Trajetórias de autores e vítimas de homicídios em uma área de Porto Alegre em 2005

August 11, 2017 | Autor: Acacia Hagen | Categoria: Policia
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31º Encontro Anual da ANPOCS 22 a 26 de outubro de 2007 Caxambu, MG

Seminário Temático 8: Conflitualidade social, acesso à justiça e reformas nas instituições coercitivas do Sistema de Segurança Pública Título do trabalho: Trajetórias de autores e vítimas de homicídios em uma área de Porto Alegre em 2005

Autoras: Acácia Maria Maduro Hagen Aida Griza Instituição: Academia de Polícia Civil do Estado do Rio Grande do Sul

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Apresentação A partir dos dados disponíveis no sistema Consultas Integradas, da Secretaria da Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul, foram analisados os registros referentes aos homicídios ocorridos na área correspondente a uma delegacia de polícia de Porto Alegre no ano de 2005. Além da descrição do fato, foram também consultados os registros de todos os envolvidos, seja como vítimas ou como autores. A construção das trajetórias individuais a partir dos registros criminais, embora constitua uma forma limitada de abordagem, permitiu identificar possíveis diferenças entre as motivações para os homicídios, além de mostrar, em alguns casos, as relações sociais, especialmente familiares, das quais os indivíduos participavam. Os objetivos norteadores do trabalho foram os seguintes: – Conhecer características dos homicídios praticados na área da 18ª DP de Porto Alegre em 2005, bem como das vítimas e dos suspeitos ou autores presumidos, comparando-as a resultados de outros estudos. – Realizar estudo exploratório no sentido de otimizar a metodologia de análise de homicídios baseada em registros policiais de ocorrências. – Verificar os limites e possibilidades de análise dos homicídios com base em tais registros. O presente estudo representa um aprofundamento da pesquisa sobre criminalidade, na medida em que se detalha a análise dos registros de ocorrências e levantam-se possibilidades de uso para a análise criminal. Metodologia A fonte principal das informações utilizadas neste trabalho foi o sistema Consultas

Integradas,

acessado

de

http://www.consultasintegradas.rs.gov.br,

forma que

restrita

através

disponibiliza

do

endereço

informações

sobre

ocorrências e procedimentos policiais, presos e outras de interesse da segurança pública. O acesso é restrito para garantir a privacidade dessas informações, e não há a possibilidade de modificação dos dados, apenas de consulta. Foram utilizadas as seguintes formas de pesquisa: indivíduo, detento e ocorrência. A pesquisa de indivíduo pode ser feita pelo RG, nome, nome anterior, nome do pai e/ou nome da mãe. Apresenta os dados básicos (nome, data e local de

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nascimento, CPF, RG, estado civil, altura, cor da pele e dos olhos, filiação), as ocorrências nas quais o indivíduo é citado, os procedimentos policiais instaurados contra ele e sua fotografia, conforme a carteira de identidade. A pesquisa de ocorrência pode ser feita diretamente pelo número, tendo como resultado uma ocorrência específica, ou por critérios que apresentam listas de ocorrências, que podem a seguir ser abertas individualmente: município, órgão de registro, tipo de delito, RG dos envolvidos, data ou veículo. A pesquisa de detento, através do nome ou código, apresenta os dados básicos, incluindo a situação (recolhido, em liberdade ou foragido), a lista dos visitantes cadastrados, o histórico de visitas recebidas, trabalho prisional, fotos e movimentações. Esse item refere-se aos seguintes eventos, informando a data e o número do documento de autorização: entrada (cada ingresso no sistema prisional, com motivo e enquadramento legal), não apresentação no horário (quando no regime semi-aberto), fuga (quando no regime fechado), apresentação espontânea, captura, liberdade (com indicação do motivo), audiência (número do processo, local e motivo para que o preso seja conduzido a audiências), comunicação de pena, carta de guia1, transferência (presídio anterior, presídio de destino, motivo) e óbito. Para as informações sobre os processos judiciais, foram pesquisados os sites do

Tribunal

de

Justiça

do

()

Estado e

da

do Justiça

Rio

Grande

Federal

da

do 4ª

Sul

Região

(). Ambos fornecem dados sobre processos a partir dos números; a Justiça Federal permite a pesquisa por nomes, e mostra as sentenças, o que é restrito no Tribunal de Justiça. Nesse último, a alternativa é pesquisar o Diário da Justiça Eletrônico, que permite a busca por nome. Para obter informações não oficiais, o recurso utilizado foi a pesquisa no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre, em sua versão eletrônica, disponível em . Os casos da presente pesquisa são os homicídios ocorridos na área da 18ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre em 2005. A delegacia foi escolhida por apresentar o maior número absoluto de homicídios em 2005, entre as 24 delegacias 1

Código de Processo Penal, art. 676 - A carta de guia, extraída pelo escrivão e assinada pelo juiz, que a rubricará em todas as folhas, será remetida ao diretor do estabelecimento em que tenha de ser cumprida a sentença condenatória, e conterá:I - o nome do réu e a alcunha por que for conhecido;Il a sua qualificação civil (naturalidade, filiação, idade, estado, profissão), instrução e, se constar, número do registro geral do Instituto de Identificação e Estatística ou de repartição congênere;III - o teor integral da sentença condenatória e a data da terminação da pena.

