Tradutora – profissão ou jeito de ser?

May 28, 2017 | Autor: Karen Currie | Categoria: Teaching and Learning, Multiple Intelligences
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CURRIE, K. L. Tradutora – profissão ou jeito de ser? In. DePaula, L. (org)
Tradução: uma fonte para o ensino. Vitória, ES, Brasil: EDUFES, 2007, p. 75-
86.

Tradutora – profissão ou jeito de ser?
Karen L. Currie, DLL, UFES

Para começar, gostaria de afirmar que não me considero 'tradutora' no
sentido profissional da palavra. Não trabalho com a disciplina 'tradução'
no curso de Letras, não faço tradução de documentos e nunca aceitei fazer
uma tradução simultânea de palestra ou coisa semelhante relacionada às
atividades de intérprete. Entretanto, ao ser convidada a participar na
série de palestras promovida pelo Núcleo de Pesquisas em Tradução e Estudos
Interculturais da UFES, comecei a perceber que talvez a palavra traduzir
poderia representar uma maneira de ser e é esta possibilidade que gostaria
de explorar agora.
Nasci na Escócia, várias décadas atrás, portanto sou falante nativa
da língua inglesa (evidentemente com pronúncia escocesa), e desde pequena
convivi com a variação lingüística dentro da própria casa. A minha mãe era
da cidade capital do país (Edimburgo), com graduação em direito, uma
advogada praticante, muito consciente das coisas 'certas' – e sempre
enfatizava a maneira certa de falar! Enquanto o meu pai nasceu na pequena
cidade rural onde a nossa família sempre morou. Começou a trabalhar com 14
anos de idade como ajudante de entalhador (ou 'escultor') de pedras[1].
Depois se formou na prática como arquiteto, ainda falando com seu sotaque
regional, e com seus amigos, ou com qualquer pessoa da região local, usava
um dialeto escocês bem mais 'forte'. Dado o desejo enfático da minha mãe de
educar seus filhos a falar uma linguagem mais culta, o dialeto local era
proibido dentre de nossa casa, e quando meu pai batia papo com seus amigos
era muito difícil para mim traduzir o que estavam falando – uma situação
sociolingüística muito interessante!
Lembro muito bem quando meu pai recitava as poesias de Robert Burns
(1759-1796), um poeta de renome internacional, nascido na mesma região, que
escrevia no dialeto local de sua época. Ao ouvir meu pai falando aquelas
palavras desconhecidas, estranhas, com uma sonoridade e ritmo muito
diferente da língua da minha casa, ele se deliciando com a mensagem e o
sentimento, apreciando as referências múltiplas, o significado daquelas
palavras ... eu, perdida, entendia alguma palavra ou outra, consciente de
que a mensagem estava opaca, escondida por trás de um emaranhado de sons
intraduzíveis. Que frustração! Mas, quem sabe, talvez fosse esta
experiência da minha juventude que me impulsionou a estudar línguas e
literatura durante uma grande parte da minha vida! Segue um pequeno trecho
de uma das poesias sempre declamadas no dia 25 de janeiro, o aniversário do
poeta, para dar as boas vindas ao prato principal do jantar – o
'haggis'[2]. Ofereço essas linhas como desafio para o leitor tradutor!
Fair fa' your honest sonsie face,
Great chieftan o' the pudding-race!
Aboon them a' ye tak your place,
Painch, tripe or thairm:
Weel are ye wordy of a grace
As lang's my arm. ('Address to a Haggis', de
Robert Burns)


