Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa (DOUTORADO EM FILOSOFIA - PUC SP - versão original apresentada à banca, sem junção dos Capítulos 3 e 4. Versão final publicada, com junção dos Capítulos 3 e 4, bem como outras alterações, pela editora PRISMAS).

June 1, 2017 | Autor: L. Montans Braga | Categoria: Filosofía Política, Filosofía, Filosofia do Direito, Filosofía del Derecho
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Luiz Carlos Montans Braga

Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO 2015

Luiz Carlos Montans Braga

Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia, sob a orientação da Prof.(a) Dr.(a) Maria Constança Peres Pissarra.

SÃO PAULO 2015

BANCA EXAMINADORA

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Agradecimentos À 'Negrinha' e ao 'Bacana', meus pais, que entenderam que alguém possa desejar estudar filosofia, não obstante as dificuldades do caminho. Aos meus irmãos e à tia Tude. À Gabi, a quem o agradecimento é sempre pálido em relação ao que deveria ser. Ao professor Airton Andrade Leite, por ter apresentado, com dedicação e inteligência, muitos dos temas que ora aparecem neste trabalho e que foram objeto de várias reuniões do grupo de estudos de sociologia jurídica da PUC SP. À professora Maria Constança Peres Pissarrra, minha orientadora, pela generosidade em aceitar orientar uma tese sobre Espinosa - mesmo não sendo tema de suas pesquisas principais -, e pelas conversas sempre muito agradáveis. Ao professor Antonio José Romera Valverde, exemplo de que a erudição pode ser muito bem costurada pelos fios da inteligência. Ao professor Luís César Guimarães Oliva, pela arguição erudita, precisa e gentil na ocasião da qualificação. À professora Marilena Chaui, que apresentou Espinosa - a mim e a muitos que tiveram o bom encontro que foi termos sido seus alunos - em um curso ministrado no segundo semestre de 1998, na FFLCH USP. Ao Departamento de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da PUC-SP, pela concessão da bolsa CAPES-PROSUP, sem a qual eu não chegaria à terça parte do longo caminho do doutoramento. Ao Grupo de Estudos Espinosanos da USP, espaço de debate franco sobre a filosofia espinosana e do dezessete, pela acolhida e por lançar luz no caminho da tese. Aos nomeados e a outros que contribuíram para a confecção da tese, sou grato espinosanamente.

RESUMO Luiz Carlos Montans Braga Trama afetiva da política: uma leitura da filosofia de Espinosa O problema do qual partiu a pesquisa foi o da relação entre afetos, política e direito na filosofia de Espinosa. Com efeito, a Ética III é o local em que os afetos são tomados como tema específico. Ocorre que o tema dos afetos aparece também, mais ou menos explicitamente, nos textos exclusivamente políticos do autor, a saber, o Tratado Teológico-político e o Tratado-político, além de ser apresentado brevemente em momentos da argumentação da Ética IV em que a questão da civitas é posta. Outro ponto é a presença do conceito de potência na definição mesma do conceito de afeto, na parte III da Ética, fechando-se o círculo em que se apresentam os três conceitos, pois Espinosa identifica direito a potência (jus sive potentia). A hipótese inicial foi a da existência de laços e intersecções entre tais conceitos, o que se confirmou pela leitura em detalhe dos textos espinosanos, bem como dos comentadores que trabalharam os temas apresentados no problema inicial. O núcleo duro da tese procura alinhavar esta relação conceitual, explicitando-a por meio da análise dos textos do autor, especialmente a Ética, o Tratado Teológico-político e o Tratado-político. Neste movimento argumentativo, a principal tese que procuro defender é a de que Espinosa constrói uma filosofia política fundada na teoria dos afetos. Decorre desta tese uma elaboração (não uma segunda tese) acerca do tema da pertinência dos conceitos espinosanos para o direito emancipatório contemporâneo. Assim, o caminho percorrido em todo o trabalho tem dois movimentos, um mais bem acabado e decorrente do projeto inicial, o qual procura resolver a questão lá posta, e outro mais caracterizado por apontamentos, trazendo os conceitos espinosanos para a análise de questões jurídicas contemporâneas. Esse segundo momento da tese se debruça sobre o tema da pertinência do conceito de direito natural espinosano para o direito contemporâneo, bem como analisa a importância dos conceitos do autor para dar potência a uma das vertentes do direito crítico. Palavras-chave: afetos; direito natural; política; Espinosa; direito crítico.

ABSTRACT Luiz Carlos Montans Braga Politic’s affective design: a reading of Spinoza’s philosophy The research started from the relationship among affects, politics and right in Spinoza’s philosophy. Indeed, the Ethics Part III is the place where all affects are taken as specific topic. However, the affect subject also appears, in a more or less explicit way, in the exclusively political texts of the author, namely the Theological-Political Treatise and the Political Treatise, in addition to being quickly presented in argumentative moments of the Ethics Part IV, in which the issue of civitas is posed. Another aspect is the presence of the concept of power in the very definition of the concept of affect, in the Ethics Part III, thus closing the circle where the three concepts are presented, because Spinoza identifies right to power (jus sive potentia). The initial hypothesis referred to the existence of ties and intersections between such concepts, which was later confirmed by the detailed reading of Spinoza’s texts, as well as of some of his commentators’ that have worked on the topics presented in the initial issue. The hard core of the dissertation tries to approach this conceptual relationship, explaining it by analyzing the author’s texts, namely Ethics, the Theological-Political Treatise and the Political Treatise. In this argumentative proposition, the main thesis I try to defend is that Spinoza creates a political philosophy founded in the theory of affects. From this assumption, a second formulation comes up (but not a second thesis) over the pertinence of Spinoza’s concepts for the contemporary emancipatory right. So, the path followed throughout the research has had two approaches, one far more finished and derived from the initial project, which makes an effort to solve the issue hereby posed, and another one more characterized by notes, bringing Spinoza’s concept to the analysis of contemporary legal issues. This second moment of the dissertation looks into the pertinence of Spinoza’s natural right concept for the contemporary right, besides analyzing the importance of the author’s concepts to lend potency to one of the aspects of critical legal studies. Key-words: affects; natural right; politics; Spinoza; critical legal studies.

"SPINOZA Baruch Spinoza escapa de nascer em Portugal. Traz o selo da raça alegórica, predestinada, perseguida. (A diáspora é uma figura da família humana desviando-se do Criador). Teólogo livre, aprofunda o território da pesquisa racional, designa os atributos conhecidos de Deus: pensamento e extensão. Constrói todo um sistema em formas geométricas. Nasceu para observar o exterior e o íntimo dos corpos: fixado em Amsterdam aperfeiçoa a lente, que já agora corresponderá ao valor significante do espelho na pintura holandesa e flamenga. O homem do pormenor adere ao cosmo. Sim: contemporâneo de Rembrandt, Vermeer e Pieter de Hooch, está para a filosofia como eles para a pintura. * 'Os espíritos e os corpos de todos compõem por assim dizer um só espírito e um só corpo.' * 'O desejo é a essência mesma do homem, o esforço pelo qual o homem tende a perseverar no próprio ser.' * 'O supremo orgulho ou a suprema depreciação de si (abjectio) constituem a suprema ignorância de si.' B.S."

Murilo Mendes1

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MENDES, Murilo. Retratos Relâmpago. 1ª Série. Roma 1965/66. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura/Imprensa Oficial. 1973, p. 20. Agradeço a Antonio José Romera Valverde por me apresentar este livro do poeta mineiro.

Sumário OBRAS DE ESPINOSA .............................................................................................. 10 OBRAS DE OUTROS AUTORES ................................................................................. 12 I. INTRODUÇÃO ou RETIRAR O VÉU: LER A POLÍTICA PELOS AFETOS ........................ 14 CAPÍTULO 1 - TEORIA DOS AFETOS .......................................................................... 20 (a) Notas sobre a tradição: afetos e política .................................................................. 23 (b) A anomalia espinosana ............................................................................................. 28 (c) Da ontologia aos afetos ............................................................................................. 32 c.1 Substância sive natura .............................................................................................. 32 c.2 Mundo dos homens e afetos .................................................................................... 42 (d) O conceito de conatus e os afetos primários: desejo, alegria, tristeza .................... 47 d.1 Os afetos na ontologia .............................................................................................. 47 d.2 O conatus: considerações iniciais ............................................................................. 51 d.3 Desejo, alegria, tristeza ............................................................................................ 58 d.4 Derivações do desejo: uma nota sobre a presença do ausente e os conceitos de amor e ódio..................................................................................................................... 64 (e) Medo e esperança, segurança e desespero .............................................................. 70 (f) Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política ............................... 76 (g) Mimetismo afetivo .................................................................................................... 82 (h) Não há tantos nomes: os vocábulos e os afetos ....................................................... 88 (i) Agir, padecer: conhecimento, afetos, propriedades comuns .................................... 92 CAPÍTULO 2 - DIREITO, AFETOS E CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA .................................. 104 (a) Direito natural e afetos: aproximações ................................................................... 104 (b) Socialidade, cidade: o papel dos afetos metus, spes, desperatio e securitas ......... 119 (c) Imitação dos afetos, multitudo, imperium, cidade ................................................. 134 8

c.1 Formar blocos de mentes ....................................................................................... 134 c.2 Como num jogo de espelhos: a multitudo .............................................................. 136 c.3 Multitudo e imperium: questão de potência .......................................................... 149 c.4 Gêneros do estado civil e distribuição da potência ................................................ 153 (d) Limites do soberano e o direito de resistir: há coisas que a cidade deve temer ... 161 (e) A política e seu avesso: paz como fortaleza de ânimo versus paz como ausência de guerra ........................................................................................................................... 166 CAPÍTULO 3 - A ALTA VOLTAGEM POLÍTICA DO DIREITO NATURAL ou ESPINOSA CONTRA AS VIOLÊNCIAS TRAVESTIDAS DE DIREITO ............................................... 176 (a) Direito natural: uma concepção enfraquecida ....................................................... 176 (b) Ontologia e direito: o direito como potência ......................................................... 181 (c) Direito e afetos ........................................................................................................ 182 (d) O corpo político, os afetos e a garantia da potência do direito natural ................. 187 (e) Nem toda lei é direito ou O exercício do direito natural de cada homem como termômetro da qualidade do direito civil .................................................................... 191 CAPÍTULO 4 - ESPINOSA E O DIREITO CRÍTICO ou DA ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO ............................................................................................................................ 194 (a) Constatações do direito crítico acerca do direito contemporâneo ........................ 194 (b) A cidade, o direito civil e o poder do súdito-cidadão ............................................. 201 (c) Espinosa e as análises do direito crítico .................................................................. 203 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 209 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 215 (a) Referências primárias .............................................................................................. 215 a.1 Obras de Espinosa................................................................................................... 215 a.2 Obras de outros autores ......................................................................................... 217 (b) Referências de comentadores e outras fontes não primárias ................................ 218

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ABREVIATURAS

OBRAS DE ESPINOSA

As traduções consultadas estão nas referências bibliográficas, ao final. G As obras de Espinosa que serão mencionadas se encontram na edição crítica de Carl Gebhardt, citada nas referências bibliográficas (Spinoza Opera). Quando citada a edição de Gebhardt, citar-se-á: G, seguido do tomo em romano e da página em arábico. Exemplo: G II p. 90. As traduções utilizadas foram, quando citadas, confrontadas com o texto de Gebhardt e cotejadas entre si nos momentos de grande diferença nas traduções dos termos. As traduções utilizadas serão indicadas da forma descrita abaixo. Quando outra tradução, que não a indicada abaixo, for utilizada, isto será apontado no corpo do texto da tese.

E Para a Ética, usar-se-á a seguinte abreviação: para a Ética E, seguido da parte em romano, Pref para Prefácio, D para definições, Def af para definição dos afetos, A para axiomas, Dem para demonstrações, P para proposições, Cor para corolários, Ap para apêndices, L para lemas, Esc para escólios, Post para postulados, Explic para explicações. Um numeral arábico indicará o número de cada um desses itens. A página é a da tradução de Tomaz Tadeu, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: E II P7 Esc p. 87.

TP Para o Tratado político: abreviação TP. Numeral romano indica o capítulo e numeral arábico indica o parágrafo. A página é a da tradução de Diogo Pires Aurélio, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: TP II 1 p. 11.

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TTP Para o Tratado Teológico-político: abreviação TTP. Numeral romano indica o capítulo. A página é a da tradução de Diogo Pires Aurélio, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: TTP XVI p. 236 .

BT/KV Para o Breve Tratado, abreviação BT. Numeração romana das partes, arábica dos capítulos e, depois de vírgula, arábica para os parágrafos. A página é a da tradução de Emmanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: BV II 1 p. 54.

TIE Para o Tratado da Emenda do Intelecto [Tratado da Reforma da Inteligência]: abreviação TIE. Numeral arábico indica o parágrafo. A página é a da tradução de Lívio Teixeira, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: TIE 3 p. 6.

PPC Para os Princípios da Filosofia de Descartes, Partes I, II e III, demonstradas de maneira geométrica. Mesma indicação da Ética, com paginação de Atilano Domínguez, edição indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: PPC P 3 p. 148.

CM Para os Pensamentos Metafísicos, Numeração romana das partes, árabe dos capítulos. A página é a da tradução de Marilena Chaui, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: CM I 2 p. 12.

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Ep Para a Correspondência, em arábico o número da Carta. A página é a da tradução de Atilano Dominguez, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: Ep 23 p. 209.

OBRAS DE OUTROS AUTORES

A República Para A República, citação pela numeração universal. A tradução utilizada é a de Maria Helena da Rocha Pereira, cotejada com a edição da Coleção Os Pensadores, ambas indicadas na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: A República, 444B.

Ética a Nicômaco Para a Ética a Nicômaco, citação pela numeração universal. A tradução utilizada é a de J.A.K. Thomson (Penguin Classics), indicada na Referência bibliográfica, ao final, cotejada com a tradução da Coleção Os Pensadores, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: Ética a Nicômaco, 1140b 3.

Metafísica Para a Metafísica, citação pela numeração universal, como no exemplo acima. A tradução utilizada é a de Antonio Russo, indicada na Referência bibliográfica, ao final, cotejada com a tradução brasileira da Loyola, indicada na Referência bibliográfica, ao final.

O príncipe Para O príncipe, citação do capítulo em romanos e da página pela tradução da edição bilíngue de José Antônio Martins, indicada na Referência bibliográfica, ao final. Exemplo: O príncipe XV p. 151. 12

Meditações, Correspondência, As Paixões da Alma Para estas obras, e outras de Descartes, Edição de Adam et Tannery, indicada na Referência bibliográfica, ao final, que foi consultada para cotejamento. Cito a partir da tradução do volume da coleção Os Pensadores, indicado ao final, dedicado a Descartes. Exemplo: DESCARTES. Meditações. pp. 300-302. Demais obras do autor: em nota de rodapé, com a página da coleção Os Pensadores, exceto quando a nota indicar outra edição.

Leviatã, Do Cidadão, Elementos Para estas obras, The English Works of Thomas Hobbes. Edição de W. Molesworth, indicada na Referência Bibliográfica, ao final. Utilizei também, para fins de cotejamento de passagens, no que se refere ao Leviatã, as edições de Gaskin (Oxford University Press) e de R. Tuck (Cambridge University Press), indicadas na Referência Bibliográfica, ao final. No que se refere ao Leviatã, Parte em Romano e capítulo em Arábico (da edição de Os Pensadores). Para Do Cidadão, capítulo em Romano, parágrafo em arábico, da edição de Howard Warrender, citada na Referência Bibliográfica, ao final. Para Os Elementos da Lei Natural e Política, Parte em Romano, capítulo em Romano, parágrafo em arábico, ed. da Ícone editora, com tradução de Fernando Dias Andrade, citada na Referência Bibliográfica, ao final. Exemplo: Leviatã I 6 p. 63. Do Cidadão I 2 p. 42. Elementos I VII 2 p. 48.

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I. INTRODUÇÃO ou RETIRAR O VÉU: LER A POLÍTICA PELOS AFETOS

Alfredo Bosi, em resposta à pergunta de um entrevistador acerca de quanto tempo teria sido necessário para escrever sua longa introdução ao volume de uma coleção, dedicado ao Padre Antônio Vieira, manifestou-se em dois lances. Afirmou que para redigir o texto teria trabalhado uns seis meses, mas para escrever, teria levado a vida interia2. A boutade, noves fora ser Alfredo Bosi um dos clássicos da crítica literária nacional, pode ser trazida, por analogia, a este trabalho. De fato, a redação da tese talvez tenha sido trabalho de ano e meio. Entretanto, os estudos e leituras que levaram ao resultado é fruto de muitos anos mais. O ponto inicial é certo. Um curso ministrado por Marilena Chaui no segundo semestre de 1998, na FFLCH USP, cujo tema - 'Uma leitura do Tratado Teológico-político' - localizava a obra na história e trabalhava alguns de seus conceitos, em leitura estrutural do Prefácio e do capítulo XX. Nesta ocasião, analisou-se, entre outros temas, a questão da superstição e da liberdade política. Frequentei, após este, outros cursos sobre Espinosa durante a graduação em filosofia. Os conceitos espinosanos vêm sendo, assim, trabalhados desde então, em maior ou menor intensidade. No mestrado, realizado na Faculdade de Direito da USP e defendido em setembro de 2004, no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, sob orientação da professora Doutora Lídia Reis de Almeida Prado, trabalhei o tema da democracia em Espinosa e sua relação com os conceitos de ontologia e liberdade política. Sete anos depois voltei a Espinosa para preparar um projeto de doutoramento tratando de outros temas no mesmo autor - projeto este que foi primeiramente apresentado na PUC SP, e lá aprovado, e depois no Grupo de Estudos Espinosanos, e lá debatido. O desdobramento do projeto é a presente tese. Este percurso me permite afirmar que as leituras realizadas e os cursos frequentados, com alguns até longos períodos de afastamento, remontam a 1998, ainda que a escrita do texto tenha consumido ano e meio.

