradução passa a ser valorizado. Inserido em seu contexto histórico, influenciado por seu meio social, sua ideologia e seu inconsciente, o tradutor invariavelmente recria, interfere, transforma. Nessa moldura epistemológica, portanto, traduzir é uma atividade complexa, rica, criativa, produtora de

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A definition of translation that excludes large areas of professional activity is clearly too narrow. We live in a Heraclitean society, in constant evolution. The ways in which we commmunicate change, as do our needs, and in this sense the spectacular development of technology has an unavoidable impact. Hence it is necessary to view translation from a more flexible and heterogeneous perspective, one which allows for a broad range of empirical realities and which is able to subsume new and potential translation activities within its boundaries[,] [...] such as computer games, web pages and CD-ROMs.

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significados, e o original perde a aura de criação genial cujos significados têm de ser protegidos. Entretanto, essa desconstrução à qual o conceito de tradução foi submetido levou a uma flexibilização excessiva do mesmo, que passou a ser confundido com outros conceitos. Carvalho chega a alertar que: em casos mais extremos esse movimento acabou por conferir às concepções teóricas sobre a tradução uma certa falta de limites que parece legitimar como ato tradutório toda e qualquer prática de escrita ou reescrita, intra ou inter-cultural. Porém, se não existe original, se um texto não possui nenhum conteúdo intrínseco, se toda escolha de palavras representa um posicionamento ideológico e se qualquer tentativa de conceituação mais restrita da tradução é rotulada de logocêntrica ou prescritivista, então [quais] seriam, de fato, a natureza dessa atividade e o papel do tradutor? (Carvalho, 2005: 14-5)

Alguns dos próprios estudiosos que participaram do movimento pósestruturalista identificaram esse problema, como foi o caso de Umberto Eco que, em Os limites da interpretação (2000), parte em defesa do sentido literal, argumentando que ele é o primeiro a ser assimilado quando alguém ouve um determinado enunciado. Para Eco, dizer que um texto é potencialmente sem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz. Até mesmo o desconstrucionista mais radical aceita a idéia de que existem interpretações clamorosamente inaceitáveis. Isso significa que o texto interpretado impõe restrições a seus intérpretes. (p. xxii)

Eu me identifico com esses desdobramentos mais recentes e menos radicais do movimento pós-estruturalista, que buscam um lugar próprio e uma identidade para o tradutor e vêem a tradução como uma representação aproximada, uma transformação regulada — para usar a nomenclatura do desconstrucionista Jacques Derrida — e inevitável do texto-fonte, determinada pela comunidade interpretativa (cf. Fish, 1986) na qual se insere e por seu inconsciente (cf. Frota, 2000). A concepção logocêntrica de tradução também se estende ao ensino da atividade. Nas palavras da teórica pós-estruturalista Rosemary Arrojo, ―o ensino centrado no logos é essencialmente conservador e se baseia na possibilidade de uma transferência impessoal de um conjunto de significados privilegiados de professor para aluno e de uma geração para outra‖ (Arrojo, 1993: 136). A estudiosa diz ainda que ―a herança mais freqüente que esse tipo de abordagem

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lega a seus alunos é [...] a ilusão de que, para poderem realizar traduções satisfatórias, lhes bastará aprender as línguas envolvidas e ter em mãos dicionários ou glossários adequados‖ (1992: 103). Na Seção 2.2, explorarei em mais detalhes como é possível fugir da ilusão mencionada por Arrojo aliando-se ao ensino da legendagem, objeto deste estudo, a visão pós-estruturalista de tradução. Como já foi dito, o conceito restritivo de tradução de Roman Jakobson não prevê como objetos legítimos de estudo sobre tradução categorias como a interpretação simultânea e a tradução audiovisual, entre outras. Uma abordagem que contempla essas manifestações no âmbito dos Estudos da Tradução é a dos DTS (Descriptive Translation Studies) que, aliada à Teoria dos Polissistemas, permeia todo o presente trabalho. Passo agora a apresentar os conceitos-chave dessas duas abordagens de forma resumida.

2.1 A Teoria dos Polissistemas e os Estudos Descritivos da Tradução

2.1.1 A Teoria dos Polissistemas

A Teoria dos Polissistemas começou a ser desenvolvida entre o final dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 pelo israelense Itamar Even-Zohar, numa tentativa de solucionar problemas específicos relacionados a traduções literárias realizadas em Israel. A teoria de Even-Zohar concebe a literatura como um sistema dinâmico e complexo inserido em outro sistema maior ― o cultural. O sistema cultural, por sua vez, se relaciona com outros sistemas, como o político, o religioso e o socioeconômico. Cada um desses sistemas é, na verdade, um polissistema: ―um sistema múltiplo, um sistema de vários sistemas que se entrecruzam e se sobrepõem parcialmente [...], funcionando como um todo estruturado cujos membros são interdependentes‖7 (Even-Zohar, 1990: 11), e ocupam posições mais centrais ou mais periféricas, disputando constantemente uma posição no centro do polissistema.

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a multiple system, a system of various systems which intersect with each other and partly overlap [...], functioning as one structured whole, whose members are interdependent.

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O objeto de estudo de Even-Zohar é o polissistema literário, no qual ele inclui o sistema de literatura traduzida ao lado de outros, como o de literatura canônica, de massa e infantil. No polissistema literário também atuam as editoras, os meios de comunicação de massa, autores, leitores, críticos literários e livrarias, dentre outros. Como explica Carvalho, [o] objetivo da utilização d[o] modelo teórico [dos polissistemas] em estudos literários consiste em investigar as relações existentes nos sistemas, a interferência entre sistemas e os processos de mudanças provocados por pressões exercidas da periferia para o centro e vice-versa (2005: 33),

buscando-se chegar aos princípios gerais que regem os fenômenos que constituem os sistemas. Para identificar esses princípios que, em diferentes períodos, governam a tradução literária, Even-Zohar, como já mencionado, propõe o estudo da literatura traduzida como um conjunto, ou um sistema. Este estudo seria feito através da análise da seleção dos textos a serem traduzidos, as estratégias utilizadas pelos tradutores, as normas e coerções que regem a produção de traduções e as traduções propriamente ditas. Ao tratar a literatura traduzida como um polissistema próprio dentro do sistema literário, o teórico israelense propõe a inclusão de produtos que geralmente são descartados como objetos de estudo por não poderem ser explicados por nenhuma teoria de tradução. Ele alega que produtos de transferência interlingual, como a adaptação e a imitação, acabam constituindo um grupo maior do que o considerado tradução, e que podem ser incluídos no polissistema da tradução literária se forem estudadas as relações existentes entre um produto-alvo B e um produto-fonte A (Carvalho, 2005: 34). Em sua dissertação A tradução para legendas: dos polissistemas à singularidade do tradutor, Carolina Alfaro de Carvalho propõe a aplicação do modelo teórico de Even-Zohar ao campo da tradução audiovisual e concebe o polissistema audiovisual e o polissistema de tradução audiovisual. Através deste último, que apresento de forma resumida a seguir, a TAV pode ser estudada com base na Teoria dos Polissistemas.

2.1.1.1 O polissistema de tradução audiovisual

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Um subsistema do polissistema audiovisual, o polissistema de tradução audiovisual proposto por Carvalho (2005) reflete e submete-se à hierarquia do primeiro, mas também possui leis e componentes próprios (p. 70). Do polissistema audiovisual fazem parte todos os envolvidos na produção e distribuição de um longa-metragem, como, por exemplo, pesquisadores, roteiristas, produtores, diretores, técnicos, agentes e atores. Da comercialização do longa participam laboratórios cinematográficos, distribuidores, patrocinadores, entre outros. Também fazem parte do polissistema audiovisual a crítica especializada, circuitos de salas de cinema, agentes e processos de importação e exportação de filmes, e o ensino de práticas relacionadas à área. Observe-se que a categoria longa-metragem é apenas um exemplo. Podemos citar ainda como componentes do polissistema audiovisual profissionais, instituições, processos e mecanismos de controle envolvidos na produção e distribuição de programas dos mais variados gêneros exibidos nas televisões aberta e fechada. O subsistema de tradução audiovisual, por sua vez, é composto, entre outros, pelos seguintes profissionais e instituições: produtoras e laboratórios voltados para a preparação e produção dos diversos meios e formatos de tradução audiovisual ― película para projeção em cinemas, VHS, DVD, CD-Rom ―, além de tradutores e revisores com conhecimentos específicos nos diferentes subsistemas ― legendagem, closed caption, dublagem, voice over, sites e aplicativos na Internet, localização de programas de computação, etc. (ibidem, p. 70)

Com essa extensão do modelo polissistêmico, passa a ser possível estudar de forma sistêmica a tradução audiovisual no contexto dos Estudos da Tradução. Além disso, esse modelo reconhece a natureza polissemiótica e multidisciplinar da TAV, incluindo entre seus agentes não apenas os produtores do texto audiovisual, seja original ou traduzido, mas todos os envolvidos na produção dos outros canais constituintes da mensagem audiovisual, como a música, os efeitos sonoros e a edição de imagens, além da direção e dos mecanismos de aquisição, distribuição e controle de produtos audiovisuais. Qualquer tentativa de propor as bases do programa de um curso de formação de legendadores deve levar em conta a atuação dos agentes do polissistema audiovisual, uma vez que, para produzir legendas de qualidade, é preciso que o

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aprendiz esteja familiarizado com todas as forças que atuam antes, durante e depois da finalização de seu trabalho.

2.1.2 Os Estudos Descritivos da Tradução

O modelo dos Descriptive Translation Studies, ou DTS, foi desenvolvido em meados dos anos de 1970 por um grupo de teóricos e pesquisadores europeus voltados para o estudo das traduções literárias, com o objetivo de opor-se às abordagens normativas que vinham caracterizando uma grande parte dos estudos e do discurso sobre a tradução (cf. Martins, 1999). Essas abordagens normativas podem ser exemplificadas em estudos de base lingüística que, motivados pela profissionalização da atividade e a necessidade de preparar tradutores competentes, buscavam esquematizar e formalizar o processo tradutório através de modelos complexos. No entanto, esses estudos acabaram por deixar de lado a análise das traduções literárias, devido, segundo André Lefevere 8, à dificuldade de se formalizar textos com alto grau de equivocidade. Alguns estudiosos foram então buscar, fora do âmbito da lingüística, modelos alternativos que servissem de base para o estudo da tradução desse tipo de texto (cf. Martins, 1999). No artigo ―The name and nature of Translation Studies‖, publicado em 1972, James Holmes apresenta pela primeira vez as denominações ―Estudos da Tradução‖ e ―Estudos Descritivos da Tradução‖, explicando que a primeira referese à disciplina em termos mais amplos, enquanto que a segunda seria um ramo da disciplina geral dos Estudos da Tradução. Segundo Holmes, [c]omo campo de pesquisa pura [...] os estudos da tradução têm portanto dois objetivos principais: (1) descrever os fenômenos da atividade tradutória e a(s) tradução(ões) conforme se manifestam no mundo da nossa experiência, e (2) estabelecer princípios gerais através dos quais esses fenômenos podem ser explicados e previstos9. (Holmes, 1988: 71)

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LEFEVERE, A. (1981) ―Beyond the process: literary translation in literature and literary theory‖. Em Marilyn Gaddis Rose (org.) Translation spectrum: Essays in theory and practice. Albany: SUNY. 9 As a field of pure research [...] translation studies thus have two main objectives: (1) to describe the phenomena of translating and translation(s) as they manifest themselves in the world of our

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Ele divide então os estudos da tradução em estudos descritivos da tradução, ramo empírico que trataria do primeiro objetivo da disciplina, e estudos teóricos da tradução, que deve usar os resultados dos estudos empíricos para atingir o segundo objetivo apontado acima. As pesquisas deixam de ser orientadas por uma visão prescritiva e normativa, fundada em juízos de valor e que busca alcançar traduções ideais a partir de noções rígidas de fidelidade ao texto-fonte, para assumir uma perspectiva descritiva, voltada para a análise dos textos que funcionam como traduções em determinada cultura. A abordagem descritivista veio incorporar a dimensão cultural ao estudo da tradução literária, e as principais afinidades compartilhadas pelos estudiosos que se identificam com essa abordagem são, nas palavras de Theo Hermans (1985: 101) traduzidas por Martins (1999: 30), uma visão da literatura como um sistema dinâmico e complexo; a convicção de que deve haver uma interação permanente entre modelos teóricos e estudos de caso; uma abordagem da tradução literária de caráter descritivo e voltada para o textometa, além de funcional e sistêmica; e um interesse nas normas e coerções que governam a produção e a recepção de traduções, na relação entre a tradução e outros tipos de reescritura e no lugar e função da literatura traduzida tanto num determinado sistema literário quanto na interação entre literaturas.

Um dos grandes expoentes no campo dos DTS é o teórico israelense Gideon Toury. Em sua obra de 1995, Descriptive Translation Studies and beyond, que, segundo o próprio Toury, substitui In search of a theory of translation, de 1980, o teórico retoma alguns conceitos apresentados em seu livro anterior, como a noção de ―tradução presumida‖ (assumed translation), o foco no pólo receptor da tradução e o conceito de normas tradutórias. Para Toury, ―traduções são fatos das culturas-meta; em certas ocasiões, fatos com um status especial, às vezes até constituindo (sub)sistemas próprios identificáveis, mas da cultura-meta de qualquer forma‖ 10 (Toury, 1995: 29). De fato, o próprio termo ―tradução‖ só se aplica ao sistema-meta, o qual geralmente determina a necessidade de uma tradução, que é realizada para preencher uma lacuna nesse sistema. Ampliando dessa forma o conceito de tradução, Toury inclui no âmbito dos Estudos da experience, and (2) to establish general principles by means of which these phenomena can be explained and predicted. 10 translations are facts of target cultures; on occasion facts of a special status, sometimes even constituting identifiable (sub)systems of their own, but of the target culture in any event.

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Tradução

categorias

antes

ignoradas

pelos

pesquisadores,

como

as

pseudotraduções, as traduções indiretas e aquelas feitas a partir de mais de um texto-fonte (ibidem, p. 34). O foco no sistema-meta não significa que os Estudos Descritivos se preocupem exclusivamente com o lugar da tradução nesse sistema. Toury deixa claro que o texto-fonte, as operações de transferência e as relações tradutórias não são excluídos dos DTS, eles apenas recebem um status diferente. O foco da abordagem é o sistema-meta porque ele deve ser o ponto de partida da observação. O trabalho do pesquisador não deve de forma alguma se esgotar nele (ibid., p. 36). Isso nos leva ao já mencionado conceito de tradução presumida. Para Toury, definições a priori de tradução, principalmente se expressas em termos essencialistas [...], envolveriam uma pretensão insustentável de fixar de uma vez por todas os limites de um objeto caracterizado por sua variabilidade: a diferença entre culturas, a variação dentro de uma cultura e a transformação ao longo do tempo11. (ibidem, p. 31 — grifos do original)

Assim, os possíveis objetos de estudo do pesquisador ficam muito limitados por essas definições essencialistas. A proposta do teórico é mudar o foco para uma visão funcionalista, cujo objetivo é analisar o lugar sistêmico que as traduções ocupam na cultura receptora. Portanto, desde que um texto funcione como tradução na cultura-meta, ou seja, desde que seja recebido, aceito e circule como tal, ele é um objeto válido de estudo para o pesquisador de tradução, segundo Toury. É esta definição funcionalista de tradução que adoto no presente trabalho, no qual defendo que a legendagem é um tipo de tradução e constitui um objeto de estudo legítimo, uma vez que ela é apresentada, recebida e aceita na cultura brasileira como sendo uma tradução. Além disso, a minha visão de ensino em geral e do ensino de tradução para legendagem em particular, bem como as bases do curso proposto por este estudo, se fundamentam na abordagem descritivoexplanatória dos DTS, focada no processo tradutório e centrada no pólo receptor. Outro conceito central do pensamento de Toury é o de norma tradutória. Tomando como base o conceito geral de norma, bastante difundido entre as 11

especially if couched in essentialistic terms [...], would involve an untenable pretense of fixing once and for all the boundaries of an object which is characterized by its very variability: difference across cultures, variation within a culture and change over time.

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ciências sociais, e adaptando-o ao campo da tradução, o estudioso defende que a tradução deve ser encarada como um fato cultural (1995: 53-5). Portanto, a capacidade de traduzir corresponde, em primeira instância, à capacidade do tradutor de interpretar um papel social e de cumprir uma função atribuída a ele pela sociedade de forma apropriada. Para isso, ele precisa internalizar um conjunto de normas que determinam o grau de adequação de seu desempenho e dar conta satisfatoriamente dos vários fatores que podem representar coerções à sua atividade. No contexto da Sociologia e da Psicologia, as normas são valores ou idéias gerais compartilhados por uma comunidade, especificando o que é recomendado e proibido, tolerado e permitido. As normas são adquiridas pelo indivíduo durante a sua socialização e são vitais para o estabelecimento e a manutenção da ordem social. No entanto, não há necessariamente uma identidade entre as normas e as formulações verbais das mesmas. Segundo Toury, o seu grau de explicitude pode variar, e quanto mais explícitas forem, mais perto estarão de serem consideradas regras. Dessa forma, a escala geral de coerções às quais a tradução está sujeita tem, como pólos extremos, de um lado as regras e, do outro, as idiossincrasias. Toury destaca ainda que as próprias regras e idiossincrasias podem ser redefinidas em termos de normas, ressaltando que as regras seriam normas (mais) objetivas, e as idiossincrasias, normas (mais) subjetivas, (ou menos intersubjetivas) (ibidem). Toury define norma como um tipo de coerção comportamental internalizada, ou seja, trata-se de valores e idéias compartilhados por uma certa comunidade mas que não são formulados como regras explícitas. Dentro dessa comunidade, as normas tradutórias também servem como critério para a avaliação de instâncias de comportamento (ibid.). As coerções, por sua vez, situam-se em um âmbito mais geral. Para Toury, em sua dimensão sociocultural, a tradução está sujeita a coerções de diversos tipos e graus de intensidade. Além das já mencionadas coerções comportamentais, que recebem a denominação de normas, existem outras que são explícitas — ou mesmo físicas — e que também influem no resultado final das traduções. As coerções se estendem muito além do textofonte, das diferenças sistêmicas entre as línguas e das tradições textuais envolvidas. No caso do objeto de estudo desta pesquisa, a legendagem, um exemplo de norma seria a tendência a amenizar a linguagem de baixo calão, e uma

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coerção explícita pode ser exemplificada pelo número máximo de caracteres permitido por linha de legenda. Segundo Toury, a tradução é uma atividade que envolve pelo menos duas tradições culturais e dois sistemas diferentes de normas, que representam duas fontes de coerções, na maioria das vezes incompatíveis entre si. ―Não fosse a capacidade regulatória das normas, as tensões entre as duas fontes de coerções teriam de ser sempre resolvidas caso a caso, sem que se pudesse adotar um padrão claro de comparação‖12 (p. 56 — grifo do original). Entretanto, Toury alerta que não é isso que acontece: o comportamento tradutório é marcado por regularidades, e desvios costumam ser facilmente reconhecidos pelo público receptor da tradução. É essa regularidade, cuja identificação se dá pelo estudo das normas, que possibilita o estudo da tradução como um fenômeno cultural. A primeira categoria proposta por Toury é a das normas preliminares. Elas dizem respeito à escolha de textos a serem traduzidos e às estratégias globais adotadas para sua realização e aceitação no sistema-meta, que implicam determinar, por exemplo, se a tradução indireta é permitida, ou então, caso uma tradução seja indireta, se esse fato costuma ser explicitado, ignorado, camuflado ou negado. Outra questão é saber de que idiomas e períodos é permitido ou proibido traduzir. Essas decisões, na maioria das vezes, não são tomadas pelo tradutor, mas por outros agentes envolvidos no polissistema. Ao iniciar uma tradução, o tradutor deve fazer uma escolha básica entre um dos sistemas. Essa escolha é chamada de norma inicial. Se o tradutor escolher privilegiar o sistema-fonte, adotando as normas e as relações textuais vigentes no texto-fonte, fará uma tradução adequada; se, por outro lado, ele privilegiar as normas e as relações textuais da cultura-meta, produzirá uma tradução aceitável. Esta decisão por parte do tradutor não é necessariamente consciente nem excludente. É possível adotar uma estratégia híbrida, ora mais voltada para a adequação, ora mais para a aceitabilidade. Toury faz questão de esclarecer que a noção de norma inicial foi proposta para servir principalmente como ferramenta para auxiliar o pesquisador a medir a regularidade das decisões tradutórias, mas

12

Were it not for the regulative capacity of norms, the tensions between the two sources of constraints would have to be resolved on an entirely individual basis, and with no clear yardstick to go by.

