Tradução - Reflexões preliminares sobre os delitos de terrorismo: eficácia e contaminação (Manuel Cancio Meliá)

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Manuel Cancio Meliá

REFLEXÕES PRELIMINARES SOBRE OS DELITOS DE TERRORISMO: EFICÁCIA E CONTAMINAÇÃO*.

Manuel Cancio Meliá Professor titular de Direito penal da Universidade Autônoma de Madrid.

Traduzido por: Bruno Costa Teixeira e Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira2 1

I. INTRODUÇÃO. 1. A opinião pública encara a questão da reação do Direito penal ante o terrorismo com uma dupla preocupação. Por um lado, certos setores da opinião pública dos países ocidentais adotam uma posição muito crítica em relação a determinadas medidas dos órgãos de persecução penal3 tidas como abusivas. Por outro lado, há a preocupação – aparentemente muito maior que a anterior – em relação à existência de um “excesso de garantias”, as quais induzem uma passividade dos órgãos de persecução penal e da jurisdição penal4. Neste sentido, serve como exemplo significativo a seguinte reflexão de Reinares, segundo o qual: as diferenças entre a perspectiva policial e a jurídica “[...] *

Traduzido do original em espanhol (Algunas reflexiones preliminares sobre los delitos de terrorismo: eficacia y contaminación) sob permissão expressa do autor. 1 Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); bacharelando em Economia pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); editor da Panóptica – Revista Eletrônica Acadêmica de Direito. 2 Bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); editor da Panóptica – Revista Eletrônica Acadêmica de Direito. 3 A opinião pública espanhola se mostra muito mais crítica (talvez) em relação à atuação das forças de segurança espanholas (ou de Estados estrangeiros) do que em relação às resoluções judiciais de tribunais espanhóis; não é segredo, em todo caso, o processo de redução de tais manifestações críticas nos últimos trinta anos na Europa ocidental. 4 Recorde-se a sensação de alarme generalizada que se tem produzido ultimamente em várias ocasiões ante a proximidade da libertação por cumprimento de condenação de determinados integrantes do ETA, condenados por delitos especialmente graves.

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gera[m] não poucas tensões que afetam o conjunto de uma política governamental antiterrorista suscetível de oscilações, conforme a conjuntura, entre o defeito e o excesso. Há, por uma parte, certa tendência a tornar trivial o terrorismo, reduzindo-o a uma existência meramente criminal, negando ou minimizando sua vinculação a situações de conflitos políticos e rechaçando qualquer tratamento específico do fenômeno que se distancie das previsões legais comuns. Por outra parte, há atitudes inclinadas a exagerar as dimensões das ações terroristas e a justificar um uso desproporcional da força estatal no controle da violência”5. É esta mesma tensão inserida no tratamento jurídicopenal nas condutas terroristas que se encontra no preâmbulo da DecisãoPadrão do Conselho da União Européia sobre a luta contra o terrorismo6: enquanto que em seu segundo considerando é afirmado – reconhecendo a chamada Declaração de Gomera – que “o terrorismo constitui uma ameaça à democracia, ao livre exercício dos direitos humanos e ao desenvolvimento econômico e social”7, o considerando número dez sublinha, de modo surpreendente e rotundo – provocando a imediata recordação do aforismo excusatio non petita ... –, que “a presente Decisão-padrão respeita os direitos fundamentais tais como estão garantidos pelo Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-membros, como princípios de direito comunitário. [...] Nada do que estiver disposto na presente Decisão-padrão poderá ser interpretado como uma intenção de reduzir ou obstaculizar direitos ou liberdades fundamentais [...]”8. 5

