Trajetos vigilantes e a esperteza dos drones [Lavits]

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Trajetos vigilantes e a esperteza dos drones Resumo: Meios de comunicação no Brasil e em outros países, como França e Estados Unidos, noticiam sobre drones. Idealizados inicialmente para fins militares de vigilância e espionagem, são controlados pela ação humana ou meios computacionais. Considerando este aspecto, salientamos outros contextos em que são empregados, sem contudo descartar sua gênese. Atentamos para três situações específicas noticiadas: produção de imagens pessoais por meio computadores vestíveis; guerras e conflitos civis; e controle e monitoramento de doenças infecciosas. Compreendemos os drones como seres da técnica e trajetos, em contraponto a objetos técnicos. Interessa-nos entender em que medida estas aeronaves não tripuladas configuram-se como objetos inteligentes. As noções de mediação, delegação e ação técnica nos auxiliam nesta empreitada. Caracterizamos a inserção dos drones em nosso cotidiano segundo uma lógica de vigilância distribuída e líquida, refletindo sobre eles enquanto máquinas de supervisão e previsão. Palavras-chave: delegação, drones, objetos inteligentes, seres da técnica, vigilância. Abstract: Media in Brazil and other countries, like France and United States, report on drones. Designed originally for military surveillance and espionage, these aircrafts are controlled by human action or computers. Considering this aspect, we emphasize other contexts in which the drones are employed, without discarding its genesis. We pay attention to three specific situations: personal image production by wearables; wars and civil conflicts; and control and infectious diseases monitoring. We understand drones as beings of technology and trajectories, in contrast to the notion of technical objects. We also aim at understanding in what extent these unmanned aircrafts are configured as smart objects. The notions of mediation, delegation and technical help us in this task work. We characterize the introduction of drones in our lives according to a distributed surveillance and liquid logic, reflecting on drones as supervision and prevision machines. Keywords: delegation, drones, smart objects, beings of technology, surveillance. Résumen: Los medios de comunicación en Brasil y en otros países, como Francia y Estados Unidos, informan sobre drones. Diseñados originalmente para el espionaje y la vigilancia militar, estos aviones son controlados por la acción humana o por medios computacionales. Teniendo en cuenta este aspecto, hacemos hincapié en otros contextos en los que los drones son utilizados, sin descartar su génesis. Tomamos en cuenta tres situaciones específicas: producción de imágenes personales a través de computadoras vestibles; guerras y conflictos civiles; y control y seguimiento de enfermedades infecciosas. Entendemos los drones como seres de la técnica y trayectos, en contrapunto con los objetos técnicos. También nos interesa entender en qué medida estas aeronaves sin tripulación se configuran como objetos inteligentes. Los conceptos de mediación, delegación y acción técnica nos ayudan este esfuerzo. Caracterizamos la inserción de los drones en nuestra vida cotidiana según una lógica de vigilancia distribuida y líquida, reflexionando sobre los drones en cuanto máquinas de supervisión y previsión. Palabras clave: drones, delegación, objetos inteligentes, seres de la técnica, vigilancia. Introdução Os meios de comunicação e informação no Brasil e em outros países, como a França e os Estados Unidos, por exemplo, publicam várias abordagens a respeito de veículos aéreos

