Tráfico no Manguezal - um estudo sobre controle social, drogas e segregação

June 28, 2017 | Autor: Giovane Camargo | Categoria: Drogas, Controle Social, Política, Drogas, Proibicionismo
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6º Seminário Nacional de Sociologia & Política. 20 a 22 de maio de 2015, GT13 Controle Social, Segurança Pública e Direitos Humanos.

Tráfico no Manguezal: um estudo sobre controle social, drogas e segregação.

Giovane Matheus Camargo – Instituto Superior do Litoral do Paraná Aknaton Toczek Souza – Universidade Federal do Paraná Pablo Ornelas Rosa – Universidade Vila Velha

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Tráfico no Manguezal: um estudo sobre controle social, drogas e segregação

Giovane Matheus Camargo1 Aknaton Toczek Souza2 Pablo Ornelas Rosa3

RESUMO O presente artigo procura refletir sobre o exercício do controle social realizado pelos aparelhos do SJC – Sistema de Justiça Criminal – sob indivíduos e comunidades suspeitas de envolvimento com uso e comercio de drogas ilícitas. Buscando analisar a relação de criminalização secundária e o espaço geourbano da cidade de Paranaguá através da análise das prisões em flagrantes pelo crime de tráfico de droga. Foram analisados autos de prisão em flagrante pelo crime de tráfico de drogas registrados em Paranaguá/PR, para verificar onde ocorreram esses eventos e refletir sobre as características geo-urbanas dessas localidades. Assim, verificaremos a influencia desses elementos no processo de criminalização secundária e suas consequências nessas comunidades. Por fim, temos como hipótese que a guerra contra as drogas e o seu controle através do SJC agrava o processo de segregação e desertificação dessas comunidades. Palavras-Chave: Segregação, Drogas, Controle social, Espaço Geo-urbano, Proibicionismo.

Introdução Este artigo é resultado de reflexões a partir de uma monografia do curso de Direito do Instituto Superior do Litoral do Paraná, onde através dos autos de prisão em flagrante (APF) pelo crime de tráfico de drogas lavrados nos meses de janeiro à maio de 2013, mapeou-se as regiões e/ou bairros onde ocorreram esses fatos. A pesquisa foi realizada na 2ª Vara Criminal do Fórum de cidade de Paranaguá, região litorânea e importante região portuária do Estado do Paraná. Soma-se a essa reflexão as conclusões de duas outras pesquisas, inicialmente uma dissertação de mestrado (SOUZA, 2015) sobre as representações de Juízes e Promotores de Justiça, verificando, dentre outras questões, suas representações sobre usuários de drogas e traficante e as suas diferenças, implicando diretamente no tratamento adotado, seja através do encarceramento, seja por meio da liberdade. Por fim, uma tese (ROSA, 2012) que entre as diversas reflexões propostas, estabeleceu uma genealogia das políticas de drogas, com ênfase na redução de danos, além de possibilitar reflexões acerca da governamentalização das políticas proibicionistas. 1

Graduado em direito pelo Instituto Superior do Litoral do Paraná - INSULPAR. Doutorando e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná, é aluno bolsista CAPES. 3 Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP com estágio Pós-Doutoral em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, professor dos Programas de Mestrado em Sociologia Política e Segurança Pública da Universidade Vila Velha – UVV. 2

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O objetivo deste artigo é refletir sobre o processo de criminalização secundária realizada pelo sistema de justiça criminal – SJC, ou seja, compreender como ocorre a seleção dos traficantes a partir de seus operadores que atuam na cidade de Paranaguá/PR. Para tal, é preciso compreender que o exercício do controle social através da punição, incentivado por programas de segurança pública e realizado através do sistema de justiça criminal, resulta em uma forma de política pública que é operacionalizada por diversos profissionais. Em pesquisa realizada com juízes e promotores de justiça, Souza (2015) sugeriu a existência de no mínimo dois discursos – que interagem entre si – na prática desses operadores do SJC. Em primeiro lugar, suas representações sociais que permitem dar cabo da sua prática, alimentadas pelo senso-comum que lhe cerca; em um segundo momento, um discurso formal, transcrito através de linguagens jurídicas e fundamentado com argumentos hierarquizados e legitimados pelo SJC. Esses discursos formais são fundamentados nos pareceres, sentenças, manifestações escritas realizadas no processo criminal e percebe-se que os processos de condenação seguem uma forma e uma estrutura argumentativa que resumidamente se foca em provar algo. Assim, se encontrará esse argumento presente em todas as sentenças condenatórias ou de prisão preventiva. Em outras palavras, correndo o risco de soar repetitivo, o principal argumento é a prova de que existe uma prova do crime que estão acusando. Nos casos de tráfico de drogas a prova da prova do crime é a palavra do policial. Por isso tem-se como pressuposto “à análise que considera impossível estudar a punição per si, vale dizer de forma metafísica ou descontextualizada”, mas sim “tentar compreender o fenômeno da punição articulado aos processos sociais e culturais nos quais as práticas punitivas emergem, passando a ser um de seus elementos constitutivos” (MORAES, 2003, p.5). Assim, para estabelecer um objetivo específico seria importante analisar e refletir sobre as características geo-urbanas no processo de criminalização de traficantes de drogas em Paranaguá/PR, procurando articular essa análise com os discursos sobre o proibicionismo de drogas e seus empreendedorismos conforme apontou Rosa (2012; 2014). Este estudo fomenta a discussão acerca de como o proibicionismo das drogas tem intensificado um discurso criminalizante (FERNANDES, 2005, p. 18) que recai não só nas ditas “classes perigosas”, mas também, no local em que estas residem, na medida em que legitima prisões e se relaciona com a segregação sócio-espacial que as cidades capitalistas (re)produzem, gerando aquilo que Wacquant (2008) chamou de