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não necessariamente regularidades absolutas, que, segundo ele, não devem ser esperadas em nenhum domínio do comportamento humano (p. 57). As normas operacionais, por sua vez, constituem a terceira e última categoria, e referem-se às decisões tomadas durante a tradução. Subdividem-se em normas matriciais, que dão conta de omissões, alterações e acréscimos feitos no texto traduzido, e em normas textuais, que tratam das opções lingüísticas e estilísticas feitas pelo tradutor. O teórico André Lefevere (1992), do ramo belga dos DTS, refinou o conceito de coerção adicionando-lhe a dimensão do poder. Para Lefevere, o polissistema — literário, no caso das reflexões do estudioso — opera sob mecanismos de controle que podem ser internos e externos. Os fatores internos tentam controlar o sistema literário de dentro, a partir dos parâmetros estabelecidos pelo fator externo (p. 14), e são representados por críticos, revisores, professores, tradutores e clientes. Esses profissionais podem exercer seu controle reprimindo certas obras que se opõem ao conceito de literatura (poética) ou de sociedade (ideologia) em vigor em um dado sistema, ou, principalmente, segundo Lefevere, adaptando obras para que fiquem de acordo com a poética e a ideologia daquele sistema (ibidem). O mecanismo de controle externo ao polissistema literário foi denominado patronagem por Lefevere. A patronagem pode ser exercida por pessoas ou instituições, como órgãos de censura, meios de comunicação e o sistema educacional, no sentido de facilitar ou impedir a leitura, escrita ou reescrita da literatura (p. 15), e está mais interessada na ideologia do que na poética, já que, em relação à manutenção desta, seus agentes delegam autoridade aos profissionais representantes dos mecanismos de controle internos. No Capítulo 3, voltarei a abordar os conceitos de norma tradutória e patronagem e explorarei os conjuntos de normas, coerções e mecanismos de controle que permeiam o trabalho dos legendadores.

2.2 O ensino de tradução

Como já foi dito na Seção 2.1.2 deste capítulo, as abordagens normativas do estudo da tradução preocupadas com a formalização do processo tradutório não conseguiram dar conta das traduções literárias. Essa busca pelo cientificismo leva

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ao desejo de dominar os mecanismos mentais da tradução e de se estabelecerem critérios objetivos para sua avaliação e seu ensino (cf. Arrojo, 1994). A idéia de que é possível estabelecer uma teoria geral da tradução é duramente criticada pelas reflexões pós-estruturalistas, com as quais me identifico, que se esforçam para demonstrar a impossibilidade de um conhecimento sistemático e científico dos processos mentais envolvidos em empreendimentos tais como a tradução, que requerem leitura e interpretação. Nas palavras de Arrojo, a desconstrução promovida pela crítica pós-moderna traz como uma de suas conseqüências mais destacadas a desistência de se tentar atingir uma narrativamestra que pudesse, algum dia, determinar, para todo o sempre e em todas as circunstâncias, o que deve conter e realizar, e como deve ser fiel e se comportar toda e qualquer tradução. (ibidem, p. 101)

Os reflexos da visão pós-estruturalista no ensino da tradução são óbvios. Se não existe uma teoria geral da tradução nem normas gerais que possam ser aplicadas a todo ato tradutório, também não há como encarar o ensino dessa atividade de forma prescritiva e normativa. Portanto, o professor que se alinha à reflexão pós-estruturalista enfrenta o desafio duplo de ensinar tradução de forma não-prescritiva e livrar os aprendizes ― ou a grande maioria deles ― da expectativa irreal de que o significado é estável, levando-os a perceber que diferentes caminhos e escolhas podem levar a traduções igualmente aceitáveis. No artigo ―O ensino da tradução e seus limites: por uma abordagem menos ilusória‖ (1992), Rosemary Arrojo descreve o caso de uma aluna que a procurou pedindo a tradução de uma lista de palavras e expressões descontextualizadas em inglês. Essa atitude, que reflete uma postura teórica logocêntrica, é muito comum entre aprendizes de tradução, e uma das tarefas do professor, a meu ver, é desconstruí-la. A abordagem ―menos ilusória‖ que propõe Arrojo é decorrente de uma postura teórica que desconfia de qualquer fôrma de significados supostamente mumificados, já que tem como base o questionamento da possibilidade de qualquer significado absolutamente estável ou inerente à palavra, ou em sentido mais amplo, ao próprio texto. (p. 103)

A estudiosa pós-estruturalista defende que aprender a traduzir é um processo complexo que, além da elaboração de glossários, listas de dúvidas e consultas a dicionários, inclui a familiarização com ―as formas de leitura praticadas pelas comunidades que produzem e consomem‖ (p. 104) o tipo de texto a ser traduzido.

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Essa familiarização fatalmente envolve interpretação, e é só dessa forma, segundo Arrojo, que os aprendizes começam a acumular conhecimento para assumir a responsabilidade pelo texto de chegada, que será uma representação do texto de partida. Arrojo conclui dizendo que é impossível que esse aprendizado ocorra exclusivamente dentro dos limites da sala de aula, mas que é possível, num curso de formação de tradutores, conscientizar os aprendizes em relação a essa responsabilidade que eles estarão assumindo (p. 105). Uma proposta para a formação de tradutores críticos e competentes que julgo pertinente é a apresentada por Martins (1992). A autora propõe uma pedagogia estruturada sobre um tripé: maior integração entre teoria e prática; maior ênfase no caráter interdisciplinar da tradução, e uma abordagem pedagógica que também enfoque o processo tradutório, e não apenas o produto final da tradução (p. 50). Muitos professores de tradução desprezam a teoria, julgam-na desnecessária e dissociada da prática, sem se dar conta da indissolubilidade entre ambas13. Citando o artigo no qual Rosemary Arrojo relata o caso de sua aluna que reuniu em uma lista palavras e expressões descontextualizadas em inglês, Quental (1995) chama atenção para o fato de que toda prática (a atitude e as decisões da aluna com relação ao texto a traduzir) traz implícita uma teoria, ou uma perspectiva teórica [...]. Em outras palavras, enquanto as proposições [dos professores entrevistados pela pesquisadora], mesmo as mais favoráveis à teoria, implicam que a tradução funciona ou pode funcionar sem uma teoria correspondente, de acordo com a concepção de Arrojo a teoria da tradução é o conjunto de crenças que orientam e, até, determinam a atividade propriamente dita, celebrando com ela um vínculo indissolúvel. (p. 76)

Em outras palavras, a simples forma como o processo tradutório é encarado revela a perspectiva teórica do professor de tradução. Ele pode ver a tradução de forma essencialista e julgar que basta ensinar a ―única‖ interpretação possível do texto (ou a ―correta‖) para que os aprendizes a assimilem, refletindo nesse caso uma perspectiva teórica logocêntrica, ou encará-la de forma não-essencialista e sistêmica, discutindo diferentes soluções e traduções possíveis e contextualizando a tradução através da definição de seu público-alvo, de seu objetivo e do veículo em que será divulgada. Dessa forma, ele estará privilegiando o fazer tradutório, o 13

Para uma visão mais detalhada de como os professores de tradução encaram a teoria, ver Quental (1995).

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processo no sentido do conjunto de procedimentos adotados pelo tradutor ― outra base do tripé proposto por Martins. Afinando-se com Arrojo, Martins defende uma abordagem pedagógica do ensino de tradução na qual a teoria esteja presente o tempo todo, ―numa perspectiva de total integração à prática‖ (1992: 50). Essa presença constante da teoria se daria em um nível mais amplo, como em discussões sobre os limites da tradução, de questões como conteúdo vs. forma, literalidade, fidelidade, o papel do tradutor etc., inclusive com base na leitura e discussão em sala de textos teóricos, até atividades e exercícios como a identificação de um problema específico (a tradução de um determinado termo num dado contexto, por exemplo), a enumeração das várias opções possíveis, sua avaliação levando em conta a língua-meta e o leitor visado, a escolha de [soluções] e, em seguida, a discussão da generalidade do problema para o futuro. (p. 51)

Não tenho dúvida de que a abordagem pedagógica não-essencialista aqui apresentada leva à formação de tradutores mais capacitados, críticos e responsáveis. Noto freqüentemente em minha prática do ensino de tradução para legendagem que, quando desestimulo os alunos a fazerem perguntas do tipo: ―Como se traduz isso?‖ ou ―Como fica melhor?‖, levando-os a refletir sobre o contexto e as diferentes opções possíveis, bem como incentivando-os a justificar seus critérios e defender suas escolhas, eles se tornam mais seguros e passam a demonstrar cada vez mais independência do professor nas atividades propostas. É essa abordagem pós-estruturalista do ensino da tradução que adoto no presente trabalho, e que estará refletida nas bases do curso de formação de legendadores proposto por mim no Capítulo 5.

2.3 Metodologia

Para complementar e enriquecer os capítulos 4 e 5, conduzi entrevistas com alguns dos atores mais importantes do polissistema de tradução audiovisual (modalidade legendagem), dividindo-os em três categorias: diretores de produtoras, professores de legendagem e alunos e ex-alunos de cursos de legendagem.

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A escolha da entrevista como técnica de pesquisa se deveu principalmente aos seguintes fatores: ao contrário da aplicação de questionários, por exemplo, na qual se cria uma relação hierárquica entre pesquisador e informante, ―na entrevista a relação que se cria é de interação, havendo uma atmosfera de influência recíproca entre quem pergunta e quem responde‖ (Lüdke e André, 1986: 33). Além disso, ―a entrevista permite a captação imediata e corrente da informação desejada‖ (ibidem) e há mais espaço para correções, esclarecimentos e aprofundamento de certas questões. E uma vez que o meu objetivo era acumular mais dados qualitativos do que quantitativos, principalmente nas entrevistas com os diretores de produtoras e os professores, a entrevista me pareceu o método de pesquisa mais adequado. O primeiro contato com os diretores das três maiores produtoras que oferecem o serviço de tradução para legendagem no Rio de Janeiro foi feito através de correio eletrônico. Dos três contatados, um não respondeu aos dois emails enviados e dois se dispuseram a me receber para uma entrevista. No entanto, por problemas de agenda, a entrevista com um dos diretores não aconteceu. Sendo assim, entrevistei pessoalmente apenas um representante da categoria ―diretores de produtoras‖, que, por motivos éticos, será identificado como Diretor A. Fiz um primeiro contato via correio eletrônico com oito professores de legendagem: cinco deles lecionam no Rio de Janeiro e três, em São Paulo 14. Pelo fato de estar inserida no mercado de legendagem carioca há muitos anos e ser sócia de uma empresa potencialmente contratante dos serviços de legendadores saídos de cursos, conheço pessoalmente os cinco professores contatados que atuam no Rio de Janeiro. Cheguei aos nomes dos professores de São Paulo através de listas eletrônicas de tradutores que divulgam cursos e também através de currículos enviados à Gemini Vídeo. Um professor de São Paulo retornou o meu primeiro contato solicitando um prazo maior para responder às perguntas, que foi concedido. No entanto, mesmo após um segundo contato via e-mail, não recebi resposta de nenhum dos três professores de legendagem de São Paulo. Em contrapartida, entrevistei cinco dos seis professores contatados no Rio de Janeiro, dois pessoalmente (esses informantes serão identificados como Professores A e

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Embora haja professores e professoras entre os entrevistados, figuram todos aqui no masculino em razão do sigilo.

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B), um via conversa telefônica gravada (Professor C) e dois por e-mail (Professores D e E). As entrevistas com o Diretor A e com os cinco professores foram semiestruturadas, ou seja, seguiram um roteiro básico pré-estabelecido, mas tanto a entrevistadora quanto os informantes tinham liberdade para fazer perguntas e comentários que fugissem do roteiro quando julgassem pertinente15. As entrevistas com o Diretor A e os professores A e B foram conduzidas pessoalmente e gravadas em áudio com o auxílio do editor de áudio Audacity, um software baixado gratuitamente da Internet, e de um microfone ligado a um laptop. A entrevista com o Professor C foi conduzida via Skype, um programa realiza ligações telefônicas e videoconferências pela Internet. O programa PowerGramo, também baixado gratuitamente da Internet, se associa ao Skype e permite que as conversas telefônicas sejam gravadas em um arquivo de áudio no computador. Utilizei portanto o PowerGramo para registrar a entrevista realizada via Skype com o Professor C. Posteriormente, ouvi as gravações e transcrevi os trechos que julguei mais relevantes aos propósitos deste estudo. Nas entrevistas realizadas por correio eletrônico, enviei aos professores D e E o mesmo roteiro de perguntas feitas aos professores A, B e C. Como a entrevista semi-estruturada prevê esclarecimentos e aprofundamentos posteriores, após ter recebido as respostas dos professores D e E fiz novas perguntas ao Professor D, cujo depoimento inicial ensejou um maior aprofundamento de algumas questões. Dos cinco professores entrevistados, quatro lecionam em cursos livres e conduzem oficinas de legendagem no Rio de Janeiro. Dois deles também dão aulas em módulos de tradução para legendagem em programas de pós-graduação lato sensu oferecidos por universidades cariocas. Somente um tem perfil um pouco diferente: dá aulas particulares apenas sobre os softwares utilizados no mercado, além de dicas de timing, spotting e algumas convenções básicas que hoje vigoram no mercado da TV fechada. Em suas próprias palavras, ―[n]ão leciono bem legendagem, e sim técnica de legendagem. Se dividirmos o ensino de legendagem em parte lingüística e técnica, trato apenas da parte técnica (softwares, erros de timing, spotting, velocidade de leitura)‖. 15

Para o roteiro básico das entrevistas com o diretor, os professores e os alunos ver, respectivamente, os apêndices A, B e C.

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Sem dúvida, as entrevistas realizadas pessoalmente se revelaram muito mais ricas em informações e detalhes sobre o programa dos cursos, os métodos utilizados por cada professor e as competências e habilidades que eles julgam necessárias a um bom legendador. As respostas dos professores entrevistados por e-mail foram mais sucintas. Por esse motivo, não há no presente trabalho nenhuma citação atribuída ao Professor E. Mesmo assim, acredito que a entrevista realizada com ele também serviu aos meus propósitos, pois suas respostas corroboraram as declarações dos demais professores. A terceira categoria de informantes foi a de alunos e ex-alunos dos cursos de legendagem. Reuni, entre ex-alunos meus, alunos e ex-alunos de três professores entrevistados e candidatos a colaboradores da Gemini Vídeo que mencionavam no currículo ter feito algum curso de legendagem, 139 entrevistados. Diante desse número considerável, tive de decidir entre enviar questionários totalmente estruturados, com respostas em múltipla escolha — que gerariam dados eminentemente quantitativos mas facilitariam o trabalho de tabulação —, ou entrevistas com respostas livres — que produziriam dados quantitativos e qualitativos, mas levariam a uma análise de dados mais trabalhosa. Optei então por uma solução mista: enviei entrevistas com respostas livres, porém mais estruturadas do que aquelas feitas com os professores e o diretor, pois meu objetivo principal com a entrevista aos alunos era acumular dados quantitativos, sem no entanto fechar a porta para possíveis reflexões por parte deles. De fato, as 23 respostas recebidas (16,5% do total de entrevistas enviadas) geraram alguns dados qualitativos, que se fazem presentes em forma de depoimentos nos capítulos 4 e 5. Apesar do baixo retorno, a tabulação dos dados quantitativos das entrevistas com os alunos revelou alguns dados interessantes, que também são analisados no Capítulo 4.

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3. A tradução para legendagem e suas peculiaridades Segundo o teórico espanhol Jorge Díaz Cintas (2004), em termos numéricos, a tradução audiovisual é a atividade tradutória mais importante do nosso tempo, uma vez que atinge ― através principalmente do cinema, da TV e do DVD ― um público infinitamente superior àquele consumidor de qualquer outro tipo de tradução. Paradoxalmente, a atenção dispensada ao ensino dessa modalidade de tradução pela academia até pouco tempo era quase inexistente, embora o número de pesquisas feitas na área nos últimos anos esteja em franco crescimento. Na Europa, esse quadro vem mudando desde a criação da União Européia e, hoje, pelo menos 24 universidades do continente oferecem disciplinas de tradução audiovisual (cf. Díaz Cintas & Orero, 2003). No Brasil, poucas universidades possuem alguma disciplina de tradução audiovisual em seu currículo, seja em nível de graduação ou de pós-graduação, apesar do crescente interesse dos alunos pela modalidade16. Fora do âmbito acadêmico, o que existem são cursos de curta duração, como já foi mencionado na Introdução, voltados para o público em geral que deseja ingressar no mercado audiovisual. Esses cursos abordam as noções básicas de legendagem e/ou dublagem e as especificidades técnicas do ofício, além de alguns padrões e regras adotados pelo mercado. Não é, portanto, objetivo dos professores dos cursos existentes formar legendadores. Como veremos nos depoimentos apresentados no Capítulo 4, a expectativa dos professores é que os alunos se familiarizem com os programas específicos usados em legendagem o suficiente para serem aprovados nos testes de seleção das produtoras. No entanto, devido às peculiaridades dessa modalidade de tradução, muitos alunos desistem de tentar uma vaga no mercado antes mesmo do fim das aulas. O fato de os cursos livres serem abertos a quaisquer interessados, e não somente a tradutores profissionais, gera outro problema: ao final, os aprendizes dominam o programa de legendagem, mas produzem traduções inaceitáveis para os padrões do mercado. Por esses motivos, dificilmente um ex-aluno dos cursos de treinamento oferecidos hoje consegue se estabelecer no mercado sem que passe ao menos por uma reciclagem de português e um treinamento longo e intensivo nas produtoras 16

Até onde consegui verificar, essas universidades são PUC-Rio, UGF, UnB, UECE, UFBA e Universidade de Franca.

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para as quais prestará serviço. Além disso, devido à carga horária reduzida desses cursos — que varia entre 10 e 40 horas —, são abordadas apenas as normas e coerções mais óbvias, aquelas cujo desconhecimento leva a problemas técnicos graves. Sendo assim, o novato não desenvolve a independência necessária para solucionar um problema mais complexo, seja tradutório ou técnico. Neste capítulo, após uma breve contextualização das modalidades de tradução audiovisual presentes na televisão brasileira, abordarei algumas características específicas da tradução para legendagem e as coerções que elas suscitam. Por fim, apresentarei os principais mecanismos de controle e normas que atualmente vigoram no mercado de legendagem brasileiro.

3.1 A tradução audiovisual na televisão brasileira

Como explica o estudioso dinamarquês Henrik Gottlieb (1998), a tradução audiovisual nasceu em 1929, quando os primeiros filmes falados atingiram o público internacional. Desde então, duas modalidades se destacaram: a dublagem, que consiste na substituição do canal de áudio com o som original por um canal de áudio com a tradução; e a legendagem, ou inserção de legendas com o texto traduzido de forma sincronizada com as falas na língua original. No verbete ―Subtitling‖, da Routledge Encyclopedia of Translation Studies, Gottlieb divide o mundo da tradução audiovisual em quatro blocos:

a) Países de língua-fonte, falantes de inglês, com raras importações nãoanglófonas. Por serem escassos, os filmes importados tendem a ser legendados em vez de dublados. São muitas vezes filmes de ―arte‖, cujo público-alvo é uma audiência letrada. b) Países adeptos da dublagem, falantes principalmente de alemão, italiano, espanhol e francês, tanto na Europa quanto fora dela. Nesses países, quase todos os filmes e programas de TV importados são dublados. c) Países adeptos do voice-over, a saber Rússia, Polônia e outras comunidades lingüísticas de grande ou médio porte que não podem pagar a dublagem sincronizada. No processo de gravação de voice-over de um filme de longametragem, um narrador interpreta as falas de todo o elenco (todo o diálogo); o volume do canal de áudio original é baixado enquanto ele/ela fala. d) Países adeptos da legendagem, incluindo inúmeras comunidades lingüísticas não-européias, assim como vários países europeus pequenos com altos níveis

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de instrução, nos quais a legendagem tem preferência sobre a dublagem.17 (1998: 244)

No Brasil acontece um fenômeno interessante. Aqui, dublagem e legendagem são igualmente bem-aceitas; cada modalidade tem seu público cativo e seu espaço garantido. Com o advento da TV a cabo, o voice-over, antes usado quase que exclusivamente por repórteres televisivos na tradução de depoimentos e entrevistas em língua estrangeira, também foi ganhando espaço. A grande vantagem do voice-over é o custo, muito mais baixo que o da dublagem sincronizada (que chega a ser quinze vezes mais cara do que a legendagem). À exceção dos longas-metragens de animação ou voltados para o público infantil, que são dublados, na cultura brasileira, tradicionalmente, os produtos estrangeiros veiculados no cinema são legendados, enquanto que aqueles exibidos na TV aberta são dublados. Um dos motivos que levaram a essa hegemonia da dublagem na TV aberta foi um decreto assinado em 1962, durante o governo João Goulart, que obrigava a dublagem dos filmes a serem exibidos pela televisão (Souza, 1999: 17). A promulgação dessa lei sugere uma motivação política, uma tentativa de proteger a cultura e a língua locais da impregnação estrangeira. Mas o monopólio da dublagem na TV aberta brasileira também possui uma motivação socioeconômica: o nível geral de instrução da população é baixo, o que descarta o uso da legendagem de programas destinados a esse público, uma vez que, para acompanhar as legendas de forma natural e sem um esforço cognitivo muito grande, o espectador deve ser capaz de ler com rapidez, o que é difícil para pessoas pouco instruídas. O advento da TV por assinatura acabou por reproduzir a preferência pela legendagem observada no mercado brasileiro de cinema, pois, além de ser uma modalidade muito mais barata e rápida de tradução audiovisual, 17

a) Source-language countries, English-speaking, with hardly any non-Anglophone imports. Few as they may be, imported films tend to be subtitled rather than dubbed. They are often ‗art‘ movies, aimed at a literate audience. b) Dubbing countries, mainly German-, Italian-, Spanish- and French-speaking in and outside Europe. In these countries, nearly all imported films and TV programmes are dubbed. c) Voice-over countries, namely Russia, Poland and other large or medium-sized speech communities which cannot afford lipsynch dubbing. In doing the voice-over for a feature film, one narrator interprets the lines of the entire cast (the entire dialogue); the volume of the original soundtrack is turned down while s/he is speaking. d) Subtitling countries, including several non-European speech communities as well as a number of small European countries with a high literacy rate, where subtitling is preferred to dubbing.