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do município. Este órgão policial, cujos limites territoriais foram modificados através do Decreto Estadual 37.331/972, abrange os seguintes bairros, no todo ou em parte: Mário Quintana (bairro sede), Passo das Pedras, Rubem Berta e Protásio Alves. Para definir os casos da pesquisa, ou seja, os homicídios consumados (exceto de trânsito), procedeu-se a uma análise documental de registros policiais de ocorrências referentes a este fato, local e período, disponíveis no site. Foram verificados 71 registros, relativos a 57 fatos/ocorrências. O número superior de registros em relação a fatos explica-se, pois mais de um documento pode corresponder ao mesmo fato. Isto ocorre mais frequentemente quando a vítima não é identificada no local do crime: no momento da identificação, é feito um registro de reconhecimento de cadáver que se relaciona a um anterior de homicídio ou encontro de cadáver. Entretanto, ocorre também o duplo registro do mesmo fato, o que requer muito cuidado com o uso dos registros de ocorrência policial como estatísticas da criminalidade. Por outro lado, alguns homicídios podem não aparecer registrados como tais. Buscaram-se, então, registros de encontro de cadáver e de reconhecimento de cadáver, que foram considerados homicídios nos casos em que houve utilização de arma de fogo3. Nessa pesquisa, seis dos 57 fatos não constavam registrados como homicídio consumado, mas como encontro de cadáver (cinco) e reconhecimento de cadáver (um). A busca de informações também não se prendeu àqueles fatos registrados inicialmente na 18ª DP, sendo que nove foram registrados em órgãos diferentes da 18ª DP e encaminhados posteriormente para serem investigados nesta delegacia. Em termos metodológicos, a descrição da seleção documental é importante em função das características dos registros policiais, especialmente da sua relação numérica com os fatos ocorridos. Observa-se, a seguir, a distribuição dos fatos de acordo com o número e o tipo do registro:

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A delimitação da 18ª DP é assim descrita, conforme o Decreto citado: “Desde os limites geográficos com o Município de Viamão, pela Avenida Protásio Alves, inclusive, pela Rua Tenente Ari Tarragô, inclusive, pela Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, exclusive, até os limites geográficos com o Município de Alvorada.” 3 Das ocorrências de homicídio, apenas três não continham indicação do instrumento utilizado no crime (arma de fogo); das de encontro de cadáver, apenas uma, e a de reconhecimento de cadáver não tem indicação de instrumento, mas supõe-se que se trata de homicídio por outros elementos, como a forma e o local onde o cadáver foi encontrado.

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Quadro 1 – Fatos distribuídos pelo tipo e número de registros Número e tipo do registro Nº de fatos 1 HOM 43 2 HOM 4 1 HOM + 1 RC 4 1 EC + 1 RC 4 1 EC + 2 RC 1 1 RC 1 Total 57 HOM=homicídio; RC=reconhecimento de cadáver; EC = encontro de cadáver.

Apesar de a maioria dos fatos (43) ter sido documentada através de um só registro de homicídio, desconsiderar-se as demais possibilidades prejudicaria o estudo. Vê-se que quatro dos fatos foram registrados como homicídio através de dois documentos diferentes, indicando duplicação de registro. Sem uma verificação posterior, esses quatro fatos teriam sido contados como oito. Por outro lado, registros de encontro de cadáver também devem ser consultados, pois podem estar relacionados a fatos de homicídios4. Isso é importante não apenas para a contagem dos fatos, mas para a coleta de informações sobre vítimas e suspeitos que eventualmente não constem no registro inicial de homicídio. A vítima, comparada aos fatos e aos suspeitos, é a unidade de observação/análise mais desagregada nesse tipo de estudo: uma vítima de homicídio nunca estará em dois fatos diferentes, mas um só fato pode ter mais de uma vítima. As características do fato podem ser atribuídas a cada uma das vítimas, com a vantagem de se desagregar os dados. Por exemplo, em um fato com duas vítimas, uma pode ter sofrido o homicídio através do uso de arma de fogo e a outra por força bruta. Quadro 2 - Fatos distribuídos pelo número de vítimas Nº de vítimas 1 2 3 Total

Nº de ocorrências/fatos 51 05 01 57

Total de vítimas 51 10 03 64

A maior parte dos fatos (51) vitimou uma só pessoa. Conforme se observa na tabela acima, os 57 fatos resultaram em 64 vítimas, pois seis dos fatos registrados possuíam mais de uma vítima. Das 64 vítimas, duas não foram identificadas. Optouse por incluir ambas, apesar da escassez de dados referentes às mesmas, em 4

Registros de falecimento e morte súbita também podem representar homicídios, embora muito raramente.

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função da análise das características dos fatos. Assim,

dos

71

registros

(BO’s)

analisados,

depreenderam-se

57

fatos/ocorrências e 64 vítimas. Variáveis Baseada em pesquisa documental – de registros de ocorrências policiais, as variáveis da pesquisa abrangem as informações constantes no formulário padrão através do qual é feito o registro do fato. Este formulário apresenta diversos espaços, “campos” preenchidos pelos policiais durante o registro, além de um espaço em aberto onde consta o “histórico” da ocorrência, que também foi consultado. A definição das variáveis baseou-se, então, na presença dessas informações nos documentos, bem como no seu nível de preenchimento. Assim, apesar de uma determinada informação constar como campo no formulário, ela pode ter sido descartada como variável em função do baixo ou duvidoso preenchimento da mesma. Com base nesses critérios, optou-se pelas seguintes variáveis: turno, dia da semana, trimestre do ano, ambiente do fato, instrumento utilizado (características do fato), sexo e idade (características da vítima)5. As características temporais do fato podem ser facilmente analisadas, pois se encontram totalmente preenchidas nos registros, não apresentando dados não informados. Resultados Distribuição das vítimas por características do fato: tempo, espaço e instrumento Em relação ao aspecto tempo, a maior parte das vítimas sofreu o homicídio nos turnos da noite ou madrugada (56, 25%), nos finais de semana, ou seja, entre as sextas-feiras e os domingos (48,44%) e no primeiro trimestre do ano (37,50%). Estas características temporais coincidem com os resultados levantados em outros estudos. Porto (2006), tendo o mesmo referencial empírico da presente pesquisa (Porto Alegre – 2005), encontrou 65,60% dos fatos ocorridos durante a noite e madrugada, 48,72% entre sexta e domingo e 30,25% no primeiro trimestre do ano. Gawryszewski, Kahn e Jorge (2004) também encontraram a predominância 5

A informação raça/cor, apesar de disponível nos formulários, é de difícil utilização enquanto variável de pesquisa, uma vez que inexistem dados populacionais para os bairros de Porto Alegre, dificultando assim a comparação. Por outro lado, o preenchimento da mesma nos BO’s é feito através de diversos critérios, enquanto que para o IBGE é auto-declarada.