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não tripulados (VANT) ou veículos aéreos remotamente pilotados (VARP), idealizados inicialmente para fins militares. Produções cinematográficas também tematizam o assunto, como por exemplo o filme Drones, lançado em 2013 e dirigido por Rick Rosenthal, que aborda a atuações de soldados em guerra que precisam decidir sobre a morte de pessoas comuns como potenciais alvos terroristas pelo uso de drones. Os drones, como são popularmente conhecidas estas aeronaves com ação à distância controladas por meios eletrônicos e computacionais com ou sem ação humana, agem em várias situações, produzindo informações variadas. Segundo o infográfico disponibilizado no site Smartdrones.fr,1 os Estados Unidos é o primeiro país na lista de nações em que mais drones voam no espaço aéreo. A França está em segundo lugar e o Brasil em nono. O perfil de apaixonados por drones (passionné de drone) é composto em sua maioria por homens de faixa etária entre 30 e 50 anos, caracterizados como geeks e fãs de: aeromodelismo, high-tech e fotografia. Considerando que os drones sejam a princípio uma tecnologia de espionagem e vigilância militar empregada em guerras e conflitos civis, procuramos salientar neste artigo algumas outras ocorrências em que eles são usados: produção de imagens pessoais; controle e monitoramento de doenças e utilização na agricultura. Como será exposto adiante, eles também podem ser acoplados aos corpos humanos enquanto computadores vestíveis (wearables). Neste sentido, visamos ainda pontuar que os drones nos permitem vislumbrar horizontes possíveis de experiências com os dispositivos móveis, integrando a dinâmica da vida e refletindo em nossos comportamentos e fascínio pela tecnologia. Em vista disso, propomos realizar uma reflexão tecnológica, aos modos de Latour (2012), a respeito dos drones, buscando compreender tais máquinas como seres da técnica, em um modo de existência que lhes é peculiar, como propõe Latour (2012). Para tanto, seguiremos a orientação deste autor em apreendê-los como trajetos, em contraste a considerálos simplesmente como objetos, tal como propõe Simondon (1989) e será exposto adiante. Trata-se de uma proposta para olhar os seres da técnica em suas trajetórias, em suas ações, considerando que, ao fazer, eles fazem fazer e ordenam agências.2 O objetivo deste artigo, então, é fornecer elementos que auxiliem a compreensão daquilo que Andrejevic (2015) nomeia como lógica do drone. Esta lógica é concebida pelo 1

Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2015. 2 Para Latour (1994, 2005), inspirado em Gabriel Tarde, a ação é distribuída entre humanos e não-humanos. Ambos são atores pois são levados agir por outros atores. Nesta dinâmica associativa, humanos e não-humanos afetam-se mutuamente constituindo cadeias de ações que estendem e compõem espaço e tempo.

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autor enquanto dinâmica de formas crescentes de vigilância remota e presente. Tais formas, para este teórico, estão associadas à emergente captura de informações conectadas, distribuídas e automatizadas que sinalizam os modos como temos lidado com as tecnologias atuais. A inscrição dos drones em processos de vigilância distribuída em que indivíduos são monitorados e informações são coletadas e processadas (BAUMAN, 2013; BRUNO, 2013; ANDREJEVIC, 20015) podem qualificá-los como objetos inteligentes (smart objects) ou hipereficientes, como tem sido feito pelas empresas que os comercializam e pelos media. Em função de tais aspectos, do que se trata esta esperteza dos drones? Ela está relacionada apenas ao volume de dados produzidos por eles e à autonomia que lhes é conferida? Trata-se apenas de uma questão técnica? Estas são algumas indagações possíveis que motivam a escrita deste trabalho e que serão discutidas no texto. A este respeito, ressaltamos que aos drones é possível delegarmos ações que não estamos aptos a realizar, como deslocarmo-nos velozmente pelo ar ou termos visão aérea amplificada. A delegação é entendida neste trabalho como atribuição ou distribuição de ações a outros atores, de modo que eles ajam no lugar de outros, conforme ressalta Latour (1994). Segundo esta proposição, o argumento central deste trabalho é que por processos de delegação, em que humanos e não-humanos se associam, a esperteza dos drones vem à tona como um viés na lógica do drone. Humanos e não-humanos (leia-se seres da técnica), então, encontram-se em associações, de modo que ambos são seres sociotécnicos; não há um sem o outro. Pretendemos sublinhar ainda que funções de informação e comunicação também podem ser atribuídas aos drones, muitas das quais relacionadas à Internet das Coisas (IoT) e ao Big Data, de acordo com Lemos (2013), tais como registrar e disponibilizar grande volume de dados por meio da comunicação entre máquinas que possibilitam a tomada de decisões com relação ao modo de agir, muitas delas autônomas e sem a mediação de humanos. Pensar a distribuição da vigilância implica em considerar, conforme Bruno (2013), o surgimento e a atualização de tecnologias digitais, que solicitam outras práticas, apropriações e deslocamentos conceituais, estéticos, cognitivos, políticos e subjetivos. Por esta via, a vigilância afirma-se na atualização constante e sistemática de informações sobre indivíduos ou grupos. A concessão ao uso e convivência com o aparato tecnológico digital reforça o caráter móvel que configura a vigilância distribuída. Diante da autonomia e ação dos drones, consideramos também que eles se apresentam como máquinas de visão contemporâneas. Segundo a formulação elaborada por Virilio (2002), as máquinas de visão podem ser consideradas como máquinas que permitem ver o