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desertificação, à medida que a riqueza se acumula, a pobreza cresce e, assim, cresce o tráfico de drogas presente nesses espaços segregados - como favelas e ocupações irregulares recorrentes em regiões de manguezais típicas de Paranaguá/PR – assim como o número de ex-detentos que residem nestes lugares, bem como se intensificam as políticas policiadoras que vigiam e controlam lugares estigmatizados como violentos. O exercício do controle social no “território do crime” Primeiramente, é necessário esclarecer que a noção de controle social deve ser tomada dentro da lógica da interação social, ou seja, não é algo inerentemente ruim ou bom, existindo formas de controle social que promovem coesão e estabelecem uma certa solidariedade uma vez que consideram ou reagem positivamente ao conflito social, considerando-o como parte integrativa do processo de sociabilização humana. Entretanto, do outro lado da mesma moeda, existem formas e exercícios de controle social que reagem negativamente ao conflito social, considerando-o como algo oposto a uma certa “ordem”, e portanto, procuram excluí-lo através de práticas que reiteram violências simbólicas, preconceitos, estigmas. O SJC exerce uma forma de controle social notavelmente violenta, afinal, tem como seu fundamento a punição. Assim, o principal fundamento do SJC são as leis penais, que tipificam condutas humanas como crimes, passando a considerá-las ilícitas uma vez que violam uma certa condição de “normalidade” estabelecida pela ordem normativa e política vigente, pois supõem que elas comprometem a segurança da população, verificando-se que o ato criminalizável varia de época em época e de um país a outro. Isso ocorre visivelmente no campo do controle das substâncias psicoativas, pois até o início do século XX, algumas das substâncias que paulatinamente foram transformadas em ilícitas eram lícitas e comercializadas sem restrições em estabelecimentos e sem a necessidade de receita médica, como era o caso da cocaína, utilizada como anestesia, e do ópio, usado como substância com propriedades calmantes, inclusive receitada para recém-nascidos (ROSA, 2014). Entretanto, pra que o SJC opere com certa eficiência na busca pela normalização da intensificação das criminalizações e por seus resultantes processos de encarceramento legitimados pelas instituições estatais, “é preciso haver delinquentes e criminosos para que a população aceite a polícia, por exemplo. O medo do crime, que é permanentemente atiçado pelo cinema, pela televisão e pela imprensa, é a condição para que o sistema de vigilância policial seja aceito” (FOUCAULT, 2012, p. 107).

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Todavia durante as experiências do campo – comparadas entre Ponta Grossa/PR e Paranaguá/PR – foi possível verificar certa regularidade no perfil dos criminosos presos em flagrante pela polícia, padrões esses reiterados pela grande mídia corporativa nacional como características dos sujeitos perigosos à sociedade. Entre essas características pode-se citar a baixa escolaridade, ausência de trabalho formal, mas principalmente, no que concerne a esse artigo, as características geo-urbanas – moradores de periferias – e uso de drogas. As características geo-urbanas são importantes por que o espaço não é um mero palco das ações humanas - na medida em que as sociedades territorializam-se, isto é, apropriam-se de determinado espaço, este território tende a influenciar as gerações que ali sobrevierem. Neste sentido, a formação sócio-espacial trata-se de um processo inerente às sociedades humanas, que ocorre indiferentemente do momento histórico, materializando-se em momentos e lugares específicos da história (SANTOS, 1982). Entretanto, o capital brasileiro não tem muita mobilidade, ou seja, o mesmo acaba concentrando-se nas regiões do espaço geourbano que apresentam um potencial para dar mais lucro ao sistema socioeconômico. Desse modo, surge a denominada segregação sócio-espacial: espaços com muitos investimentos e infraestruturas tornamse inviáveis à população pobre, que acaba indo morar em espaços às margens da riqueza socialmente produzida, em locais sem infra-estrutura e sem – ou com poucos – equipamentos públicos de uso coletivo. Para Souza (2006, p. 23), percebe-se, no país, uma “crescente fragmentação do tecido sociopolítico-espacial da cidade” (SOUZA, 2006, p. 23), de maneira que a segregação-espacial produz constantemente os denominados enclaves territoriais ilegais, “controlados por criminosos sem estudo, armados e financiados por criminosos muito mais influentes e operando em escalas que vão da regional à internacional” (SOUZA, 2006, p. 23). Assim, as chamadas “favelas” não surgem por acaso ou por falta de planejamento urbano por si só, como afirma Souza (SOUZA, 2006, p. 18), a fragmentação do tecido sócio-politico-espacial das cidades incorpora complexas relações que variam entre o legal e o ilegal. Deste modo, as favelas alimentam a economia capitalista formal e a criminal-informal - nestes espaços geo-urbanos, apenas os pequenos vendedores de drogas ilícitas, conhecidos como “varejistas”, “esticas” ou “mulas” residem, e diferentemente dos grandes traficantes ricos, não desfrutarão de paz ou sossego, graças a seus antagonistas (polícia, instituições antidrogas e gangues rivais). Souza (2006) afirma que “tais tiranetes são, no fundo, oprimidos que oprimem outros oprimidos (no caso, os moradores das favelas que eles dominam)” (SOUZA,