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dos turnos da noite e da madrugada (41,1% entre 19h e 1h) e dos finais de semana (50%). No que diz respeito ao espaço, a maior parte das vítimas (68,75%) sofreu o homicídio em via pública6, ambiente diverso da residência ou estabelecimento comercial. A predominância da via pública também aparece entre os resultados de Porto (2006), ambiente onde ocorreram 74,01% dos fatos. Finalmente, quanto ao instrumento utilizado, 85,94% das vítimas foram vitimadas por arma de fogo. Percentuais semelhantes foram encontrados por Porto (2006) (86,7%) e Gawryszewski, Kahn e Jorge (2004) (89,6%), o que confirma uma característica dos homicídios contemporâneos apontada na literatura. Carneiro (1997), com base nos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, afirma que “82% dos homicídios praticados no estado do Rio de Janeiro [...] foram cometidos com o concurso de armas de fogo.” (Carneiro, 1997, p.5). Em resumo, as vítimas sofreram homicídio predominantemente à noite ou na madrugada, nos finais de semana, no primeiro trimestre do ano, em via pública e com o uso de arma de fogo. Estes resultados não contrariam a percepção comum acerca do cometimento do crime do homicídio. Os turnos da noite ou da madrugada propiciam a realização de atos cujos autores desejam manter em sigilo, bem como aqueles que envolvem a surpresa da vítima para sua consecução. Além disso, nos turnos da noite e da madrugada e nos finais de semana ocorrem com mais freqüência os contatos sociais livres de controles e constrangimentos formais como aqueles do trabalho, em bares ou ambientes semelhantes, ou mesmo em espaços abertos, muitas vezes com a presença do álcool. Isso parece óbvio, mas alguns crimes, como o estelionato, não envolvem essas condições. Tal pressuposto vale também para explicar a predominância do primeiro trimestre - janeiro a março -, que coincide com o verão, época na qual se observa maior circulação das pessoas em espaços abertos e o contato social com menor controle social. O conhecimento das características temporais dos homicídios é útil em termos de política pública, pois pode informar a distribuição do efetivo policial, tanto o de prevenção quanto o de repressão. Para prevenir-se esse tipo de crime, deve 6

Deve-se considerar, entretanto, que este ambiente refere-se muitas vezes ao local de encontro do cadáver, que não corresponde necessariamente ao local do fato.

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haver um número de policiais disponíveis à noite ou pela madrugada tão grande como aquele durante o dia. No que diz respeito ao trabalho da polícia civil, essa exigência também se faz necessária, já que recebe os possíveis flagrantes ou deve comparecer ao local de crime. Distribuição das vítimas por características de sexo e idade A grande maioria das vítimas (95,31%) era do sexo masculino, indicando sobre-representação dos mesmos entre as vítimas, uma vez que, segundo dados sobre a população de Porto Alegre7, 49,68% da população do bairro sede da delegacia - Mario Quintana - é composta de homens. Este resultado está de acordo com outros estudos sobre homicídios em Porto Alegre, Santos (2001), Porto (2006) e em São Paulo, Gawryszewski, Kahn e Jorge (2004), que apontam proporções superiores a 90% para homens entre as vítimas de homicídios. Quanto à idade, a maior parte das vítimas era adulta (89,06%), mas há uma representação significativa de adolescentes (7,81%), que pode ser comparada com dados de autoria de crimes. A média de idade das vítimas foi de 28,4 anos. As idades com as freqüências mais altas (modais) de homicídios foram 21 e 26 anos (cinco vítimas com cada uma dessas idades). Neste aspecto, observa-se que as vítimas, no caso estudado, são mais velhas que as estudadas por Gawryszewski, Kahn e Jorge (2004), que encontraram a idade modal de 19 anos.

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Os dados sobre a população de Porto Alegre distribuída por sexo, idade e bairro encontram-se disponíveis no site http://www.observapoa.com.br, e têm como base no Censo Demográfico do IBGE de 2000.

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Gráfico 1 – População do bairro Mario Quintana (Porto Alegre) e vítimas de homicídio da área da 18ª Delegacia, distribuídas por faixa etária - percentuais 30,00

28,13 26,56

25,00

20,00

% sobre total população

18,76 17,15

16,10 14,06

15,00

9,87

10,00

17,19 13,86

9,42

10,08 % sobre total de vítimas

7,81 4,76

5,00 1,56

1,56 0,00

0,00

até 06 07 a 14 15 a 19 20 a 24 25 a 34 35 a 44 45 a 59 60 anos anos de anos anos anos anos anos anos ou mais idade de idade

O gráfico acima apresenta as proporções da população do bairro sede da delegacia em cada faixa etária, comparadas às proporções das vítimas. A faixa etária que apresentou o maior número de vítimas foi a de 25 a 34 anos de idade (28,13%). Entretanto, destaca-se a faixa dos 20 a 24 anos, cuja participação no conjunto das vítimas superior ao dobro da participação no conjunto da população do bairro sede. Ainda de acordo com o gráfico, 40,62% das vítimas possuíam de 15 a 24 anos. Este percentual está bem próximo ao obtido por Waiselfisz (2004), de 39,52% para Porto Alegre em 2002, usando os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM). Conforme o mesmo autor, em estudo mais recente, “É na faixa “jovem”, dos 15 aos 24 anos, que os homicídios atingem maior expressividade, principalmente na dos 20 aos 24 anos de idade, com taxas em torno de 65 homicídios por 100.000 jovens.” (Waiselfisz, 2004) São os homens jovens as principais vítimas de homicídio, e constatou-se o mesmo neste estudo, apesar do reduzido tamanho da amostra. Conforme Schabbach (2007), a predominância de homens jovens entre os agressores e vítimas da criminalidade violenta constitui-se em uma das tendências da criminalidade violenta no Brasil, de acordo com as pesquisas de cientistas sociais