Sempre gostei muito de música e comecei a estudar piano durante os
anos da escola primária e participava sempre no coral – que ganhava várias
medalhas nas competições regionais. Logo percebi a união muito forte entre
música e linguagem. Na escola de segundo grau, optei por estudar francês,
alemão e até latim, prestando muito mais atenção nos sons e no ritmo das
línguas de que na estrutura gramatical! Mas quando procurei explorar
possíveis relações entre a sonoridade da lingua e a melodia musical no meu
pré-projeto para a monografia na área de literatura de língua inglesa no
final do segundo grau – meu projeto foi rejeitado! Após a minha
participação numa apresentação de sua obra Ceremony of Carols[3], eu queria
analisar o ritmo e entonação das poesias utilizadas pelo compositor
Benjamin Britten (1913-1976) na sua obra Serenade for Tenor, Horn and
Strings[4] – poesias de Lord Alfred Tennyson (1809-1892), William Blake
(1757-1827), Ben Johnson (1572-1637) e John Keats (1795-1821). Eu queria
saber de que forma a declamação das poesias na língua falada tinha sido
traduzida para a partitura musical. Mas o Departamento de Literatura
decidiu que estudos inter- ou multi-disciplinares não seriam aprovados!
Entretanto, durante o meu curso de graduação na Universidade de
Edimburgo, descobri a fonética experimental que me fornecia ferramentas
fascinantes para continuar as minhas análises da sonoridade da fala. As
máquinas da época (dos anos '70!) funcionavam muito bem com a voz masculina
e a maioria dos estudos sobre as características sonoras da fala se baseava
em gravações de falantes masculinos do dialeto RP[5]. Sendo assim, eu
comecei a pesquisar de que forma era possível traduzir as falas masculinas
em falas femininas, e utilizei as poesias de Robert Burns (aquele poeta
predileto do meu pai) como fonte para as minhas gravações e análises.
Quantas vezes eu ouvia as linhas: "Wee sleekit, cowrin, tim'rous beastie,
O, what a panic's in thy breastie! Thou need na start awa sae hasty Wi'
bickering brattle! I wad be laith to rin an' chase thee, Wi' murdering
pattle!"[6]
Depois de completar o mestrado, foi convidada a trabalhar num projeto
de pesquisa sobre entonação, ainda na Universidade de Edimburgo. A proposta
original da Coordenadora (Drª Gillian Brown) era de investigar a entonação
de diferentes dialetos escoceses para descobrir se a descrição padrão da
entonação do dialeto RP poderia ser aplicada aos dialetos escoceses. Após a
coleta de dados, muitas análises, e uma série de experiências, descobrimos
que a tradução do sistema tradicional baseado no dialeto RP para o sistema
escocês era muito mais complexa que imaginávamos. Aliás, o sistema
tradicional descrito por autores de renome como Crystal (1969) e Halliday
(1970) ainda está sendo discutido (Brown et al, 1981, McCarthy (1991) e
Ladd (1996) entre outros).
Completado o doutorado, já era a hora de aprender uma língua 'de
verdade', e após a minha mudança para Brasil em 1979, comecei, de fato, a
adquirir uma segunda língua – por imersão. Não consegui aprender esta
língua que me cercava por meio dos livros didáticos, preferi aprender na
feira, assistindo novelas, ouvindo músicas, tentando participar nas
conversas na minha volta! Percebe-se que a minha preferência para a
modalidade oral da língua ainda estava forte, e, de fato, só comecei a
escrever em português quando iniciou a minha participação num projeto de
formação em serviço coordenado pela Drª Euzi Moraes. Trabalhávamos com
professoras primárias da rede pública (estadual e de vários municípios)
focalizando o tema 'alfabetização'. Mais uma vez a sonoridade da fala
estava em foco – as tentativas de escrita produzidas pelos alunos que
estavam aprendendo a ler e escrever apresentavam características
fundamentadas na fonética, na pronúncia da fala. Comecei a escrever
pequenos artigos sobre nosso trabalho e dessa forma conhecer melhor o
processo de escrita – a tradução do pensamento para a formalidade da língua
escrita. Não é tarefa fácil, exige diálogos intermináveis com escritores
mais experientes e com pré-leitores[7] extremamente pacientes! Mas esse
contato com o mundo da alfabetização me ofereceu muitas oportunidades não
só para desenvolver a minha capacidade de escrever numa segunda língua como
também para investir em leituras das mais variadas. Eu precisava
compreender o processo de escrita e de leitura, portanto lia livros
acadêmicos sobre esses assuntos (nas duas línguas, é lógico!). Também era
necessário convencer as professoras da necessidade de investir na sua
própria leitura, portanto comecei a procurar livros interessantes que
poderiam estimular o gosto pela leitura nos professores e nos alunos –
quantas malas de livros eu carreguei por este estado a fora! Mas que fase
fascinante!
Sou (e sempre fui) leitora assídua, adoro me transportar para mundos
desconhecidos, explorar os pensamentos de outras épocas, de culturas
alheias. Quero compreender o outro, quero traduzir a sua experiência,
compará-la com a minha, conhecer outras verdades. E a leitura (mesmo na
língua nativa) já oferece inúmeras oportunidades para investimentos desse
tipo. Entretanto, quando comecei a analisar o significado desses desejos,
parecia que o objetivo principal da leitura estava fortemente ligado ao
processo de aprendizagem. Por exemplo, Cambourne (1988), escrevendo sobre a
alfabetização, afirma que "é absolutamente essencial aceitar aproximações
no processo de aprendizagem de uma língua, porque é esta disposição que
impulsiona o ciclo 'hipótese, experimentação, modificação da hipótese
original, nova experimentação' que é típico de qualquer processo de
aprendizagem[8]" (1988: 38, tradução nossa). Portanto, quando modificamos
qualquer hipótese original, significa que aprendemos alguma coisa. E cada
vez que lemos um bom livro, alguma coisa é modificada na nossa cabeça –
aceitamos o convite a conhecer outras realidades, outras formas de pensar,
aprendemos algo. Mas, quando vivemos apenas no 'nosso' pequeno mundo
limitado, quando rejeitamos oportunidades de investigar o desconhecido,
estamos rejeitando oportunidades de aprender. Sendo assim, o desejo de
compreender o desconhecido leva inevitavelmente à ampliação do
conhecimento. Quando procuramos traduzir o mundo do outro, nos aproximar a
uma realidade diferente da nossa, demonstramos a nossa disposição para a
aprendizagem. E quando decidimos investir na aprendizagem de línguas,
diferentes da língua materna, as possibilidades de aprendizagem aumentam
enormemente.
O ato de ler envolve a aproximação entre o mundo do autor e o mundo do
leitor, e o sucesso da comunicação depende fortemente na interpretação dos
esquemas mentais ativados pelo texto (Nuttall, 1996). Para garantir a
compreensão, o leitor precisa compartilhar com o autor conhecimentos
específicos sobre o mundo, construídos através da experiência. Um 'esquema'
se refere a uma estruturação mental, portanto abstrata, das experiências
vividas, e às relações que existem entre os diversos componentes dessa
estrutura. Como afirmam Carrell e Eisterhold (1988: 76, tradução nossa):
(...) de acordo com a teoria de esquemas, o texto oferece
apenas direcionamentos para ouvintes ou leitores que
indicam como devem resgatar ou construir significados com
base no seu próprio conhecimento previamente adquirido.
Este conhecimento previamente adquirido é chamado
conhecimento de fundo, e as estruturas que organizam esse
conhecimento previamente adquirido são chamadas esquemas.
[9]


