Traje de identidade nacional entre documentário etnográfico e narração

Share Embed


Descrição do Produto

Traje de identidade nacional entre documentário etnográfico e narração
Caterina Cucinotta
CECL, Centro de Estudos de comunicação e linguagem
UNL – FCSH, Lisboa, Portugal

Abstract
The Russian anthropologist Pëtr Bogatyrëv (1893–1971) in 1939 has written a
text about folkloric costumes from Slovakia Moravia where he putted at
opposite sides, fashion with costumes so he discovered strong contrasts
between the two phenomenon: while the first one has got a meaning only in
function of the changing and breaking with the past, the second one lives
thanks to permanence and tradition. This last way of dressing, the one from
folkloric costumes, so firm and predictable, has picked the attention up of
Bogatyrev, who has researched until he discovered the five functions of the
folkloric costume: aesthetic, practice, erotic, magic and regional.
In its intersection with ethno-fiction cinema, genre between ethnographic
documentary and ethnic narration, the national identity costume presents
many interesting aspects still anyone from Seventh art has investigated.
In the costume and fashion's cinematographic analyse, we recognize,
according to Fashion Theory, three analyse levels: filmic, cinematographic
and extra-cinematographic. Through these levels it's possible to bring the
costumes back to possible meanings that, if on the one hand they are
already presents in the clothing theirselves, on the other they are
expressed trough the filmic language, underlinded by the director and
influenced by a specific cultural period.
With the comparated analyse of Trilogia do mar by Leitão de Barros and of
Trilogia da montanha by António Reis e Margarida Cordeiro, I'll do the
point of the situation to analyse filmed costumes in relation with the
differences between fishermen and peasant's communities.

Keywords: traje, vestuário, roupa, cinema, documentário, ficção

Uma introdução ás teorias e ás metodologias
O ponto de partida deste texto é uma reflexão sobre a importância que o
vestuário cinematográfico tem ganho nos últimos vinte anos no plano teórico
graças sobretudo a estudos que vêm de Inglaterra, Estados Unidos, Brasil e
Itália, e que fizeram deste um elemento dramático fundamental da mise en
scene.
Antes de considerar o seu grau de importância, é preciso definir que o
vestuário é a roupa e os acessórios que o actor usa para acompanhar a sua
transformação visual como personagem cinematográfica. A investigadora
brasileira Janice Ghisleri definiu certas diferenças entre vocábulos que à
primeira vista podem parecer de igual significado: enquanto as
indumentárias se referem a todo o guarda-roupa de uma determinada época, o
vestuário é um conjunto de peças vestidas e o figurino será o traje de uma
personagem individual (Ghisleri, 2005).
De facto, o vestuário, sendo uma ferramenta útil para a mobilização do
espectador, possui uma relação e estabelece um diálogo contínuo entre o uso
real das peças de vestuário e o uso do vestuário pensado para a ficção
bidimensional do ecrã onde se experimentam novas maneiras de utilizar os
signos vestimentais, criam-se novas delimitações entre corpo e mundo, entre
pele e tecido e, neste caso, também entre documentário étnico e ficção.
Sendo um sector a meio caminho entre a moda e o cinema, o vestuário
cinematográfico tem várias linhas de interpretação em função da
investigação pretendida: um estilista verá no vestuário cinematográfico
pormenores que se referem à moda; pormenores que um investigador de estudos
fílmicos pode não ver.
O termo fashion theory refere-se a um âmbito interdisciplinar que contempla
a moda como um sistema de significados em que se produzem as representações
culturais e estéticas do corpo revestido[1]. O sistema moda é entendido
como uma dimensão especial da cultura material, da história do corpo, da
teoria do sensível.
Patrizia Calefato, professora italiana, desenvolve, desde os anos 1990, no
âmbito da mass-moda e da performance do corpo, a teoria do corpo revestido
que vem da fashion theory. No texto-tecido cultural expressam-se traços
individuais e sociais que vão buscar elementos como o género, o gosto, a
etnicidade, a sexualidade, a pertença a um grupo social ou a transgressão.