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WERNECK, Paulo. O código Vieira. In: Jornal Folha de São Paulo. Ilustríssima. São Paulo, 09 de OUT de 2011. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2011/10/987795-o-codigo-vieira.shtml. Acesso em 09 ABR 2015. 14

Espinosa é um mundo, um oceano conceitual. A fortuna crítica do autor - sobretudo as leituras recentes de suas teses políticas - o atesta. O presente trabalho está na mesma linha, bem como é tributário - em larga medida - das leituras dos últimos quarenta ou cinquenta anos3 de dedicação dos comentadores. Graças ao fino trabalho de grandes historiadores da filosofia sobre os temas da política, dos afetos e do direito em Espinosa, houve renovação de leituras e uma exponenciação da potência das teses do autor. Procurei seguir muitos desses caminhos abertos pelos recentes - por volta de cinquenta anos - estudos para elaborar a tese. É certo que muito do que foi produzido neste período ficou de fora. A fortuna crítica acerca de Espinosa já ocupa muitas prateleiras dedicadas à filosofia e a áreas afins. Procurei seguir o que me foi possível ler e fichar, nessa grande fortuna crítica, acerca do tema proposto no projeto inicial. Espero que o resultado tenha sido bem construído, sendo possível, assim, quitar, em face dos comentadores em que me apoiei, bem como dos professores cujos cursos frequentei, ao menos parte infinitesimal de uma fatura de valor acima de qualquer cálculo. *** A principal tese que procuro defender neste trabalho é a de que Espinosa constrói uma filosofia política fundada na teoria dos afetos. Decorre desta tese uma elaboração (não uma segunda tese), isto é, um conjunto razoavelmente articulado de notas, acerca do tema da pertinência das teses espinosanas para o direito emancipatório e para o direito contemporâneo. Assim, o caminho percorrido em todo o trabalho tem dois movimentos, um mais bem acabado e outro mais caracterizado por apontamentos, cada qual com dois capítulos. No primeiro movimento se expõe o núcleo duro da tese, seu escopo principal. No segundo se articulam as notas acerca do tema da intersecção entre os conceitos espinosanos e o direito emancipatório dos tempos atuais. Aos movimentos. O primeiro é uma elaboração de clivagem ligada à história da filosofia. Os temas são tratados no interior da tradição de análise dos textos 3

A título de exemplo desta nova fortuna crítica, a primeira edição do clássico livro de A. Matheron é de 1969 (MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988 [que é uma reimpressão do texto de 1969 - Ibid. p. I]). 15

do autor que tenham ligação com o problema, hipótese e temas da tese. Este movimento argumentativo abrange os capítulos 1 e 2. É um movimento mais longo porque resultado direto da análise do problema e da hipótese da tese pelo veio da história da filosofia. O problema, a saber, se há relação entre afetos e política em Espinosa - e se tal relação tem laços com as elaborações sobre o direito no autor. A hipótese, a saber, a de que há tal vínculo, e que foi confirmada pela leitura dos textos do autor e de comentadores. A tese, portanto, confirmou a hipótese principal do projeto e os capítulos deste primeiro movimento procuram tratar desses temas, os quais são o núcleo duro da tese. O segundo movimento é mais ensaístico, isto é, mais desvinculado da tradição de leitura de textos da história da filosofia, ainda que tal movimento seja, como ficará claro, dela tributário. Por esta razão posso reiterar que os dois últimos capítulos (3 e 4) são mais apontamentos que construções acabadas. De fato, neste segundo movimento da tese procuro mostrar como o conceito de direito natural espinosano tem enorme pertinência para as discussões acerca do direito compreendido como instância emancipatória (capítulo 3). No último capítulo especialmente (capítulo 4), dentro da chave mais geral, acima apontada, intento analisar como as teses espinosanas, incluso o conceito de direito natural do autor, podem se somar a uma visão crítica do direito - de um dos autores que, a meu ver, melhor elabora o que chamo de direito crítico. Por serem apontamentos em vez de construções acabadas, tais capítulos finais são mais curtos e mais projetivos, ainda que derivados dos temas trabalhados no primeiro movimento, que abrange os capítulos 1 e 2. Após o pano de fundo acima esboçado, a saber, o da existência de dois grandes movimentos no texto da tese, cada qual composto por dois capítulos, passo a seguir a uma análise mais detalhada dos temas de cada capítulo. O capítulo 1, cujo tema e título é Teoria dos Afetos, procura mostrar como Espinosa elabora sua costura teórica sobre a questão dos afetos no interior das teses ontológicas. O capítulo procura explorar, a partir do item (c), o conceito de substância, para no interior deste conceito explicitar o lugar dos afetos. O tema do

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esforço para perseverar no ser (conatus), ligado tanto aos afetos quanto ao conceito de substância, também se apresenta neste capítulo. Os afetos primários - desejo, alegria, tristeza -, bem como alguns dos afetos fundantes da política segundo o autor medo e esperança, segurança e desespero - têm lugar no capítulo 1. Procuro articulálos tanto ao conceito de substância quanto ao tema da política. Também trato nesse capítulo de um importante afeto para a política, a saber, a indignação, já apontando no item (f) a relevância deste afeto para as questões ligadas à cidade e à política. O conceito de mimetismo afetivo, importante posteriormente para a explicação do funcionamento da multitudo, é tratado já no capítulo 1, que é finalizado com mais dois itens. No item (h), o tema da ontologia dos afetos e sua relação com os nomes que a eles são dados é analisado. No item (i), trato dos temas do agir e do padecer segundo os conceitos espinosanos. Neste último item procuro mostrar como se articulam os temas do conhecimento, dos afetos e das propriedades comuns das coisas. Para preparar o terreno dos itens (c) a (i) do capítulo 1, trago à discussão, em breves considerações, no item (a), a questão da relação entre afetos e política na tradição para, logo a seguir, no item (b), introduzir Espinosa como autor inovador não por trazer esta questão à história da filosofia, mas por dar a ela novas cores conceituais. O objetivo do capítulo 1 é, pois, o de assentar as bases para a discussão nuclear da tese, a saber, a da relação entre afetos, direito e política em Espinosa, este mais diretamente o tema do capítulo 2. O capítulo 2 se inicia com a tese de que o conceito de direito natural ecoa no conceito de afetos. Isto é, tais campos se interseccionam na filosofia política de Espinosa. Após, no item (b), mostro como os pares afetivos medo-esperança e segurança-desespero são usados por Espinosa para a elaboração do conceito de socialidade e de civitas. O item (c) aborda a questão da imitação afetiva e sua importância para a elaboração dos conceitos de multidão, imperium e cidade. O item c.4 aborda a clássica questão dos gêneros de estado civil pela chave espinosana, mostrando como, para o autor, importa, ao tratar dos gêneros de estado civil, o conceito de potência. O item (d) trata dos limites do poder soberano e das coisas que a

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cidade deve temer para que continue a possuir natureza de cidade. Por fim, o item (e) trata da importante questão da diferença entre paz como fortaleza de ânimo e paz como ausência de guerra, explicitando o salto espinosano em face da tradição do medo na política, cujo exemplar mais límpido é, a meu ver, Hobbes. Já no segundo movimento da tese, aquele referido como mais ensaístico, dois temas são abordados. No capítulo 3, trato da questão, a partir dos conceitos do autor elaborados nos capítulos 1 e 2, da pertinência do conceito de direito natural espinosano para o tema do direito travestido de violência. Contrariando, em parte, pois, uma tradição interpretativa que vê a perda de funcionalidade das doutrinas de direito natural, procuro mostrar como a chave conceitual espinosana não apenas destoa das tradições metafísicas do direito natural, como tem valor inestimável para as abordagens críticas do direito contemporâneo. Em uma palavra, o conceito de direito natural espinosano se revela bastante pertinente para as discussões contemporâneas acerca do direito como instância emancipatória. O último capítulo está na mesma chave de apontamentos para projetos de pesquisa futuros e no mesmo rol de questões do capítulo 3. O que o diferencia, entretanto, do capítulo que o antecede, é o fato de procurar explicitar como os conceitos espinosanos podem ser úteis às abordagens do direito crítico. São muitas as linhagens do direito crítico, e fazer um mapa desta vasta geografia seria um trabalho à parte. Optou-se por mostrar a abordagem de um representante contemporâneo desta tradição e somar a esta contribuição os conceitos espinosanos. Trata-se de um diálogo, em forma de apontamentos - pois me falta, neste momento, repertório para uma concatenação conceitual mais profunda -, entre os conceitos espinosanos e uma vertente do direito crítico que funda suas análises especialmente na sociologia jurídica. Penso que as teses espinosanas sobre a filosofia política são, para usar um termo contemporâneo, contraideológicas. Com efeito, elas permitem, como procuro mostrar nas linhas a seguir, uma leitura da política e do jurídico a ser feita consoante a teoria dos afetos. Tal tarefa, penso, permite retirar o véu que encobriu e encobre alguns temas da filosofia política.

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Passo, a seguir, ao desdobramento do mapa acima desenhado.

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CAPÍTULO 1 - TEORIA DOS AFETOS

[...] o homem frequentemente julga as coisas apenas por seu afeto (quod homo saepe ex solo affectu de rebus iudicat) [...] Espinosa (E III P 51 Esc p. 221)

Espinosa rende homenagem ao seu século - ao qual Merleau-Ponty se referiu como sendo o do grande racionalismo4 - ao escrever uma Ética ordine geometrico demonstrata (G II p.43), ou seja, demonstrada à maneira dos geômetras ou de acordo com a ordem geométrica. Também o faz ao escrever no Político que, ao aplicar seus esforços sobre o tema da política, nunca pretendeu demonstrar por razões certas, ou deduzir da condição da natureza humana nada diverso do que já estaria de acordo com a prática (TP I 4 pp.7-8). Demonstrar, razões certas, deduzir. O vocabulário do Político também faz das teses espinosanas exemplos claros do século do grande racionalismo. Mas a sutileza espinosana está em, pelo método da geometria, explicitar uma natureza humana de ponta a ponta afetiva. E, por esta razão, mostrar (pela experiência) e demonstrar (pela geometria) que "[...] fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro [...]." (E III P 59 Esc p. 237) ou, ainda, que "[...] é raro que os homens vivam sob a conduta da razão." (E IV P 35 Esc p. 303). Com o auxílio da geometria, Espinosa, na Ética III, ao tratar do tema da 'origem e natureza dos afetos', aponta para a conduta dos homens como sendo em geral fundada nos afetos, e não na razão. O racionalismo do método geométrico demonstra, entre outras teses, que a lógica dos afetos é que dá o tom de cada ato humano. É preciso, portanto, melhor focar a tese do racionalismo absoluto da filosofia espinosana no sentido de lhe dar os contornos precisos. E, sobretudo, extrair desta tese, no que tange ao mundo dos homens, o que há de mais frequente em se tratando da conduta humana - homens movidos por afetos -, bem como, no que se refere à política, as razões da sua construção. Racionalismo absoluto não implica, nem é sinônimo, de racionalidade absoluta. Ou seja, o que se deve entender pelo termo, 4

MERLEAU-PONTY, Maurice. Partout et nulle part. In: Éloge de la philosophie et autres essais. Paris: Gallimard, 1960, pp. 170-240. 20

em seu sentido exato, é que na substância há racionalismo de ponta a ponta, mas no sentido da existência de leis necessárias como fundamento de tudo o que ocorre (E I P 33 p. 57). Há, em suma, necessitarismo ou causalidade necessária do real em operação. Por outras palavras, para que não haja equívoco quanto à hipótese que aqui levanto: é fora de dúvida que Espinosa demonstra suas teses pelo método geométrico, sobretudo na Ética, e que conduz o leitor entre as teses expostas por meio desse método. Mas é preciso levar ao limite, para se entender a operação mesma da conduta ética e da construção da política, a tese de que há uma filosofia prática5 no interior do racionalismo espinosano. Aliás, penso, somente assim as teses éticas e políticas do autor tomam o devido relevo6; são, por assim dizer, postas sob os holofotes. Por outra, trata-se de afirmar, sem rodeios (pois é o autor mesmo que o faz), como explícito nas passagens acima citadas, que usar um método geométrico e elaborar uma filosofia racionalista não implica que os homens sejam necessariamente racionais em todos os seus atos e que seus comportamentos sejam a decorrência do uso da razão a todo tempo e em todos os lugares. Ainda desdobrando a hipótese: o real opera por leis necessárias, mas há aí uma experiência vivida7, no que tange aos homens, a ser levada em conta. Fazendo uma suma do argumento: usar o método irrefutável da geometria não implica definir os homens, bem como suas relações com as coisas do mundo e com seus iguais, como estritamente racionais. São necessárias as coisas, operam por necessidade absoluta, é certo, no sentido de que têm causas e tais causas são a atuação mesma da substância em sua autoprodução do real. Mas isso não é o mesmo que dizer que todas as ações - em especial as humanas - são racionais ou expressão da racionalidade. Poder-se-ia até dizer, num sentido diverso, que a política, 5

Retiro o termo de: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981. Sobre a questão da filosofia prática espinosana, porém em outro texto, ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Para Deleuze, há sempre um apelo à experiência vivida, o que independe do método geométrico (p. 48). Cito a seguinte passagem para mostrar o que foi afirmado: "Num afeto de alegria então, o corpo que nos afeta é indicado como compondo sua relação com o nosso e não sua relação decompondo a nossa. Desde então, alguma coisa nos induz a formar a noção do que é comum ao corpo que nos afeta e ao nosso, à alma que nos afeta e à nossa. Nesse sentido a alegria nos torna inteligente. Aqui nós sentimos que há uma coisa estranha [c’est un drôle de truc] porque, método geométrico ou não, tudo concorda, ele pode demonstrá-lo, mas há um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver." (p. 48). 7 Ibid. Penso em experiência vivida no sentido em que Deleuze interpreta Espinosa. Um exemplo é a citação na nota acima. 6

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por se dar no campo imaginativo, como mostrarei, demandará a lógica dos afetos para ser compreendida. E a lógica dos afetos, ainda que possa se manifestar por meio dos afetos ativos, como ações, é frequentemente operação dos afetos passivos, ou seja, paixões, sejam estas alegres ou tristes. Supondo a filosofia espinosana como um grande quadro, um mapa ou uma tela, minha hipótese é a de que se iluminou em demasia um lado, o que fez que o outro, o qual compõe a mesma tela, fosse deixado em plano secundário. Ao menos do ponto de vista da dedicação dos comentadores, ao longo da história da filosofia, deu-se mais atenção às teses ontológicas e racionalistas de Espinosa e menos às teses políticas. E, outro ponto, a ligação, analisada por comentadores, entre as teses ontológicas e políticas de Espinosa é fato de algumas décadas de idade. Ora, não se pode esquecer que Espinosa, o filósofo do racionalismo absoluto, escreveu uma Ética, um Tratado Teológico-político e um Tratado político, para ficar em três obras maiores que tratam diretamente do campo da conduta. A área do mapa que recebeu demasiada luz é a do Espinosa do grande racionalismo ou do racionalismo absoluto 8. É certo que há o real operando por estrita necessidade, como Espinosa afirma na Ética (E I P 33 p. 57). Mas é certo, igualmente, que a experiência dos homens na finitude instaura, para eles, como vivência ou experiência

mental-imaginativa9, a

contingência10. E isso importa quando se trata da conduta ética ou da construção da política. Espinosa filósofo do racionalismo absoluto11 ou Espinosa filósofo das paixões12? Ambos. A tela - ou o mapa - da substância, por assim dizer, é a mesma. Mas 8

Charles Ramond diz que é com razão - com o quê concordo - que Espinosa é compreendido como sendo autor de uma filosofia do racionalismo absoluto. E isso não implica, afirma o comentador, a impossibilidade de teses acerca dos afetos, da política, etc.. Ver: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 50. 9 Ou seja, para usar um termo anacrônico, pois Espinosa não o utiliza, a experiência psíquica dos homens, muito frequentemente, é a da contingência, é a da ordem da imaginação. 10 Ver, sobre o tema: CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 133-172. A autora afirma que há, de um lado, a ordem necessária da natureza e, de outro, no plano da experiência dos homens, a ordem comum da natureza. Esta: “[...] corresponde à experiência imediata dos acontecimentos e nela as coisas acontecem por encontros fortuitos, casuais e imprevisíveis.” E conclui: “Assim, embora a realidade seja constituída por uma ordem intrinsecamente necessária, nossa experiência não a percebe como tal e se realiza numa ordem imaginária em que prevalece a contingência de tudo o que é e de tudo o que acontece.” p. 152. 11 Ver, sobre o tema: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 50. 12 Ver, para a defesa da tese de Espinosa como filósofo das paixões, um agudo livro que trata do tema: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998. Também aponta 22

a presente tese trabalhará o lado menos iluminado da cartografia espinosana. Ressaltará a hipótese do filósofo das paixões e da construção imaginativa e afetiva da política, o que não exclui, como procurarei mostrar, a tese da substância operando por estrita necessidade (E I P 33 p. 57) em simultaneidade à política surgindo como campo imaginativo ou construção afetiva.

