TRÁFICO DE PESSOAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTRIBUIÇÕES PARA A ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O

May 30, 2017 | Autor: Eliomar Lima Leo | Categoria: Trafico de Pessoas
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PSICOLOGIA

ELIOMAR LIMA DOS SANTOS

TRÁFICO DE PESSOAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTRIBUIÇÕES PARA ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O

Salvador 2014

ELIOMAR LIMA DOS SANTOS

TRÁFICO DE PESSOAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTRIBUIÇÕES PARA ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Psicologia da Faculdade sócia da BahiaFSBA, como requisito parcial à obtenção de nota. Nome da Orientadora: Luciana França

Salvador 2014

ELIOMAR LIMA DOS SANTOS

TRÁFICO DE PESSOAS, POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTRIBUIÇÕES PARA ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Psicologia da Faculdade sócia da Bahia-FSBA, como requisito parcial à obtenção de nota.

____________________________________________________ ORIENTADORA Profª. Luciana França (Faculdade Social da Bahia)

____________________________________________________ Examinador 1 Psicóloga Cleide Costa Torres (Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas - NETP/BA)

____________________________________________________ Examinador 2 Profª. Drª. Denise Maria de Oliveira Lima (Faculdade Social da Bahia)

28 de maio de 2014

RESUMO Nos últimos anos, o tema Tráfico de Pessoas tornou-se público à sociedade brasileira, saindo dos debates acadêmicos para as discussões cotidianas da população. A partir de 2004 quando o país ratificou o Protocolo de Palermo, foi possível notar a crescente enfase dada ao tema. Em 2006 o interesse se formaliza com a aprovação do decreto presidencial nº 5.948 regulamentando a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Passados oito anos, a Política Nacional se configura como uma recente ação do estado brasileiro, na luta contra um objeto complexo, de modo que tal política valida o interesse do país em se integrar a uma lógica transnacional, que visa minimizar os danos causados pelo crime do Tráfico de Seres Humanos. A partir desse processo, foram criados postos para a atuação da Psicologia, surgindo assim, a necessidade, por parte dessa área de atuação profissional, de conhecer não só o tema em questão, como também, as bases desse conhecimento.

ABSTRACT In recent years, the topic Trafficking became public Brazilian society, leaving the academic debates for everyday discussions of the population. From 2004 when the country ratified the Palermo Protocol, it was possible to note the increasing emphasis given to this issue. In 2006 the interest is formalized with the adoption of Presidential Decree No. 5948 regulating the National Policy to Combat Trafficking in Persons. Eight years later, the National Policy is configured as a recent action of the Brazilian state in the struggle against a complex object, so that policy validates the country's interest in joining a transnational approach, which aims to minimize the harm caused by crime Trafficking in Human Beings. From this process, jobs were created for the performance of Psychology, thus resulting in the need on the part of this professional area, to meet not only the topic in question, but also the basis of this knowledge.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 7 1. A POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS...................9 1.1 POLÍTICAS PÚBLICAS......................................................................................................9 1.2 DEFININDO POLÍTICAS PÚBLICAS...............................................................................10 1.3 A EDIFICAÇÃO DA POLITICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.............................................................................................................................. 11 1.4 ANTECEDENTES IMPORTANTES À POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.......................................................................................................13 2. O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL ................................................................................................................................................... 18 2.1 TENSIONANDO CONHECIMENTOS SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL.20 2.2 A COMPLEXIDADE INERENTE AO TRÁFICO DE PESSOAS........................................22 3. A ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O NA POLÍTICA DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS............................................................................................................................ 29 3.1 NÚCLEOS E POSTOS DE ATENDIMENTO....................................................................32 4. CONCLUSÃO........................................................................................................................ 35 5. REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 38

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INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o tema Tráfico de Pessoas tornou-se público à sociedade brasileira, saindo dos debates acadêmicos para as discussões cotidianas da população. A partir de 2004 quando o país ratificou o Protocolo de Palermo, foi possível notar a crescente enfase dada ao tema. Em 2006 o interesse se formaliza com a aprovação do decreto presidencial nº 5.948 regulamentando a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Passados oito anos, a Política Nacional se configura como uma recente ação do estado brasileiro, na luta contra um objeto complexo, de modo que tal política valida o interesse do país em se integrar a uma lógica transnacional, que visa minimizar os danos causados pelo crime do Tráfico de Seres Humanos.

É um tema crescente não só no cenário acadêmico, como também no contexto popular, por isso, é conveniente tratarmos do assunto, avaliando às formas de conhecimentos

produzidos, e como tais conhecimentos recaem sobre as políticas

públicas que abarcam o tráfico de pessoas. Com isso, espera-se contribuir

na

edificação de saberes que municionam psicólogas/os e profissionais de outras áreas, na perspectiva de uma atuação que prime pela garantia dos direitos humanos, mas, contrapondo com o modelo higienista, normalizador e cartesiano, que por tanto tempo fez parte, e ainda faz, do cenário das ciências .

O presente trabalho tem como objetivos: (1) contribuir para a atuação da/o psicóloga/o que atua ou pretende atuar nas políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, e (2) clarificar as possibilidades de discussão referentes à questão. Para tanto, leva-se em conta a necessidade de aprofundamento do conhecimento produzido sobre o assunto. Há de se deixar claro que o intuito não é descartar o que foi construído, no país, ao longo dos anos, desde a implantação da política nacional, mas, ampliar os horizontes

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no que se refere a tais conhecimentos, no sentido de reconstruir

saberes. A

metodologia utilizada nesta investida, é a revisão da literatura: Durante a pesquisa, foram utilizados textos e documentos do Ministério da Justiça, artigos, notícias de jornais, etc. O trabalho se desenha da seguinte forma: 1) serão expostos os conceitos básicos de políticas públicas e especificamente da politica que está sendo tratada, juntamente serão apresentados os conceitos de tráfico de pessoas e as bases para a construção da Política Nacional; 2) faremos um diálogo entre o conhecimento adquirido sobre o tema, buscando tensionar as formas como foram construídos tais conhecimentos; em seguida 3) serão trazidas as possibilidades de atuação/intervenção da/o psicóloga/o na temática tráfico de pessoas.

É preciso deixar claro, antecipadamente, que a intenção aqui, não é propor um modo de intervenção novo sobre essa temática, nem muito menos interferir na prática dos profissionais que lidam com essa questão. O que se propõe, é trazer para o debate, as formas de conhecimento produzidos sobre o tráfico de pessoas ao longo dos anos, e como que a política nacional se apropria desses conhecimentos, apontando os possíveis desacertos nessa apropriação, para que a partir daí sejam pensadas outras formas de atuação/intervenção. Vale observar que a atuação/intervenção, vem após o exercício do pensar, do refletir sobre algo, do interesse de conhecer o conhecimento sobre algo, do mesmo modo que o pensar, o refletir e o interesse em conhecer o conhecimento, podem ser considerados como a atuação/intervenção.

