Trajetórias de vida e percursos urbanos de indivíduos em situação de rua de Belo Horizonte/MG.

May 26, 2017 | Autor: Caroline Rosa | Categoria: Homelessness, Rythmanalysis, População Em Situação De Rua
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Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Sociologia e Antropologia Curso de Ciências Sociais

Caroline Ferreira Rosa

TRAJETÓRIAS DE VIDA E PERCURSOS URBANOS DE INDIVÍDUOS EM SITUAÇÃO DE RUA EM BELO HORIZONTE/MG

Belo Horizonte 2014

Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Sociologia e Antropologia Curso de Ciências Sociais

Caroline Ferreira Rosa

TRAJETÓRIAS DE VIDA E PERCURSOS URBANOS DE INDIVÍDUOS EM SITUAÇÃO DE RUA EM BELO HORIZONTE/MG

Monografia apresentada ao curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientadora: Profª. Dr.ª Ana Marcela Ardila

Belo Horizonte 2014 2

Agradecimentos Agradeço, primeiramente, a todas as pessoas que conheci no âmbito da Pastoral de Rua e sem as quais este trabalho não seria possível. Agradeço principalmente a Alex, Anita, Antônio, Claudenice, Cléber, Edson, Edson Sucupira, Jocinei, José Coelho, Marcelo, Naftali, Roseni, Rosilene, Seu Lázaro e Simone pela generosidade com que sempre me receberam e me ajudaram. Agradeço a professora Ana Marcela, pela amizade e pela orientação atenciosa que, mais do que boas idéias, me deu confiança para realizar este trabalho. Agradeço ao Programa Pólos de Cidadania pela oportunidade de inserção no tema. Agradeço a Ston Figueiredo, Lídia Pimentel, Igor Robaína, Daniela Garcia, Bárbara Ferreira, Isabela Chimeli e Maurício Botrel pelas oportunidades de interlocução e de compartilhamento de suas experiências. Agradeço à professora Yumi pelas importantes sugestões durante a disciplina Metodologia IV e por aceitar contribuir com a avaliação deste trabalho. Agradeço à Beth, pela leitura e revisão atenta e pelos cafés-da-tarde deliciosos. Agradeço aos colegas de diversas gerações do PET por fazerem do exercício acadêmico algo compartilhado e divertido, e à professora Ana Lúcia Modesto pela tutoria carinhosa e inspiradora. Agradeço à Maria pelos ensinamentos de delicadeza e de mineiridade, e por ser a irmã que encontrei em BH. Agradeço à Teté, pelos abraços gostosos, os chocolates, as conversas que acalmam e o auxílio com as coisas práticas da academia. Agradeço à Nat e ao Salum, xuxus queridos do trio maravilha, pelo amor, terapias e esoterismo. Agradeço ao Gabriel, pelo coração grande e curiosidade infinita. Agradeço à Nat Santana e ao Tarcísio pelos interesses comuns e pela “brodagem”.

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Agradeço à Cacá e à Amaralina pelas companhias alegres e pela fuga renovadora à cachoeira. Agradeço à Vivi, Taus e Nanda, pelos abraços ensolarados em dias frios na Fafich. Agradeço aos colegas do coorte 2009/2 e 2009/1, pela união verde-roxa, pelos kulas ocultos e por terem engrandecido tanto esta experiência de graduação. Agradeço aos companheiros da casa que se tornou meu lar em Belo Horizonte: à Fernanda e ao Fillipe por primeiro terem topado a aventura com tantas boas energias, e à Nat e ao Zé por terem me agüentado nesses meses de monografia. Agradeço à Isa e ao Bito, pela amizade duradoura, as cervejas e conversas deliciosas, e pela certeza de que estamos envelhecendo, mas estamos melhores. Agradeço, por fim, a toda minha família, pelo amor e suporte com que apoiaram minha escolha de explorar outros horizontes. Faço especial menção às minhas avós Leonilda e Odília, meus exemplos de doçura e conduta, e às quais agradeço pelo amor com o qual me criaram e com o qual recarregam minhas energias a cada visita à Batatais-SP (amor que também me acompanha em Belo Horizonte, às vezes, transmutado em forma de bolachinhas de nata). Agradeço aos meus tio-avós Tia Carminha, Tio Vado e Tia Cida pelas prosas mais que gostosas em volta de quitutes e garrafas de café (e uma caipirinha, eventualmente). Agradeço à tia Dri e ao tio Lê por serem também meus pais; não tenho palavras para agradecer o suporte de sempre, imprescindível para que eu tivesse trilhado os caminhos até aqui. Agradeço ainda pelo presente lindo que nos deram, há 10 anos atrás, sob o nome de Vinícius, meu melhor companheiro de férias. Agradeço às pessoas mais importantes da minha vida, minha mãe Carmem, meu pai Luis e minha irmã Rafaela, pelo amor com que sempre alimentaram nosso lar, pela convivência cheia de carinho e alegria, por me acalmarem em momentos de crise e por serem meu porto-seguro. Agradeço ao Sara pelo amor e sempre-aconchego.

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Índice de Ilustrações

Figura 1: Tabela de Caracterização dos Entrevistados ................................................. 32 Figura 2: Linha do tempo com trajetória de vida de Ademar ....................................... 47 Figura 3: Linha do tempo com trajetória de vida de Bruno .......................................... 48 Figura 4 Linha do tempo com trajetória de vida de Carlos ........................................... 48 Figura 5: Linha do tempo com trajetória de vida de Danilo ......................................... 49 Figura 6: Linha do tempo com trajetória de vida de Evandro ....................................... 49 Figura 7: Tabela com rotina semanal de Bruno............................................................ 62 Figura 8: Mapa amplitude dos trajetos......................................................................... 64 Figura 9: Sequência diária de Ademar ......................................................................... 65 Figura 10: Esquema com circularidade da rotina de Carlos, Danilo e Evandro ............ 66

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Sumário Introdução..................................................................................................................... 7 1. Construções conceituais em torno da "população em situação de rua" ..................... 11 1.1. O referencial habitacional em discussão no termo homelessness ....................... 12 1.2 De “mendigo” a “população em situação de rua”: a emergência de categorias no Brasil....................................................................................................................... 17 2. Discussões em torno de abordagens teóricas: exclusão social e agência ................... 23 3. A rua é uma situação ............................................................................................... 30 3.1 Trajetórias familiares ......................................................................................... 33 3.2 Trajetórias individuais e percursos institucionais ............................................... 40 4. Espacialidades próprias e ritmos diários .................................................................. 51 3.1 Ritmos noturnos e dinâmicas em torno do local de dormir ................................. 54 4.2 Ritmos diurnos e circulação pela cidade............................................................. 60 5. Considerações finais ............................................................................................... 76 Referências Bibliográficas .......................................................................................... 78

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Introdução “População em situação de rua” é um termo recente e que se tornou o principal referencial para denominar indivíduos que, não vivendo em um espaço habitacional formal, empreendem seu cotidiano – em maior ou menor medida - nas ruas e espaços públicos das cidades. Tratando-se de um fenômeno muito presente nas sociedades urbanas, meu interesse por este tema surgiu há cerca de três anos, quando, ao mudar de casa,passei a conviver diariamente com um homem que ocupa de modo fixo uma das calçadas de nossa rua e com cujas formas de habitar a rua eu me deparo todos os dias. Com o interesse de compreender de que modo as ciências sociais poderiam contribuir para o entendimento desse fenômeno, fui voluntária no Programa Pólos de Cidadania/UFMG durante um ano, na Frente de trabalho sobre a temática. A partir desta experiência, comecei a participar das reuniões mensais do Fórum de População de Rua de Belo Horizonte, algo que se estende até hoje. O Fórum é um espaço que reúne agentes governamentais e da sociedade civil, assim como indivíduos que vivem ou viveram em situação de rua. Trata-se de um espaço institucional onde a proposição e acompanhamento de políticas públicas são pautas principais e onde atores de diferentes pontos da rede – público-alvo e agentes assistenciais – se encontram e podem compartilhar suas visões nas discussões. A partir de então, o interesse acadêmico pelo tema foi se concentrando, principalmente, sobre o quanto a superexposição dos indivíduos em situação de rua, às dinâmicas das ruas e espaços públicos,se desdobraria em uma vivência urbana singular. 7

Diante disso, a realização do trabalho de conclusão de curso se tornou uma oportunidade para me dedicar a este assunto, de modo que as questões que orientaram este trabalho buscam responder, em alguma medida, esta inquietação. Na fase exploratória e de definição da pesquisa, realizei alguns percursos pela região central da cidade de Belo Horizonte, observando principalmente regiões onde atividades e ocupações do espaço público são empreendidas por sujeitos em situação de rua. O olhar direcionava-se, então, para as diferentes formas de habitar o espaço público que se apresentavam. Busquei o contato com grupos que trabalham com indivíduos em situação de rua por meio de abordagens no centro da cidade, como o Consultório de Rua/SUS e algumas ONGs, para que pudesse oferecer aos sujeitos pesquisados algum referencial sobre minha presença enquanto pesquisadora. No entanto, dificuldades de acesso e a insuficiência de tempo impossibilitaram a realização de tal enfoque de um modo que pudesse ser satisfatório. Ao mesmo tempo, a receptividade da Pastoral de Rua (uma das instituições que procurei e com a qual já tinha contato no âmbito do Fórum) para que eu pudesse entrevistar indivíduos em situação de rua dentro do público que frequenta seu espaço, me possibilitou conhecer um perfil mais ou menos homogêneo dentre os muitos que permeia a população em situação de rua, motivando meu interesse em investigar quais dinâmicas urbanas se apresentariam na vida de tais sujeitos que, de antemão, já se encontram em contato com a esfera institucional. Meus questionamentos passaram-se a se concentrar sobre a forma como as rotinas diárias se construíam no dia-a-dia em situação de rua. Considerando que a vida em situação de rua implica em habitar a cidade a partir de uma lógica distinta do padrão de normalidade dos indivíduos domiciliados, como se organizariam as atividades diárias 8

de sujeitos que vivem nesta situação? Como tais atividades se desdobrariam em percursos diários pela cidade e na economia do tempo no cotidiano em situação de rua? Definiu-se, então, a realização de entrevistas em profundidade como metodologia, para que se pudesse compreender melhor a inserção de tais sujeitos em seus diferentes contextos. Assim, fui a uma reunião da Comunidade Amigos da Rua (projeto da Pastoral, que oferece rodas de discussão e encontros entre indivíduos em situação de rua) para apresentar minha pesquisa e convidar os presentes a participarem. Cinco homens se voluntariaram e, por duas semanas, frequentei a Pastoral de Rua às tardes em dias úteis, a fim de realizar as entrevistas e acabei tendo a oportunidade de acompanhar um pouco da dinâmica que se desenvolvia diariamente ali1. Além de acompanhar este cotidiano no espaço da Comunidade Amigos de Rua, a abertura dos entrevistados e seu interesse pela pesquisa me possibilitaram acompanhar pequenos momentos de seus trajetos, bem como contar com interesse deles em me mostrar aspectos do universo das ruas, apontando situações na cidade, sugerindo locais e indivíduos que pudessem participar da pesquisa. Mais uma vez, o escasso tempo me impossibilitou de seguir todas as diversas indicações com as quais eles buscavam me ajudar; no entanto, pude vivenciar um pouco de sua convivência dentro e fora do espaço da Pastoral de Rua.

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A Pastoral de Rua foi muito solícita e me ajudou a tentar entrevistar também mulheres em situação de rua. No entanto, não encontrei mulheres em situação de rua freqüentando o espaço da Comunidade durante as tardes e não pude comparecer em nenhuma manhã de terça-feira, quando a reunião de mulheres que vivem ou viveram em situação de rua acontece, pois não consegui dispensa do meu trabalho. Encontrei mulheres que já viveram em situação de rua em uma reunião que aconteceu no espaço da Comunidade em uma quinta-feira à tarde e um delas se voluntariou para a pesquisa. Mesmo que ela não vivesse, atualmente, em situação de rua, achei que seria importante abranger uma perspectiva feminina sobre cotidiano em situação de rua. No entanto, no dia de nossa entrevista, uma senhora em situação de rua apareceu na Pastoral, com urgência de ser encaminhada para a rede de assistência, e me foi pedido se eu poderia acompanhá-la a uma unidade de saúde. Assim, a entrevista foi interrompida logo no início e eu não pude remarcá-la, pois já estávamos no período final do campo. Meu acompanhamento junto à senhora de nenhuma maneira poderia figurar como uma situação de pesquisa, por isso a pesquisa se restringiu apenas às experiências de pessoas do gênero masculino.

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Nas entrevistas em profundidade, além de trabalharmos a dimensão das rotinas e dos percursos diários, também buscamos explorar um pouco da história de vida dos entrevistados. Desse modo, pudemos observar suas inserções em trajetórias em situação de rua e visualizar eventos, rupturas e momentos de crise que apresentaram ao narrar suas próprias histórias. A organização do trabalho se desenvolveu, então, em cinco capítulos. Primeiramente, exploramos a construção de categorias em torno do fenômeno, como forma de apontar as dimensões envolvidas em torna das nomeações e, também, salientar que o universo da “população em situação de rua” abrange outros perfis além daqueles aqui apresentados. No segundo capítulo, apresentamos algumas discussões em torno das principais formas de abordagem do fenômeno pela literatura especializada brasileira. Em seguida, começamos a apresentação e discussão dos resultados em dois capítulos. O capítulo terceiro aborda elementos que se vinculam ao passado dos entrevistados: as relações familiares e as diferentes formas de viver em situação de rua que se apresentaram em suas trajetórias. No quarto capítulo, passamos à abordagem da dimensão urbana do fenômeno e da identificação de espacialidades, percursos e rotinas que se apresentam no presente dos sujeitos pesquisados. Por fim, dedicamos o capítulo final para algumas considerações sobre a pesquisa. Deste modo, buscamos evidenciar as diferentes temporalidades que se apresentaram nas narrativas dos entrevistados, como o tempo passado e o presente, mas também o tempo futuro, que expresso em seus planos de sair da situação de rua, correntemente atravessava suas falas e, em consequência, também atravessará o nosso texto.

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1. Construções conceituais em torno da "população em situação de rua" Se há um consenso na literatura que aborda o tema das pessoas em situação de rua é o de que os sujeitos que empreendem esta forma de vida não compreendem um grupo homogêneo (Snow & Anderson, 1993, p. 37). São diversas, não apenas as trajetórias individuais e os contextos sociais que levam certos indivíduos a viveram deste modo, mas também há diferentes maneiras pelas quais o viver em situação de rua é organizado e praticado. Como consequência, determinar os limites que definem o fenômeno de viver nas ruas é uma tarefa desafiadora e na qual o estabelecimento de categorias fixas pode se apresentar como problemático - não apenas para os pesquisadores que se dedicam a este tema, mas também para as iniciativas governamentais que visem desenhar políticas que atendam a este público. No cenário atual, homeless (no debate internacional) e população em situação de rua (no Brasil) figuram como os termos referenciais - na produção acadêmica e no âmbito institucional - para denominar indivíduos que habitam a rua ou cuja situação tangencia esta esfera. Pode-se dizer que tais categorias funcionam como termos guardachuva, “cuja ressonância política é menos excludente e mais homogeneizadora” (Frangella, 2010, p. 51). No entanto, a definição de quais dimensões da realidade ou quais perfis sociais deveriam ser incluídos nestes termos é uma questão em disputa, na qual diferentes atores – pesquisadores do tema, agentes governamentais e os próprios indivíduos em enfoque – participam.