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brasileiros como Alba Zaluar, Nanci Cardia, Ignacio Cano, Julio Waiselfisz e outros. Trajetórias diversas A partir da observação do conjunto dos homicídios em estudo, foram analisados os registros relativos aos indivíduos envolvidos, tanto vítimas como autores. Dos 57 eventos, em 14 há a indicação de algum suspeito na ocorrência policial. Isso não significa que os indiciados no inquérito sejam os mesmos, pois tanto podem surgir novas informações sobre autoria dos delitos como podem não se confirmar os dados iniciais. O resultado do trabalho policial, materializado no inquérito, ainda deve ser analisado pelo Ministério Público, que pode ou não oferecer a denúncia dos indiciados; em caso positivo, resta o processo judicial, em que os denunciados podem ser condenados ou absolvidos. Apresentam-se a seguir os casos selecionados, seguindo-se o critério da pesquisa qualitativa de procurar situações o mais diferenciadas possível. Assim, procurou-se incluir casos com vítimas e autores de todas as idades e de ambos os sexos, bem como situações (na via pública, no ambiente doméstico, encontro de cadáver) e instrumentos (arma de fogo, faca, força bruta) variados para o cometimento do delito. Os nomes das pessoas foram substituídos por nomes de rios do Estado do Rio Grande do Sul, como forma de manter a privacidade. O crime como meio de vida Pode-se começar a exposição pelo caso nº 6: o pai da vítima compareceu à delegacia para informar que seu filho havia sido alvejado por disparos de arma de fogo, no início da madrugada de uma sexta-feira de verão. A vítima, Cacequi, tinha 25 anos, e nenhuma ocorrência policial envolvendo seu nome, seja como vítima ou como autor. A única indicação de que a vítima tivesse algum envolvimento com a criminalidade é uma nota no jornal Correio do Povo, em que o episódio foi referido da forma a seguir: “Gangues – Na vila Safira, a disputa pelo tráfico de drogas fez a quinta vítima em uma semana: um homem de 25 anos morreu alvejado no fim da noite de quarta.” Três indivíduos constam como acusados na ocorrência: Buriti, 36 anos; Amandaú, 29 anos, e Buricá, 27 anos. Embora os três estejam envolvidos no inquérito policial, apenas Amandaú foi denunciado pelo Ministério Público, tendo sido posteriormente pronunciado; a data prevista para o julgamento é no final de

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2007. Buricá tem como registro mais antigo no sistema a entrada no Presídio Central de Porto Alegre, no início de 1997, com 20 anos de idade, com prisão preventiva decretada pelo delito de roubo qualificado (uso de arma de fogo, concurso de duas ou mais pessoas, tendo como resultado lesão corporal grave ou morte). Após quatro meses, ocorreu a comunicação de pena: 25 anos e 4 meses. Após cumprir parte da pena em regime fechado, foi transferido em 2001 para o regime semi-aberto, onde ficou menos de um ano, fugindo em 2002, sendo recapturado cinco meses depois. Esse padrão de fugas e recapturas manteve-se nos anos seguintes, tendo sido o homicídio de Cacequi cometido em um período de fuga. Amandaú tem o primeiro registro no sistema como adolescente infrator, aos 14 anos de idade, acusado de dano; aos 18 anos, apareceu como acusado em uma ocorrência de furto simples em residência, tendo como objeto furtado uma televisão; no ano seguinte, nova ocorrência de furto/arrombamento de residência. Nos anos seguintes,

foram

registradas

ocorrências

relacionadas

a

problemas

de

relacionamento, com acusações de ameaça, vias de fato e de abandonar a filha na rua, registradas por sua ex-companheira. Já em 2002, as ocorrências passam a indicar o acesso à arma de fogo: porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, disparos em via pública e dano (disparos de arma de fogo em direção à casa de outra ex-companheira). Entrou no Presídio Central de Porto Alegre em 2002, com 27 anos, por porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, obtendo liberdade provisória no mesmo dia. Depois disso, só voltou ao sistema penitenciário em 2005, como será visto adiante. Buriti tem em seu histórico um grande número de procedimentos policiais, sendo seu primeiro inquérito datado de 1987, quando tinha 18 anos, acusado de roubo qualificado (uso de arma de fogo e participação de mais de duas pessoas). No mesmo ano, respondeu a outro inquérito por furto qualificado, tendo sido preso em flagrante por roubo em 1989, ficando detido em regime fechado até 1995, quando fugiu. Recapturado, passou para o regime semi-aberto no ano seguinte, obtendo liberdade por indulto ao final de 1996. Nos primeiros meses de 1997, foram instaurados contra Buriti cinco inquéritos por roubo qualificado, furto qualificado e homicídio tentado, tendo sido esse último delito motivo de prisão em flagrante. Nos anos seguintes, Buriti ficou preso, sendo condenado em diversos julgamentos. Em

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2001 obteve progressão de pena, passando para o regime semi-aberto, tendo início uma seqüência de fugas, novos delitos, capturas, retornos ao regime semi-aberto e novas fugas, estando foragido há alguns meses no momento do homicídio de Cacequi. No início do ano de 2005, Buricá, Buriti e Amandaú já apresentavam um perfil claro de envolvimento com grupos organizados, atuando em ações planejadas, como o resgate de presos em uma rodovia realizado duas semanas antes do homicídio de Cacequi. Durante o transporte de dois apenados a um hospital, um grupo armado interceptou as viaturas, tendo como resultado a fuga dos presos e a morte de um agente penitenciário. Foi instaurado um inquérito por homicídio qualificado, roubo qualificado e promoção de fuga de presos, tendo sido pronunciados oito dos dez indiciados, incluindo Buricá, Buriti e Amandaú. Até agosto de 2007, o processo ainda não havia sido concluído. Na véspera do homicídio de Cacequi, Buriti envolveu-se em confronto armado com policiais; ao fugir, deixou no local uma carteira de identidade falsificada, com sua foto e dados de outra pessoa. Lavrou-se uma ocorrência de homicídio tentado e uso de documento falso, remetendo-se o inquérito à Justiça três meses depois Uma semana após a morte de Cacequi, Buricá e Amandaú foram presos em flagrante por porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e formação de quadrilha, estando recolhidos em regime fechado desde então. Ambos foram condenados no correspondente processo judicial, concluído cerca de um ano após a detenção. No dia anterior, Buriti já havia sido capturado, e posteriormente indiciado em inquérito por receptação e adulteração de sinal de veículo automotor. No processo por esse delito, Buriti foi condenado, recorreu e foi absolvido. No ano seguinte, embora os registros indiquem que Buriti estivesse recolhido em regime fechado, ocorreram dois homicídios onde seu nome aparece como acusado, não apenas nas ocorrências mas também nos inquéritos policiais. Os crimes foram duas típicas execuções, com a chegada dos autores em grupo, o disparo de armas de fogo em direção à vítima e a fuga do local. As vítimas foram dois irmãos, Camaquã e Caí, também envolvidos em outros delitos, inclusive homicídio. O primeiro registro referente a Camaquã é como vítima de acidente de trânsito, aos 14 anos. Na condição de adolescente infrator, respondeu a procedimentos policiais por porte ilegal de arma e por dirigir sem habilitação. No ano