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como a assinatura naquele primeiro momento era muito cara e portanto só acessível à elite, a aposta das distribuidoras foi a de que os assinantes prefeririam a legendagem. De certa forma, a hipótese das distribuidoras se confirmou, e a legendagem ainda prevalece na TV fechada. No entanto, com o barateamento das assinaturas de TV a cabo gerado pela concorrência e a criação de pacotes básicos para classes sociais menos favorecidas, começou a surgir uma demanda por programas dublados. Hoje, como explica Carvalho (2005), [h]á canais especializados em determinados gêneros de programas que empregam a dublagem enquanto outros semelhantes preferem a legendagem. O mesmo ocorre com os canais de entretenimento. A maioria dos canais dedicados à exibição de filmes tende a preferir a legendagem, porém recentemente vem-se abrindo espaço para a dublagem a pedido dos assinantes (p. 94).

3.2 Os conceitos de tradução diagonal e diassemiótica e os problemas que eles causam No Capítulo 2, apresentei de forma resumida o conceito de norma tradutória, desenvolvido por Gideon Toury, segundo o qual, dentro da escala de coerções às quais qualquer tipo de tradução está sujeita, em um pólo estão as regras — mais explícitas do que as normas e geralmente enunciadas — e, no outro, as idiossincrasias — mais subjetivas e individuais. As normas preencheriam o amplo espaço entre um pólo e outro e, como vimos, os próprios conceitos de regra e idiossincrasia também podem ser redefinidos em termos de normas, respectivamente mais ou menos objetivas. A título de simplificação, adotarei doravante a seguinte adaptação da nomenclatura proposta por Toury para abordar as normas e coerções que regem o trabalho dos tradutores no mercado de legendagem brasileiro: chamarei de coerções as limitações físicas impostas pelo meio televisivo e de normas as convenções formais, tanto técnicas quanto lingüísticas, adotadas pelos clientes em potencial dos legendadores, entre os quais se destacam laboratórios de legendagem, produtoras e canais de TV fechada. A legendagem é uma forma muito especializada de tradução que, como já foi mencionado no Capítulo 2, envolve diferentes canais semióticos, é governada

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por coerções espaciais e temporais e possui características peculiares. Um conceito-chave para entendermos melhor toda a complexidade da legendagem é o de tradução diagonal, cunhado por Henrik Gottlieb (1994a). Segundo ele, a legendagem é um tipo de tradução diagonal porque o discurso falado é lido em outra língua pelos espectadores. Na tradução de um texto escrito ou na interpretação simultânea, por exemplo, não ocorre uma mudança de código, ou seja, traduz-se do código escrito para o código escrito no caso da tradução de textos, e do código oral para o código oral no caso da interpretação, como demonstrado no quadro abaixo.

Tradução escrita e interpretação

Língua-fonte

Língua-meta

Código oral

Fala

Fala

Código escrito

Texto

Texto

No caso da legendagem, além da língua, o código também muda, do oral para o escrito, o que fica claro no quadro abaixo:

Legendagem Código oral Código escrito

Língua-fonte

Língua-meta

Fala (áudio) Texto (legendas)

Conforme explica Schwarz (2002), essa mudança gera alguns problemas para o legendador: o principal é causado pela diferença entre a velocidade da língua falada e a velocidade de leitura. Uma transcrição completa do roteiro original nunca é possível na legendagem. As limitações físicas de espaço na tela e o ritmo da palavra falada exigem uma redução considerável do texto, uma vez que o que rege o tempo de permanência de uma legenda na tela é o áudio original. Sendo assim, no momento em que identifica um enunciado oral na língua original, o telespectador dirige o olhar para a parte inferior da tela à procura da tradução daquele enunciado. Por isso, o ideal é que a legenda com a fala traduzida surja na tela cerca de 1/4 de segundo depois do início da fala original — tempo que o cérebro humano leva para identificar o som da fala original e guiar a visão para o

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local onde a legenda deve aparecer (cf. Karamitroglou, 1998) — e desapareça no máximo um segundo após o final da fala correspondente (desde que não haja corte de cena nem outro enunciado oral que se inicie nesse segundo adicional). O surgimento precoce da legenda na tela causa incômodo e distrai o telespectador, desviando sua atenção dos outros canais comunicativos. Estudos indicam que o texto legendado é em média um terço mais enxuto do que o original, mas há casos em que essa redução chega a ultrapassar 50% 18. Portanto, os telespectadores de um programa legendado têm uma experiência muito diversa da que tem o público que assiste à versão original. O esforço cognitivo que o espectador de um programa legendado faz é bem maior, pois, além de ler as legendas, ele tem de assimilar todos os outros três canais semióticos presentes no produto audiovisual (cf. Capítulo 2). Ao contrário do que acontece na dublagem, em que um canal ou código é substituído por outro, na legendagem o original não é alterado. Em vez disso, adiciona-se um elemento ao produto. Nesse aspecto, Gottlieb (1994b) faz ainda outra distinção entre a tradução para legendagem e para dublagem. Embora as duas modalidades sejam exemplos de comunicação polissemiótica, na dublagem o canal acústico com os diálogos originais é substituído pelo canal acústico com os diálogos traduzidos e interpretados por dubladores, ou seja, o canal de comunicação não muda. Isso faz dela um exemplo de tradução isossemiótica. Já na legendagem, a tradução do canal acústico verbal é adicionada ao canal visual não-verbal, configurando-a assim como uma tradução diassemiótica, em que há o envolvimento de diferentes canais. Nas palavras de Souza (1999: 35), a tradução no formato de legendas [a]parece ao lado dos signos verbais transmitidos acústica e visualmente como parte das imagens que acompanham este ―texto‖, podendo se constatar uma interação entre estes sistemas de significação que é percebida pelo espectador e que deve ser observada pelo tradutor.

Essa característica diassemiótica nos leva a outra particularidade da legendagem: a de estar sujeita a críticas por parte de qualquer pessoa com um conhecimento mínimo da língua-fonte (cf. Gottlieb, 1994a). Isso acontece exclusivamente na legendagem e em edições bilíngües de livros.

18

Para mais detalhes, ver Souza (1999).

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Outra peculiaridade é o caráter efêmero das legendas. Uma legenda com duas linhas cheias de texto deve permanecer na tela durante no mínimo quatro e no máximo seis segundos19. Após esse tempo, o telespectador começa a reler a legenda, o que não deve acontecer. No entanto, o tempo médio de permanência de uma legenda na tela varia entre dois e três segundos, dependendo do gênero do programa, do ritmo de sua edição e da quantidade de caracteres utilizados em cada legenda. O fato é que não há replay, portanto, se o espectador não assimila o texto da legenda naqueles dois ou três segundos em que ela permanece na tela, sua compreensão do conteúdo geral do programa fica prejudicada. Por isso, o ideal é que cada legenda seja um bloco coeso de significado, uma unidade inteligível e completa, com no mínimo uma linha e no máximo duas linhas de texto traduzido. Para isso, o legendador deve ter a capacidade de decidir como vai traduzir a língua-fonte e seus elementos constituintes e o que vai deixar de fora com base no tempo e no espaço que tem disponível. No Brasil, de uma forma geral, trabalha-se com o parâmetro de quinze caracteres por segundo 20. Além dessas duas coerções ― de caráter temporal e espacial ―, o aspecto gráfico das legendas deve corresponder ao aspecto fonético do diálogo que está sendo traduzido. Ou seja, é importante que as legendas tentem, na medida do possível, reproduzir a estrutura da língua-fonte e palavras facilmente identificáveis pelos telespectadores da língua-meta. Isso facilita a compreensão das legendas, principalmente no caso da tradução de línguas muito difundidas, como o inglês, ou muito parecidas com o português, como o espanhol. No entanto, como Gottlieb (1994a) ressalta, a incompatibilidade entre os subcódigos oral e escrito e as diferentes estruturas sintáticas das línguas podem representar obstáculos a essa correspondência. Segundo ele, algumas das principais características que distinguem o código oral do escrito são: (i) no código oral, o contato direto entre os interlocutores produz uma linguagem implícita que dispensa explicações. No caso de textos escritos, é preciso explicar e estender a mensagem; (ii) na linguagem falada, a localização de certos aspectos estilísticos no eixo do correto/incorreto e do formal/informal é diferente; 19

Os sistemas de legendagem de programas televisivos mais utilizados no Brasil comportam no máximo 32 caracteres com espaços por linha de legenda. 20 Adaptações a esse parâmetro devem ser feitas na legendagem de programas infantis ou de versões para culturas não habituadas às legendas.

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(iii) no discurso espontâneo, o legendador tem de lidar com pausas,

hesitações, autocorreções e interrupções; construções gramaticalmente inaceitáveis; lapsos e contradições; e situações nas quais várias pessoas falam ao mesmo tempo (pp. 105-6). Portanto, além de traduzir de uma língua para outra, na tradução diagonal traduz-se do código oral, muito mais livre e rebelde, para o código escrito, muito mais rígido. Se essa mudança de código não acontecesse, o público ficaria espantado ao ler as estranhezas do discurso oral. O público já está acostumado com essa recodificação, e só reage quando a outra dimensão da legendagem ― a tradução em si ― lhe parece imperfeita (ibidem, p. 106). Afora as coerções e normas listadas até aqui, a tradução para legendagem é regida por uma série de convenções e, apesar de o legendador não ter influência alguma sobre a maioria delas, é necessário que ele as conheça e respeite para manter uma boa relação com seus clientes e não sofrer sanções negativas. Devido ao grande número de normas existentes nessa modalidade de tradução, na próxima seção tratarei apenas das mais relevantes, desde as técnicas até as voltadas para questões de estilo, com o objetivo de demonstrar que só é possível abordar todas elas em um curso extenso de formação de legendadores. Para tal, vou adaptar para a realidade brasileira, a partir da minha experiência de doze anos de serviços prestados a diversos clientes, principalmente à Globosat, maior programadora de TV por assinatura do Brasil, o conjunto de convenções reunidas por Fotios Karamitroglou em seu artigo ―A proposed set of subtitling standards in Europe‖ (1998). Vale lembrar que, devido à natureza dinâmica do polissistema de tradução audiovisual, o grau de influência das diversas normas nele vigentes é variável: algumas têm mais força em dado subsistema do que em outro e, dentro de um mesmo sistema, a força de uma certa norma pode aumentar ou diminuir com o tempo.

3.3 Principais normas da tradução para legendagem

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Podemos dividir as normas gerais que orientam a produção de legendas no Brasil em duas categorias principais: parâmetros técnicos (espaciais e temporais) e parâmetros textuais, subdivididos em micro- e macroestruturais.

3.3.1 Parâmetros técnicos  número de caracteres por linha ― como já foi dito, o número máximo de caracteres por linha de legenda permitido no mercado brasileiro fica entre 30 e 35, ou 610 pixels, dependendo do equipamento e do tamanho da fonte utilizados na legendagem;  duração de uma legenda de duas linhas cheias ― se estivermos trabalhando com um máximo de 30 caracteres permitidos por linha, uma legenda de duas linhas cheias (com 60 caracteres no total) deve, de acordo com o parâmetro de 15 caracteres por segundo mais amplamente adotado pelo mercado, permanecer na tela por no mínimo 4 e no máximo 6 segundos. Na legendagem de programas infantis e de versões para idiomas de culturas pouco familiarizadas com a leitura de legendas, o tempo de permanência das legendas na tela deve ser maior;  duração de uma legenda de uma única palavra (duração mínima) ― de acordo com o padrão sugerido por Karamitroglou, uma legenda, por menor que seja, não deve permanecer na tela durante menos do que 1 segundo e meio. No entanto, esse parâmetro leva a problemas sérios de ―vazamento‖ de legendas para outra cena em alguns casos, como, por exemplo, o de um longametragem com edição nervosa, uma vez que certas expressões e interjeições podem ser proferidas em menos de meio segundo. No Brasil, o parâmetro mais utilizado para a duração mínima de uma legenda é de 1 segundo. Se houver corte de cena durante esse 1 segundo, deve-se inserir a legenda alguns quadros antes da fala original, evitando assim que ela vaze para a cena seguinte;  tempo de entrada da legenda ― como vimos na Seção 3.2, as legendas não devem ser inseridas simultaneamente ao início da expressão oral, mas 1/4 de segundo depois, para que o cérebro tenha tempo de identificar o som e conduzir os olhos em direção à parte inferior da tela. Quando o surgimento da

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legenda na tela coincide com o início do enunciado oral, ou pior, quando ela surge antes do início da fala original, o olhar do telespectador é surpreendido pelo flash da legenda, o que causa incômodo e distração. Além disso, uma legenda que entra adiantada pode acabar com o suspense de uma cena, revelando uma informação antes do tempo;  tempo de permanência de uma legenda na tela ― assim como deve entrar 1/4 de segundo depois da expressão oral, a legenda deve permanecer na tela no mínimo 1/2 segundo e no máximo 1 segundo após o final da fala correspondente, desde que, como já foi dito, não haja corte de cena nem outra fala se iniciando nesse tempo adicional. Se a legenda continua em exibição muito tempo depois de a fala correspondente ter se encerrado, ela polui a tela, desloca a atenção dos outros canais envolvidos na comunicação e deixa de ser uma representação do original. Por outro lado, se a legenda desaparece da tela antes da hora, ou seja, antes do final da fala correspondente ou assim que a mesma termina, o telespectador muitas vezes não consegue lê-la até o fim;  intervalo entre duas legendas consecutivas ― no parâmetro proposto por Karamitroglou, cerca de 1/4 de segundo (ou seja, entre 6 e 7,5 frames) deve ser inserido entre legendas consecutivas para evitar que uma legenda ―grude‖ na seguinte. No entanto, o default do sistema de legendagem mais utilizado na Europa (Cavena) é de 4 frames, intervalo que cumpre perfeitamente a função de fazer com que o espectador perceba que houve a mudança de legenda. Quando o tempo de saída de uma legenda é igual ao tempo de entrada da seguinte, ou seja, quando não há este intervalo mínimo de 4 frames, o olho humano não percebe a mudança, principalmente se a composição estética das duas legendas for semelhante;  relação das legendas com os cortes de cena ― as legendas devem respeitar cortes de cena que marquem uma mudança temática no produto audiovisual, e portanto devem desaparecer antes desses cortes.

3.3.2 Parâmetros textuais microestruturais  uso de reticências ― não há uma padronização para esse item no mercado brasileiro. Alguns clientes recomendam o uso de reticências no início e no

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final de cada legenda, para indicar que a oração legendada não está completa. Outros recomendam a inclusão de reticências apenas no final da legenda incompleta. Porém, o padrão mais utilizado é a ausência das reticências em legendas incompletas. Karamitroglou recomenda o uso das reticências no início e no final de legendas incompletas, argumentando que, com a ausência dessa pontuação, o cérebro leva mais tempo para processar a nova legenda, que aparecerá inesperadamente. Quem defende a ausência das reticências para marcar legendas incompletas argumenta que não se pode desperdiçar o espaço que seria ocupado por elas (relativo a três caracteres), e que a ausência de pontuação final já é uma indicação bastante clara de que o período está incompleto naquela legenda. Outra desvantagem do uso das reticências nesse caso é que elas perdem sua função original (e primordial) de marcar hesitações, pausas e interrupções;  uso de hífen ― o hífen deve ser utilizado como substituto do travessão para marcar o diálogo entre duas personagens numa mesma legenda e para separar orações apositivas, lembrando que, em legendagem, não se separam sílabas. Quando o hífen é utilizado na função do travessão, a maioria dos clientes recomenda que não se insira um espaço entre ele e o primeiro caractere de cada linha de legenda. No Brasil, cada linha deve conter, obrigatoriamente, a fala de uma personagem apenas;  uso de parênteses, asterisco, negrito e sublinhado ― esses recursos e convenções não são amplamente utilizados no mercado de legendagem brasileiro;  uso de itálico ― o itálico deve ser utilizado para marcar uma fonte de expressão oral que esteja fora do ambiente no qual a cena principal se desenrola, bem como para vozes filtradas, músicas e falas de narradores. O itálico também é usado para sinalizar pensamentos de personagens e destacar palavras estrangeiras;  palavras grafadas em caixa-alta ― a tradução de faixas, cartelas, cartazes, placas, bilhetes, letreiros e afins que sejam relevantes para o acompanhamento do enredo do produto audiovisual deve ser incluída sempre em caixa-alta. Nesse caso, o número máximo de caracteres por linha de legenda cai consideravelmente, pois letras maiúsculas ocupam uma quantidade muito maior de pixels do que letras minúsculas;

40

3.3.3 Parâmetros textuais macroestruturais  diagramação das legendas (ou spotting) ― o ideal é que cada legenda contenha um período inteiro, ou pelo menos uma idéia coerente e completa. Se for necessário dividir o período em duas legendas, o texto legendado deve ser segmentado de forma a manter juntos os sintagmas de ordem mais alta na estrutura da sentença (divide-se primeiro em orações, depois em sujeito e predicado, depois em sintagma nominal e sintagma verbal e assim por diante). Vejamos um exemplo adaptado do artigo de Karamitroglou de como diagramar internamente uma legenda (operação conhecida no meio como spotting interno): A oração ―A destruição da cidade era inevitável‖ possui 37 caracteres, o que significa que teria que ocupar obrigatoriamente duas linhas de legenda. Um primeiro nível de divisão se dá entre sujeito e predicado da oração (ou entre sintagma nominal e sintagma verbal), o que resultaria na seguinte legenda:

A destruição da cidade era inevitável.

A oração usada como exemplo é simples o bastante para que identifiquemos um spotting interno ruim, como é o caso das legendas listadas a seguir:

A destruição da cidade era inevitável.

A destruição da cidade era inevitável.

41

A destruição da cidade era inevitável.

Ainda no item diagramação, devemos destacar que as legendas são lidas mais rapidamente em blocos menores de duas linhas do que em uma linha longa (de mais de 26 caracteres). Segundo Karamitroglou, o olho está mais acostumado a ler textos em formato retangular (em colunas ou páginas), e não triangular, ou seja, a segmentação das legendas deve buscar um equilíbrio entre sintaxe e geometria e, se for preciso sacrificar um dos dois, deve-se priorizar o aspecto sintático;  mais de uma oração na mesma legenda ― Karamitroglou é categórico ao afirmar que não se devem incluir mais do que duas orações numa única legenda. No mercado brasileiro, isso não é uma norma explícita, apenas uma recomendação;  omissão e manutenção de itens lingüísticos do original ― de uma forma geral, a decisão de quais itens lingüísticos devem ser mantidos e quais devem ser omitidos depende do bom senso do tradutor; no entanto, mesmo que o espaço e o tempo permitam, nunca se deve tentar uma correspondência total dos itens lingüísticos, para que o telespectador tenha tempo de apreciar os elementos não-lingüísticos e visuais do produto. Portanto, o tradutor deve ter em mente que alguns itens são dispensáveis na legendagem, seja devido à natureza polissemiótica desse tipo de comunicação, seja por se tratar de expressões sem carga semântica. Entre os itens que podem ser omitidos sem que o entendimento geral do produto audiovisual fique prejudicado estão expressões como ―eu acho‖, ―você sabe‖, ―bem‖, ―bom‖, ―quer saber‖ etc.; intensificadores como ―muito‖, ―super‖ e ―hiper‖; pronomes demonstrativos, onomatopéias

e

respostas

curtas

e

facilmente

identificáveis

pelos

telespectadores da língua-meta, como ―ok‖, ―sim‖, ―não‖ e ―tchau‖. Por outro lado, os itens mais carregados de significado que são facilmente identificáveis na língua-meta, seja por se assemelharem foneticamente a palavras dessa língua, seja por terem um significado conhecido, não devem ser omitidos, uma vez que o telespectador tende a procurar essas palavras na tradução para verificar se ela é ―confiável‖. Entre os exemplos estão os topônimos e

42

palavras cognatas, como ―matemática‖ (em inglês: mathematics; em francês: mathématique; em italiano: matemàtica) ou ―necessidade‖ (em inglês: necessity; em francês: necessité: em italiano: necessità).  estruturas sintáticas preferenciais ― estruturas sintáticas simples, por serem mais curtas e de mais fácil entendimento, são preferíveis. Como destaca Carvalho (2005: 117-8), as simplificações mais recomendadas em cursos e manuais de legendagem são: (i) componentes sintáticos em ordem direta, em vez de inversa ou intercalada; (ii) orações coordenadas, em vez de subordinadas; (iii) construções ativas, em vez de passivas; (iv) construções positivas, em vez de negativas; (v) verbos simples, em vez de compostos; (vi) elipses, em vez de sujeitos ou verbos repetidos na mesma oração; (vii) interrogações, em vez de perguntas indiretas e (viii) imperativo em vez de solicitações indiretas. Em relação à norma inicial, o fato de o telespectador ter acesso simultâneo ao original e à tradução faz com que o legendador, muitas vezes, tenha de optar por uma tradução adequada, ou seja, mais orientada para o sistema-fonte, mesmo que isso gere um texto traduzido pouco fluente. Não devemos nos esquecer de que as legendas não são lidas como um texto corrido, mas em blocos mais ou menos independentes. Assim sendo, o leitor não tem a possibilidade de voltar para reler um trecho que tenha ficado obscuro na primeira leitura. As legendas devem ser claras e diretas, mas sempre subordinadas à estrutura original. Como explica Gottlieb (1994b: 268), o feedback do original, fornecido pela natureza polissemiótica da legendagem, tanto na forma de palavras reconhecíveis e aspectos prosódicos quanto em gestos ou imagens de fundo, não raro é tão óbvio que uma versão mais idiomática torna-se contraproducente. Muitas vezes, os espectadores preferem uma tradução direta do que está sendo dito a uma reconstrução do diálogo na língua-meta. Isso significa que uma tradução idiomática, ou aceitável, orientada para a língua-meta, pode não ser bem-aceita. Segundo o estudioso, isso acontece quando a distância entre o efeito da legenda e o efeito total do texto original multicanal — no sentido polissemiótico [...] — fica grande demais. Nesses

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casos, a fricção entre o original e a legenda causa ruído, e a ilusão da tradução como o alter ego do original é quebrada. 21 (ibidem)

Essa fricção fica clara no exemplo a seguir:

Timing

Duração

Original

10:16:38:00

04:08

And did a number of the married men

10:16:42:08 10:16:42:13

who you had sexual relations with 02:25

have wives who knew

10:16:45:08

they were bi-sexual?