Assim, quando interpretamos um texto, existe um processo interativo entre o
conhecimento construído previamente pelo leitor e o texto produzido pelo
autor. Os esquemas construídos com referência ao conteúdo previamente
organizado vão permitir que o leitor utilize seu conhecimento sóciocultural
para interpretar um texto e se o leitor não possui o conhecimento
específico necessário, ele não vai conseguir ativar esquemas apropriados
para a construção do significado do texto.[10] Devemos lembrar também, que
mesmo quando o leitor ative seus esquemas existentes, nem sempre aqueles
esquemas ativados pelo leitor são os mesmos do autor. Carrell e Eisterhold
explicam o que acontece nessa situação:


(A) falha por parte do leitor, quando não consegue ativar
um esquema apropriado, pode surgir [...] porque o leitor
não possui o esquema apropriado previsto pelo autor, e por
esta razão não consegue compreender o texto. [...] existe
uma falha entre o que o autor considera que o leitor é
capaz de fazer para extrair significado do texto e o que o
leitor consegue fazer de fato. Os esquemas apropriados
precisam existir e precisam ser ativados durante o
processamento do texto.[11] (1988: 80, tradução nossa)


Dessa forma, uma interpretação bem sucedida de qualquer texto vai depender
da semelhança entre os esquemas do leitor e os do autor. E quando ambos são
procedentes de culturas diferentes a disparidade entre os esquemas tende a
aumentar. Entretanto, as oportunidades de aprendizagem, de comparação ou de
tradução aumentam!
Quando aprendemos uma língua diferente da língua materna, somos
convidados a mergulhar numa nova cultura, a traduzir os novos esquemas
encontrados fazendo aproximações com os esquemas que já possuímos. E esta
aprendizagem serve para compreender ainda mais a nossa própria cultura.
Nesse sentido, gostaria de citar um trecho dos Parâmetros Curriculares
Nacionais: Língua Estrangeira quando enfatizam a perspectiva educacional do
ensino de uma outra língua:





A aprendizagem de uma língua estrangeira contribui para o
processo educacional como um todo, indo muito além da aquisição
de um conjunto específico de habilidades lingüísticas. Leva o
aluno a uma nova percepção da natureza da linguagem, aumenta a
compreensão de como a linguagem funciona e desenvolve maior
consciência do funcionamento da própria língua materna. Ao mesmo
tempo, ao promover uma apreciação dos costumes e valores de
outras culturas, contribui para desenvolver a percepção da
própria cultura por meio da compreensão da(s) cultura(s)
estrangeira(s). O desenvolvimento da habilidade de entender /
dizer o que outras pessoas, em outros países, diriam em
determinadas situações leva, portanto, à compreensão tanto das
culturas estrangeiras quanto da cultura materna. Esta
compreensão intercultural promove, ainda, a aceitação das
diferenças nas maneiras de expressão e de comportamento. (MEC,
1998: 38)


Observamos nesta citação a ênfase dos autores na troca intercultural
e os benefícios para a compreensão e apreciação da cultura do outro. De
fato, um dos objetivos principais do Curso de Licenciatura em Língua
Inglesa da UFES, expresso no seu projeto pedagógico aprovado em 2007, é de
"estimular o conhecimento de diferentes culturas da língua inglesa,
fortalecendo os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em
que se assenta a vida social".[12] Queremos aprender com o outro, saber
traduzir diferentes culturas, conhecer melhor a nossa própria cultura.
Dessa forma a tradução de fato se transforma numa ação cultural, uma
prática permanente de aproximação.
Quando examino algumas estratégias que utilizo na minha vida e nas
minhas aulas, percebo que a tradução de ideais, de práticas, de conceitos é
um fator muito presente – tradução no sentido de reinvenção, recriação,
aproximação. Gosto de trabalhar com a teoria das Inteligências Múltiplas
proposta pelo psicólogo Howard Gardner da Universidade de Harvard nos
Estados Unidos. Ele afirma que existem sete inteligências diferentes – a
lógico-matemática, a lingüística, a visual-espacial, a musical, a corporal-
cinestésica, a interpessoal e a intrapessoal. De acordo com Gardner (1983,
1991, 1993), cada ser humano tem pelo menos sete formas de conhecer o mundo
na sua volta, se diferenciando um do outro apenas no 'perfil' ou no
conjunto das inteligências. Quer dizer, cada pessoa vai desenvolver ou
valorizar algumas áreas em detrimento de outras, dependendo de fatores
genéticos, das relações com o ambiente, das condições sócio-político-
econômicas, e de determinados estímulos externos. O estímulo pode
fortalecer algumas áreas mais que outras, entretanto a pluralidade das
inteligências não significa que as diferentes áreas trabalham de forma
isolada, uma vez que qualquer atividade normalmente exige a participação de
várias áreas diferentes para garantir a sua realização. Na minha opinião,
um dos pontos mais fascinantes desta teoria, é de que ao pensar nas
diferentes formas de encarar o mundo, somos obrigados a traduzir qualquer
proposta de trabalho de acordo com pelo menos sete pontos de vista
completamente diferentes, e, como professor, esta prática pode contribuir
enormemente para uma visão muito saudável da diversidade em sala de aula.
Em vez de querer transformar qualquer turma de alunos num grupo homogêneo,
o professor passa a apreciar a riqueza de uma turma heterogênea. Por
exemplo, quando preparo as minhas aulas sobe Fonética, preciso pensar em
estratégias que atenderão uma turma heterogênea de alunos. Segue uma breve
ilustração da identificação de diferentes conteúdos que poderiam atrair
alunos com maior interesse ou capacidade em diferentes áreas de
inteligência:

"Área de "Conteúdo focalizado "
"inteligência " "
"Lógico-matemática"Organização lógica das tabelas da Associação "
" "Internacional de Fonética; "
" "Utilização da lógica para compreender a terminologia "
" "técnica para a definição dos sons. "
"Lingüística "Utilização de sons para o ato de comunicação; "
" "As funções lingüísticas de diferentes áreas da "
" "fonética (segmental e suprasegmental). "
"Visual-espacial "Produção e identificação de representações visuais da "
" "articulação de sons diferentes; "
" "Leitura de espectrogramas – a representação acústica "
" "dos sons. "
"Musical "Percepção e produção de sons utilizados por línguas "
" "diferentes; "
" "Análise das características suprasegmentais (ritmo, "
" "entonação) de diferentes línguas. "
"Corporal-cinestés"Utilização dos órgãos de articulação, de forma "
"ica "consciente, para produzir sons diferentes; "
" "Utilização dos órgãos de percepção para reconhecer "
" "sons diferentes. "
"Interpessoal "Análise e comparação da produção própria com a "
" "produção do outro; "
" "Ênfase na função primordial dos sistemas fonológicos "
" "de línguas diferentes – de comunicar algo a alguém. "
"Intrapessoal "Uso da introspecção para produzir e perceber as "
" "diferenças sutis entre diversos sons; "
" "Identificação de estratégias de aprendizagem que "
" "funcionam melhor para cada um. Utilização das áreas "
" "'fortes' para compreender melhor as áreas 'fracas'. "