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que antes não era visto. Neste sentido, a aproximação com Latour (1994) em torno de delegação e mediação técnica é possível, uma vez que atribuímos aos drones funções das quais somos limitados, de modo que estas máquinas possam ver e perceber em nosso lugar. As ações assumidas pelo drones, tais como procuraremos frisar, tem se estendido para além de contextos relacionados à guerra. A fim de inquirirmos a respeito da “inteligência” ou “esperteza” (smartness) dos drones e a integração deles em circuitos de vigilância e visibilidade contemporâneos, atentamos para três momentos privilegiados destacados em matérias jornalísticas e nos sites em que drones são comercializados ou apresentados. O primeiro deles diz respeito ao registro de selfies com o uso de drones vestíveis (dronies), como a Nixie, câmera vestível que se transforma em drone e que pode ser controlada remotamente e por meio de gestos.3 O segundo momento elegido é a utilização de drones em contextos militares, em que eles são empregados na tarefa de coletar e processar informações, bem como são habilitados por seus operadores a localizar o alvo da execução. Por fim, a terceira situação escolhida é o emprego de drones para o controle e monitoramento de doenças infecciosas e sua utilização na agricultura. Libélulas mecânicas: seres da técnica, delegação e vigilância distribuída Iniciamos a reflexão teórica a respeito dos drones pela descrição histórica da concepção e uso destes seres da técnica. Compreendê-los conforme esta formulação não essencialista de Latour (2012), em contraste à formulação essencialista de objetos técnicos por Simondon (1989), implica traçar a trajetória deles, considerando-os menos como objetos do que como trajetos.4 A técnica precisa ser apreendida como mediação, como processo em que mediadores agem e levam outros a agir por associações e delegações. Tomar os drones enquanto objetos técnicos seria apreendê-los como intermediários, como obras acabadas e meras ferramentas de caráter instrumental e utilitário que estariam apenas à serviço e domínio do humano, sendo meros meios para se alcançar certos fins. Diferentemente, pensá-los como trajetos diz respeito a atentar para a distribuição da ação e as conexões/associações entre actantes, que não se encontram apenas do lado humano ou somente do lado não-humano, mas partilhada entre ambos – aqui reside o contraste entre trajetos e objetos técnicos. 3

Disponível em: . Acesso em: 14 mar. 2015. Uma possível discussão entre abordagens essencialistas e não essencialistas sobre a técnica pode ser encontrada em Lemos (2014). 4

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Os seres da técnica, então, como reivindica Latour (1994), são mediadores, e a mediação técnica envolve a associação de múltiplos e heterogêneos actantes,5 de modo que agir implica a ação tanto de humanos quanto de não-humanos, pois ambos possuem simetricamente o mesmo potencial de ação. Técnica, neste sentido, não designa um objeto, mas uma diferença, um trajeto (movimento, percurso) cuja ação promove outras ações, uma dinâmica híbrida e menos uma estabilidade purificada. A ideia de tecnologia é explicitada por Bauman (2013) e se relaciona com o modo de pensar de Latour, pois ela “é uma característica de relações ‘tecnossociais’ ou ‘sociotécnicas’ ” (BAUMAN, 2013, p. 91). Assim, não basta tomar o humano como senhor da ação por meio (intermédio) da técnica e nem a técnica per si, como apenas material ou suporte. Antes, é preciso atentar para os modos como ambos se associam por processos híbridos de distribuição de agências – como destacaremos adiante pela noção de delegação ou ação técnica. Frisamos, ainda, que tomar a técnica como modo de existência (LATOUR, 2012; LEMOS, 2014) implica em considerar as cadeias de ações que possibilitam os seres da técnica existirem enquanto tal. De modo mais claro e próximo a nossa proposição: é preciso pensar naquilo ou naqueles que autorizam –para recorrermos a um termo do próprio Bruno Latour – os drones se apresentarem, existirem e permanecerem como drones. Cabe, desse modo, investigarmos a lógica do drone. Tendo exposto isso, explicitamos um breve histórico dos drones. Eles surgiram com finalidades militares nos Estados Unidos na década de 1950, resultantes de anos de pesquisa e investimentos milionários. Um de seus objetivos era permitir que a vida de soldados fosse protegida em combates ou inspeções de território. Os estudos em torno dos drones não eram disponibilizados publicamente. Apenas em 1973 a Força Aérea Americana admitiu o programa de aviões deste tipo e em 1994 iniciou o teste com drones carregados com armas.6 O primeiro teste de voo realizado com estas aeronaves foi supervisionado em 1996 pela empresa Lockheed Martin.7 Os EUA declaram oficialmente que o emprego de aeronaves não tripuladas em combates se deu durante a invasão americana no Afeganistão em outubro de 2001. Atualmente, os drones tem sido empregados em outros países, como Iraque, Líbia, Somália e 5