No trecho acima, uma tradução que respeitasse a estrutura sintática original, ou seja, que fosse adequada, se revelaria um tanto truncada. Vejamos: ―E alguns dos homens casados com quem o senhor manteve relações sexuais tinham esposas que sabiam da bissexualidade deles?‖ Um exemplo de tradução mais aceitável seria: ―As esposas dos homens com quem o senhor manteve relações sexuais sabiam que eles eram bissexuais?‖ No entanto, se escolhermos a segunda opção, estaremos revelando na primeira legenda uma informação (wives) que a personagem só menciona na segunda legenda. Se a tradução ficasse como mostra o quadro a seguir, causaria estranhamento ao telespectador, quebrando a ilusão mencionada por Gottlieb22.

Original

#

And did a number of the married men who you had sexual relations with

As esposas dos homens com quem 62

have wives who knew they were bi-sexual?

Tradução

o senhor manteve relações sabiam que

45

eles eram bissexuais?

Uma tradução menos fluente mas mais eficiente nesse caso seria23: 21

This happens when the distance between the effect of the subtitle and the total effect of the multi-channel original text — in the poly-semiotic sense [...] — becomes too great. In such cases the friction between original and subtitle causes noise, and the illusion of the translation as the alter ego of the original is broken. 22 A coluna do meio exibe o número máximo de caracteres que a legenda traduzida deve ter para que o telespectador tenha tempo de lê-la. 23 A título de ilustração, a tradução dessas duas legendas para o francês ficou assim: ―En ce qui concerne les hommes mariés avec qui vous couchiez, / les épouses connaissaient-elles leur

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Original

#

And did a number of the married men who you had sexual relations with

Tradução Em relação aos homens com quem

62

o senhor manteve relações,

have wives who knew they were bi-sexual?

as esposas sabiam 45

que eles eram bissexuais?

 referências culturais e geográficas — este item está entre os que trazem mais dificuldades em qualquer modalidade de tradução. No caso da legendagem, essas dificuldades são ainda maiores, já que o legendador não pode lançar mão de notas nem de traduções explicativas extensas. Embora a forma de se lidar com referências culturais e geográficas na tradução para legendas dependa, além das restrições espaço-temporais, do contexto, do público-alvo, do gênero do material e das normas explicitadas pelo cliente, as estratégias que podem ser utilizadas nesse caso são: (i) manutenção da referência na cultura de origem, (ii) transferência para uma referência equivalente ou semelhante na cultura de chegada, (iii) neutralização ou generalização, (iv) explicação, ou (v) omissão (Carvalho, 2005: 121).

3.4 Mecanismos de controle

Da mesma forma que a tradução de uma seqüência de legendas que se afaste muito da estrutura do texto original pode causar problemas de compreensão por parte do telespectador, como vimos no penúltimo item da seção anterior, a escolha da estratégia tradutória para lidar com referências culturais também pode suscitar problemas, como mostra na crítica a seguir, feita pelo jornalista Artur Xexéo (2006) em sua coluna semanal no ―Segundo Caderno‖ do jornal O Globo. O filme ―Os infiltrados‖, de Martin Scorsese, ainda está no começo, quando surge a cena fatal: o personagem de Leonardo DiCaprio entra num bar barra-pesada e, confiante, faz seu pedido no balcão: ― A cranberry jus [sic].

bisexualité?‖

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Espanto geral no ambiente. O efeito é parecido com o da cena-clichê de filme de faroeste, quando o mocinho entra no saloon, onde todos bebem uísque puro, e pede um copo de leite. Não é fácil traduzir cranberry. Os Estados Unidos são pródigos em frutinhas vermelhas das mais variadas, todas terminando em berry (cranberry é uma delas). Aqui, a gente sabe o que é uma amora e olhe lá. O tradutor poderia buscar um pedido equivalente, um pedido que causasse espanto no bar, algo como uma groselha, um coquetel de frutas, um suco de abacaxi... Mas a tradução foi fiel, e a gente, num cinema carioca, fica mais espantado do que toda a clientela do bar barra-pesada, quando lê que o Leonardo DiCaprio pediu: ― Um oxicoco24. Como é que é? Oxicoco? Não sei dizer o que achei do filme de Scorsese. Passei todo o resto da projeção tentando adivinhar o que seria oxicoco. Cheguei em casa e fui direto a um dicionário de inglês para saber se o tradutor tinha pisado na bola. Estava lá: Cranberry: oxicoco, arando, uva-do-monte. É, o dicionário não ajudaria muito o tradutor. Ele tinha que improvisar mesmo. Mas, afinal, o que é oxicoco? Corri ao Aurélio. Decepção: não consta. Procurei no Houaiss e, enfim, pude ficar sossegado: Oxicoco ― Arbusto da família das ericáceas, nativo de regiões temperadas do Hemisfério Norte, de folhas revolutas e frutos vermelhos, comestíveis e um pouco ácidos. Pelo que entendi, Leonardo DiCaprio pediu um suco de oxicoco. Amora não teria sido muito diferente.

De fato, ―oxicoco‖ não é uma palavra corriqueira em português. O jornalista defende o uso da estratégia (ii), de transferência para uma referência com função equivalente na cultura de chegada, e sugere opções como ―acabaxi‖, ―groselha‖ ou ―amora‖. Dessa forma, segundo ele, o pedido da personagem de Leonardo DiCaprio continuaria sendo esdrúxulo em um bar ―barra-pesada‖, mas não causaria tanto estranhamento aos espectadores do filme. Temos aqui um exemplo claro de mecanismo de controle externo em ação. É sabido que críticas a legendas abundam nos meios de comunicação e, mais recentemente, na Internet. O motivo principal disso é a já mencionada característica diassemiótica da legendagem. Visto que o público tem acesso ao original e à tradução simultaneamente, as legendas tornam-se vulneráveis a críticas por parte de qualquer pessoa com algum conhecimento da língua-fonte. No entanto, caso o filme Os infiltrados estivesse sendo legendado para exibição em um dos canais da Globosat Programadora, as saídas propostas por Xexéo entrariam em conflito com uma norma explícita do cliente, segundo a qual nenhum tema deve ser nacionalizado. Isso significa que uma adaptação como 24

Na verdade, na versão legendada do filme Os infiltrados exibida nos cinemas brasileiros, a fala ―A cranberry juice‖ foi traduzida como ―Suco de oxicoco‖, e não ―Um oxicoco‖, como informou Xexéo em sua coluna.

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―suco de abacaxi‖ ou ―groselha‖ não seria aceita. Nesse caso, a orientação que o legendador recebe desse cliente é usar ou a estratégia (i) ou a (iii), ou seja, manter a referência, o que resultaria na tradução ―suco de cranberry‖, ou generalizá-la, usando, por exemplo, ―suco de fruta‖, ou simplesmente ―suco‖. O caso acima ilustra um conflito muito comum no caso da legendagem entre um mecanismo de controle interno e outro externo. Não raro, o legendador, para manter uma boa relação com seu cliente, deve cumprir normas explícitas que podem vir a desagradar críticos e telespectadores. Um exemplo curioso disso aconteceu no quadro ―Sem Controle‖ do programa Armazém 41, exibido pelo canal GNT, no qual os apresentadores Marcelo Madureira e Arthur Dapieve agem como ombudsmen, comentando e criticando a programação do canal. No episódio do programa que foi ao ar no dia 3 de maio de 2004, Madureira criticou a escolha do legendador para traduzir a palavra ―whore‖, no episódio ―Lady Lisa‖ da série Tudo é possível! (Faking it). O tradutor, seguindo a norma de amenizar a linguagem em todas as situações, optou pelo uso de ―vadia‖, o que levou Madureira a argumentar que a palavra ―whore‖ em inglês tem uma carga semântica muito mais pesada do que ―vadia‖, chegando inclusive a chamar a atenção dos tradutores por amenizar palavras de baixo calão nos programas do canal, sem saber que essa é uma orientação passada aos legendadores pelo próprio GNT25. Recorrer a generalizações, não nacionalizar referências e amenizar a linguagem são apenas três das inúmeras normas impostas pelos grandes clientes e com as quais os legendadores têm de lidar. Existem ainda várias outras, como não fazer merchandising nem apologia ao consumo de drogas; não datar referências na tradução, e evitar palavras rebuscadas e de uso raro na linguagem popular. Diante de tantas normas e mecanismos de controle que regulam a tradução para legendagem, uma das tarefas do professor é apresentá-los aos aprendizes e discutir em sala as soluções tradutórias possíveis, fornecendo dessa forma aos futuros profissionais o aparato crítico para levá-los a inferir que tipo de estratégia deve ser empregada para resolver problemas tradutórios (Arrojo, 1993: 147). No próximo capítulo, apresentarei ainda outras normas de caráter lingüístico que vigoram no mercado de legendagem brasileiro. 25

As palavras de Marcelo Madureira foram: ―Você não pode botar legenda que não corresponde ao diálogo verdadeiro e real.‖

47

4. O profissional de legendagem: características e mercado de trabalho As peculiaridades da legendagem descritas no capítulo anterior sugerem que, além das competências necessárias a todo tradutor, como excelente domínio das línguas envolvidas na tradução e das ferramentas de pesquisa, conhecimento das técnicas e das diferentes estratégias tradutórias, e cultura geral, o aprendiz de legendador deve desenvolver certas habilidades e competências específicas. Neste capítulo, examino essas habilidades e competências, tomando como base a minha experiência, que é complementada por entrevistas realizadas com professores e alunos de cursos de legendagem e o diretor de uma das três maiores produtoras de legendagem do Rio de Janeiro.

4.1 O perfil do legendador valorizado pelo mercado

Yves Gambier (2003), um dos autores mais respeitados da área da tradução audiovisual ao lado de Henrik Gottlieb e Jorge Díaz Cintas, cita na introdução a um volume especial da revista The Translator, organizado por ele e inteiramente dedicado à tradução audiovisual, as habilidades necessárias a um tradutor para legendas: Legendadores devem [...] ser capazes de trabalhar pressionados por prazos muito curtos e lidar com o estresse; têm de desenvolver a competência especial de escrever para a mídia (ter noção de timing e ritmo); têm de ser competentes em análise, paráfrase, síntese e pós-edição (respeitando coerções temporais e espaciais) [...]; têm de se adaptar a novas tecnologias e, por fim, têm de ter uma grande capacidade de se auto-avaliar para tomar decisões rápidas e assumir a responsabilidade pela qualidade de seu trabalho 26. (p. 184)

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Screen translators have to [...] be able to work under intense time pressure and cope with stress; they have to develop special competence in writing for the media (sense of timing and rhythm); they have to be competent in analysis, rewriting, condensing, post-editing (within time and space constraints) [...]; they have to adapt to new technology and, finally, they have to have a strong capacity for self-evaluation in order to make fast decisions and to take responsibility for the quality of their output.

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Além das competências apontadas por Gambier, eu destacaria ainda que o legendador deve ter noções de linguagem cinematográfica, capacidade de se expressar nos diferentes registros de sua língua, saber identificar e interpretar todos os canais envolvidos na comunicação polissemiótica, dominar as ferramentas de pesquisa específicas ao seu trabalho, desenvolver a atenção aos detalhes, ter capacidade de adequar-se às normas e saber estabelecer prioridades. Para tratar dessas habilidades e competências, classifiquei-as em quatro categorias principais, listadas a seguir.

4.1.1 Competência lingüística

A maioria dos autores que tratam do ensino de legendagem defende que a ênfase principal do curso deve ser no aspecto lingüístico, uma vez que os aprendizes demonstram as maiores dificuldades nesse campo (Sponholz, 2003: 35). De fato, as demandas particulares da tradução para legendagem apresentam muitos desafios ao aprendiz no nível lingüístico, mas eu diria que a dimensão técnica do ofício também o faz, o que me leva a defender a criação de um curso que enfatize igualmente tanto a dimensão lingüística quanto a dimensão técnica da legendagem, que será abordada na Seção 4.1.2. Uma das maiores dificuldades da tradução para legendas provém de sua natureza diagonal, que exige a mudança do código oral para o escrito. Em relação ao nível de formalidade que se deve adotar no texto das legendas — se uma linguagem-padrão, mais próxima da norma culta, ou uma linguagem que tente reproduzir características do discurso oral, como o uso de contrações, interjeições e marcas de oralidade representadas pela mistura, na mesma fala, do pronome de tratamento ―você‖ com o pronome pessoal oblíquo ―te‖ etc. —, de uma maneira geral os estudiosos concordam que o compromisso maior deve ser com o código escrito. Essa preferência se deve a vários fatores, o principal deles sendo o já mencionado estranhamento que a reprodução da linguagem oral causaria. Há ainda outros fortes argumentos em favor do uso da norma culta na legendagem. Segundo Ivarsson & Carroll (1998), ―a linguagem [das legendas] deve ser (gramaticalmente) ‗correta‘, uma vez que as legendas servem de modelo para o

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letramento‖27, e algumas pesquisas mostram que programas legendados ajudam na alfabetização da população local e de estrangeiros residentes na cultura de chegada (cf. Carvalho, 2005). Além disso, os grandes clientes (Globosat, HBO e Fox são alguns exemplos) explicitam em manuais de padrões, às vezes de forma pormenorizada, suas exigências em relação às normas gramaticais. Vejamos dois exemplos retirados do Manual de Padrões da Globosat (2007: 3-4, 13-4), desenvolvido pelo Departamento de Legendagem da programadora com a colaboração do professor Sérgio Nogueira Duarte: 

linguagem informal aceitáveis: - contração da preposição de com pronome pessoal reto, artigo ou pronome demonstrativo exemplo: Chegou antes dele voltar. - contração da preposição em com artigo indefinido: num, numa - contração da preposição para: pra - preposição omitida antes da conjunção integrante que exemplos: certificar-se que; ter medo que; chegar à conclusão que - pronome átono em início de frase exemplo: Me faça um favor. - verbo precisar sem a preposição de exemplo: Ela tem o que precisa. (artigo o como complemento do verbo ter)



pronomes - em programas informais, evitar construções com nome pessoal oblíquo átono (quando possível) exemplo: Alguém os está chamando. preferível: Alguém está chamando vocês. exemplo: Esta cultura as está seduzindo. preferível: Esta cultura está seduzindo as meninas. - com pronome relativo que – não omitir a preposição antes exemplo: na vez em que - não misturar pronomes da 3ª pessoa com pronomes da 2ª (você e te), a não ser em contextos muito informais e específicos

Os exemplos acima mostram até que ponto a Globosat permite o uso da linguagem informal na tradução de seus programas. Nota-se que uma marca clara de oralidade, como a mistura de pronomes de tratamento, é permitida apenas em contextos específicos. Outra orientação presente no mesmo manual revela que uma linguagem mais rebuscada também deve ser evitada:

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The language should be (grammatically) ―correct‖ since subtitles serve as a model for literacy.

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Linguagem

-

Em filmes e programas mais populares, evitar termos raros (ex: altercação, perpetrar, quiçá). Optar sempre pelas formas mais usuais.

-

Em documentários como ―Quebrando o Código Da Vinci‖, do GNT, termos mais eruditos são aceitáveis. (ibidem, p. 24)

Como se vê, cabe ao legendador analisar o conteúdo do programa para então julgar se deve utilizar uma linguagem mais sofisticada ou mais popular, sem ―abusar‖ das marcas de oralidade nem utilizar construções cuja formalidade excessiva possa causar rejeição por parte do público telespectador. Um exemplo disso é o emprego do futuro do presente e do pretérito mais-que-perfeito, tempos verbais bastante utilizados em legendagem pelo fato de ocuparem menos espaço do que os tempos compostos (―trarei‖ é mais curto do que ―vou trazer‖ e ―trouxera‖ é mais curto do que ―tinha trazido‖, por exemplo). Os exemplos apresentados nos levam a concluir que a norma lingüística mais amplamente adotada no mercado de legendagem brasileiro é o uso do discurso semiformal, ou seja, de um registro que incorpora algumas marcas de oralidade sem no entanto desrespeitar as regras do português padrão. Faz-se necessário, portanto, que o aprendiz de legendador desenvolva o domínio dos diferentes registros do português. No Capítulo 3, vimos que as legendas são regidas por restrições espaciais e temporais. Em conseqüência disso, há casos em que até 50% do texto original tem de ser excluído da tradução, o que deixa claro que o poder de síntese é uma das competências mais importantes a serem desenvolvidas por um bom legendador. A habilidade de traduzir já de uma forma resumida também é necessária para que o tradutor ganhe agilidade, uma vez que os prazos do mercado de legendagem são sempre exíguos. Não é prática corrente, por exemplo, traduzir o conteúdo completo de um roteiro primeiro para depois, com base no tempo disponível para cada legenda, resumir as informações. Essa habilidade de descartar as informações que não são essenciais ao entendimento da mensagem durante a tradução pode ser trabalhada através de atividades que auxiliem o aprendiz a desenvolver poder de síntese, a discernir o que é mais importante e a identificar os diferentes ritmos de fala e estilos de programas.

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Gambier (2003) aponta a necessidade de o legendador desenvolver a competência de escrever para a mídia. De fato, é crucial que o aprendiz seja apresentado às técnicas de redação para telejornalismo, pois, assim como a legendagem, o texto telejornalístico é marcado pela instantaneidade, restringido por coerções temporais e deve ser claro, conciso e conter predominantemente orações em ordem direta e coordenadas. Por outro lado, como algumas estratégias adotadas na redação telejornalística são completamente diferentes daquelas utilizadas em legendagem, é necessário que o legendador conheça essas diferentes estratégias e saiba aplicá-las. Tratarei esse assunto de forma mais aprofundada no Capítulo 5.

4.1.2 Competência técnica

Conforme foi comentado na seção anterior, as competências técnica e lingüística devem ter o mesmo peso no esboço de curso de formação de legendadores proposto nesta dissertação. Tanto a minha experiência pessoal quanto os depoimentos dos professores de cursos de legendagem reunidos nas seções 4.2 e no Capítulo 5 confirmam que, sem um conhecimento profundo da dimensão técnica do ofício, a formação do tradutor para legendas fica incompleta, dificultando sua inserção no mercado. Atualmente, um dos maiores problemas enfrentados pelas produtoras de legendagem é a dificuldade de convencer os legendadores a respeitarem o limite máximo de caracteres por segundo. Essa dificuldade se dá por vários motivos, sendo o principal deles a flexibilidade oferecida pelos programas de legendagem mais utilizados no Brasil. Explico: esses softwares ou são estrangeiros (Systimes/ Subtitler – Venezuela; Subtitle Workshop – Uruguai; Cavena – Suécia) ou baseados em sistemas estrangeiros (Horse – Brasil, desenvolvido com base nas configurações de limite de caracteres do Systimes 6.0). Como eles são utilizados por legendadores do mundo todo, o número máximo de caracteres permitidos por segundo é configurável, pois esse limite varia muito de cultura para cultura. No Brasil, atualmente trabalha-se principalmente com a configuração básica de 15 caracteres por segundo. Em sua dissertação de Mestrado, Souza (1999) fornece um breve panorama das discussões sobre o tempo ideal para a leitura de legendas.

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Ele explica que Gonçalves28 chegou ao valor de 10,67 caracteres por segundo tomando como base estudos europeus sobre velocidade de leitura. Em 1994, o dinamarquês Gottlieb falava em 10 caracteres por segundo (1994a: 111). Já em 1998, o mesmo Gottlieb incluiu no verbete ―Subtitling‖ da enciclopédia da Routledge, organizada por Mona Baker, a informação de que ―valores maiores do que 12 caracteres por segundo (cps) não são aceitáveis‖29 (1998: 247). Apesar disso, a configuração padrão do programa Subt-It, desenvolvido pelo tradutor venezuelano Carlos Contreras, é de 20 caracteres por segundo. Depois de apresentar o parâmetro ―ideal‖ de 10,67 caracteres por segundo, o próprio Souza ressalva que ―as TVs por assinatura brasileiras estão operando com padrões discrepantes e pouco rígidos e com legendas que exigem uma leitura bem mais rápida que a apresentada por esses parâmetros‖ (1999: 51), para logo em seguida comentar que, em um curso oferecido à época por uma produtora carioca, os professores trabalhavam com o parâmetro de 15 caracteres por segundo. É bem provável, embora não se possa afirmar de forma indiscutível, que esse parâmetro tenha sido herdado da configuração do Systimes 4.0, o software adotado pela Globosat quando da criação de seu departamento de legendagem. Baseada em linguagem DOS, essa versão do programa era ―engessada‖, e só permitia que o legendador extrapolasse o número máximo de cerca de 14 caracteres por segundo caso decidisse fazê-lo conscientemente. O que acontecia era que o programa emitia um sinal sonoro quando o limite máximo de caracteres era extrapolado, advertindo o tradutor. Se este quisesse manter o erro, teria de dar um comando para que o programa ignorasse tal erro, digitando manualmente o tempo de saída, o que resultaria em uma legenda com o tempo de leitura inferior ao mínimo sugerido de 14 cps. Aquela legenda fora do padrão constaria do relatório final fornecido pelo programa como uma legenda com ―erro de mínimo‖, ou seja, estaria extrapolando o limite de caracteres máximo permitido por segundo. Esse recurso do Systimes 4.0 era muito útil, pois forçava os tradutores a já pensarem na forma mais sintética de traduzir o original para driblar o ―apito‖ do programa e evitar o esforço adicional de ter de digitar o tempo desejado para a saída da legenda. 28

GONÇALVES, J.L.V.R. (1998) Processos inferenciais relacionados à priorização de informações na tradução de legendas de filmes: o redundante e o relevante sob a ótica do princípio de relevância. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. 29 presentation rates of more than 12 characters per second (cps) are not acceptable.