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Deste modo, apresentaremos, nesta primeira sessão, alguns dos pontos de tensão sobre os quais se articula o debate em torno da definição do fenômeno. Primeiramente, apresentaremos algumas problematizações existentes em torno do termo homelessness e que são motivadas, sobretudo, pelas questões que emergem a partir do enfoque habitacional do qual o termo está imbuído. Em seguida, nos debruçando sobre contexto do debate brasileiro, buscaremos retratar alguns dos percursos que perpassaram a instituição de categorias sobre os indivíduos que vivem nas ruas, apontando como tais definições foram mutáveis ao longo do tempo e sensíveis às formas de leitura do fenômeno. Nosso objetivo, neste capítulo, é tornar visível como as categorias, que se formaram em torno do fenômeno do "viver nas ruas", não são perenes, mas suscetíveis às formas correntes de inteligibilidade sobre o mesmo; inteligibilidades que não se restringem ao universo de produção acadêmica, mas também emergem na prática de diversos atores nas redes que se formam ao redor e em comunicação com esta população. 1.1. O referencial habitacional em discussão no termo homelessness Uma das dificuldades para a definição do conjunto de pessoas que vivem nas ruas apresenta-se quando se toma como critério de referência a dimensão habitacional. Isso está principalmente expresso na noção de homelessness, utilizada nos países de língua inglesa e que é predominante no debate internacional. Tal conceito tem como claro referencial a situação de ausência de uma moradia, de modo que um primeiro conjunto de indivíduos mais obviamente considerados homeless são aqueles que não provêm de uma casa; definição empregada em muitos países ao redor do mundo (Speak&Tripple, 2006, p. 174). No entanto, esta parcela de sujeitos inclui muitos grupos 12

diferentes, desde indivíduos e famílias que passam a habitar espaços públicos; pessoas que dormem em instituições de acolhimento; ou mesmo pessoas que perderam suas casas em desastres naturais. Speak e Tripple (Idem), a partir de uma pesquisa que realizam em 9 países, apontam que são muito diferentes não só os segmentos considerados como homeless nos países pesquisados, mas também a forma como a questão da inadequabilidade habitacional é colocada. Por exemplo, dormir em vias e espaços públicos compreende a principal noção de homeless em países como Índia e Bangladesh; mas que em países como a China, onde os street sleepers não são tolerados pela polícia, considera-se que homeless são as famílias que não tenham registro formal de seus imóveis; ainda, a ocupação informal de prédios e terrenos, bem como a habitação de moradias precárias, também são incluídas no bojo da definição de homelessness em outras sociedades. Considerando especificamente este último aspecto, tem-se que, com a inclusão de pessoas que vivem em condições habitacionais consideradas precárias, há uma ampliação do conceito de homelessness para abranger uma gama ainda maior de grupos. Discutindo o emprego desta perspectiva no Brasil, Ferreira (2006, p. 04) aponta que a condição paupérrima de muitas moradias no país problematiza a aplicação do conceito de homelessness ao contexto brasileiro, uma vez que algumas moradias (em regiões sub-urbanizadas, ocupações de áreas de risco ou à beira de estradas) poderiam oferecer condições habitacionais tão precárias quanto aquelas em que vivem os indivíduos que habitam logradouros públicos2.

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Segundo Vieira, Bezerra & Rosa (1992, p. 47), a utilização deste conceito amplo de homelessness, no Brasil, abrangeria cerca de 4 milhões de casos, à época, na cidade de São Paulo, pois seriam incluídos também os moradores de cortiços e favelas.

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Não obstante, a própria noção do que sejam padrões adequados de moradia varia bastante, como aponta Springer “Different definitions of the minimum housing standard, varying by region, make it difficult to find a global agreement on which housing situations should be included in the definition of homelessness.” (SPRINGER, 2000, p. 477). Veness (1993, p.322) tensiona ainda mais o debate sobre quais seriam os padrões habitacionais adequados, pois aponta que homelessness é um conceito definido correntemente pela ausência do que a sociedade considera standard ou aceitável, ignorando que as noções do que sejam moradias adequadas também variam no nível individual e no modo como as pessoas compreendem sua própria situação de vida. O autor realiza pesquisa de campo no estado norte-americano de Delaware e relata situações de indivíduos que viviam em habitações que não atendiam aos requisitos tradicionais de casa, mas que nem por isso tais sujeitos consideravam a si mesmo como homeless. Tal dimensão não seria abordada pela dicotomia home/homelessness, de modo que o autor propõe a noção de un-home para abordar os três tipos de experiência que encontrou em seu estudo. Na primeira delas, Veness chama atenção para o fato de que os modos de habitar, desenvolvidos por alguns de seus pesquisados, não são destituídos de significados associados à noção de lar/casa, mas se entrelaçam com a forma como eles estruturam suas vidas. “Un-home describes the personal worlds of people whose environments and experiences do not conform with society’s standards but which uphold their personal values and needs. […] dilapidated houses, cars and shelters (all labeled homelessness by society) may become un-home to the people involved when these personal worlds have meaning. Often these un-homes are associated with values commonly embedded in the home ideal: order, work, family and personal accountability.” (VENESS, 1993, p. 334) 14

Outro grupo de situações relatadas pelo autor é o de indivíduos que foram obrigados pelo poder público a abandonarem suas moradias, a fim de serem atendidos por programas sociais, como é o caso de pessoas que são levadas para abrigos públicos, mas que passam a se sentir como homeless apenas quando são levadas a viver neste tipo de situação. “Un-home, however, can also apply to environments and experiences that society accepts and calls home, but that are nonetheless unacceptable (labeled homeless) to the people involved. In this situation habitats that outsiders recognize as home may in fact feel so awful to insiders that they are effectively homeless.” (Idem) O autor também insere na categoria un-home o caso de indivíduos que, em contraposição, de fato consideram como precárias suas formas de moradia, de modo a preferirem ancorar sua experiência habitacional em diferentes tipos de instituições de acolhimento, espaços que, contudo, não atendem ao que se espera de uma casa/lar. “When these homes become so thoroughly unacceptable, living in a homeless shelter, group home, rehabilitation center, even prison may be preferable. Again we have a situation where the personal worlds of these people fit into neither the homed nor homeless categories. They are wedged into a space called un-home.” (Idem). A crítica de Veness concentra-se, portanto, em situações nas quais, a existência de uma convenção sobre o que sejam padrões mínimos de moradia, define quem é homeless, sem considerar a leitura que tais indivíduos têm sobre seu próprio mundo. Este tipo de problematização da categoria homelessness pela noção de un-home não se repetiu nos outros trabalhos acessados para o presente levantamento. No entanto, o trabalho de Veness se mostra importante, na medida em que ele atenta para as implicações políticas que definições arbitrárias sobre a dicotomia home/homeless podem acarretar; bem como por seu trabalho propor um conceito que é ancorado na

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forma como as pessoas significam seu próprio mundo, algo não muito comum na disputa de definições. Todavia, discussões mais correntes sobre o termo homelessness centram-se na tentativa de definir delimitações entre outros tipos de categorias, como as de houseless, shelterless, roofless, street dwellings e street sleepers3. O trabalho de Springer (2000) abrange bem este debate e sua proposição de categorias tenta abarcar todas estas dimensões. A autora sugere o desuso do termo homelessness e o estabelecimento de duas esferas de definição. Para ela, as pessoas que não tem nenhum tipo de moradia deveriam ser consideradas como houseless, enquanto pessoas que vivem em habitações consideradas inadequadas (a experiência de "inadequate shelter") comporiam um segundo grupo. Dentro do universo de houselessness, Springer inclui indivíduos que dormem nas ruas ("sleeping rough") e pessoas que dormem em instituições de acolhimento ("sleeping in shelter") como subcategorias. Uma das vantagens desta forma de definição, na concepção da autora, seria a possibilidade do termo houselessness ser empregado em nível global, pois ele subsistiria a variações regionais. Por outro lado, o mesmo não aconteceria com o outro âmbito inadequate shelter, pois as concepções do que sejam moradias precárias variam muito em nível regional ou até mesmo nacional (Idem, p. 487). A despeito disso, a autora defende a importância de estabelecer categorias diferentes para identificar pessoas que vivem em algum tipo de

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Ver Speak&Tripple (2005) para um detalhamento de perspectivas sobre homelessness e quais entre elas abordam tais termos.

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moradia daqueles que dormem em albergues e espaços públicos, mesmo que os indivíduos possam mover entre os dois universos. Assim, são três os tipos de experiências elencadas por Springer como formas de viver em moradias inadequadas: o grupo mais óbvio de pessoas que vivem em habitações que não apresentariam padrões considerados mínimos ("substandard"); pessoas que moram com parentes ou família por não conseguirem sustentar uma moradia própria - fenômeno denominado como concealed houselessness4 (Springer, 2000); bem como indivíduos que correm o risco de perderem suas moradias, seja por vencimento de contratos ou por despejo, não tendo lugar para ir (subcategoria "risk of homelessness”). Tais

problematizações

sinalizam

que

o

estabelecimento

de

limites

classificatórios não se passa apenas em um âmbito teórico, embora sejam profundamente suscetíveis às formas de inteligibilidade que são construídas sobre fenômeno (De Lucca, 2009); mas trata-se, também, de um assunto politicamente sensível, principalmente porque tais definições informam o endereçamento de políticas assistenciais, bem como formas de controle dos indivíduos que vivem em situação de rua. Buscaremos explicitar melhor este ponto na discussão que se segue sobre a emergência de categorias no Brasil. 1.2 De “mendigo” a “população em situação de rua”: a emergência de categorias no Brasil No contexto brasileiro, a profusão de categorias, que tem como referencial a ausência de moradia, tem menos ressonância na literatura. Embora o termo homeless possa ser traduzido por alguns autores como sem-teto (Varanda & Adorno, 2004, p. 59), 4

Ou hidden homelessness, para Veness (1993).

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esta categoria não é muito associada, no Brasil, ao universo de experiência dos indivíduos cujo cotidiano empreende-se nas ruas. Tem-se, por outro lado, categorias que privilegiam a referência à vida nas ruas, com é o caso do termo morador de rua e da noção que é predominante no debate político atual de população em situação de rua (Schuch et alli, 2008 apud Schuch & Gehlen, 2004, p. 16). Ter como referencial a experiência de rua não significa, no entanto, que a definição de categorias tenha se dado de modo mais consensual no Brasil. As décadas de 1970 e 1980 marcam períodos nos quais a questão da “população de rua” começa a emergir como um campo de estudo e intervenção (Schuch & Gehlen, 2004; De Lucca, 2009; Oliveira, 2012) e são marcadas por uma profusão de termos que se referiam, sobretudo, aos diversos grupos de indivíduos cuja existência social era considerada marginal e era empreendida com maior visibilidade nos centros das grandes cidades (De Lucca, 2007). Rosa (2005), que realiza uma pesquisa nas matérias de jornais impressos, aponta alguns dos termos que compunham a multiplicidade de denominações utilizadas para se referir aos indivíduos que habitavam as ruas até a década de 1980. Embora este período marque a utilização do termo morador de rua em substituição ao termo mendigo - que era predominante anteriormente-, há, ainda, o emprego de muitos termos em disputa, como os de nômades urbanos, população flutuante, população itinerante, extrabalhadores, sem-tetos, bóias frias, catadores de papel, desempregados, migrante, trecheiro, sofredor de rua, povo da rua, assim como termos pejorativos, como é o caso de vagabundos, maltrapilhos, bêbados, doentes mentais, etc. (Rosa, 2005, p. 53).

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No entanto, tentativas de lidar com a diversidade de experiências de rua, pelo emprego de categorias amplas e mais inclusivas, já se esboçam na década de 1970, com o surgimento do termo população de rua. Este é introduzido pela Organização do Auxílio Fraterno de São Paulo5, como uma forma de abranger uma gama de perfis sociais que compunham os grupos marginais do centro da cidade na época, como “mendigos, prostitutas, alcoólatras, migrantes recém-chegados, psicopatas, egressos de prisão, menores abandonados, taxicômanos, etc.” (OAF-SP, 5/5/1978 apud Rosa, 2005, p. 52). Tais indivíduos comporiam, à época, o que De Lucca (2009; 2011) denomina como

“periferia

do

centro”:

um

contingente

de

indivíduos

considerados

“marginalizados” e “abandonados” e que grupos religiosos e entidades filantrópicas definem como público para o exercício de sua missão. Neste cenário, as pessoas que moravam nas ruas são objeto de ação privilegiado destas organizações e, embora não constituíssem seu único grupo de enfoque, tais ações correspondem às primeiras iniciativas de intervenção e debate sobre este segmento que se tem no Brasil (Schuch & Gehlen, 2004, p. 16). No contexto das décadas de 1970 e 1980, a utilização do termo população de rua é, no entanto, utilizado de forma esporádica pela OAF de São Paulo - a despeito da importância que ele ganha na definição do fenômeno atualmente - sendo que sua consolidação acontece apenas na década de 1990, no âmbito do Fórum Coordenador dos Trabalhos com a População de Rua, na cidade de São Paulo (De Lucca, 2011).

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A OAF é uma organização religiosa que exercia atividades junto a grupos considerados “marginais” do centro da cidade de São Paulo. Para detalhamentos do papel desta organização no debate sobre população em situação de rua, ver De Lucca (2007).

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A noção mais correntemente empregada, no universo dos grupos religiosos que lidavam com os segmentos marginais do centro das cidades, foi, no entanto, a de sofredor de rua, denominação significativa no imaginário cristão (De Lucca, 2007) e que faz referência ao sofrimento causado pelas situações de injustiça social em que viveriam estes grupos – sendo “sofredor de rua” uma denominação ainda utilizada, no dias de hoje, por alguns moradores de rua quando querem se referir à “carência e fragilidade em que se encontram” (Varanda & Adorno, 2004, p. 60). A utilização do termo sofredor de rua marca, ainda, um importante deslocamento no modo de encarar as pessoas que moravam nas ruas, principalmente, por superar a noção de mendigo (que estigmatizava os indivíduos como culpados pela sua situação) e por trazer um entendimento do fenômeno como conseqüência de uma “justiça implantada”, uma condição de exploração (Castelvecchi, 1982 apud Rosa, 2005, p. 55). Um segundo termo que também passa a habitar o universo de ação dos grupos religiosos, ainda na década de 1980, é o de povo da rua. Tal noção, como a de sofredor de rua, teria o mesmo objetivo de dissipar concepções pejorativas sobre as pessoas que vivem nas ruas; mas ela acrescenta uma nova forma de compreensão do fenômeno ao reforçar uma consciência de grupo (Rosa, 2005) e, também, por “representar um deslocamento da experiência da rua percebida como um sofrimento, sob influência da ética cristã, para a experiência da rua tomada como um risco” (Schuch & Gehlen, 2004, p. 17 fazendo referência à De Lucca, 2007). Na década de 1990, por sua vez, tem-se o fortalecimento da noção de população de rua, que, como dito anteriormente, emerge no âmbito do Fórum Coordenador dos

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Trabalhos com a População de Rua6 - espaço institucional que reunia pesquisadores, gestores públicos, organizações religiosas e filantrópicas, representantes de grupos políticos que representavam pessoas que moravam nas ruas, bem como estas individualmente. Isso não significa, todavia, que uma profusão de termos inexistisse ainda neste período. Novamente, é Rosa (2005) que apresenta denominações que são acrescentadas à discussão do fenômeno na esfera pública. São associados à questão da vida nas ruas, neste momento, termos como habitantes de rua, maloqueiros, desempregados industriais, garis-mendigos, guardadores de carro, trabalhadores de curta duração, andarilhos, loucos de rua, albergados, desassistidos, flagelados, excluídos, etc (p. 623). No entanto, a adoção do termo população de rua é significativa, pois além de visar um tratamento menos estigmatizante sobre os indivíduos que viviam nas ruas, ela também “permitiu a instituição de uma nova modalidade de política pública, comprometendo o Estado com sua implementação. Isso foi inédito, uma vez que [...] a ação dirigida à população de rua ficou historicamente delegada às organizações privadas da sociedade civil.” (Idem, p. 67) Também acompanha a trajetória de evolução das categorias, neste momento, uma compreensão das experiências de rua através da noção de ex-trabalhadores, ou de trabalhadores em situação de desemprego ou de subemprego. Este enfoque na condição de trabalhadores não acontece, no entanto, sem que aja mais problematizações. Para alguns autores (Burstzyn, 2000; Araújo, 2000 apud Mendes, 2007), a posição periférica de alguns trabalhadores em relação ao sistema produtivo - mais

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A compreensão mais aprofundada deste contexto também pode ser consultada em De Lucca (2007).

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especificamente, a de trabalhadores que encontraram na rua um lócus alternativo de trabalho e obtenção de renda - é tomada como dimensão privilegiada na definição do conceito população de rua, ficando a questão da moradia em um segundo plano. Como aponta Mendes (2007), este tipo de enfoque considera que a frágil condição socioeconômica de alguns trabalhadores, como camelôs e catadores de papel, os coloca em contato com experiências de rua; como no caso de indivíduos que, mesmo que possuam uma residência, pernoitam eventualmente nas ruas ou albergues por morarem muito longe dos seus pontos de trabalho. Nos anos 2000, surge, por fim, o conceito de população em situação de rua, que se torna predominante no léxico da luta política e das políticas públicas. Por meio da Política Nacional para População em Situação de Rua7, o termo ganha embasamento institucional e define seu público-alvo como "Grupo populacional heterogêneo, caracterizado por sua condição de pobreza extrema, pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares e pela falta de moradia convencional regular. São pessoas compelidas a habitar logradouros públicos (ruas, praças, cemitérios, etc.), áreas degradadas (galpões e prédios abandonados, ruínas, etc.) e, ocasionalmente, utilizar abrigos e albergues para pernoitar." Por um lado, a definição institucional contém uma postura de compreensão do fenômeno que se centra em causalidades estruturais - abordagem predominante na literatura especializada. No entanto, segundo a leitura que Schuch e Gehlen (2004) fazem do conceito, "população em situação de rua" também provoca um deslocamento de inteligibilidade, pois traz "situacionalidade" e "agência" como noções importantes para a abordagem do fenômeno, discussão que empreenderemos na sessão seguinte.

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Instituída por meio do Decreto Nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009, esta política elenca diretrizes para o atendimento deste segmento em nível nacional.