(a) Notas sobre a tradição: afetos e política A relação entre política e paixões13 não é nova na história da filosofia. Ao menos desde Platão, passando por Aristóteles (e percorrendo todo o platonismo e o aristotelismo difusos), esta relação se apresenta como um problema a ser investigado pelo filósofo14. Platão escreve sobre a necessidade do controle das paixões que atravessam a cidade e sobre a importância de ordená-la de acordo com a Justiça. Em A República, Livro IV, afirma que a injustiça (também na cidade) é "[...] uma sedição dos [três] elementos da alma, uma confusão, uma usurpação das suas respectivas tarefas [...] Ora, são essas alterações, essas perturbações e desvios que resultam na injustiça, na libertinagem [intemperança], na covardia, na ignorância e, de um modo geral, em toda a maldade [em todos os vícios]15(444b)". Ou seja, as paixões resultantes do desequilíbrio entre os elementos da alma são apresentadas por Platão como sendo o equivalente a "todos os vícios". Para completar o amálgama entre os termos paixões e política - e tratando também do conhecimento e das virtudes -, Platão apresenta a famosa tese do final do Livro VII de A República (540 a-b). Tal tese estabelece que o governante da cidade é aquele que, depois de ter conhecido o bem-em-si - no mundo das Formas, após os difíceis exercícios da dialética -, o usará como padrão para bem para o tema: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 95 e seguintes. No mesmo sentido: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l'expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 171 e seguintes; p. 247. Há outros autores e textos que serão citados no decorrer da tese. 13 Espinosa estabelece uma importante diferença entre afetos passivos (paixões) e afetos ativos (ações), questão que será trabalhada oportunamente. Neste momento importa tratar da questão mais ampla da relação entre paixões e política. 14 Sigo, para este parágrafo e outros pontos abaixo desenvolvidos, os argumentos de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. 15 Cotejou-se a edição portuguesa, da Calouste Gulbenkian, com a tradução presente na Coleção Os Pensadores. 23

ordenar a cidade. Mais precisamente, como fica claro na passagem de 540d-541a de A República, o governante que teve acesso à Ideia de Justiça ordenará a cidade de acordo com os parâmetros da Forma da Justiça. Sendo, pois, a injustiça a perturbação que resulta em vícios, a virtude dos cidadãos na Polis demandará um saber sobre o bem ordenar, o qual apenas estará presente no filósofo-governante, aquele que teve acesso à Ideia de Justiça e de acordo com ela poderá governar virtuosamente, dissipando os vícios da cidade. Ou seja, equilibrando-a. O platonismo difunde esta tese. Assim, tanto nos textos Platônicos (A República, 444b, 540a - 541a, entre outros), quanto no platonismo que se capilarizou, a tese é a da necessidade de um governante detentor do saber preciso acerca da política, cujo intuito é o de controlar os vícios que atravessam a Polis. O dirigente deve ser o conhecedor da Ideia de Justiça para poder ser o mais virtuoso dentre todos os cidadãos - e coibir os vícios dos demais e da cidade como um todo16. Por conhecer a Ideia de justo, é capaz de ser o governante-filósofo, o dirigente virtuoso, aquele que poderá combater "todos os vícios" da cidade (A República, 444b). Aristóteles, em chave diversa da platônica, tematiza a questão das paixões e da política. Considera a prudência17 como a virtude adequada ao homem público. De fato, é a marca por excelência do homem prudente ser capaz de deliberar corretamente acerca do que é bom e vantajoso para a vida boa em geral (Ética a Nicômaco 1140 a 25-28). Aristóteles afirma que esta é a virtude do homem público ao afirmar que "[...] então, nós pensamos que Péricles e outros como ele são prudentes, porque eles são capazes de visar ao que é bom para eles mesmos e para os homens em geral. [...] nós consideramos que esta qualidade pertence àqueles que entendem sobre administrar a casa e o Estado (Polis)." (Ética a Nicômaco 1140 b 01-12). E conclui, seguindo este raciocínio, que tal virtude é chamada temperança (sophrosine), pois preserva a sabedoria. Esse juízo que envolve a prudência, diz Aristóteles, somente 16

Tal interpretação dos textos de Platão está na mesma linha de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. 17 Phronesis, sabedoria prática, bom senso prático. Para um belo ensaio sobre o tema da prudência em Aristóteles, ver: PERINE, Marcelo. Phronesis: um conceito inoportuno? In: PERINE, Marcelo. Quatro Lições sobre a Ética de Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2006, pp. 17-49. Não pretendo, evidentemente, em poucas linhas, dar conta de tema tão complexo, para o qual há bibliotecas. O objetivo é poder mostrar por contraste as inovações espinosanas. 24

pode ser realizado sobre certas coisas que têm as características do mundo prático. Ou seja, não são julgamentos sobre objetos da matemática, nem sobre o que é necessário - o que não muda ou não pode ser de outro modo. São julgamentos, pois, sobre o que está no campo do possível. Aristóteles afirma, ainda sobre este tema, que os primeiros princípios das atividades que praticamos estão na finalidade a que tais ações visam. No entanto, as pessoas que estão corrompidas pelo prazer ou pelo sofrimento fracassam ao tentar discernir sobre esses princípios. O prazer ou o sofrimento, afirma, destroem a arché18 (Ética a Nicômaco, 1140 b 15-20). Aristóteles - bem como o aristotelismo difuso - defende a tese de que não há uma ciência teorética da política. Por ser a política uma ciência prática, que tem em seu cerne a escolha entre possíveis, demanda um dirigente capaz de prudência para controlar a fortuna19. O que age com prudência, esta virtude do mundo prático, da decisão sobre o que não está no campo do necessário, será capaz, também no campo político, de controlar todos os vícios. No estoicismo romano, no qual estas tradições se consolidam, a tese é a de que o escritor político deve iniciar tratando das virtudes do governante e dos súditos. Uma vez que a política visa à instituição do bem comum, demanda cidadãos dotados de virtude e dirigentes dotados de prudência. Quanto a estes últimos, além da prudência, é certo que devem possuir as virtudes da justiça, liberalidade, magnanimidade, etc.20. O tema paixões e política, se visto num relance panorâmico, tem sua construção teórica em Platão, a fundação de uma nova tradição com Aristóteles, uma 18

Para Hugh Tredennick, autor das notas de uma das edições consultadas (ARISTOTLE. The Nicomachean Ethics. New York: Penguin Books, [1976]2004.p. 151, nota 2), "arché [...] significa não apenas origem, etc., mas também regra ou autoridade, e Aristóteles parece ter isso em mente: o vício é um tipo de anarquia, como disse Platão (A República, 444b)". A tradução é minha, bem como dos excertos da Ética a Nicômaco citados. Tradução a partir da edição em inglês (citada acima) cotejada com a edição da Coleção Os Pensadores, indicada nas Referências Bibliográficas. A passagem da Ética a Nicômaco acima referida (1140 b 15-20) é a seguinte: "Com efeito, a causa originária de uma ação consiste no fim visado pela ação; porém, uma pessoa que é corrompida pelo prazer ou pela dor perde imediatamente de vista essa causa: ou seja, não percebe mais que é devido a tal coisa que deve escolher aquilo que escolhe e faz; porque o vício tende a destruir a causa originadora da ação." 19 CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 154. 20 Ibid. p. 154. Para a fonte estoica, ver Cícero, De Officiis, LV. I, parágrafo XXI (CÍCERO. De Officcis. Buenos Aires: Austral, 1946, pp. 86-87. Apud CHAUI, Marilena. Ibid. p. 325, nota 56). 25

apropriação pelo estoicismo e, à frente, estará presente na tradição dos espelhos dos príncipes.21 A questão da relação entre paixões e política, portanto, é problema filosófico que já se apresentava aos primeiros pensadores da história da filosofia e avança pelos séculos. Descartes, no dezessete, escreve sobre do tema. Dedica-lhe um Tratado (Les passions de l'âme)22. Hobbes, no mesmo século, não o despreza. Ao invés, dá-lhe lugar privilegiado em sua filosofia política. Num capítulo chave do Leviatã, o de número XIII, no qual se define a condição natural da humanidade, Hobbes afirma: É pois esta a miserável condição em que o homem realmente se encontra, por obra da simples natureza. Embora com uma possibilidade de escapar a ela, que em parte reside nas paixões, e em parte em sua razão. As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho [industry]. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo. (Leviatã, I, 13, p. 111).

A condição natural dos homens, para Hobbes miserável e bruta, os apresenta portadores de três paixões que podem os alavancar à paz. Como afirma o excerto, o medo da morte, o desejo de coisas que levam a uma vida confortável, e a esperança de fazê-lo pelo trabalho (industry). Portanto, são estas as paixões que podem levar o homem da miséria à paz. Mas não apenas por elas mesmas. A razão,

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Para o tema em Platão, Aristóteles e sua apropriação por Cícero, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 153-154. Para um estudo do tema do "espelho dos príncipes", bem como sua apropriação por Maquiavel numa chave diversa daquela da tradição até então construída, ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro (capítulo 1 a 11) e Laura Teixeira Motta (capítulo 12 em diante). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 139- 149. Para Skinner Maquiavel estaria na chave dos espelhos e, ao mesmo tempo, criticaria muitos de seus termoschave. Por exemplo, o da educação do príncipe pela moral cristã. Conferir, também, sobre o tema dos espelhos e a posição de Maquiavel: BIGNOTTO, Newton. A antropologia negativa de Maquiavel. In: Analytica. Vol. 12. N.2. Rio de Janeiro: 2008, pp. 77-100, especialmente pp. 80-81. Acerca da questão da natureza humana e do conceito de virtù em Maquiavel, mostrando o caminho aberto por Maquiavel na questão das paixões e da política, consultar: VALVERDE, Antonio José Romera. Maquiavel: a natureza humana e o reino deste mundo. In: SGANZERLA, Anor; FALABRETTI, Ericson; VALVERDE, Antonio José Romera (orgs.). Natureza humana em movimento: ensaios de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2012, pp. 51-61. 22 As Paixões da Alma. Ver Referências Bibliográficas. 26

por meio das leis de natureza (Leviatã, I, 13, p. 111)23, será capaz de compreender as normas que possibilitam esta passagem. O excerto é claro, em seu momento anterior, quanto a este ponto, ao afirmar que o homem pode escapar a esta condição miserável em parte devido à razão, em parte às paixões. O medo é o afeto chave, segundo Hobbes, para a construção e manutenção da paz. É a paixão fundamental especialmente para a manutenção do corpo político24. Espinosa não foge à regra. Trata dos dois temas, ora separadamente, ora em conjunto. De modo exclusivo, como tema principal, a questão dos afetos aparece na Ética, que tem a parte III dedicada à sua origem e natureza. Como tema ligado à política, a questão dos afetos aparece explicitamente no Tratado político. Neste, o tema dos afetos já está indicado pela primeira palavra do primeiro parágrafo: affectus (TP I 1 p.5) e se difunde pelo texto como um todo. Deixo para um segundo movimento de argumentos a questão dos afetos na Ética. É lá que o tema dos afetos como coisas naturais - e não como vícios será desdobrado pelo método da geometria25. De início, faço uma inversão cronológica - visto que o Tratado político foi redigido após a Ética - para mostrar, em linhas gerais 23

Hobbes trata das leis de natureza nos capítulos 14 e 15 do Leviatã, como anuncia ao final do Capítulo 13 (Leviatã, I, 13, p.111). 24 A comparação, no que tange aos seus principais conceitos, entre Hobbes e Espinosa, poderia ser tema de um trabalho à parte. Dialogarei com alguns conceitos hobbesianos durante a tese com a intenção de aclarar os conceitos espinosanos. E, também, objetivando mostrar como Espinosa se afasta de Hobbes em muitos pontos. Sou da mesma posição de C. Lazzeri no que se refere aos dois autores, ou seja, ainda que usem expressões muito próximas e tenham problemáticas semelhantes, os conceitos-base e os desdobramentos das teses divergem abundantemente (pp. 01-10 da obra a seguir citada, especialmente p. 08). Tais divergências aparecerão no correr da tese, ainda que pontualmente, uma vez que o trabalho de comparação minuciosa, como afirmei, seria outro trabalho. Para comparações entre ambos, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998. Para comparações quanto ao conceito de direito natural e civil em ambos, ver: CHAUI, Marilena. Direito natural e direito civil em Hobbes e Espinosa. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 286-314. 25 Para um mergulho no tema da geometria em Espinosa, ver: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, especialmente pp. 559-735. Sobre um apanhado de teses acerca da posição da geometria na Ética, ver: ANDRADE, Fernando Dias. Em que sentido se pode afirmar que a geometria da Ética é apropriada, adequada e necessária ao seu conteúdo? In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1998, pp. 09-16. Sobre geometria e ordem do mundo: KEINERT, Maurício C. A ordem geométrica e a ordem do mundo. In: Cadernos Espinosanos (III) 1. São Paulo: Publicação do Departamento de Filosofia da USP, 1998, pp. 49-57. Também: REYNOL FILHO, Augusto. Espinosa e a ordem geométrica. In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP1998, pp. 17-30. No mesmo sentido: TAKAYAMA, Luiz Roberto. Problemas concernentes à ordem geométrica da Ética. In: Cadernos Espinosanos III. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1998, pp. 31-47. 27

neste momento, que a questão dos afetos tem tratamento diverso em Espinosa em face da tradição no que se refere ao seu papel no bem ordenar da cidade. Espinosa faz na política uma revolução copernicana ao tratar os afetos como coisas da natureza. Essa é, em face da tradição, uma de suas grandes inovações26. O início do Político (TP I 1 p. 5), portanto, traz, em suas primeiras linhas, o tema clássico. Analiso, a seguir, mais detidamente esse ponto para mostrar como Espinosa, já na maneira de tratar o tema, se apresenta como uma anomalia27.

(b) A anomalia espinosana O Tratado Político se inicia com a palavra affectus (TP I 1 p.5) (Affectus, quibus conflictamur, concipiunt Philosophi veluti vitia, G III p. 273). Afirma Espinosa: Os filósofos concebem os afetos com que nos debatemos como vícios em que os homens incorrem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se deles, chorálos, censurá-los ou (os que querem parecer os mais santos), detestá-los. Creem, assim, fazer uma coisa divina e atingir o cume da sabedoria quando aprendem a louvar de múltiplos modos uma natureza humana que não existe em parte alguma e a fustigar com sentenças aquela que realmente existe. Com efeito, concebem os homens não como são, mas como gostariam que eles fossem. De onde resulta que, as mais das vezes, tenham escrito sátira em vez de ética e que nunca tenham concebido política que possa ser posta em aplicação, mas sim política que é tida por quimera ou que só poderia instituir-se na utopia ou naquele século de ouro dos poetas, onde sem dúvida não seria minimamente necessária (TP I 1 p. 5).

Iniciar a análise da política, tema da última e inconclusa obra de Espinosa, tratando dos afetos, não parece ser casual. Sugere o lugar de destaque dos afetos para a filosofia política espinosana. Indica, também, a importância dos afetos para a constituição do mundo normativo28 (do direito civil da civitas), o qual decorre 26

CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 155 e seguintes. 27 A referência, aqui, é ao livro clássico de Antonio Negri, com o qual se dialogará, direta ou indiretamente, no correr da tese: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998. Versão em português: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. Negri é hoje reconhecido como um dos filósofos que propôs interpretações de alta potência política a partir da e sobre a filosofia de Espinosa. Pode-se dizer, também, que Negri cria sua própria filosofia a partir da filosofia de Espinosa, isto é, tendo como base alguns dos principais conceitos espinosanos. 28 O direito natural e o direito civil na cidade, bem como sua relação com outros temas da filosofia espinosana, serão conceitos trabalhados especialmente no capítulo 2 da tese. A questão da relevância 28

das decisões do corpo político constituído (E IV P 37 esc. 2 pp. 309 a 311). Até aqui, nada de novo sob o sol da história da filosofia. Como apontei no item anterior, o tema da relação entre afetos e política é quase tão antigo quanto a filosofia. A novidade espinosana - uma das manifestações do filósofo como anomalia tanto no século dezessete quanto na história da filosofia - está na maneira inovadora de tratar o tema clássico. Tal inovação consiste em compreender os afetos, de acordo com o excerto citado, como eventos naturais. Sem isso, isto é, a compreensão dos afetos como eventos naturais, corre-se o risco, como aponta Espinosa, de se fazer outras coisas que não são nem análise do campo ético, nem entendimento do campo da política. De fato, depreende-se do excerto citado (TP I 1 p.5) que a tradição filosófica contra a qual Espinosa escreve concebe os afetos como vícios. E não apenas. São vícios aos quais os indivíduos incorrem por culpa própria (in quae homines sua culpa labuntur - G III, 273). Ou seja, os afetos não são, para esta tradição, manifestações da natureza humana, da qual não se deve rir ou chorar, mas compreender (E III Pref. p. 161). Os afetos ou paixões, para esta duradoura e influente tradição, são o resultado da culpa dos próprios indivíduos, isto é, da sua incapacidade de refrear as paixões, que surgem como vícios, por meio do modelo adequado - o ideal de homem em Platão e no platonismo, as virtudes adequadas à política em Aristóteles e no aristotelismo. Em ambos os casos, falta ao homem seguir o modelo adequado, seja este modelo a Ideia, na versão platônica, seja ele a virtude-modelo (o meio adequado ao fim, mesmo na contingência, cuja forma está no mundo mesmo e não além-mundo), na versão aristotélica. Daí que, em suma, por serem vícios, os afetos devam ser objeto do riso, do choro, da censura e, no limite, do ódio (TP I 4 p. 8). A consequência de tal concepção dos afetos, escreve Espinosa, é dupla. De um lado, tais autores louvam uma natureza humana que inexiste. De outro, propõem à filosofia política uma fuga da realidade mesma da política. Isto ocorre, de acordo com o Político (TP I 1 p. 5), em razão de tais filósofos conceberem os homens não como são, mas como gostariam que fossem. O dever-ser ocupa o lugar daquilo do conceito espinosano de direito natural para as concepções atuais do jurídico é tema dos capítulos 3 e 4. 29

que efetivamente é, da realidade efetiva da coisa (O príncipe XV pp.151-152)

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. Daí

também uma consequência ética e uma consequência política. Consequência ética: as filosofias da conduta se apresentam como um vituperar constante da ação decaída, viciada, entendida como inadequada em face daquela idealizada, porém inexistente no mundo real. E, outra face da moeda, faz-se um elogio da conduta fundada na virtude como norma exterior ao indivíduo e padrão fundante da ação. Ou seja, em vez de construírem uma ética, tais filósofos concebem sátiras. Isto porque em vez de compreenderem as causas das ações dos homens - o fundamento ou causa eficiente das ações dos seres singulares humanos -, tais autores apenas ridicularizam os vícios que levariam às ações equivocadas. Eis o conceito preciso de sátira, isto é, explicitar o defeito, o vício, para gerar o riso e, eventualmente, educar ao mostrar o avesso (com exageros) do modelo virtuoso. Em uma palavra, tais autores, por ridicularizarem os vícios, concebem sátiras. Consequência política: a filosofia política assim concebida é utopia, isto é, não-lugar, inexistência. Apenas teria razão de ser em outro mundo, a saber, o século de ouro dos poetas, lugar da plena concórdia, sem conflitos. Seriam políticas próprias, paradoxalmente, a lugares que não necessitam da política30. Assim, o início do Tratado Político aponta para uma das teses centrais de Espinosa - eis uma hipótese -, a ser desdobrada e explicitada31 no decorrer do presente trabalho, a saber, a de que para Espinosa a compreensão dos afetos é fundamento para qualquer entendimento da política que pretenda não desaguar em