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A versão 4.0 do Systimes é considerada obsoleta, pois, entre outras limitações, não possui precisão de frames. Isso significa que só é possível marcar o tempo de uma legenda em segundos ―cheios‖, sem indicar as frações (os frames), o que muitas vezes leva à dessincronização da legenda em relação à fala a que ela se refere. A explicação ficará mais clara através do exemplo abaixo: Tempo de entrada/saída

Texto

Duração

10:16:53:16/10:16:54:14

Not at all.

00:28

Para que a legenda acima ficasse perfeitamente sincronizada com a fala original, ela deveria surgir na tela no tempo de entrada indicado no roteiro (10 horas, 16 minutos, 53 segundos e 16 frames) e desaparecer no tempo de saída indicado (10 horas, 16 minutos, 54 segundos e 14 frames), permanecendo na tela durante 28 frames (dois frames a menos do que um segundo completo, uma extrapolação aceitável do limite mínimo de permanência de uma legenda na tela no caso de legendas compostas por uma palavra apenas). Como o Systimes 4.0 reconhece somente minutos e segundos, o legendador teria de escolher entre duas opções para marcar — ou timear — sua legenda traduzida: Opção

Legenda

Duração

1

Tempo de entrada/saída 16:53/16:54

Não.

1 segundo

2

16:54/16:55

Não.

1 segundo

Escolhendo a primeira opção, a legenda surgiria na tela meio segundo antes do início do enunciado oral correspondente (―Not at all‖) e desapareceria meio segundo antes do final do enunciado. Se o legendador ficasse com a segunda opção, a legenda entraria meio segundo depois do início do enunciado oral e sairia meio segundo depois do fim do mesmo. Nos dois casos, a legenda ficaria dessincronizada em relação à fala correspondente, o que, além de causar incômodo ao telespectador, poderia produzir um ―efeito cascata‖, levando à dessincronização de várias legendas subseqüentes. Devido principalmente a essa limitação, a versão 4.0 do Systimes foi aos poucos sendo substituída por versões mais avançadas ou por outros programas, e deixou definitivamente de ser utilizada por volta do ano 2000, quando a precisão

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de frames passou a ser uma exigência do mercado. No entanto, ao contrário do Systimes 4.0, os novos programas não impedem, por exemplo, que uma legenda cheia de duas linhas (com cerca de 60 caracteres e espaços) permaneça apenas dois segundos na tela, o que seria um tempo insuficiente para que ela fosse lida, até mesmo pelo mais ágil dos leitores. Conseqüentemente, os aprendizes que começam a legendar utilizando um desses softwares têm dificuldade de entender e respeitar o limite máximo de caracteres por segundo. Portanto, é necessário que em um curso de formação de legendadores o professor insista na importância de se respeitarem as coerções espaço-temporais e dê ênfase especial ao desenvolvimento da competência técnica para que, uma vez no mercado de trabalho, o tradutor não produza legendas fora dos parâmetros, desrespeitando assim as normas vigentes. Segundo Carvalho (2005), [v]iolar alguma das regras [...] — não cumprir o prazo combinado, empregar palavras censuradas ou exceder o espaço ou o tempo permitido para as legendas, por exemplo —, principalmente quando elas são fornecidas por escrito, pode trazer conseqüências graves ao tradutor, visto que afetam as atividades subseqüentes do processo e, desse modo, prejudicam os compromissos assumidos pela produtora ou laboratório local com seu cliente. (p. 87)

Gambier (2003) também aponta como habilidade necessária ao legendador a agilidade para se adaptar a novas tecnologias. De fato, os equipamentos de que o tradutor para legendas deve dispor mudaram muito na última década. Em 1998, os tradutores da Globosat e da HBO Brasil operavam um computador com monitor, além de um televisor e um aparelho de videocassete. Os tradutores da HBO usavam um controle remoto para operar o videocassete, enquanto que os tradutores da Globosat contavam com a facilidade de um pedal adaptado ao aparelho. Esse pedal permitia que os comandos play, fast-forward e rewind fossem dados com o pé, deixando as mãos livres para digitar 30. Em pouco menos de dez anos, muita coisa mudou. O processo de gravação de uma fita VHS a partir da fita Betacam foi substituído pela digitalização dos arquivos de vídeo, o que acabou por aposentar o videocassete e o televisor. Com os arquivos digitalizados, o único equipamento necessário para a elaboração de legendas passou a ser o computador, com os programas próprios para legendagem instalados. Quando a precisão de frames passou a ser exigida pelos clientes e o Systimes 4.0 foi 30

Dados fornecidos por Souza (1999).

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substituído por versões mais avançadas ou por novos programas, no Rio de Janeiro, o departamento de legendagem da Globosat já havia sido extinto, e a maioria dos legendadores estava trabalhando em casa, por prestação de serviço, ainda utilizando o Systimes 4.0. Como os novos softwares não eram fornecidos gratuitamente pelas empresas contratantes dos serviços dos legendadores, vários deles preferiam finalizar o trabalho (timear e revisar seus programas) nas dependências das produtoras, para não ter de arcar com o alto custo dos novos softwares. O primeiro momento dessa transição foi bastante traumático, pois alguns tradutores demonstraram resistência às novas tecnologias, principalmente porque o treinamento oferecido pelos desenvolvedores se limitava a uma apresentação superficial dos novos programas. Para contornar esse problema e não perder tradutores com vasta experiência em legendagem, as produtoras cariocas começaram a contratar marcadores, também chamados de ―timeadores‖, profissionais que apenas marcam a entrada e a saída das legendas elaboradas pelos tradutores. Esse sistema de marcação das legendas por outro profissional é o mais comum no mercado de São Paulo. No entanto, ele só funciona bem se as legendas são produzidas por legendadores experientes, com uma noção de ritmo apurada e um ótimo poder de síntese, pois os marcadores geralmente não têm autorização para modificar o conteúdo das legendas. O alto custo dos softwares mais modernos criou um outro problema. Segundo um dos informantes desta pesquisa, o Professor B, devido às leis de proteção de direitos autorais, os alunos têm poucos programas disponíveis para apreciação. Embora eu já tenha tentado obter licenças específicas para fins didáticos, os autores dos softwares mais utilizados não disponibilizaram as licenças.

A conseqüência disso, em um primeiro momento, foi que os professores de legendagem, tão importantes naquela fase de transição, só podiam contar com o Systimes 4.0, já obsoleto, ou simplesmente não apresentavam nenhum programa de legendagem aos alunos, o que gerava insatisfação, como veremos mais adiante, uma vez que os cursos não preparavam os aprendizes para a realidade do mercado. Esse problema só foi solucionado com o advento do Subtitle Workshop, software desenvolvido pela empresa uruguaia Urusoft que pode ser baixado

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gratuitamente da Internet. Mais uma vez, produtoras, legendadores e professores tiveram de se adaptar a uma nova tecnologia, prova de que essa é uma característica intrínseca do mercado de legendagem. As facilidades que o Subtitle Workshop oferece o transformaram em um dos softwares mais utilizados em cursos de legendagem. Como o programa é gratuito, os aprendizes podem baixá-lo em casa para praticar. Assim, o professor pode dividir a parte prática do curso entre atividades em sala e exercícios para casa, o que dá mais dinamismo às aulas e produz resultados mais rápidos. Além do software uruguaio, alguns professores também utilizam o Horse, programa que tem a vantagem de ter sido desenvolvido por uma brasileira, que lança versões atualizadas com base nas necessidades apontadas por seus clientes. No entanto, o Horse acabou perdendo espaço no mercado para o Subtitle Workshop pelo fato de sua desenvolvedora não disponibilizar uma versão para uso didático. O breve histórico que acabei de apresentar deixa claro que, num mercado em que novos programas e mídias se apresentam constantemente, a capacidade de adaptação a novas tecnologias por parte dos profissionais é indispensável.

4.1.3 Competência rítmica

Segundo Mary Carroll (2004: 4-5), o legendador geralmente traduz e elabora legendas levando em conta três ritmos: (i) o ritmo visual do filme definido pelos cortes; (ii) o ritmo da fala dos atores, e (iii) o ritmo de leitura do público. Aprendendo a identificá-los, o aprendiz ganha em agilidade, pois, na hora de sincronizar as legendas elaboradas, ele não precisará fazer tantas adaptações para que elas caibam no tempo disponível. Além disso, o bom legendador deve ter noções de edição de áudio e vídeo, saber identificar os canais envolvidos na comunicação e os diferentes formatos e gêneros de programas (aventura, romance, musical, comédia, documentário, infantil, jornalístico, talk show e reality show, entre outros). A razão entre o tempo de duração de cada legenda e o número máximo de caracteres que ela deve conter varia em função do público-alvo. Como já vimos, no mercado brasileiro de legendagem para TV predomina a norma de que um telespectador adulto médio lê no máximo quinze caracteres por segundo. Pouco se

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fala sobre o ritmo de leitura de crianças e de consumidores de programas legendados em inglês americano, por exemplo, não acostumados à leitura de legendas. Os estudos que tratam da velocidade de leitura de legendas costumam recomendar a adaptação do número máximo de caracteres permitidos por segundo levando-se em conta o público-alvo, sem no entanto sugerir um valor. É necessário que o professor do curso de formação de legendadores conscientize os aprendizes sobre as diferentes estratégias de que eles lançarão mão na tradução de programas para públicos-alvos distintos, uma vez que os clientes, principalmente os eventuais, como pequenas produtoras que encomendam versões legendadas de seus produtos para línguas estrangeiras, nem sempre estão familiarizados com as normas de legendagem, deixando a responsabilidade pela qualidade do produto final totalmente a cargo do legendador. No Capítulo 5, proponho alguns exercícios para o desenvolvimento da competência rítmica.

4.1.4 Competência cultural

Entre as quatro competências básicas necessárias ao tradutor para legendas, a cultural é sem dúvida a mais difícil de ser desenvolvida. Em seu artigo Teaching subtitling at university31 (2001), Díaz Cintas sugere que ―o cenário ideal é que os estudantes possam escolher [o] módulo [de legendagem] quando voltam do exterior, depois de passar um ano mergulhados na língua e na cultura do país estrangeiro‖32 (p. 8). Já Barbara Schwarz (2002) alerta que os produtos audiovisuais são repletos de mensagens implícitas, tanto nos diálogos quanto nas imagens presentes na tela. O legendador deve ser capaz de reconhecer essas mensagens para decidir o que deve ou não ser explicitado para seu público-alvo. Entre as mensagens visuais que podem aparecer na tela, a autora destaca marcos geográficos ou arquitetônicos, como a Torre Eiffel; ícones da cultura de massa, como da música pop ou da televisão (Jimi Hendrix, Bart Simpson); eventos políticos ou históricos (o assassinato de John F. Kennedy) e símbolos de importância política ou religiosa, como a suástica e a cruz católica. O legendador 31

Também publicado em: Training Translators and Interpreters in the New Millennium. Cunico, S. (ed.), Porstmouth: University of Portsmouth, 29-44. 32 [T]he ideal scenario is that students should be able to choose this module when they come back from their year abroad, having been immersed in the language and culture of the foreign country.

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deve ser capaz de identificar essas mensagens e interpretá-las. Citando Katan33, Schwarz ressalta que, nesse sentido, o legendador é um ―mediador cultural‖, pois, além de conhecer a geografia, a história social e política recente da cultura-fonte e ter certa familiaridade com personalidades e produtos da cultura popular, ele deve ter consciência de sua própria identidade cultural e da forma como ela pode influenciar sua interpretação e tradução. No contexto brasileiro, não são todos os aprendizes de tradução que têm condições de passar algum tempo estudando no exterior, nem isso é um prérequisito dos bacharelados em Tradução, como parece ser na Roehampton University of Surrey, na qual Jorge Díaz Cintas leciona. De qualquer forma, apesar de ser uma experiência muito enriquecedora, parece ser consenso entre os formadores que ter contato direto com a cultura da qual se traduz não é imprescindível para que um aprendiz se torne um legendador de sucesso. Creio que até a competência cultural possa ser estimulada através de exercícios de análise das referências presentes nos diferentes canais que compõem a mensagem audiovisual.

4.2 A realidade do mercado

4.2.1 As diferenças entre os mercados carioca e paulista

No presente trabalho, eu trato da realidade da tradução para legendagem no Rio de Janeiro, mercado no qual estou inserida. No âmbito nacional, os tradutores que trabalham com legendagem se concentram no Rio e em São Paulo, mas o perfil dos dois mercados é bastante diferente. No Rio, predominam as empresas que oferecem o serviço de tradução para legendagem em grande escala. Essas empresas contam com equipes próprias de tradutores e revisores, geralmente freelancers, e a finalização do serviço, ou seja, a gravação de uma fita Betacam legendada, é feita na própria produtora. Em São Paulo existem poucas empresas que oferecem esse serviço. No entanto, vários canais da TV fechada, como TNT, 33

KATAN, D. (1999) Translating cultures - an introduction for translators, interpreters and mediators. Manchester: St. Jerome Publishing.

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MGM, Sony, AXN, WBTV e a rede HBO, trabalham com tradutores autônomos residentes principalmente em São Paulo e em Miami, e contam apenas com uma equipe interna que faz o controle de qualidade das traduções. Ao contrário da Globosat, que ainda utiliza o processo de gravação das legendas em fitas Betacam para a exibição de seus programas, as legendas dos canais acima mencionados são transmitidas via satélite, o que dispensa a etapa de gravação das mesmas em ilhas de edições especiais, equipadas com os hardwares e softwares específicos para a legendagem. Embora seja difícil reunir dados precisos sobre que parcela do mercado cada cidade detém, e apesar de o Rio de Janeiro concentrar as empresas de legendagem, segundo um dos entrevistados, o Diretor A, mais ou menos metade das legendas produzidas no Brasil é feita em São Paulo e a outra metade é feita no Rio. Muitos canais trabalham com tradutores brasileiros e legendam seus programas em Miami, Los Angeles ou na Venezuela também. Mas, no Brasil, Rio e São Paulo dividem o mercado mais ou menos igualmente.

Sendo assim, acredito que o mercado carioca, que concentra cerca de 50% de toda a tradução para legendagem feita no Brasil, seja bastante representativo da realidade brasileira. Passo agora à análise dos dados obtidos por meio das entrevistas.

4.2.2 Análise dos dados

Como já foi dito na Introdução, os cursos de treinamento de legendadores hoje existentes não têm como objetivo formar profissionais de legendagem, e sim familiarizar os alunos com os aspectos técnicos, as regras e os padrões adotados no mercado. Segundo o Professor A, nenhum aluno que saia [do curso] tendo legendado umas duzentas legendas está pronto para o mercado, porque eles demoram vinte horas pra traduzir duzentas legendas, [o que] é completamente inviável profissionalmente. Não existe esse tipo de prazo no mercado. Então eu sempre digo que eles precisam treinar mais. [...] Eu aviso que o meu objetivo é passar nos testes [das produtoras]. Depois, há um treinamento complementar com o software, as preferências e as normas das produtoras.

O Professor B complementa:

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Aqueles alunos que se destacam, se tiverem um monitoramento, podem, sim, atuar no mercado. Até hoje, por causa da dinâmica do mercado, dos prazos curtíssimos e das exigências das produtoras, ainda não vi um aluno sequer sair de um curso de vinte ou trinta horas e começar a trabalhar imediatamente [...]. O monitoramento é essencial para que esse aluno se torne um profissional atuante no mercado.

Todos os outros professores consultados mencionaram o treinamento complementar na produtora como essencial para a formação de legendadores. O motivo mais freqüentemente apontado por eles para a necessidade de monitoramento foi a carga horária reduzida dos cursos que ministram, o que os leva a ter de priorizar a parte técnica e as coerções da atividade, em detrimento de uma atenção maior ao aspecto lingüístico da legendagem (cf. Seção 4.1.1). Durante a análise das respostas dos alunos34, notei alguns dados curiosos. Diante da pergunta 8 — ―Você se sentiu preparado(a) para atuar no mercado de tradução para legendagem após o término do curso?‖ —, doze informantes (52%) responderam que não se sentiram preparados após o término do curso, cinco (21,7%) mencionaram que se sentiram inseguros mas mesmo assim procuraram as produtoras e quatro (17,4%) se declararam preparados para atuar no mercado. Vale lembrar aqui que esses números não são uma indicação que os cursos de legendagem existentes sejam falhos. Como os próprios professores declararam, o objetivo deles é familiarizar os aprendizes com os conceitos básicos da tradução para legendagem e prepará-los para os testes nas produtoras, e não propriamente formar profissionais. A tabulação das entrevistas revelou um outro dado interessante: na resposta à pergunta 8, 18 alunos (78%) justificaram o fato de não terem se sentido prontos para o mercado dizendo que os cursos dão apenas uma introdução, uma base, e que a melhoria da qualidade do trabalho só acontece na prática da atividade. Esse é um lugar-comum que se aplica a qualquer profissão, o que de forma alguma significa que não tenha plena validade. Nenhum universitário deixa a faculdade pronto para atuar no mercado de trabalho sem passar por um estágio ou treinamento. No entanto, no caso específico do mercado de legendagem, o problema da falta de preparo profissional é antigo e crônico, e o depoimento do Diretor A fornece algumas pistas para entendermos o motivo: 34

Assim como ocorre no caso dos professores, embora haja alunos e alunas entre os entrevistados, figuram todos aqui no masculino em razão do sigilo.

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As pessoas não levam a legendagem a sério, é um mercado ainda muito amador. Como o nível da tradução para legendas no Brasil é baixo — já melhorou muito, principalmente na parte técnica, mas ainda é baixo —, qualquer pessoa que saiba um pouquinho mais de inglês pega erros de tradução [nas legendas]. Então, essa pessoa, que fez dois anos de curso de inglês, acha que pode fazer melhor e se inscreve num curso de legendagem. A gente sabe que esses cursos tratam da parte técnica, ensinam a mexer nos softwares e ensinam a timear. A qualidade da tradução como um todo não é avaliada. Então, essas pessoas chegam ao mercado dizendo que sabem legendar, e até sabem, mas não sabem traduzir. Muitas vezes não sabem nem português. Aliás, o nível geral de português é baixíssimo, baixíssimo mesmo. É um problema até maior do que encontrar quem saiba traduzir [...]. Também é muito comum recebermos currículos de pessoas que querem trabalhar nas horas vagas para complementar o orçamento, porque têm as tardes livres ou algo assim. São geralmente professores de inglês também sem nenhuma experiência em tradução. É raro uma pessoa com esse perfil conseguir trabalhar com legendagem, porque os nossos prazos são sempre curtos, e precisamos de pessoas dedicadas e ágeis, que consigam trabalhar sob pressão, com prazos apertados. Temos aqui vários casos de tradutores bons que desistiram da legendagem porque não conseguiram se acostumar com os prazos.

De fato, na época do advento da TV por assinatura, em que a demanda por legendadores aumentou muito, os cargos eram preenchidos por indicação, como vimos na Introdução deste trabalho, e um curso superior de Letras, Tradução, Comunicação ou áreas afins não era exigido dos candidatos. Hoje em dia, a formação acadêmica, apesar de preferencial, continua não sendo uma exigência das produtoras que contratam os serviços de legendadores. Sendo assim, pessoas das mais diversas formações, de arquitetos a psicólogos, se aventuram no mundo da legendagem sem ter nenhuma base teórica ou experiência em tradução e, muitas vezes, com um conhecimento bastante deficitário do português. Nos cursos de treinamento disponíveis, ter experiência tradutória comprovada não é uma exigência, nem mesmo nos módulos de legendagem incluídos em programas de pós-graduação lato sensu, pois pressupõe-se que os candidatos dominem as duas línguas envolvidas na tradução e saibam identificar as diferenças entre os registros oral e escrito, o que nem sempre acontece. O Professor A mencionou em sua entrevista uma dificuldade que enfrenta devido à falta de experiência tradutória de alguns de seus alunos. A minha principal dificuldade é que eu acho que a pessoa tem que ter uma boa dose de autonomia em tradução para depois fazer legendagem, e muitas vezes não é o caso. Tem aluno que tem dúvidas básicas de tradução [...], mas isso acaba tendo que ser contornado. [...] Quem não tem experiência não consegue, ao longo das vinte ou quarenta horas, desenvolver muito a legendagem por problemas de tradução. Tem gente que, no final, faz cinco minutos, legenda e sincroniza, mas a

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tradução está completamente inaceitável, ou seja, não poderia entrar no mercado, não por questões técnicas, mas porque não está apto a traduzir.