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Gostaríamos de ressaltar que, para os fins do presente trabalho, utilizaremos a noção "em situação de rua", pois ela é a que permite abarcar melhor a "pluralidade dos usos e sentidos da rua" (Idem, p.17). E isto convém com caráter desta pesquisa, não apenas porque as próprias trajetórias individuais aqui analisadas se diferenciam na forma como os sujeitos vivenciaram e vivenciam a experiência de rua; mas, também, porque tal noção nos permite manter o horizonte de que "viver na rua" - ou em uma situação que tangencie este estado– envolve outros perfis e outras formas de vida que ultrapassam aquelas presentes no universo aqui considerado.

2. Discussões em torno de abordagens teóricas: exclusão social e agência Grande parte da literatura temática sobre população em situação de rua tem, como enfoque privilegiado, a investigação de relações causais que levariam certos indivíduos a viverem nas ruas – o “porquê” da rua, como coloca De Lucca (2007, p. 14); sendo predominante, sobretudo, a tentativa de apontar quais mecanismos estruturais seriam promotores de tal fenômeno. Este enfoque já permeia dois dos primeiros trabalhos que iniciam um campo especializado de saber sobre pessoas que vivem em situação de rua no Brasil (Oliveira, 2012, p. 19). Stoffels (1977) e Neves (1983) abordam as práticas de mendicância nas capitais Rio de Janeiro e São Paulo, numa época quando inexistia o termo "população em situação de rua" e o habitante de rua era associado, principalmente, à figura do mendigo. Tais autoras compreendem os sujeitos pesquisados como trabalhadores sem

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emprego e que recorreriam à mendicância como forma de sobrevivência8. E, como aponta Oliveira (Idem), suas análises introduzem, no debate, o entendimento de que a existência de pessoas morando nas ruas tem como causas o desemprego, a migração e os conflitos familiares. Tais noções continuam a permear os enfoques que se seguem durante a década de 1990, quando começa a se estruturar um tratamento mais institucionalizado de quem vive nas ruas, compreendendo tais sujeitos como um grupo heterogêneo e que constitui um problema social. A maioria das leituras realizadas do fenômeno, a partir de tal época, é pautada pela noção de exclusão social e tem como objetivo a elucidação de estruturas macrossociais associadas à produção de "vidas de rua". Como aponta Leal (2009), o conceito de exclusão social adotado por pesquisadores brasileiros tem forte relação com a produção acadêmica francesa. Esta autora aponta que, na França, a emergência de tal conceito tem como contexto a situação de crise da sociedade salarial (a partir da década de 1970); quando o aumento do desemprego e a precarização dos postos de trabalho começam a impactar setores antes estáveis da população. Pesquisadores passam, então, a utilizar o conceito de exclusão social para tratar dos efeitos gerados por esta chamada "nova pobreza", e também para abordar a inclusão de imigrantes neste contexto de "desestabilização do mundo do trabalho" (p. 262). Na literatura brasileira sobre população em situação de rua, autores como Cleisa Maffei Rosa realizam uma leitura a partir de tais noções advindas da sociologia 8

Neste sentido, Neves (1983) chama especial atenção para a expectativa que se tem sobre os trabalhadores homens como provedores da família, de modo que a falência deste projeto seria a causa pela qual é predominante a existência de pessoas do sexo masculino vivendo nas ruas e pedindo esmola para sobreviver.

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francesa, associando, principalmente, o desemprego como mecanismo estrutural associado à existência de pessoas vivendo em situação de rua. Em sua obra de 2005, Rosa aponta que tal fenômeno está inserido em um quadro de crise internacional, caracterizado por um “processo econômico contraditório” gerador de pauperização e pobreza. “O desenvolvimento capitalista e as transformações sociais, na perspectiva da globalização, têm gerado segmentos de trabalhadores que, sem conseguir acompanhar as mudanças do perfil de emprego e da sociedade, sofrem os efeitos de forte alijamento do mercado de trabalho.” (ROSA, 2005, p.31). Embasada no trabalho de Robert Castel (1998), Rosa retrata o cenário de economia recessiva, que se desenvolveu no Brasil a partir da década de 1970, como desencadeador de um processo de precarização das condições de trabalho (perda de vínculos de assalariamento e/ou o desenvolvimento de atividades remuneradas intermitentes), fazendo com que um “segmento heterogêneo de trabalhadores [fosse] progressivamente alijado do mercado de trabalho formal” (Rosa, 2005, p.36). Em um contexto de incapacidade dos setores públicos de seguridade social para lidar com a proteção dos indivíduos atingidos, as famílias se tornam o apoio para o qual os indivíduos podem recorrer a fim de proteger de riscos sociais. Orientada pela perspectiva de que emprego e família configuram a integração social do indivíduo na sociedade, Rosa se vale da abordagem casteliana para retratar a população de rua como sujeitos em uma condição de vulnerabilidade social - esta, entendida como a conjunção da dimensão de precarização do trabalho com um cenário de debilitação da estrutura familiar (Idem, p. 36). A autora também se vale da noção de desqualifição social de Serge Paugam (1993 e 2005) como quadro teórico para compreender a entrada dos sujeitos em uma 25

forma de vida empreendia em espaços públicos. Paugam também identifica o enfraquecimento das relações sociais e as rupturas familiares como um fator condicionado a situações de empregos instáveis e de desemprego, gerados por uma degradação do mercado de trabalho. A especificidade da análise do autor está em salientar que a pobreza não pode ser considerada uma categoria estática, mas, sim, como um processo - denominado por ele de desqualificação social. Isso significa a compreensão da situação de pobreza como uma exclusão progressiva, um continuum, onde a condição de fragilidade configura-se numa acumulação progressiva de dificuldades (Paugam, 1993; 2005 apud Rosa, 2005); continuum que, na leitura de Rosa, tem na vida em situação de rua o ponto extremo deste processo. Também motivada pela perspectiva de que a população de rua vivencia as dinâmicas da pobreza de modo mais extremo, Sarah Escorel (1999) realiza um estudo com moradores de rua, na cidade do Rio de Janeiro, tendo por objetivo investigar a aplicação do conceito de exclusão social à realidade brasileira. Uma de suas conclusões é a de que, no contexto do nosso país, a noção de exclusão social não pode estar unicamente associada à esfera do desemprego e às mudanças econômicas e tecnológicas empreendidas a nível global; pois o assalariamento formal nunca foi uma situação generalizada no Brasil, de modo que sempre foi muito comum a irregularidade e intermitência dos rendimentos entre famílias de baixa renda (Idem, p. 262-3). Embora a autora não ignore a interferência que a vinculação com o trabalho possa exercer nos processos que levam indivíduos a viverem nas ruas, seu argumento é o de que é a família (e não o emprego) a “unidade de pertencimento preponderante” (Idem, p. 264), a fonte principal de suporte material e simbólico para os indivíduos que enfrentam dificuldades em nossa sociedade. Para esta autora, o rompimento dos 26

vínculos com esta rede primária de sociabilidade fornece a principal chave explicativa para compreender o fenômeno da população em situação de rua. Informada por uma perspectiva arendtiana, Escorel compreende a exclusão social como a condição do “ser sem lugar no mundo” (Idem, p. 264). Sendo assim, no contexto brasileiro “ficar sem lugar não é ficar sem trabalho – essa é uma contingência, um acidente de percurso muito frequente na pobreza abrigada – é ficar sem família” (Idem). A autora faz uma ponderação reflexiva de seu trabalho, afirmando que não foi possível contornar a “armadilha conceitual” do termo exclusão, que define os sujeitos em negativo e caracteriza o fenômeno por aquilo que lhe falta. Trabalhos realizados na última década, sobre o tema da população de rua, apresentam um olhar crítico sobre a dimensão da falta como forma de caracterizar a vida empreendida nas ruas, de modo que suas abordagens enfatizam as dimensões simbólicas e de produção de sociabilidades específicas de quem vive em situação de rua. A pesquisa de Oliveira (2012) sobre moradores de rua da cidade de São Carlos (SP) é, entre os trabalhos recentes, o que dialoga mais fortemente com a literatura sobre exclusão social, buscando ampliar o debate. O autor analisa os dispositivos governamentais que buscaram gerenciar a existência de pessoas nas ruas de São CarlosSP no último quarto de século, a partir de uma perspectiva informada pelo trabalho de Das & Poole (2008) de que o “Estado produz suas margens” (Idem, p. 138). Oliveira não parte, então, de uma tentativa de elucidar fenômenos macrossociais que expliquem a existência de pessoas em situação de rua; mas demonstra como as próprias políticas governamentais direcionadas para este segmento, embora visassem cumprir uma funcionalidade ordenadora destes potenciais elementos de desordem, não são recebidas passivamente. Mas que, antes, elas se entrelaçam com as estratégias empregadas no dia27

a-dia de quem vive na rua, produzem novos territórios e são articuladas pelos atores nas formas como empreendem relações sociais e suas experiências no espaço urbano. Como na pesquisa de Oliveira, os trabalhos recentes empreendem uma tentativa de substituir a perspectiva da “falta” por abordagens que demonstrem a capacidade de agência dos indivíduos em situação de rua diante das situações nas quais estão inseridos. Schuch e Gehlen (2004) trazem esta perspectiva, orientados pelo trabalho do antropólogo James Scott (1998 e 2009), ao afirmarem que “Ao se considerar a agência política dessas pessoas, é preciso refletir sobre a hipótese de que, mais do que “resíduos” periféricos ao Estado, certos grupos podem desejar manter certas práticas autônomas em relação às formas normalizadas de inserção social”. (SCHUCH & GEHLEN, 2004, p. 15) Privilegiar a dimensão da agência é também sinalizado por estes autores como uma forma de evitar o perigo que leituras macroestruturais sobre grupos em situação de rua terminem por enunciar “estruturas sem sujeitos” e sujeitos desprovidos de ação. Para Mendes (2007), situar indivíduos em situação de rua como "vítimas de forças estruturais da sociedade" é um discurso empregado, muitas vezes, como estratégia para "torná-los moralmente corretos" (Idem, p. 107), haja vista o estigma e condenação moral que geralmente acompanha as leituras do senso comum sobre o fenômeno. A alternativa explicativa de Mendes (Idem) às teorias macroestruturais é marcada por uma perspectiva foucaultiana sobre as sociedades urbano-industriais. Seu ponto de partida é questionar quais agenciamentos são subjacentes à consideração do trabalho formal - ou minimamente regular - como via única de inserção dos indivíduos na ordem social. Para a autora, o mercado de trabalho das sociedades contemporâneas é caracterizado pela racionalização dos meios de produção que exige, sobretudo, um disciplinamento dos corpos e uma economia de gestos orientada para eficiência e 28

produtividade. No entanto, tal aspecto insere-se na dimensão mais ampla de uma sociedade que se ancora em processos de segmentarização e hierarquização de espaços e funções; e que tem como padrão de normalidade o dos indivíduos que vivem em territórios sedentarializados. A autora compreende, portanto, as pessoas que moram nas ruas como sujeitos que “ocupam de modo desordenado” os espaços existenciais esquadrinhados pela racionalidade moderna. Viver nas ruas figuraria como um devir, uma possibilidade para aqueles que estão “social e afetivamente desterritorializados”, para aqueles que já não se encontram ajustados às segmentaridades convencionais. Os agenciamentos que perpassam as trajetórias de rua são, portanto, gestados no interior da própria sociedade que condena este modo de vida e se relacionam com a forma como os sujeitos se posicionam e atuam dentro desta realidade ordenadora. Por este motivo, é preciso dar espaço para abordar os indivíduos em situação de rua como agentes e como pessoas com capacidade de organização sobre a própria vida. A vida nas ruas não atende a um padrão social de normalidade, mas não é, por isso, esvaziada de vida social. As perspectivas que buscam explicações macroestruturais, apresentadas no início deste capítulo, não deixam de ser relevantes e tem uma significância, sobretudo, por salientar como a existência de pessoas em situação de rua deve ser entendida como um fenômeno com uma dinâmica processual e multidimensional, de modo que não descartamos por completo as contribuições, advindas deste eixo, na construção da presente pesquisa. Por outro lado, é também muito importante não excluir, do horizonte de análise, o papel dos próprios sujeitos na co-produção da realidade social. Como Schuch e Gehlen sintetizam, 29

“Compreender a complexidade da situação de rua é, de um lado, (...) salientar que não existe nenhuma essência individual que forneça as razões para a produção dessa situação, uma vez que processos sociais e históricos e tecnologias de governo específicas têm um papel fundamental nessa conformação. (...) No entanto, apenas olhar para processos sociais e históricos e práticas de governo específicas também não parece ser suficiente, pois significa focar estruturas sem agentes. As práticas e as interpretações dos sujeitos acerca de suas próprias situações sociais não são adições, mas um componente essencial na configuração da situação de rua”. (SCHUCH & GEHLEN, 2004, p. 20). Com esta perspectiva em mente, passaremos, no próximo capítulo, a abordar como os sujeitos entrevistados para esta pesquisa apresentam suas trajetórias individuais e como estas são posicionadas diante do fato de viverem atualmente em situação de rua.

3. A rua é uma situação Ao realizar entrevistas em profundidade como metodologia, julgamos indispensável empregar o recurso da história de vida, a fim de não negligenciar os contextos sociais e individuais dos sujeitos pesquisados. Ao explorar este tempo passado, nosso objetivo não foi o de buscar causalidades que tenham “produzido” vidas em situação de rua; mas, antes, buscamos compreender possíveis eventos significativos e rupturas que os sujeitos consideram relevantes para sua história pessoal, e de que modo a experiência de viver na rua tangencia tais momentos. Ainda, nossa preocupação foi menos a de evidenciar uma cronologia, mas identificar processos significativos para os sujeitos, pois, como aponta Bosi (1994), a história de vida, enquanto metodologia, não busca a evidenciação de uma cadeia exata de fatos, mas atenta-se à organização da narrativa de vida através da qual o sujeito escolhe reconstruir e apresentar seu passado. Foi possível identificar nas narrativas que a rua, mais que uma condição, apresenta-se mesmo como uma situação, que é variável ao longo do tempo e/ou 30

intermitente. Neste capítulo, analisaremos este aspecto a partir de dois eixos: um que considera as trajetórias de vinculação familiar, e outro que aborda as diferentes formas através das quais os indivíduos viveram em situação de rua ao longo de sua história.

Condições de produção das entrevistas e caracterização dos entrevistados A Comunidade Amigos da Rua (projeto desenvolvido pela Pastoral de Rua e voluntários) dispõe de um espaço no prédio do Vicariato Episcopal para Ação Social e Política, na Rua Além Paraíba, Bairro Lagoinha, onde também se localiza a Pastoral de Rua. Neste espaço, acontecem atividades da Comunidade Amigos de Rua (como rodasde-conversa e atividades festivas) e reuniões do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Além disso, este local também fica à disposição dos indivíduos em situação de rua que têm contato com a Pastoral, tornando-se um ponto de encontro, um local para passar o dia, para ajudar a Pastoral com algumas atividades, e também onde se pode tomar banho, lavar alguma peça de roupa, fazer café, cochilar. Trata-se de um local onde poucas pessoas freqüentam diariamente e onde outras passam por alguns instantes (seja para um café ou para conversar algo com a equipe da Pastoral)9; porém, quando há reuniões, mais pessoas utilizam o espaço. Para os freqüentadores mais assíduos, o espaço oferece relativa privacidade, pois ficam com a chave do local durante o período que lá estão, sem que haja a necessidade de que um funcionário da instituição fique os vigiando. Este tratamento é muito diferente daquele empreendido nos equipamentos sociais do poder público e ancora-se na construção de relações de confiança entre os indivíduos em situação de rua e a equipe da Pastoral.

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No período de campo, encontrei geralmente em torno de cinco homens em situação de rua utilizando o local durante as tardes.

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A maioria dos entrevistados passa as tardes neste local; deles passa diariamente sem se demorar muito; outro intercala as atividades da Pastoral com compromissos em outras instituições. Mas porque todos estão lá frequentemente, o espaço da Comunidade Amigos da Rua foi o ponto de encontro para a realização das entrevistas e onde quatro delas foram realizadas. Apenas uma entrevista aconteceu foram deste espaço, mas nos jardins do Palácio das Artes, na região central, pois neste dia o entrevistado me convidou para acompanhá-lo até o Centro, onde tinha um breve compromisso. Apresentamos os sujeitos entrevistados de modo sintético no quadro a seguir, de modo que aprofundaremos suas histórias de vida ao longo deste capítulo. Figura 1: Tabela de Caracterização dos Entrevistados Entrevistado10 Idade Escolaridade

Ademar

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Bruno

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Carlos

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Situação de rua atual

Data entrevista

Nasceu em São Paulo/SP. Vive em Belo Horizonte há 21 anos. Atualmente, dorme Não em uma Praça (no Bairro Padre Eustáquio). 24/04/14 informada Frequenta a Pastoral diariamente, mas por um período pequeno do dia. Nasceu em Nova Iguaçu/RJ. Vivem em Ensino Belo Horizonte há 4 anos. Dorme na Fundamental calçada de um prédio (no B. Barro Preto). 24/04/14 incompleto Intercala atividades na Pastoral com visitas à outras instituições ao longo da semana. Nasceu em São Pedro do Suaçuí/MG. Há 10 anos vive em BH continuamente. Até o dia da entrevista, passava as noites em uma Ensino comunidade religiosa (região Pampulha), 28/04/14 Fundamental recebeu um encaminhamento para viver em incompleto uma República11 quando terminamos a entrevista. Geralmente, passa os dias na Pastoral.