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Ver: MAQUIAVEL. O príncipe. Edição bilíngue. Tradução de José Antônio Martins. São Paulo: Hedra, 2011, pp. 150-151 (Cap. XV). Espinosa está na mesma chave de Maquiavel, segundo alguns autores, no que se refere a vários temas da política. Ver, por exemplo: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09-101, especialmente item II, pp. 31-46. 30 O tema da dissolução da análise da política como análise das utopias é trabalhado por: MATHERON, Alexandre. Spinoza et la décomposition de la politique thomiste: maquiavélisme et utopie. In: Études sur Spinoza et les philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011, pp. 81-111. 31 Conforme Atilano Dominguez, a relação entre o TP e as demais obras de Espinosa é um fato a ser explicitado pelos intérpretes. Sendo assim e nesta chave, a presença da Ética, parte III, no Tratado Político, é uma das hipóteses a ser desdobrada no presente trabalho. Conferir: DOMÍNGUEZ, Atilano. Introducción. In: Tratado político. Traducción, introducción, índice analítico e notas de Atilano Domínguez. Madrid: Alianza Editorial, 1986, pp. 07-72, p. 9. 30

utopias ou criações de modelos32. Com efeito, não podem os homens fugir dos afetos, nem ridicularizá-los, pois os afetos os constituem. Ou ainda mais precisamente, os homens são afecções ou modos finitos da substância única33. Dizer que os afetos constituem os homens é dizer que são efeitos dos seus encontros no mundo - os homens são afecções e têm afetos -, bem como de sua capacidade de conhecer o que é bom e o que é mau para si mesmos e, assim procedendo, serem causa adequada de suas ações, pois geradores de afetos ativos34. Assim, os afetos devem ser analisados “[...] como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos.” (E III Pref p. 163), ou seja, como se analisa qualquer outro fenômeno natural (o mesmo em TP I 4 p. 8). Uma vez esboçados os primeiros traços do tema da relação entre afetos e política, a seguir pretendo aprofundar a análise da temática dos afetos na Ética. Se, como afirmado nas linhas acima, os afetos (como elementos naturais, não como vícios) são o fundamento da análise não utópica da política, é o caso, a seguir, de entendê-los na seção da Ética a eles dedicada: a parte terceira, cujo tema e título é precisamente 'A origem e a natureza dos afetos' (De origine et natura affectuum G II p. 137-204). Depois de delineada a geometria demasiado mundana dos afetos, procurarei mostrar como eles operam para que os homens - afetivos de ponta a ponta, mesmo quando no uso mais adequado da razão - possam construir a maneira mais 32

Uma difundida tese sobre Platão afirma que A República seria uma construção modelar, uma espécie de "utopia" avant la lettre de polis, um ideal. Mas a seguinte passagem, uma fala de Sócrates a Glauco, pode problematizar esta tese: "Concordais que não são inteiramente utopias o que estivemos a dizer sobre a cidade e a constituição; que embora difíceis, eram de algum modo possíveis, mas não de outra maneira que não seja a que dissemos, quando os governantes, um ou vários, forem filósofos verdadeiros, que desprezam as honrarias atuais, por as considerarem impróprias de um homem livre e destituídas de valor, mas, por outro lado, que atribuem a máxima importância à retidão e às honrarias que dela derivam, e consideram o mais alto e o mais necessário dos bens a justiça, à qual servirão e farão prosperar, organizando assim a sua cidade?" (A República, 540d). Fica a questão. No que se refere a Maquiavel e sua construção de uma teoria não utópica da política, Espinosa parece estar, neste ponto, na mesma chave do florentino. Veja-se a passagem do capítulo XV de O príncipe: "Mas, sendo a minha intenção escrever coisa útil a quem a escute, pareceu-me mais convincente ir direto à verdade efetiva da coisa do que à imaginação dessa [andare drieto alla verità effettuale della cosa che alla immaginazione di epsa]." (O príncipe XV pp. 150-151). Não se trata de imaginar a melhor cidade ou a melhor política, mas de entender a política como ela é, entendê-la em sua materialidade, em sua realidade efetiva, a verità effettuale della cosa. 33 Este tema será objeto do item (c), abaixo, e será retomado em outros momentos da tese. 34 Este ponto será objeto do item (i), ainda neste capítulo. 31

efetiva de exercerem a sua potência ou direito natural: a política35 da civitas. Este será o tema do capítulo 2. (c) Da ontologia aos afetos c.1 Substância sive natura A questão da ontologia espinosana será analisada primordialmente a partir da Ética. Entendo36 que esta é a obra em que Espinosa desenvolve mais densamente o tema da ontologia. Não entrarei, portanto, a não ser subsidiariamente e pontualmente, em geral em notas de rodapé, nas questões analisadas no Breve Tratado que tenham relação com o tema central deste item (c). A Ética já trará subsídios bastantes para que se tenha uma visão razoavelmente densa dos fundamentos do mundo afetivo, tema deste item (c) do capítulo 1. A parte I da Ética é o lugar em que Espinosa elabora, com o cerrado cimento da geometria37, as linhas gerais e fundantes da ontologia do necessário. A 35

Sobre a política como instância possibilitadora do exercício do direito natural de cada homem, tema que será desdobrado no capítulo 2, consultar: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 296-297. Também, p. 373. Ver também: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. p. 114. No mesmo sentido: JAQUET, Chantal. Spinoza ou la prudence. Paris: éditions Quintette, 2004, pp. 65-66. Ver também: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998, p. 131. Também: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, p. 9, p. 207. 36 É certo que a Ética traz as questões presentes no Breve Tratado com a densa rede do more geometrico e mais detalhadamente trabalhadas. Mas isso não implica que o BT não tenha um valor filosófico como obra autônoma ou que possa ser considerado obra menor. Sobre as obras terem o mesmo núcleo de questões, ver: CHAUI, M. Prefácio. In: ESPINOSA. Breve Tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Tradução de Emmanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, pp. 7-17. Chaui afirma que o núcleo do BT é o mesmo da Ética. Na ontologia: a crítica do antropocentrismo e do antropomorfismo, “com a exposição da unidade substancial e da causalidade imanente necessária (...), a distinção entre os atributos divinos (pensamento e extensão) e as propriedades que a imaginação costuma afirmar da essência divina (bondade, perfeição, justiça), [...]” pp. 15-16. Na teoria do conhecimento, as teses são as mesmas da Ética. Maneiras de conhecer, lugar da opinião na formação das paixões, lugar da razão e da intuição na formação das ações e das ideias verdadeiras. Na Ética: redefinição do bem e do mal, crítica da confusão entre liberdade e livre-arbítrio, a afirmação da livre-necessidade, etc.. (p. 16). 37 Sobre o tema da geometria, ver bibliografia citada em nota anterior (nota 25). A imagem de Espinosa como 'ateu de sistema' foi grandemente difundida em função do verbete 'Spinoza', do Dictionnaire de P. Bayle. Ver: BAYLE, Pierre. Historical and Critical Dictionary (Selections). Translated by Richard Popkin. New York: The Bobbs-Merrill Company, 1965, pp. 288-338. Bayle se refere à difícil tarefa de refutar o more geometrico (p. 296). 32

parte I se abre com oito Definições38. Em E I D 6, Espinosa define Deus39, já se distanciando de qualquer tradição da transcendência. Deus é definido como "[...] um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos atributos, [...]" (E I D 6 p. 13). A expressão "ente absolutamente infinito" é identificada, pela expressão isto é, à substância. Mais precisamente: "uma substância". Deum (Deus) equivale ao ens absolute infinitum (ente absolutamente infinito), ou seja, à substância. Na Definição 3, Espinosa conceitua substância: "Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, [...]." (E I D 3 p. 13). Logo após esta definição, nova expressão isto é identifica a substância com "[...] aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado." (E I D 3 p. 13). Ou seja, a substância espinosana é algo que é (1) causa de si e (2) fonte de sua própria autointeligibilidade. Daí por que tenha o autor, na Definição 1 (E I D 1 p. 13), concebido causa sui (causa de si) como "[...] aquilo cuja essência envolve a existência[...]". Isto é, a substância, por ser causa de si, fonte de si mesma, autoprodução do real, exprime-se como existência, necessariamente, em sua infinitude. Ela é, em feliz síntese de Ferreira Gullar, "o dentro sem fora"

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. Um complemento à definição do poeta poderia ser o

seguinte: dentro sem fora cujo 'dentro' é o próprio real em autoprodução. Livre é a substância, diz Espinosa na Definição 7 (E I D 7 p. 13), pois "Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza, e que por si só é determinada a agir." (E I D 7 p. 13). Ou seja, a substância, entendida a partir do "ponto de vista" de si mesma, do ponto de vista do todo, é livre. O que é efeito dela - por exemplo, os modos finitos, afecções da substância (E I D 5 p. 13) -, no sentido de coisa determinada por ela a existir (coacta), é algo coagido - do ponto de vista da coisa como afecção, como modo, ou como certa e determinada intensidade ou potência.

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Para a definição de definição espinosana, ver Ep 9 p.119. A boa definição, diz a nota 8 à tradução da Coleção Os Pensadores, é "[...] aquela que se concebe - isto significa: 1º que não há contradição interna; 2º que por ela se apreende a gênese do definido. A boa definição é sempre genética. A má definição é, portanto, aquela que não se pode conceber.". Em: ESPINOSA. Correspondência. Tradução de Marilena de Souza Chaui. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 379. 39 No BT, Espinosa trata da questão Deus-substância em BT I pp. 49-87. As teses são muito próximas às da Ética. A divisão do texto se dá em Capítulos e parágrafos, com exceção de dois diálogos que estão entre os Capítulos 2 e 3, divididos em parágrafos. 40 GULLAR, Ferreira. O dentro sem fora. In: Folha de São Paulo. Ilustrada, 22 JUL 2012. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/55822-o-dentro-sem-fora.shtml. Acesso: 06 MAI 2013 (2012). 33

Tais definições se apresentam sustentadas pelos axiomas que Espinosa explicita na Ética I. Por meio deles, as Definições se apresentam em toda sua precisão. Para o tema da substância, que será o local mesmo da ontologia espinosana, importam as articulações conceituais que Espinosa realizará entre os axiomas, as definições e as proposições, culminado na proposição 15, momento em que Espinosa afirma que tudo o que existe, existe na substância, e demonstra esta afirmação (E I P 15 Dem p. 31). Afirmei acima que a substância é causa de si e que é o ente absolutamente infinito. Mas como uma coisa pode ser causa de si mesma, ser absolutamente infinita, e qual o sentido desta tese? O que sustenta a afirmação espinosana é uma articulação entre dois dos sete axiomas41, e a afirmação restará demonstrada, com o uso dos axiomas, definições e proposições, pelas proposições 14 e 15 (E I P 14 Dem pp. 29-31; E I P15 Dem p. 31). Qual o caminho espinosano? O axioma 1 afirma: "Tudo o que existe, existe em si mesmo ou em outra coisa". O axioma 2 estabelece que "Aquilo que não pode ser concebido por meio de outra coisa deve ser concebido por si mesmo". A Definição de substância, por sua vez, é dada como aquilo que é concebido e existe por si mesmo (E I D 3 p. 13). A existência necessária da substância é objeto da proposição 11 e é nela demonstrada (E I P 11 Dem p. 25). E a tese da existência de tudo como sendo existência no interior mesmo da substância restará demonstrada pela proposição 15. Com efeito, de acordo com a Proposição 15, em sua demonstração, tudo o que existe, existe em Deus, e sem a substância nada pode existir nem ser concebido (E I P 15 Dem p. 31). A proposição 15 é demonstrada pela proposição 14 - a qual afirmara a unicidade da substância -, pela definição 3 - tese da substância como o que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido -, pela definição 5 - tese dos modos como afecções da substância - e pelo axioma 1 - tese de que tudo o que existe, existe em si mesmo ou em outra coisa (E I P 15 Dem p.31). Neste momento da Ética, Espinosa chega à demonstração de que tudo o que é - o real -, é efeito da e na substância infinita e única.

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Verdades evidentes: Ep 9 p. 119. 34

Retorno no caminho espinosano. Das proposições 1 a 10 (E I P 1 a P 10 pp. 15-23) , os axiomas, as definições e as próprias proposições serão movimentadas para demonstrar a existência da substância única, que aparecerá na Proposição 11: "Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente." (E I P 11 p. 25 - grifo meu). A natureza da substância será demonstrada, como analisado acima, na proposição 15, e sua unicidade na proposição 14 (E I P 14 p. 29; E I P 15 Dem p. 31). Importa, para as notas pretendidas acerca do tema da ontologia, uma análise um pouco mais detida da Proposição 11, esclarecendo seus termos no que interessará à questão dos homens como afecções ou modos de dois dos atributos da substância, e à questão dos homens como tendo afetos. Volto, pois, à Proposição 11. Nela, Espinosa prova a existência necessária de Deus e trata do conceito de atributo. A substância é, como já visto, um ente absolutamente infinito (ens absolute infinitum). Mas Espinosa acrescenta algo à expressão absolutamente infinito, na Proposição 11: diz que a substância consta de infinitos atributos. Os atributos são constituintes da essência da substância, e são infinitos, visto que não pode haver negação no infinito positivo. Mas aos homens somente dois atributos são acessíveis, a saber, o atributo pensamento e o atributo extensão. Para o tema da relação entre atributos e substância, adoto a tese segundo a qual os atributos são realidades constitutivas de uma mesma coisa, a saber, a substância. Os atributos, segundo esta posição interpretativa42, podem ser 42

Existem duas fortes tradições interpretativas acerca do tema dos atributos em Espinosa. Uma se funda na expressão "[...] o intelecto percebe como [...]" (E I D 4 p. 13) para daí afirmar que os atributos seriam espécies de pontos de vista acerca da essência da substância. Como se, diz C. Ramond (referência abaixo), a substância fosse o objeto-em-si e o atributo o objeto-percebido. Um dos célebres representantes desta tradição é Hegel. Ver, sobre esta interpretação de Hegel acerca de Espinosa: MACHEREY, Pierre. Hegel ou Spinoza. Paris: Éditions La Découverte, 1990, pp. 98-99. Não adoto esta posição, seguindo Gueroult, que discorda desta interpretação ao afirmar que os atributos são neles mesmos, e não para nós, a essência da substância. Ver: GUEROULT, Martial. Spinoza: Dieu (Éthique, 1). Paris: Aubier-Montaigne, 1968. GUEROULT, Martial. Spinoza: L`âme (Éthique, 2). Paris: AubierMontaigne, 1974. Ver: RAMOND, Charles. Ibid. pp. 27-28. Os atributos constituem e exprimem a substância e são ordens distintas entre si, porém simultâneas, da mesma substância. Adoto, como indico no corpo da tese, esta última posição. Sigo, para o conceito de atributo em Espinosa, além das posições acima indicadas, a interpretação de: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. A autora afirma: "Os 35

compreendidos como constituintes e expressão43 da essência da substância.

Na

Definição 4 (E I D 4 p. 13) atributo é definido como sendo: "[...] aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo sua essência." (E I P 4 p. 17). Na explicação da Definição 6 (E I D 6 Explic) Espinosa desdobra o raciocínio ao diferenciar absolutamente infinito de infinito em seu gênero. Tal diferença se apresenta uma vez que é absolutamente infinito tudo aquilo que exprime uma essência e não envolve qualquer negação. Ou seja, é o infinito positivo da substância. O que é infinito em seu gênero não possui infinitos atributos. A noção de gênero limita este conceito de infinito. Cada atributo não é, de acordo com a interpretação já indicada acima, entretanto, um "ponto de vista" do intelecto, como se poderia apreender de uma leitura apressada de E I D 4 (p. 13), sobre a essência da substância (ver também E I P 10 Dem p. 23). Os atributos, como afirma Charles Ramond44, são constituintes da substância única, sendo insustentável a leitura de que seriam "pontos de vista" ou "percepções" intelectuais da substância, como se a substância fosse um em-si e o atributo um objeto percebido45. Por ser a substância o próprio real em produção infinita, há infinitas instâncias constituindo a essência da substância. Os atributos são, em suma, constituintes e expressão da mesma substância. Corrobora esta tese a Proposição 11 (E I P 11 p. 25), a qual estabelece que cada atributo exprime (exprimit - E I P 11 p. 24) uma essência eterna e infinita. Logo, a substância é única e infinita, e seus atributos constituem a essência da substância divina significa: são atributos dela; os atributos exprimem a essência divina significa: cada um e todos eles devem envolver o que pertence à substância, portanto, causalidade de si, infinitude, liberdade e eternidade. Dessa maneira: 'exprime uma essência eterna e infinita' pode ser lida em dois registros simultâneos: cada atributo exprime-se como essência eterna e infinita porque cada um deles, infinito em seu gênero, é uma essência realmente distinta das outras, mas no outro registro, é preciso concluir que por isso mesmo cada atributo exprime, em seu gênero, a essência eterna e infinita da substância. [...] Cada atributo, portanto, não representa um aspecto da substância absolutamente infinita, pois isso o transformaria em predicado dela. Pelo contrário, cada atributo, porque constitui, exprime, pertence e envolve a essência de substância, a realiza completamente em seu gênero." (p. 814). 43 Espinosa usa, neste caso, o verbo exprimere (divinae substantiae essentiam exprimit) (E I 19 Dem p. 43). Trata do tema substância/atributo - e o resume -, mas afirmando que há uma ruptura entre os conceitos de substância e atributo, de um lado, e o mundo dos homens, de outro: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 95. Na tradução brasileira: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 97. 44 RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, pp. 27-28. 45 Ver nota acima (42) sobre as tradições interpretativas do conceito espinosano de atributo.