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de 2004, quando atingiu a maioridade, Camaquã esteve envolvido em ocorrências de porte ilegal de arma de fogo de uso restrito (duas ocorrências) e posse de entorpecentes, sendo indiciado em dois inquéritos e um termo circunstanciado. Chegou a ser preso, mas foi liberado por não-homologação de flagrante, em um caso, e em outro obteve liberdade provisória. Ao final do ano, foi indiciado por homicídio qualificado; em 2005, foi indiciado por mais dois homicídios qualificados, sendo que no segundo houve prisão em flagrante, seguida por dois meses de prisão preventiva. Em 2006, Camaquã envolveu-se em uma ocorrência de lesão corporal contra seu sogro, tendo sido vítima de uma tentativa de homicídio em maio e de homicídio, com características de execução, em outubro. Os casos de homicídio em que Camaquã foi indiciado serão descritos a seguir. O primeiro homicídio, ocorrido ao final de 2004, teve como vítima um rapaz de 17 anos, com antecedentes por posse de entorpecentes; embora indiciado em inquérito, Camaquã não chegou a responder judicialmente pelo fato. Além de Camaquã, também consta como indiciado outro rapaz, foragido do sistema prisional, onde estava por condenação em homicídio ocorrido em 1998. As outras ocorrências de homicídio fazem parte do grupo estudado neste trabalho. A primeira delas (caso nº 2) é de janeiro de 2005, tendo três vítimas e dois acusados. As vítimas foram três homens com 36, 44 anos e 21 anos; este último não tinha nenhuma ocorrência criminal, e os outros tinham registro de ocorrências indicativas de um comportamento violento, com ameaça e lesão corporal contra pessoas conhecidas, inclusive com o uso de armas de fogo. Além de Camaquã, o outro acusado foi Caracol. Pelo histórico da ocorrência, o caso foi uma execução, estando as vítimas em frente a um bar, onde foram atingidas por diversos disparos de arma de fogo. O processo estava em curso até agosto de 2007, tendo sido pronunciado Caracol, já acusado por homicídio em 2004, e acusado por mais um outro homicídio em maio de 2005 (caso nº 25). A última ocorrência de homicídio em que Camaquã é acusado (caso nº 7) aconteceu em fevereiro de 2005, tendo como vítima Carreiro, 17 anos. Os registros relativos a Carreiro referem-se a um roubo a estabelecimento comercial (um armazém) e posteriores ameaças às vítimas do roubo. Caí apresenta registros policiais que indicam um comportamento violento, com vários episódios de lesões corporais e ameaças, tanto no ambiente doméstico quanto em outras situações. Respondeu a procedimentos policiais por posse de

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entorpecentes, vias de fato, ameaça e roubo qualificado, sendo que este último delito levou-o à prisão por cerca de dois anos, sendo metade do tempo no regime aberto e metade no semi-aberto. Caracol, assim como Camaquã, foi indiciado por três homicídios. Seu primeiro delito registrado foi o de receptação, em janeiro de 2003, quando tinha 20 anos. Foi feito um flagrante, mas não foi homologado. Ainda no mesmo mês, praticou um furto, mas foi localizado logo após o delito e os bens foram restituídos à vítima. Cerca de um ano depois, novo flagrante, desta vez de roubo de veículo; Caracol ficou preso por seis meses, até o julgamento do processo, tendo sido transferido para o regime semi-aberto para o cumprimento da pena de 5 anos e 8 meses. Alguns dias depois, evadiu-se, tendo sido capturado onze meses mais tarde, após envolver-se em três homicídios. Em agosto de 2007 encontrava-se preso em regime fechado. O primeiro homicídio do qual Caracol foi acusado ocorreu em setembro de 2004. Segundo a ocorrência policial, dois jovens caminhavam pela rua, à noite, quando foram abordados por três homens armados, que os levaram para um matagal e desferiram vários tiros, matando um e ferindo outro. A vítima fatal tinha 23 anos, e diversos antecedentes por posse de entorpecentes. O segundo homicídio foi cometido junto com Camaquã, e o terceiro com uma mulher, Guarita. A vítima deste homicídio, Comandaí, 24 anos, tinha passagem pelo sistema prisional pelos delitos de furto e de roubo, tendo permanecido menos de um ano em regime fechado, e mais um ano no regime semi-aberto, estando em liberdade por indulto desde o início de 2003. Os primeiros registros policiais de Comandaí indicam que ele trabalhava junto com o pai, vendendo frutas e legumes em um caminhão: ambos foram vítimas de roubo à mão armada, e em outra ocasião foram flagrados quando ele dirigia o caminhão sem habilitação, aos 17 anos. Aos 18 anos, parece ter começado uma carreira de pequenos delitos: posse de entorpecentes, roubo de veículo (motocicleta), fuga de abordagens policiais, fazendo disparos de arma de fogo em uma das ocasiões, e violência doméstica (agressão à sua companheira). Os acusados pelo homicídio de Comandaí foram Caracol e Guarita, irmã da companheira de Ivan. Ambos foram processados judicialmente, tendo sido condenados. Guarita teve o seu primeiro registro policial como adolescente infratora, aos 14 anos, participando de um roubo de veículo junto com seu companheiro. Aos