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Utilizamos, no texto, nomes fictícios para preservar a identidade dos entrevistados. Equipamento social atua em regime de pensão pública, no qual é possível morar pelo período máximo de um ano e meio. Difere dos Abrigos e Albergues, pois estes se destinam apenas ao pernoite, enquanto nas Repúblicas o usuário compartilha quarto com poucos sujeitos, dispõe de um armário permanente para guardar pertences, recebe refeições e pode utilizar o espaço durante o dia.

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Entrevistado10 Idade Escolaridade

Danilo

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Evandro

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Situação de rua atual

Data entrevista

Nasceu em Belo Horizonte/MG, onde Ensino viveu a maior parte da vida. Dorme em 29 e Fundamental uma calçada em frente a um prédio 30/04/14 incompleto comercial (no B. Barro Preto). Geralmente, passa os dias na Pastoral. Nasceu no estado do Rio de Janeiro, mas Ensino foi bebê para Vitória, onde foi criado por Médio uma família. Está em BH há 1 ano e 7 05/5/14 completo meses. Geralmente, passa os dias na Pastoral.

3.1 Trajetórias familiares A desvinculação familiar, entendida como um fator que acompanha trajetórias de rua, não deixou de se apresentar nas histórias de vida dos sujeitos pesquisados e se expressa, por exemplo, no fato de que a maioria deles não mantém, atualmente, nenhum contato com esta rede de solidariedade primária. Apenas um entrevistado disse conversar regularmente com pais e irmãos, sem lhes relatar, todavia, que nos últimos anos tem vivido em situação de rua. E outro entrevistado mantém relações com a exesposa e filha, mas não com os membros da primeira família nuclear. Além disso, todos eles apresentaram-se engajados em um projeto de saída da vida em situação de rua para o retorno a um cotidiano domiciliado; no entanto, a maioria não coloca a reconstituição dos vínculos familiares no horizonte deste projeto. A saída do núcleo familiar é um evento marcante para todos eles e um primeiro ponto a ser notado é que quatro dos cinco entrevistados deixaram de viver, na casa da família onde foram criados durante a infância, quando ainda eram muito jovens - com idades entre 13 e 17 anos. Para todos estes, este evento marca o início de um processo de desvinculação familiar, mas em relação ao qual a entrada em uma situação de rua associa-se de modo diferente para cada um deles. 33

No caso de Carlos, o rompimento familiar e o início em uma trajetória de vida nas ruas se relacionam de modo mais linear: ele sai da casa dos avós aos 15 anos para morar com o pai e, depois, com a irmã. Os conflitos familiares em torno de seu alcoolismo motivam sua saída definitiva do convício familiar, aos 19 anos, e o início de uma trajetória em situação de rua que se estende até os dias de hoje. No caso de Ademar, cuja convivência familiar é rompida aos 13 anos - quando ele passa a viver na Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor (FEBEM)12-, nota-se como o percurso institucional imbrica-se em um processo de perda dos referenciais familiares. Embora não tenha relatado conflitos com a família, os seus 18 anos marcaram um momento de sua vida no qual não poderia ter nenhuma expectativa de tutela familiar ou institucional, e este contexto coincide com o período em que viveu em situação de rua pela primeira vez. “Como eu sou filho de japonês, nossos costumes é, depois de 18, a gente já não mora mais com parente, então a gente sai de casa”. “Com 18 anos eles [a FEBEM] te arrumam um serviço pra você trabalhar. Se você saiu, bem; se você saiu da firma, se vira, é problema seu agora. Porque a obrigação deles é te arrumar um curso, um serviço, desde que você complete 18 anos. Completou 18 anos, saiu da porta para fora, eles não podem fazer mais nada” “Quando eu saí de lá, aos 18 anos, me arrumaram um trabalho. O primeiro emprego meu foi trabalhar num supermercado, eu fazia entrega, assim, do carrinho das madames, levava mercadoria pra elas até em casa (...). Aí de lá, eu saí... você sabe, né, moleque novo, você sabe como é que é. Moleque novo só quer saber de brincar, curtir, tinha aquela mania de ficar empinando pipa, ficar brincando de pião. Depois de sair da escola, também, não quis saber mais de nada. Eu fiquei

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A Fundação de Bem Estar do Menor foi instituída, no Estado de São Paulo, em 1976 e tinha como público-alvo crianças e adolescentes carentes e infratores. Sua criação visa um alinhamento do serviço estadual à política nacional para o menor, cujas diretivas vinham da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), esta, instituída em dezembro de 1964. Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), nos anos 1990, a FEBEM/SP passa a atender somente adolescentes infratores e tem seu nome mudado para Fundação CASA. Fonte: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/index.php/afundacao/historia. Acessado em 01/06/2014.

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vivendo pela rua afora aí”. (Trechos da entrevista realizada com Ademar em 24/04/14) Para os outros entrevistados, a desvinculação familiar acontece em um processo mais longo e o rompimento familiar associado à entrada em uma trajetória de rua, em um momento posterior de suas vidas. No caso de Bruno, a saída da casa dos pais se dá aos 17 anos, quando ele vai para Guarapari/ES com um amigo, na expectativa de encontrar um emprego. A incerteza do momento que estava passando colocava a rua como um horizonte. No entanto, ele contorna este risco ao encontrar, no mesmo dia, um emprego que lhe oferecia um local para dormir temporariamente. “Nós chegamos em Guarapari e a gente ia achar o serviço ainda. A gente tava caçando e já tava de tardinha, umas 5h da tarde. Tinha que arrumar agora, senão a gente ia dormir na rua”. “Eu fiquei lá, pequeninho o lugar [um porão], cheio de barata, tinha uma caixa d´água,(...) Eu ainda fiquei [dormindo neste local por] dois meses, pensei ‘vou ficar dois meses aqui, aí dá pra segurar uma grana boa e alugo primeiro mês e o segundo mês, e aí dá pra equilibrar’". (Trechos da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) A descrição que faz deste local o retrata como precário, o que, se por um lado sinaliza a situação habitacional vulnerável em que ele se encontrava ao chegar à cidade, também aponta a racionalidade subjacente para lidar tal situação. Essa lógica parece ter permeado o percurso posterior que empreendeu por várias cidades capixabas, onde trabalhou principalmente no setor hoteleiro. É difícil apontar o quanto o entrevistado já se encontrava em situação de rua nesse momento. Embora sua trajetória se assemelhe a dos hobos, os trabalhadores sazonais e itinerantes estudados por Anderson (1923) nos Estados Unidos e que compreende um dos primeiros trabalhos que trata sobre formas de viver em situação de rua, o próprio entrevistado não identifica como “em situação de rua” este período de sua trajetória. Seus trajetos se orientavam por possibilidades relativamente concretas de 35

encontrar um emprego em uma cidade e manter a vida no local: era um amigo que conhecia uma pousada aqui, outro que lhe indicava um hotel que estava contratando acolá. No entanto, essa dinâmica não se repete quando deixa o núcleo familiar pela segunda vez e é onde a vida em situação de rua se apresenta em sua narrativa: após tentativas frustradas de morar com parentes em sua cidade natal, o entrevistado escolhe a cidade de Juiz de Fora/MG na rodoviária e, a partir de então, vive um longo período pernoitando no albergue da cidade e, depois, dormindo nas ruas. Para Danilo, a saída de casa, por volta dos 15 anos e motivada por conflitos com o padrasto, também foi acompanhada por um período no qual sua situação habitacional era incerta. Porém, na história deste entrevistado, a vida em situação de rua é algo intermitente e que aparece intercalada com momentos de vida domiciliada. “Minha primeira saída foi pra Vitória, um bar depois de Coqueiral. Fiquei um ano e seis meses. Estava com 15 anos. Voltei [para Belo Horizonte, onde nasceu e vivia com a família], mas não quis ir pra casa. E aí começou minha era na rua. (...) Aí eu comecei, dois dias depois eu fixei na firma CAL Engenharia, capinação de rua, né. Tentei alugar um lugar pra mim. A dona nem queria alugar esse lugar pra mim por causa da minha idade. (...) Aí pensei ‘não vai ter jeito, então vou ter que ficar na rua’. Aí eu fiquei na rua, conheci um rapaz que não era na rua. Ele alugou um lugar no nome dele, mas ele não ia no barraco, vivia só eu. Até que a dona desconfiou que só era eu. Aí ela ficou com medo de eu estar fugindo de casa e me pediu o barracão. (...) Ia pra casa de um colega meu, ia pra casa de um colega do trabalho. Dormia por 2, 3 dias, aí a mãe começava a falar ‘Esse menino não pode ficar aqui em casa’. Na época, comentando com ele [um amigo para quem se queixava], a dona, que morava no bairro Goiânia, ouviu e disse ‘Se você tiver um dinheiro, eu vendo pra você uma área’. Que é aonde vive hoje a mãe da minha menina e minha menina, descendo pra Sabará, no bairro Alvorada, numas favelinha. Aí eu comprei essa área, montei um barraco de madeira e aí foi onde foi outra parte da minha vida até certa idade”.. (Trecho da entrevista realizada com Danilo em 29/04/14.) A partir desde momento no qual é proprietário de sua casa e começa a constituir sua própria família, a história de Danilo passa a ter a influência de um novo fator, que é o vício com o crack. Sua relação com o vício marca muitos momentos que se seguem 36

em sua vida, mas é possível perceber que, durante certo período, a perda de referências familiares não tinha se dado por completo. Isso se faz notar, por exemplo, no fato de ele ter se mudado voluntariamente para a casa da mãe em uma de suas primeiras tentativas de se livrar do consumo do crack. No entanto, o que se apresenta na trajetória deste entrevistado é que a convivência familiar, mesmo que aparente ser uma situação que possa oferecer recursos para superar dificuldades, se torna uma possibilidade insustentável individualmente. Quando Danilo sai do hospital para tratamento de dependência química (do qual recebe alta por não ter um estado de sofrimento mental agudo como o dos outros usuários), ele retorna para a casa da mãe, mas não consegue enquadrar, naquele ambiente, a possibilidade de seguir a sua vida. A partir desde momento, sua trajetória passa por tentativas de superar o vício e retornar a uma vida domiciliada por vias que não passam pelo suporte familiar. “Primeiro dia dentro de casa, eu assustei ‘o que eu vou fazer aqui dentro agora, qual vai ser minha reação? será que amanhã eu vou mexer em alguma coisa aqui?’ Aí eu voltei pra Belo Horizonte, voltei e também não procurei ninguém: não fui pra casa da minha menina, não fui pra casa da minha irmã. E fui pra rua de novo, só que na rua eu tava sossegado, ninguém tava me enchendo o saco, eu já tava saindo dos pontos que eu sabia que era perigoso eu voltar a usar drogas. Era aqui no centro. [incompreensível] Dormia aqui na rodoviária, dentro da rodoviária. Não podia dormir lá dentro, pegava uma passagem velha e ficava com ela na mão. Aí uma dia um rapaz me mandou ir para o abrigo São Paulo”. (Trecho da entrevista realizada com Danilo em 29/04/14.) O que este ponto da história de Danilo evidencia, e que também encontramos nas narrativas dos outros entrevistados, é que os processos de fragilização dos vínculos familiares se desenvolvem em contextos onde há conflitos e relações não-harmoniosas com parentes, no entanto, é preciso considera-los também em outra dimensão: aquela na qual os próprios sujeitos, “embora possam estar geograficamente localizados em seu 37

território de origem, estão social e afetivamente desterritorializados” (Mendes, 2007, p. 118) no ambiente familiar. No que tange este aspecto, o papel normalizador da família - com suas expectativas morais, de comportamento, de solidariedade e de reciprocidade sobre seus membros - teve um peso muito grande sobre a trajetória de desvinculação familiar dos entrevistados. Mendes (Idem) coloca como a vida em situação de rua se apresenta como um devir para sujeitos que são considerados como um “problema” por seus familiares, seja por questões morais, financeiras ou emocionais. Isso se faz evidente entre aqueles entrevistados cujo vício (o uso de crack ou o alcoolismo) desestabilizou as relações com a família – mas isso se faz notar não apenas entre eles. No relato de Bruno, as pressões da família aparecem em seu discurso na forma de julgamentos sobre a forma de vida que ele tinha empreendido até ali: um percurso itinerante e no qual o entrevistado não se engajara em um projeto de estabilidade, que buscasse um emprego assalariado fixo e a construção de uma família, como seria a expectativa de seus parentes sobre ele. “Eu deixei minha família, meu pai e minha mãe, aí eu fui rodar sozinho. Aí depois eu voltei pra lá (...) pra ver se eu conseguia morar com meu irmão e com minha cunhada. Aí eu fiquei dois dias lá e ela arrumou um problema comigo lá, aí não aceitou eu morar na casa dela. Aí eu falei com minha tia ‘ -Ela não quer aceitar eu lá, vou ficar com a senhora uns tempos aí. Aí quando eu tiver uma graninha, eu vou embora de novo’. Ela disse ‘- Você tem de arrumar um lugar pra você assinar sua carteira numa firma aí, se não você não vai conseguir aposentar, morre aí sem aposentar, sem nada. Meus filhos trabalham tudo ali pra baixo, vocês ficam perambulando pela rua, pra lá e pra lá, não arruma nada! Depois não reclama da vida não. Não consegue aposentar nem com nada’. Ela tava me dando conselho, né. (...). Eu falei ‘- Tá bom, tia, o dia que não der pra mim, eu saio daqui e vou rodar uma pouco. Já vim de Guarapari, Vila Velha, pra cá... andando isso tudo aí. (...) Aí um dia eu estava lá de sábado. Ela pediu para eu capinar o quintal todinho pra ela. (...) Aí chegou uma tia minha lá, ruim de jogo pra 38

caramba. Porque ela é metida a besta, tem apartamento. Ela falou: ‘- O que que ele tá fazendo aqui? Ele não para em lugar nenhum, não tem paradeiro. (...) Se eu fosse você, mandava ele embora daqui’. (...) Aí eu pensei, minha tia está dando opinião aqui. Antes de me mandarem embora, eu vou sair daqui. Aí por isso que eu falei [para o empregador do lugar onde ele trabalhava]: ‘- Vou ficar aqui uma semana na obra, mas depois eu vou sair, você acerta comigo. Chegou uma tia minha lá me perturbando só porque ela tem apartamento, tem as coisas na vida e eu não tenho nada. Ela quer ser melhor que a gente. Aí eu já estou sumindo daqui já. Vou ver uma cidade boa que eu vou tentar morar’"13. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) No caso de Evandro, as expectativas morais de sua família sobre si motivam sua saída de casa (em um período diferente dos outros entrevistados, quando já tinha por volta de 30 anos) e a entrada em uma situação de rua. Mesmo que sua narrativa não relate nenhum momento de conflito dentro do núcleo familiar, é a vergonha de ser descoberto como usuário de crack que motiva o seu afastamento. Nota-se, portanto, que as trajetórias de desvinculação familiar são muito variadas entre os entrevistados e acontecem em diferentes dinâmicas. Porém, para todos eles, o rompimento de tais vínculos é engendrado, em grande medida, com as expectativas familiares de que seus membros empreendam um projeto de vida que é considera “normal/ correto/ aceitável”, de acordo com cada contexto. A questão do trabalho é pouco mencionada, nas narrativas de história de vida, em momentos concomitantes à entrada em uma situação de rua. Dificuldades relacionadas a conseguir um emprego assalariado só são citadas quando os entrevistados falam do momento presente e de seus projetos de saída da situação de rua. Como não é nossa intenção apontar causalidades unilaterais, podemos apenas afirmar que, nas

13

Sublinhado nosso.

39

narrativas de vida, a falta de emprego contribui para a permanência do indivíduo em situação de rua e se transforma em um grande obstáculo quando, dela, se deseja sair14. “Quem é morador de rua, se não tiver o comprovante de residência, não consegue trabalho. A população de rua tem esse problema de não ter o comprovante de residência. A hora que a população em situação de rua passa mais sufoco é na hora de arrumar um trabalho. Pode ter todos os documentos, mas se não tiver o comprovante de residência, não consegue trabalho em lugar nenhum”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.)