O termo actante (actant em francês) é criado por Lucien Tesnière e retomado pela semiótica francesa de Algirdas J. Greimas. A nomenclatura refere-se àquele ou àquilo que age e leva muitos outros a agir. Intermediários seriam aqueles ou aquilo que age sem interferir no curso da ação, enquanto mediadores seriam actantes que promovem uma mudança neste curso (LATOUR, 2005). Ambas as categorias são revistas por Latour, de modo que ele afirma que não há transporte, movimento ou ação sem transformação (LEMOS, 2013, p. 274-275). 6 Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2015. 7 O site da empresa encontra-se disponível em: Acesso em: 05 mar. 2015.

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Paquistão, e o funcionamento de tais máquinas requer aparato tecnológico com bases terrestres de operação espalhadas em diversos países, aviões auxiliares e rede de monitoramento por satélites. No Brasil, os drones são conhecidos pela sigla VANT (veículo aéreo não tripulado), embora tenha sido o termo em inglês drone o responsável pela identificação imediata deles. A nomenclatura estrangeira pode ser traduzida como zangão ou zumbido, bem como pela função básica que eles tem de explorar espaços aéreos, assim como tais insetos. Tal como no caso dos zangões, os drones emitem um zumbido enquanto se movem no espaço aéreo. Em muitas situações, os drones executam o que antes só era possível por meio de aviões e helicópteros tripulados, como acontece no caso dos registros de imagens aéreas para os jornais ou esquemas de segurança como o da Copa das Confederações em 2013 ou da Copa do Mundo FIFA de 2014 no Brasil. Há, neste sentido, um processo de delegação. No que tange à mediação técnica, a delegação seria um dos sentidos possíveis para compreendê-la. De acordo com Latour (1994), delegar significa atribuir a algo ou alguém a possibilidade de agir no lugar de outros, ou seja, autorizamos outros a agir por nós. A ação técnica é “uma forma de delegação que nos permite mobilizar, durante interações, movimentos feitos em outras partes, anteriormente, por outros actantes” (LATOUR, 1994, p. 52, tradução nossa).8 Os drones, assim, não são meros intermediários, como se estivessem localizados entre as ações humanas e seus efeitos, mas se apresentam como mediadores que realizam ações, uma vez que nós, humanos, os programamos para tanto. Eles agem em nosso lugar uma vez que não somos capazes de voar e ter uma supervisão (leia-se visão do alto, amplificada). Eles podem se deslocar pelo espaço aéreo por distâncias enormes mais velozmente do que nós por horas ininterruptas e sem a necessidade de descanso. De certo modo este aspecto pode caracterizar a “esperteza” ou “inteligência” dos drones, como ressalta Bauman (2013), uma vez que neles reside a capacidade de tomar decisões e selecionar alvos em nosso lugar. Segundo o teórico, seria uma “ação in absentia”, sem presença humana, que pode matar à distância. Compreendemos, então, que os drones assumem a nossa ação ao mesmo tempo em que nossa ação é assumida por eles. Isso se relaciona diretamente com a ideia de Latour (2005) de que a ação é assumida/ultrapassada por outros (othertaken). Uma vez que a ação é híbrida, distribuída entre actantes, não há técnica de um lado e humanidade de outro. Ambos estão entrelaçados e 8

Technical action is a form of delegation that allows us to mobilize, during interactions, moves made elsewhere, earlier, by other actants.