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1. A POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas pode ser considerada como uma ação emergente do estado na luta contra esse tipo de crime. Nasce no Brasil com a aprovação do decreto presidencial nº 5.948 em outubro de 2006, tendo por objetivo: “estabelecer princípios, diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atenção às vítimas, conforme as normas e instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos e a legislação pátria” (Ministério da Justiça, 2007, p.64). Uma política em desenvolvimento, que regulamenta o interesse brasileiro com a questão, e que se forjou a partir de acordos internacionais e pressões diversas da sociedade civil. Mas o que são políticas públicas?

1.1 POLÍTICAS PÚBLICAS

Enquanto área do conhecimento, a politica pública nasce nos EUA, segundo Souza, “sem estabelecer relações com as bases teóricas sobre o papel do Estado, passando direto para a ênfase nos estudos sobre a ação dos governos” (SOUZA, 2006, p.22). A política pública surgiu como um subcampo significativo, dentro da disciplina de Ciência Política, entre os anos 1960 e 1970 (LIMA, 2012, p.50). Como área do governo, de acordo com Souza (2006), a introdução da política pública como ferramenta das decisões do governo é produto da Guerra Fria e da valorização da tecnocracia, como forma de enfrentar suas consequências (SOUZA, 2006, p.22). A mesma autora considera quatro grandes “pais” fundadores dessa área: H. Laswell, H. Simon, C. Lindblom e D. Easton (SOUZA, 2006, p.22). No Brasil, segundo Lima (2012), os estudos sobre políticas públicas ainda são “muito recentes” (LIMA, 2012, p.50). De acordo com Passone; Perez (2010):

10 a partir da regulamentação da Constituição da República Federativa do Brasil, em outubro de 1988, constituíram-se as principais legislações com base nos direitos sociais: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), a Lei Orgânica da Saúde – LOS (Lei Federal nº. 8.080/90), a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA (Lei Federal nº. 8.242/91), a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei Federal nº. 8.742/93), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN (Lei Federal nº. 9.394/96), a Lei Orgânica de Segurança Alimentar – LOSAN (Lei Federal nº. 11.346/06), além da recente integração dos serviços sociais, por meio do Sistema Único de Assistência Social – SUAS (Perez & Passone, 2010, p.663).

1.2 DEFININDO POLÍTICAS PÚBLICAS

Definir Políticas Públicas é preparar-se para um leque de possibilidades, uma vez que as concepções sobre o tema não se esgotam. E nesse conjunto de definições não existe uma que sobreponha a outra. Para Souza; “não existe uma única, nem melhor, definição do que seja políticas públicas” (SOUZA, 2006, p.24).

Quando falamos de Políticas Públicas ou exclusivamente da Política Pública de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, tomamos como base conceitual a ideia de que são; “a totalidade de ações, metas e planos que os governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o bem-estar da sociedade e o interesse público.” (SEBRAE 2008, p. 05). Para Souza, políticas públicas são: “o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações (variável dependente)” (SOUZA, 2006, p.26). Ainda seguindo a lógica de que não existe melhor nem pior definição, o guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil, utiliza o seguinte conceito de políticas públicas:

11 Podemos conceituar políticas públicas como sendo um conjunto de ações pensadas, organizadas, coordenadas e desencadeadas pelo Estado, com a intenção de atender a determinada temática e setores específicos da sociedade. As políticas públicas definem a área de atuação, as prioridades e os princípios diretores. Por outro lado, os Planos Públicos, que podem ser nacionais, estaduais e municipais, têm a finalidade de definir programas e ações concretas para a obtenção dos resultados esperados com aquela política nacional. Os programas, por outro lado, que também podem ser nacionais, estaduais e municipais, trazem desenvolvidas as ações previstas nos Planos Públicos. (Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012. P. 94)

Para a execução de uma Política Pública, são criados os Planos Públicos, postos em prática através dos Programas e das ações previstas nos próprios Planos Públicos. Este é um processo árduo e requer persistência dos atores sociais tocados pela questão. Vale ressaltar, de acordo, que “embora uma política pública implique decisão política, nem toda decisão política chega a constituir uma política pública” (RUA, 2009, p.20) .

1.3 A EDIFICAÇÃO DA POLITICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

As discussões para a elaboração do texto base da Politica Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, começaram em 2005, contando com o envolvimento do Ministério da Justiça; da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República. Em seguida outros nove ministérios se interessaram sobre a questão. Já com o documento produzido e para garantir o andamento da política nacional, ficou determinada a criação de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) formado por diversos órgãos e secretarias do governo, que seriam responsáveis pela criação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP). Atribuiu-se a esse grupo :

12 promover a difusão da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas junto a órgãos e entidades governamentais e nãogovernamentais, fomentando a discussão para subsidiar a elaboração do PNETP; II - estabelecer a metodologia para a elaboração da proposta do PNETP; III - definir as metas, prioridades e ações do PNETP; e IV elaborar a proposta do PNETP. (Ministério da Justiça, 2007, p.63)

Foram criados dois planos para o enfrentamento ao problema Tráfico de Pessoas, o primeiro teve início em 2008 e vigorou até 2010. Elaborado por um Grupo de Trabalho Interministerial e coordenado por algumas secretarias da presidência da república, que definiram a sua divisão em três eixos estratégicos; a prevenção ao Tráfico de Pessoas, a atenção às vítimas e a repressão ao crime, além da responsabilização do seus autores:

No âmbito da prevenção, a intenção é diminuir a vulnerabilidade de determinados grupos sociais ao tráfico de pessoas e fomentar seu empoderamento, bem como agendar política públicas voltadas para combater as reais causas estruturais do problema. Quanto à atenção às vítimas, foca-se no tratamento justo, seguro e não-discriminatório das vítimas, além da reinserção social adequada, assistência consular, proteção especial e acesso à justiça. E se entende como vítimas não só os (as) brasileiros (as), mas também os (as) estrangeiros (as) que são traficados (as) para o Brasil, afinal este é considerado um país de destino, transito e origem para o tráfico.Sobre o Eixo 3, Repressão e Responsabilização, o foco está em ações de fiscalização, controle e investigação, considerando os aspectos penais e trabalhistas, nacionais e internacionais desse crime. (Secretaria Nacional de Justiça 2008, p.10)

Cada um desses eixos está dividido em prioridades específicas e ações para alcançar essas prioridades.

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Com a experiência adquirida a partir do I Plano Nacional, recentemente foi lançado o segundo PNETP que vigorará até 2016, seguindo a mesma diretriz conceitual do plano anterior e buscando:

I - Ampliar e aperfeiçoar a atuação de instâncias e órgãos envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, na prevenção e repressão do crime, na responsabilização dos autores, na atenção às vítimas e na proteção de seus direitos; II - Fomentar e fortalecer a cooperação entre órgãos públicos, organizações da sociedade civil e organismos internacionais no Brasil e no exterior envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas; III - Reduzir as situações de vulnerabilidade ao tráfico de pessoas, consideradas as identidades e especificidades dos grupos sociais; IV - Capacitar profissionais, instituições e organizações envolvidas com o enfrentamento ao tráfico de pessoas; V - Produzir e disseminar informações sobre o tráfico de pessoas e as ações para seu enfrentamento; e VI - Sensibilizar e mobilizar a sociedade para prevenir a ocorrência, os riscos e os impactos do tráfico de pessoas. (Secretária Nacional de Justiça 2013, p.10)

Este segundo PNETP ficou mais detalhado, organizado em cinco linhas operativas transversais aos eixos da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.