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2006, p.18), ou seja, os explorados e espoliados das urbes brasileiras encontram no tráfico uma alternativa, ou seja, uma maneira de consumir mercadorias (legais e ilegais) que dificilmente consumiriam. A partir dos anos 1980, com a sedimentação da política de “guerra” contra as drogas, a divisão do trabalho no comércio ilegal faz surgir a figura do „estica‟, aquele que resolve participar do negócio ilícito como revendedor de mercadoria. Este „sacoleiro‟ das drogas ocupa a mesma posição dos camelôs e pivetes, sendo considerado bandido de 3ª classe, uma vez que é sobre ele que recai a repressão punitiva. (...) Para ser sacoleiro de drogas não é preciso portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organização criminosa. Basta ter crédito junto aos fornecedores. (...) Ocupando a ponta final do comércio de drogas proibidas, „esticas‟, „mulas‟ e „aviões‟ ficam tão-somente com uma parcela ínfima dos lucros auferidos no negócio, quantia esta que nunca os levará a possuir real participação nas empresas que atuam no mercado ilegal das drogas (D‟ELIA FILHO, 2007, p. 21-22).

A venda de drogas ilícitas nos espaços segregados, além de alimentar o capitalismo, cria a possibilidade da existência de outras formas de mercado, como por exemplo, as chamadas “milícias” nas favelas do Rio de Janeiro - grupos organizados compostos, sobretudo, por (ex)policiais e (ex)bombeiros, que passaram a atuar nas grandes favelas, compondo parte do capitalismo criminal-informal na medida em que desterritorializam os traficantes de drogas locais, para que os próprios milicianos, por meio do controle territorial, operem no comércio ilícito, com atividades que vão desde o tráfico de drogas até a venda de proteção para moradores contra criminosos, transformando a atividade policial em um serviço privado. (SOUZA, 2010.). A fragmentação do tecido sócio-espacial não implica apenas na desigualdade econômica entre moradores de centros urbanos e moradores de periferias, mas também contribui para a formação de um discurso criminalizante, que proporciona práticas de controle social, instrumentalizadas em políticas públicas e geridas por instituições como o cárcere. A partir do olhar de Michel Foucault (1986) é possível compreender o discurso criminalizante como o conjunto de práticas que operam sobre o criminoso em seus níveis institucionais, filosóficos e científicos, o qual acaba por implementar as ações policializantes com o escopo de normalizar determinados confrontos. Assim, ao analisar a formação discursiva, podem-se visualizar alguns aspectos de como se criam determinadas verdades, que constituem poderes sobre o corpo dos indivíduos. Neste caso, como a criminologia influencia na criação/controle dos criminosos. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua "política geral" de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o

6 encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (FOUCAULT 1986, p. 10).

Nesta esteira, o filósofo francês se atenta para as práticas de poder, onde este, diferente das sociedades pré-capitalistas, não pertence mais ao rei ou a uma instituição em si, mas deve ser compreendido como as próprias relações sociais, pulverizadas no cotidiano, muitas vezes imperceptíveis sob um ângulo micro e macroscópico, que ocorre por meio de manobras, táticas e técnicas que influenciam na criação dos saberes que produzem verdades e acabam por criar e gerir formas específicas de poder sobre os indivíduos, criando o objeto e todo o aparato para seu controle. Portanto, como explicam Souza e Morais (2014, p. 06): Desta forma o poder exercido através de saberes que propagam verdades e desenvolvem discursos (médico, legal, judiciário, etc.) acaba por criar o objeto. (...) Portanto o comportamento criminoso pode dar ocasião a toda uma série de objetos de conhecimentos variados (personalidade criminosa, fatores genéticos, sociais, ambientais), justamente por um conjunto de regras e condições estabelecidas entre as instituições. Porém isso nada acrescenta à criminalidade, porém as suas relações e diferenças permitem dizer algo sobre a criminalidade enquanto discurso.