Começam por aqui as ligações entre a teoria do corpo revestido do ecrã
bidimensional e a realidade tridimensional dos corpos vestidos.
Os lugares da cultura determinam a moda, ou as modas, antes que a pesquisa
estilística elabore a própria mercadoria como signo de luxo: cada moda tem
dentro de si uma narrativa cultural, uma história que explica costumes e
determina os seus ritmos. A moda em si constrói significados e figuras do
imaginário (mitos) reproduzidos na esfera social e torna-as naturais e
eternas. Os meios de comunicação, o cinema antes de todos os outros, são já
um grande depósito cultural e motor do imaginário social e agem em estreita
sinergia com a moda. Novas teorias crescem em relação ao sentir o
revestimento do corpo como um travestismo que permite não aderir aos
estereótipos sociais ou sexuais mas sim realizar performances que provocam
prazer.
Analisar o vestuário cinematográfico implica procurar interpretá-lo
principalmente a três níveis: o nível fílmico, o nível cinematográfico, e o
nível extra-cinematográfico, sendo que destes, o nível menos investigado é
o do vestuário no texto fílmico.
No nível cinematográfico existe sempre uma relação e um diálogo contínuo
entre o uso real das peças de vestuário e o uso do vestuário pensado para a
ficção bidimensional do ecrã: há peças que funcionam na vida real mas que
não ligam bem com as regras do ecrã onde tudo fica diferente, desde as
cores até a textura. O nível cinematográfico será portanto a relação
dialéctica entre a realidade e a ficção, entre o uso real das peças de
vestuário e o uso cinematográfico das mesmas. Este nível desagua
naturalmente no interior do nível extra-cinematográfico pois cada peça de
roupa traz ao espectador um background visual que vem da vida real, do
mundo extra-cinematográfico e dos estereótipos que este apresenta. Da mesma
maneira as imagens cinematográficas trazem para a realidade os modelos que
através da roupa se reproduzem em centenas nas ruas.
Por fim vem o nível fílmico, o mais complexo, onde o vestuário ganha
importância porque faz parte da estreita ligação entre actor e personagem:
o que o actor quer transmitir ao espectador tem o seu começo exterior no
guarda-roupa. O vestuário pode, neste sentido, representar uma voz
fundamental do contracto fiduciário de Greimas que cada filme estipula com
o espectador, o qual decide conscientemente acreditar no que as imagens
fictícias lhe mostram com base numa coerência estabelecida por contrato.

O traje popular na etno-ficção portuguesa.
Apresenta-se interessante analisar um ou mais filmes do ponto de vista do
vestuário, porém, poucas ou nulas são as análises em relação ao cinema
nacional. Para começar é possível fazer uma primeira distinção entre dois
géneros de vestuário: o primeiro, que cria protagonistas ou, como se dizia
antigamente, divos, personagens que tornam a própria actuação o ponto focal
da história que se quer contar: Charlie Chaplin, Marylin Monroe, Greta
Garbo, Amália Rodrigues, Vasco Santana. Este vestuário cinematográfico
ajuda na construção da star por parte do actor que muitas vezes, sobretudo
até os anos 60, tornava-se prisioneiro da própria personagem
cinematográfica. O segundo tipo é o vestuário privado de grandes traços
individuais que permite a criação da personagem coral representada pela
comunidade. Neste texto vamos introduzir este último.
Em Portugal, a corrente cinematográfica da etno-ficção resistiu ás modas do
tempo e por vários motivos pode representar uma das faces mais
interessantes na teoria do corpo revestido. Ao contrário de outros géneros
cinematográficos esta tem por objecto de estudo não o indivíduo mas a etnia
ou grupo social, a não ser que ele a represente e portanto dentro da teoria
do corpo revestido alcança uma posição importante na variante da
uniformização e desidentificação.