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formam uma terceira entidade, híbrida, como ressalta Latour (1994) ao exemplificar a utilização de uma arma de fogo por um humano, em que há uma composição que pode ser nomeada como cidadão-arma-de-fogo ou arma-de-fogo-cidadão. No caso específico da intervenção de drones programados para matar e eliminar potenciais alvos terroristas, é válido sublinhar que a tomada de decisões por parte deste seres da técnica encontra-se diretamente associada ao Big Data. Em função de dados que são coletados e armazenados, diferentes perfis são elaborados a fim de que potenciais alvos e comportamentos desviantes sejam identificados e eliminados pela intervenção maquínica ou técnica. Neste sentido, atribuímos aos drones a capacidade de anteciparem riscos por meio de reconhecimento facial e comparação entre padrões comportamentais mais próximos de condutas desviantes, traçadas anteriormente pelos responsáveis em programar os drones para tanto, no caso, seres humanos. No entanto, é discutível eticamente a pertinência e relevância no emprego de tais seres da técnica para a morte de pessoas, uma vez que os mesmos, apesar de relativa autonomia – numérica, podemos dizer –, podem incorrer no erro de identificarem civis como potenciais terroristas alvos como discutem David Lyon e Bauman (BAUMAN, 2013) e o filme Drones. Podemos afirmar que os drones vigiam por nós e, dessa maneira, integram um amplo circuito contemporâneo de vigilância distribuída, em que tanto a lógica do panóptico e do palinóptico se encontram entrecruzadas e são complementares (BRUNO, 2013). Comercializados em formatos e tamanhos variados para diferentes públicos, sejam eles exércitos, empresas ou pessoas comuns, os drones passam a acumular funcionalidades específicas, muitas delas associadas à inteligência dos objetos, sem contudo perderem de vista a função vigilante. Atualmente, os drones são utilizados na inspeção de rodovias ou grandes obras. Modelos menores são programados para sobrevoar centenas de quilômetros, no intuito de identificar panes em redes elétricas, fios rompidos, casos de ocupações territoriais irregulares ou até mesmo supervisionar áreas potencialmente sujeitas ao desenvolvimento de doenças.9 O volume, a precisão e a transmissão acelerada de dados coletados pelos drones instiga variadores setores, empresas e governos. Cada vez menores, os drones explicitam uma lógica de minimização e distribuição do poder. Por esta via, podemos pensar em uma dinâmica de invisibilidade, pois eles se tornam 9

Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2015.

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cada vez menos visíveis. A este respeito, Bauman (2013, p. 26-27) destaca que A nova geração de drones será invisível enquanto torna tudo mais acessível à visão; eles continuarão imunes, ao mesmo tempo que tornam tudo mais vulnerável [...]. Os drones da próxima geração poderão ver tudo, ao mesmo tempo que permanecem confortavelmente invisíveis – em termos literais e metafóricos. Não haverá abrigo impossível de espionar – para ninguém.

Neste cenário, encontramo-nos diante de uma multiplicidade de máquinas e modos de ver na contemporaneidade, em que a vigilância se espalha e escorre pelos meios técnicos, segundo Bruno (2013). A vigilância, a esse modo, coloca-se como problema que requer nossa atenção e reflexão. De modo geral, como destaca Bruno (2013, p. 18), “atividades de vigilância voltadas para indivíduos ou populações humanas envolvem, de modo geral, três elementos centrais: observação, conhecimento e intervenção”. Corroborando esta visão, Fuchs (2011) recorre a Anthony Giddens, Michel Foucault e David Lyon para sublinhar que a vigilância pode ser compreendida como atividade de organização por meio da coleta e armazenamento de informações pessoais que visem à intervenção sobre o comportamento de indivíduos e populações. A simples coleta de dados não configura vigilância, é necessário que se intervenha em conjunto com as informações armazenadas sobre a conduta de corpos. A vigilância distribuída pode ser caracterizada por sete atributos, tal como proposto por Bruno (2013): a) ubiquidade e incorporação aos dispositivos tecnológicos serviços e ambientes que usamos cotidianamente; b) diversidade de tecnologias, práticas, propósitos e objetivos de vigilância; c) dispositivos modernos de inspeção em que vigias e vigiados gozam de uma relativa indiscernibilidade; d) vigilância como função potencial ou efeito secundário de dispositivos incialmente projetados para outras finalidades; e) distribuição entre agentes humanos e não-humanos; f) presença em circuitos de entretenimento e prazer; e g) convivência de modelos hierarquizados e unilaterais com modelos participativos e colaborativos. Dentre os sete, destacamos o quinto aspecto, como também o faz Fuchs (2011), ao recorrer a Haggert e Ericsson (2000/2007), entendendo a vigilância como assemblage, ou seja, enquanto dinâmica heterogênea que envolve humanos e não-humanos e, portanto, como temos argumentado, enquanto processo de delegação e distribuição de ações a actantes que podem vigiar por nós. Etimologicamente, vigiar – do original francês surveiller – significa estar atento a algo, observar cuidadosamente, assistir. Assistir menos no sentido de apoiar do que olhar do alto. Trata-se do exercício do poder por meio da supervisão, como frisa Foucault citado por