De modo muito parecido, Becker (2009), exclui a possibilidade da existência de uma natureza desviante, explicando que a noção de desvio/anormalidade de um indivíduo, sempre dependerá de conceitos subjetivos de terceiros que com ele se relacionam, isto é, a sociedade é quem define o que é a norma (normal), e de uma maneira consequente, cria a figura do desvio (anormal), embora o autor reconheça que ambas as noções variam de acordo com as culturas e subculturas. Estes indivíduos e instituições que se incumbem de passar estes valores morais subjetivos adiante são chamados por Becker (2009) de “empreendedores morais”, os quais criam e aplicam regras a terceiros de acordo com seus valores morais. É neste sentido, que se quebra com a ideia de que a criminalidade faz parte natureza humana, uma vez que está esclarecido que a definição de crime nada mais é que a sustentação de uma verdade, a qual está submetida a uma economia política, que se relaciona com o contexto histórico-político de um determinado território. Submetido a pressões, entende-se que o sistema penal se demonstra como um mecanismo de controle social a favor de determinadas verdades que impõem a “ordem”, produzindo não só a criminalização e a estigmatização de determinadas classes sociais, como também, e ao mesmo tempo, funcionando como “maquiador” das ilegalidades cometidas pelas classes hegemônicas, permitindo que não sofram as respostas penais que as classes populares sofrem.

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Segundo Baratta (2002, p. 161), a criminalidade deve ser entendida como um valor negativo que recai sobre determinados indivíduos por meio do que chama de criminalização primária e secundaria: em um primeiro momento, o Estado, seleciona os bens jurídicos mais importantes para serem tutelados juridicamente, para após, selecionar dentre as pessoas que cometem determinada infração penal, indivíduos estigmatizados, que realizam estas ofensas penalmente sancionadas, para puni-los ou encarcerá-los. Por isso, conclui o autor que “a criminalidade é um „valor negativo‟, desigualmente distribuído, conforme a desigualdade social entre os indivíduos”. Assim, ainda que pesquisas demonstrem que nas favelas ocorrem diversos crimes, e por vezes, até mais que em centros urbanos, a questão da violência deve ser relativizada, pois ela não só se reproduz de maneira diferenciada nos espaços urbanos, como o seu combate ocorre através de políticas públicas voltadas para a contenção de determinados indivíduos, manifestando-se socialmente e normativamente de maneira desigual. O fato do discurso criminalizante incorporar estigmas, contribui para a criação de práticas sócio-fóbicas e até mesmo de auto-encarceramento populacional, uma vez que ao mesmo tempo em que o medo do perigoso exige segurança em muros altos e condomínios fechados, fazendo com que os moradores troquem sua liberdade pela sensação de segurança, reforça ainda mais a separação étnica e social dos cidadãos e leva a caracterização de identidades diferenciadas, seja de locais ou pessoas. Segundo Goffman (1982) a estigmatização se caracteriza na percepção que terceiros terão de um determinado sujeito, fazendo com que este se diferencie das demais categorias. Assim, o autor explica que a sociedade categoriza os indivíduos no momento em que lhe fornece atributos que são entendidos como comuns para quem está inserido em determinada categoria. Deste modo, porquanto os ambientes sociais exercer certo “poder” de definir as categorias de pessoas que nela podem ser encontradas, quando se vai ao campo, isto é, quando se vivencia as práticas diárias de relação social, observam-se indivíduos que não se encaixaram dentro do estigma pré-estabelecido, porém, existe uma “identidade social” pré-estabelecida por terceiros. O traficante, a partir dos anos 80, passa a ser utilizado como termo estigmatizante capaz de reduzir a compreensão acerca de um indivíduo. Se nos anos 70 o comunista era o responsável por degustar criancinhas em nosso país, hoje o traficante é responsável até por estimular o surgimento de favelas (...) Não é preciso aprofundar na carga estigmatizante que o termo traficante revela, mas é bom lembrar que os chamados autos de resistência, inquéritos instaurados a partir de morte de pessoas em conflito com a polícia, são muitas vezes arquivados quando se descobre que as vítimas tem em suas fichas criminais alguma passagem ou condenação por tráfico de drogas. (D‟ELIA FILHO, 2007, p. 58).