1.4 ANTECEDENTES IMPORTANTES À POLÍTICA NACIONAL DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS.

Dois fatos contribuíram para a política nacional, tanto no sentido da definição conceitual sobre o fenômeno tráfico de pessoas, quanto na afirmação de que o Brasil encontra-se entre

os países que sustentam a rota internacional desse crime: (1) O Protocolo

Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial

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Mulheres e Crianças, também conhecido como Protocolo de Palermo; (2) A pesquisa sobre tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração no Brasil (PESTRAF - 2002).

O Protocolo de Palermo é o principal instrumento internacional, legal, para o enfrentamento do tráfico de pessoas. O Brasil junto com 123 países, confirmou a cooperação na

Convenção das Nações Unidas Contra o Crime Transnacional em

2000, ocorrida na Itália, e que também é conhecida como a convenção de Palermo. De acordo com a Casa Civil da Presidência da República (2004), os objetivos deste protocolo são::

a) Prevenir e combater o tráfico de pessoas, prestando uma atenção especial às mulheres e às crianças; b) Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico, respeitando plenamente os seus direitos humanos; e c) Promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir esses objetivos. (Presidência da República, 2004)

A definição do tráfico de pessoas que orienta a política brasileira se baseia neste protocolo (art. 3). Desta forma, segundo o Ministério da Justiça (2007):

Para os efeitos desta Política, adota-se a expressão “tráfico de pessoas”conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, que a define como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios

15 para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos. (Ministério da Justiça, 2007, p.64).

Com relação à prevenção e ao o combate ao tráfico de pessoas (art. 5), ficou determinado que;

1. Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e outras que considere necessárias de forma a estabelecer como infrações penais os atos descritos no Artigo 3 do presente Protocolo, quando tenham sido praticados intencionalmente. 2. Cada Estado Parte adotará igualmente as medidas legislativas e outras que considere necessárias para estabelecer como infrações penais: a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a tentativa de cometer uma infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo; b) A participação como cúmplice numa infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo; e c) Organizar a prática de uma infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo ou dar instruções a outras pessoas para que a pratiquem. (Presidência da República, 2004)

No que se refere à assistência e proteção às vítimas (art. 6), a partir desse protocolo, cabe aos estados:

1. Nos casos em que se considere apropriado e na medida em que seja permitido pelo seu direito interno, cada Estado Parte protegerá a privacidade e a identidade das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, entre outras (ou inter alia), a confidencialidade dos procedimentos judiciais relativos a esse tráfico. 2. Cada Estado Parte assegurará que o seu sistema jurídico ou administrativo contenha medidas que forneçam às vítimas de tráfico de pessoas,

16 quando necessário: a) Informação sobre procedimentos judiciais e administrativos aplicáveis; b) Assistência para permitir que as suas opiniões e preocupações sejam apresentadas e tomadas em conta em fases adequadas do processo penal instaurado contra os autores das infrações, sem prejuízo dos direitos da defesa. 3. Cada Estado Parte terá em consideração a aplicação de medidas que permitam a recuperação física, psicológica e social das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, se for caso disso, em cooperação com organizações não-governamentais, outras organizações competentes e outros elementos de sociedade civil e, em especial, o fornecimento de: a) Alojamento adequado; b) Aconselhamento e informação, especialmente quanto aos direitos que a lei lhes reconhece, numa língua que compreendam; c) Assistência médica, psicológica e material; e d) Oportunidades de emprego, educação e formação. 4. Cada Estado Parte terá em conta, ao aplicar as disposições do presente Artigo, a idade, o sexo e as necessidades específicas das vítimas de tráfico de pessoas, designadamente as necessidades específicas das crianças, incluindo o alojamento, a educação e cuidados adequados. 5. Cada Estado Parte envidará esforços para garantir a segurança física das vítimas de tráfico de pessoas enquanto estas se encontrarem no seu território. 6. Cada Estado Parte assegurará que o seu sistema jurídico contenha medidas que ofereçam às vítimas de tráfico de pessoas a possibilidade de obterem indenização pelos danos sofridos. (Presidência da República, 2004)

A PESTRAF, foi Realizada sob encomenda da Organização dos Estados Americanos, e apontou a existência, no país, de 241 rotas de tráfico interno e internacional de crianças, adolescentes e mulheres. A pesquisa trouxe respostas, sobre a situação do Brasil, frente a esse problema mundial. Como o próprio texto diz:

Essa pesquisa constitui-se em um estudo estratégico, que procura comprometer a sociedade e o governo na busca por uma maior visibilidade do fenômeno, até então diluído em dados da burocracia estatal, silenciado pela corrupção e ocultado pelas redes de exploração sexual comercial. (PESTRAF 2002, p. 33).

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A pesquisa foi realizada em 20 estados, seus dados na época apontavam que “no Brasil, o tráfico para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e adolescentes, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos” (PESTRAF 2002, P. 59).

Um dos recursos metodológicos utilizados pela pesquisa foi a verificação de matérias jornalísticas sobre o tema. Diante disso, a pesquisa apontou que:

De acordo com a mídia, verifica-se que, das 98 pessoas traficadas cuja idade foi noticiada, 52 (53,0%) são mulheres e 46 (47,0%) adolescentes. Isto significa que foi possível identificar a idade de 30,4% das 171 mulheres traficadas e de 95,8% das 48 adolescentes. (PESTRAF 2002, p .59)

Seguindo a lógica apontada por especialistas de que uma das causas do tráfico internacional é a miséria e a desigualdade entre países, a pesquisa mostra que do mesmo modo, no Brasil, existe uma relação entre as regiões mais pobres e as de maior desenvolvimento:

As regiões Norte e Nordeste apresentam o maior número de rotas de tráfico de mulheres e adolescentes, em âmbito nacional e internacional, seguidas pelas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul. Confirma-se assim, uma estreita relação entre pobreza, desigualdades regionais e a existência de rotas de tráfico de mulheres e adolescentes para fins sexuais em todas as regiões brasileiras, cujo fluxo ocorre das zonas rurais para as zonas urbanas e das regiões menos desenvolvidas para as mais desenvolvidas, assim como dos países periféricos para os centrais (PESTRAF 2002, p. 55)

Nesse sentido, segundo a pesquisa, a pobreza e as desigualdades regionais, são os principais fatores que influenciam a existência do tráfico de pessoas no país, que se dá

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justamente pelo deslocamento de mulheres e adolescentes das regiões centro-oeste e nordeste, para a região sudeste.