Enquanto a primeira obra mundial apareceu nos Estados Unidos em 1926 com o
filme Moana, de Robert Flaherty, no cinema nacional a etno-ficção estreou-
se em 1930 com a longa-metragem muda Maria do Mar, de Leitão de Barros. O
filme faz parte da Trilogia do mar juntamente com a docu-ficção Nazaré,
praia de pescadores (filmada em 1927, estreada em 1929) e a outra etno-
ficção Ala arriba! (1942). Esta trilogia e a Trilogia de Trás-os-Montes de
Antonio Reis e Margarida Cordeiro são as que vou analisar tendo em conta
que são particularmente interessantes do ponto de vista da comunidade/etnia
filmada na relação corpos/ambientação/câmara.
A trilogia da montanha de António Reis e Margarida Cordeiro compreende Trás-
os-Montes (1976), Ana (1984) e Rosa de areia (1989) [2].
A primeira diferença importante encontra-se entre uma simples peça de roupa
e um verdadeiro traje popular.
O estudo da roupa popular tradicional indica uma direcção precisa e quase
fatal, que nos leva da roupa ao traje. Retrocedendo no tempo e na
documentação, encontramos a roupa, completa em todas as suas funções,
práticas e simbólicas: técnica, económica, jurídica, social, ritual,
mágica, psicológica. A roupa é matéria, produto, valor, signo.
Saindo da sociedade tradicional perdem-se progressivamente as funções
práticas da roupa e chega-se ao traje. Que reassume e quase destila apenas
as funções simbólicas da roupa.
O traje exacerba as funções de identificação de grupo e exacerba
também as funções relacionadas com a proteção e reafirmação
psicológica. O traje emerge numa situação de "modernização", de
crise da cultura tradicional, e coloca-se como uma jangada nas
ondas das transformações. (Sanga, 1986, 3)
Nenhuma outra afirmação podia ser mais adequada à nossa pesquisa, porque
confrontando algumas cenas de duas trilogias de um mesmo género
cinematográfico, procuraremos demonstrar o quanto o traje pode ser
importante na compreensão do papel do cinema e através de que mecanismos.
A Trilogia do Mar começa em 1927 com o documentário Nazaré, praia de
pescadores, e termina em 1943 com Ala arriba!, um espaço de tempo muito
vasto, que se espelhará sobretudo no estilo utilizado, se pensarmos, por
exemplo, que as duas primeiras obras, entre as quais está também Maria do
Mar, de 1929, são mudas e a última é sonora. E trata-se de um espaço de
tempo quase infinito se pensarmos que, entre o primeiro filme, um
documentário, e o último, uma ficção, com uma etno-ficção pura pelo meio,
Leitão de Barros não só mudou de registo, concentrando-se mais na narração
e afastando-se do documentário, mas mudou também de cenário. Se os dois
primeiros filmes pretendem ser um retrato da Nazaré no final dos anos 20 do
século passado, o último narra factos e vicissitudes dos habitantes da
Póvoa do Varzim.
Um ponto comum, evidenciado no próprio nome da trilogia, é que nunca o mar,
como elemento central das três obras, será abandonado. Mas é também verdade
que nos quase vinte anos que separam as duas primeiras obras da última,
alguma coisa teria forçosamente de mudar.
A instabilidade conceptual da etno-ficção (Batista, 2009, 112) pode
relacionar-se com os conceitos de público e privado porque por um lado os
elementos documentais (ou de docu-ficção) mostram a parte pública da vila
através de grandes planos, panorâmicas e cenas do dia a dia da sua
comunidade. Quando uma personagem passa dum espaço aberto a um fechado, de
uma aldeia para a cidade, da rua para a sua própria casa, o seu próprio
vestuário mudará em relação à importância que se dá ao binómio
público/privado.
Isto acontece particularmente com o vestuário das mulheres filmadas, que
vão perdendo camadas de roupa à chegada a casa, sobretudo chapéu e xaile
que, caindo, deixam finalmente ver o verdadeiro corpo delas sem escondê-lo
dentro da escuridão uniforme da cor preta.