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Do mesmo modo que acontece com o indivíduo que apresenta uma relação entre a venda de drogas ilícitas e o estereótipo de criminoso, determinado espaço estigmatizado como local “núcleo” da criminalidade passa a ser visto como um ambiente inimigo que precisa de re-civilizado. Assim, se por um lado o Estado se mostra “ausente” dos lugares segregados já que suas políticas públicas são comumente reduzidas nesses locais, por outro, o mesmo sempre operou de modo policial nestes espaços, seja vigiando ou definindo a clientela do SJC, representados em sua maioria pela juventude pobre e negra que carrega fuzis, mas que calçam chinelos de borracha. (SOUZA, 2010) Por estas razões é que o sistema de justiça criminal brasileiro não solucionará a problemática do tráfico de drogas a partir da lógica proibicionista, pois ao mesmo tempo em que combate, incorpora e alimenta estigmas sociais como a identificação das classes sociais e dos lugares perigosos, resultando na produção de ex-prisioneiros ou prisioneiros em potencial que, tamanha a espoliação urbana sofrida, só encontrará meios de consumir no mercado convencional caso se enquadre na produção material de produtos ilícitos. Como afirma Souza (2006, p. 27): Da “ordem” sistêmica do capitalismo brasileiro, produz-se, no seu caldo de cultura de catástrofe social, uma mistura de “novas ordens” - com destaque para as “organizações” e arranjos ilegais, especialmente vinculados ao tráfico de drogas, que se entrelaçam de vários modos com a face formal da economia e a face formal do Estado - e uma “desordem despolitizada” - violência (...) em que oprimidos acabam sendo jogados contra outros oprimidos.

Deste modo, na medida em que se produz riqueza dentro do mercado da venda ilícita de drogas, alimenta-se o mercado convencional, ou seja, o sistema capitalista brasileiro perpetua-se também por meio dessas ilegalidades que visam combater e que também sustentam outros mercados informais através de certa economia política do crime que sustenta a mídia4, a polícia e outras instituições. Isso sem falar da economia política da saúde sustentada pelas comunidades terapêuticas, clínicas privadas para tratamento do suposto “uso abusivo de drogas” e/ou “dependência química, além das políticas de redução de danos, conforme apontou Rosa (2012; 2014). Do Mangue ao Cárcere – Onde mora o narcotraficante? Em maio de 2012, a polícia civil do Rio de Janeiro perseguia de helicóptero o narcotraficante líder da facção criminosa “Terceiro Comando Puro”, conhecido como 4

Segundo Greco (2011, p. 9-10), durante os últimos anos, a mídia tem sido uma das maiores propagadoras dos movimentos de Lei&Ordem, a qual, por meio de matérias de casos violentos que causam repulsa social, convence as massas a integrarem um discurso que confia no endurecimento de leis penais, na intensificação de policiamento e na diminuição de garantias constitucionais como solução para os conflitos sociais.

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“Matemático”. O vídeo demonstra como se deu a operação – a polícia persegue o criminoso à uma distancia de 900 a 1.200 metros de altura, o qual transita em uma avenida com seu veículo5. No momento em que Matemático adentra a Favela da Coreia, os agentes de segurança pública passam a gritar “vamos incendiar”, logo em seguida proferem com veemência “pega, pega, pega” e, em seguida, uma chuva de tiros recai sobre a comunidade. A perseguição que se prolongou por cerca de nove quarteirões, terminou, obviamente, com a morte de Matemático, e, segundo peritos que prestaram declarações ao programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, com inúmeras casas e prédios da Favela da Coreia atingidas por disparos de arma de fogo. Ainda no programa Fantástico, o Policial Civil Adônis Lopes de Souza, comandante da operação que matou matemático, contrariou o afirmado pelos peritos, declarando que a operação não pôs em risco a população, uma vez que o local que Matemático frequentava era comum aos traficantes de drogas: “(...) Aquela rua ali era frequentada a maioria por traficantes, nós conhecemos bem aquilo ali, tanto é que não houve nenhum tipo de reclamação e não houve nenhum morador baleado aquele dia.” – Policial Adônis Lopes de Oliveira, comandante da operação aérea.6

Ou seja, o fato de determinado local ser conhecido como frequentado por traficantes de drogas, legitima ações policiais violentas, pois estas visam defender a sociedade destes indivíduos que apresentam um risco à ordem pública. Deste modo, sujeitos identificados como narcotraficantes (antes mesmo de serem flagrados praticando a conduta tipificada como ilícita), perdem sua qualidade de sujeitos de direitos e assumem o caráter de potencialmente perigosos ou daninhos, sendo encarados como inimigo da ordem pública (ZAFFARONI, 2007). É perceptível ainda, o tratamento jurídico penal diferenciado que é concedido ao inimigo – a pena para quem comete o crime de tráfico de drogas, tipificado no artigo 33 da Lei 11.343/2006, é uma das mais altas da legislação brasileira, vai de 5 à 15 anos de reclusão e pena pecuniária de 500 a 1.500 dias-multa, sendo comparado a crime hediondo pela Lei 7.072/92, tornando-se insuscetível de graça, anistia, indulto e fiança (Art. 2º, inc. I e II). Ademais, nunca ocorreu uma explosão carcerária tão grande por conta de um único tipo penal como ocorreu com a venda ilícita de drogas, que no ano de 2013, encarcerou 140 mil pessoas no Brasil7. Não obstante, até maio de 2012, ano em 5