2. O CONHECIMENTO DO CONHECIMENTO SOBRE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL

“uma teoria não é o conhecimento, ela permite o conhecimento; uma teoria não é um ponto de chegada, é a possibilidade duma partida; uma teoria só desempenha o seu papel cognitivo, só ganha vida com o pleno emprego da atividade mental do sujeito.” Edgar Morin. 1996

O tema Tráfico de Pessoas tem se tornado foco de análises e representações, não só no cenário acadêmico, como também no contexto popular brasileiro. Como prova disso temos; (a) a crescente inclusão, da temática, na produção cientifica, (b) a ênfase dada pela imprensa nacional, com matérias jornalísticas sobre o assunto, (c) a veiculação de uma telenovela,

e recentemente, (d) a campanha da fraternidade (Fraternidade e

Tráfico Humano: Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB) que trata desse fenômeno. A ocorrência desses fatos demonstra o quanto um objeto “complexo”, tem despertado interesses diversos nos últimos anos.

Considerada uma atividade criminosa, juridicamente compreendida como “inventada”, desde o século XIX, a partir de dois acontecimentos distintos - repulsa ao comércio escravista, e a preocupação com o tráfico de mulheres brancas para a prostituição (VENSON; PEDRO, 2013) - o tráfico de pessoas se fundamenta, no Brasil, numa base conceitual que segue a lógica mundial estabelecida pela Organização das Nações

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Unidas (ONU), através do Protocolo de Palermo - 2000. Como pôde ser visto anteriormente, em 2002 foi divulgada sob encomenda da Organização dos Estados Americanos, a PESTRAF, pesquisa que contribuiu para a inclusão do problema, na ementa do governo brasileiro. Como resultado, foi apresentada em 2006 a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, que suscitou dois planos de enfrentamento (2008 e 2013). A partir daí, o estado brasileiro firmou um compromisso internacional de “abolição da escravidão moderna” (BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula, 2011), promovendo ações e mudanças na legislação, para alinhar o país ao contexto global.

Nota-se que, com isso, o país avança na produção de conhecimentos que, consequentemente, recaem sobre as estratégias de enfrentamento, repressão e atenção às vítimas do crime de tráfico de pessoas. Porém, quando nos referimos a esse crime, é válido nos questionarmos sobre qual noção de tráfico de pessoas vem sendo construída, ao longo desses oito anos. Além disso, como são produzidos no Brasil os conhecimentos frente a essa temática? De acordo com Morin, “nosso conhecimento, apesar de tão familiar e íntimo, torna-se estrangeiro e estranho quando desejamos conhecê-lo” (Morin, 1999, p. 17). Para o autor, inquirir sobre o conhecimento, é considerar o desconhecido e a partir daí, considerar a multiplicidade, a diversidade. “Desde então, o conhecimento não seria mais passível de redução a uma única noção, como informação, ou percepção, ou descrição ou ideia, ou teoria” (Morin, 1999, p. 18 ). A primeira questão, pode ser respondida à luz do Protocolo de Palermo, Ainda assim, após lê-lo, na tentativa da resposta, voltaríamos a pergunta; O que é o tráfico de pessoas? E o exercício poderá ser repetido quantas vezes necessário. Acontece que o êxito não está em dar uma resposta, ou se fazer entendido, ele reside simplesmente no fato

do questionamento, na incerteza, diante de um problema

complexo. O êxito é resultado da construção e (re)construção constante de saberes. De acordo com Santos (1996 apud SAWAIA, 2009, p.153) “é preciso, contra o saber, criar saberes e, contra os saberes, contra-saberes". Eis o pressuposto para uma discussão

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sobre o tráfico de pessoas, uma discussão que leve em conta que não existem conhecimentos hegemônicos, que não existem saberes pré-definidos. Se atentar para isso, é muito mais do que simplesmente por em xeque os saberes produzidos até então sobre o tema, é estar atento aos possíveis danos causados na reprodução daquilo que não foi tensionado, que simplesmente é reproduzido em um contexto limitado, “nãoamplo”.

2.1 TENSIONANDO CONHECIMENTOS SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL

Quando falamos de tráfico de pessoas, levando em conta o conceito, é prudentemente necessário entender que estamos falando de uma concepção ambígua. Piscitelli (2008), clarifica algumas das ambiguidades contidas no conceito de tráfico de pessoas do Protocolo de Palermo, associadas às expressões “exploração da prostituição de outrem” e “outras formas de exploração sexual”. Para a autora, tais expressões não comunicam “clareza conceitual” (PISCITELLI, 2008); sendo assim, causam prejuízos a um determinado grupo de trabalhadoras e trabalhadores sexuais que optam pela prostituição por livre e espontânea vontade e de forma autônoma. Ainda segundo Piscitelli (2008):

a falta de clareza conceitual dos termos que contribuem para delimitar a problemática, principalmente a noção de exploração, colocam sérios problemas para a produção de conhecimento também no Brasil. Nesse âmbito se produz a fusão entre crime e violação dos direitos humanos, às vezes utilizada instrumentalmente para reprimir a migração não documentada e também para combater a prostituição. Nesse cenário, as pessoas consideradas em situação de tráfico interpretam e incorporam noções de direito que, embora ancoradas em aspectos do debate público sobre o tema, não necessariamente coincidem com definições do crime de tráfico de pessoas. (Piscitelli, 2008, p. 58).

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Para Piscitelli, os pressupostos que determinam a noção de tráfico de pessoas seguem de acordo com o interesse dos grupos, divergentes, envolvidos na temática; por isso é necessário mapeá-los (PISCITELLI, 2008), para entendê-los. Central a esta discussão está a ideia de que a Política de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas tem servido para reprimir a prostituição (Beijo da Rua, abril 2012),

Como já é sabido, a discussão sobre Tráfico de Pessoas, no Brasil, movimenta grupos com posições divergentes; governo, Ong’s, movimentos feministas, pesquisadores, etc. A exemplo, o grupo de pesquisas Davida (associação de cientistas sociais que estuda a prostituição do ponto de vista das trabalhadoras e trabalhadores do sexo). Para esse grupo, há no país uma confusão conceitual referente ao tema, e, além disso, os dados que fundamentam a existência do problema no Brasil não são confiáveis, reproduzidos de forma acrítica, que produzem um alarde que, consequentemente, gera “pânicos morais” (Grupo Davida, 2005), que de certa forma não contribuem para as ações das políticas de enfrentamento e repressão ao tráfico de pessoas, pois:

Frequentemente, apresenta números exagerados e conflitantes sobre o fenômeno. Além disso, é recorrente a apresentação de matérias jornalísticas ou processos jurídicos como se fossem “fatos” observados no campo pelo pesquisador ou por seus pares nas ciências sociais. Essas práticas dificultam a circulação de informações construídas numa base epistemologicamente sólida sobre o tráfico e, como agravante, podem informar ações que, ancoradas em perspectivas moralistas, violam os mesmos direitos constitucionais e humanos “defendidos”pelas ONGs e associações civis engajadas no combate ao tráfico. (Grupo Davida, 2005, p.156).