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atributos são, igualmente, infinitos, na medida em que são constituintes da essência infinita da substância única. Resta um ponto da Proposição 11 a ser discutido: a substância, afirma Espinosa, "existe necessariamente". A substância existe necessariamente na medida em que é o real em sua autoprodução, como afirma Espinosa na Proposição 7 (E I P 7 p. 19). Pela Definição 1 (E I D 1), utilizada pelo autor para demonstrar a Proposição 7, a substância é causa de si mesma, isto é, sua essência necessariamente envolve sua existência. Na Proposição 15 (E I P 15 p. 31), Espinosa afirma, como já analisado acima, que tudo o que existe, existe na substância única, sem a qual nada pode existir nem ser concebido. Eis, como analisado, a natureza da substância que se provou única (E I P 14 Dem pp. 29-31), ou seja, a substância é o real, nada havendo fora dela que possa existir ou ser concebido. Na demonstração da Proposição 15, Espinosa estabelece que os modos (e os homens, como mostrarei, são modos ou intensidades finitas de potência da substância, são afecções) não podem existir nem ser concebidos sem uma substância (E I P 15 Dem p. 31). Pode-se concluir, acerca dos traços gerais da ontologia espinosana, o que segue: (1) Deus é o mesmo que substância ou natureza. (2) A substância é única. (3) A substância é o infinito positivo (único) e é o próprio real em autoprodução. (4) Os atributos não são espécies de "percepção intelectual" da substância única, mas constituintes da essência da substância, e por isso cada qual é infinito em seu gênero. (5) A substância é eterna. (6) A substância, por ser causa sui, implica ao mesmo tempo sua existência, e por isso a substância existe necessariamente. *** O ponto a ser desdobrado neste item (c) é o da relação entre ontologia e afetos. A ontologia espinosana, como analisado acima, tem seus fundamentos na tese da substância única como ente absolutamente infinito que é causa sui - e de todo o real, o qual é efeito da substância em sua autoprodução. Por outros termos: se tudo o que é apenas tem realidade na medida em que é efeito da

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potência da e na substância, o mundo afetivo dos homens será efeito da e na substância. A seguir, analisarei esta tese espinosana. Na Definição 5, Espinosa afirma, acerca dos modos: "Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da qual é também concebido." (E I D 5 p. 13). Na Proposição 15, afirma que tudo o que há e que pode ser concebido (concipi potest) somente pode existir e ser concebido na substância (in Deo est) (E I P 15 p. 31). E na demonstração da Proposição 15 afirma que os modos - entre os quais estão os homens - não podem existir nem ser concebidos sem uma substância. Na Proposição 18 (E I P 18 p. 43), a substância (Deus) é apresentada como causa imanente, e não transitiva, de todas as coisas. Antes, nos três corolários da proposição 16 (E I P 16 cor 1, 2, 3 p. 37), Espinosa afirmara que: (a) a substância é causa eficiente de todas as coisas, (b) a substância é causa por si mesma e (c) a substância é absolutamente causa primeira. Ou seja, a substância é causa das coisas particulares, como é o caso dos homens, não transitivamente, mas de maneira imanente. É (a) causa eficiente46 imanente de todas as coisas, é (b) causa por si mesma (visto que não há nada fora dela que a cause) e é (c) causa primeira não transitiva e de tudo o que há. Os homens - cada um deles - serão, nesse sentido, afecções ou modos finitos de Deus ou da substância. E como não há nada fora da substância, todas as coisas serão efeito dela mesma na imanência.

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No BT Espinosa apresenta, de maneira concisa, os sentidos que dá a um termo-chave de sua ontologia, a saber, causa eficiente. No capítulo 3 da Parte I do BT, Espinosa estabelece em que sentidos Deus pode ser considerado causa. O interessante, do ponto de vista da maneira como Espinosa reformula e usa conceitos da tradição filosófica à sua maneira, é ver que, entre as quatro causas de Aristóteles (material, formal, eficiente e final. Ver: ARISTÓTELES. Metafísica (983a 20- 983b 6)), uma é recepcionada e reconfigurada por Espinosa. Assim, diz o autor que Deus é causa eficiente em oito sentidos: (a) É causa emanativa ou produtiva de suas obras; (b) é causa imanente, e não transitiva; (c) é causa livre; (d) é causa por si mesmo; (e) é causa principal das obras que criou imediatamente (como o movimento na matéria, por exemplo); (f) é causa primeira; (g) é causa universal na medida em que não tem necessidade de ninguém para produzir efeitos; (h) é causa próxima das coisas imutáveis e causa última das coisas particulares (BT I 3, 2 pp. 70-71). 38

Mas como pode ocorrer de os homens serem efeito da e na substância? Como ocorre a "passagem" do eterno ao finito? Os homens não seriam apenas epifenômenos na substância, entes sem realidade própria?47 Para tratar do conceito espinosano de modo e de sua relação com o conceito de substância, importa apontar uma importante tese de Espinosa, exposta no Escólio da Proposição 29 (E I P 29 Esc p. 53). Neste escólio, o autor apresenta a diferença entre natureza naturada e natureza naturante48. Por natureza naturante Espinosa entende o que existe em si mesmo e por si mesmo é concebido - ou seja, os atributos da substância e a substância mesma. Como Espinosa não diferencia substância de atributo quanto à eternidade e à liberdade - pois os infinitos atributos são a substância mesma em sua infinitude, efeitos da essência da substância -, estas instâncias criadoras do real são uma espécie de estrutura estruturante do que há. É tudo aquilo na substância que não é coagido ou determinado, mas determina as coisas a serem o que são de maneira certa e determinada (fundamentos, por assim dizer, da ontologia do necessário espinosana)49. Para a natureza naturante, "[...] não há quando, nem antes, nem depois [...]." (E I P 33 Esc 2 p. 59). Por natureza naturada, Espinosa entende, por sua vez, "[...] tudo o que segue da necessidade da natureza de Deus, ou seja, de cada um dos atributos de Deus, isto é, todos os modos dos atributos de Deus,

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L. Bove resume bem o ponto da passagem entre o infinito e o finito. Ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012. Escreve o autor: "Tornar-se Deus, isso é absurdo, mas produzir em Deus e por Deus (a Natureza) o movimento real, potente e alegre, pelo qual o ser se autoproduz de maneira absolutamente autônoma, isso é o que significa o projeto ético... e também, de acordo com o mesmo espírito, o projeto político espinosita." p. 12 (tradução minha). 48 No BT Espinosa trata da questão em termos conceitualmente próximos aos da Ética, não parecendo ter mudado o sentido dos mesmos termos na Ética. Diz no BT que divide toda a Natureza em Natura naturans e Natura naturata. Por Natura naturans, diz, entende um ser concebido "[...] por si mesmo e sem ter de recorrer a algo diferente dele [...]" (BT I 8, 1 p. 83). Quanto à Natura naturata, a divide em duas, uma universal e outra particular. Universal chama a todos os modos que dependem imediatamente de Deus, a particular consiste em todas as coisas particulares que são causadas pelos modos universais (BT I 8, 2 p. 83). A natureza naturada universal seria o que Espinosa chama na Ética de modo infinito. Em relação à extensão, o modo infinito é o movimento. Em relação ao pensamento, é o intelecto. 49 Para o tema da ontologia do necessário, ver: CHAUI, Marilena. O fim da metafísica: Espinosa e a ontologia do necessário. In: CHAUI, M.; TORRES, S.; BAHR, F.. Spinoza: cuarto coloquio. Córdoba: Brujas, 2008, pp.11-38. Disponível em: http://spinozamericas.blogspot.com.br/p/publicacoes-dos-coloquios-decordoba.html. Acesso em 09 MAI 2013 (2008). Da mesma autora: CHAUI, Marilena. Da metafísica do contingente à ontologia do necessário: Espinosa. In: OLIVA, Luís César Guimarães (org.). Necessidade e Contingência na Modernidade. São Paulo: Ed. Barcarola, 2009, pp. 27-83. Também, da mesma autora: A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp.744-932. 39

enquanto considerados como coisas que existem em Deus, e que, sem Deus, não podem existir nem ser concebidas." (E I P 29 Esc p. 53). A realidade dos modos humanos, que interessará à política e à realidade afetiva que está em sua base, está toda desenhada, portanto, na natureza naturada, mas tem sua fonte estruturante na natureza naturante. De fato, as coisas que existem na substância de maneira certa e determinada existem na natureza naturada, mas sua realidade é decorrente da natureza naturante. Por isso Espinosa dirá, no Corolário 2 da Proposição 32, que [...] a vontade, assim como as outras coisas naturais, não pertence à natureza de Deus, mas tem, com essa natureza, a mesma relação que tem o movimento e o repouso e todas as outras coisas que se seguem, como mostramos, da necessidade da natureza divina, e que são por ela determinadas a existir e a operar de uma maneira definida [certo modo determinari]. (E I P 32 Cor 2 p. 57).

A natureza naturante é efeito da liberdade da substância, isto é, o que é livre absolutamente, o que não está submetido à coação, à determinação. Já a natureza naturada é resultado da liberdade absoluta da natureza naturante. Não pertence à natureza de Deus, mas dela decorre. "Não pertence à natureza de Deus [...]", isto é, não é livre como a substância e seus atributos, mas é na substância, visto que nada há fora dela (E I P 15 p. 31). Entender como se dá a existência desse "na" substância da natureza naturada, no que se refere ao mundo dos homens, é entender o regime em que operam os modos finitos humanos da substância. Eles, os modos, não pertencem, como afirma Espinosa, à natureza da substância. De fato, se pertencessem, seriam, tal qual a substância, absolutamente livres. Mas Espinosa diz (E I P 32 Cor 2 p. 57) que os modos têm com a natureza de Deus uma relação em que a estrutura estruturante determina a estrutura estruturada, ou, para usar os termos espinosanos, a natureza naturante determina a natureza naturada. Essa tese espinosana foi movimentada por muito tempo pela fortuna crítica do autor para afirmar a inexistência da liberdade dos homens, bem como de

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tudo que daí decorre: história, ética, política.50 Mesmo Antonio Negri, um dos principais responsáveis pela virada interpretativa do espinosismo, afirmou existir uma ruptura entre a Ética da ontologia (partes I e II) e aquela do mundo dos homens (partes III a V). Não haveria conciliação possível entre a ontologia do necessário e as teses éticas e políticas, devendo haver uma espécie de abandono daquelas partes em prol de um Espinosa da potência contra a potestas 51. Mostrar como, do interior dessa determinação, se apresenta a vida afetiva dos homens, é a questão importante para a política segundo a hipótese que levou à confecção desta tese, como já apontado. Sendo esta a questão de fundo e tendo feito um esboço das teses ontológicas de Espinosa, passo a uma análise detida da parte da Ética em que a questão dos modos finitos humanos é colocada diretamente. Trata-se da parte III, cujo tema e título é 'A origem e a natureza dos afetos' (De origine et natura affectuum). Esta parte iniciará o mergulho espinosano na natureza naturada e daí extrairá as consequências políticas, a serem explicitadas apenas em momentos da parte IV da Ética e no Tratado político. Em menor medida, sustentarei, também, em outro momento da tese52, a hipótese de que não há ruptura entre o Tratado político e o Tratado Teológico-político. As teses destas duas obras seriam totalmente compatíveis quanto à teoria dos afetos, ao direito, à política e à inexistência de um contratualismo

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Para o tema da fortuna crítica, o que esta afirmou, acerca das teses de Espinosa, ver: Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, principalmente a Introdução (pp. 19-107), na qual a autora procura dar cor às várias correntes interpretativas da obra do filósofo. 51 Conferir: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998. Tradução para o português: NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 98 e sgtes. Autores como Alexandre Matheron e Marilena Chaui não partilham da tese da ruptura. Para a posição de Chaui, ver nota acima em que se citam os textos sobre a ontologia do necessário. Sobre Matheron e sua posição acerca da tese de Negri: MATHERON, Alexandre. Prefácio. In: A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, pp. 15-21. Escreve Matheron: "Penso, com Negri, que a ontologia concreta começa com a teoria do conatus; mas a doutrina da substância e dos atributos é destinada a demonstrar essa teoria: a demonstrar que a natureza inteira, pensante e extensa ao mesmo tempo, é infinita e inesgotavelmente produtora e autoprodutora; e, para demonstrá-lo, era preciso reconstituir a estrutura concreta do real começando por isolar por abstração a atividade produtora sob suas diversas formas - que são precisamente os atributos integrados em uma só substância [...]." (pp. 19-20). 52 Ver item (a) do Capítulo 2. 41

de corte hobbesiano53. Quanto à Ética e ao Tratado político, uma das teses do presente trabalho é a da continuidade e da presença da teoria dos afetos da Ética no interior mesmo do Tratado político, a sustentá-lo em sua inovação política. O primeiro movimento dessa análise da parte III da Ética passa por uma análise do Prefácio da parte III. E no Prefácio, não casualmente, Espinosa inicia tratando dos "[...] que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens [...]." (E III Pref p. 161). Mostrarei, a seguir, como a ontologia do necessário se apresenta no mundo afetivo e no "[...] modo de vida dos homens [...]" (E III Pref p. 161). A tese espinosana é a de que o que existe é natureza de ponta a ponta, e no mundo dos homens não poderia ser diferente. c.2 Mundo dos homens e afetos O leitor que se depara com a Ética, sobretudo o leitor contemporâneo - mesmo aquele que já possui algum contato com textos filosóficos -, pode ser acometido de certo estranhamento ao verificar que a primeira parte da obra tem como título e tema De Deo, isto é, Deus. O tema 'Deus' não seria objeto mais apropriado aos estudos teológicos? Por que o plano da conduta, das ações humanas e de sua correção ou inadequação, próprio da ética segundo a tradição 54, deveria ter como ponto de partida o tema teológico por excelência?

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Trato do tema da inexistência de um contratualismo de corte hobbesiano em Espinosa nos itens 'b' e 'c' do Capítulo 2, bem como em outros momentos difusos no referido capítulo. A tese é a de que a fundação e a sustentação do corpo político em Espinosa não demandam o uso da razão e da vontade elaborando um contrato que funda o corpo civil. Não há também, em Espinosa, o uso dos conceitos de pessoa (natural e ficta), nem o de representação como fundamento da unidade artificial da multidão num Estado, por meio do pacto. A explicação da fundação e da manutenção do corpo político, em Espinosa, passa pela teoria dos afetos e pela lei natural segundo a qual entre dois males se escolhe o menor e entre dois bens o maior. A análise deste tema está presente em grande parte do capítulo 2. 54 Exemplo influente do que, nesta ocasião, chamo de tradição, é Aristóteles. Ao tratar do homem sábio, o phronimos - capaz de melhor agir -, e do conceito de deliberação, na Ética a Nicômaco, afirma que: "A sabedoria prática [phronesis] [...] versa sobre coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação [diferentemente das coisas necessárias, que são objeto de ciência, epistéme]; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem." (1141 b 5-10 tradução minha a partir do cotejamento das edições indicadas no início da tese, citadas nas Referências Bibliográficas). Deliberar é, para esta tradição, escolha entre possíveis que se apresentam no campo da ação.

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O segundo momento de espanto decorre da tese espinosana acerca desta primeira parte da Ética. Deus, com efeito, de acordo com as teses analisadas nos itens anteriores, é o próprio real em autoprodução, fora do qual nada existe nem pode ser concebido. Deus é a substância única. Portanto, o alvo espinosano é a imagem de Deus como exterior à criação e que, por um ato de vontade, cria o mundo e tudo o que nele existe. O real, pelo escólio da Proposição 29 da Ética I (E I P 29 Esc p. 53), tem uma dimensão produtora e livre, a natureza naturante, espécie de estrutura estruturante da substância, e uma dimensão daí decorrente, e portanto sem a mesma natureza de Deus, sem a liberdade absoluta da natura naturans. Trata-se da natureza naturada, expressão certa e determinada da natureza de Deus, tema já visto com algum pormenor no item c.1, acima. Os homens e seu modo de vida transcorrem na estrutura estruturada do real, e tudo se apresenta como decorrência da ontologia do necessário espinosana. No prefácio da Ética III, Espinosa opera uma revolução copernicana ao propor que os homens são expressões da natureza e não vivem como "[...] um império num império." (E III Pref p. 161) [imperium in imperio - G II p. 137]. Um pequeno retorno ao Escólio 1 da Proposição 33 da Parte I da Ética (E I P 33 Esc 1 p. 57) pode auxiliar na análise da condição humana na substância. Neste escólio, Espinosa explica o que é a contingência depois de ter demonstrado que tudo no real opera por necessidade da natureza divina. De fato, como disse Espinosa na demonstração da Proposição 33 (E I P 33 Dem p. 57), todas as coisas estão determinadas a existir e a operar de uma maneira definida pela própria natureza da substância. Do ponto de vista da operação da substância, nada é contingente, sendo este, portanto, um conceito sem sentido. Uma coisa é dita necessária em razão de sua essência ou em razão de sua causa eficiente. Da essência de Deus decorrem infinitas coisas, pois é da sua natureza a infinitude. Tudo ocorre e é concebido em e por Deus. Da mesma maneira, da natureza do triângulo decorre que a soma dos ângulos internos seja igual a dois

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retos, assim como a causa eficiente do círculo é o movimento de um segmento de reta em torno de um ponto, e a causa eficiente da esfera o movimento de um semicírculo em torno de um eixo fixo. Este movimento do semicírculo em torno de um eixo fixo é a causa eficiente da esfera, isto é, sua causa genética, sua origem, e o conhecimento desta causa é o conhecimento mesmo da esfera. Dado este quadro, afirma Espinosa, pode-se entender o que é o impossível. Trata-se do que não decorre da necessidade das leis da natureza da substância. É impossível que uma mesa coma erva (TP IV 4 p. 39), que um homem voe (TP IV 4 p. 39) ou veja como honroso o que provoca náusea (TP IV 4 p. 39), goste de alguém cujo decreto determine que se goste de quem se odeia ou se odeie a quem se ama. É impossível que do movimento do semicírculo em torno do eixo fixo não decorra a esfera. É impossível contrariar as leis necessárias da substância. Quanto ao contingente, qual sua natureza? Afirma Espinosa na Proposição 33 (E I P 33 Esc 1 p. 57-58) que o contingente é uma vivência dos homens que decorre do desconhecimento das causas necessárias dos eventos da realidade da substância. Nas palavras de Espinosa: "Não há [...] nenhuma outra razão para se dizer que uma coisa é contingente, a não ser a deficiência de nosso conhecimento." (E I P 33 Esc 1 p. 57). E complementa: Com efeito, uma coisa sobre a qual não sabemos que a sua essência envolve contradição ou, então, sobre a qual sabemos muito bem que a sua essência não envolve nenhuma contradição, mas sobre cuja existência, entretanto, por nos escapar a ordem das causas [propterea quod ordo causarum nos latet], nada de certo podemos afirmar, essa coisa, repito, não pode nos parecer nem necessária 55 nem impossível, e por isso dizemos que é ou contingente ou possível. (E I P 33 Esc 1 p. 57-58).

Aos homens a ordem total das causas se apresenta como algo opaco. E quando o homem conhece56, tal conhecer é um saber da causa próxima, nunca da rede causal infinita da substância.