As cenas de baile são muito interessantes do nosso ponto de vista pois
introduzem dentro do filme o elemento do sonho: a narração suspende-se para
deixar espaço ao espectador de contemplar e descobrir a beleza das
tradições da comunidade. Não é raro estas sequências começarem com uma
panorâmica para mostrar a elegância do vestuário que juntamente com os
passos de dança dos actores formam um único corpo social, cultural e
público.
Na sequência da festa na aldeia em Ala Arriba!, o baile é filmado de cima
numa panorâmica quase folclórica que mostra a beleza da dança poveira, foca
a atenção na relação entre vestuário e movimento, sublinhando as qualidades
plásticas e estéticas dos figurinos e das silhuetas que desenham.
E é exactamente o elemento folclórico um dos pontos centrais na distinção
entre esta trilogia e a de Reis/Cordeiro. Enquanto Leitão de Barros filmava
uma realidade existente, ainda que longínqua e a necessitar de ser
descoberta e divulgada pela câmara de filmar, Rei e Cordeiro tentam
construir a sua obra cinematográfica baseando-se na memória.
Enquanto o sonho permanece sempre um elemento comum, a memória e o folclore
surgem-nos como as suas emanações.
Numa entrevista de 1997 a propria Margarida Cordeiro declarou:
O grande erro do cinema è simplificar a realidade. Há uma limpeza no
campo visual que tem que se decidir. Uma reorganização do real,
rigorosa. A realidade filmada por nós não è simplificada, è
complexificada – tanto que o filme não tem realidade nenhuma, tem
muitas. A nossa imagem não è seca. (…) portanto, nós tentamos pegar na
realidade e criar outra realidade – completa. È pegar no real e
acrescentarmos o que sentimos, o que nada tem a ver com o neo-
realismo. È esse dar qualquer coisa que è o cinema. (…) (Cordeiro,
1997, 15)
Se Leitão de Barros sublinhava a força da comunidade de pescadores com
cenas de dança, amplas panorâmicas e sequências que eram verdadeiros
retratos dos costumes das gentes e locais filmados, Reis e Cordeiro
concentram a comunidade transmontana em poucas personagens individuais.
Por exemplo, várias sequências de Ana, o segundo filme da trilogia, mostram-
nos esta peculiaridade. Ana é o nome da protagonista, uma velha senhora que
descobre que está para morrer e que lentamente se deixa ir de encontro ao
seu destino.
E será Ana, a mãe, que dará vida à ideia dos realizadores no que respeita à
comunidade no seu todo. O orgulho com que Ana decide esconder aos seus
familiares a verdade da sua situação culmina, a meu ver, no longo passeio
que a levará até às margens de um lago. Aí, nós espectadores, conseguimos
concentrar toda a nossa força no seu corpo. Ana sublinha o ritual do
carácter – chegando à paisagem interior pelo interior da paisagem (Matos-
Cruz, 1997, 204). Toda a comunidade transmontana é capturada naquele traje
e nos passos daquela velha senhora. Estamos, na minha opinião, perante um
exemplo claro de corpo revestido.
Podemos afirmar que se para Leitão de Barros o traje popular é apenas um
elemento regional e estético, já que o seu cinema vive muito de um certo
folclore narrativo, em Reis/Cordeiro é muito mais complexo, pois
substituindo o folclore pelo sonho e a memória, juntam-se-lhes elementos da
magia e do erotismo.
A memória não precisa do folclore pois alimenta-se das recordações
pessoais, transformando as longas panorâmicas (folclóricas) da comunidade
de pescadores em sequências poéticas em que todos os costumes, todos os
modos de fazer e linhas de pensamento da comunidade se condensam numa só
personagem.