Algumas das questões trazidas no texto “Prostitutas Traficadas e Pânicos Morais” (Grupo Davida, 2005) dialoga diretamente com a noção de Tráfico de Pessoas como fenômeno complexo, que requer uma compreensão na perspectiva desse paradigma. Tal noção frequentemente é citada na literatura sobre tema. Porém a análise detalhada

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sobre o conjunto da literatura institucional do tráfico, gera um paradoxo, que se dá na percepção de que um tema estabelecido como complexo (e assim reconhecido promoveria o pensamento sistêmico) faz-se, ao mesmo tempo, ádito de certeza. A constante repetição do conhecimento sobre o Tráfico de Pessoas está calcada em dados questionáveis, planilhas, “fatos e hipóteses” (NASCIMENTO, 2013), que recebem o status de verdade.

2.2 A COMPLEXIDADE INERENTE AO TRÁFICO DE PESSOAS

Entende-se que há complexidade “quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes” (MORIN, 2001, p. 14). Para Morin, o pensamento complexo lida com a incerteza, que reconhece não só o todo, mas também as partes do todo, além disso; “O pensamento complexo é um pensamento que busca distinguir (mas não separar), ao mesmo tempo que busca reunir.” (MORIN, 2003, p.71). É necessário, para compreender o tráfico de pessoas, identificar as particularidades, separar do conceito as noções de trabalho escravo, exploração sexual, prostituição, migração, etc. no sentido da facilitação da compreensão. É claro que o tráfico de pessoas é reconhecidamente atravessado por tais conceitos, mas, de todo modo, é necessário separar para unificar a compreensão. O que não acontece quando percebemos ações de “enfrentamento” ou até mesmo de acolhimento que não conseguem fazer o exercício da distinção (trabalho escravo, exploração sexual, prostituição, migração, etc.). É preciso compreender que em situações onde ocorrem essas violações podem ocorrer o tráfico de pessoas, mas que em si, não são necessariamente o crime em questão.

23

Uma outra observação de alguns textos da literatura do tráfico de pessoas nos faz entender que a complexidade, quando citada, vem aparentemente convertida em dificuldade.

Complexo

entendido

economicamente

como

difícil.

Esse

“mau

entendimento” que nos é oferecido, pode ser traduzido como desinteresse/preguiça dos atores do movimento anti-tráfico, que consequentemente pode gerar o fracasso das políticas que buscam enfrentar esse problema. O “complexo”, nesse caso, pode propiciar uma zona de conforto, na medida em que serve como justificativa para o conhecimento rasteiro ou o “pseudoconhecimento” (BLANCHETTE, Thaddeus Gregory; SILVA, Ana Paula), das questões que envolvem o Tráfico de Pessoas. De acordo com Morin:

Complexo não é o complicado. Ao contrário, na complexidade abriga-se o simples traduzido de maneira profunda. Já disse que o dificil não é escrever difícil, mas escrever fácil. Da mesma forma, o complexo não reside na concepção complicada, nebulosa, obscura, mas na percepção transparente, aberta por um mecanismo de síntese. (MORIN, 2001, p.22)

Essa afirmativa põe em nossas bocas o doce gosto da pretensão em conceituar o tráfico de pessoas como simplesmente “o comércio de pessoas”. Por que simplesmente comércio de pessoas? Porque independente dos fins, meios e violações outras, gente não se vende. Sem pretensão alguma, acredita-se que essa redução do conceito, amplia a possibilidades de debate-lo. Observando a definição de tráfico de pessoas do protocolo de Palermo, percebemos uma concepção que não favorece a compreensão imediata do fenômeno, e como já foi dito, isso não significa complexidade. O tráfico de pessoas não é complexo simplesmente por ter um conceito extenso, ao contrário, a vastidão, de certa forma, pode dificultar o entendimento e não fomentar a a discussão.

24

Ainda segundo Morin (2001, p.21), “No esquecimento da complexidade, afirma-se a simplificação que rege procedimentos sofisticados porém incompletos. Uma das formas de entendermos como se dá esta simplificação, com relação ao tema, é observando algumas reportagens sobre ações de enfrentamento e combate às chamadas “redes de tráfico” envolvidas na prostituição. Uma análise mais crítica dessas reportagens nos faz perceber; (1) o equivoco (link direto entre tráfico de pessoas e prostituição, sem que haja uma problematização, na maior parte dos casos, dos agentes do movimento antitráfico), (2) o resultado (publicização dos casos por parte da imprensa e o engrosso de dados, sem uma base epistemológica confiável).

Blanchette e Silva (2011) nos alertam sobre a questão em: “O mito de Maria, uma traficada exemplar”.

Segundo o autor e a autora, as contradições epistemológicas

existentes na luta contra o crime reproduz um mito, criado no imaginário público, sobre a vítima de tráfico humano. Um exemplo, em 2013 foi veiculada em uma emissora nacional, a notícia1 de Tráfico Internacional de Pessoas. Na reportagem, observada de maneira crítica, é possível ver nitidamente a confusão conceitual entre os Artigos 231; “promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” e 231a; “promover, intermediar ou facilitar, no território nacional, o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da pessoa que venha exercer a prostituição”, do código penal brasileiro, e o Protocolo de Palermo. Na exposição da notícia é possível perceber a fusão entre tráfico de pessoas e prostituição. Segue a reportagem com o título; “General angolano chegava a pagar US$ 100 mil por sexo com brasileiras”:

Reportagem especial denuncia rede de prostituição de luxo, que levava brasileiras a Angola. Principal cliente era um dos homens mais poderosos da África. 1 Nóticia veiculada no programa Fantástico da Emissora Globo.

25 A reportagem especial deste domingo, no Fantástico, vai denunciar uma rede de prostituição de luxo que você nunca viu nada parecido. Mulheres brasileiras eram levadas para fazer programas sexuais em Angola. Segundo as investigações, o principal cliente era um general, um dos homens mais poderosos da África. Ele chegava a oferecer US$ 100 mil por um programa. Veja na reportagem de Walter Nunes e Ernesto Paglia. O Aeroporto Internacional de São Paulo é passagem frequente de muitos famosos. Artistas, celebridades, gente que viaja a trabalho para decolar nos palcos do Brasil e do mundo. Angola, uma investigação da Polícia Federal revela que, durante os últimos sete anos, Guarulhos funcionou também como ponto de partida de uma ponte aérea da prostituição, que ligava Brasil e África. Brasileiras - algumas, rostos conhecidos de programas de TV embarcavam pelo menos duas vezes por mês com destino a Angola ou à África do Sul. Em certos casos, essas expedições incluíam Portugal. Entre os envolvidos, não havia segredo. O objetivo das excursões era abertamente sexual. Fantástico: Essas mulheres sabiam que iam para lá para se prostituir? Stella Fátima Scampini, procuradora federal: Sim. Fantástico: Então, isso não descaracteriza o crime? Stella: Não. O fato de a pessoa se prostituir, isso não é crime. A pessoa que explora a outra sexualmente, que tira proveito da prostituição alheia, essa sim comete crime. O simples fato de você promover a saída de uma pessoa para o exterior para exploração sexual, isso por si só já é um crime, que é justamente o crime de tráfico internacional de pessoas. (...) O destino final desse tráfico de pessoas era, na maioria das vezes, a cidade de Luanda. A precária capital angolana, marcada por quase 30 anos de guerra civil, foi o improvável cenário de prostituição para algumas mulheres brasileiras. (...) De acordo com a Polícia Federal, as brasileiras eram enviadas em grupos de cinco ou seis para Angola. No auge do esquema, no meio deste ano, havia pelo menos dois grupos por mês. Em uma escuta feita com autorização judicial, uma das mulheres que já tinha visitado Luanda conta para outra como é a viagem. A conversa confirma: as moças sabiam muito bem com quem estavam lidando. (…) Fantástico: O papel dessas mulheres no processo é o de vítimas. Stella:Sim. Fantástico: Alguma dessas vítimas procurou o Ministério Público