Sabe-se que para aprender algo, o aluno precisa relacionar o que está
aprendendo a algo familiar, algo já conhecido. Ele precisa modificar uma
hipótese já existente, comparar uma experiência nova a uma experiência
vivida anteriormente, adquirir novas informações utilizando estratégias de
aprendizagem que são conhecidas, familiares, seguras, estratégias que
estimulem confiança. Uma vez que o aluno se sente mais seguro na situação
de aprendizagem, o professor pode encorajá-lo a se arriscar um pouco mais,
oferecendo estratégias que desafiam o aluno, que o convidam a relacionar
estratégias conhecidas a outras ainda não experimentadas. Por exemplo,
muitos alunos que passaram pelas minhas aulas de fonética se sentiram bem à
vontade trocando idéias oralmente em pequenos grupos (exercitando sua
inteligência interpessoal) e analisando os sons produzidos na letra de uma
música. Mas poucos gostam de desenhar os órgãos da fala no quadro ou de
organizar uma tabela de acordo com os princípios da Associação
Internacional de Fonética. Mas, ao pensar a disciplina 'fonética'
utilizando a teoria das inteligências múltiplas, a disciplina é traduzida
para sete 'línguas' diferentes, cada uma com suas características
específicas. É claro que todas as áreas são relacionadas, mas, ao focalizar
diferentes aspectos da matéria, oferecemos uma diversidade de estímulos aos
alunos com o objetivo de facilitar o processo de aprendizagem, atrair o
aluno a investir nos seus estudos, envolvê-lo cada vez mais e desafiá-lo a
experimentar estratégias desconhecidas.


Um outro exemplo da tradução ainda ligado à exploração da teoria das
inteligências múltiplas (ou a teoria MI) envolve a escrita de um livro em
processo que pretende explorar conexões entre esta teoria, o ensino de
línguas e a música. Eu estava trabalhando com um pequeno grupo de alunos
dos cursos de graduação de Letras-Inglês e Letras-Português, cada um
explorando uma área diferente de inteligência, quando chegou no grupo um ex-
aluno de especialização em Língua Inglesa querendo convencer o grupo a
trabalhar em conjunto para escrever um livro sobre música! Foram vários
meses de discussão enquanto o grupo tentava traduzir esta proposta e
transformá-la num projeto viável. Ao começar a escrever, o processo de
escrita se tornou um verdadeiro conglomerado de traduções. O ato de
escrever já representa uma tentativa de traduzir pensamentos tênues em
frases comunicáveis. Mas a escrita estava ocorrendo em conjunto, portanto o
pensamento do autor original era apresentado aos colegas de grupo, cada um
com suas idéias específicas, individuais, tentando traduzir a escrita
original. Eu recebia um texto de um dos membros do grupo, acrescentava meus
comentários, perguntas, questionamentos em verde e passava o resultado para
o próximo, que acrescentava suas dúvidas e sugestões em azul e passava o
texto para o próximo, que fazia seus acréscimos em vermelho .... e assim
adiante! Cada um traduzindo o texto e seus acréscimos de acordo com sua
própria interpretação do mundo e experiência adquirida. Resultado – uma
supersaturação de cores que impedia a percepção da preciosidade do arco-
íris, escondido no texto original!


O investimento na compreensão dos conceitos, a leitura de textos em
inglês e português, o relacionamento das três grandes áreas conceituais
(música, teoria MI e ensino de línguas), o processo cíclico da escrita, o
debate permanente entre os diferentes membros do grupo – todas essas
atividades representam formas diferentes de tradução.


Conseqüentemente, ao pensar um pouquinho sobre a minha trajetória de
vida, começo concordar com minha amiga Lillian de Paula, Coordenadora do
Núcleo de Pesquisas em Tradução e Estudos Interculturais, e organizadora
deste livro, de que a prática da tradução, o diálogo permanente com o
outro, é muito mais que uma mera profissão que compara uma língua com a
outra, pode também representar uma maneira de ser. E uma maneira de ser de
extrema importância para o mundo moderno. Precisamos de tradutores que se
interessem na cultura do outro, que procurem compreender o outro, que
funcionem como pontes de comunicação entre grupos que não se conhecem. Viva
os tradutores! Nosso caminho para a comunicação global, a aceitação e a
compreensão.