Terrorismo y antiterrorismo, 1998, p. 148. N.T. “[...]genera[n] no pocas tensiones que afectan al conjunto de una política gubernamental antiterrorista susceptible así de oscilar, de acuerdo con la coyuntura, entre el defecto y el exceso. Entre, por una parte, cierta tendencia a trivializar el terrorismo, reduciéndolo al orden de lo meramente criminal, negando o minimizando así su vinculación a situaciones de conflictividade política e rechazando cualquier tratamiento singularizado del fenómeno que se distancie de los supuestos legales ordinarios. Por otra, actitudes inclinadas a exagerar las dimensiones del accionar terrorista y proclives a justificar un uso desproporcionado de la fuerza estatal en el control de dicha violência”. 6 De 13 de junho de 2002 (= DM-T; DOCE de 22.6.2002). 7 N.T. “el terrorismo constituye una amenaza para la democracia, para el libre ejercicio de los derechos humanos y para el desarrollo económico y social”. 8 N.T. “La presente Decisión marco respeta los derechos fundamentales tales como están garantizados por el Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y las Liberdades Fundamentales, y tal como resultan de las tradiciones constitucionales comunes a los Estados miembros, como principios de derecho comunitario. [...] Nada de lo dispuesto en la

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II. EFICÁCIA PREVENTIVA. Se o debate em torno do conceito (geral) do “Direito penal” do inimigo9 para as infrações terroristas tem mostrado algo, é que o melhor argumento a favor das regras completamente distintas para os inimigos (terroristas) está – paralelamente ao que acontece em outros setores de regulação envolvidos nesta evolução político-criminal, aqui com uma bem maior intensidade – na questão da periculosidade dos atos terroristas e na consequente necessidade de sua prevenção instrumental10, porque fonte de perigo especialmente significativa11.

Nas palavras do atual Ministro federal alemão do interior: “na luta contra o terrorismo temos que nos utilizar efetivamente de todos os instrumentos que estão à disposição do terrorismo. O Direito penal é parte de uma incumbência de segurança do Estado de prevenção. Temos que combater o terrorismo, também com o Direito penal, desde o seu início, e não apenas quando já tiverem ocorrido atentados”12.

Aqui, na esfera do terrorismo, resta, portanto, resumida toda a problemática de um modo que se pode denominar de terminal em comparação com o emprego

presente Decisión marco podrá interpretarse como un intento de reducir u obstaculizar derechos o libertades fundamentales [...]”. 9 Vide apenas as diversas aproximações reunidas em CANCIO MELIÁ/GÓMEZ-JARA DÍEZ (coord.), Derecho penal del enemigo. El discurso penal de la exclusión, na imprensa para editoriais Edisofer, Madrid, y BdeF, Buenos Aires, 2 vol., 2006. 10 Vide em Alemanha Jakobs, em: idem/Cancio Meliá, Derecho penal del enemigo, 1ª ed., 2003, p. 42; também idem, ZStW 117 (2005), p. 847; no mesmo sentido Roellecke, JZ 2006, pp. 265 e ss., 269; Schäuble, ZRP 2006, p. 71; chega a estas conclusões, porém partindo de uma posição oposta, por exemplo, Albrecht, ZStW 117 (2005), p. 855. 11 Conforme, por exemplo, em termos mais gerais, SILVA SÁNCHEZ (em: La expansión del Derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2ª ed., 2001, p. 163): "fenómenos... que amenazan con socavar los fundamentos últimos de la sociedad constituida en Estado"; "reacciones ceñidas a lo estrictamente necesario para hacer frente a fenómenos excepcionalmente graves" (ibid., p. 166). 12 SCHÄUBLE, ZRP 2006, p. 71; este discurso é uma verdadeira apoteose ao chamado “Estado de prevenção”; vide por todos DENNINGER, KJ 1988, pp. 1 e ss. N.T. “En la lucha contra el terrorismo tenemos que hacer uso efectivo de todos los instrumentos que están a disposición del terrorismo. El Derecho penal es parte de una misión de seguridad del Estado deorientación preventiva. Tenemos que combatir el terrorismo, también con el Derecho penal, allí donde comience a ser peligroso, y no sólo una vez que se hayan producido atentados”.

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desta argumentação em outros âmbitos, pelas dimensões apocalípticas que assume quase sempre no discurso público a referência à periculosidade dos terroristas: perante as maneiras completamente ilimitadas que se tem apresentado o mais recente terrorismo de inspiração político-religiosa de orientação islâmica, condensados nos atentados de 11 de setembro de 2001, de 11 de março de 2004 e de 7 de julho de 200513, a questão que se põe é, nada mais nada menos, a de que se a nossa sociedade está disposta a sucumbir diante dos riscos advindos do terrorismo, ou se estará preparada para assumir restrições em suas liberdades14.