Fantástico mostra vídeo de caçada do traficante matemático. 17'36". Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TpC-VR3J6C0Acesso em: 01 dez 2014. 6 Idem. 7 Stochero, Tahiane. 'Tráfico é crime que mais prende, e isso é lamentável', diz novo secretário. São Paulo. Abr. 2013. Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/04/trafico-e-crime-que-maisprende-e-isso-e-lamentavel-diz-novo-secretario.html. Acesso em: 30 nov. 2014.

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que foi declarada pelo STF a inconstitucionalidade do artigo 44 da lei de drogas, a liberdade provisória ao acusado de traficância era vedada, ou seja, o réu não podia aguardar seu julgamento em liberdade, direito esse que é concedido, por exemplo, a pessoas que cometem homicídios. É preciso esclarecer ainda, o ponto crucial no processo de criminalização proibicionista amparado na lei de drogas – 11.343/06 que não estabelece um critério objetivo que permita identificar e separar o usuário do traficante, deixando o crivo para a subjetividade dos operadores do SJC que utilizam suas representações para dar sentido a sua prática cotidiana. Conforme demonstrado em pesquisa anterior (SOUZA, 2014; 2015), o usuário é representado como um doente, um sujeito que está sujeito ao descontrole, podendo assaltar, matar e cometer outros delitos para sustentar seu consumo, sendo assim, é um ser perigoso em potencial. Por outro lado, o traficante é compreendido como um sujeito que semeia esse mal, sendo a causa de toda uma série de problemas sociais. Para distinguir o traficante e o usuário, o artigo 28, §2º da lei de drogas estabelece cinco critérios que o juiz deverá tomar em consideração: a natureza, a quantidade da substância apreendida, o local, as condições em que se desenvolveu a ação, circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e aos antecedentes do agente. Antes de analisar os critérios e como se dá a triagem do usuário e do traficante é importante verificar que esses critérios servem para o juiz poder decidir, todavia, nos processos analisados e nas entrevistas fica claro que nenhum critério acima relacionado é relevante. O que é relevante para a tomada de decisão são as provas (tecnicamente de defesa e de acusação) que são produzidas, porém, a acusação conta com uma peça chave, a palavra do policial que tem legitimidade relativa. Relativa por que pode ser desconsiderada, porém, somente com uma prova em contrário que deslegitime a palavra do policial. Essa situação não foi vista em nenhum processo e embora alguns operadores afirmem que já desconsideraram a palavra do policial, deixam claro que essa situação é rara (SOUZA, 2014; 2015). Assim, dada a inexistência de critérios objetivos, a classificação do crime acaba ficando exposta às compreensões que o policial teve do caso concreto, desta forma, a criminalização tende a recair ao individuo que se adéqua ao esteriótipo de criminoso, seja por motivos de vestimentas, pelo fato de morar em determinados locais, pertencer à determinada classe social, ou qualquer outro motivo que se mostre relevante aos olhos dos agentes estatais. Por este motivo, se um garoto pobre é pego com, por exemplo, 50 gramas de maconha em uma periferia, ele poderá ser identificado diretamente como

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traficante, enquanto um homem bem assalariado, de terno e gravata, circulando no centro da cidade e de boas condições sociais com a mesma quantia pode ser considerado apenas usuário. Quando da análise dos locais onde ocorreram as prisões por tráfico de drogas na cidade de Paranaguá/PR, entre o período de Janeiro à Maio de 2013, dos vinte e um bairros registrados, quatro deles não foram encontrados pelo software online Google maps, tão pouco no mapa da cidade fornecido pelo setor de geoprocessamento da prefeitura da cidade. Outrossim, constatou-se outra peculiaridade, 12 destes bairros, encontram-se à margem demográfica da cidade, estando próximo ao mangue8, isto é, nas extremidades da urbe, porquanto apenas oito encontravam-se dispersos entre a cidade e afastados da margem ribeirinha. Salienta-se ainda, que das 35 prisões, 21 pessoas traficavam no local onde residem. Outro ponto interessante que se revelou, foi de que, no centro da cidade de Paranaguá/PR, as únicas duas prisões ocorreram dentro da própria delegacia de polícia, a qual serve como cadeia pública da cidade. Estes dados não significam necessariamente que nos locais segregados existam mais pessoas traficando drogas, mas que os locais segregados são onde o Estado opta em exercer seu poder de encarceramento, e mais, além de não haver prisões em ruas do centro da cidade, neste local, a criminalidade também é fomentada pelo próprio sistema de justiça criminal, por meio de sua instituição carcerária. Também é possível afirmar segundo levantamentos etnográficos que existem diversos outros locais de trafico de drogas em locais centrais ou bem urbanizados da cidade de Paranaguá/PR, frequentados por usuários mais abastados economicamente e que não estão dispostos a ir na “biqueira” – como é chamado o ponto de tráfico nas periferias das cidades. Todavia esses locais passam despercebidos ao SJC, não se mostrando nos dados dos APF. Diante destes dados, é necessário entender que em “se tratando de segurança pública, não são os índices que determinam a política, mas a política que determina os índices” (D‟ELIA FILHO, 2007, p. 17), assim, pode-se concluir que o encarceramento cumpre uma função essencial para o sistema capitalista, como aponta Baratta (2002, p. 166): [o cárcere aponta, em uma sociedade capitalista, para uma] relação de subordinação, ligada estruturalmente à separação entre propriedade da força 8