3.2 Trajetórias individuais e percursos institucionais Outro aspecto que também se mostrou relevante, nas histórias de vida analisadas, diz respeito aos recursos utilizados no empreendimento das trajetórias individuais quando os referenciais familiares se tornam distantes e esta rede de solidariedade não se apresenta como algo possível de ser mobilizado. Tais recursos compreendem, principalmente, a rede de assistência social orientada para o atendimento de pessoas em situação de rua e instituições do setor não governamental (frequentemente, entidades de cunho religioso) que também atendem a este público. O trabalho de Oliveira (2012)15 revela como a rede de assistência tem um efeito duplo no contexto da população em situação de rua: ao mesmo tempo que as ações advindas desta rede tentam gerenciar, em alguma medida, a existência desta população nas cidades; as redes institucionais também são apropriadas pelos sujeitos e inseridas na racionalidade própria a partir da qual organizam suas vidas em situação de rua. Nesse 14

Todos os entrevistados são beneficiários do Programa Bolsa Família, recebendo mensalmente 72,00 reais. Além deste dinheiro, conseguem recursos monetários principalmente através “bicos”. Alguns vendem, eventualmente, objetos que encontram na rua e trocam vales de transporte social por dinheiro. Uma análise mais aprofundada sobre a circulação do dinheiro entre este segmento fica como uma sugestão para futuras pesquisas. 15 Embora o autor não tenha a intenção de generalizar seu argumento para além do contexto estudado,que foram as políticas de assistência à população em situação de rua no interior paulista no último quarto de século, a lógica da atuação governamental, relatada pelo autor, também foi identificada nas trajetórias dos sujeitos pesquisados e nas diferentes cidades pelas quais estes passaram.

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entrelaçamento, tem-se que as ações governamentais influenciam a conformação do fenômeno, mas não de modo unilateral. Se consideradas naquilo que representam para o cotidiano do indivíduo em situação de rua, nota-se como determinadas ações significam restrições e oportunidades, e são articuladas pelos sujeitos de modo relativamente autônomo. No contexto de sua pesquisa, este autor identifica que a política governamental em relação às pessoas em situação de rua, entre os anos 1980 e 2000, orientava-se pela chave do desemprego e da migração, de modo que as ações assistenciais estabeleceram os migrantes e trecheiros como perfis para os quais destinava sua atuação. Desse modo, o autor caracteriza as práticas assistenciais desenvolvidas a partir desta época como um dispositivo de circulação, que atuava por meio da distribuição de passagens viárias e a disponibilização de uma instituição de albergamento temporário, na qual era possível pernoitar por poucos dias seguidos. A operação deste tipo de dispositivo é largamente relatada nas trajetórias analisadas nesta pesquisa, como no caso de Carlos, que mobilizou muitas vezes essa estratégia assistencial no seu percurso itinerante. “Carlos: Eu era andarilho, andava muito. Caroline: O que te fazia andar naquela época? Carlos: Procurando... não tinha casa, não tinha mulher, não tinha filho, eu queria viajar. Como viajar? Sem dinheiro, sem nada... ia pra assistência social, pro albergue, ganhava passe. Ficava viajando de albergue em albergue, de cidade em cidade. Chegava na cidade ‘eu quero ir pra São Paul’. Chegava na cidade, pegava um passe com a assistência social. Ficava no albergue até certa altura, depois ia pra outra cidade, pegava outro passe, ia embora”. (Trecho da entrevista realizada com Carlos em 28/04/14.)

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No contexto estudado por Oliveira, a política assistencial de concessão de passagens tinha como objetivo expulsar o migrante/trecheiro16 da cidade, impedindo sua criação de relações com a mesma (Idem, p. 135). Dentro desta forma de compreensão do fenômeno, o migrante/trecheiro era entendido como uma pessoa “sem lugar no mundo” (Idem, p.87); de modo que, muitas vezes, a intenção da política pública era retornar o indivíduo para o seu local de origem, o que não deixa de ser articulado no cotidiano da pessoa em situação de rua que não deseja o retorno ao núcleo familiar. “Mente muito morador de rua: ‘Ah, você tem parente lá?’/ - Tenho’. Mas não tinha nada, nem parente nenhum. Uma mentirinha assim que faz parte do seu percurso, o que fazia viajar. Se falar que não tem parente, eles não te mandam”. (Trecho da entrevista realizada com Carlos em 28/04/14.) “Fiquei dois anos em Juiz de Fora, (...) aí peguei e parei em Além Paraíba, fiquei três dias, aí me deram a passagem...no Estado social...e eu vim pra cá, em Belo Horizonte. Caroline: E por que você acha que eles te deram a passagem para BH e não para a sua casa lá em Nova Iguaçu? Bruno: Eu falei que não tinha mais família, que meu pai e minha mãe já tinham falecido e que eu não queria voltar pra lá mais não. Aí a menina de Além Paraíba falou ‘- Então, você quer ir pra qual lugar? Nós damos uma pra Belo Horizonte, pra Manhuaçu, pra São Paulo e Taubaté’. Aí eu: ‘- Belo Horizonte. A cidade de São Paulo é muito grande e vai ser ruim pra mim’”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) Oliveira relata que, no contexto do serviço de assistência à população de rua em São Carlos-SP, uma mudança da forma de compreender as características do fenômeno alterou a forma de atuar junto a este segmento, a partir da primeira década do século XXI. Segundo ele, foi muito relevante a percepção de que muitas das pessoas que se encontravam em situação de rua estabeleciam relações com a cidade e de que o perfil

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“Pessoas que vivem pelas estradas, passando pelas cidades sem nelas se fixar” (MENDES, 2007, p.4).

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migrante/trecheiro não correspondia à realidade dos usuários do serviço, de modo que a forma de atendimento precisou ser reorientada. A figura do migrante foi substituída pela do morador de rua, o que significa uma nova forma de compreensão do fenômeno e que se diferencia da anterior por reconhecer, ao indivíduo em situação de rua, o “pertencimento a um lugar" (Idem, p. 135). A forma de assistência passa, então, a também se orientar a partir do que o autor denomina dispositivo de fixação, que visa “minimizar os efeitos perversos da vida na rua e possibilitar, para aqueles que desejassem sair dessa situação, um lugar de apoio para resolução das suas necessidades imediatas” (Idem). Os equipamentos sociais, através dos quais opera o dispositivo de fixação, compreendem Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro POP), Albergues e Abrigos sem restrição máxima de dias para pernoite seguido; Repúblicas (fazem parte do Serviço de Acolhimento Institucional, mas destinase ao acolhimento prolongado e o usuário que recebe a concessão deste benefício pode passar lá o dia); gratuidade em restaurantes populares. Como veremos mais adiante, os espaços institucionais que permitem a permanência na cidade marcam, em grande medida, os ritmos diários dos sujeitos pesquisados e são inseridos nas lógicas individuais que orientam sua ocupação da cidade. Por agora, salientamos como a existência desta rede institucional influencia a decisão dos entrevistados de permanecer na cidade. “Eu gosto de BH. Eu adoro, é como se fosse uma mãe. Porque lá em SP não tem esse negócio de comer de graça. Lá tem restaurante, do governo, igual aqui, mas lá não te dão a carteirinha pra comer de graça, lá é o contrário. E aqui é uma mãe. Aqui até foto de graça você tira. 43

Corta o cabelo de graça. Segunda-feira eu vou ali, na Praça Sete, tem uma igreja ali que 14h corta o cabelo de graça”. (Trecho da entrevista realizada com Ademar em 24/04/14) O conhecimento dos serviços institucionais é algo aprendido e compartilhado no dia-a-dia, a partir dos contatos com outras pessoas em situação de rua, seja nas rodas de conversa, nas doações, nas filas para serviços, nos albergues, durante as refeições no Restaurante Popular, etc. Neste aprendizado, vão se conformando estratégias e o jeito de cada um empreender sua vida nas ruas. “Eu já conhecia BH por nome. Muito colega meu, que eu conheci na pista, já tinha passado por aqui e me contaram ‘ BH é assim, assado. Lá é muito bom, as coisas são tudo fácil. Como pra você levantar, pra você cair também é muito fácil’. Eu já cheguei aqui sabendo de tudo: o que eu tinha que fazer pra comer, que tinha que fazer carteira do popular, as doações eu já sabia tudo... Só não sabia onde é, mas sabia os nomes”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) “Eu saí do albergue, porque dava muita gente, dava muita galera, muita bagunça. Aí eu comecei a olhar os moradores de rua; aí eu vi um prédio grandão, eu arrumei uns papelões, forrei o chão e dormi ali mesmo. (...) Aí eu arrumei um cantinho lá, passava doação e tudo. Falei: ‘- Ó, eu não sabia desse negócio de doação. ’. Perguntei para o moço: ‘O que é isso aí?’. Ele falou assim: ‘-Todo dia vem aqui. É pão com manteiga, café com leite, refrigerante, marmitex’. Aí eu pensei ‘- Vou passar aqui mesmo’. De manhã, todo mundo saía, pegava os carrinhos pra ir catar reciclagem para vender. Eu levantava e saía fora dali. (...) Aí levantou um moço lá que falou que veio de São Paulo. Falou: ‘- Vou te levar numa casa espírita, é os Pequeninos. Lá dá café da manhã de segunda à sexta. Lá corta cabelo, eles te dão um aparelho pra fazer barba. Lá tem médico, tem de tudo..’. Aí ele falou ‘- Pega o papelão, não deixa debaixo do prédio, não, que o pessoal acha ruim aí’”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) Entre os entrevistados, a Pastoral do Povo da Rua também compreende um espaço onde esse aprendizado se realiza, principalmente por se tratar de um local onde os sujeitos são informados sobre os caminhos institucionais através dos quais podem se engajar para sair da situação de rua. “Aí conheci a comunidade [Comunidade amigos da Rua, projeto desenvolvido pela Pastoral]e comecei a participar. (...) Conheci através de um membro daqui, que morou comigo na Toca de Assis e falou que a 44

Pastoral era muito boa. (...) Eu não conhecia direito o que tinha pra morador de rua, não sabia de nada e aqui na Pastoral eu vim conhecer, tanto que me encaminharam para a República. Pra mim, conhecer a Pastoral mudou minha vida, porque eu quis mudança, procurei e achei”. (Trecho da entrevista realizada com Carlos em 28/04/14.) Dentre os serviços da rede de assistência, as instituições que oferecem pernoite – em BH conhecidas como abrigo ou albergue – tem uma característica ambígua, pois podem atuar tanto como um dispositivo de fixação, quanto de circulação. Por um lado, isso depende da própria orientação de gestão do equipamento: se o pernoite continuado é permitido durante um longo período ou apenas algumas noites17. Por outro, vemos como os próprios entrevistados utilizaram estes serviços de diferentes formas ao longo de suas trajetórias. Para alguns, o serviço de albergamento representou a primeira fase de sua trajetória em situação de rua, como no caso de Bruno, que viveu por mais de um ano em um albergue, em Juiz de Fora/MG, antes de dormir na rua pela primeira vez. É possível entrever em seu relato como as políticas em torno da migração ainda se entrelaçam no atendimento ao indivíduo em situação de rua, mesmo no período recente. “Aí eu peguei e fui pro albergue lá. Perdi o documento, fez encaminhamento pro meu lá. Aí o moço falou -'Você vai ficar aqui dois meses. Quem arruma alguma coisa, continua morando aqui. Quem arruma serviço aqui pode ficar morando aqui. Aqui você vai ter de ir lá no vereador, arrumar uma casa com o vereador, pra você ser imigrante. Como imigrante você vai morar aqui... o tempo que você puder você vai ficar aqui com a gente". (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) A busca por uma casa de passagem ou albergue público também mostrou ser uma estratégia utilizada para toda vez que chegassem a uma nova cidade, seja com perspectiva de nela permanecerem ou dentro de um circuito itinerante. Em outras 17

No dia 30/05/14, o Ministério Público de Minas Gerais realizou uma Audiência Pública em defesa dos da população em situação de rua. Em uma das falas, um senhor que vive em situação de rua há 4 anos em Belo Horizonte relatou que não estava conseguindo acessar um equipamento público de albergamento, pois as vagas para pernoite só estariam liberadas para quem nasceu em BH. Isso expressa a ambigüidade deste equipamento, ao mesmo tempo em que oferece possibilidades de permanência para quem nasceu na cidade, recusa o serviço mesmo para quem já vive aqui há muito tempo, sem oferecer, no entanto, outra opção de pernoite.

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situações, dormir no albergue por um período prolongado se deu em um momento de recomeço, quando decidiram tentar interromper determinado vício e precisavam, para isso, evitar as ruas. Atualmente, no entanto, todos os entrevistados têm aversão ao serviço de albergamento e a maioria prefere dormir na rua. As razões apresentadas são muitas, como as restrições de horário (pois não é permitido ficar no prédio após o amanhecer e o retorno só acontece no fim da tarde), brigas entre usuários, falta de privacidade, sujeira, risco de furto, mal tratamento por parte de funcionários e seguranças, disciplinamento, etc.. “De manhã, você tem que sair mesmo, estando chovendo ou tempo bom... tem que arrumar seu jeito. Foi isso que me matava de raiva ficar no abrigo. Pensa, num domingo chuvoso de manhã, de madrugada! Aquilo ali foi me dando uma revolta tão grande no coração que eu falei assim ‘agora eu vou virar maloqueiro mesmo, de carteirinha. Vou pra rua e saio da rua’. (...) No abrigo, você passa muita humilhação. (...) Muita gente te trata com descaso. Aí, se você quer uma roupa, tem que passar por humilhação. Você vai entrar, tem de enfrentar aquela fila maior que a do SUS. Você vai jantar, mesma coisa; você vai tomar banho, mesma coisa. Então, tem que ter uma paciência danada. E fora as nojeiradas que tem... porque nem todo mundo é limpinho no abrigo. (...) Uma vez eu tava no Barro Preto, dormindo na Igreja, e chegou o pessoal da abordagem. Fez de tudo pra eu voltar pro abrigo. Eu falei: ‘Gente, se vocês me pagarem uma mensalidade pra eu ir pro abrigo eu não vou, imagina pedindo de graça?’”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) A decisão de não utilizar os equipamentos de pernoite é relevante, principalmente, porque todos os entrevistados passam por uma tentativa de sair da situação de rua, mas este tipo de serviço não se apresenta, atualmente, como um recurso que possa lhes ajudar em seu objetivo. Isso não significa que o equipamento não possa auxiliar indivíduos neste tipo de projeto; entre os entrevistados, Danilo conseguiu, em dois momentos de sua vida, reorganizar sua vida em direção a uma saída da situação de rua após períodos longos de albergamento: em um deles, recebeu um encaminhamento 46

para uma instituição de abrigo permanente – República; em outro, conseguiu um emprego a partir de suas relações com os funcionários do equipamento. No entanto, as trajetórias apontam que a vida em situação de rua apresenta uma dinâmica muito variável e instável, na qual os arranjos de vida estão sempre suscetíveis a dissolverem e se reorganizarem, numa conjuntura na qual vários fatores se entrelaçam: como as relações familiares, as oportunidades de trabalho, a situação habitacional, os vícios e as tentativas de deles se livrarem, a relação com serviços de assistência e a própria satisfação dos sujeitos com o momento que estão passando. Essa dinâmica pode ser melhor visualizada com as figuras, a seguir, que buscam sintetizar as trajetórias de vida, revelar momentos de continuidade e momentos de crise, rupturas. Os pontos negros [ ] indicam os eventos que os entrevistados apontaram como significativos em suas narrativas. Os períodos nos quais viveram de modo domiciliado e relativamente estável são representados por retângulos com contornos claros [

]; ao passo que os períodos em situação de rua são demonstrados por formas

com cantos arredondados e contorno escuro [

]. As linhas não seguem uma mesma

escala, de modo que utilizamos a idade dos entrevistados como referencial para a localização dos eventos em sua história de vida. Figura 2: Linha do tempo com trajetória de vida de Ademar Ademar, 44 anos, nasceu em São Paulo/SP. Transita apenas de São Paulo para Belo Horizonte. Os rompimentos com a família são eventos significativos e a experiência em

Belo Horizonte/MG São Paulo/SP

São Paulo/SP

Casa da família

FEBEM

...

Vida domiciliada com esposa e Situação de rua: 47 filhos não frequenta mais Namorada Divórcio o albergue, hoje engravida, passam dorme em uma Sai da FEBEM, deixa a morar juntos praça emprego e escola e passa a viver nas ruas 13 anos

18 anos

23 anos

38 anos

44 anos

situação de rua apresenta-se em dois momentos, intercalados por um período domiciliado e relativamente estável.

Figura 3: Linha do tempo com trajetória de vida de Bruno

Bruno, 46 anos, nasceu em Nova Iguaçu/RJ. As cidades por onde passou compreendem eventos significativos em sua trajetória. Empreendeu um percurso itinerante da juventude à vida adulta. No entanto, apenas os últimos dez anos são identificados como vivendo em situação de rua, em sua narrativa.

Juiz de Fora/MG Domingos Além Belo Horizonte/MG Guarapari/ES Martins/ES Paraíba/ Vitória/ES Vila Velha/ES MG Nova Iguaçu/RJ Nova Iguaçu/RJ

...

Casa da família

Retorno à família Percurso itinerante em busca de empregos 17 anos

Casa do irmão e casa da tia

31 anos

Longo tempo vivendo em albergue até dormir pela 1ª vez na rua. Inicia trajetória de rua que se estende até hoje 37 anos 46 anos

Figura 4 Linha do tempo com trajetória de vida de Carlos Carlos, 51 anos, nasceu em São Pedro do Suaçuí/MG. A itinerância por diversas cidades se desenvolveudurante maior parte de sua trajetória (na figura abaixo, os pontos é um indicar indireto destes percursos, não representando o número exato de cidades pelas quais passou). O rompimento com a família e a permanência em Belo Horizonte/MG (e as tentativas de tratar o alcoolismo que empreendeu nesta cidade) são eventos marcantes

...