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18 anos parece ter se separado desse companheiro, com uma ocorrência como vítima de lesão corporal devido à discussão sobre a partilha dos bens. Aos 20 anos, participou do homicídio de Ivan, mas sua entrada no sistema prisional, em 2006, deveu-se ao delito de roubo a uma instituição federal, investigado pelo Departamento de Polícia Federal. O roubo foi cometido com mais três homens, e a pena recebida foi de 4 anos e 10 meses de reclusão. A partir desses casos, algumas características comuns podem ser destacadas, especialmente o caráter de execução da maioria dos homicídios. São ações planejadas, executadas por mais de um indivíduo, procurando surpreender a vítima e cometidas com o uso de armas de fogo. Outro aspecto interessante é o acúmulo de ocorrências policiais graves em alguns momentos na vida dos autores, especialmente notável em Caracol, Buriti, Buricá e Camaquã. No espaço de alguns meses, esses indivíduos envolveram-se em diversos homicídios e outras ações violentas, indicando a participação em grupos organizados com finalidades criminosas. Quanto às vítimas, muitas delas têm um perfil de menor periculosidade: mesmo tendo cometido delitos e tendo passado pelo sistema prisional, não se observa uma seqüência de novos delitos, como no caso de Comandaí. Observa-se também a presença de relações de parentesco entre os indivíduos, quando são considerados todos os envolvidos no conjunto das ocorrências estudadas. Destacam-se algumas famílias que têm vários membros participando de delitos organizados; quando algum deles está preso, vários parentes os visitam, mantendo os laços de solidariedade. A única mulher que participa desse grupo, embora envolvida em vários delitos, diferencia-se dos homens por ter ocorrências como vítima de violência física; na prisão, não tem registro de nenhum visitante, confirmando a idéia de que a mulher infratora não costuma receber apoio familiar. Violência doméstica O caso número 20 é o homicídio de um bebê de pouco mais de um mês de idade, por traumatismo craniano. Consta o seguinte no histórico da ocorrência: A mãe da vítima disse que o autor foi o pai, que atirou a criança no chão, provocando lesões. O motivo foi que o acusado passou a desconfiar e acusar a companheira de que o filho não seria dele, por ter nascido com a pele mais clara. Desde então, passou a dizer que iria matar a criança, assim como a mãe.

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O autor, Forqueta, com 28 anos de idade, foi preso em flagrante, e ficou preso desde então. Indiciado no inquérito, respondeu processo judicial e foi condenado cerca de um ano depois, sendo a pena de 19 anos e 4 meses. Aparentemente, não houve dificuldade por parte de nenhuma das instituições do sistema de justiça criminal para identificar o responsável pelo crime, julgá-lo e fazer com que cumpra a pena recebida. Os registros policiais de Forqueta mostram um série de incidentes de violência doméstica. Há ocorrências de ameaça e lesão corporal tendo como vítima seu pai e sua ex-companheira, mãe de seus outros filhos. Em relação a essa moça, parece ter havido uma longa relação violenta, embora ela tenha começado a fazer registros policiais apenas em 2000: segundo suas denúncias, ele batia nela e nos filhos, sendo usuário de drogas ilícitas e de álcool. Desde que Forqueta foi preso, entretanto, passou a ser visitado regularmente por ela e pelos filhos. Forqueta respondeu, desde 2000, a cinco termos circunstanciados por ameaça e lesão corporal, todos envolvendo a ex-companheira. Seu único inquérito é relativo ao homicídio do filho. Pode-se imaginar que, se tivesse tido acesso a tratamento psiquiátrico ou algum outro tipo de atendimento, Forqueta não teria chegado ao homicídio. Seu caso é um exemplo de situações que mostram a incapacidade do sistema de justiça criminal de promover mudanças efetivas nos casos de violência doméstica, que já havia sido denunciada ao Estado em cinco ocasiões anteriores. Fugindo à estatística O caso número 56 envolve dois homens de uma faixa etária superior à média, pois a vítima tinha 60 anos e o autor 54 anos. Os dois eram vizinhos, nascidos em municípios do interior, na região noroeste do Estado. Segundo a ocorrência, Gravataí teria desferido três tiros em Guaçú, mas não há nenhuma indicação quanto aos possíveis motivos. Os registros de Gravataí mostram cinco inquéritos policiais instaurados contra ele entre 1981 e 1986, por incêndio criminoso, lesão corporal, roubo qualificado e homicídio tentado. Curiosamente próximos em termos cronológicos, nenhum desses inquéritos, entretanto, foi remetido à Justiça, ou seja, não foram concluídos. O único inquérito efetivamente concluído refere-se ao homicídio de Guaçú, mas não deu origem a processo judicial. Assim, embora os diversos inquéritos pareçam indicar o

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cometimento de crimes, não há, mesmo após o homicídio de Guaçú, nenhuma condenação de Gravataí. Quanto a Guaçú, consta como acusado em uma única ocorrência de lesão corporal, em 1990, mas não houve nenhum procedimento posterior. Tudo indica que Gravataí e Guaçú não tivessem envolvimento em atividades criminais, pelo menos no momento do homicídio, o que leva a crer que os motivos para o crime fossem pessoais. Uma vida no sistema prisional O caso número 35 tem como vítima Ibirubá, 35 anos de idade. Seu corpo foi encontrado em um parque, carbonizado, em meio a carcaças recortadas de veículos. Ibirubá teve sua primeira entrada no sistema prisional em 1988, aos 18 anos, em flagrante de roubo qualificado (concurso de mais de duas pessoas, tendo como resultado lesão corporal grave ou morte). Ficou preso até o julgamento, menos de um ano depois, tendo sido absolvido. Depois de quatro meses em liberdade, teve decretada prisão preventiva por roubo e homicídio, passando para o regime semiaberto em 2001, ou seja, 12 anos depois. Em 2003 obteve liberdade condicional, voltando à prisão em 2005, em flagrante de porte ilegal de arma. Nesse episódio, estava junto com outro indivíduo, um foragido do sistema prisional. Após um mês, saiu em liberdade provisória, e foi morto cinco meses mais tarde. Ainda na prisão, Ibirubá respondeu a processo por tráfico de drogas, atividade que estaria desenvolvendo entre os demais apenados. Quando estava no regime semi-aberto, Ibirubá registrou ocorrências de ameaça e de lesão corporal, sendo a primeira contra outros internos e a segunda contra agentes penitenciários; registrou também ameaças de morte recebidas por telefone. No período entre 2003 e 2005, Ibirubá foi acusado de ameaça por sua ex-companheira, e registrou uma ocorrência como vítima que chega a ser curiosa: ele teria vendido CDs “piratas” a uma pessoa, e reclamava por não ter recebido o pagamento. Em 2004, Ibirubá registrou mais uma ocorrência de lesão corporal, afirmando ter sido espancado por policiais militares. Dos 18 aos 35 anos, Ibirubá esteve quinze anos preso, e apenas dois anos em liberdade (quanto ao período anterior aos 18 anos, não se pode afirmar se houve algum conflito com a lei, pois os registros mais antigos não estão completamente transcritos

no

sistema

informatizado

de

consulta).