Sem embargo, no plano empírico da eficácia preventiva ante esses riscos terminais, a experiência em outros países de dimensões como as nossas com organizações terroristas surgidas nos anos sessenta e setenta do século XX mostra, segundo algumas vozes na discussão, que a aplicação de sanções específicas para terroristas – em geral com processos de reforma postos em marcha em momentos de especial crise pelo cometimento de atos significativos – não tem ajudado a evitar delitos, e sim contribuído, por exemplo, para atrair novos militantes para as organizações em questão, retardando em certa medida o processo de dissolução endógeno15. Falta, portanto, um verdadeiro argumento de peso a essa discussão?

Deve-se, assim, partir da premissa de que é muito difícil avaliar qual a verdadeira finalidade da existência de determinadas regras jurídico-penais (conquanto pareça razoável pensar que se poderá quantificar a influência da organização dos

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Caso sejam examinadas as páginas que LAQUEUR dedica em uma obra geral sobre o terrorismo na Europa em 1992 (Europe in Our Time. A History 1945-1992, pp. 446 e ss.), muito chama a atenção a tranqüilidade de espírito com a qual é examinado o fenômeno em comparação com as imagens de fundo que são apresentadas sobre estes momentos. 14 Vide a formulação dramática de JAKOBS (em: JAKOBS/CANCIO MELIÁ, Derecho penal del enemigo, 2ª ed., 2006, pp. 75 y s.): “…quien defienda la posición de que en el Estado de Derecho siempre todo debe convertirse en realidad, debería saber que aquel ‘todo’ en la realidad concreta se ve acompañado por un ‘o nada’”. 15 Esse parece ser o caso, em particular, na República Federal da Alemanha, desde a "primeira geração" da “Facção do Exército Vermelho” [RAF, Rote Armee Fraktion] até os sucessivos movimentos de membros desse grupo terrorista; conforme, por exemplo, Dencker, StV 1987, pp. 117 e ss.; Düx, ZRP 2003, pp. 191 e s.; sobre o caso paralelo da legislação anti-máfia, por todos MOCCIA, La perenne emergenza, 2ª ed., 1997, pp. 53 e ss.

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serviços de polícia preventiva16): esta questão, tal qual em outros âmbitos de regulação, subtrai-se de afirmações empíricas de certa consistência17.

Por outro lado, não se deve deixar de sublinhar que as questões sobre a prevenção negativa e sobre a eficiência da persecução penal se apresentam de um modo completamente diverso do que é comum (de se dizer: muito pior18) quando se trata de terroristas suicidas19 de orientação religiosa20, organizados em pequenos grupos de ação autônomos, apesar de possuir conexões transnacionais21. Neste sentido, em razão de suas formas de organização na atualidade, se tem dito, com efeito, que sua estrutura obedece mais ao modelo de franquia orientada em um sistema de nós sem a hierarquia vertical “clássica”22 16