Na trilogia de Trás-os-Montes, parece que a comunidade transmontana tome
consciência, por um lado, da importância da subjectiva indirecta livre, e
por outro, do traje popular como "revestimento nos casos em que este
comunique algo de interessante sobre a cultura, social e pessoal, do
próprio corpo" (Calefato, 1986).
Podemos então concluir que o traje de Ana, mais do que um simples vestido,
é um revestimento que nos diz muito, sobre ela e sobre a comunidade a que
ela pertence.
Apesar das ideologias e dos diferentes momentos históricos em que foram
filmadas as duas trilogias, a análise do traje de Ana diz-nos também que
todo o vestuário feminino das duas trilogias se condensa na representação
de qualquer coisa mais, que se afasta do conceito privado de corpo para se
aproximar de um conceito mais público de corpo social.
Um olhar geral à comunidade de pescadores descobre que existe uma vontade
ínsita nas regras do vestuário nazareno em esconder a mulher e as suas
formas, muito menos forte mas presente também nas poveiras de Ala arriba!
A melhor subversão talvez se baseie no desfigurar os códigos em vez de
destruí-los? A mulher é maltratada, encaixotada, torcida, encapuzada,
camuflada para apagar cada traço dos seus atractivos anteriores (rosto,
seios, sexo); produz-se (...) um corpo sem a parte da frente, uma aplicação
monstruosa, uma coisa. (Barthes, 2006, 129). As mulheres da Nazaré não são
mulheres tal como não são indivíduos livres mas são a representação da
comunidade, o reflexo desta e a prova visível está no vestuário preto que
Leitão de Barros nos mostra.
As imagens transmitidas pelas mulheres nazarenas e poveiras é de total
pertença à comunidade, de total aceitação das regras da sociedade onde
vivem: o corpo delas não é visível senão na intimidade da própria casa, em
frente aos maridos. Uma personagem que passa de um espaço aberto a um
fechado, de uma aldeia para a cidade, da rua para a sua própria casa,
mudará também o seu próprio vestuário: as mulheres filmadas vão perdendo
camadas de roupa à entrada em casa, sobretudo chapéu e xaile que caindo,
deixam finalmente ver o verdadeiro corpo delas sem escondê-lo dentro da
escuridão uniforme da cor preta.
É a partir desta tomada de consciência de pertença à comunidade que em
Maria do Mar se verifica um caso bastante ambíguo que, do nosso ponto de
vista, continua por um lado a reforçar a instabilidade da ficção no
documentário e por outro tem como protagonista o corpo da mulher que dá o
nome ao filme.

E se fossemos dar um banho?
Começa assim, com este cartão, a sequência, com a câmara a filmar as
raparigas que se despem, enquanto, graças à montagem alternada, vemos os
rapazes fazer a mesma coisa. A parcial nudez destes é posta em contraste
com os vestidos brancos delas. À partida do barco com as raparigas, a
atitude da câmara começa a mudar pois fica "sentada" com elas em cima do
barco, com o resultado de planos apertados, abanados, com muitos detalhes
de decotes nos vestidos brancos: a câmara passou de uma filmagem pública,
quase documental, de um banho de mar a um zoom insistente, quase mórbido,
para conseguir entrar no privado das raparigas. A alternância na montagem
dos rapazes e das raparigas continua em planos abertos até que um dos
rapazes corre para salvar a personagem de Maria do Mar da água. Aqui
clarificam-se finalmente as intenções da câmara: no caminho do mar até ao
areal esta quase espia o corpo sem reacções de Maria do Mar nos braços
fortes do rapaz até à descoberta de um seio a sair do vestido molhado, num
plano breve, antes que a atenção se foque muito sobre o seio.
Trata-se de um movimento de câmara que vai à procura do indivíduo além da
comunidade e, tendo em consideração a altura em que o filme foi rodado, foi
um gesto bastante atrevido. Já em 1918 Leitão de Barros tinha sido alvo de
fortes críticas da parte da imprensa por ter mostrado, escandalosamente, o
tornozelo de uma mulher espanhola no filme Mal de Espanha.