A heterogeneidade do perfil dos candidatos que procuram os cursos ou as produtoras leva ao amadorismo mencionado pelo Diretor A. Como geralmente nenhum pré-requisito é exigido, é o próprio candidato quem avalia se o seu conhecimento das duas línguas envolvidas é suficiente para que ele almeje se tornar legendador. Por esse motivo, é muito comum que alguns deles recebam com grande surpresa a notícia de que foram reprovados nos testes, seja porque apresentam traduções inaceitáveis ou porque têm um nível de português insatisfatório. Na Gemini Vídeo, os candidatos a legendadores submetem-se a uma seleção dividida em duas fases, a saber: a primeira, escrita, envolve tradução e português; na segunda, prática, o candidato deve traduzir um trecho de quatro minutos de um programa, respeitando as coerções espaço-temporais da legendagem. Para a tradução dos primeiros dois minutos, o candidato tem o auxílio do roteiro original. O restante do teste deve ser tirado de ouvido. Mesmo após serem aprovados nessas duas fases, noto nos cursos que ministro na empresa que os aprendizes muitas vezes demonstram falta de intimidade tanto com as regras do português quanto com as ferramentas de pesquisa em geral, como dicionários, gramáticas, manuais e a Internet. O Diretor A mencionou em seu depoimento que um dos maiores problemas que as produtoras enfrentam na hora de recrutar novos legendadores é a deficiência em português demonstrada pelos candidatos. O Professor A também comentou a dificuldade que alguns aprendizes apresentam no que se refere a diferenciar o registro oral do escrito. Se eu tivesse muitas horas de curso, muito antes de entrar com legendagem, de falar em legendas, um bom exercício é transpor um texto oral em forma escrita. Então, transcrição é uma coisa que parece simples mas não é. Perceber que é você quem decide como redigir, como pontuar, como interpretar aquilo na forma escrita. Tem uma linguagem que é escrita e uma linguagem que é oral. Isso é um problema sério da legendagem, do qual as pessoas não se dão conta.

Eu acredito que esses dois problemas — a falta de experiência tradutória e o pouco domínio do português demonstrado pela maioria dos aprendizes — sejam os principais motivos da falta de preparo dos legendadores no nível lingüístico.

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Como veremos no Capítulo 5, uma maneira de contornar esses problemas seria inserindo o curso de formação de legendadores na grade curricular de um bacharelado em Tradução. Dessa forma, as competências acima mencionadas poderiam ser desenvolvidas em outras disciplinas do curso. Em relação à pergunta 9 — ―Você conseguiu se inserir no mercado após a realização do curso?‖ —, dos 23 respondentes, apenas dez (aproximadamente 43%) conseguiram inserção imediata no mercado de legendagem; cinco destes através de estágios em produtoras, com duração que variou entre seis meses e um ano. Entre os outros cinco, um desistiu por ser um tradutor lento e, portanto, não se adequar a uma das exigências do mercado; o segundo trabalha com revisão de legendas; o terceiro é professor de inglês e aceita trabalhos de legendagem nas horas vagas para complementar o orçamento e os dois últimos enfrentaram meses de trabalhos monitorados. Dos treze restantes, seis não conseguiram se inserir no mercado, dois ainda não terminaram o curso, outros dois estão em fase de testes nas produtoras e três precisaram fazer um curso de reciclagem de 30 horas oferecido pela produtora aos legendadores cujos trabalhos estavam abaixo do padrão exigido pelos clientes. Esses números espelham a realidade do mercado. Vinte e dois por cento dos alunos e ex-alunos consultados entraram no mercado através de estágios em produtoras, um sinal de que a parceria entre as universidades e o mercado de trabalho pode render bons frutos. Porém, a grande maioria dos ex-alunos de cursos que conseguem se estabelecer no mercado só o faz após meses de testes e trabalhos monitorados, o que onera as produtoras, obrigadas a destacar profissionais já sobrecarregados para o treinamento dos novos legendadores, treinamento esse que pode durar até um ano e nem sempre consegue aproveitar um bom número deles. Tendo identificado as maiores carências apresentadas pelos candidatos a legendadores e as dificuldades enfrentadas pelos professores entrevistados, no próximo capítulo proponho as bases para um curso de tradução para legendagem que tem como objetivo principal desenvolver as competências e habilidades necessárias para a formação de profissionais dessa modalidade de tradução, procurando oferecer uma alternativa ao caráter de treinamento associado aos cursos hoje disponíveis.

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5. Tradução para legendagem na universidade A proposta de programa esboçada no presente trabalho está voltada para a universidade, não só por acreditar que este seria o locus ideal para a formação de tradutores em geral e de legendadores em particular, mas também porque o programa de uma disciplina de tradução para legendagem vinculada à universidade será distinto daquele de um curso livre. Como mencionei no final do Capítulo 4, no curso inserido num bacharelado em Letras com habilitação em Tradução ou similar, algumas habilidades necessárias ao legendador, como domínio dos diferentes registros do português e competência tradutória, seriam desenvolvidas também em outras disciplinas. Em um curso livre, ou essas competências teriam de ser trabalhadas durante as aulas, o que demandaria uma carga horária maior do que a da disciplina inserida na universidade, ou os candidatos sem tais pré-requisitos teriam de ser eliminados no processo de seleção. Ressalto ainda que não se trata de um programa fechado, com plano de aulas completo, como é o caso do livro Traduzir com autonomia — estratégias para o tradutor em formação, de autoria de Fábio Alves, Célia Magalhães e Adriana Pagano. Nele, os autores apresentam, de forma detalhada, atividades para o desenvolvimento de estratégias de busca de subsídios e análise textual e propõem um modelo didático do processo tradutório a ser utilizado na formação de tradutores. O meu objetivo com uma proposta em linhas gerais é apontar caminhos para a definição de uma possível didática para a formação de legendadores que vá além de um simples treinamento focado nos aspectos técnicos da legendagem e nos padrões vigentes no mercado.

5.1 O ensino de TAV nas universidades européias: uma história de sucesso

Já vimos que a situação do ensino de tradução audiovisual na Europa mudou muito nos últimos anos. Segundo Díaz Cintas & Orero (2003), enquanto até recentemente a TAV só podia ser aprendida na prática e com pouco apoio da

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academia, o quadro hoje é bem diferente, e pelo menos 24 universidades européias oferecem módulos inteiros dedicados a alguma modalidade de tradução audiovisual, inseridos no currículo de seus cursos de Tradução (pp. 371-2). A maior parte das disciplinas é voltada para estudantes do último ano da graduação, porém a Universidade Autônoma de Barcelona, o ISTI (Institut Supérieur de Traducteurs et Interprètes) e as universidades de Lille, Manchester, Surrey, Leeds, Bruxelas, Copenhague e Lampeter também oferecem cursos em nível de pósgraduação35.

5.2 Proposta de um curso de formação de legendadores

5.2.1 Carga horária

É difícil determinar a carga horária ideal de um curso de formação de legendadores. Experiências européias demonstram que a procura pelas disciplinas de tradução audiovisual é tão grande que várias instituições de ensino superior desenvolveram programas de pós-graduação para atender à crescente demanda dos estudantes de Tradução por um maior aprofundamento. Em Maastricht, na Holanda, a disciplina, originalmente ministrada no quarto ano, foi transferida para o terceiro ano com o objetivo de abrir espaço para um curso avançado aos interessados. Em Lampeter, no País de Gales, universidade pioneira no ensino de legendagem, o curso de pós-graduação foi introduzido para complementar um programa de graduação de sucesso (Sponholz, 2003: 60). O mesmo aconteceu na Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), como relatam Jorge Díaz Cintas e Pilar Orero no artigo ―Postgraduates courses in audiovisual translation‖, no qual examinam os programas de dois cursos de pós-graduação criados na UAB: o primeiro, introduzido em 2001, é presencial, e o segundo é oferecido on-line desde 2003. Segundo os autores, [i]ncentivados pelo sucesso da experiência [na graduação] e pelo feedback extremamente positivo que recebemos dos estudantes, decidimos que era hora de

35

Lista compilada a partir de Díaz Cintas & Orero (2003) e Sponholz (2003).

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embarcar numa aventura mais desafiadora: desenvolver e lançar um curso de especialização em tradução audiovisual 36. (2003: 374-5)

No Brasil, até onde pude verificar, nenhuma universidade possui em seu currículo uma disciplina regular de tradução audiovisual em nível de graduação. Na PUC-Rio, por exemplo, Tradução para Legendagem é uma disciplina optativa do currículo da habilitação em Tradução do Bacharelado em Letras e faz parte de um grupo integrado também por outras seis disciplinas: Técnicas de Tradução, Tradução de Informática, Tradução Juramentada/Jurídica, Tradução TécnicoCientífica Avançada, Tradução Literária Avançada e Versão. A matéria de quatro créditos, ou 60 horas-aula, estreou na grade curricular no segundo semestre de 2005 e, apesar da grande procura, só voltou a ser oferecida no primeiro semestre de 2007. Também inexiste no Brasil um programa de pós-graduação em tradução audiovisual nos moldes europeus. O que existem são módulos práticos de tradução para cinema e/ou para TV e vídeo nos cursos de especialização em Tradução de algumas universidades, como PUC-Rio e, mais recentemente, Universidade Gama Filho e Universidade de Franca, trabalhando basicamente com os pares de línguas inglês/português (PUC-Rio e Universidade de Franca) e espanhol/português (Gama Filho). No entanto, os alunos que procuram esses cursos de especialização não estão necessariamente interessados em tradução audiovisual. De fato, quando cursei a especialização em Tradução da PUC-Rio, em 2002, que conta com dois módulos de tradução para legendagem — um de cinema e outro de TV e vídeo —, notei que poucos colegas se interessavam por essa modalidade de tradução. Mais tarde, como participante de dois dos painéis com profissionais de tradução organizados anualmente pela Coordenação do curso para discutir o mercado de trabalho (2003 e 2006), a pequena quantidade de perguntas dirigidas a mim, representante do mercado de legendagem, revelou que o entusiasmo dos alunos pela atividade não era grande. Um dos prováveis motivos é a idade média dos estudantes de pós-graduação, sem dúvida bem mais alta do que a da graduação. Os alunos de faixa etária mais alta, principalmente aqueles que já têm experiência em tradução literária, depois de serem apresentados às coerções 36

Encouraged by the success of the whole experience and the extremely positive feedback we received from students, we dicided it was time to embark on a more challenging adventure: designing and lauching a specialized postgraduate course on audiovisual translation.

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espaço-temporais, aos softwares específicos e aos prazos da legendagem, com freqüência desistem de tentar se inserir nesse mercado. Esses alunos costumam ter menos conhecimento de informática, o que acaba gerando frustração, tanto neles próprios quanto entre os mais jovens, já que o professor é obrigado a investir tempo de aula com explicações desnecessárias para quem tem maior intimidade com o computador. Gottlieb (1994b) também notou isso em suas aulas de legendagem: Analisando os resultados das minhas duas primeiras turmas de legendagem, que somaram um total de 58 alunos, o único fator estatístico significante que leva a bons resultados na legendagem é a ―idade‖. Os alunos mais jovens da Universidade Aberta, com idade entre 25 e 39 anos, saem-se melhor do que seus colegas de 40 a 59 anos. Na prática da tradução tradicional, maturidade costuma ser considerada uma vantagem, mas, no caso da legendagem, nem a experiência em tradução (literária) nem título(s) acadêmico(s) são indicativos seguros de sucesso 37. (p. 274)

Outro motivo do desinteresse dos tradutores mais maduros pela legendagem é o conteúdo da programação da televisão fechada. Se na época do advento da televisão por assinatura a programação internacional exibida nos canais a cabo brasileiros era mais sofisticada, com predominância de programas com mais conteúdo, como documentários jornalísticos, biografias de políticos, celebridades e personagens históricas, hoje abundam desde seriados adolescentes repletos de gírias e reality shows que acompanham participantes nas mais variadas situações — do primeiro ano de faculdade de jovens ricos da Califórnia ao trabalho de paranormais que supostamente livram casas mal-assombradas de espíritos maléficos — até programas que mostram aprendizes de diversas profissões disputando algum prêmio e humorísticos de ―pegadinhas‖, cujo conteúdo dificilmente atrai uma faixa etária mais alta. A boa legenda é aquela que transmite a mensagem de forma sintética, criativa e clara, ou seja, que passa despercebida na medida do possível, uma vez que inevitavelmente causa incômodo por cobrir parte da imagem. No nível lingüístico, passar despercebida significa que quanto mais claro o texto traduzido 37

Looking at the achievements of my first two subtitling classes, containing a total of 58 students, the only statistically significant factor guiding good results in subtitling is ‗age‘. Younger Open University students, aged 25-39, fare better than their would-be colleagues in their forties or fifties. In traditional practical translation, age is often considered a plus, but in the case of subtitling neither previous (literary) translation experience nor academic title(s) are safe indicators of success.

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for, e mais próximo da estrutura sintática do original estiver, menos esforço cognitivo ele exigirá do telespectador. Uma das formas de se alcançar isso é tentar manter na tradução palavras latinas facilmente identificáveis, para que a ilusão de que a tradução é o alter ego do original seja mantida. No entanto, é muito arriscado dizer ao aprendiz que não se deve, por exemplo, traduzir ―complicated‖ como ―difícil‖ sem que ele interprete isso como uma defesa da tradução literal, estratégia fadada ao fracasso no caso da legendagem, cuja característica mais fundamental é tratar-se de uma tradução centrada no conteúdo, na qual ―as intenções e os efeitos são mais importantes do que elementos lexicais isolados‖ 38 (Gottlieb, 1998: 247). Esse é mais um motivo para a defesa de uma disciplina de legendagem inserida no currículo de um bacharelado em Tradução, visto que a competência tradutória e a discussão sobre os limites entre precisão vocabular e tradução literal poderão ser desenvolvidas em outras disciplinas específicas da habilitação. Pelos motivos acima descritos, e por acreditar que primeiro é preciso que as universidades brasileiras reconheçam as diferentes modalidades de tradução audiovisual como disciplinas que merecem inserção no currículo regular dos bacharelados em Tradução, o curso que proponho foi pensado especificamente para ser oferecido em nível de graduação, através de uma disciplina básica de tradução para legendagem com 60 horas de carga horária, complementada por uma disciplina optativa avançada de mais 60 horas, que teria como pré-requisito a disciplina básica. O cálculo dessa carga horária se baseou principalmente em minha experiência como professora da disciplina Tradução para Legendagem da PUC-Rio e instrutora do curso de treinamento de quarenta horas oferecido pela Gemini Vídeo. Cabe aqui uma ressalva: estou propondo disciplinas de tradução para legendagem por esse tratar-se do meu campo de atuação. No entanto, julgo a outra modalidade principal de TAV, a dublagem, tão especializada quanto a legendagem e, portanto, também merecedora de reconhecimento por parte da academia. A meu ver, o único motivo que dificultaria a inserção da tradução para dublagem como disciplina universitária regular seria o fato de a modalidade não despertar — pelo menos no momento atual — tanto interesse por parte dos

38

intentions and effects are more important than isolated lexical elements.

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estudantes quanto a legendagem nem oferecer amplas possibilidades de inserção no mercado de trabalho.

5.2.1.1 Duração das aulas

Estou ciente de que, para se encaixar no currículo de um bacharelado em Letras com habilitação em Tradução, as disciplinas aqui propostas terão de se adequar ao regime de horas de aula das universidades. Nos cursos diurnos de graduação da PUC-Rio, por exemplo, cada aula é composta por dois tempos de cinqüenta minutos e, nos noturnos, os tempos são de quarenta minutos. Na Especialização, a quantidade de tempos fica a critério de cada curso, resguardando-se as diferenças entre a hora-aula diurna e a noturna. Mesmo assim, julgo ser relevante registrar a duração ideal de uma aula de tradução audiovisual. No curso de treinamento da Gemini Vídeo, essencialmente prático, as quarenta horas de aula são distribuídas em quatro semanas, totalizando dez horas de aulas por semana, que são divididas em dois encontros de três horas durante a semana e outro de quatro horas aos sábados. Em princípio, tanto as aulas de três quanto as de quatro horas teriam intervalo, mas, nas duas últimas edições do curso, os aprendizes preferiram dispensar o intervalo das aulas de três horas, tamanho eram o interesse e entusiasmo que os exercícios despertavam. Portanto, a duração média de três horas e meia (210 minutos, ou cerca de quatro tempos seguidos de aula diurna na PUC-Rio) provou ser muito eficaz para o ensino de tradução audiovisual, pois, apesar de parecer um tempo longo, os próprios alunos preferem não ―perder tempo‖ com intervalos. Essa hipótese é confirmada por Díaz Cintas & Orero (2003), para quem a duração de três horas consecutivas para aulas de módulos práticos de TAV é vital para que os aprendizes tenham tempo suficiente para traduzir um trecho substancial de um programa a cada encontro. Segundo os autores, os aprendizes legendam em média cerca de cinco minutos de filme ou programa em duas horas. Assim, o professor tem uma hora para apresentar o tópico a ser estudado e comentar as diferentes soluções propostas pelos alunos (pp. 377-8). O Professor A, que dá aulas de dez horas seguidas nos fins de semana, compartilha da mesma opinião: ―Acho que três horas e meia é um ótimo tempo de

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aula, com intervalo, e dá para absorver, ler e fazer exercícios em casa de uma aula para outra.‖ Para concluir, proponho que as aulas das disciplinas de tradução para legendagem inseridas em universidades brasileiras sejam oferecidas em um encontro por semana com duração aproximada de 200 minutos, o que equivaleria a quatro tempos seguidos de 50 minutos.

5.2.2 Perfil do aprendiz e pré-requisitos

Idealmente, assim como acontece na grande maioria das universidades européias, as disciplinas de tradução audiovisual devem ser oferecidas no terceiro e quarto anos dos bacharelados em Tradução (ou equivalentes), que costumam ter duração de oito semestres letivos em média. Dessa forma, os aprendizes já teriam sido suficientemente expostos tanto às práticas quanto às teorias de tradução, e também possuiriam os pré-requisitos listados no Capítulo 4 como necessários para que as peculiaridades da tradução audiovisual pudessem ser mais bem exploradas nas disciplinas específicas. Entre esses pré-requisitos estão competência tradutória e domínio das técnicas de tradução, noções gerais de informática e profundo conhecimento tanto do português — e de seus diferentes registros — quanto da língua e da cultura fontes. Como foi dito na Seção 4.1.4, autores como Díaz Cintas e Sponholz sugerem que os alunos se matriculem em disciplinas de tradução audiovisual depois de passarem um ou dois semestres estudando no exterior e ―possuírem um profundo conhecimento da cultura da qual legendarão‖ 39 (Sponholz, 2003: 68), ―uma vez que a maioria dos programas audiovisuais é infestada de coloquialismos‖40 (Díaz Cintas, 2001: 8). É claro que não se pode comparar a realidade socioeconômica européia à brasileira, nem exigir como prérequisito de um universitário brasileiro um intercâmbio estudantil ou vivência no exterior, mas os aprendizes que puderem passar por tal experiência provavelmente terão uma vantagem em relação aos colegas. No entanto, volto a lembrar que essa vantagem pode ser substituída pela curiosidade, atenção aos detalhes e sensibilidade a referências culturais. Frota (2006), refletindo sobre erros e lapsos 39 40

possess a profound understanding of the culture from which they will mainly subtitle. since most audiovisual programmes are plagued with colloquialisms.

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de tradução, resume bem como o professor pode estimular essas habilidades. Segundo ela, o professor de tradução deve ―desmistificar possíveis idealizações de que o bom tradutor tudo sabe‖ (p. 142). E completa: [o]s alunos de tradução precisam encarar com naturalidade [...] situaç[ões] de ignorância e desenvolver ao máximo os recursos de consulta ou pesquisa. Precisam ter consciência do benefício da dúvida, devem ser incentivados a questionar os limites do conhecimento que supõem ter e a aprender onde e como encontrar informações que possam ajudar nos seus trabalhos (ibidem).

Essa reflexão sem dúvida revela uma visão pós-estruturalista do ensino que, como vimos no Capítulo 2, leva à formação de tradutores mais críticos, seguros e independentes.

5.2.3 Teoria e prática

Em uma dissertação que investiga o ensino de tradução audiovisual na Europa, Christine Sponholz (2003) dedica um capítulo ao exame do conteúdo dos cursos oferecidos em diferentes universidades européias, concluindo que todos têm forte orientação prática, sendo que a proporção média de teoria e prática é de, respectivamente, 25% e 75% (p. 55). A estudiosa esclarece que a parte teórica dos cursos cobre os princípios da legendagem, outras modalidades de tradução audiovisual, estratégias específicas de tradução para legendagem, incluindo aspectos lingüísticos, e o caráter polissemiótico da atividade. Alguns professores entrevistados por Sponholz também apontam como pertencentes à parte teórica de seus cursos exercícios de criação de roteiro e análise de diálogos de filmes (p. 56). As afirmações de Sponholz revelam uma lógica dicotômica que vê a prática como dissociada da teoria, o que, a meu ver, não é possível. A própria descrição do que os professores europeus chamam de ―parte teórica‖ dos cursos sugere que, para eles, a teoria se limita a questões de âmbito mais restrito, como os aspectos lingüísticos e as especificidades da legendagem, deixando de lado questões de cunho filosófico, no nível mais amplo proposto por Martins (1992) e já apresentado no Capítulo 2. Diferentemente dessa postura teórica que considero limitadora, adoto neste trabalho uma abordagem de integração total entre teoria e prática. Essa abordagem

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se manifesta de inúmeras formas. Primeiramente, o professor deve contextualizar cada exercício proposto, definindo público-alvo e objetivos. Essa contextualização servirá de base para as discussões das soluções e estratégias adotadas pelos aprendizes (Martins & Frota, 1997). Estes, por sua vez, são estimulados a justificar suas opções tradutórias e apontar as dificuldades identificadas durante a tradução. A ênfase no processo do fazer tradutório leva os aprendizes a desenvolver sua capacidade de (auto)crítica e de reflexão, dando-lhes maior segurança e independência (ibidem). Incentivando as discussões em sala, o professor estará mostrando aos aprendizes que não existe sempre uma única tradução correta, mas diferentes opções — excetuando-se, obviamente, as escolhas que não dão margem a questionamento na avaliação do grupo (cf. Frota, 2006) —, as quais devem ser julgadas de acordo com critérios previamente definidos, e não isoladamente. No curso de formação esboçado aqui, a teoria está presente o tempo todo, fornecendo uma base para a experiência prática e complementando-a. Como forma de promover essa integração, os aprendizes devem ser apresentados logo no início do curso ao polissistema de tradução audiovisual, para que tomem conhecimento de quem são os agentes envolvidos em todas as etapas do processo, desde a contratação do serviço de tradução até a exibição do produto legendado. Assim, estaremos privilegiando o processo tradutório como um conjunto de procedimentos dos quais participam inúmeros profissionais e mostrando aos aprendizes a importância de se contextualizar a tradução, definindo e considerando o seu público-alvo, o seu objetivo e o veículo no qual ela será divulgada.