Vide os perturbadores dados que oferece SCHEERER (Die Zukunft des Terrorismus. Drei Szenarien, 2002, pp. 67 e ss.) sobre o quão concretas que eram previsões de especialistas de diversos âmbitos a respeito de um iminente atentando como os ocorridos no 11.9.2001. 17 Certamente, esta é uma constatação que pode ser utilizada de duas maneiras (doble uso): a de – como aqui se faz – sublinhar que não existem evidências de em que medida a intensificação de uma punição tem efeitos preventivo-fáticos, e a de que não se pode saber se a tal eficácia preventivo-fática de uma exacerbação não exista, como assinala BENLLOCH PETIT, ADPCP 2001, p. 222; de fato, este seria um caso claro de prova diabólica (probatio diabolica). Isto não muda em nada o fato de que quem alega a necessidade de intervenção para fins de prevenção talvez tenha mais razão para pretender fundamentar a eficácia de uma determinada opção de aumento da punibilidade. 18 SCHÜNEMANN em HEGER, ZStW 117 (2005), p. 882, afirma que neste âmbito o Direito penal fracassa. 19 Um modo de ação de especial poder propagandístico dentro do “campo” do terrorista, uma vez que “[…] el rol del mártir integra las mejores virtudes de los otros dos estereotipos…: el de las víctimas y el de los héroes o guerreros” (DE LA CORTE, em: BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid 11-M. Un análisis del mal y de sus consecuencias, 2005, p. 204). Em todo caso, como sublinha AULESTIA URRUTIA, Historia general del terrorismo, 2005, p. 237 e ss., deve-se diferenciar origens e orientações diversas dentro do que se poderia denominar terrorismo suicida e não perder de vista que é um fenômeno novo (op. cit., pp. 239 e ss.). 20 Sobre este fenômeno, desde uma perspectiva histórica e geral, ELORZA/ BALLESTER/ BORREGUERO, em: BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid 11-M, pp. 43 e ss., 45 e ss., 55 e ss.; LUTZ/LUTZ, Global Terrorism, 2004, pp. 63 e ss., respectivamente, com posteriores referências; especificamente sobre as perspectivas de legitimação interna do terrorismo moderno que invoca o Islã, vide DE LA CORTE, em: BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid 11-M, pp. 189 e ss., 194 e ss. 21 Sublinha o risco das novas formas de terrorismo, por exemplo, REINARES, Terrorismo y antiterrorismo, pp. 211 e ss. 22 De fato, o normal é se referir a estas organizações, em particular, a Al Qaeda, como “rede”; vide LUTZ/LUTZ, Global Terrorism, pp. 82 e ss.; DE LA CORTE/JORDÁN, La yihad terrorista (na imprensa ed. Síntesis), cap. 6, respectivamente, com referências posteriores. Sobre as mudanças nos modos de atuação e organização desse novo terrorismo vide ALONSO, em: BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid 11-M, pp. 113 e ss., 123 e ss., 128 e ss.; especialmente em relação à rede estabelecida na Espanha que organizou os atentados do dia 11.3.2004 em Madrid, JORDÁN, em: BLANCO/DEL AGUILA/SABUCEDO, Madrid 11-M, pp. 79 e ss., 83 e ss. (conforme o quadro, especialmente significativo por suas diferênças radicais com um organograma clássico, na p. 85), 89 e ss., 97 e ss., 101 e ss.; DE LA CORTE/JORDÁN, La yihad terrorista, cap. 7.3,

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como a dos grupos aos quais se fez referência anteriormente, adaptada da estrutura dos exércitos dos Estados ou dos partidos políticos de orientação leninista de vanguarda23. Parece claro que, no caso desses grupos, resultaria impossível desarticular – usando tão-só meios de persecução criminal a longo prazo – uma organização multicêntrica e sem uma verdadeira estrutura funcional em seu conjunto.

Em todo caso, o reconhecimento das dificuldades no plano da eficácia preventiva que suscita de modo específico o âmbito dos delitos de terrorismo não implica que se tenha de propor a retirada do ordenamento penal do específico tratamento destas infrações24. Significa apenas que a fundamentação acerca da especificidade das infrações terroristas não pode descansar exclusivamente no espiral interminável da “necessidade” preventivo-fática. E para isso, parece se ter em conta que a função do delito terrorista é estratégia de comunicação, como provocação do poder25.

III. AÇÃO E REAÇÃO. Com efeito, no balanço da “eficácia” deve-se considerar que a mera existência do Direito penal do inimigo nesse âmbito pode representar – e isto deveria ser óbvio – em algumas hipóteses um êxito parcial, precisamente, para o “inimigo”, cujas atitudes, como é sabido, têm um papel decisivo nas ações repressivas que pretendem provocar, basta atingir a finalidade de sua estratégia, a rebelião popular26.

respectivamente, com referências posteriores. 23 Vide LUTZ/LUTZ, Global Terrorism, pp. 116 e ss., com referências posteriores. 24 Como parece entender, por exemplo, BENLLOCH PETIT, ADPCP 2001, pp. 205 e ss., 213 e ss., quem relaciona diretamente a avaliação crítica da eficácia com a opção por soluções de negociação. 25 Esta é uma tese estendida à oportunidade de compreender o terrorismo no campo das ciências sociais; vide, por exemplo, WALDMANN, Terrorismus. Provokation der Macht, 1998, pp. 27 e ss., com referências posteriores. 26 Conforme LAQUEUR, A History of Terrorism, p. 50; conferir, por exemplo, também a análise de SCHEERER, Zukunft des Terrorismus, pp. 34 e ss., 50 e ss., quando recorda que a estratégia do terrorismo não estatal consiste desde suas origens sobretudo em alcançar a hegemonia em seu “próprio campo” por meio da ação-reação; vide também TERRADILLOS BASOCO, Terrorismo y Derecho. Comentario a las LL.OO. 3 y 4/1988, de reforma del Código Penal y de la Ley de