Uberaba/MG Belo Horizonte/MG São Pedro do Suaçuí/MG

Belo Horizonte/MG Passa por várias cidades nos estados de SP, MG, ES, GO, DF

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Casa dos avós Casa do pai, brigas com madrasta

Casa da irmã, conflitos por alcoolismo 19 anos

Percurso itinerante em situação de rua

Intercala dormir nas calçadas ou albergue. Recorre à Toca de Assis quando quer tratar alcoolismo. 41 anos

Passa a viver na República

51 anos

em sua trajetória. Figura 5: Linha do tempo com trajetória de vida de Danilo Danilo, 19 anos, nasceu em Belo Horizonte/MG. Em contraposição à trajetória de Carlos, não são as mudanças de cidade que marcam momentos de instabilidade, mas, em seu caso, conflitos com a família e dificuldades relacionadas ao consumo de crack. Vitória/ES Belo Horizonte/MG

Belo Horizonte/MG

Piumhi/MG Passos/MG

Belo Horizonte/MG

... Casamento, filhos, e Casa da mãe Curto começo do uso de para tratar Albergue Volta pra Retorno à escola, Vive República período nas crack vício rua e pro tenta interromper Chegada do ruas, até nas ruas vício vício. padrasto e retorno Emprego, conseguir Jogou a mochila no dos irmãos onde dorme Albergue Rio das Velhas e uma casa Clínica de passou por uma Deixa a casa tratamento Abandona o barracão onde período de amnésia da família vivia e vai pra rua de novo Mora sozinho com a mãe

15 anos

27 anos

35 anos

49 anos

Figura 6: Linha do tempo com trajetória de vida de Evandro Evandro, 35 anos, é o entrevistado cuja trajetória em situação de rua é mais recente. Sua mobilidade por diversas cidades e, mesmo, em outro país, não são associadas com uma trajetória em situação de rua.

24 anos

...

Vitória/ES

Casa da família de criação Muda à convite de um amigo, que lhe arranjara trabalho como cozinheiro.

33 anos

Bom Jesus do Vitória/ES Colatina/ES Norte/ES Santarém (Portugal) Manhuaçu/MG Petrópolis/RJ Belo Horizonte/ MG

Casa dos pais. Casa da Pega carona pra Brasília, Mora com irmãos Noivado irmã. frustrado e trabalh sem para em BH. Ficou 4 meses visto dormindo no albergue, Muda com a família agora dorme na rua. pro interior. Após um namoro frustrado com 1ª vez na rua. uma garota mais Trabalha na safra nova, começa a usar de café 49 crack

Os entrevistados diferem muito quanto ao tempo em que vivem em situação de rua e, para nem todos, esta situação é algo continuado, mas que se intercala com períodos domiciliados. E no que tange o aspecto do tempo da rua, não foi possível identificar, entre os pesquisados, a inserção na situação de rua como algo que acontece em estágios gradativos. Há, certamente, um processo de familiarização com as estratégias que podem ser utilizadas para se viver em situação de rua, mas mesmo este processo não é uniforme entre eles. Neste ponto, a diferenciação que Vieira, Bezerra e Rosa (1994) realizam sobre os três diferentes estágios de “inserção no mundo da rua” não encontrou muita correspondência com a história dos entrevistados. Tais estágios são distintos da seguinte forma pelas autoras: ficar na rua, como uma utilização do espaço público de forma circunstancial e em consequência de uma circunstância de precariedade de vida (por exemplo, pessoas que vão para uma cidade e não têm lugar para se abrigar, utilizando-se de vias públicas, rodoviárias ou albergues); estar na rua, representaria a experiência ainda recente de envolvimento com a vida nas ruas, quando a pessoa já está mais familiarizada com as dinâmicas e estratégias de sobrevivência, sobretudo, com as formas de obter alguns pequenos trabalhos; e, por fim, ser da rua, viver na rua permanentemente (Idem, p. 94). O que as histórias de vida apresentam é que a situação de rua não se desenvolve de modo linear, mas pode apresentar muitas variações ao longo da trajetória de um indivíduo. Não foi, portanto, possível afirmar que há uma orientação gradativa nas trajetórias em situação de rua rumo a um "ponto limite" da experiência de vida nas ruas. Portanto, dentro de nossa amostra, a rua não se apresenta como uma condição permanente, mas uma situação suscetível a se transformar. 50

4. Espacialidades próprias e ritmos diários O entendimento de que o cotidiano dos indivíduos que em situação de rua permeia-se por uma vivência temporal e espacial singular da cidade é tema que tem interessado a produção acadêmica mais recente (Pimentel, 2005; Kasper, 2006; Mendes, 2007; Frangella, 2010; Robaína, 2011). Um primeiro ponto a ser considerado, a partir destas leituras, é o de que as pessoas em situação de rua “articulam um meio de vida divergente dos padrões normativos da cidade” (Frangella, 2010, p. 40). Os padrões normativos, hegemônicos na sociedade atual, seriam caracterizados por prescreverem um modo de vida sedentário e predominantemente organizado em torno das instituições casa, família e trabalho. Tal organização reflete-se no espaço urbano criando “divisões que delimitam possibilidades de ação” (Mendes, 2007, p. 118): “... a casa é o local da habitação, a rua é o local destinado ao trânsito, bairros e quarteirões delimitam relações de vizinhança ou o tipo de produção, comércio ou serviços que se apresentam etc. A existência dessa estriagem define assim a distinção entre os espaços de permanência, os espaços onde se dão os contatos entre os diferentes espaços e as vias de trânsito que dividem e comunicam esses espaços". (Idem) Nesse meio social e espacialmente “esquadrinhado” (Idem), os agenciamentos empreendidos pela população de rua ressignificam os espaços da cidade, transgredindo suas diferenciações funcionais ao atribuir-lhes novos usos e sentidos: a privacidade é trazida para o espaço público, espaços ociosos são ocupados, e mesmo novas possibilidades do habitar são experimentadas. A criação de territórios não se dá, no entanto, de modo aleatório; mas, como coloca Robaína (2011), orienta-se por uma “multidimensionalidade territorial que funciona como recurso estratégico de abrigo-

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moradia, na obtenção de bens materiais e, ao mesmo tempo, como proteção e elo afetivo no que se refere à própria existência” (p. 152). Um dos aspectos mais ressaltados, por esta vertente da literatura, é o de que a experiência urbana de quem habita a rua caracteriza-se por uma dinâmica nômade, uma intensa mobilidade que se inscreve nas diferentes formas, a partir das quais, a população de rua ocupa os espaços urbanos da cidade. O trabalho de Frangella (2005; 2010) tem grande ressonância na literatura por apresentar como a circulação pela cidade é influenciada pressões externas (que partem tanto do poder governamental, quanto da sociedade em geral) e que visam controlar a presença desses sujeitos no espaço. As tentativas de contenção territorial da população de rua empreendem-se, correntemente, por meio de tecnologias de expulsão (Frangella, 2010), que têm por objetivo impor restrições físicas e simbólicas à permanência destes indivíduos em espaços públicos: seja por ações de fiscalização que apreendam pertences (muitas vezes com a justificativa de que os objetos impedem a circulação em vias públicas); ou por meio de tipo de dispositivo que Frangella (Idem) denomina “arquitetura antimendigo” (como a construção de rampas embaixo de viadutos, a instalação de grades que cerrem espaços vazios ou impossibilitem sentar-se em um parapeito, bancos com separações por assentos que impendem que uma pessoa se deite sobre eles, etc.). O que esta mesma autora aponta é que a lógica de contenção espacial acaba por promover um círculo vicioso e incessante de desocupação e reocupação; de tentativas que tentar desalojar “corpos desabrigados” (Frangella, 2005) e impedir sua fixação no espaço público, ao que a população de rua resiste, procurando outros espaços ou reocupando o lugar anterior após um tempo. Desta maneira, promovendo a circulação 52

para impedir a permanência, ações de contenção espacial engendram-se na lógica itinerante que marca muitos dos percursos dos indivíduos em situação de rua pela cidade. Em nossa pesquisa, exploramos a dimensão da mobilidade, buscando entender em que medida os sujeitos empreendem uma dinâmica de circulação pela cidade e quais fatores orientam seus percursos diários. Além de enfocar o aspecto espacial desta configuração, buscamos também compreender as dinâmicas temporais que estruturam a rotina dos indivíduos pesquisados, de que modo a vida diária empreende-se em diferentes ritmos, que articulam espacialidades, atividades e temporalidades. O emprego da noção de ritmo foi, aqui, inspirada pelo trabalho de Lefevbre (2004), para quem ritmo constitui um elemento importante para a análise da vida cotidiana. Para este autor, “everywhere where there is interaction between a place, a time and an expenditure of energy, there is rhythm” (Idem, p. 15). A intenção não foi a de empreender, no presente trabalho, o emprego da “rhythmanalysis” como um método estrito, de modo que nos aliamos à forma como Highmore (2005) compreende o trabalho de Lefebvre: “rhythmanalysis is an attitude, an orientation, a proclivity: it is not `analytic' in any positivistic or scientific sense of the term. It falls on the side of impressionism and description, rather than systematic data collecting” (Highmore, 2005, p. 150 apud Middleton, 2009, p. 1956). Para Lefebvre, o cotidiano organiza-se em torno de uma temporalidade socialmente produzida e que, nas sociedades contemporâneas, é preponderantemente organizada em torno do trabalho, de modo que outras dimensões da vida cotidiana ficam subordinadas a esta: como as horas de sono e descanso, as refeições, os horários de lazer, etc. O autor também aponta que os ritmos cotidianos são atravessados por duas 53

dinâmicas: uma cíclica, que é marcada, por exemplo, pelo dia e a noite, as semanas, as estações, que marca o recomeço das atividades e impulsionam sua repetição; e, também, uma dinâmica linear, que acompanha o tempo do relógio e se apresenta mais como uma seqüência. Nosso interesse, portanto, é compreender de que forma se organizam os ritmos diários dos indivíduos em situação de rua, aliando esta perspectiva àquela de que a vida em situação de rua produz uma espacialidade própria, diferente dos padrões normativos da sociedade atual. 3.1 Ritmos noturnos e dinâmicas em torno do local de dormir Kasper (2006) define como preconceito ecocêntrico o pressuposto de que o habitar possa se desenvolver apenas sob o espaço e uso da casa. Em sua pesquisa com instalações em espaços públicos habitados por pessoas em situação de rua, o autor define o habitar como um processo que envolve várias dimensões – ou “verbos”, nas palavras do autor (p. 25), e que apresentamos sinteticamente: - Apropriar-se: vai além da noção de propriedade, mas de colocar sua marca em um determinado espaço, “fazer dele sua obra” (noção que retira de Lefebvre) e torná-lo “apropriado”, realizar um “rito de purificação”. - Instalar-se: adequar o espaço às práticas cotidianas, dispor os objetos necessários e dentro limites que o espaço oferece. - Incorporar: entendimento do habitar como centrado no corpo, nas técnicas corporais desenvolvidas no cultivo de hábitos nesse espaço apropriado. Entre os sujeitos entrevistados, 4 deles dormiam em espaços públicos: Evandro e Danilo dormem sob a marquise de um prédio comercial; Bruno sob a marquise de um 54

prédio residencial, mas próximo a uma loja que há no térreo, e Ademar, em um pracinha. Nenhum deles disse dispor de uma instalação de materiais relativamente fixa para construir seu abrigo, como foi a maioria dos casos estudados por Kasper. No entanto, nas entrevistas e em conversas com os sujeitos pesquisados, nota-se que o habitar nos espaços apropriados se refaz todos os dias e como hábitos são criados. “Onde a gente for dormir, nós varremos primeiro, tudo certinho. Tem o papelão, tem o negócio que bota por baixo, tem o colchão, tem o lençol, uma série de coisas... minha caminha fica arrumada, melhor que em um acampamento, só falta a barraca. Quem passa e vê a gente dormindo fica olhando, vê os trem tudo certinho. Porque os caras dormem de qualquer jeito, dorme no papelão, não quer saber de nada... a gente dorme, assim, tudo tranquilinho”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) “Ademar: É uma pracinha, meia grandinha, mas cheia de plantas, flores, árvore. Aí eu me encaixo no meio das árvores e das plantas; eu vejo a pessoa e a pessoa não me vê. Se a pessoa parar e esticar o pescoço dentro da plantação, eles me vêem. Caroline: E quais objetos que você usa para dormir? Ademar: Eu tenho papelão e cobertor. O cobertor fica lá guardado. Caroline: Mas como que você guarda na praça? Ademar: Não, mas eu tenho um matinho lá, a única pessoa que sabe que eu guardo as coisas lá é jardineiro. Ele já me viu lá”. (Trecho da entrevista realizada com Ademar em 24/04/14) “Bruno: Eu tenho um papelão, eu levo umas caixas de papelão, forro no chão. Aí eu pego minha bolsa, faço um travesseiro e boto o papelão. Não gosto de coberta. Caroline: E quando está frio? Bruno: Lá em Juiz de Fora eu não gostava de por coberta, não. Eu fico assim mesmo. Nunca fiquei doente. Só tive problema de coluna. Nunca peguei pneumonia dormindo na rua”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) A identificação de espaços passíveis de serem apropriados por aqueles que habitam a rua é tema ao qual se debruça uma pequena parte da literatura especializada. Frangella (2010) os identifica como “espaços esvaziados de sociabilidades urbanas” (p. 15). Kasper (2006) distingue os espaços públicos em dois tipos: espaços residuais ou intersticiais (vãos de viaduto e “ilhas” – espaços “vazios” que resultam de obras 55

urbanísticas, como triângulos de grama ou concreto que separam duas grandes vias) e espaços propriamente públicos (destinados à circulação e lazer, como calçadas, praças e faixas de grama). Já em Snow & Anderson (1993) a distinção entre os espaços públicos orienta-se pela importância que têm para os indivíduos domiciliados: espaços primários são aqueles utilizados rotineiramente (para circulação, usos comerciais, residenciais e recreativos) ou que, mesmo pouco utilizados, têm um valor simbólico; ao passo que espaços marginais são aqueles pouco utilizados e pouco valorizados pela população em geral. Os espaços habitados pelos sujeitos entrevistados como abrigo noturno – praça e calçadas – são espaços públicos que só se tornam apropriáveis durante a noite, quando o movimento de pedestres é menos intenso e não há tanta atividade comercial nos locais. As diferenciações temporais da dinâmica urbana – o período noturno de esvaziamento das ruas e retorno dos trabalhadores aos seus lares; a vida diurna de circulação pelas ruas e o “horário comercial” – não apenas cria territórios apropriáveis, mas também se engendra na criação de rotinas pelos entrevistados. Um ponto significativo é que nenhum deles disse permanecer no local onde dormem depois que acordam. Para aqueles que dormem em espaços públicos, os ritmos da sociedade domiciliada entrelaça-se com o seu cotidiano, de modo que o dia e a noite marcam os períodos que definem se sua permanência no local é possível/aceita ou se é considerada imprópria. Visualiza-se, portanto, que a mobilidade dos entrevistados é impulsionada diariamente neste arranjo, sendo semelhante ao dispositivo de circulação diária empreendido por certos equipamentos sociais, como é o caso dos albergues/abrigos e casas de passagem que, geralmente, que permitem a entrada dos usuários às 18h e exige 56

a saída da instituição às 6h, impulsionando um contingente de indivíduos de volta para as ruas. No entanto, foi interessante notar que mesmo Carlos, o único entre eles que dormia mais frequentemente em um espaço domiciliado, essa lógica se repete no cotidiano. Tanto quando ficava na comunidade religiosa (onde dormia até o dia da entrevista), quanto na República (instituição onde passou a viver após esse dia), o entrevistado mantinha a lógica de sair cedo de manhã e só retornar no fim da tarde. No primeiro local, talvez porque não era um membro assistido pela instituição, mas um agregado, para quem fora permitido passar as noites no local pelo caseiro da instituição. Já no que tange seu cotidiano na República, Carlos me disse que não passava o dia lá, porque não queria que os responsáveis pelo local pensassem que ele passava o dia à-toa, mas que estava procurando trabalho. A vida nesta última instituição se dá através de regras, que requerem um comportamento disciplinado. Embora possam passar o dia lá dentro e disponham de quartos compartilhados com poucas pessoas e armários para trancar os pertences – além de refeições; há um horário limite para entrada, não é permitido entrar alcoolizado e deve-se participar de reuniões e tarefas de limpeza do espaço. Cerca de 10 dias após a entrada na instituição, Carlos foi tomar uma cerveja com outros dos entrevistados e disse ter passado mal, pois havia muito tempo que não bebia e seu corpo não reagiu bem. Isso acabou se desdobrando em sua impossibilidade de entrar na instituição aquela noite, de modo que ele acabou dormindo no antigo local onde dormia por dois dias18. Para aqueles que dormem em espaços públicos, as rotinas e ocupação de espaço são influenciadas pelas relações que os entrevistados desenvolvem com outros atores 18

Conversa com Carlos no dia 12/5/14, na Pastoral de Rua.