Mas o potencial que fez do filme um clássico está mesmo na maneira de
filmar, entre documentário e ficção: o espectador possui uma linha
narrativa que vai-se intercalando com momentos documentais de grande
importância do ponto de vista cultural e visual.
A análise demonstra como não são só as imagens a mudar mas também a atitude
da câmara de filmar: maneiras diferentes em tratar os assuntos. Enquanto
uma panorâmica ou uma câmara fixa satisfaz para mostrar a beleza das
aldeias da Povoa do Varzim e Nazaré, isto não é suficiente para justificar
a curiosidade em entrar no privado dos protagonistas. Em Maria do Mar
parece um meio para pedir desculpa ao espectador por ter perdido a
orientação e durante alguns segundos, na confusão do movimento de câmara a
mão, ter mostrado um seio.
Mesmo esta nudez, apesar de parcial, faz-nos reflectir sobre a maneira como
uma mulher podia libertar-se das regras da comunidade: fique claro que na
realidade não chega o desnudar-se dos trajes populares que vão atrás das
regras rígidas de uma sociedade fechada para conseguir libertar-se dos
vínculos que, naquele caso, afastavam Maria do Mar do jovem, só porque
fazia parte de uma família rival. Que fique claro que na realidade as
coisas são muito diferentes...
Mas na ficção cinematográfica um elemento tão transgressivo como um corpo
feminino quase nu entre os braços de um homem inimigo chega para fazer
mudar, depois, o enredo de toda a história.
A partir daquele momento, liberta das regras da comunidade, Maria do Mar
consegue nas cenas seguintes encontrar a força para se rebelar contra a mãe
e casar com o seu amado, contra tudo e contra todos.
Segundo a nossa opinião, estamos perante uma prova clara de quão útil pode
ser o vestuário para visualizar rapidamente a mudança interior de uma
personagem.
Além da força mais ou menos incontrolável da instabilidade entre
documentário e ficção, o que fica claro é uma nítida diferença entre as
duas comunidades, de mar e de montanha e em geral entre estas comunidades
espalhadas por Portugal.
"Trás-os-Montes não é um filme que mistura ficção e reportagem,
objectividade e subjectividade, passado e presente. (…) É um filme sobre
Portugal e Portugal (Lopes, 1976, 154): se começamos por aqui, uma das
características que distingue as duas comunidades será mesmo a liberdade
individual das personagens da Trilogia de Reis/Cordeiro que só raramente se
encontra na Trilogia do Mar.
Mais especificamente, se a Trilogia do Mar é caraterizada por uma pressão
que o individuo exerce sobre a comunidade ( e em cada um dos três filmes
isto é facilmente encontrado também porque auxiliado pela ficção), pelo
contrario, na Trilogia de Trás-os-Montes encontra-se uma maior liberdade
individual que a espaços, mais do que interrompida, é talvez suportada por
um elemento mágico e de fascínio dentro da comunidade.
Muitas vezes é através do uso do vestuário que brota esta caraterística
mágica:
Os actores não são profissionais, os actores são o povo
trasmontano. Actores, além de outros, são o sr. Armando, camponês
de Freixiosa, que, ao vestir a festiva capa mirandesa, retorna à
sua dimensão de oráculo. (s/ind. autor, 1975, 149)
"É conhecido que os trajes podem ter um papel importante nos rituais, nos
actos mágicos, na medicina popular, etc..." (Bogatyrev, 1986, 98). É assim
introduzido o discurso sobre a função mágica do traje popular, função esta
que está presente de modo maciço na Trilogia de Trás-os-Montes onde cada
personagem é a representação de um culto, de uma específica religião ou
faixa etária.
As mulheres vestidas de preto, viúvas de vivos, os maridos em França ou na
Alemanha (Lívio, 1997, 153), os rapazes que atravessam os séculos num
passeio pelo campo, vestidos de pagens medievais (Navarro de Andrade, 1996,
185), são alguns exemplos presentes em Trás-os-Montes onde o documentário
se transforma em realidade transposta e a ficção em fantástico.