26 Federal para denunciar esse esquema? Stella: Não. Esse tipo de crime envolvendo prostituição de luxo, elas tentam preservar a privacidade. Então é muito difícil que venham aos órgãos públicos. Fantástico: Têm medo da exposição? Stella: Muito medo da exposição. Muito medo de ver seu nome vinculado à prostituição. Fantástico: Talvez seja difícil para o público em geral identificar onde está o erro. Se são mulheres adultas, famosas, foram de livre e espontânea vontade em busca de dinheiro, será que os riscos envolvidos não são aceitos popularmente. Stella: É dever do Ministério Público reprimir e também proteger essas vitimas, que muitas vezes nem se vêem como vitimas.

Oliveira (2008), nos mostra na prática como os equívocos acontecem no mundo das leis do tráfico de pessoas:

Nos casos concretos de tráfico de pessoas enquadrados na definição do Código Penal Brasileiro (artigos 231 e 231-A), a vítima diante do policial, do promotor e do juiz afirma, na maioria das vezes, não ter sido enganada, tampouco forçada à prostituição. Tal situação, frequente nas investigações e processos referentes a esse crime, deixa o profissional do sistema de Justiça e da área de atendimento perplexos, sem saber como agir com relação a essa pessoa real, que, na maioria das vezes, não guarda nenhuma similaridade com o imaginário coletivo de uma vítima, menos ainda de uma vítima adulta com histórico de prostituição. (OLIVEIRA, Marina Pereira Pires, 2008, p. 133)

Ainda segundo a autora: “a definição do Código Penal restringe a finalidade da exploração à prostituição e, ao mesmo tempo, elimina o debate sobre o consentimento ou não da vítima” (OLIVEIRA, Marina Pereira Pires, 2008, p. 133).

Os fatos apresentados visam advertir o (a) leitor (a) sobre uma questão presente na ciência moderna, que é forjada no paradigma da simplificação e que se baseia na exclusão do sujeito (Morin, 1996). Além disso, faz-se necessário denunciar o possível

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equivoco semântico, introduzido nos discursos do movimento anti-tráfico. Fundir tráfico de pessoas e prostituição é um crime moral, é uma simplificação da questão com possíveis finalidades específicas. Oliveira (2008), faz uma reflexão sobre a situação, através de algumas questões:

Afinal, essas mulheres adultas oficialmente identificadas como vítimas do tráfico, por estarem dentro de inquéritos e processos com esse nome, são ou não vítimas? Em caso afirmativo, por que não conseguimos dar a elas a reparação que as convenções internacionais lhes garantem? Em caso negativo, se elas não são vítimas, então qual é o crime que o Estado está combatendo? A prostituição? Mas prostituição não é crime, embora também não seja legalizada no Brasil. (OLIVEIRA, Marina Pereira Pires, 2008, p. 136)

Tais questionamentos corroboram com a ideia de que, “a pior simplificação é aquela que manipula os termos complexos como termos simples, os liberta de todas as tensões antagônicas/contraditórias, lhes esvazia as entranhas de todo o seu claroescuro.” (MORIN, 1996, p.337).

É necessário entender o tráfico de pessoas como um processo complexo, e além disso, é necessário tratá-lo à luz do paradigma epistemológico da complexidade, ou seja, entendê-lo na lógica do “desafio e como uma motivação para pensar” (MORIN, 1996, p.176).

Ainda sobre a questão da veiculação de dados sobre o tema tráfico de pessoas e seus danos na construção do conhecimento sobre o tema, entre janeiro de 2006 e julho de 2013, foi realizada pela ONG Repórter Brasil a pesquisa; “Tráfico de Pessoas na Imprensa Brasileira”, onde são levantados dados sobre a produção jornalística de cinco

28

meios de comunicação do país (Correio Braziliense, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Valor Econômico). Segundo a pesquisa;

Quando os textos jornalísticos têm como foco o problema, em boa parte dos casos este não é aprofundado e contextualizado. Além disso, um número considerável de veiculações não aponta as causas do tráfico, não cita fontes, não menciona políticas públicas e legislação a respeito da questão e a trata sob uma ótica exclusivamente punitiva. (Repórter Brasil, 2014, p. 09)

A pesquisa apontou que apenas 57% dos conteúdos encontrados faziam referência ao tráfico de pessoas, e a partir daí dividiu os textos em que o tema não era foco, em quatro partes. Desses quatro grupos, um era formado por textos que aplicam o conceito de tráfico de seres humanos de forma equivocada. Como exemplo foram apresentadas duas notícias, dentre elas uma refere-se a confusão conceitual entre tráfico de pessoas e contrabando de migrantes:

Outro exemplo do mau uso do termo “tráfico de pessoas”é o que envolve a entrada de haitianos no Brasil, um dos destinos da população que optou por deixar o país caribenho após o terremoto que arruinou sua infraestrutura e deixou milhares de desabrigados, em 2010. A chegada desses migrantes pela fronteira com o Peru e a Bolívia, em janeiro de 2012, deslocou equipes de reportagem para apurar os fatos. Os conteúdos produzidos naquele momento descreveram uma “rota de tráfico de pessoas”, controlada pelos “coiotes”, que teria como ponto final o Brasil. Embora a situação de vulnerabilidade em que se encontravam os haitianos ao entrarem no país fosse motivo de alerta – já que estavam de fato suscetíveis às mais diversas violações de direitos, incluindo o risco de serem traficados para algum tipo exploração –, os elementos apresentados nos textos indicam que houve, em realidade, pessoas operando no contrabando desses migrantes. (Repórter Brasil, 2014, p. 09)

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É neste cenário que o conhecimento sobre o tráfico de pessoas vem sendo reproduzido no Brasil. Um fato importante de se frisar é que a PESTRAF, pesquisa importante para a implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de pessoas, se baseou em pesquisas jornalísticas para produzir os dados que foram apresentados.

Outra questão tão importante e que desemboca no desinteresse do governo, com relação ao conhecimento sobre o tráfico de pessoas, é elucidada por Kempadoo, no texto; “Mudando o debate sobre o Tráfico de Mulheres” (KEMPADOO, 2005). A autora alerta sobre o verdadeiro interesse das políticas de enfrentamento ao tráfico de pessoas, que são muito mais de empenho político e econômico sob a determinação dos EUA, que se mantêm na “posição neo-conservadora, cristã, “anti-aborto, antiprostituição e pró-abstinência” (KEMPADOO, 2005, p. 77).