Nesse

breve

período,

aparentemente não conseguiu estabelecer uma atividade lícita, sendo morto com

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sinais de execução, ou seja, por pessoas envolvidas na criminalidade. Outro caso semelhante é o de Ituim, 36 anos, foi morto a facadas em sua residência, sem testemunhas do fato. Seus registros mostram um histórico de furtos e roubos, tendo passado, entre os 18 e os 35 anos, cerca de 15 anos no regime fechado e 2 anos no regime semi-aberto; quando foi morto, estava foragido. Enquanto esteve preso, foi levado várias vezes ao hospital, o que pode indicar a participação em brigas ou a ocorrência de alguma doença crônica. Em relação às ocorrências registradas contra ele, observa-se um número inferior ao que se esperaria em função do tempo passado na prisão, sendo uma possível explicação a não-transcrição dos registros antigos para o sistema informatizado. Além de um roubo, há três ameaças. O histórico de uma das ocorrências ilustra o tipo de ameaça: A vítima registra que Ituim arrombou sua residência. Que denunciou Ituim à Polícia, e a partir disto Ituim passou a ameaçar a vítima de morte. Que no dia de hoje, quando a filha da vítima [...] voltava para casa, Ituim lhe abordou dizendo: “Olha, diz para o teu pai que se ele não parar de chamar a polícia para mim, eu vou matar ele”, tudo isto mostrando para [...] um revólver que estava na sua cintura.

Sua companheira, ao fazer o registro do homicídio, informou que Ituim “bebia e ficava agressivo”. Parece surgir do conjunto dos documentos uma imagem de um homem violento, que fazia ameaças e recorria à força física; o longo período no sistema prisional provavelmente contribuiu para esse perfil. Não há elementos para afirmar que sua morte tenha ocorrido em função de uma briga, mas a utilização de arma branca não é característica de execuções planejadas. Assim, a morte de Ituim pode, aparentemente, ser incluída entre as conseqüências de uma sociabilidade violenta. Tanto Ibirubá quanto Ituim passaram praticamente toda sua vida adulta como detentos, sendo exemplos das dificuldades enfrentadas pelos que passam pelo sistema prisional, tanto em termos pessoais como sociais, para estabelecer relações menos conflituosas. Mulher autora O caso número 49 tem como autora uma mulher, Maratá, 32 anos, que matou com uma faca seu companheiro Jaguari, branco, 28 anos, e foi presa em flagrante. Levada ao presídio, foi liberada em caráter provisório no dia seguinte, não tendo

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respondido a processo pelo delito. Maratá e Jaguari tinham um histórico de problemas de relacionamento, com registro de ocorrências de ameaças recíprocas, além de lesões corporais contra a filha de Maratá. O casal teve três filhos em comum, nascidos entre 1994 e 2004. Jaguari esteve preso em 1996 por roubo tentado e corrupção de menores, passando em 1997 para o regime semi-aberto. Fugiu em 1998, tendo sido capturado em 2002, mas liberado devido à prescrição da pena. Seus registros policiais indicam conflitos com familiares e desconhecidos, mas sem envolvimento com atividades criminais, além da tentativa de roubo pela qual foi preso. Tanto os registros de Maratá quanto de Jaguari mostram um cotidiano atribulado, com problemas com a filha mais velha que periodicamente fugia de casa, brigas de casal, brigas com familiares e vitimização em pequenos furtos e roubos (bolsa, mochila, celular). Ao que tudo indica, o homicídio ocorreu em um momento dramático desse dia-a-dia conturbado, indicando a falta de atendimento social e de saúde à população pobre. Após o crime, a vida de Maratá continuou tão difícil quanto antes, com o agravamento da situação da filha, que se envolveu com traficantes. Erro na ocorrência O caso número 6 é um registro de homicídio tendo como vítima Mampituba: a pessoa que fez a comunicação informou que estava em seu estabelecimento comercial quando a vítima entrou correndo, perseguida por outras pessoas que desferiam tiros, e vindo a falecer em seguida. Junto ao corpo, foi encontrado um alvará de soltura em nome de Maquiné, 23 anos, verdadeira identidade da vítima, mas a ocorrência foi preenchida com o nome de Mampituba, 24 anos, seu irmão, e nunca foi corrigida. Maquiné teve uma curta carreira nos registros policiais, tendo sido preso em flagrante em 2004 por roubo qualificado (uso de arma de fogo, concurso de várias pessoas) e saindo em liberdade provisória após dois meses. Já seu irmão teve participação em vários roubos, estando preso desde 2001, sendo condenado em processos por roubo qualificado e absolvido em um processo por homicídio qualificado. A comparação entre os dois irmãos mostra que um deles, Mampituba, está desenvolvendo o que se pode chamar de uma carreira no crime, sobrevivendo já há alguns anos na atividade criminosa, enquanto Maquiné foi morto cerca de um