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Sobre este tema, ver: SANTIAGO, Homero. Por uma teoria espinosana do possível. In: Revista Conatus - Filosofia de Spinoza. Revista vinculada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. Vol 5, N 9, jul 2011, pp. 41-48. 56 Acerca da questão dos modos de percepção em Espinosa, há uma vasta literatura. Um clássico ensaio sobre o tema, por sua clareza, abrangência e densidade, é: TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. Uma abordagem muito original e inovadora nos estudos espinosanos, tratando, entre outros, do tema acerca de como operam nos homens os modos de percepção e qual sua relação com a ética espinosana, pode ser encontrada em: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel 44

A contingência é uma experiência decorrente da situação dos homens no mundo, de seu desfalque cognitivo da realidade causal completa da substância. A contingência não existe, pois, no real entendido como operação de autoprodução de si mesmo - o "ponto de vista" da substância -, mas existe como experiência mental-imaginativa57 própria dos homens. Decorre dessa experiência mental de opacidade um equívoco, para os homens, quanto ao que efetivamente determina as suas ações. É isso que Espinosa denuncia no Prefácio da Ética III, ao afirmar que os homens acreditam que não são determinados por nada além de si próprios, que são como um império num império (imperium in imperio - E III Pref p. 161). É para mostrar o equívoco dessa assertiva, para derrubar a tese segundo a qual o homem está fora da natureza a determiná-la por sua livre vontade (tese do livre-arbítrio) que Espinosa dissertará sobre a origem e a natureza dos afetos. Antes de finalizar este item c.2, gostaria de alinhavar algumas notas sobre o conceito de livre-arbítrio em ao menos um influente representante da tradição moderna, em face da qual Espinosa se posiciona com suas reformulações conceituais. Assim se poderá ter, por contraste, uma noção precisa do peso das reformulações espinosanas.

Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, sobretudo Curso de 24 de janeiro de 1978, pp. 19-56. Também curso de 17 de março de 1981, cujo tema é 'imortalidade e eternidade' e que trata, igualmente, das dimensões da individualidade e dos gêneros de conhecimento, pp. 234-289. Sobre o entendimento como potência, não como faculdade: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 75. 57 Sobre este tema, conferir: BOVE, Laurent. Spinoza e a Questão Ético-social do desejo: estudos comparativos com Epicuro-Lucrécio e Maquiavel. In: Fractal - Revista de psicologia, V 24 – N 3 set/dez 2012, pp. 443-472. Para este tema especialmente, pp. 460-463. O autor diz, em suma, que os conatus individuais estão sob o imperativo da prudência uma vez que na existência concreta não têm conhecimento da totalidade da causalidade necessária do real. A experiência psíquica - Bove usa aqui um termo talvez anacrônico, pois Espinosa não o utiliza - tem um saber de parte da causalidade necessária do real. A experiência do ser finito, psiquicamente, é a experiência da contingência - ainda que esta não exista no real. Existe, entretanto, psiquicamente (pp. 460-463). No mesmo sentido: CHAUI, Marilena. Servidão e liberdade. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 192-247. Sobre o tema, afirma: questão chave, que põe Espinosa com os mesmos problemas da tradição, mas o faz apresentar uma solução diferente: como uma filosofia da necessidade absoluta poderia dar algum lugar à fortuna? Solução espinosana: a fortuna não tem realidade ontológica, mas tem realidade psicológica - para as coisas singulares (p. 199). Afirma, ainda, no mesmo sentido: “O homem que aparece na Parte IV da Ética é o modo finito na duração.” (p. 199). 45

Descartes58, ao tratar das relações entre vontade e conhecimento, estabelece a tese seguinte: E, em seguida, olhando-me de mais perto e considerando quais são meus erros (que apenas testemunham haver imperfeição em mim), descubro que dependem do concurso de duas causas, a saber, do poder de conhecer que existe em mim e do poder de escolher, ou seja, meu livre-arbítrio; isto é, de meu entendimento e conjuntamente de minha vontade. Isto porque, só pelo entendimento, não asseguro nem nego coisa alguma, mas apenas concebo as ideias das coisas que posso assegurar ou negar. [...] Não posso tampouco me lastimar de que Deus não me tenha dado um livre-arbítrio ou uma vontade bastante ampla e perfeita, visto que, com efeito, eu a experimento tão vaga e tão extensa que ela não está encerrada em quaisquer limites. [...] Pois, por exemplo, se considero a faculdade de conceber que há em mim, acho que ela é de uma extensão muito pequena e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, eu me represento a ideia de uma outra faculdade mais ampla e mesmo infinita; [...] Resta tão-somente a vontade, que eu sinto ser em mim tão grande, que não concebo absolutamente a ideia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de sorte que é principalmente ela que me faz conhecer que eu trago a imagem e a semelhança de Deus. (DESCARTES. 59 Meditações. pp. 300-302) .

Segundo Descartes, portanto, a vontade é livre, é infinita, e faz que o homem possa ser visto como à semelhança de Deus quanto a esta faculdade. A vontade, com efeito, não tem limites, diferentemente do conhecimento humano, que não pode tudo saber. Na mesma linha conceitual, em sua última obra, Descartes mantém suas teses. Em As Paixões da Alma, a vontade é conceituada como uma das funções da alma60. E esta função, que Descartes chama de ações da alma, equivale a "[...] todas as nossas vontades [...]"

61

. A outra função (as paixões) define-se pelas espécies de

percepções ou conhecimentos existentes em nós62. A vontade, acrescenta Descartes, é de duas espécies. Umas terminam na alma mesma, como "[...] quando queremos amar a Deus [...]" 63, outras "[...] são ações que terminam em nosso corpo [...]" 64. O exemplo 58

Espinosa cita Descartes em (E III Pref p. 161). DESCARTES. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores). Descartes também desenvolve o tema da infinitude da vontade e sua relação com o entendimento na Carta a Mesland, de 09 de fevereiro de 1645. DESCARTES. Correspondance: julho de 1643 - abril de 1647. Ed. Adam et Tannery. Paris: Vrin, 1989, vol. IV, p. 173175. Tradução em KRITERION, Belo Horizonte, nº 117, jun./2008, pp. 235-242. Também o faz em As Paixões da Alma (vide abaixo). 60 DESCARTES. As Paixões da Alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996 (Coleção Os Pensadores), p. 143 (artigo 17). 61 Ibid. p. 143 (artigo 17). 62 Ibid. p. 143 (artigo 17). 63 Ibid. p. 143 (artigo 18). 64 Ibid. p. 143 (artigo 18). 59

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movimentado é o de que isso ocorre quando temos vontade de passear. Ou seja, pelo fato de termos vontade de passear, as pernas se mexem como resultado dessa vontade. Na mesma linha conceitual das Meditações, a vontade é entendida como "[...] de tal modo livre que nunca pode ser compelida [...]." 65 Eis, pela pena de Descartes, aquilo que Espinosa qualifica como equívoco, ou seja, o homem como um imperium in imperio (E III Pref p. 161). Volto a Espinosa. No Prefácio da Ética III, os afetos são definidos como naturais, tese, segundo o autor, muito diversa daquela presente na tradição. Não quer Espinosa "[...] ridicularizar os afetos e as ações dos homens." (E III Pref p. 161), tratá-los como algo "[...] vão, absurdo, horrendo [...]" (E III Pref p. 161), mas concebê-los como coisas naturais e compreendê-los pelo método geométrico que estrutura o texto da Ética. Ou seja, em vez de vituperar a natureza humana decaída, tratar os afetos como vícios e como coisas externas ao mundo natural, tema que aparecerá não casualmente no Tratado político66 (TP I 1 p. 5), Espinosa propõe considerar "[...] as ações e os apetites humanos exatamente como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos." (E III Pref p. 163). Assim, é na natureza que o mundo afetivo se dá, não fora dela. E é no seu interior, segundo uma lógica própria, que se deve procurar entender como Espinosa concebe os afetos humanos, isto é, qual a sua natureza na Natureza.

(d) O conceito de conatus e os afetos primários: desejo, alegria, tristeza d.1 Os afetos na ontologia O Prefácio à Ética III é o lugar em que Espinosa inicia sua argumentação tratando de como a tradição desenvolveu o tema dos afetos e "[...] o modo de vida dos homens [...]" (E III Pref p. 161). Portanto, nesta parte da Ética, é da natureza naturada que Espinosa falará, e mais especificamente, no rol maior da natureza naturada, da vida cotidiana dos homens e de suas relações entre si e com as

65 66

Ibid. p. 155 (artigo 41). Como visto pontualmente no item (b), acima. 47

coisas no interior da substância67. Para isso, mesmo quando usa o vocabulário da tradição, como é o caso das expressões 'Deus' ou 'liberdade' na parte I, dá-lhes um significado totalmente diverso e totalmente de acordo com suas definições, axiomas, proposições e demonstrações. Ou seja, não há dúvida de que Espinosa tratará dos homens e de seu modo de vida, de suas relações entre si e com as outras coisas (E III Pref p. 161), ainda que o faça reformulando uma gama de conceitos da tradição. O texto posterior ao Prefácio, então, nesta chave interpretativa, inicia abordando os conceitos de causa adequada, causa inadequada, ação, paixão [passionem], afeto e potência de agir. Procurarei tratar desses conceitos para entender, após, como Espinosa demonstrará que é por esses termos que poderemos compreender as relações dos homens entre si, e com as demais coisas do mundo, afetivamente. E procurarei mostrar que Espinosa faz esta costura tratando das ações e dos apetites humanos "[...] como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos." (E III Pref p. 163). Com efeito, como visto na ontologia da parte I da Ética, nada há fora da natureza e, portanto, os afetos também serão manifestações naturais. Na Definição 3 desta Parte da Ética, Espinosa conceitua afeto: "Por afeto [affectum] compreendo [intelligo] as afecções [affectiones] do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163). Na explicação desta definição, usa a expressão causa adequada, relaciona-a com o conceito de ação, e afirma que o contrário, a causa inadequada, se relaciona com uma paixão (E III D 3 Explic p. 163). Ser causa adequada é ser causa do efeito de modo total - aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma, isto é, pela causa mesma. Ser causa inadequada é ser causa parcial do efeito. Espinosa diz que agimos quando sucede algo de que somos causa adequada, e padecemos quando algo sucede em nós ou quando somos causa parcial de algo. (E III D 1, 2, 3 p. 163).

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Um dos autores clássicos a chamar a atenção para o caráter prático da filosofia espinosana é Deleuze. Ver, sobre este tema: DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981. Tradução desta edição em: DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. Tradução Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo: ed. Escuta, 2002.

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Suspendo, por ora, a análise das relações entre causa adequada e ação e causa inadequada e paixão, tema que será retomado ao final deste capítulo (item (i)). Desdobro, a seguir, o conceito de afeto, relacionando-o com outras passsagens da Ética, para que o mundo propriamente humano, apontado no início do Prefácio (E III Pref p. 163), seja apresentado segundo as reformulações conceituais propostas por Espinosa. Espinosa compreende por afeto, pelas primeiras linhas da definição 3, "[...] as afecções do corpo [...]" (E III D 3 p. 163). Corpo é um termo definido na parte II da Ética. Escreve o autor: "Por corpo compreendo um modo que exprime, de uma maneira definida e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada como coisa extensa." (E II D 1 p. 79). Remete, então, na mesma definição, ao corolário da proposição 25 da parte I da Ética, que diz, sobre as coisas particulares: "As coisas particulares nada mais são que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e determinada." (E I P 25 Cor p. 49). Por fim, afirma que esta proposição é demonstrada pela Definição 5 da parte I, bem como pela proposição 15. Ora, a proposição 15 (E I P 15 p. 31) é exatamente aquela em que se demonstra que é na substância que tudo o que há existe e é concebido. E a definição 5 (E I D 5 p.13) é aquela que estabelece que o modo é uma afecção da substância, isto é, aquilo que é concebido por ela e tem sua realidade nela. Por outras palavras, depende da substância para existir e é por ela concebido. Portanto, no interior da coerência geométrica do texto espinosano, tem-se que um afeto é o resultado de um conjunto de afecções do corpo. E este conjunto - ou feixe - é um modo finito do atributo extensão da substância. Sendo o atributo livre, causa de si, infinito e eterno, como analisado no item (c), acima, o modo, como afecção, pelo que foi dito nas linhas acima, retomando a parte I da Ética, é certo e determinado em sua extensão. Ou, por outra, é a expressão do atributo extensão da substância na natureza naturada da substância. É a estrutura estruturada pela estrutura estruturante.

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Mas a definição de afeto continua. Por afeto Espinosa compreende as afecções do corpo, como visto, e acrescenta: "[...] pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo [simul], as ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163). O conceito de potência aparece na definição para estabelecer que a intensidade corporal varia, isto é, transita de um grau mais baixo a um grau mais alto e vice-versa. Ou seja, o modo, enquanto extensão, é uma intensidade68 de potência do atributo extensão da substância. E tal potência varia segundo as afecções do corpo. Em geral, as afecções do corpo produzem69, simultaneamente [simul], uma ideia na mente, como diz o final da definição de afeto: "[...] e, ao mesmo tempo [simul], as ideias dessas afecções." (E III D 3 p. 163). A Proposição 7 da parte II, em seu escólio (E II P 7 Esc p. 87) pode auxiliar na explicação deste "paralelismo"70, isto é, dessa simultaneidade entre pensamento e extensão. A Proposição 7 estabelece que "A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas." (E II P 7 p. 87). E seu escólio explica: "Assim, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma só e mesma coisa, que se exprime, entretanto, de duas maneiras." (E II P 7 Esc p. 87). Isso porque a substância pensante e a substância extensa (Espinosa usa neste caso a 68

Um ensaio clássico sobre o problema da expressão em Espinosa, texto que será direta e indiretamente retomado no correr da tese, é: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968. A proposta de Deleuze é tratar do problema da expressão em Espinosa e mostrar como ele o herda da tradição e o transforma completamente. Deleuze analisa, também, a problemática passagem do infinito (a substância) ao finito (os modos finitos). 69 Digo 'em geral' uma vez que nem toda afecção do corpo produz uma ideia na mente. Ver, por exemplo, a seguinte passagem: "Quanto ao restante, deixei de lado as afecções exteriores que se observam em afetos como o tremor, a palidez, o soluço, o riso, etc., porque se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente." (E III P 59 Esc p. 237). 70 Sobre a questão do paralelismo em Espinosa, numa abordagem crítica, isto é, que coloca em xeque a leitura estrita acerca da existência de um paralelismo entre pensamento e extensão em Espinosa, ver: JAQUET, Chantal. L'unité du corps et de l'esprit - affects, actions et passions chez Spinoza. Paris: PUF, 2004; Cito a tradução: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Para Jaquet, quem primeiro teria vislumbrado problema seria Deleuze (p. 24 e sgts). Sobre o conceito de simul como não remetendo ao paralelismo: p. 40, p. 70. Sobre os afetos como transição de potência, a mesma autora diz: “Os afetos, por conseguinte, são todos por natureza estados de transição da potência” p. 138. Esta tese dos afetos como estados de transição da potência terá importância quando o conceito espinosano de direito for abordado, no capítulo 2.

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palavra substância para se referir a atributo, como se vê rapidamente pelo contexto), como escreve Espinosa pouco antes no mesmo escólio, "[...] são uma só e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo, ora sob outro." (E II P 7 Esc p. 87). Assim, o homem é modo do atributo extensão e do atributo pensamento, não enquanto atributos, mas enquanto afecção finita, isto é, modo finito da potência de pensar e da potência de movimento. Como tais potências, entretanto, são simultaneamente afecções do corpo e ideias dessas afecções, os homens são ao mesmo tempo afecções do corpo e ideias dessas afecções. Ou, como afirma Espinosa em outro momento importante do texto para a definição de homem, "Segue-se disso [da demonstração da proposição 13] que o homem consiste de uma mente e de um corpo [hominem mente et corpore constare], e que o corpo humano existe tal como o sentimos." (E II P 13 Cor - aquele logo após a proposição - p. 97). Se por afeto, como procurei mostrar, Espinosa entende o modo do corpo segundo seu grau de potência (uma intensidade certa e determinada) e a ideia dessa extensão enquanto potência maior ou menor, os homens podem ser entendidos como variações de potência corporal e, em geral, ideias simultâneas dessas mesmas variações. Esta tese ficará mais clara a seguir, quando mostrarei como Espinosa concebe o conceito de conatus e como trata da questão dos afetos primários e, assim, mostra como o homem varia sua potência no interior da natureza naturada.

d.2 O conatus: considerações iniciais As Proposições 6 a 9 da parte III da Ética formam um pequeno tratado sobre o conatus71, o esforço de cada coisa por perseverar em seu ser. 71

Sobre o tema da potência e do conatus em Espinosa, texto com o qual ainda se dialogará no correr da tese, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008. A tese foi publicada em: CAMPOS, André Santos. Jus sive Potentia: Direito Natural e Individuação em Spinoza. Lisboa: Editora Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2010. Sigo a numeração da tese para as citações que seguem. O autor identifica um mini-tratado do conatus entre as proposições 4 e 8 da Ética III (p. 219). Eu acrescentaria a Proposição 9 ao mini-tratado. A definição de conatus dada por André Santos Campos é a seguinte: "Esta potência em acto, variável, é em simultâneo também ativa e passiva, ou seja, quanto maior o número de partes componentes, mais uma coisa é causal extrinsecamente ou causada extrinsecamente, mais 51