5.2.4 O uso do Systimes 4.0 como ferramenta didática

Na Seção 4.1.2, destaquei a importância de se respeitarem as coerções espaçotemporais características da legendagem. Os professores entrevistados, apesar de concordarem que a compreensão da relação espaço/tempo é essencial para que o aprendiz tenha um bom desempenho num curso de legendagem, divergem em relação à melhor forma de ensinar essas coerções. Vejamos o depoimento do Professor C:

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Não tenho tempo para usar o Systimes. Para que eu vou apresentar um programa em DOS, que não é nada intuitivo, que não usa o mouse nem tem precisão de frame? Vou perder um tempo absurdo explicando todos aqueles comandos, F1, F2, F5... para depois virar para eles e dizer: ―Agora esqueçam isso tudo, porque ninguém mais usa esse programa.‖

O Professor A revelou uma opinião semelhante: Não chego nem perto do Systimes. Nem digo que ele existe. Primeiro, o Systimes é zero amigável para aprender a usar e ele tem pouquíssimas funções, ele é chato. Mas eu ando pela sala o tempo todo e apito o tempo todo. Eu vou olhando e dizendo: ―Isso aqui não cabe, isso aqui não dá para ler, conta de novo.‖ Eu peço para eles voltarem umas dez legendas e vou dizendo o que está certo e o que não está. Tudo acaba sendo monitorado. Realmente, o Subtitle Workshop te dá a liberdade de fazer um absurdo se você quiser, mas eu estou ali para dizer que o programa deixa, mas o cliente, não. Eu não tenho tempo para ensinar a usar um programa e depois ensinar a usar outro.

A opinião dissonante é a do Professor B: Eu costumo dizer que o Systimes 4 equivale ao caderno de caligrafia. Ele é a melhor forma de fazer o aluno assimilar os padrões de tempo e caracteres, porque não permite que ele extrapole o limite. Eu não ensino o F5 41 logo de cara. Deixo que eles fiquem bem desesperados tentando resumir para caber tudo em 13, 14 caracteres por segundo e depois digo que tem uma saída, mas insisto que ela deve ser usada com muita parcimônia. Eu uso o Systimes porque, sem a menor dúvida, a maior habilidade necessária para que o aluno seja um bom tradutor de legendas é a capacidade de síntese. Mas, por incrível que pareça, muita gente ignora isso, inclusive autores dos softwares atuais. Se eu começo apresentando um Subtitle Workshop, por exemplo, fica muito mais difícil fazer com que os alunos respeitem a duração mínima da legenda, porque o programa permite qualquer coisa.

O argumento dos professores A e C, de que não dispõem de tempo em seus cursos para apresentar um programa pouco intuitivo e obsoleto, é forte. Por outro lado, a liberdade oferecida pelos novos sistemas de legendagem significa que os aprendizes têm de redobrar a atenção para não criarem legendas rápidas demais, já que o programa não acusa isso durante a tradução (cf. Seção 4.1.2). Ao longo do curso, os professores monitoram os aprendizes e, na avaliação, dão peso maior às legendas que extrapolam o limite de caracteres máximo permitido por segundo, mas, no dia-a-dia da profissão, os novatos deixam de dar atenção a essa orientação. Faço essa afirmação porque apesar de um programa como o Horse, utilizado pela maioria das produtoras cariocas, oferecer um relatório final com 41

F5 é o comando do Systimes 4.0 que permite que uma duração menor do que a indicada pelo programa seja utilizada na legenda.

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vários tipos de erros, inclusive os ―de mínimo‖42, muitos legendadores o ignoram, ou porque não têm conhecimento desse relatório, ou porque não sabem configurar o programa para que ele não permita que se ultrapasse o limite de 15 caracteres por segundo, uma vez que a configuração padrão do Horse ―importou‖ um erro do Systimes, como explica o Professor D: O Systimes 6.0 utiliza o conceito de "spread", que pode ser traduzido como "tolerância", para marcação de tempo. É possível especificar como aceitável o timing de 13 caracteres por segundo com spread de 20%. Ora, isso é o mesmo que dizer que o tempo aceitável é o de 15,6 caracteres por segundo, pois do ponto de vista prático, o que interessa são os erros de mínimo. [...] O Horse, que foi criado com base nos Systimes 4.0 e 6.0, transportou esse mesmo equívoco e de maneira que induz a erros maiores. No Horse, o usuário especifica o tempo, [por exemplo] como 13 + ou - 5 [ou] 20 + ou - 10. Ora, se o que interessa são os valores mais altos, 13 + ou - 5 poderia ser substituído por 18, e 20 + ou - 10 poderia ser substituído por 30. Muitas pessoas marcam tempo com 20 + ou - 10 achando que estão marcando com 20 caracteres por segundo. Quando verificam seu timing, não encontram nenhum erro de mínimo. É óbvio que não, pois estão timeando com o parâmetro de 30 caracteres por segundo, o que é um absurdo.

Se um legendador faz seu primeiro trabalho para uma produtora usando a configuração de 30 caracteres por segundo, o dobro do parâmetro vigente no mercado brasileiro, ele dificilmente receberá um segundo trabalho. Na condição de potencial contratadora dos serviços de legendadores, recebo muitos candidatos que fizeram cursos de legendagem, têm domínio do software, mas produzem legendas tecnicamente inaceitáveis. Isso indica que simplesmente sinalizar ao aprendiz que uma legenda não tem tempo suficiente de leitura é um recurso inócuo, pois ele vê sua legenda entrando e saindo na tela de forma sincronizada com a fala original e consegue lê-la, uma vez que o autor sempre lê sua tradução com mais rapidez do que o telespectador. Além disso, o aprendiz tem à sua disposição o recurso de simular as legendas quantas vezes julgar necessário, aumentando assim sua familiaridade com a própria tradução. Sem dúvida, falta ao mercado de legendagem um programa que reúna as funções do Systimes e dos softwares mais recentes. Quando ele for desenvolvido, a ênfase do curso de formação poderá ser maior no aspecto lingüístico da legendagem. Enquanto isso não acontece, os professores dos cursos com carga

42

Assim como o Systimes, o Horse também fornece um relatório de erros, e acusa como contendo ―erro de mínimo‖ as legendas que extrapolam o limite de caracteres por segundo, limite esse que deve ser configurado pelo legendador de acordo com a orientação do cliente.

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horária reduzida devem continuar mostrando aos aprendizes a importância de se respeitar o limite máximo de caracteres por segundo. Outro ponto que gera polêmica entre os professores de legendagem é a questão do momento do curso em que os softwares devem ser introduzidos. É claro que, em treinamentos de curta duração, os professores geralmente apresentam os softwares mais atuais logo nas primeiras aulas. Quando não o fazem, ou quando usam um programa que não é mais aceito pelo mercado, os alunos costumam demonstrar insatisfação, como pode-se notar nos depoimentos de dois ex-alunos de cursos de legendagem. Não tivemos a oportunidade de praticar com o computador em sala, apenas discutimos as soluções encontradas. Mesmo assim foram necessárias aulas particulares para solucionar questões que surgiram com a prática e não puderam ser resolvidas durante o curso (sobre timing, spotting, otimização do trabalho, recursos do programa, etc.). Acho que a primeira a coisa a ser abordada num curso deveriam ser os softwares, pois com poucas horas de estudo se aprende a usá-los. Fazer um curso de legendagem e só aprender a usar os softwares de legendagem no final do curso equivale a fazer um curso de redação e só aprender a escrever no final do curso. É muito melhor estudar legendagem tendo a possibilidade de fazer as próprias experiências. O curso que fiz abordava os softwares no final. Senti que muitos alunos se sentiram desestimulados por isso.

Um risco que os professores correm ao apresentar os softwares prematuramente, ou seja, antes que os aprendizes tenham desenvolvido a capacidade de síntese no nível extremo exigido pela legendagem, é que eles adquiram o vício de produzir legendas com tempo de leitura insuficiente, uma vez que, como vimos, os programas hoje disponíveis permitem isso. Portanto, é essencial que os exercícios de síntese sejam trabalhados antes da introdução da prática de tradução com os programas de legendagem. O curso delineado por esta dissertação exalta o caráter didático do Systimes 4.0 e defende a sua utilização em sala de aula, como uma ferramenta útil — além de gratuita — para formar legendadores mais completos e cientes das exigências do mercado. É importante destacar, no entanto, que a utilização do Systimes 4.0 de maneira alguma dispensa a apresentação dos softwares utilizados atualmente, uma vez que um dos objetivos do curso proposto aqui é dar subsídios para que os legendadores cheguem mais bem preparados ao mercado de trabalho.

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Vejamos agora brevemente os conteúdos que podem ser abordados nas duas disciplinas propostas.

5.2.5 Disciplinas propostas

5.2.5.1 Tradução para legendagem I

1)

Objetivos

Essa disciplina introdutória propõe-se a dar aos aprendizes subsídios para decidirem se a tradução audiovisual é um campo profissional que eles gostariam de explorar após sua formação acadêmica básica. Ao longo do semestre letivo, espera-se que as competências lingüística, técnica, rítmica e cultural listadas no Capítulo 4 sejam desenvolvidas por meio das atividades propostas. Ao final do curso, após terem tido contato com todas as etapas básicas do processo de legendagem, os aprendizes deverão ser capazes de: (i) utilizar os softwares específicos de legendagem e suas funções de edição de texto e marcação de legendas; (ii) traduzir e sintetizar as falas originais de programas audiovisuais de diversos gêneros; (iii) sincronizar as legendas traduzidas com as falas originais, respeitando o ritmo do discurso das personagens, os cortes de cena e o ritmo de leitura dos telespectadores.

2)

Programa

As aulas devem envolver leitura e discussão de textos teóricos e de críticas de legendas, atividades práticas visando o desenvolvimento das habilidades e competências específicas da tradução para legendas e análise de soluções tradutórias de produtos audiovisuais legendados, como filmes, seriados, documentários e musicais. Seriam abordadas ainda, nessa disciplina básica com carga horária de 60 horas, as especificidades das diferentes modalidades de TAV, como legendagem, dublagem, voice-over e closed caption.

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O

curso

seria

dividido

em

quatro

módulos,

ou

unidades,

de

aproximadamente 15 horas (ou 4 aulas) cada um. O primeiro módulo seria dedicado ao desenvolvimento das competências básicas necessárias ao legendador, como poder de síntese, noção de ritmo e domínio dos diferentes registros do português. Para isso, o professor lançaria mão, antes de entrar nos exercícios de legendagem propriamente ditos, de atividades que serão propostas mais adiante, entre elas transcrição, síntese, paráfrase, tradução, análise da edição de programas audiovisuais e de soluções adotadas pelos legendadores profissionais. A introdução aos softwares deve ser feita no início do segundo módulo. Para isso, é necessário que o curso seja sofisticado tecnologicamente, ou seja, cada aprendiz deve ter acesso a um computador equipado com acesso à Internet, os programas computacionais que serão usados nas aulas e fones de ouvido. As universidades não precisarão arcar com a compra de licenças de softwares, pois tanto o Systimes 4.0 quanto o Subtitle Workshop são gratuitos. Os aprendizes seriam primeiramente apresentados ao Systimes 4.0, para que assimilassem de forma mais rápida e eficaz as coerções espaço-temporais envolvidas na legendagem. Após 15 horas utilizando o Systimes para a realização de exercícios, eles passariam a trabalhar, nas últimas 30 horas do semestre letivo, com o Subtitle Workshop, que atualmente é um dos softwares mais utilizados no mercado de legendagem brasileiro, adquirindo assim prática em todas as etapas da tradução para legendas: timing, spotting interno e externo, simulação das legendas produzidas e revisão final. A interação com novas tecnologias e o uso de arquivos de vídeo, diferentes softwares e ferramentas de pesquisa on-line incrementam as habilidades computacionais dos aprendizes que, dessa forma, teriam uma experiência bem próxima da realidade do mercado de trabalho. O terceiro módulo de 15 horas abrangeria exercícios de tradução e legendagem de diversos gêneros de produtos audiovisuais e técnicas de tradução para voice-over. Como foi exposto no Capítulo 4, o texto telejornalístico apresenta semelhanças e diferenças em relação ao texto de uma tradução para legendas. Ao mesmo tempo em que as duas modalidades de redação devem ser marcadas pela clareza e concisão e são regidas por coerções temporais, o texto telejornalístico é escrito para ser falado, ao contrário do texto para legendas. O legendador deve conhecer essas semelhanças e diferenças e dominar as estratégias de redação

78

utilizadas no telejornalismo, pois alguns canais de TV por assinatura, como o GNT, adotam um sistema híbrido de tradução de programas documentários: as entrevistas são legendadas e a narração é traduzida em um arquivo separado, em formato de texto corrido, dividido em blocos com a marcação do tempo relativo ao início e ao fim de cada bloco. Para isso, os tradutores usam uma lauda que se assemelha à utilizada nas redações de telejornalismo. O texto traduzido é lido por um apresentador numa cabine de locução e, posteriormente, na ilha de edição, o canal de narração original do programa é substituído pelo canal com a narração em português. Em casa, os telespectadores cujos televisores são equipados com a tecla SAP43 geralmente podem escolher entre assistir ao programa com a narração original ou a traduzida. Uma vez que, como na dublagem, o canal de áudio com a narração na língua estrangeira é apagado, o tradutor tem muito mais liberdade para modificar a estrutura do texto original, liberdade essa que seria bastante limitada caso ele estivesse traduzindo para o formato de legendas. Ele deve adaptá-lo para ser falado pelo apresentador, atentando para a sonoridade e o ritmo do texto traduzido e levando em consideração técnicas de redação telejornalística, como evitar cacófatos e palavras em seqüência com a mesma terminação (Paternostro, 1999: 70). Por incrível que pareça, apesar de a redação para telejornalismo possuir regras muito bem definidas e ser altamente especializada, pelo que conheço dos cursos de legendagem existentes, nenhum deles aborda as especificidades da tradução para narração. As poucas instruções que os legendadores recebem de como traduzir para narração são aquelas contidas em manuais de padrões disponibilizados pelas produtoras e programadoras. Portanto, a inclusão de aulas sobre tradução para narração em um curso de formação de legendadores é essencial dentro da proposta esboçada aqui, que busca desenvolver nos aprendizes as competências necessárias para que eles cheguem ao mercado mais bem preparados e cientes das habilidades que serão exigidas deles. Conforme foi visto na Seção 4.1.2, a utilização do Subtitle Workshop permite que o professor passe exercícios para casa, ficando com mais tempo de aula para aprofundar, no módulo final do curso, alguns assuntos relacionados à TAV, como edição de cinema e TV e a natureza polissemiótica e diagonal da

43

Sigla para Secondary Audio Program, ou Programa Secundário de Áudio.

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legendagem, e para convidar palestrantes a discorrerem sobre temas como tradução teatral, dublagem, legendagem para cinema e mercado de trabalho. Durante o curso, além de desenvolverem as habilidades características da tradução para legendagem, os aprendizes aperfeiçoam sua competência tradutória, pois as coerções espaço-temporais típicas da atividade os forçam a se concentrar no cerne da mensagem a ser traduzida. Conseqüentemente, eles perdem o mau hábito muito comum entre estudantes de tradução de traduzir palavra por palavra ou oração por oração, como observa Sponholz (2003: 66), e passam a pensar em unidades semânticas maiores. Passo agora a propor alguns exercícios práticos que visam auxiliar o professor a montar seu curso de formação de legendadores. Os exercícios propostos não são estanques. Mais de uma atividade pode ser realizada em uma aula de aproximadamente 200 minutos, enquanto outras poderão tomar mais de uma aula. Vale ressalvar ainda que o programa delineado aqui não é fechado, pois claro está que cada turma tem suas especificidades e limitações; cabe ao professor identificá-las e fazer as adaptações e modificações que julgar necessárias.

3)

Exercícios

De acordo com as orientações presentes na literatura referente ao ensino de legendagem, reunidas por Sponholz (2003), a escolha dos textos e do material audiovisual a ser trabalhado em sala de aula é decisiva para o sucesso das atividades. Os trechos de longas-metragens, documentários, seriados, entrevistas, reality shows, musicais etc. devem ser tematicamente independentes, demandar várias estratégias de tradução diferentes e apresentar potenciais dificuldades aos aprendizes, como diferentes dialetos, falsos cognatos, humor e registros especiais. A análise das soluções dadas pelos aprendizes estimulará a discussão, além de ser uma forma de levá-los a se dar conta de que diversas soluções tradutórias podem ser igualmente aceitáveis. Faz-se necessário aqui um esclarecimento em relação à lei brasileira de direitos autorais, número 9.610, sancionada em 19 de fevereiro de 1998. O capítulo IV da referida lei trata das limitações aos direitos autorais e reza que não constitui ofensa aos mesmos a utilização de passagens de obras audiovisuais nos estabelecimentos de ensino para fins exclusivamente didáticos (Cabral, 2000:

80

195). Portanto, desde que utilize trechos de produtos audiovisuais e não os distribua aos alunos fora do ambiente acadêmico, o professor não estará violando a lei de direitos autorais ao adotar as atividades propostas a seguir.

Atividade 1 Após a apresentação do polissistema de tradução audiovisual e todos os profissionais e etapas que dele fazem parte, o professor deve introduzir os conceitos de tradução diagonal e diassemiótica para, logo em seguida, propor uma atividade de análise e síntese de um texto. Essa atividade ainda não envolve tradução e deve ser feita sem a utilização de recursos audiovisuais. O texto trabalhado pode ser uma matéria de jornal impresso que aborde, por exemplo, as características técnicas da legendagem, a criação de legendas por fãs de seriados estrangeiros, os valores praticados pelo mercado ou críticas a legendas (como a presente na coluna de Artur Xexéo transcrita na Seção 3.4). Dessa forma, além de desenvolver o poder de síntese, o exercício serviria de base para que o professor explorasse outros aspectos da legendagem. Uma vez que o texto traduzido para legendas sofre uma redução de até 50% em relação aos diálogos originais, no exercício o professor deve pedir que os aprendizes resumam o texto nessa mesma proporção, utilizando para tal os recursos de síntese e paráfrase.

Atividade 2 Na Seção 4.1.1, vimos que a capacidade de transpor um texto falado para o código escrito é uma competência essencial a um legendador. Uma atividade eficaz para desenvolvê-la consiste em utilizar o trecho de uma entrevista e pedir que os aprendizes o transcrevam. Novamente, a língua da atividade é o português. É importante o programa audiovisual escolhido seja uma entrevista, por tratar-se de um gênero rico em vícios de linguagem, hesitações, autocorreções e por ser o exemplo mais genuíno de discurso espontâneo, sem script. Conforme o Professor A ressaltou em seu depoimento na Seção 4.2.2, através da transcrição, os aprendizes perceberão que quem decide como redigir, pontuar e interpretar o texto são eles próprios, e também poderão desenvolver a competência relacionada ao entendimento da língua falada. Após a transcrição, a etapa seguinte do exercício é sintetizar o texto produzido, reduzindo-o à metade do seu tamanho original,

81

embora mantendo as informações mais importantes. Fazendo isso, os estudantes estarão se concentrando no conteúdo da mensagem que está sendo transmitida e, conseqüentemente, desenvolvendo a capacidade de interpretar e priorizar informações. A diferença entre as atividades 1 e 2 é que a transcrição do discurso oral em texto escrito revela que a fala é rica em redundâncias, repetições, contradições e interrupções que, se reproduzidas em forma escrita, tornam a mensagem confusa, quando não impossível de ser decodificada. Com esse exercício, os aprendizes notarão a diferença entre os registros e reunirão subsídios para decidir o que é informação redundante.

Atividade 3 Ainda com uma entrevista em português, a atividade 2 pode ser repetida na aula seguinte, tendo seu grau de dificuldade aumentado. Enquanto o programa escolhido para a atividade 2 deve ser uma entrevista no estilo pingue-pongue, ou seja, em formato de perguntas e respostas e com um só entrevistado, nesta terceira atividade um trecho de uma mesa-redonda, com vários entrevistados comentando um tema ao mesmo tempo, pode ser utilizado. Através desse exercício, os aprendizes vivenciarão uma realidade do mercado, que foi recentemente inundado de reality shows e programas voltados para adolescentes nos quais vários personagens falam simultaneamente, ao se verem obrigados, entre várias falas sendo proferidas ao mesmo tempo, a escolher no máximo duas para reproduzir em cada legenda.