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Nesse sentido, um Direito penal exacerbado – tal qual uma gestão inadequada devido ao excesso de atividades preventivas das forças policiais – pode se converter em um fator que aumente as infrações terroristas ao se integrar no esboço da ação das organizações: “[...] como não se pode ignorar, uma prática comum na estratégia das organizações terroristas consiste em induzir o Estado de Direito a entrar em conflito consigo mesmo, a fim de que recorra a medidas excepcionais”27. A mesma idéia, superando grandes óbices derivados de divergências na tradição jurídica, pode ser expressada nas (já famosas, apesar de recentes) palavras de Lorf Hoffmann, membro da Câmara dos Lordes britânica, incorporadas no parecer da Lei antiterrorista britânica de 2001, segundo o qual esta, na forma como foi aprovada pelo Parlamento, seria incompatível com a Constituição britânica: “tal faculdade [de detenção sem prazo e sem existência de indícios juridicamente verificados], de qualquer forma, não é compatível com nossa Constituição. A verdadeira ameaçã à vida da nação, considerada esta como um povo vivendo de acordo com suas leis e valores políticos tradicionais, não provém do terroristmo, e sim de leis como estas. Esta é a verdadeira medida do que o terrorismo pode chear a ser. É o Parlamento quem deve decidir se dará aos terroristas tal vitória28.

Por fim, os argumentos que têm como base tão-somente as notas de proteção, de eficiência preventiva, de reação frente à periculosidade terminal dos Enjuiciamiento Criminal, 1988, p. 21; ASÚA BATARRITA, em: Area de Derecho penal (ed.)/ECHANO BASALDÚA (coord.), Estudios jurídicos en Memoria de José María Lidón. Catedrático de Derecho penal de la Universidad de Deusto. Magistrado de la Audiencia Provincial de Bizkaia, 2002, p. 47: “La anatemización indiscriminada de los métodos violentos y de su ideología favorece las tesis de quienes optan por el método del terror, en su propósito de ser identificados y nombrados por sus ideas y no por sus crímenes”. 27 Voto particular (magistrados MARTÍN PALLÍN, GIMÉNEZ GARCÍA, ANDRÉS IBAÑEZ) à STS 197/2006, de 20.2.2006, nono in fine. N.T. “[...] como nadie ignora, una práctica común en la estrategia de las organizaciones terroristas consiste en inducir al Estado de derecho a entrar en esa destructiva forma de conflicto consigo mismo que representa el recurso a medidas excepcionales”. 28 [2004] UKHL 56, para. 97 (Lord Hoffmann), sem grifos no original. On appeal from: [2002] EWCA Civ 1502 A (FC) and others (FC) (Appellants) v. Secretary of State for the Home Department (Respondent) X (FC) and another (FC) (Appellants) v. Secretary of State for the Home Department (Respondent), de 16.12.2004. Conferir o texto completo da resolução em: http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200405/ldjudgmt/jd041216/a&oth-1.htm; a passagem da argumentação de Lord HOFFMANN, em: http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200405/ldjudgmt/jd041216/a&oth-6.htm.

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fenômenos terroristas pede, tanto no campo do Direito penal antiterrorista como em outros, muito do Direito penal. Ademais, no caso do Direito penal das infrações terroristas, algumas formas de interveção podem ser inclusive contraproducentes porque são precisamente um dos objetivos imediatos daqueles que cometem os delitos em questão: “o terrorismo só funciona se houver em seu oponente um cúmplice oculto. A estratégia da tensão precisa de um inimigo que reaja como estava planejado: com indignação moral e dura repressão, como resposta. Precisa também de um inimigo que se converta em cúmplice funcional, assumindo um marco em que possa ocorrer o conflito”29.