Analisarei tais proposições à luz do que foi visto e do que pretendo desenhar acerca do mundo afetivo dos homens. A Proposição 6 afirma que "Cada coisa esforça-se [unaquaeque res], tanto quanto está em si [quantum in se est], por perseverar em seu ser [in suo esse perseverare conatur]." (E III P 6 p. 173). O conceito de perseverar em seu ser, próprio de todas as coisas, que Espinosa afirma na demonstração (E III P 6 Dem p. 173-174), decorre do que já fora objeto das partes anteriores da Ética. As coisas singulares são intensidades parciais da potência de Deus (são modos), intensidades 72 que são modificações dos atributos de Deus no momento em que se exprimem de uma maneira definida e determinada (E III P 6 Dem p. 174-175). A Proposição 7 define este esforço: "O esforço [conatus] pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que sua essência atual." (E III P 7 p. 175). Na demonstração de E III P 7, Espinosa afirma que a potência de uma coisa necessariamente acarreta consequências, isto é, consequências decorrem do esforço de agir de cada coisa, ajam elas sozinhas ou em conjunto. A essência atual de uma coisa é esforço para perseverar em seu ser - o que é diferente de se manter num estado. apta a intervir em processos variados de causalidade extensiva, mais potente é, enfim - este é o domínio das afecções, onde o matemático é também biológico, e em que a potência que é causal do seu 'serefeito-extrínseco' passa a ser também potência que é causal do seu 'ser-causa-extrínseca'. Essa essência objetiva, em acto, é potência de causalidade no extrínseco, ab alio e in aliud - Spinoza chamar-lhe-á conatus" (p. 210). Ver, também, sobre o desejo como fundado no conatus: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 108. Acerca da proposta de Macherey no seu trabalho como comentador da Ética de Espinosa, ver: MACHEREY, Pierre. Ler a Ética de Spinoza. Tradução de Lia Gould. Encontro de 6 de novembro de 1998 do Groupe de Recherches Spinozistes, que organizou um debate na ocasião do encerramento da publicação do comentário da Ética por Pierre Macherey (5 volumes, P.U.F.,1994-1998). Disponível em francês em: http://hyperspinoza.caute.lautre.net/spip.php?article929. Acesso 02 ABR 2014. Disponível a tradução em: http://dc368.4shared.com/doc/45ZHXeFk/preview.html. Acesso 02 ABR 2014. Sobre seu comentário, Macherey diz que o texto da Ética funcionou como um negativo de fotografia. O seu trabalho teria sido o de revelar este negativo, escrevendo 2.000 páginas de comentário para um texto (ou um negativo) de 200 páginas. Uma ratio de 1 para 10. Tudo inspirado na escola francesa de leitura estrutural de texto, tendo Gilles-Gaston Granger como um dos mestres. 72 No sentido dos modos como tendo realidade e sendo intensidades quantitativas de potência, e contrariando, portanto, uma tradição interpretativa do espinosismo que via nos modos epifenômenos da substância, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, especialmente 3ª parte, pp. 179-181. Afirma Deleuze em resumo: "O finito não é então nem substancial nem qualitativo. Mas ele também não é aparência: ele é modal, isto é, quantitativo" (p. 181 - tradução minha). Ele é uma quantidade certa e determinada de potência, a variar em função das causas externas ou internas que aumentem ou diminuam sua potência. Ao usar, na tese, o termo 'expressão', para tratar dos modos finitos humanos, faço-o adotando esta conceituação de Deleuze. 52

A Proposição 8 afirma que: "O esforço [conatus] pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser [quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur] não envolve nenhum tempo finito, mas um tempo indefinido." (E III P 8 p. 175). Na demonstração, Espinosa afirma que a destruição da coisa, por vir sempre de fora, depende de uma causa exterior. Por isso o tempo de perseverar da coisa é indefinido. Pode ocorrer agora, se um homem ingerir arsênico e sua essência atual, seu perseverar no ser - como o deste Pedro ou deste Paulo -, em razão dos efeitos no corpo do mau encontro73, findar. Pode ocorrer depois, caso o mau encontro se dê em outra ocasião. Passo à próxima Proposição, a de número 9, que interessa sobretudo em seu escólio (E III P 9 Esc p. 177). Nele, Espinosa introduz uma importante análise dos conceitos de conatus, vontade, desejo e apetite. Vontade é o esforço quando referido à mente, ao passo que o esforço quando referido simultaneamente [simul] à mente e ao corpo, chama-se apetite. O apetite, diz Espinosa, é a própria essência do homem. Também neste escólio é feita uma costura entre dois temas aparentemente distintos: o dos afetos e o dos homens. Com efeito, Espinosa iniciou a parte III da Ética com a intenção de falar sobre afetos e o modo de vida dos homens. Dissera, como procurei mostrar nas linhas acima, que "Os que escreveram sobre os afetos e o modo de vida dos homens parecem, em sua maioria, ter tratado não de coisas naturais, que seguem as leis comuns da natureza, mas de coisas que estão fora dela." (E III Pref p. 161 - grifos meus). Mas depois abandona, aparentemente, os termos referentes aos homens, para tratar de temas como causa adequada, inadequada, afeto como afecção, potência, ação e paixão, remetendo aos conceitos de Deus, atributo extensão, atributo pensamento, mente como ideia do corpo, etc..

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Retiro o exemplo de Deleuze. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Diz o autor: “[...] se eu conheço suficientemente sobre a relação característica do corpo denominado arsênico e sobre a relação característica do corpo humano, eu posso formar uma noção daquilo em que essas duas relações não convêm, a ponto de o arsênico, sob sua relação característica, destruir a relação característica de meu corpo. Eu sou envenenado, eu morro.” (p. 44). 53

Entretanto, procurei mostrar, ao analisar a definição 3 (de afeto), que Espinosa estava a analisar ali também os homens, os quais foram definidos como variações de potência corporal e ideias simultâneas dessas mesmas variações. Está Espinosa, ao tratar de afetos, a tratar dos homens, pois a essência do homem é, como afirmado no escólio da Proposição 9, desejo74. Ou seja: "Apetite, o qual, portanto, nada mais é do que a própria essência do homem, [...]." (E III P 9 Esc p. 177). E logo após, "[...] entre apetite e desejo não há nenhuma diferença, excetuando-se que, comumente, refere-se o desejo aos homens à medida que estão conscientes de seu apetite." (E III P 9 Esc p. 177). Com essas colocações, Espinosa explicita, também, o que é o homem. O homem é afecção, modificação finita da substância, e é afeto, no sentido de ser apetite-desejo. Importa destacar que o conatus é o esforço por perseverar em seu ser - e é um traço de todas as coisas, pois todas as coisas procuram isto, se esforçam para perseverar em seu ser75. Na Proposição 7 Espinosa fala em res, em coisa que se esforça por perseverar em seu ser. Na Proposição 9, porém, Espinosa fala do homem. Ele, como coisa singular, modo finito de dois dos infinitos atributos da substância, o pensamento e a extensão, no escólio da Proposição 9, é definido como apetite-desejovontade. Logo a seguir, na Proposição 11, o desejo será estabelecido como um dos afetos primários (E III P 11 Esc p. 177-179). Portanto, costurando o início da Ética III com os demais movimentos do texto, pode-se afirmar com elementos mais consistentes que Espinosa liga a definição 3, de afeto, com o início do Prefácio da Ética 74

Importante ver a transformação, na Ética III, do conceito de vontade no conceito de conatus da mente do homem (E III P 9 Esc p. 177). Ao criticar a vontade como livre no Prefácio (E III Pref p. 161), é toda uma tradição que é atacada. Ver item 'c.2', deste capítulo, sobre o conceito de vontade em Descartes. O contraste é didático para mostrar duas concepções de vontade. Arrisco dizer que o conceito de linhagem cartesiana foi vencedor na história das ideias. Até hoje o conceito de livre-arbítrio, ou de vontade livre, é usado sem mais pelos juristas cíveis, e de outras áreas do direito, para tratar do conceito de contrato como tendo um dos fundamentos basilares na livre manifestação da vontade das partes. O conceito de livre vontade é usado também para a responsabilização na esfera penal. O conceito de dolo (fazer algo com intenção) demanda o conceito de livre-arbítrio. A vitória de uma ilusão? 75 Conferir, sobre a universalidade do conatus: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 370.

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III, bem como com o conceito de conatus, de desejo (cupiditas), de vontade (voluntas), de apetite (appetitus) e de homem. Ele o faz por meio da compreensão do homem como esforço para perseverar em seu ser (conatus). Mas nesse ponto apenas, o homem não se diferencia das demais coisas, modos singulares na natureza naturada da substância. O que faz do homem aquilo que ele é ontologicamente, ao que indica o texto, é entendê-lo como desejo-apetite-vontade. Quando consciente de seu apetite e nem sempre apenas quando consciente, ao que parece, pois Espinosa usa o termo comumente (plerumque) -, diz-se que o homem é desejo. Quando o esforço estiver referido à mente, será vontade. Quando ao corpo e à mente, como modos finitos dos atributos pensamento e extensão, em simultaneidade [simul], será apetite. Para mostrar as teses espinosanas por contraste, abordo pontualmente, abaixo, o tema do conatus em Hobbes. Hobbes faz uso, no Leviatã, do conceito de conatus ou esforço (Leviatã I 6 p.57; endeavour na edição original - ed. de R. Tuck, p. 38)76. A abordagem hobbesiana se distancia da espinosana, entretanto77. Um ponto central da divergência está nas elaborações bastante diferentes de antropologia de ambos os autores78. Num lance d'olhos, pode-se dizer que a abordagem espinosana demanda o conceito de substância79, visto no item (c), acima. Qualquer potência é potência da substância e na substância, e os homens são afecções da substância, intensidades de potência (ou esforço), as quais aumentam ou diminuem em razão dos afetos, ativos ou passivos, experienciados. Isto é, o esforço dos homens, sua maior ou menor potência, terá relação com os afetos, como mostrarei nos itens seguintes com maior grau de detalhe.

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Hobbes usa a expressão também em Os Elementos da Lei Natural e Política (Elementos I VII 2 p. 48, entre outras passagens). Usa-a no mesmo sentido em Do Cidadão (Do Cidadão I 7 p. 47, entre outras passagens). 77 Ver sobre este ponto: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 14; pp. 24-25; p. 32. Afirma o autor: "A distinção hobbesiana entre o movimento animal e o movimento vital faz do primeiro o meio de reprodução do segundo [meio de reprodução do movimento vital], o qual se torna assim sua causa final [ou seja, o movimento animal tem como finalidade preservar/garantir o movimento vital]. O conatus espinosista, ao contrário, faz da essência e de sua potência a causa eficiente dos efeitos que dela decorrem." (tradução minha - p. 25). No mesmo sentido: "Diferentemente de Hobbes, esse desejo ou esforço é esforço de uma essência e não conatus de um movimento animal distinto de seu movimento vital e finalizado por este." (Tradução minha - p. 32). 78 Sobre este tema, ver: Ibid. p. 33. 79 Sobre o tema, Ibid. p. 103. 55

A abordagem hobbesiana não opera com o conceito de substância, e Hobbes, ademais, elabora, no Leviatã, uma diferenciação que não se apresenta na versão espinosana, acima examinada. Trata-se do que Hobbes conceitua no capítulo VI do Leviatã como movimento animal e movimento vital. Nesta ocasião, Hobbes afirma, sobre o conceito de esforço (endeavour): Há nos animais dois tipos de movimento que lhes são peculiares. Um deles chamase vital; começa com a geração, e continua sem interrupção durante toda a vida. Deste tipo são a circulação do sangue, o pulso, a respiração, a digestão, a nutrição, a excreção etc.. [...]. O outro tipo é o dos movimentos animais, também chamados movimentos voluntários, como andar, falar, mover qualquer dos membros, da maneira como anteriormente foi imaginado pela mente. [...]. Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se geralmente esforço. Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo, [...]. Quando o esforço vai no sentido de evitar alguma coisa chama-se geralmente aversão. (Leviatã I 6 p. 57).

Em Hobbes há, pois, como indica o excerto, o uso do conceito de conatus (endeavour, isto é, esforço). Mas o autor estabelece uma divisão do esforço que Espinosa não faz, a saber, aquela entre movimento vital e movimento animal. O movimento vital tem como meio ou estratégia de realização o movimento animal, isto é, os atos de vontade80. Estes para Hobbes não são livres - não há livre-arbítrio. E o ato de vontade é "[...] o ato (não a faculdade) de querer" (Leviatã I 6 p. 63), o último apetite ou aversão da deliberação (Leviatã I 6 p. 63). Seguindo as trilhas de C. Lazzeri, a diferença conceitual, decorrente dos conceitos-base de ambos os autores, leva a que se possa afirmar que em Hobbes o desejo é o de "[...] conservação do movimento fisiológico que define a vida" 81, ou seja, o movimento animal é meio para conservação do movimento vital, ao passo que em Espinosa se busca o ótimo do esforço do desejo82. Assim, o desejo não é, para Espinosa, mera reprodução do bios, estratégia utilitária meramente fisiológica, mas esforço para alcance do ótimo do desejo, sua alegria máxima pela maior duração possível. Esta tese trará como consequência, na filosofia política de cada autor, grandes diferenças de abordagem. Tais diferenças

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Sigo a interpretação de: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, pp. 24-25. Ver citação acima, na nota de rodapé. 81 Ibid. p. 33. 82 Ibid. p. 33. 56

poderão ser vistas com maior detalhe no capítulo 2 da tese, momento em que mostrarei que a cidade, para Espinosa, não pode ser o lugar do medo capilarizado pelo corpo político, pois isso implica um exercício precário dos conatus individuais. De fato, para Espinosa, "[...] a paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo [...]." (TP V 4 pp. 44-45). E Espinosa completa a tese no parágrafo seguinte, ao afirmar que a vida humana não se define somente pela circulação do sangue e outras coisas comuns aos demais animais, mas pela virtude e vida da mente (TP V 5 p. 45). E a virtude maior da mente é a razão, local da plena concórdia e do afeto ativo (alegre). O fato é que, como mostrarei no capítulo 2, se os homens se conduzem com mais frequência pelos afetos que pela razão (E IV P 35 Esc p. 303), é preciso que o corpo político seja a astúcia institucional que leve mais alegria, afeto do aumento da potência do conatus de cada membro da cidade, ao maior número e pela duração máxima. Volto a Hobbes. O que decorre, neste autor, dos conceitos presentes no excerto acima citado, é um utilitarismo acentuado no comportamento dos homens uns com os outros e com as coisas do mundo. Esta tese é elaborada por Hobbes no capítulo XI do Leviatã. Afirma Hobbes que "A felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro outra coisa senão o caminho para conseguir o segundo." (Leviatã I 11 p. 91)83. E complementa, no parágrafo subsequente: "Assinalo [...] como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e mais poder, que cessa apenas com a morte." (Leviatã I 11 p. 91). Portanto, ainda que utilizem, ambos, o conceito de esforço-conatus, os textos indicam caminhos divergentes tanto na elaboração-base do conceito quanto nas consequências dele advindas. Eis um primeiro ponto em que fica já indicada a seguinte hipótese, cuja comprovação se dará no decorrer da tese: Espinosa e Hobbes usam expressões semelhantes e até mesmo idênticas, como é o caso do conceito ora analisado. Porém, divergem na definição dos mesmos termos e nas consequências, sobretudo políticas, que deles retiram. Como estão ambos trabalhando num campo 83

Ver também, sobre a tese do utilitarismo e do desejo irrefreável em Hobbes: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 65. 57

semelhante de problemas e conceitos, pode parecer - como interpreta parte da fortuna crítica84 - que se trata de autores muito próximos. Mas o olhar em detalhe leva a que se constate que entre Espinosa e Hobbes há distâncias conceituais consideráveis. Após o passeio breve pelos textos hobbesianos, retorno ao tema em Espinosa para concluir. O homem é, para Espinosa, conatus em forma de vontade da mente e conatus em forma de apetite-desejo do corpo e da mente simultaneamente. Ou, por outra: o homem é uma das maneiras pelas quais o conatus, este esforço das coisas singulares em geral para perseverarem em seu ser, se apresenta no interior da substância - e como manifestação da potência mesma da substância - enquanto natureza naturada. d.3 Desejo, alegria, tristeza Espinosa, como indicado acima, conceitua afeto na definição 3 da Parte III da Ética (E III D 3 p. 163). Procurei mostrar como este conceito se refere à definição de homem e se funda, por sua vez, na ontologia espinosana. Procurei mostrar, também, como o conceito de afeto tem estreita ligação com os conceitos de conatus e de potência. Nem todo conatus é um homem, mas todo homem, isto é, cada homem, é um conatus. O conceito de conatus85 é mais abrangente que o de homem. Enquanto o esforço para perseverar no ser (o conatus) é próprio de todas as coisas singulares na substância (Espinosa usa a palavra res no texto latino), o conceito de homem corresponde, por assim dizer, a um número menor de seres singulares. Com efeito, nem todo ser singular é um homem, mas todo homem é um ser singular e, portanto, é um conatus. O conatus humano, como ficou desenhado conceitualmente nas linhas anteriores, se manifesta como expressão, na natureza naturada, de dois dos infinitos atributos da substância: o pensamento e a extensão. Como modo do pensamento, o conatus de cada homem é vontade em ato de cada homem - deste Pedro, deste Paulo. Como modo simultâneo [simul] do esforço da mente e do esforço do corpo, é desejo quando a mente tem consciência do esforço, e é apetite quando 84

Sigo, para esta afirmação, a tese de: Ibid. p. 01. Larent Bove fala em três manifestações do conatus quando este conceito se refere ao homem: conatus como hábito, conatus como princípio-de-prazer e conatus como memória. Os temas da busca do aumento da potência e da memória serão trabalhados neste capítulo e apontarão para sua importância na política. Ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 19-46. 85

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não há esta consciência. Assim, apetite [appetitus] e desejo [cupiditas] são a mesma coisa, exceto pela consciência do esforço implicada no conceito de desejo. Ora, não por acaso, então, após o "mini tratado" 86 do conatus, logo na Proposição 9, escólio, analisada acima, Espinosa passa a falar do esforço referido à mente, do esforço do corpo e da mente e do homem como apetite-desejo. O conceito de homem se apresenta neste escólio e está ligado ao conceito de desejo - que por sua vez pode ser definido como o conatus dos seres singulares humanos, ou melhor, de cada ser singular humano como essência em ato. Desejo é um dos afetos primários, tema sobre o qual Espinosa passa a tratar na Proposição 11, escólio (E III P 11 Esc p. 177). Assim, o tema dos afetos passa a ser tratado como uma questão que envolve os seguintes conceitos, todos entrelaçados: homem, afeto, desejo, potência, vontade, causa adequada, causa inadequada, paixão e ação. Ao tratar do mundo afetivo dos homens, ou dos homens como expressões afetivas, estes conceitos estarão presentes, como ficará claro pela análise do tema dos afetos primários e de seus desdobramentos. Após tratar dos afetos primários, de conceituá-los, e de mostrar a complexidade do mundo afetivo - e, por conseguinte, do mundo humano-, o tema da potência e da política poderá ser tratado com mais elementos, mostrando toda a força das reformulações conceituais espinosanas87. Tal entrelaçamento será objeto do capítulo 2. Por ora, procurarei formular os conceitos espinosanos referentes aos afetos primários para mostrar como se ligam, neste ponto, os conceitos antropológicos e ontológicos de Espinosa. De fato, há uma teoria do homem, ou uma antropologia, fundada em uma ontologia da potência e que se apresenta como complexidade afetiva. Esta complexidade afetiva, como mostrarei no capítulo 2, por sua vez, funda e sustenta a política. Volto, então, aos conceitos de desejo, alegria e tristeza para alinhavar os temas acima expostos. 86

CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 219. 87 Sobre o tema Espinosa como um reconstrutor de conceitos da tradição para formular os seus próprios, com outros sentidos completamente diferentes daqueles da própria tradição utilizada, ver: Ibid., pp. 17-20. 59

A Proposição 11 da Ética III, em seu escólio, é o momento em que o tema da definição 3 (E III D 3 p. 163), a saber, a definição de afeto, ganha cores mais densas. Aqui Espinosa tratará dos afetos considerados primários. Escreve o autor: Vemos, assim, que a mente pode padecer grandes mudanças, passando [transire] ora a uma perfeição maior, ora a uma menor, paixões essas que nos explicam os afetos da alegria e da tristeza. Assim, por alegria compreenderei, daqui por diante, uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição maior. Por tristeza, em troca [autem], compreenderei uma paixão pela qual a mente passa a uma perfeição menor. Além disso, chamo o afeto da alegria [laetitia], quando está referido simultaneamente [simul] à mente e ao corpo, de excitação ou contentamento [titillationem vel hilaritatem]; o da tristeza [tristitia], em troca, chamo de dor ou melancolia. [...]. Quanto ao desejo, expliquei-o no esc. da prop. 9. Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros. (E III P 11 Esc p. 177-179).