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Fuchs (2011). Nesta direção, cabe aqui recorrer à proposição de Virilio (1994) para pensarmos os drones como máquinas de visão ou, como preferimos, máquinas de supervisão, para conjugarmos a compreensão de Virilio e Foucault. Por delegação, os drones são capazes de perceber e apreender territórios de forma automatizada. Estes seres da técnica se configuram como uma inovação particular da artificialização da visão, para a qual atentava Virilio (1994). Os drones, enquanto máquinas de supervisão (monitoramento e visão estendida), então, não são apenas capazes de reconhecer os contornos de uma forma, como também realizam uma completa interpretação de campos visuais para os quais são direcionados, como ressaltava Virilio (1994). Quando de sua formulação, o teórico pontua que a câmera de vídeo seria submetida a um computador, que assume o lugar não mais de um espectador qualquer, mas “a capacidade de análise do meio ambiente, a interpretação automática do sentido dos acontecimentos nos domínios da produção industrial, da gestão de estoques ou ainda da robótica militar” (VIRILIO, 1994, p. 86). É justamente desse modo que os drones se nos apresentam hoje.10 É válido ressaltarmos, juntamente com Virilio (1994), que o ato de ver, de superver podemos dizer, torna-se [...] um ato antes da ação, uma espécie de pré-ação [...]. Se ver é prever, compreende-se melhor por que a previsão tornou-se em pouco tempo uma indústria autônoma, com o progresso da simulação profissional, de antecipação organizacional até o surgimento destas ‘máquinas de visão’ destinadas a ver, a prever em nosso lugar, máquinas de percepção sintéticas capazes de nos superar em determinados domínios, determinadas operações ultra-rápidas em que nossas próprias capacidades visuais são insuficientes pelo fato da limitação [...]. (VIRILIO, 1994, p. 89).

Estas libélulas mecânicas (BAUMAN, 2013) se apresentam também como máquinas de previsão, no sentido de que conseguem antecipar a ação de comportamentos desviantes que requerem a intervenção por parte de autoridades responsáveis a fim de que possíveis riscos a indivíduos e populações sejam atualizados, ou seja, tornados efetivos.11 Pela justificativa

da

segurança,

fortemente

atrelada

à

distribuição

da

vigilância

na

contemporaneidade, como evidencia Bruno (2013), compreendemos que o número de drones cresce exponencialmente, uma vez que é preciso tê-los e conviver com eles a fim de que condutas contrárias às normas e regras impostas pelo poder intitulado dominante sejam

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Um exemplo pode ser encontrado no vídeo da utilização do Switchblade Drone pela Polícia Federal Americana. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2015. 11 A respeito da discussão sobre vigilância e risco, conferir Bruno (2013).

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respeitadas e asseguradas. Logo, os drones infiltram-se em um circuito de vigilância líquida, caracterizado pelo espalhamento dos mesmos “em áreas da vida sobre as quais a influência era apenas marginal” (BAUMAN, 2013, p. 11). Atentamos agora para estas outras áreas da vida em que os drones se fazem presente e crescem como ervas daninhas em nossos quintais e nos quintais alheios, como diria Gilles Deleuze (1992) ao atentar para as sociedades de controle. Computadores vestíveis (wearables) O cenário tecnológico contemporâneo delineia a presença inevitável de drones, que por sua vez se relacionam diretamente com o uso de dispositivos digitais móveis de acesso à informação. No uso crescente de smartphones e computadores cada vez mais leves, observamos a mobilidade e ubiquidade como fatores associados à produção de conteúdo para a internet. A atualização de perfis em redes sociais online, compartilhamento de imagens, checagem de e-mails são exemplos de ações diárias das pessoas. Para além dos aparatos utilizados atualmente para isto, encontramos no mercado acessórios vestíveis conectados em rede. Alguns modelos como pulseiras e relógios inteligentes são comercializados pela Sony, Apple e Samsung. Uma possível apropriação crescente dos computadores vestíveis (wearables) demarca uma outra fase da computação pessoal e suscita outros modos de acessar a internet. Motivada por esta perspectiva, a Intel promoveu o concurso Make It Wearable no segundo semestre de 2014 no intuito de incentivar o desenvolvimento de objetos inteligentes.12 O projeto vencedor do concurso foi a câmera drone Nixie. Os termos que a definem são vários: “wearable camera drone”, “quadcopter drone wearable”, “wearable quadcopter drone” com câmera embutida. A Nixie é um tipo de drone acionado a partir de comandos de voz ou por gesto, por meio dos quais a câmera se desenrola do pulso, estica as quatro hastes que o apoiam durante o voo e decola. Em seguida, uma câmera de alta definição é acionada, sendo possível gravar um vídeo ou fotografar. Este vestível é capaz de seguir os movimentos do usuário e de se reaproximar para ser recolocado de volta no pulso, via controle remoto. Ao se desconectar do corpo, este drone amplia a visão do usuário. As imagens registradas pela câmera acoplada ao drone são arquivadas no smartphone, podendo ser compartilhadas em rede sociais online