IV. CONTAMINAÇÃO. Em todo caso, é difícil que se possa isolar para uma análise “eficientista” apenas a questão da efetividade preventiva: com efeito, é um autêntico lugar comum a idéia de que dentro desse balanço dever-se-ia ter em conta, de modo muito especial, que normas com tais características tendem a contaminar outros âmbitos de incriminação – como mostram vários exemplos históricos30 –, de modo que há boas razões para pensar que é ilusória a imagem dos setores do Direito penal (o Direito penal de cidadãos e o Direito penal de inimigos) que possam compartilhar espaço vital em um mesmo ordenamento jurídico: “[...] o mais grave da legislação antiterrorista [...] é a da imagem distorcida de que será aplicada exclusivamente aos terroristas”31.

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SCHEERER, Zukunft des Terrorismus, p. 139 (grifos no original); vide também ASÚA BATARRITA (em: LH Lidón, p. 47): “El discurso terrorista necesita de la polarización, busca la simplificación de la designación del Bien y del Mal”; por conseguinte, fala a autora sobre um “contágio” do discurso do Estado pelas organizações terroristas quando a questão é situada nos mesmos termos. N.T. “El terrorismo sólo funciona si halla en su oponente un cómplice encubierto. La estrategia de la tensión necesita un enemigo que reaccione como estaba planificado: con escalada retórica, indignación moral y dura reprresión. Necesita un enemigo que también se convierta en cómplice funcional asumiendo un marco susceptible de escalada para el conflicto”. 30 Vide, por exemplo, TERRADILLOS BASOCO, Terrorismo y Derecho, pp. 33, 56: “innegable vocación expansiva”. 31 Assim BUSTOS RAMÍREZ, em: LOSANO/MUÑOZ CONDE, El Derecho ante la globalización y el terrorismo. ‘cedant arma togae’. Actas del Coloquio internacional Humboldt, Montevideo abril 2003, 2004, resumindo o perigo para a segurança juridica, pp. 403 e ss., 406 e s., pp. 408. N.T. “[...] lo más grave de la legislación antiterrorista [...] es que da la imagen distorsionada de que se va a aplicar sólo y exclusivamente a los terroristas”.

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De fato: o argumento do controle mediante justificação de que se utilizam aqueles que se mostram partidários de setores de regulação assim caracterizados não pode prevalecer. Nesse contexto, poder-se-ia pensar em uma espécie de tese dos vasos comunicantes: quanto menos limitado o Estado de Direito, menos crimes de Estado nas fossas – ainda que, no que se pode visualizar, tal argumento não seja bem trabalhado, parece provável que se tome implicitamente em consideração – deve-se descartar de plano: uma vez que quase não existe aqui evidência empírica indicativa de que os Estados que relaxam determinados critérios de imputação – ou precisamente por isso – optam por um menor nível de atuação ilegal mediante mecanismos juridicamente mais sombrios (serviços de inteligência ou órgãos militares), há indícios de que pode acontecer o contrário (ao menos, se pode afirmar isso com a mesma justificativa ou falta de que da tese de controle por justificação). Pensa-se apenas, no momento atual, na convivência, dentro da política dos E.U.A., do reconhecimento de zonas de intervenção sobre sujeitos sem direitos formais (a doutrina dos enemy combatants como terceiros ao lado de delinquentes e prisioneiros de guerra)32 não tem obstado a existência de incontáveis e secretas zonas de atuação (um exemplo atual é o das transferências a centros de tortura situados em terceiros países investigados neste momento pelo Parlamento Europeu no que se refere a seu trânsito pelo territória da UE33. E um exemplo paradigmático da convivência entre um Direito penal (formal) de combate e a atuação de diversos serviços parapoliciais é oferecido pela várias didaturas históricas34.

Portanto, parece que o prognóstico mais razoável é o contrário: o de que não podem conviver pacificamente porque a presença de uma regulação em termos de Direito penal do inimigo acaba estendendo sua lógica muito além do campo de regulação inicial. É óbvio que esse mecanismo também pode ser utilizado de 32

Vide as amplas referências contidas em: http://web.amnesty.org/pages/guantanamobayindex-eng. 33 Conferir a minuto informativa do deputado Fava em: http://www.statewatch.org/cia/reports/epcia-interim-report-english.pdf. 34 Sobre a convivência e mistificação progressiva do sistema jurídico-penal formal e o aparato de repressão informal no caso do regime nazista, vide MARXEN, em: DIESTELKAMP/STOLLEIS, Justizalltag im Dritten Reich, 1988, pp. 101 e ss.; STAFF, Justiz im Dritten Reich. Eine Dokumentation, 1978, pp. 54 e ss., 58 – reconhecendo uma ordem de “detenção para proteção” [Schutzhaft] pela polícia política depois do cumprimento da pena formal imposta –, pp. 59 e ss.).