REFERÊNCIAS

BROWN, Gillian, CURRIE, Karen L. e KENWORTHY, Joanne. Questions of
Intonation.
Londres: Croom Helm, 1980.

CAMBOURNE, Brian. The Whole Story: natural learning and the acquisition of
literacy in
the classroom. Auckland, New Zealand: Ashton Scholastic, 1988.

CARRELL, Patrícia e EISTERHOLD, Joan C. 'Schema theory and ESL reading
pedagogy'.
In: CARRELL, Patricia, DEVINE, Joanne e ESKEY, David E. Interactive
Approaches to Second Language Reading, Cambridge, UK: CUP, 1988. p. 73-
92.

CRYSTAL, David. Prosodic Systems and Intonation in English. Cambridge, UK:
CUP, 1969.

CURRIE, Karen. Ensinando o Pensar na Alfabetização. Porto Alegre, RS:
Kuarup, 1998.

___________. O processo de leitura na sala de aula de língua estrangeira.
In. Revista Saberes de Letras, Vol. 3, Nº 1, jan-junho 2005, p. 135 –
148.

GARDNER, Howard. Frames of Mind: the theory of Multiple Intelligences. New
York: Basic Books, 1983.

___________. The Unschooled Mind: how children think and how schools should
teach. New York: basic Books, 1991.

___________. Multiple Intelligences: the theory in practice. New York:
basic Books, 1993.

HALLIDAY, M. A. K. A Course in Spoken English: Intonation. Londres: OUP,
1970.

LADD, D. Robert. Intonational Phonology. Cambridge, UK: CUP, 1996.

McCARTHY, Michael. Discourse Analysis for Language Teachers. Cambridge, UK:
CUP, 1991.

MEC/SEF Parâmetros Curriculares Nacionais – Terceiro e Quarto Ciclos de
Ensino Fundamental: Língua Estrangeira, Brasilia: Ministério da
Educação, Secretaria da Educação Fundamental, 1998.

NUTTALL, Christine. Teaching Reading Skills in a Foreign Language. Oxford,
UK:
Heinemann, 1996.


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[1] Como traduzir a palavra 'mason' da cultura escocesa para a cultura
portuguesa?
[2] Uma espécie de lingüiça ou choriço, feito com o estômago de carneiro
recheado com as tripas!
[3] 'Cerimônia de Canções Natalinas' (tradução nossa)
[4] 'Serenata para Tenor, Trompa e Cordas' (tradução nossa)
[5] 'Received Pronunciation' – um dialeto 'adquirido', não regional,
utilizado por acadêmicos e de classes sociais mais 'nobres' do sul da
Inglaterra.
[6] As primeiras linhas da poesia 'To a Mouse' (Para um Camundongo) de
Robert Burns.
[7] Utilizei este termo no artigo Mexer ou não Mexer?, publicado
posteriormente no livro 'Ensinando o Pensar na Alfabetização', Currie,
1998.
[8] A citação original para quem gostaria de experimentar outras
possibilidades de tradução é: "The willingness to accept approximations is
absolutely essential to the processes which accompany language learning. In
fact it sets in motion the 'hypothesis, test, modify hypothesis, test
again' cycle which characterises all natural learning."
[9] Citação original: "(...) according to schema theory, a text only
provides directions for listeners or readers as to how they should retrieve
or construct meaning from their own, previously acquired knowledge. This
previously acquired knowledge is called the reader's background knowledge,
and the previously acquired knowledge structures are called schemata."
[10] Esta explicação foi apresentada em publicação anterior, veja Currie
2005: 138-139.
[11] Citação original: (The) failure to activate an appropriate schema may
be due to […] the fact that the reader does not possess the appropriate
schema anticipated by the author and thus fails to comprehend. […] there is
a mismatch between what the writer anticipates the reader can do to
extract meaning from the text and what the reader is actually able to do.
The point is that the appropriate schemata must exist and must be activated
during the text processing.
[12] Projeto Pedagógico do curso Licenciatura em Língua Inglesa e
Literaturas de Língua Inglesa, aprovado pelo CEPE, UFES, em julho, 2007.
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