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Disponível em: . Acesso em: 19 mar. 2015.

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como o Instagram. Tanto os desenvolvedores quanto a Intel continuam no desenvolvimento do projeto e para isto apostam em futuras atualizações da Nixie. O objetivo é torná-la comercial e atraente aos adeptos de registro das selfies ou fotografia em geral. Este é um tipo emblemático de projeto para pensarmos os seres da técnica, uma vez que ele situa-se entre o humano e o nãohumano, assumindo e ampliando as limitações humanas que lhe são delegadas (máquinas de supervisão). Guerras e conflitos civis Os primeiros usos militares de drones ocorrem em meados do século XX, embora os anos 1980 tenham demarcado o uso bélico por parte da força aérea israelense contra a força aérea síria. Em 1994, as Forças Armadas americanas testam drones carregados com armas, e a primeira utilização em combates se deu no Afeganistão, em 2001 – ocasião posterior ao ataque às Torres Gêmeas. A partir daí, os drones foram constantemente acionados na chamada "guerra ao terror". Criados como veículos de reconhecimento territorial, a chegada dos VANTs foi bem vinda no contexto militar uma vez que pouparia a vida de militares em missões arriscadas. Assim, investiu-se no aprimoramento de transporte de cargas, disparo de mísseis e mapeamento de territórios e transmissão online de dados por estas aeronaves. Os drones são intensamente utilizados pelo exército americano nos conflitos com países do Oriente Médio. Investigações abertas pela ONU buscam averiguar ataques no Paquistão, Iêmen, Somália, Afeganistão e Palestina, pois um alto número de civis foram vítimas de ataques com drones. Modelos miniaturizados dos VANTs carregam armas e são programados para perseguir e matar suspeitos ao sobrevoarem territórios monitorados (máquinas de supervisão e previsão).13 O Switchblade Drone é um modelo deste tipo, capaz de reconhecer e atacar via transmissão online de vídeo. A potência dos drones em guerras entusiasmam os americanos de tal maneira que hoje o desenvolvimento destes veículos fazem parte da corrida armamentista internacional empreendida por eles. A edição do mês de março de 2013 da revista americana Time veiculou uma reportagem indagando sobre o uso bélico dos drones, em que se questiona: "E então, quem 13

Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015.

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nós podemos matar?".14 Mais que questionar, a pergunta problematiza a ampla capacidade de extermínio que os drones alcançam quando empregados por exércitos atuantes em conflitos. Uma breve discussão sobre este aspecto está presente em Bauman (2013) e pode suscitar outras discussões a respeito dos drones. Controle de doenças infecciosas e agricultura Os drones auxiliam no controle de doenças e muitos cientistas os utilizam no combate à propagação de doenças infecciosas. No sudeste da Ásia, comunidades isoladas sofrem com um tipo de malária propagada por um parasita que contamina seres humanos e macacos da região: o Plamodium knowlesi.15 O drone senseFlu eBee é empregado no mapeamento da propagação da doença. Com uma câmera de 16 megapixels, o sistema da aeronave foi criado para elaborar mapas digitais do terreno e da vegetação das comunidades. Os habitantes das pequenas vilas e até mesmo alguns macacos são equipados com dispositivos GPS para facilitar a detecção e o controle dos focos de infecção. No setor da agricultura, os drones são utilizados no controle de pragas danosas à saúde humana. Pesquisadores da Embrapa Instrumentação e da USP São Carlos desenvolvem um projeto que tem duração prevista de no mínimo três anos. A equipe pretende levar às lavouras paulistas um jipe-robô utilizado pela NASA nas expedições à Marte. De acordo com a professora Débora Milori em entrevista concedida ao Estadão online o drone em questão “poderá medir a quantidade de matéria orgânica do solo, sua umidade e fertilidade, bem como desenvolver análises nutricionais das plantas e até detectar doenças” (máquina de previsão). 16 A Embrapa também desenvolve softwares para proceder diagnósticos da lavoura. Segundo o pesquisador Lucio Jorge, um dos softwares chama-se SISCob, desenvolvido para tratamento de imagens fotografadas pelo drone. O outro software, GEOFielder, realiza a coleta de dados georreferenciados da área de uma fazenda.17 O trabalho de controle e monitoramento de doenças realizado por drones, tal como no contexto militar ou civil, implica no reconhecimento aéreo de terrenos, elaboração de mapeamentos geográficos e topográficos bem como funcionalidades de reconhecimento por imagem. 14