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modo consciente para fins políticos: “a sem dúvida desejável persecução penal dos delitos de terrorismo se converte [...] em uma excelente cartada para introduzir no ordenamento jurídico-penal uma série de normas excepcionais, perfeitamente desnecessárias para a atuação do aparato coercitivo, apesar de perfeitamente úteis para se acostumar com uma flexibilidade nas garantias do Estado de Direito [...]”35. Nesse sentido, resulta como padrão a seguinte consideração de MANZANARES SAMANIEGO36, que convém transcrever: “ocorre, sem embargo, que o problema não se circunscreve ao terrorismo. O terrorista de dezessete anos continua a ser, e o é antes de tudo, um terrorista, e algo similar deve-se observar sobre os outros deliquentes. Também um estuprador é sempre um estuprador e um parricida é sempre um parricida, o que não impede que se lhes aplique um regime comum de responsabilidade menos grave por sua menoridade. O agravamento da resposta penal aos terroristas de idade próxima aos dezoito anos não é apenas um imperativo de justiça e defesa social, senão também uma consequência da generalizada leniência do legislador espanhol nessa matéria. Com a reforma parcial virão as reprimendas pelo trato discriminatório de acordo com a natureza do delito”37.

V. UM PONTO DE PARTIDA. Tão breves considerações conduzem a um ponto de partida muito simples, mas de extraordinária importância para um debate racional nesse âmbito: não se deve presumir que o Direito penal antiterrorista possa prevenir com eficácia as 35

GÓMEZ BENÍTEZ, CPC 16 (1982), p. 81. N.T. “La indudablemente deseable persecución penal de los delitos de terrorismo se convierte [...] en una excelente coartada para introducir en el ordenamiento jurídico-penal una serie de normas excepcionales, perfectamente innecesarias para la actuación del aparato coactivo, pero perfectamente útiles para introducir un hábito de flexibilidad en las garantías del Estado de derecho [...]”. 36 Em: AP 2000-3, p. 1016 (referida à reforma da LRPM incorporada à DA 4ª, na qual se introduz um regime específico para os autores de infrações terroristas). 37 N.T. “Ocurre, sin embargo, que el problema no se circunscribe al terrorismo. El terrorista de diecisiete años sigue siendo, y lo es ante tdo, un terrorista, pero algo similar debe predicarse de los restantes delincuentes. También un violador es siempre un violador y un parricida es siempre un parricida, lo que no empece para que se les aplique un régimen común de responsabilidad atenuada por su minoría de edad. La agravación de la respuesta penal a los terroristas de edad próxima a los dieciocho años no es solo un imperativo de justicia y defensa social, sino también una consecuencia de la generalizada lenidad del legislador español en esta materia. Con la reforma parcial vendrán los reproches por el trato discriminatorio según la naturaleza del delito”

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infrações que reprime, nem se deve olvidar os custos de contaminação que uma determinada orientação de sua regulação possa ocasionar.

Informação Bibliográfica: CANCIO MELIÁ, Manuel. Reflexões preliminares sobre os delitos de terrorismo: eficácia e contaminação. Trad. Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira e Bruno Costa Teixeira [Algunas reflexiones preliminares sobre los delitos de terrorismo: eficacia y contaminación]. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 8, maio – jun., 2007, p. 190-200. Disponível em: . Bibliographical Information: CANCIO MELIÁ, Manuel. Reflexões preliminares sobre os delitos de terrorismo: eficácia e contaminação. Translated by Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira e Bruno Costa Teixeira [Algunas reflexiones preliminares sobre los delitos de terrorismo: eficacia y contaminación]. Panóptica, Vitória, year 1, nr. 8, May June, 2007, p. 190-200. Available in: .

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