Manguezal é uma zona úmida, definida como “ecossistema costeiro, de transição entre os ambientes terrestre e marinho, característico de regiões tropicais e subtropicais, sujeito ao regime das marés.” (SCHAEFFER-NOVELLI 1995:07).

12 do trabalho e dos meios de produção e, por outro lado, à disciplina, ao controle total do indivíduo, requerido pelo regime de trabalho na fábrica e, mais em geral, pela estrutura de poder em uma sociedade que assume o modelo de fábrica.

Em outras palavras, o cárcere apresenta-se como instrumento para disciplinar as classes “desajustadas” às ordens vigentes: a disciplina, enfim, apresenta-se como o conjunto de mecanismos através os quais se dispersam e mantém a supremacia sobre os anormais, conseguindo fazer com que estes acatem suas regras e perpetuem a reprodução do próprio capital. Nesta esteira, a disciplina é entendida como a técnica de poder aplicada para a educação e/ou reeducação da alma e do corpo dos indivíduos no intuito de docializar os corpos, formatando e normalizando suas condutas. Esta espécie de poder é identificada em instituições que interpretam as ações do indivíduo à parte da sociedade, e por isso utilizam técnicas como a vigilância, a hierarquização das relações de produção, as cotas de produção, imposição de ritmos de trabalho e etc. - a disciplina é o que o cárcere, o quartel, a fábrica, a escola, o hospital psiquiátrico ou a igreja tem em comum: a padronização dos sujeitos às ordens dominantes. Neste sentido, Foucault (2010, p. 75) mostra que O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão? (...) Se a instituição-prisão resistiu tanto tempo, e em tal imobilidade, se o princípio da detenção penal nunca foi seriamente questionado, é sem dúvida porque esse sistema carcerário se enraizava em profundidade e exercia funções precisas.

Assim, o cárcere opera como mecânismo “normalizador”, que impõe determinadas práticas “civilizadas”, ou consideradas normais, aos demais desajustados. As representações construídas em torno do objeto (seja o traficante de drogas ou a favela) subsidiam ações repressivas e o que sustenta essas representações é a disputa pela verdade, vale dizer, o conflito de relações sociais. Porém, esta questão moral passa a se instrumentalizar na segurança pública no momento em que o Estado passa a promover ações para excluir o conflito, que se baseia justamente no discurso e nos interesses de determimada ordem.

Considerações Finais Por fim, é necessário explorar com maior detalhe uma reflexão sobre uma particularidade do exercício do controle social operado pelo SJC sobre as drogas. Inicialmente é preciso considerar que o controle social exercido para excluir um conflito

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social opera com a lógica que tal conflito funciona em oposição a uma determinada ordem social. Por isso a questão de compreender a demanda por ordem é determinante para compreender o objeto da questão criminal (BATISTA, 2009), considerando que a política pública antidrogas adotada pelo Brasil é historicamente influenciada pelos Estados Unidos da América (ROSA, 2014) a partir do início do século XX até sua atual configuração amparada no neoliberalismo como ordem política e econômica vigente. O neoliberalismo estadunidense é a busca permanente pela generalização da forma econômica de mercado por todo o sistema e corpo social que resulta tanto no investimento do capital humano quanto no controle contínuo dos atos tidos como criminosos, as análises e demais mensurações referentes ao capital investido ao longo da vida permearão a própria quantificação do valor que essas vidas possuem do ponto de vista econômico de mercado. Portanto, as relações sociais analisadas pelos neoliberais estadunidenses não só partem de perspectivas exclusivamente econômicas amparadas no investimento individual do capital humano, como também procuram proporcionar retornos financeiros aos seus investidores. (ROSA, 2012, p. 113)