Aquela personagem que está num certo filme, está a viver algo que
aconteceu a alguém – e por ser vivido tem essa intensidade e essa
verdade, porque as coisas têm que ser bem pensadas, bem vividas e
até sonhadas. (Cordeiro, 1997, 17)

O cinema é gesto: conclusões.
A sociedade do inicio do século passado, perante a perda da sua própria
gestualidade natural, com o cinema mudo tentou pela ultima vez reapropriar-
se do que perdeu registando ao mesmo tempo esta perda (Agamben, 1996). De
facto, continua Agamben, sendo o elemento do cinema o gesto e não a imagem,
ele (o cinema) pertence também á ordem da ética e da politica e não só da
estética.
Partindo do pressuposto que o que fez a diferença neste tipo de cinema foi
a ideia da descoberta, o que Agamben acrescenta é a necessidade, por parte
da sociedade, desta descoberta. Um género de descoberta, a da etno-ficção,
que representa o regresso ás raízes e a consequente ida á descoberta do que
se está a perder.
E se o gesto indica algo que se mete á boca para impedir a palavra, a
improvisação do actor não profissional aparece para suprir esta
impossibilidade de falar. No nosso caso o vestuário pode perfeitamente
completar e acompanhar o quadro sendo analisado na sua posição dramática
dentro do testo fílmico, no terceiro nível de analise.
A etno-ficção sai literalmente da cidade para ir descobrir um Portugal
diferente feito de grandes espaços abertos, de personagens que vivem com
regras sociais completamente fora do comum tentando ficcionar um pouco a
narração: isto é um gesto primeiro que estético, politico e ético.
Tentando desconstruir a afirmação de Agamben e juntando-lhe a desfiguração
de Barthes, a conclusão em relação ao interesse da etno-ficção resulta ser
a tendência por parte do realizador em procurar o traje em lugares onde a
moda ainda não tivesse feito o seu ingresso.
O traje é uma forma de imitação dos antepassados, ao passo que a moda é uma
forma de imitação dos que estão próximos no espaço. (Tarde, 1901)

Bibliografia
- Sanga G., - "Introduzione. Dall'abito al costume" La ricerca
folklorica, contributi allo studio della cultura delle classi
popolari. L'abbigliamento popolare italiano. Rivista semestrale,
numero 14, ottobre 1986
- Bogatyrev P., - "Le funzioni del costume popolare nella Slovacchia
morava" La ricerca folklorica, contributi allo studio della cultura
delle classi popolari. L'abbigliamento popolare italiano. Rivista
semestrale, numero 14, ottobre 1986
- AA.VV. (1997) – António Reis e Margarida Cordeiro, a poesia da terra.
Cineclube de Faro
- Barthes R., (2006) - Il senso della moda, Torino: ed. Einaudi
- Giannone A., Calefato P., (2007) - Manuale di comunicazione,
sociologia e cultura della moda, volume V, Performance, Roma: meltemi
editore
- Agamben G., - "Note sul gesto" artigo em Trafic, n.1, de Mezzi senza
fine, Bollati Boringhieri, disponivel em
http://www.thetqr.org/Archivio/TQR%2011%20it/gestacci.html, 1992.
Ultimo acesso em 22 Setembro 2011;
- Ghisleri J., - "Como entender a importância do figurino no
espectáculo, artigo disponível" em
http://artes.com/sys/sections.php?op=view&artid=15&npage=3, ultimo
acesso em 21 Setembro 2011;


Notas
[3] O nome fashion theory remete para expressões como Film theory, Gender
theory, Queer theory...
2 Há ainda uma terceira que não vai ser qui analisada, a Trilogia das
Fontainhas, de Pedro Costa: Ossos (1997), No quarto da Vanda (2000) e
Juventude em marcha (2006).

-----------------------
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.