Atividade 4 O próximo passo é associar o exercício à tradução. Neste caso, a tradução deve ser feita sem o auxílio do roteiro original, para que os aprendizes desenvolvam também a compreensão auditiva. Se a língua da qual traduzem for o inglês, por exemplo, os estudantes notarão que o texto traduzido cresce. Nessa etapa, o professor deve pedir que eles já traduzam o texto sintetizando-o de uma maneira natural em sua língua, sem que a tradução entre em conflito com as imagens e as falas originais (Díaz Cintas, 2001: 4).

82

Atividade 5 Como já vimos, ter noção de ritmo também é uma habilidade essencial ao legendador. Um bom exercício para que os estudantes aprendam a identificar os ritmos dos diferentes gêneros é exibir trechos de programas com edição lenta e ir progressivamente aumentando o ritmo da edição dos trechos selecionados e a relevância dos outros sistemas semióticos (além do verbal) envolvidos no texto audiovisual, como imagens, música, letreiros (bilhetes, manchetes de jornais, placas, créditos) e interação entre as personagens. Segundo Gottlieb (1998: 247), a interação entre todos os signos que compõem o texto audiovisual gera uma relação de redundância, principalmente a interação entre o canal visual não-verbal (as imagens) e os componentes prosódicos do diálogo (entonação, gestos, expressões). Essa redundância auxilia o legendador em sua tarefa de reduzir os signos verbais, e por isso é essencial que os alunos aprendam a identificá-la. O mesmo exercício pode ser aplicado para que os alunos aprendam a distinguir os diferentes ritmos de fala dos personagens. Pode-se exibir a abertura de uma entrevista, na qual o repórter apresenta o entrevistado lendo um texto redigido de antemão, ou um documentário apresentado por um narrador. Nos dois casos, tanto o narrador quanto o jornalista seguem um roteiro rígido, e sua leitura é sempre vagarosa, pausada e livre das hesitações e autocorreções presentes no discurso improvisado. Em seguida, o professor pode usar o trecho de um filme do diretor Woody Allen, por exemplo, cujo discurso é marcado por hesitações, repetições e gaguejos, e em seguida exibir o monólogo de abertura do programa Late Show with David Letterman, que, para o legendador inexperiente, pode representar um verdadeiro pesadelo tradutório devido à velocidade de fala de seu apresentador. Atividades dessa natureza estimulam os estudantes a discutirem as diferentes estratégias que podem ser usadas para contornar vícios de linguagem e um ritmo de fala muito acelerado. Exercícios de tradução e legendagem de canções também são uma forma simples, eficaz e agradável de desenvolver nos aprendizes a noção de ritmo.

Atividade 6 Esta atividade marca o início do segundo módulo do curso e deve se repetir ao longo de todo o módulo. Após a apresentação dos diferentes ritmos de edição de

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imagens e de fala de personagens feita através da atividade 6, o professor deve usar o mesmo recurso nos exercícios de tradução para legendagem que os aprendizes farão utilizando o Systimes 4.0, isto é, escolher trechos de programas com um ritmo de edição e de fala mais lento e ir progressivamente aumentando o grau de dificuldade dos trechos selecionados.

Outras atividades Nos dois últimos módulos, conforme previsto no esboço do programa da disciplina, os aprendizes passariam a utilizar o Subtitle Workshop para realizar os exercícios de legendagem, o que lhes daria a chance de explorar todas as etapas do trabalho, como timing, spotting, simulação das legendas e revisão, tanto de suas traduções quanto das feitas pelos colegas. Nessa etapa o professor também deve introduzir exercícios de tradução para voice-over e algumas atividades complementares, como as que proponho a seguir. Todo legendador tem de ser versado em análise sintática para escolher a melhor maneira de quebrar períodos dentro da legenda e, se for necessário, entre legendas (cf. Seção 3.3.3), uma vez que ―a quebra de linhas com motivação semântica aumenta a velocidade de leitura‖ 44 (Gottlieb, 1994a: 113). Em um curso ministrado num bacharelado em Letras — Tradução, essa competência seria desenvolvida

em

disciplinas

como

Sintaxe

e

Português

Padrão.

Independentemente disso, uma atividade útil é pedir que os aprendizes ouçam o trecho do programa escolhido para o exercício e marquem no roteiro como acham que a mensagem original deve ser dividida. Feito isso, o mesmo trecho com as legendas gravadas deve ser exibido para comparação e discussão das soluções mais adequadas. Na Seção 4.1.2, tracei um breve histórico de como a tecnologia envolvida na atividade da tradução para legendagem avançou nos últimos anos. Hoje, o legendador não usa mais o televisor nem o videocassete em seu trabalho, tem à sua disposição programas que lhe permitem marcar o tempo de entrada e saída de legendas com mais rapidez e precisão, bem como baixar os arquivos de vídeo diretamente da Internet, em servidores privados FTP (File Transfer Protocol). Novas tecnologias surgem a cada dia, e o legendador precisa ter agilidade para se

44

Semantically motivated line breaks enhance reading speed.

84

adaptar a elas. Para desenvolver essa agilidade, o aprendiz deve aumentar sua intimidade com o computador, aprendendo a utilizar outras ferramentas além dos programas para legendagem. Isso cria nele uma intuição para solucionar problemas por conta própria. Em um bacharelado em Tradução ou equivalente, essa habilidade geral é desenvolvida em outras disciplinas, como Tradução de Informática e Tradução Técnico-Científica, e o professor da disciplina específica de legendagem que fizesse parte do currículo desse bacharelado ficaria livre para apresentar as ferramentas essenciais ao legendador, como os softwares próprios e dicionários on-line, e para explorar em sala técnicas de pesquisa na Internet, dando dicas sobre ferramentas de busca, conversores de moedas, como avaliar fontes de informações etc. A competência cultural também pode ser estimulada através de algumas atividades, como exibir em sala trechos de um programa — já legendado — rico em referências culturais45 e pedir que os aprendizes anotem as soluções dadas pelos tradutores para posterior discussão e análise das estratégias mais comumente adotadas. A mesma atividade, porém com um gênero diferente de programa, pode ser usada para que os aprendizes desenvolvam a capacidade de tomar decisões tradutórias rápidas sem o apoio de traduções consagradas. O programa utilizado nesse caso deve ser um documentário jornalístico que aborde um assunto cuja nomenclatura ainda não esteja definida em português. Entre os exemplos mais recentes estão a grafia de termos como ―Talibã‖, ―Hezbollah‖ e ―Al-Qaeda‖, o gênero de palavras como ―tsunami‖ e a tradução de termos como ―Ground Zero‖. Para justificar suas escolhas tradutórias, é necessário que o legendador desenvolva o domínio das ferramentas de pesquisa e saiba avaliar suas fontes. A última atividade proposta é uma ótima forma de desenvolver essa aptidão. Atualmente, são comuns no mercado de legendagem brasileiro programas oriundos de países como Austrália, Nova Zelândia e Canadá. Os legendadores que tiverem familiaridade com sotaques, coloquialismos e gírias não só desses países como das mais diferentes regiões e comunidades lingüísticas terão mais chances de se inserir no mercado. Através da atividade de transcrição de programas sem o

45

Uma sugestão seria o talk show Late Show with David Letterman, exibido no Brasil pelo canal a cabo GNT.

85

auxílio do roteiro original, os aprendizes treinam o ouvido aos diferentes sotaques da língua-fonte.

5.2.5.2 Tradução para legendagem II

Caso os currículos das universidades permitam, o ideal seria que a disciplina introdutória fosse complementada por esta disciplina avançada de tradução para legendagem, com a mesma carga horária da disciplina básica. Seria dirigida aos estudantes que quisessem se aprofundar no estudo da modalidade. Nessa disciplina, o grau de dificuldade das atividades aumentaria, os aprendizes lidariam com gêneros de programas diferentes e mais desafiadores para o legendador, fariam os exercícios de tradução e legendagem sem o auxílio do roteiro original, trabalhariam tendo de respeitar prazos mais curtos, numa forma de simular o ambiente profissional, e aprenderiam a legendar para públicos especiais, como crianças e culturas não familiarizadas com a leitura de legendas, por exemplo. Ao final do curso, os aprendizes com um bom aproveitamento teriam desenvolvido satisfatoriamente todas as competências necessárias a um legendador, quais sejam, habilidade de identificar e condensar a essência de uma mensagem, de identificar e explorar a interação entre imagem, som e texto e a capacidade de se adaptar à velocidade do diálogo (Sponholz, 2003: 59), e estariam prontos para ingressar no mercado de trabalho sem onerar os contratantes de seus serviços com meses de treinamento e tarefas monitoradas.

5.2.6 Avaliação

Dentro de uma proposta de ensino não-prescritivo alinhada às reflexões pósestruturalistas, como a deste trabalho, avaliar torna-se um trabalho ainda mais difícil, mas não impossível. Autoras como Arrojo (1993 e 1994), Martins & Frota (1997) e Tavares de Souza 46 defendem a descentralização do poder avaliatório do professor como forma de dar voz ao aprendiz, levando-o a assumir maior 46

TAVARES DE SOUZA, V. (1994) ―Avaliação da aprendizagem‖. Ensaio: avaliação e políticas públicas em Educação. Rio de Janeiro: Fundação Cesgranrio, v. 1-3, abr/jun, pp. 13-20.

86

responsabilidade por seu trabalho, através da fundamentação e da crítica do mesmo. Essa descentralização pode acontecer na forma de auto-avaliações e de avaliações conjuntas, feitas por toda a turma. A auto-avaliação se daria no nosso curso de formação de legendadores da seguinte forma: ao longo do período letivo, os exercícios feitos pelos aprendizes deverão ser acompanhados de comentários sobre as dificuldades enfrentadas e as estratégias adotadas no processo tradutório. Assim, durante a projeção dos exercícios em sala, eles terão a chance de justificar suas escolhas. Com base na discussão e nos comentários do professor e dos colegas, os aprendizes terão elementos para avaliar os próprios trabalhos. Na metade do semestre letivo, a turma seria dividida em grupos, que preparariam seminários sobre temas relevantes à TAV a partir de textos teóricos indicados pelo professor. As apresentações dos grupos seriam avaliadas tanto pelo professor quanto pelos colegas, e comporiam 50% da nota final da primeira avaliação do curso. Os outros 50% da nota seriam compostos pela média simples dos exercícios auto-avaliados pelos aprendizes e revisados pelo professor. A segunda avaliação, com peso maior, seria realizada no fim do semestre letivo sob a forma de uma prova prática de legendagem de um pequeno trecho de programa televisivo, que poderá ser escolhido entre três opções oferecidas pelo professor47. Nessa prova, os aprendizes realizariam todas as etapas do trabalho: tradução, spotting, timing e revisão final das legendas. A exemplo do que terá acontecido durante todo o semestre, eles deverão entregar juntamente com a avaliação final um relatório com comentários que justifiquem e fundamentem, sempre que julgarem necessário, suas escolhas e estratégias adotadas diante das dificuldades enfrentadas durante a tradução. Mesclando dessa forma a auto-avaliação, a avaliação conjunta e a avaliação feita pelo professor, creio que estaremos suavizando o inevitável papel de juiz que todo docente desempenha e que dele é esperado, e dando subsídios para que os aprendizes encarem de forma mais crítica o seu trabalho, mostrando-lhes que não devem esperar do professor respostas definitivas e imediatas, pois, nas palavras da pós-estruturalista Rosemary Arrojo (1993),

47

O tamanho do trecho e o nível de dificuldade do programa, assim como a profundidade dos textos indicados para a realização dos seminários, seriam maiores na disciplina avançada de legendagem.

87

o objetivo final do ensino deve ser a formação de alguém que possa aprender a conquistar suas ―resistências‖ à busca do conhecimento e que possa, portanto, aprender a aprender e desistir do desejo impossível de dominar e controlar tudo que supostamente há para ser conhecido. (p. 145)

5.2.6.1 Critérios de avaliação

As avaliações, nas três formas propostas acima, devem ser realizadas levando-se em conta dois critérios principais, que devem ser explicitados aos aprendizes no início do semestre letivo: o lingüístico e o técnico. Os dois critérios têm o mesmo peso, compondo, cada um, 50% do total da nota, e o avaliador deve observar os fatores indicados a seguir para calcular as mesmas.

Critério lingüístico: diz respeito ao conteúdo das legendas. Para verificá-lo, o avaliador deve levar em consideração se as informações mais importantes do original estão presentes na tradução e se os elementos omitidos são mesmo dispensáveis (25% do total da nota); se o registro utilizado na tradução está apropriado e se as regras do português foram obedecidas (25% do total da nota).

Critério técnico: diz respeito à forma das legendas. Para avaliar o critério técnico, deve-se verificar se a divisão das legendas levou em conta o ritmo de fala dos personagens, o ritmo dos cortes do programa e o ritmo de leitura dos telespectadores (25% do total da nota); se marcação das legendas está bem sincronizada com as falas originais e se as legendas estão divididas em blocos coesos de significado, respeitando o número máximo de caracteres por linha (25% do total da nota).

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6. Considerações finais A partir da constatação de que o mercado de tradução para legendagem brasileiro sofre com a carência de profissionais, e de que a ênfase dos cursos atualmente disponíveis é no treinamento, o objetivo principal deste trabalho foi propor as bases para um curso de formação que abordasse todas as competências e habilidades que um legendador deve desenvolver. Buscando demonstrar as complexidades envolvidas no processo de tradução para legendagem, apresentei o polissistema de tradução audiovisual e as peculiaridades características dessa modalidade de tradução, concentrando-me na legendagem de programas de televisão. Entre essas peculiaridades destaca-se o fato de a legendagem ser um tipo de tradução diagonal e diassemiótica, o que leva o legendador a ter de lidar com limitações espaciais e temporais e com a crítica, principalmente por parte de leigos, crítica esta que pode ser feita ―em tempo real‖, uma vez que o telespectador tem acesso ao original juntamente com a tradução. Em seguida, apresentei as normas, coerções e os mecanismos de controle em vigor no mercado brasileiro, os quais o legendador deve conhecer e aos quais deve se adequar para ter sucesso no exercício da profissão. Finalmente, tracei o perfil do legendador valorizado pelo mercado e propus atividades para abordar as competências e habilidades que devem ser desenvolvidas no curso de formação de legendadores. O Capítulo 5 tratou da proposta do curso propriamente dita. Nele, especifiquei a carga horária ideal do curso, o tempo de duração das aulas, os prérequisitos necessários, a importância da integração entre teoria e prática e sugeri uma divisão entre uma disciplina básica e outra avançada de tradução para legendagem na universidade. Não foi meu objetivo, no entanto, apresentar uma proposta totalmente estruturada, que previsse um plano de aulas completo. Este me parece ser um caminho natural para o desenvolvimento da presente pesquisa: a elaboração de material didático específico para a formação de legendadores. Sendo assim, julgo ter cumprido os objetivos propostos e demonstrado que a tradução para legendagem é um mercado em pleno crescimento que merece mais atenção, não só da academia como do próprio mercado, que ainda seleciona

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legendadores de forma amadora, com base em indicações ou em candidatos encaminhados por cursos de treinamento que, apesar de cumprirem seu papel de familiarizar os alunos com os conceitos básicos da legendagem, não formam legendadores competentes e seguros. Um curso de formação nos moldes propostos na presente dissertação resultaria em benefícios a todos os envolvidos: às empresas, que teriam à sua disposição profissionais mais bem preparados e se isentariam do custo de ter de promover longos treinamentos para legendadores novatos; aos telespectadores, que receberiam um produto de maior qualidade e conseqüentemente aperfeiçoariam de forma mais eficaz seu conhecimento de línguas estrangeiras, uma vez que os programas legendados oferecem a oportunidade única de comparação entre o que é ouvido na língua original e o que se lê na tradução; à academia, que estaria satisfazendo uma demanda dos estudantes, incluindo no currículo uma modalidade de tradução criativa e empolgante, que possivelmente atrairia mais candidatos às faculdades de Letras; e aos aprendizes, que teriam uma formação mais completa como tradutores, pois nas disciplinas de tradução para legendagem desenvolveriam habilidades gerais como poder de síntese, análise textual, domínio de ferramentas tecnológicas promovido pelo contato constante com computadores, arquivos de imagens, diferentes programas computacionais e a Internet, e aprenderiam a identificar diferentes sotaques e registros lingüísticos. Além disso, trabalhar em um ambiente tecnologicamente sofisticado, muito próximo da realidade do mercado de trabalho, é uma experiência rara na universidade, que mune os aprendizes da prática necessária a uma maior segurança para enfrentar os desafios do mercado de trabalho. A parceria entre a universidade e o mercado poderia se dar também de forma mais sistemática, através de programas de estágios nas produtoras para os estudantes matriculados nas disciplinas de legendagem. Dessa forma, os aprendizes teriam contato com todas as etapas do processo de legendagem, conheceriam os softwares mais avançados para a produção de legendas e poderiam garantir um lugar no mercado de trabalho após a formatura. Por seu turno, os programas de estágio também beneficiariam as empresas de legendagem, que teriam mais voz no planejamento dos cursos, dando conselhos em relação às habilidades que elas procuram na hora de recrutar novos legendadores (Díaz Cintas & Orero, 2003).

90

Finalmente, a própria profissão de legendador seria valorizada, pois, com o aumento da qualidade dos produtos legendados, os profissionais poderiam reivindicar melhores condições de trabalho e remuneração mais compatível com o nível de especialização de seu trabalho.

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PARTERNOSTRO, V.I. (1999) O texto na TV: manual de telejornalismo. Rio de Janeiro: Campus.

QUENTAL, R.F. (1995) A dicotomia tradicional teoria/prática no ensino de tradução: suas manifestações, sua matriz teórica e seus efeitos para a formação de tradutores. Dissertação de Mestrado, Programa de PósGraduação em Lingüística Aplicada, I.E.L., UNICAMP, Campinas, São Paulo.

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SPONHOLZ, C. (2003) Teaching Audiovisual Translation: Theoretical Aspects, Market Requirements, University Training and Curriculum Development, Dissertação de Mestrado, Johannes Gutenberg-Universität, Mainz, (inédita). SCHWARZ, B. (2002) ―Translation in a confined space — part 1‖. In: Translation Journal, v. 6, n. 4, periódico virtual sem numeração de páginas, http://www.accurapid.com/journal/.

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XÉXEO. A. (2006) ―Malas, hemácias, Olívia e oxicoco‖. O Globo, Rio de Janeiro, 13 dez. 2006, Segundo Caderno, p. 12.

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Apêndice 1 Roteiro básico para a entrevista com o Diretor A

1)

Que tipo de profissional procura a sua empresa oferecendo serviços de tradução?

2) Geralmente, os interessados têm formação em Letras, Tradução ou áreas afins? O senhor acha que essa formação é importante? Por quê? 3) A empresa admite estagiários? De que áreas de formação? 4) Há algum tipo de triagem ou prova anterior ao treinamento oferecido pela empresa? 5) Todos os candidatos a tradutor devem passar pelo treinamento? 6) O fato de um interessado não possuir familiaridade com os programas de legendagem utilizados atualmente é um impedimento para que ele se torne prestador de serviços da sua empresa? 7)

O senhor diria que, após o treinamento, o percentual de tradutores aproveitados pela sua empresa é alto ou baixo?

8) Se a resposta à pergunta anterior foi ―baixo‖, como o senhor acha que essa situação poderia ser revertida? 9) Os tradutores que hoje atuam na sua empresa dão conta de todo o volume de trabalho? 10) O senhor acha que um curso mais extenso de formação de tradutores para legendagem seria benéfico para o mercado? Que competências e habilidades poderiam necessárias a um bom tradutor para legendas ser desenvolvidas num curso de formação?

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Apêndice 2 Roteiro básico para a entrevista com os professores

1) Há quanto tempo você leciona tradução para legendagem? 2) Em que instituição/produtora/instituto você leciona? 3)

Fale um pouco sobre a sua formação e experiência com tradução para legendagem.

4) Qual é a carga horária do curso que ministra? 5)

O candidato deve cumprir algum pré-requisito para se inscrever no seu curso ou ele é aberto a todos os interessados?

6) Qual é o conteúdo programático do seu curso? 7) Qual é o método utilizado nas aulas e que línguas são abordadas? 8)

Os alunos têm acesso aos softwares utilizados atualmente no mercado? Quais?

9) Na sua opinião, quais são as competências e habilidades necessárias a um tradutor para legendas? 10) Quais

dessas

competências

e

habilidades

descritas

podem

ser

desenvolvidas e quais delas os interessados já devem possuir antes de ingressar no curso? 11) Como você avaliaria o aproveitamento geral dos alunos ao final do curso? Aqueles que se destacam estão prontos para atuar no mercado ou ainda necessitam de um monitoramento?

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Apêndice 3 Roteiro básico para a entrevista com os alunos

1) Qual é a sua formação profissional? 2) Que curso(s) de tradução para legendagem você já fez? 3) De/para que línguas você traduz? 4) Com que objetivo você se inscreveu no(s) curso(s) que fez? 5) Qual era a carga horária do(s) curso(s)? 6) Na sua opinião, quais são as competências e habilidades que um bom tradutor para legendagem deve ter? 7) Quais dessas competências e habilidades você acha que podem ser desenvolvidas num curso de tradução para legendagem? Elas foram abordadas no(s) curso(s) que você fez ou isso ocorreu já no exercício profissional da atividade? 8) Você se sentiu preparado(a) para atuar no mercado de tradução para legendagem após o término do curso? 9) Você conseguiu se inserir no mercado após a realização do curso? 10) Se você presta serviço para alguma produtora de legendagem, quantas horas de programação por mês você recebe para traduzir em média?

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