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locais. Como o trecho anterior da entrevista de Ademar já aponta, a presença no espaço onde dormem é negociada (mesmo que tacitamente, como é o seu caso) com os proprietários e responsáveis pelos espaços no quais escolheram se instalar e, também, com a vizinhança do local. “... só converso com os porteiros [do prédio onde dormem na calçada]. Com os porteiros tenho amizade e com os frentistas do posto de gasolina também. De noite eles dão um cafezinho, uma água, eu lavo o rosto lá. De manhã cedo eu vou lá, lavo o rosto, ligo a mangueira e eles falam ‘- Pode lavar à vontade aí. Você é gente boa. Tem que sair da rua, esse negócio de rua é complicado’”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14). Uma dimensão que se desdobra na negociação da ocupação do espaço com atores externos é que são estabelecidas certas regras entre eles: como os horários de permanência no local, a manutenção do espaço e controle da sujeira. A posição dos entrevistados neste contexto é ambígua: embora não sejam os proprietários do espaço e não tenham prerrogativa para expulsar ninguém que apareça para dormir também no local; sua permanência é arriscada pelo comportamento que este novo indivíduo possa ter ali, se este não observar as regras estabelecidas. Trata-se, portanto, de territórios que os indivíduos em situação de rua “‘dominam’ e conhecem, mas não possuem” (Magni, 1994, p. 178 apud Frangella, 2010, p. 39), o que torna a fixação em um local algo sempre suscetível a se desfazer. No período em que entrevistei Danilo e Evandro, outros moradores de rua começaram a aparecer na calçada, em frente à uma loja, onde dormiam e utilizavam a torneira lá disponível de modo “desordenado” em relação às regras estabelecidas e deixavam o local sujo. A proprietária da loja, então, cortou a disponibilidade de água durante a noite e isso fez com que eles passagem a dormir na calçada em frente, a fim de mostrar para ela que eles não eram os responsáveis pela “bagunça”. Um trecho da

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entrevista de Bruno também demonstra como as relações com indivíduos internos à população de rua acontecem nessas situações: “Caroline: Se chegar alguém no lugar onde você fica, ele tem de pedir pra dormir ali ou ele chega lá e dorme e ninguém quer saber da vida do outro? Bruno: Às vezes, já chega e dorme. Aí, quando nós levantamos, pedimos pra ele sair também. Eu e os colegas meus pedimos: ‘Tem que levantar agora, porque aqui os porteiros falaram que não pode ficar até certa hora... Porque se fizer qualquer bagunça, ou sujar, ou deixar qualquer papelão ou marmitex, aí também não vai poder dormir mais nesse lugar. Pra não atrapalhar a gente, você tem que sair junto com a gente’”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) As relações com as outras pessoas em situação de rua influenciam a escolha do lugar de dormir. Todos os entrevistados disseram evitar os locais centrais da cidade, principalmente por se tratar de uma região na qual dormir é tornar-se vulnerável. “Bruno: Eu não gosto de dormir entre um montão de gente, porque dá muito problema. Uns roubam coisas da gente, roubam documentos, os pertences, eu não gosto de ficar perto de ninguém, não. Se eu chegar e tiver mais de 6, 7 pessoas eu não durmo. Eu vou caçar um lugar que não tenha ninguém. Caroline: Por que saiu dos lugares anteriores? Bruno: Porque começou a juntar muita gente. Eu não gosto, gosto de ficar num lugar sozinho. Começa a juntar muita gente dá briga, dá bagunça, vários palavrões, eu não gosto. Discussão debaixo da marquise não é bom”. (Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) “Ademar: O problema daqui [da região central] é que se você dorme no meio de pessoas que bebem... vamos supor que eu dormir bêbado, aí amanhã eu tô sem documento, tô sem calça, tô sem sapato. Os ladrões aqui estão tão práticos hoje em dia que eles estão roubando cueca sem mexer com as calças. Caroline: Mas tem gente que fica sempre aqui no centro, né, eu já vi até casal de senhores dormindo lá debaixo do viaduto... Ademar: Tem, mas não é sozinho. Geralmente é um, dois, três, é cheio de gente. Cheio de bandos. Se mexer com um, vai mexer com todos”. (Trecho da entrevista realizada com Ademar em 24/04/14)

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Tem-se, portanto, que a vida em situação de rua, mesmo quando empreendida dentro de uma instituição, deve-se acomodar a uma geografia móvel, pois, como coloca Kasper (2006, p. 84), por mais “estabelecido” que o indivíduo esteja – num espaço ou numa instituição, como é o caso de Carlos – sua presença “é sempre revogável”. Outro aspecto que as entrevistas elucidam é que, como aponta Frangella (2010) os sujeitos em situação de rua estão “em constante relação com os códigos sociais que os excluem” (p. 39) e isso se tornou visível na forma como os entrevistados negociam sua presença no espaço, de modo que suas rotinas refletem dinâmicas da sociedade domiciliada. Esta autora, que enfoca principalmente o caráter nômade no cotidiano de sujeitos em situação de rua, traz a idéia de circuito para tratar dos trajetos que tais indivíduos realizam na cidade. Segundo ela, os circuitos diferenciam-se entre a população de rua: alguns abrangem áreas amplas, como no caso dos que catam reciclagem, outros se restringem à vizinhança do local onde dormem, muitas vezes não extrapolando o limite de um bairro. Os circuitos também se diferenciam pela forma como se organizam: alguns têm a forma de deriva, outros se articulam em trajetos que se repetem diariamente. No caso dos entrevistados, o circuito tem o local de dormir como um ponto fixo de saída e chegada. As atividades que realizam no decorrer de seus circuitos são, então, trabalhadas no tópico a seguir. 4.2 Ritmos diurnos e circulação pela cidade Habitar pode ser compreendido como uma espacialização de hábitos (Kasper, 2006) e que tem no modelo da casa a centralização, em um mesmo espaço, de muitas atividades essenciais: como sono, alimentação, higiene, descanso, privacidade, etc. Em contraste, o habitar em situação de rua se desenvolve em espaços diversos e difusos da cidade. Entre os entrevistados, esta dimensão se visualiza, primeiro, no fato de que 60

nenhum deles passa o dia no local onde dorme e as atividades que lá realizam são poucas - apenas dormir, e eventualmente escovar os dentes e lavar o rosto quando há um recurso de água disponível. A rotina diurna empreende-se, por sua vez, na realização de um percurso por pontos onde os sujeitos podem realizar a atividades “domésticas”; e porque, em seu diaa-dia, estas atividades são realizadas em instituições, o horário de funcionamento destas demarca a dinâmica das rotinas diárias. Isto é principalmente explícito no que tange as refeições, que são majoritariamente realizadas no Restaurante Popular, onde todos são beneficiados com a gratuidade do serviço. Os horários de funcionamento deste equipamento social delimitam os ritmos diários nos quais esta atividade é empreendida, pois não se pode comer em qualquer horário. Há limite de horário para o café-da-manhã, para o almoço e para o jantar, de modo o percurso deles pela cidade retorna, geralmente, três vezes ao dia para este lugar, que fica próximo à Rodoviária de Belo Horizonte. Lefebvre (2004) aponta que na constituição dos ritmos do cotidiano, o tempo socialmente produzido não deixa de se articular com os nossos próprios ritmos biológicos. No universo pesquisado, suprir as necessidades de alimentação implica articular os ritmos biológicos com a rotina de funcionamento dos equipamentos sociais que utilizam. Em uma conversa com Evandro, ele me fez perceber que isso nem sempre se realiza, pois a sopa, servida até às 19h horas, muitas vezes “não segura a fome” durante toda a madrugada. A satisfação de necessidades fisiológicas também implica um disciplinamento do corpo na articulação entre ritmos biológicos e institucionais, e o mesmo Evandro me disse que a vida em situação de rua lhe demanda a criação de

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hábitos em relação a isso, de modo que ele se acostume utilizar o banheiro nos horários em que geralmente está em uma instituição – o Restaurante Popular ou a Pastoral19. Em nossa amostra, as rotinas descritas apresentaram-se em três diferentes dinâmicas: uma onde há muita variabilidade dos locais e percursos realizados durante a semana; uma que compreende uma sequência que se repete dia-a-dia; e outra, que foi apresentada entre três dos entrevistados, onde as refeições marcam ciclos dentro de um mesmo dia e dentro dos quais há pouca previsibilidade sobre as atividades a se realizarem. Assim, Bruno foi o único cuja rotina semanal tem maior variabilidade. Este entrevistado também organiza sua rotina em torno dos horários de refeição, mas articulando várias opções além do refeitório público. Ele freqüenta pontos de doação de comida em espaços públicos e instituições religiosas - como casas espíritas, onde, além da refeição e doação de roupas, os assistidos são convidados a participar de reuniões e palestras, que se desenvolvem por toda a manhã. Na tabela seguinte, apresentamos o modo como o entrevistado descreveu sua rotina semanal e apresentamos os locais de acordo com as denominações que ele utiliza (e pelas quais as instituições são conhecidas entre a população em situação de rua). Figura 7: Tabela com rotina semanal de Bruno Segunda-feira

Terça-feira

Quarta-feira

Quinta-feira

Sexta-feira

Restaurante Restaurante Popular Popular Casa espírita Casa espírita Casa Espírita (Centro) (Centro) "Bernadete" "Berenice" "Japonês" (B. Santa (B. Santa (B. Santo D. Isabel Restaurante Efigênia) Tereza) Antônio) Igreja Padre Popular Almoço Eustáquio (B. (Centro) Padrede Ponto de doação Ponto de Ponto Ponto de Ponto de próximo ao doação na área doação na doação doação na Jantar albergue Tia do Hospital Praça Sete próximo à Praça Sete 19 Branca (Bairro João XIII (B. (Centro) Igreja S. José (Centro) A criação de hábitos em relação a este aspecto se torna mais complexa diante do fato de que não Café-damanhã

existem banheiros públicos na cidade de Belo Horizonte/MG.

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Além disso, Bruno foi o entrevistado que mais relatou utilizar pontos de descanso e lazer na cidade, como o Parque Municipal (onde gosta de alimentar os animais com pães e salgados que recolhe nas lanchonetes do centro), a Praça Floriano Peixoto (onde descansa no meio de seus percursos), a Câmara de Belo Horizonte (onde também há um refeitório público e pode acessar a internet, assistir televisão, usar o banheiro), entre outros. Segundo o entrevistado, a multiplicidade de espaços que frequenta deve-se à sua postura de sempre ocupar seu tempo, de modo que, desde o início de sua trajetória em situação de rua, ele sempre buscou instituições, atividades e cursos gratuitos para participar. “É melhor, cada dia num lugar é melhor. Tem gente que vai no mesmo lugar, eu gosto de lugar diferente. É melhor porque conhece pessoas diferentes, um ambiente diferente. As casas são diferentes também. A gente faz amizade nova, amizade nova é importante. Aqui é todo mundo igual, ninguém é melhor que o outro”.(Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) Além de maior variabilidade, os trajetos diários deste entrevistado também apresentam maior amplitude em relação aos outros sujeitos, como mostra o mapa abaixo. Os pontos em vermelho representam os locais onde todos os entrevistados, em alguma medida, frequentam no dia-a-dia, e os pontos em azul apontam aproximadamente as regiões onde dormem. Nos pontos em amarelo, localizam-se as instituições religiosas, os pontos de doação e os espaços públicos que apenas Bruno incluiu na descrição dos trajetos diários; sua localização não é expressa de modo exato no mapa, mas de acordo com as indicações dadas pelo entrevistado.

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Figura 8: Mapa com amplitude dos trajetos de todos os entrevistados

Fonte: Google Maps/Elaboração própria

O fato de não apresentarem a mesma dinâmica que Bruno não significa que os outros entrevistados não conheçam tais locais, mas que selecionam de que modo preferem ocupar seu tempo e despender sua energia. Para os outros entrevistados – Ademar, Carlos, Evandro e Danilo -, as rotinas se repetem no dia-a-dia e é principalmente articulada em torno do Restaurante Popular e da Pastoral de Rua. Porém, mesmo que estes pontos sejam centrais, há variações na forma como são articulados no cotidiano. Ademar difere dos outros entrevistados neste sentido, pois, embora visite a Pastoral do Povo da Rua diariamente, não passa tanto tempo como os outros no local. Além disso, ele é um frequentador assíduo do Centro de Referência, onde lava roupa e toma banho, enquanto os outros realizam estas atividades principalmente na própria 64

Pastoral. Isso faz com que seu percurso diário seja impresso por outro ritmo, onde há maior diferenciação entre os períodos da tarde e da manhã, tomando a forma de uma sequência de atividade, que inclui certo tempo livre entre as refeições.

Figura 9: Sequência diária de Ademar

Fonte: Elaboração própria

Já para Evandro, Danilo e Carlos, as refeições acontecem sempre no Restaurante Popular ou, eventualmente, na Pastoral. No entanto, os intervalos entre as refeições são momentos cuja dinâmica é variável e pouco previsível: às vezes conseguem um “bico”; às vezes tem reuniões e atividades da Pastoral para participar; outras vezes, ficam um tempo na Praça da Rodoviária após o almoço; vão resolver algo no centro da cidade. Mas é na Pastoral que freqüentemente passam suas manhãs e tardes, mesmo quando lá não têm nada programado para fazer. Ao invés de uma sequência, nota-se uma dinâmica que imprime ciclos dentro de um mesmo dia, nos quais as refeições marcam o fim e o início de períodos nos quais as atividades não são fixas e programadas, mas abertas à contingência.

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Figura 10: Esquema com circularidade da rotina de Carlos, Danilo e Evandro

manhã

local de dormir

Restaurante Popular

noite

tarde

Pastoral do Povo da Rua

noite Fonte: Elaboração própria

No entanto, lidar com o tempo ocioso é algo mais conflituoso para estes três entrevistados, é quase uma luta contra si próprio e um esforço constante para manteremse distantes da forma como viviam em situação de rua anteriormente. Porque todos eles estão atualmente engajados em um projeto de se distanciarem de trajetórias de vício e saírem da situação de rua, a reestruturação de suas rotinas e uma alteração dos percursos diários mostrou-se, para isso, necessária. “Evandro: Não tô andando [pelos lugares de antes], porque eu tô ficando mais na Pastoral. Então, tipo assim, Pastoral até 13h, almocei. Fiquei na Praça do Rolo [Praça Rio Branco/Rodoviária], descansei um pouquinho e fui pra Pastoral. Não tô fazendo aquela rotatória que eu fazia. Caroline: Como era esse trajeto que você fazia? Evandro: Eu andava esses trem tudo: Floresta, andava tudo, Rua da Bahia desde cima, voltava. Rodava o centro todinho, fora os morros, que eu andava subindo e descendo, subindo e descendo [pra comprar crack]. No centro eu andava pra reciclar, dinheiro, aquela coisa frenética Caroline: Tinha descanso de domingo? Evandro: Não, domingo eu reciclava na Feira Hippie”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) Em suas palavras, Carlos descreve o momento atual como diferente porque “hoje eu consigo chegar em um destino, hoje eu procuro ocupações”. Antes, sua 66

dinâmica de circulação era diferente, não havia regularidade no local de dormir e, por andar frequentemente embriagado, não conseguia utilizar equipamentos sociais, como o Centro de Referência, de modo que tomava banho, geralmente, em uma torneira debaixo de um viaduto. Na decisão de se afastar do alcoolismo, Carlos passou a realizar um percurso menos itinerante pela cidade (e que tem a Pastoral como ponto de fixação), bem como buscou se afastar de circuitos típicos da vida em situação de rua, como as doações. “Não quero mais nada além de um lugar pra eu ficar. Já freqüentei [doações e instituições], mas decidi não aceitar mais essa vida. ‘Centro de Referência tem armário, na Bernadete tem isso, na Beatriz tem isso, no Japonês tem isso’... eu não quero! Eles tem, mas eu não quero! Eu quero é um lugar pra eu morar. Trabalhar e viver do meu próprio suor”. (Trecho da entrevista realizada com Carlos em 28/04/14.) Se os projetos de saída da situação de rua requerem o esforço de reestruturar rotinas, o contato dos entrevistados com a Pastoral de rua é preponderante neste contexto. Esta instituição lhes oferece um tipo de amparo assistencial que difere das outras instituições que frequentam. Embora ela também os ajude na articulação com a rede de assistência, o envolvimento com a Pastoral os incentiva a participarem das atividades do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (que tem sede no espaço da instituição) e em reuniões que discutem políticas públicas para o segmento, além de lhes oferecer o uso livre do espaço da Comunidade Amigos da Rua. Nem sempre há atividades neste espaço, mas a maioria dos entrevistados o utiliza diariamente como um ponto de ancoragem de seus projetos de saída das ruas, pois, ficando na Pastoral, eles se afastam dos antigos percursos. Lá eles podem, também, tomar banho, lavar roupa, cochilar, (no caso de Danilo, que voltou a estudar) realizar tarefas escolares, além de trocarem informações sobre bicos e conversar. 67