Disponível: . Acesso: 20 mar 2015. Disponível em: . Acesso: 20 mar. 2015. 16 Disponível em: . Acesso em: 15 mar 2015. 17 Disponível em: . Acesso: 15 mar. 2015. 15

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Considerações finais A tentativa inicial de compreensão dos drones em perspectivas distintas do contexto militar possibilitou-nos não somente uma reflexão tecnológica sobre os mesmos, mas também indícios sobre o modo de existência deles, caracterizados por nós como máquinas de supervisão e máquinas de previsão. Quando entendidos como máquinas de previsão, no sentido de antecipar comportamentos desviantes, os drones reforçam sua relação com os atributos da vigilância distribuída e líquida pontuados por Bruno (2013) e Bauman (2013), especialmente com relação à dinâmica heterogênea entre humanos e não-humanos que caracteriza situações cotidianas em nome da segurança. O agenciamento dos drones se evidencia no potencial que eles têm de agir por nós, ou seja, estes seres da técnica assumem a posição de delegados, o que caracteriza-os como objetos inteligentes. A esperteza dos drones caracteriza-se pela autonomia que eles possuem de decidir em nosso lugar, no entanto, cabe frisar que nós somos encarregados de programálos e acioná-los. Torna-se instigante pensar nos desdobramentos da experiência com os drones enquanto acessórios inteligentes vestíveis nas esferas da vida ao considerá-los como máquinas de supervisão. Na medida em que delegamos a estas máquinas a possibilidade de ver o que antes não era visto por nós, há um visível que emerge e resulta de uma cadeia de ações permeada por actantes invisíveis. Tendo em vista este processo de invisibilização do poder, fortemente atrelado à distribuição da vigilância, os drones abrem a possibilidade de repensarmos os seres da técnica enquanto projetos, situados na fronteira entre técnica e humanidade e público e privado. As matérias jornalísticas e os contextos explorados neste artigo revelam que a integração dos drones aos circuitos de vigilância distribuída e líquida os reforçam como mediadores nos trajetos vigilantes que percorrem . A relevância de nossa proposta está em observar os drones em ação. O modo como eles agem pode ser nomeado como ação técnica, uma vez que ela os qualifica como seres da técnica, com um modo de existência que lhes é peculiar, como sustenta Latour (2012). A vigilância distribuída e líquida, neste sentido, instaura-se atualmente não apenas pela ação de um agente, como era próprio pensar no exercício do poder disciplinar, mas na associação híbrida entre humanos e não-humanos por meio da distribuição de ações por processos de delegação, que salientam, como pudemos compreender, o que Deleuze (1992) nomeia como sociedade de controle. Desse modo, é possível pensar uma dimensão agenciada

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do mundo em que seres da técnica nos espreitam e nos permitem espreitar com eles. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. BRUNO, Fernanda. Máquinas de ver, modos de ser: vigilância, tecnologia e subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2013. DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 219-226. LATOUR, Bruno. On technical mediation. Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. 29-64, 1994. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2015. LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: An Introduction to Actor-Network-Theory. New York: Oxford University Press, 2005. LATOUR, Bruno. Rendre visibles les êtres de la technique. In: LATOUR, Bruno. Enquête sur les modes d’existences. Paris: Éditions La Découverte, 2012. Cap. 8, p. 211-235. LEMOS, André. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume, 2013. LEMOS, André. A crítica da crítica essencialista da cibercultura. In: OLIVEIRA, Lídia; BALDI, Vania (Org.). A insustentável leveza da Web: retóricas, dissonâncias e práticas na sociedade em rede. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 41-76. SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989. VIRILIO, Paul. A máquina de visão. In: VIRILIO, Paul. A máquina de visão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994. p. 85-107. ZYGMUNT, Bauman. Vigilância líquida: diálogos com David Lyon. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

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