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mês após ter saído da prisão. Sua morte nada teve de acidental, pois foi perseguido pelos que queriam matá-lo, indicando que se envolveu em problemas com outros criminosos. “Drogados, loucos” Em um feriado em setembro de 2005, Taquara lavava sua moto no pátio do condomínio onde morava, quando surgiram dois homens, Rolante e Piratini, fazendo disparos com arma de fogo. Taquara foi atingido e faleceu no local. Minutos antes, os mesmos indivíduos haviam invadido um apartamento no condomínio, sendo que a moradora não foi morta porque a arma falhou; eles então a espancaram e fugiram. Nada foi roubado. Ao fazer o registro, a vítima os descreveu como “completamente drogados, loucos”, imagem que parece reforçada a partir da observação de seus registros policiais. Rolante, aos 26 anos, já apresentava um histórico de violência e uso de drogas. Seu primeiro registro no sistema é de “fuga do lar pelo menor”, aos 13 anos; nos anos seguintes, as fugas de casa se repetiram, e Rolante começou a cometer delitos, tendo arrombado uma residência e tentado arrombar uma padaria, em companhia de outros adolescentes. Aos 18 anos, há indícios de dependência de drogas ilícitas, com ocorrências de posse de entorpecentes e de ameaças a familiares. Consta em uma delas o relato de sua avó: “Rolante a agrediu e [...] está piorando dia a dia, não estuda, nem trabalha e exige da comunicante dinheiro.” Até 2005, o comportamento de Rolante foi se tornando mais problemático, com freqüentes ameaças e lesões corporais contra seus familiares e conhecidos, tendo inclusive agredido uma moça com uma barra de ferro, bem como novos registros de posse de entorpecentes. Piratini, por sua vez, tem uma história de várias ocorrências por posse de entorpecentes, ameaça e dano, ou seja, um comportamento violento mas sem delitos graves. Após o homicídio de Taquara, em 2006, Rolante e Piratini cometeram outro homicídio, desta vez um crime planejado: invadiram uma residência, amarraram e mataram um homem, companheiro da mãe de Rolante. No mês seguinte, Rolante foi preso após uma tentativa de homicídio. Preso desde então, Rolante responde a dois processos por homicídio e um por lesões corporais, este no Juizado Especial Criminal. Piratini também é réu no processo pela morte de Taquara, mas encontrase em liberdade.

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A trajetória de Rolante ilustra com clareza um processo de envolvimento crescente com o consumo e, provavelmente, o tráfico de drogas ilícitas. Seu relacionamento familiar, que já apresentava problemas desde sua infância, só piorou, e seu comportamento tornou-se cada vez mais violento e transgressor. Um tratamento efetivo contra o uso de drogas poderia ter interrompido essa trajetória, mas teria sido necessária uma forte disposição do próprio Rolante para isso. Uma carreira curta Pinhal foi morto a tiros, em casa, em frente à família. Tinha 16 anos, e acumulava três ocorrências criminais nos últimos dez meses: uma de roubo a estabelecimento comercial e duas de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. O suspeito pelo crime, Mauá, tinha 20 anos, e sua carreira criminal também não era muito extensa. Recolhido em regime fechado desde alguns meses após o homicídio, quando foi preso em flagrante por porte ilegal de arma, Mauá passou para o regime semi-aberto em 2007, fugindo pouco tempo depois. Foi condenado por roubo e responde aos processos pelo homicídio qualificado e porte ilegal de arma. Na ocorrência de homicídio, a irmã da vítima apontou como possível motivo para o crime uma disputa entre gangues rivais, o que parece fazer sentido. Se a trajetória de Pinhal foi curta, a de Mauá aparentemente está apenas começando. Conclusões A análise dos casos que se fez neste trabalho procurou mostrar a diversidade de situações envolvidas nos casos de homicídio. Embora a análise estatística permita estabelecer uma visão ampla do fenômeno, o estudo de cunho qualitativo representa uma complementação a esse enfoque. Sabe-se que as vítimas de homicídios são, majoritariamente, jovens homens pobres. Isso não descarta, entretanto, a existência de vítimas e de autores mais velhos, bem como não explica as diferentes trajetórias que levam a cada um dos homicídios. A leitura dos registros policiais feita neste estudo mostrou um quadro de dor, desamparo e violência. Vítimas e autores são, muitas vezes, pessoas que precisam de atendimento na área de saúde, especialmente mental, e de serviço social. Os problemas como a dependência de drogas lícitas e ilícitas e o recurso à violência no

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ambiente doméstico não podem ser solucionados apenas a partir da esfera da segurança pública, que é frequentemente a única que toma conhecimento deles. Um elemento que apareceu como negativo na vida das pessoas foi a passagem

pelo

sistema

prisional,

especialmente

por

períodos

maiores.

Estabelecem-se ligações com redes criminosas e dificulta-se a convivência no mundo do trabalho lícito. Observou-se também a diferença nas formas através das quais os indivíduos lidam com uma mesma condição social. Mesmo no caso de irmãos, alguns conseguem elaborar estratégias que os levam a posições mais elevadas em seu meio, enquanto outros tornam-se vítimas da mesma violência que praticavam. O estudo realizado mostrou, além disso, a importância de se trabalhar com os registros policiais, tanto para obter informações mais detalhadas para a pesquisa sobre os delitos, como para aperfeiçoar os próprios registros, na medida em que evidenciou alguns erros.

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Referências CARNEIRO, Leandro Piquet. Armas de Fogo no Rio de Janeiro: cultura, prevalência e controle. Trabalho apresentado no XXI Congresso da Associação Latinoamericana de Sociologia. São Paulo: 1997. Mimeo. Correio do Povo, Porto Alegre. 4 fev 2005. Disponível em: . Acesso em: 10 ago 2007. GAWRYSZEWSKI, Vilma, KAHN, Túlio e JORGE, Maria Helena Prado de Mello. Homicídios no Município de São Paulo: integrando informações para ampliar o conhecimento do problema. Estudos Criminológicos, São Paulo, nº 1. Julho de 2004. PORTO, Luiz Dulinski. Perfil vitimológico nos delitos de homicídios dolosos na cidade de Porto Alegre no ano de 2005. Porto Alegre: PUCRS/Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação/Faculdade de Direito, 2006. SANTOS, Simone M. et al . Detecção de aglomerados espaciais de óbitos por causas violentas em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, 1996. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 5, 2001 . Disponível em: . Acesso em: 10 set 2007. SCHABBACH, Letícia Maria. Tendências e preditores da criminalidade violenta no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de pós-graduação em Sociologia /Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2007. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros. Brasília: Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura – OEI, 2007. Disponível em: . Acesso em 01 mai 2007. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência IV: os jovens do Brasil. Brasília: UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ue000080.pdf>. Acesso em 01 set 2007.

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