De todo modo, é preciso deixar claro que a posição defendida aqui, não faz acordo com o “não conceito”, o “não fatos”, o “não estatística”; ao contrário disso, o interesse na discussão é clarificar a necessidade de se identificar a falsa certeza, tão sagaz quanto a certeza, que diferentemente da incerteza, pode ser classificada como danosa.

3. A ATUAÇÃO DA/O PSICÓLOGA/O NA POLÍTICA DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS

Outro desafio que surgiu há pouco tempo é a apatia, o desinteresse. Alguém indiferente às coisas está negando a própria vida, a emoção, o afeto! Isso é terrível! Como se forma um sentimento de indiferença? Ele é a morte, é virar um robô. São desafios nos quais temos que nos aprofundar,

pesquisar.

Se

assumirmos

que

a

30 transformação social só se dará eticamente, quem mais do que nós, psicólogos, tem essa arma na mão? É exatamente esse pensar ético que deve estar presente onde o psicólogo estiver atuando. (Lane, 2000).

Na sessão anterior que denominamos “o conhecimento do conhecimento sobre o tráfico de pessoas no Brasil”, nossa preocupação foi apresentar as formas como são construídos saberes referentes ao tráfico de pessoas no contexto brasileiro, deixando claro que a intenção não é rechaçar o conhecimento produzido, até então, sobre o tema, mas, tensioná-lo, na busca da compreensão e (re)construção para o favorecimento de uma atuação profissional que se baseie nesse sentido, que vá de encontro aos postulados hegemônicos. Em outras palavras (com relação a atuação da/o psicóloga/o) que exerça a psicologia da discórdia 2.

A atuação da psicologia em Políticas Públicas, tem contribuído para a (re)construção da sua identidade (Gresser, 2013). Este compromisso social é recente, segundo Bock (2003):

Tal mudança do perfil da profissão associa-se a três vetores: (a) contingências específicas do mercado de trabalho – a falência do modelo profissional autônomo associado ao estreitamento das demandas dessa modalidade de serviços psicológicos como consequência da crise econômica que o país atravessa; (b) a abertura (extemporânea) de campo de atuação profissional pela redefinição do setor bem-estar no primeiro momento da transição democrática 2 Discórdia como resultado da discordância. Dito por Roberto da Matta; “Discutir é complicado

no Brasil porque não somos treinados a discordar”. Disponível em: http://lisandronogueira.com.br/2013/04/17/roberto-damatta-nao-somos-treinados-adiscordar/, acessado em: 05 de maio 2014. Nesse sentido, a discórdia é entendida como o resultado de uma postura que não sustenta postulados hegemônicos, conservadores e que distanciam a Psicologia das questões sociais .

31 processo para o qual concorrem a fragilização dos segmentos conservadores nos estertores do período autocrático-burguês e a organização dos setores oposicionistas, ai incluídos os intelectuais/profissionais de natureza vária, que conduz a importantes conquistas no plano social que tem seu momento emblemático na (progressista) constituição de 1988; e (c) evidentemente, não se podem menosprezar os embates no plano teórico-ideológico que nutrem uma definição dos rumos da Psicologia”.(BOCK, 2003, p.41)

Com essa mudança de paradigma, a Psicologia tem produzido cada vez mais conhecimentos que seguem na promoção do bem-estar, contrapondo um modelo normalizador,

higienista

e

individualizante,

tradicional,

tão

ligado

a

essa

profissão/ciência.

Com relação ao tema tráfico de pessoas, pouco se fala sobre a atuação da psicologia nesse contexto, Sabe-se que essa é uma área emergente, complexa, que dialoga com outras áreas próximas, que também lidam com questões complexas. O Centro de Referencia Técnica em Psicologia e Políticas Públicas – CREPOP, principal espaço para a orientação profissional de psicólogas/os, não dispões de pesquisas que forneçam subsídios sobre as temática, embora existam documentos de referência para atuação em outros campos, que convergem com o tema tráfico de pessoas, como: atuação em CRAS/SUAS; Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas

de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias; Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, etc. Áreas de atuação onde a psicóloga/o pode se deparar com casos de tráfico de pessoas, porém sem orientação para atuar com as especificidades sobre assunto.

32

3.1 NÚCLEOS E POSTOS DE ATENDIMENTO

Vale lembrar que a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, determina aos órgãos e entidades públicas, a implantação de Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) e Postos Avançados, ambos compostos por equipes interdisciplinares com profissionais de psicologia, de serviço social e profissionais da área

jurídica. O Brasil dispõe de 12 postos distribuídos entre os

estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Amazonas e Acre e o Posto Avançado de Direitos para Viajantes, no município de Belém, no Pará. Localizados em pontos estratégicos de entrada e saída do país, tendo como principal função “prestar serviço de recepção a brasileiros não-admitidos ou deportados nos pontos de entrada” (Secretária Nacional da Justiça, 2010, p.126). Com relação aos Núcleos de Enfrentamento, o país hoje conta com 16, localizados nos estados do Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas Bahia, Ceará, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. São espaços que formalmente garantem a atuação de psicólogas/os na temática tráfico de pessoas. Os núcleos que antes eram também espaços de atendimento às vítimas de tráfico deixou de atuar dessa forma, de

acordo com o relatório do Plano nacional

(2010)

Os Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP) foram criados pela Secretaria Nacional de Justiça/Ministério da Justiça, em parceria com os governos estaduais, tendo por principal função, articular e planejar as ações de enfrentamento a este crime, no âmbito estadual. Entre o período em que foi instituído o Plano Nacional, janeiro de 2008, até a Portaria nº 31, 20 de agosto de 2009, as atribuições dos Núcleos não estavam bem definidas, o que deu margem a atuações distintas, ora como espaço de atendimento, ora como espaços de articulação de políticas públicas. A partir da Portaria, os Núcleos deixaram de assumir um papel de atendimento para se tornar agente articulador e mobilizador da Política Nacional nos estados (Secretária Nacional da Justiça,

2010, p.123)

33

Aos núcleos compete:

I – articular e planejar o desenvolvimento das ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas, visando à atuação integrada dos órgãos públicos e da sociedade civil; II – operacionalizar, acompanhar e avaliar as denúncias no processo de gestão das ações, projetos e programas de enfrentamento ao tráfico de pessoas; III – fomentar, planejar, implementar, acompanhar e avaliar políticas e planos municipais e estaduais de enfrentamento ao tráfico de pessoas; IV – articular, estruturar, ampliar e consolidar, a partir dos serviços, programas e projetos existentes, uma rede estadual de referência e atendimento às vítimas de tráfico de pessoas; V – integrar, fortalecer e mobilizar os serviços e redes de atendimento; VI – fomentar e apoiar a criação de comitês municipais e estaduais de enfrentamentoao tráfico de pessoas; VII – sistematizar, elaborar e divulgar estudos, pesquisas e informações sobre o tráficode pessoas; VIII – capacitar e formar atores envolvidos, direta ou indiretamente, com o enfrentamento ao tráfico de pessoas na perspectiva da promoção dos direitos humanos; IX – mobilizar e sensibilizar grupos específicos e comunidade em geral sobre o tema do tráfico de pessoas; X – potencializar a ampliação e o aperfeiçoamento do conhecimento sobre o enfrentamento ao tráfico de pessoas nas instâncias e órgãos envolvidos na repressão ao crime e responsabilização dos autores; XI – favorecer a cooperação entre os órgãos federais, estaduais e municipais envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas para atuação articulada na repressão a esse crime e responsabilização dos autores; XII – impulsionar, em âmbito estadual, mecanismos de repressão ao tráfico de pessoas e consequente responsabilização dos autores; XIII – definir, de forma articulada, fluxo de encaminhamento das denúncias que inclua competências e responsabilidades das instituições inseridas no sistema estadual de disque denúncia; XIV – prestar auxílio às vítimas do tráfico de pessoas, no retorno à localidade de origem, caso seja solicitado; XV – instar o Governo Federal a promover parcerias com governos e organizações estrangeiras para o enfrentamento ao tráfico de pessoas; e XVI – articular a implementação de postos avançados a serem instalados nos pontos de entrada e saída de pessoas, a critério de cada Estado ou Município.(Secretária Nacional da Justiça, 2010, p.124)

34

Diante deste cenário em que a psicologia se insere, é interessante identificarmos quais práticas estão sendo utilizadas por profissionais que lidam diretamente com o tema tráfico de pessoas, nos núcleos e postos avançados, locais mais propícios, “ou não”, ao contato com as vítimas desse crime.

Assim como em outras áreas em que opera ligada às questões sociais, a psicologia tem muito a contribuir com as políticas públicas responsáveis pelo enfrentamento ao tráfico de pessoas. Podemos – pela dificuldade em encontrar material de referência sobre práticas, na temática tráfico de pessoas – tomar emprestado noções de atuação disponibilizadas pelo CREPOP, em alguns materiais de Referencias Técnicas para a Atuação do/a Psicóloga/o em outros campos. A exemplo (Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogas/os em Serviços de Atenção à Mulher em Situação de Violência; nos Serviço de Proteção Social a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência, Abuso e Exploração Sexual e suas Famílias; no CRAS/SUAS). Esses materiais trazem orientações que convergem nas diversas áreas, e embora não tragam as especificidades necessárias à questão do tráfico de pessoas, seus pressupostos servem de orientação para uma atuação que estabelece a relação da psicologia com o compromisso social. Vale frisar que esse compromisso é necessário para a/o psicóloga/o que irá atuar nos núcleos e postos de enfrentamento ao tráfico. De acordo com o Guia de Referências Técnicas para atuação do/a psicólogo/a no CRAS/SUAS, “as práticas psicológicas não devem categorizar, e objetificar as pessoas atendidas, mas buscar compreender e intervir sobre os processos e recursos psicossociais, estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem” (CREPOP, 2007, p.17). O Documento de Referência para Atuação de Psicólogas (os) em Serviços de Atenção à Mulher em Situação de Violência, faz uma colocação acerca da atuação da psicóloga/o, com relação às práticas utilizadas nos espaços de intervenção, considerando a multidisciplinaridade:

35 Portanto, a violência contra a mulher exige da Psicologia repensar suas práticas e modelos de intervenção tradicionais, especialmente os modelos clínicos voltados para o interpsíquico, devendo agregar o desenvolvimento de novas práticas que incorporem a perspectiva social, a clínica ampliada, a clínica social ou ainda intervenções psicossociais articuladas com as práticas de outros profissionais e serviços. (Conselho Federal de Psicologia, 2012, p. 49)

Outra questão que é colocada nesse documento de orientação da/o psicóloga/o , diz respeito as “discussões conceituais que embasam a sua prática” (Conselho Federal de Psicologia, 2012).

O que também precisa ser discutido, diz respeito a que tipo de profissional está atuando nesses núcleos e postos de atendimento às vítimas de tráfico de pessoas, uma vez que a política nacional determina que deve haver uma/um psicóloga/o no espaço, mas não orienta sobre sua área de atuação. Ou seja, não leva em consideração a ambiguidade da Psicologia. Esse pode ser um fator bastante implicador, uma vez que não é estabelecido o critério sobre que tipo de profissional estaria mais apto para trabalhar nessa temática, profissionais com direcionamentos outros que não estejam ligados às questões sociais podem não corresponder no andamento das ações.

4. CONCLUSÃO

O tema tráfico de pessoas no Brasil, como foi sugerido neste trabalho, requer uma análise

que

reconheça

a

complexidade

do

tema,

buscando

dessa

forma

instrumentalizar psicólogas e psicólogos, numa perspectiva dinâmica, visto que a tradição nos demonstra a apreciação dicotômica, utilizada por esses profissionais de tradição positivista . É preciso deixar claro que este talvez tenha sido um empurrão necessário, talvez de alerta, para as/os que se inserem nesta temática. Diante do

36

crescimento das ações e repercussão sobre esse fenômeno, é possível

que a

Psicologia contribua mais e mais para esse assunto, tanto enquanto produção, quanto atuação. Essa expectativa segue na mesma proporção do desejo de que profissionais inseridos na luta contra o tráfico de pessoas se instrumentalizem na busca de uma atuação que corresponda, não de forma exclusiva, mas, que reverbere a toda categoria. A Psicologia enquanto ciência, vem conseguindo quebrar o paradigma normalizador, higienista, hegemônico. Do ponto de vista da atuação profissional parece que, embora haja avanços, esse caminho tem sido um pouco mais lento, e aí cabe nos questionarmos sobre a formação desses profissionais. De todo modo esta é a forma que podemos contribuir neste caminhar para psicologias que sejam mais tato e menos alto falante.

Sobre o tráfico de pessoas é necessário que façamos uma pergunta sobre o anseio do governo brasileiro com essa política de direitos humanos e enfrentamento a essa modalidade de crime. O país deseja acabar com o tráfico de pessoas ou com a prostituição? O questionamento se dá por razões simples, é só observar as ações que são apresentadas pela mídia, ou ter certa familiaridade com a questão, para notar como as ações são moralizadoras. Além disso, a ideia que fica é de que existem dois modelos de Tráfico de seres humanos; um que se encontra no imaginário, constituído de bases epistemológicas frágeis, pautado no Protocolo de Palermo;

e outro, que

existe verdadeiramente, mas que pouco se sabe, onde vítimas, jamais irão buscar ajuda com os que não podem de fato ajudá-las, pois estão (os do protocolo de palermo) tentando compreender o extenso conceito repetido, por eles, dia após dia.

O que foi possível perceber a partir das pesquisas da bibliografia sobre o tema, é que o conhecimento produzido sobre tráfico de pessoas, no Brasil, adquiriu um status de verdade absoluta. Nesse sentido, Morin (2003) contribui na finalização desse trabalho

37

com a seguinte assertiva: Conhecer e pensar não é chegar a uma verdade absolutamente certa, mas dialogar com a incerteza (MORIN, 2003, p. 59).

38

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