Deste modo, o circuito realizado por Evandro, Danilo e Carlos é muito próximo do de Ademar, mas dele se diferencia por terem, na Pastoral, um ponto onde passam a maior parte do seu dia e utilizam como referência na organização diária de suas rotinas. “Acordei, estava na Pampulha [quando dormia na Toca de Assis, antes de conseguir o benefício de morar na República]. Vim para o Popular, tomei café, vim pra cá [Pastora]. Fiquei de manhã até agora. Almoço aqui as vezes. (...) quando eu não venho aqui é por um motivo, porque eu estou trabalhando. Eu não aceito minha situação, aqui é meu ponto, meu paradeiro, aqui é o lugar de eu dar um passo. (...) Eu saio daqui 17h. Quando tem alguma coisa pra fazer eu faço... sou como um officeboy”. (Trecho da entrevista realizada com Carlos em 28/04/14.) “Acordo, vou pro restaurante. Lá a gente toma um cafezinho, aí conversa, lê um jornalzinho, o Super, no Popular mesmo. Aí depois pega e vai na Pastoral. Fica lá, faz o que tem que fazer. Ultimamente eu tô tentando me ocupar com isso, porque se eu não me ocupar com isso, eu vou me ocupar com o quê? Até eu começar a trabalhar. Essa semana agora vai ser diferente, né[pois começaria a trabalhar dois dias por semana como churrasqueiro”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) Por centralizarem seu cotidiano em torno de instituições cujo funcionamento acontece apenas em dias úteis (como é o caso da Pastoral20, do Restaurante Popular e do Centro de Referência), os fins-de-semana imprimem outros ritmos no cotidiano dos entrevistados. Aos sábados, todos eles vão a uma casa espírita chama Fraternidade Espírita Irmãos Glaucus, no bairro Padre Eustáquio, e é onde tomam café-da-manhã e almoçam, além de receberem também doações de roupas, tratamentos médico e odontológico. Todos os entrevistados gostam desse lugar e dizem que, por se tratar de uma instituição muito frequentada, a fila é grande e começa a se formar mesmo de madrugada, visto que muitas pessoas já vão para lá na noite de sexta e dormem na entrada. Assim, certa antecipação se faz necessária, de modo que a maioria acorda por volta das 5h da manhã, mesmo que o atendimento da instituição só comece às 8h. 20

A Pastoral do Povo da Rua, através das atividades da Comunidade Amigos da Rua e ações de voluntários, promove um encontro aos domingos entre 14h e 17h, onde há roda de conversa e alguns petiscos.

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Porém, as outras refeições do fim-de-semana acontecem, por sua vezm fora de instituições, mas em pontos de doação de marmitex em espaços públicos. Lefebvre (2004) coloca que nos tornamos conscientes de nossos ritmos quando sofremos alguma irregularidade (p. 7) e, entre os sujeitos entrevistados, há uma quebra brusca dos ritmos diários quando há feriados. A pesquisa abrangeu o período do feriado do Dia do Trabalhador (01/05/2014) e alguns entrevistados mostravam certa ansiedade por não saber o que iriam fazer no período de dois dias nos quais a Pastoral ficaria fechada. Por serem momentos de suspensão da ordem cotidiana, os feriados impactam rotina dos entrevistados ao gerarem um pouco de incerteza, pois não é tão claro como realizarão as refeições e que espaços podem buscar para ocupar o tempo. Nas entrevistas, foi muito difícil abordar atividades que pudessem ser caracterizadas como “lazer” ou “diversão”. Apenas um entrevistado comentou de modo mais direto este aspecto, o Bruno, aquele entre os entrevistados que organiza com maior variabilidade as atividades de seu dia-a-dia. “Caroline: Onde vai pra se divertir aqui na cidade? Bruno: Praça da Estação, ver jogo da Libertadores. Quando tem Campeonato Brasileiro eu vou lá na Av. Amazonas, onde tem os coqueiros e as televisões ficam ligadas. Fica uma galera, todo mundo em pé lá vendo”.(Trecho da entrevista realizada com Bruno em 24/04/14.) Para os outros entrevistados, o lazer é algo que só fará parte de suas vidas quando conseguirem realizar o projeto de saída das ruas. Embora todos tenham mencionado este projeto, para alguns ele se apresentam com mais urgência e se apresenta como uma determinação que precisa ser reforçada diariamente. Assim, minhas perguntas sobre atividades de lazer foram, nas narrativas, direcionadas para a

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questão de saída das ruas como um pré-requisito para que pudessem, então, ter a possibilidade de se divertirem. “Caroline: O que você mais gosta de fazer pra se divertir? Ademar: Eu não tenho intimidade nenhuma. Eu gosto é arrumar um serviço mesmo, pra não ter essa dor de cabeça ‘vou pra onde, vou fazer o que’. Aí você tendo uma coisa pra fazer, tendo um serviço, você já sabe pra onde vai, pra casa. Chega em casa, você deita, toma aquele banho, janta, faz sua comidinha do jeito que você quer, deita, ligar sua televisãozinha, faz o que você quer e relaxa” (Trecho da entrevista realizada com Ademar em 24/04/14). “Se divertir é uma palavra que não existe agora. Primeiro que não sobrava dinheiro, agora que tá sobrando. É inacreditável de tudo. Eu to com vontade de ir pro show, ficar a noite inteira no show, ver o pessoal dançar, nem que for pra tomar uma cerveja, dançar... Tô com vontade de fazer isso na minha vida. Que era a coisa que eu fazia quando eu tinha a minha vida... Não tô conseguindo fazer isso porque eu não tenho lugar pra ficar, vou ficar andando com bolsa? (...) O Danilo também tá com uma vontade disso, esse dias ele quase chorou. ‘Pô, cara, tenho que segurar o dinheiro. Preciso de ir no barzinho tomar uma cerveja, ficar de boa olhando pras meninas. Eu fazia isso direto, agora não tô fazendo’. Eu falei ‘ô, Danilo, também penso desse jeito. Não tô podendo nem namorar’. Como que é que morador de rua namora, gente?".(Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) Isso não quer dizer que suas rotinas não tenham momentos “prazerosos”; o Parque Municipal, a Feira Hippie, as reuniões festivas da Pastoral, as festas em espaços públicos compreendem espaços que eles frequentam. No entanto, as atividades de agora ainda ficam em negativo se comparadas com aquilo que desejam para seu futuro. As estratégias que cada um empreende para sair da situação de rua variam de acordo com as oportunidades que cada um articula e pretende articular. Ademar procura diariamente um emprego dos classificados do Jornal Metro e no dia da entrevista ele estava muito feliz porque tinha comprado um celular, que lhe possibilitaria deixar seu contato com possíveis empregadores. Bruno tem esse projeto em médio prazo, pois 70

pretende primeiro conseguir aposentar-se pelo INSS, e depois conseguir um emprego e uma Bolsa Moradia. Para Evandro e Carlos, conseguir a vaga na República é colocado como o primeiro passo no projeto de saída das ruas, que lhes permitiria ter melhor estrutura para trabalhar e juntar dinheiro, e, então, se prepararem para alugar uma casa. Já Danilo (cuja vida em situação de rua já teve muitas saídas e voltas), objetiva conseguir um emprego ou uma Bolsa-Moradia – sendo esta, o recurso institucional que lhe resta, pois já viveu em uma República e não sente que este caminho possa lhe ajudar desta vez. Para Danilo e Evandro, que tiveram que se afastar do uso de crack para engajarem em um projeto de saída das ruas, a situação que vivem agora já tem aspectos positivos e alimentam seu engajamento no projeto de saída das ruas dia-a-dia. Isso se apresenta em coisas simples, como no fato de, agora, conseguirem juntar o dinheiro que recebem com trabalhos eventuais (ao invés de gastá-lo com a droga), ou na própria forma como enxergam a cidade com outros olhos e a vivenciando em outros ritmos. “Quando eu tava assim, usando muito, eu sempre falava que ‘minha vida é subir a Itapecerica e descer Além Paraíba’, subia por um lado e descia pelo outro, pra ninguém ver que você tava descendo na mesma rua. (...)Fui lá perto esses dias, tomar injeção. Fui dentro da boca, vi os caras com as pedras na mão vendendo,tava com dinheiro no bolso... ‘Ah, cês vão morrer de fome se depender de mim agora’.” (....) “Essa padaria [perto da instituição onde vão aos sábados] é onde a gente toma café, cafezinho especial. (...) A gente chega lá 5 e pouco da manhã, dá uma vontade de tomar um café. (...) Ela é especial, porque antes não sobrava dinheiro pra tomar café, agora sobra. Nossa, cara, é triste demais, acordar de manhã com fome e saber que cê gastou mil reais na rua [se refere à vez quando, no início de sua trajetória em situação de rua, gastou o dinheiro de sua poupança] e não tem nenhum um cafezinho pra tomar.(...)Por isso que eu gosto tanto dessa padaria! Porque eu comecei a tomar café nela foi de um tempo pra cá. Antigamente não sobrava, como é que toma café?” (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.) 71

“Eu tava no vício totalmente, entregue ao vício. Então já levantava com aquele pensamento ou nem dormia, era a noite toda na rua correndo atrás ali, arrumando um dinheiro aqui pra inteirar pra ir pra boca de droga. Então você põe um cabresto na frente, que você esquece todos e todo mundo. Essa coisa que acabou, eu vou descobrindo coisas que estavam ali há muitos anos e eu não via aquilo ali. Um prédio diferente, que você olha pra ele vai vendo modificações, lugares que você passa tantas vezes e não presta atenção. Então, é um descobrimento, coisas diferentes que fazem a gente viver” (Trecho da entrevista realizada com Danilo em 30/04/14.) Essa nova forma de Danilo enxergar a cidade foi expressa, ainda, na realização de um mapa que o entrevistado realizou de seus pontos favoritos da cidade. Ele foi o único entrevistado que aceitou realizar esta atividade, o que não nos permite nenhuma análise comparativa. No entanto, ele revela, em sua obra, sua leitura afetiva da cidade, um aspecto que deixamos como inspiração para trabalhos futuros. As rotinas analisadas mostram que, se comer e dormir são atividades mais ou menos naturalizadas para a população domiciliada, no cotidiano dos sujeitos entrevistados elas compreendem a base de estruturação de suas rotinas e, muitas vezes, demandam organização do tempo, dispêndio de energia e deslocamentos espaciais significativos para serem realizadas. Neste contexto, a mobilidade é o padrão de normalidade, e ela não tem a forma pendular casa-trabalho, como entre a maior parte da população; mas apresenta-se na dinâmica de um circuito, que se articula com os ritmos institucionais e com a forma como os próprios sujeitos decidem organizar suas rotinas.

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Mapa afetivo de Danilo “Eu amo a noite de Belo Horizonte, as luzes, os ritmos das pessoas são diferentes... você vai numa praça - tem umas praças aqui em Belo Horizonte que são lindas - e tem pessoas, você vê pessoas paradas com uma cabeça diferente e na correria do dia-a-dia você não vê isso aí. (...) Fórum: "que eu adoro olhar, pela buniteza do lugar”. Elevado Castelo Branco: "Onde eu vejo uma população diferente. Você vê uns quietos, outros barulhentos, um dos pontos fracos da cidade". Passarela da Lagoinha:“Um dos pontos onde você passa na correria, onde você tromba um com os outros,e se você passa bem devagarinho você vê o calor de todo mundo” Pastoral:“Meu ponto” Praça da Rodoviária: "Aqui é outro ponto bonito, de pessoas fracas e pessoas que tem condições, misturadas". Av. Afonso Pena: "Aqui tem de tudo, apartamentos, lojas”. Alto das Mangabeiras - Praça do Papa e Parque: "Aqui é um ponto onde me sinto feliz. Já foi no alto Mangabeiras? Quando for, procura a pipoca com queijo. Só aqui neste lugar que você encontra essa pipoca diferenciada" Trajeto da Av. Pedro II até a Lagoa da Pampulha: "Minhas horas de angústia, é onde eu tô chateado comigo, com a vida, com quem eu acho que me prejudicou. Então, em vez de eu estar brigando, batendo, é a hora que eu saio a pé... tem vezes que é até as horas dos meus choros, né? Se eu quiser andar mais e quiser acabar com isso, é aqui que eu faço, que eu vou ver Zoológico, a Igrejinha da Pampulha, o ponto de festas. E é aonde eu acabo com um pouquinho da raiva do tempo que algumas pessoas me fez perder". (...) Av. Pedro II: "Essa avenida é o lugar que veio todo meu sofrimento, que eu não demonstro pra ninguém, porque se você mostra na rua que está fraco, eles te afundam mais. E aqui, cada lugar que eu passo, a cada lugar que eu olho, a tristeza vai saindo pouco a pouco. Cada ponto é um ponto de parada16:23 (...) Certa parte você pega um movimento de pessoas, em outras você anda sozinho, sem ninguém te incomodando, sem ninguém te encostando, é uma hora de reflexão, que você vai puxando o pensamento assim, uma hora e rancor, outra de alegria. Essa passagem não tem como explicar porque que é ela, esse trajeto aí eu fico feliz, eu choro, sem ninguém ver. É pra mim mesmo, eu e Deus e a caminhada (..) Nesse ponto, eu vejo a minha variedade de sonhos”. Escola: "Depois de 28 anos veio fazer parte da minha vida o colégio onde eu estou estudando, onde eu conheci uma pessoa que vai me fazer muito bem, que é minha professora de História. Eu acho que ela é diferenciada, porque como ela dá a aula dela, como ela incentiva cada um a tá fazendo suas coisas".

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Mineirão:“Hora de alegrias e tristeza num mesmo lugar. Eu não vou pra ver um jogo, eu vou pra trabalhar, mas enquanto eu tô catando aquela latinha, eu vejo as pessoas diferentes. Hoje em dia, você tá na cidade, se você estiver catando um lixo, ninguém chega até você pra te ajudar, abre o saco ou te dá uma latinha pra te ajudar. E no Mineirão é o lugar onde pessoas bonitas e feias se doam sem saber, sem ver o que ela estão fazendo de bom”. “Esses são pontos que me fazem feliz, nas horas que eu acho que estou fora de todos, eu me encontro nesses pontos aí”. (Trecho da entrevista realizada com Evandro em 05/5/14.)

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5. Considerações finais Pudemos identificar que os sujeitos entrevistados para esta pesquisa assemelham-se em muitos aspectos, como pelo seu grau se inserção na rede de atendimento à população em situação de rua e por todos sustentarem um projeto de saída das ruas que se faz muito presente nas suas narrativas e nas atitudes que empreendem dia-a-dia. Conscientes de que se trata de um perfil específico no universo da população em situação de rua, buscamos manter, no horizonte da pesquisa, que o fenômeno estudado abrange muito mais do que a realidade que conseguimos acessar. Esta heterogeneidade, expressa nas tensões que permeiam a construção de categorias, vai além do referencial habitacional como critério definidor de tipologias dentro do fenômeno; mas deve ser compreendido também a partir dos múltiplos sentidos e usos do espaço público que diferentes indivíduos em situação de rua podem empreender. Neste sentido, as histórias de vida ajudaram a compreender que também as trajetórias individuais não são uniformes ao longo de um percurso em situação de rua, sendo suscetíveis a transformações e ressignificações, de acordo com as oportunidades, pressões externas e interesses que os indivíduos articulam em cada momento de sua vida nesta situação. Transitar entre o universo em situação de rua e o universo domiciliado, no entanto, é muito mais difícil que transitar entre diferentes formas de viver em situação de rua. Entre os entrevistados, a maioria situa a si mesmo no limiar entre estas duas

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esferas, mas que, por se tratar de uma posição em transição, ainda é investida de incerteza e preocupação. A liminaridade do momento de saída das ruas apresenta-se especialmente entre alguns dos entrevistados, para os quais este projeto implicou a reestruturação de sua vivência da cidade. Eles apresentaram um esforço de encontrar pontos para fixação e restringir a amplitude de seus trajetos diários, quase como se para já sedimentar as bases para o retorno à vida doméstica e sedentária. A mobilidade como uma constante no cotidiano não deixa, no entanto, de se apresentar entre todos eles e é motivada pela própria forma como suas atividades são especializadas pela cidade; hábitos naturalizados para população domiciliada - como comer, dormir, tomar banho e satisfazer atividades fisiológicas – demandam, com frequência, deslocamentos, gasto de energia e a articulação com as dinâmicas institucionais. Muitas dimensões ficam, ainda, em aberto para futura investigação. Pela própria metodologia, não nos foi capaz identificar com detalhes as variações que se apresentam entre os momentos de tempo ocioso e impreciso. Conseguimos, em alguma medida, identificar certos ritmos que se apresentam na estruturação de rotinas, mas outras relações poderiam ser identificadas com maior disponibilidade de tempo para observação etnográfica e distanciada.

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