Para Rosa (2012), a política criminal que passou a adotar a economia liberal de mercado como base, deu legitimidade para a construção de um direito aplicado a partir de cálculos de utilidade, existindo uma estreita ligação entre os objetivos da teoria do capital humano e a conduta criminosa, já que ambas, estão abrigadas no ganho de um certo lucro decorrente do investimento em ações de risco. Deste modo, o comportamento delinquente pode ser explicado na busca pelos custos e benefícios que a atividade ilegal pode proporcionar, visto que a possibilidade de uma pessoa ser privada de sua liberdade em uma instituição carcerária é o preço a ser pago pelo cometimento de determinado delito. Portanto, as teorias neoliberais partem do pressuposto de que o sujeito delinquente muitas vezes é capaz de racionalizar as perdas e ganhos que terá em determinada prática delitiva podendo optar entre diversos delitos, o qual lhe proporcionaria o melhor custo-benefício em relação às perdas e ganhos que a atividade possa lhe proporcionar, ou ainda, optar quanto ao custo-benefício entre atividades ilegais e legais, na medida em que os ganhos superem os custos. E esta relação de custobenefício não só é operada por indivíduos, como também pela lógica do Estado, na medida em que se selecionam condutas para tipificar como crime e penas para serem aplicadas a partir de uma economia política. Assim, a política criminal neoliberal aposta na minimização de custos (capitais e sociais) da prática delitiva, impedindo que os crimes venham a ser cometidos, como também busca a minimização dos seus gastos com punições.

14 A lei é a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa punição seja eficaz. Primeiro, vai se definir o crime como uma infração a uma lei formulada; logo, não há crime e é impossível incriminar um ato enquanto não há uma lei. Segundo, as penas devem ser estabelecidas, e estabelecidas de uma vez por todas, pela lei. Terceiro, essas penas devem ser estabelecidas, na própria lei, de acordo com uma gradação que acompanha a gravidade do crime. Quarto, o tribunal penal doravante só terá uma coisa a fazer: aplicar ao crime, tal como foi caracterizado e provado, uma lei que determina de antemão que pena o criminoso deve receber em função da gravidade do seu crime. Mecânica absolutamente simples, mecânica aparentemente óbvia, que constitui a forma mais econômica, isto é, menos onerosa e mais certeira, para obter a punição e a eliminação das condutas consideradas nocivas à sociedade. A lei, o mecanismo da lei foi adotado no poder penal, creio eu, no fim do século XVIII, como princípio de economia, no sentido ao mesmo tempo lato e preciso da palavra “economia”. O homo penalis, o homem que é penalizável, o homem que se expõe à lei e pode ser punido pela lei, esse homo penalis é, no sentido estrito, um homo oeconomicus. E é a lei que permite, precisamente, articular o problema da penalidade com o problema da economia (Foucault, 2008, p. 341).

Segundo Foucault (2008), a problemática das drogas foi reconhecida não apenas como um fenômeno de mercado permeado por uma análise econômica, mas também como um exemplo do funcionamento de certa economia da criminalidade. Até a década de 1970, as políticas de esforço da lei9 visavam exclusivamente à redução da oferta, do crime e da delinquência em decorrência da droga através da redução de sua quantidade disponibilizada no mercado. Sendo assim, havia uma busca constante em desmantelar as redes de distribuição das drogas, operando até mesmo na oferta do crime, procurando reduzi-lo e limitá-lo por meio de uma demanda negativa cujo custo jamais deverá superar aquele gasto com a criminalidade cuja oferta se busca limitar. Entretanto, como esperar que pessoas possam analisar o custo-benefício de práticas delituosas, quando não se vislumbram alternativas para elas? Seja por motivos de sobrevivência no sistema capitalista (como a venda de drogas ou crimes patrimoniais) ou por motivos ideológicos (criminalização da pobreza e de movimentos sociais como o MST ou MTST). Por outro lado, a “falencia” da prisão no seu caráter ressocializador aponta na economia existente para esta lógica – é mais lucrativo em termos de perdas e ganhos trabalhar-se com a intimidação para que os delitos não sejam cometidos, do que apostar na recuperação do sujeito explorado, que pressupõe gastos volumosos. Deste modo, fica claro que o SJC opera como mecanismo que gerencia as criminalidades, e na mesma medida passa a sustentar um discurso oficial sobre a manutenção da ordem para a paz social, mas, por outro, exerce uma utilidade para a 9

O esforço da lei é mais do que a simples aplicação da lei. Trata-se de um conjunto de instrumentos postos em prática para dar ao ato de interdição, fundamentado na formulação da lei, uma realidade política e social. O esforço da lei deve ser entendido como um conjunto de instrumentos de ação sobre o mercado do crime que opõe à oferta do crime a uma demanda negativa (FOUCAULT, 2008, p. 348).

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lógica e a ordem política atual, compondo um discruso criminlizante. Neste sentido, o “cidadão de bem”, aquele homem que não é identificado/estigmatizado como criminoso, e que é o oposto das representações negativas que os operadores de segurança pública têm acerca dos delinquentes, serve como construção ideológica essencial para a elaboração teórica da dogmática penal punitivista e excludente.

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