Este escólio se refere à Proposição 11, a qual trata da questão do aumento ou da diminuição da potência de agir do corpo por uma dada coisa. E acrescenta que a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar da mente (E III P 11 p. 177). Os fundamentos da Proposição 11 estão na Parte II da Ética. São as Proposições 7 e 14. Aquela diz que a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas (E II P 7 p. 87). Esta diz que a mente pode perceber muitas coisas. E tal capacidade é tanto maior quanto maior for o número de maneiras pelas quais seu corpo pode ser disposto (E II p. 14 p. 107). Ou seja, há simultaneidade entre a ordem do corpo de cada homem e a ordem de suas ideias. E a mente, ideia do corpo, pode perceber as coisas que o corpo padece ou, mais genericamente, as disposições do corpo, ações ou paixões. De volta ao escólio, e por partes. Espinosa trata do tema dos afetos. E o faz analisando como a mente manifesta, por assim dizer, o que ocorre no corpo de cada homem. Há transição (transitio) da mente - e do corpo - de uma perfeição maior a uma menor. Há um limite máximo e um limite mínimo88 nesta transição para que o 88

Para a questão do limite máximo e mínimo de potência do modo finito humano para se manter como tal, sigo a interpretação de Deleuze, bem como a de Macherey. Para a interpretação de Deleuze, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 186. Afirma Deleuze, ao tratar dos conceitos de potência e de modo finito: "Com efeito, quando Espinosa afirma, na Ética, que o modo composto tem um grande número de partes [...], quer dizer uma quantidade que ultrapassa todo número. A essência de um tal modo é ela mesma um grau de potência; [...]. É o modo existente que tem uma infinidade de partes (um grande número); é sua essência ou grau de potência que forma sempre um limite (um máximo e um mínimo); é o conjunto dos modos existentes, não somente simultâneos mas sucessivos, que constitui o infinito ainda maior, ele mesmo divisível em infinitos mais ou menos grandes." p. 186 - tradução minha. Afirma, ainda, na p. 202: "Essas 60

corpo, como essência em ato, não perca sua ratio, sua proporção de movimento e repouso. Ou seja, para que não se desintegre em outra coisa que não seja aquela coisa singular como conjunto de causas que vão num sentido de manutenção daquela específica disposição como conjunto, isto é, como coisa singular humana. Nesse intervalo entre um mínimo e um máximo está a transição de um mais a um menos. Mais alegria até um máximo, e menos alegria até um mínimo. A diminuição da perfeição do corpo, a diminuição de sua potência, é a experiência da tristeza, que se apresenta na mente como ideia do afeto tristeza. Uma sutileza espinosana neste escólio, que muita vez passa despercebida pelos intérpretes, é a seguinte: Espinosa escreve acerca de uma diferença, quando se refere ao corpo e à mente, entre excitação e contentamento e entre dor e melancolia. A dor é uma tristeza de uma parte do corpo predominantemente. Se tenho a mão ferida por uma faca, sinto dor. Isso é uma tristeza da parte do corpo mais que do todo do corpo. Ou, por outra, uma parte do corpo a experimenta mais que as demais partes. A melancolia é uma tristeza do todo da coisa singular. Espinosa escreve: "[...] quando todas as suas partes [do corpo] são igualmente afetadas." (E III P 11 Esc p. 179). A excitação, pela mesma lógica dos afetos, é uma alegria que se concentra na parte afetada. Por exemplo, quando se experimenta uma boa comida ou uma boa bebida, isto é, aquela que causa uma excitação maior no órgão do corpo que aprecia a comida do que nas demais partes da coisa singular humana (E III P 11 Esc p. 179). Boa comida, isto é, a que aumenta a alegria. Não há, com efeito, uma boa comida como algo exterior ao desejo. Se o alimento aumenta o mudanças, mínimas ou bruscas, na relação que caracteriza um corpo, nós as constatamos também no seu poder de ser afetado, como se poder e relação jogassem dentro de uma margem, num limite no qual eles se formam e se deformam." (p. 202 - tradução minha). A ideia que colho de Deleuze é a de que o modo finito é um grau de potência que, se ultrapassa certa ratio, muda de forma, vem a ser outra coisa singular. Para ficar numa forma que caracteriza o modo finito - este homem -, deve ficar entre um grau mínimo e um grau máximo de potência. Se perde toda a potência, entra em outra relação - com o veneno, por exemplo -, deixa de ter potência para continuar sendo aquela coisa singular - este Paulo. Sigo também, para este conceito - grau máximo e grau mínimo de potência, um manter-se entre dois polos -, a seguinte interpretação de Macherey em: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 128. Afirma o comentador: "Ao caracterizar as formas elementares da afetividade, Spinoza estabelece que, no desenrolar da vida afetiva, por mais diversas e complexas que sejam tais manifestações afetivas, tudo é, em última instância, questão de desejo. Tendo como pano de fundo o conatus - a potência do desejo tem uma variação de grau que fica entre dois polos, um mínimo e um máximo -, os movimentos que conduzem a potência do desejo em direção a um ou outro polo são acompanhados mentalmente de prazer ou de dor." (tradução minha. Grifos meus - p. 128). 61

desejo, se ele aumenta a alegria, ele é bom, pois não é porque ele é bom que há aumento da alegria, ou transição do desejo a um aumento de sua potência. É porque há aumento do desejo que o alimento pode ser considerado, para aquele ser singular humano, bom. Sobre esta tese, escreve Espinosa, ao tratar do desejo: Torna-se, assim, evidente, por tudo isso, que não é por julgarmos uma coisa boa que nos esforçamos por ela, que a queremos, que a apetecemos, que a desejamos, mas, ao contrário, é por nos esforçarmos por ela, por querê-la, por apetecê-la, por desejá-la, que a julgamos boa. (E, III, P11 Esc p. 177).

O desejo é o critério do útil, do bom, pois é porque desejamos uma coisa que ela pode ser considerada boa. Assim, a experiência afetiva pode se dar mais em uma parte que em outras do corpo - dor e excitação -, e no corpo como um todo contentamento e melancolia. O que existe, então, é uma experiência corporal de aumento ou diminuição de potência, a qual é experienciada simultaneamente pela mente como aumento ou diminuição de perfeição. E afirma Espinosa, ao final do escólio: "Quanto ao desejo, expliquei-o no esc. da prop. 9. Afora esses três, não reconheço nenhum outro afeto primário. De fato, demonstrarei, no que se segue, que desses três provêm todos os outros." (E III P 11 Esc p. 177-179). Espinosa finaliza o escólio afirmando que os três afetos primários, dos quais todos os demais decorrem, são o desejo, a alegria e a tristeza. Por que primários [primarium]? Penso que no sentido ontológico de primus, o que vem antes como fonte de todos os demais, ou melhor, todos os demais são manifestações desta transição de um polo ao outro, da alegria à tristeza e vice-versa. Este ponto ficará mais claro quando outros afetos forem analisados ainda neste capítulo, desenhando o quadro da complexa vida cotidiana dos homens, fundamento das análises acerca da política, na hipótese que orienta a presente tese. O desejo ou apetite fora definido por Espinosa como sendo a própria essência do homem (E III P 9 Esc p. 177), essência esta que é a realização mesma do homem enquanto conatus, ou seja, esforço de perseverar no ser. Agora há elementos, após a análise da Proposição 11 e de seu escólio, para dizer que na verdade a alegria e a tristeza também são manifestações da essência do homem como variações da 62

essência mesma, isto é, do desejo-apetite. De fato, o homem é conatus, como todas as demais coisas singulares. Espinosa não entra em detalhes quanto às demais coisas singulares após a transição entre o mini-tratado do conatus e a Proposição 9, na qual aparece o homem. Mas isto é compreensível, visto que Espinosa escreve uma Ética, não um tratado de ontologia, ainda que o tema da ontologia seja o sustentáculo primeiro da Ética. E não é casual que a parte I da Ética seja dedicada à fundação ontológica do campo da ação. Sendo conatus, o homem é esforço para perseverar em seu ser. Mais precisamente: cada homem, como modificação dos atributos pensamento e extensão, é esforço em ato para manter sua relação de movimento e repouso, isto é, a ratio que o constitui. Como cada homem é simultaneamente intensidade de um corpo e de uma mente, ele é desejo-apetite. Quando o desejo varia de um grau X de potência a um grau X + 1, o que variou foi o próprio desejo. A mente e o corpo, simultaneamente, aumentaram seu grau de perfeição. Este afeto que a mente experimenta como aumento de seu poder - como ideia do corpo - é o que Espinosa chama de alegria. Sua diminuição ou transição de X para X-1 acarreta o que Espinosa chama de afeto de tristeza. A alegria e a tristeza são, pois, o aumento ou a diminuição da potência do conatus de cada homem como coisa singular. E o conatus de cada homem se manifesta como apetite ou como desejo, conceito que, ao que indica o texto, ou é próprio apenas dos humanos ou, o que é mais provável, é próprio dos humanos e de outros seres singulares, ainda que Espinosa não tome como tema central esses últimos89. Talvez, como afirmado acima, por se tratar de uma ética, não de um tratado do comportamento em geral dos seres singulares humanos e não humanos. Em suma, transição de um limite mínimo a um limite máximo, e vice-versa, de perfeição - ou de realidade, intensidade, potência -, é o conceito-chave para o tema 'desejo, alegria, tristeza' em Espinosa.

89

Espinosa fala em afetos dos animais em E III P 57 Esc (p. 233); em E IV P 37 (p. 309) afirma que eles sentem [sentire]. 63

d.4 Derivações do desejo: uma nota sobre a presença do ausente e os conceitos de amor e ódio A Proposição 12 da parte III da Ética analisa o esforço da mente, por ser conatus, em imaginar (imaginari) as coisas que aumentam ou estimulam a potência de agir do corpo (E III P 12 p. 179). Espinosa funda esta Proposição em duas outras da parte II, a saber, a Proposição 7 (E II P 7 p. 87) e a Proposição 17 (E II P 17 p.107). Naquela, Espinosa propôs que a ordem e a conexão das coisas é a mesma ordem e conexão das ideias. Nesta, propôs uma teoria da memória, que será fundamental para entender como opera, por meio da imaginação, a presença-do-ausente. Presença-doausente ou, por outras palavras, a presença de uma ideia na mente como imagem de algo presente, passado ou futuro, a qual será uma ideia da coisa externa como causa eficiente cujo efeito é aumentar ou diminuir a potência do corpo - e consequentemente da mente. Esta tese terá relevância para se compreender como funciona na duração a complexa manifestação das derivações dos afetos originários entre eles, o amor e o ódio, que Espinosa conceituará de forma diversa da tradição90. Exemplo de conceito da tradição, contra o qual Espinosa escreve, é o que Descartes analisa em As paixões da alma91. Descartes afirma que "O amor é uma emoção da alma, causada pelo movimento dos espíritos, que a incitam a se juntar voluntariamente aos objetos que lhe parecem convenientes". O ódio, por sua vez, é conceituado como "[...] uma emoção causada pelos espíritos que incitam a alma a querer estar separada dos objetos que se lhe apresentam como nocivos." (DESCARTES. As Paixões da Alma. Art. 70. p. 174). O amor, para Descartes, é uma emoção que incita a alma a se juntar voluntariamente aos objetos que se apresentam a ela como convenientes. O ódio é também uma emoção da alma, o qual a leva a um afastamento das coisas que se apresentam como nocivas. Descartes usa o termo 'pelos espíritos' para mostrar que amor e ódio, como paixões, envolvem o corpo, têm ressonância 90

Um exemplo de conceito da tradição, contra o qual Espinosa escreve, é o que Descartes dá em As paixões da alma, como analiso no parágrafo seguinte do texto da tese. Para o amor como busca da coisa bela, numa escalada até a Ideia de belo, ver a passagem em que Sócrates fala a partir do discurso de Diotima de Mantinéia, em O Banquete: PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1972, especialmente pp. 47-48 (210a até 212c). O exemplo platônico também está no rol da tradição da qual Espinosa se afasta no que se refere a este tema. 91 Ver: DESCARTES. Les passions de l'âme. Ed. Adam et Tannery. Paris: Vrin, 1909, vol. XI, p. 387. Cotejo com a versão de Os Pensadores, e cito a partir desta (DESCARTES. As paixões da alma. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pp.174-175). 64

orgânica (DESCARTES. As Paixões da Alma. Art. 70. pp. 174-175). Espinosa dirá que esta vontade de se unir à coisa amada, apresentada pela tradição (na qual se encontra Descartes) como a definição mesma de amor, revela apenas uma de suas propriedades (E III Def af 6 Explic p. 241), não sua essência - ou seja, sua definição pela causa próxima. Volto a Espinosa e analiso, brevemente, a teoria da memória espinosana92, proposta em E II P 17, para depois conceituar o amor e o ódio como manifestações da alegria e da tristeza. O corolário de E II P 16 afirma que "[...] as ideia que temos dos corpos exteriores indicam mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos exteriores [...]." (E II P 16 Cor p. 107). O estado do nosso corpo, isto é, sua dinâmica ou sua potência é que são indicadas no momento em que nossa mente tem ideias dos corpos exteriores. Cita Espinosa o Apêndice da Ética I para dizer que a questão do ato de imaginar, pelos homens, foi lá tratada. De fato, Espinosa afirmara no Apêndice que cada um "[...] toma as afecções de sua imaginação pelas próprias coisas." (E I Ap p. 73). E conclui que "[...] os homens julgam as coisas de acordo com o estado de seu cérebro e que, mais do que as compreender, eles as imaginam." (E I Ap p. 73). A imaginação é uma percepção que faz que o corpo seja afetado pela coisa exterior e esta cause uma impressão na mente. Vejo o sol pequeno, isto é, tratase de uma imagem do sol na mente. A Proposição 17 dirá que a ideia desse corpo é existente em ato, ou seja, tem a natureza de algo que está presente na mente. Isto ocorre até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua este (E II P 17 pp. 107109). Na demonstração, Espinosa fala na presença do corpo exterior, como imagem, na mente do homem. Mais precisamente, trata-se de uma ideia que põe a presença, na mente, do corpo exterior, enquanto representação imaginativa. E afirma Espinosa no Escólio, complementando esta tese, que

92

Sobre o tema da memória, ver: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 143-159, especialmente p. 145 e pp. 149-150. Sobre a questão do hábito, da memória e do reconhecimento como instrumentos imaginativos da perseverança do conatus, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, p. 15; pp.19-33; pp. 40-46.

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Vemos, assim, que pode ocorrer que, muitas vezes, consideramos como presentes coisas que não existem. [e, após dizer que acredita não ter se afastado muito da verdade, conclui] [...] pois todos os postulados que adotei não contêm praticamente nada que não seja estabelecido pela experiência, da qual não nos é lícito duvidar, após termos demonstrado que o corpo humano existe tal como o sentimos. (E II P 17 Esc p. 109).

Espinosa usa a expressão "tal como o sentimos": com tal expressão o autor remete então ao corolário imediatamente posterior à Proposição 13 da Parte II, no qual afirmara, como visto acima (item d.1), que o corpo humano existe tal como o sentimos. Recapitulando este excerto: "Segue-se disso que o homem consiste de uma mente e de um corpo, e que o corpo humano existe tal como o sentimos" (E II P 13 Cor posterior à P 13 p. 97). Continua o escólio no tema, e afirma que podem ocorrer, nesse sentir do corpo, duas coisas. Ou a mente de um homem - este Pedro - sente seu próprio corpo como ideia deste corpo, e eis a essência da mente do próprio Pedro (como ideia do seu próprio corpo), ou a mente de outro homem tem a ideia de Pedro digamos, Paulo tem a ideia de Pedro. Este último estado indica mais o estado do corpo de Paulo do que a natureza de Pedro, afirma Espinosa. Com efeito, trata-se de uma imagem de Pedro na mente de Paulo. Enquanto continuar o estado do corpo de Paulo, sua mente considerará Pedro como estando presente, mesmo Pedro não mais estando presente (E II P 13 Esc p. 111). Chama então de imagens das coisas "[...] as afecções do corpo humano, cujas ideias nos representam os corpos exteriores como estando presentes [...]. E quando a mente considera os corpos dessa maneira, diremos que ela os imagina." (E II P 17 Esc p. 111). Essas são as linhas mestras da teoria da memória93 espinosana. De fato, a presença-do-ausente, a presença na mente de Paulo da imagem de Pedro pode ter o efeito de aumentar ou diminuir a potência de Paulo. E isso sem que necessariamente Pedro esteja, ele mesmo, presente. Pois é a imagem de Pedro na 93

Laurent Bove afirma que a memória, nos indivíduos singulares, tem importante papel para a questão do desejo, isto é, do que aumenta sua potência. Com efeito, é ela que dirá ao ser singular humano o que foi causa de prazer - aumentou a potência - e o que não foi, de modo a poder evitar o que diminui a potência e perseguir o que a aumenta. Ver: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p. 34. Também, do mesmo autor: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 33-40.

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mente de Paulo, recuperada, por assim dizer, da duração, que interessa para esta diminuição ou aumento de potência. É, para usar outra linguagem, talvez mais didática, recuperar, pela memória, como imagem, algo do passado ou algo criado pela mente no passado - ou do futuro. A mente é capaz de recuperar o passado no presente - ou antecipar o futuro no presente - em forma de imagem do passado ou do futuro, as quais se apresentam na mente em ato. Assim é possível entender o que Espinosa conceitua por amor e por ódio, afetos derivados dos afetos primários alegria e tristeza e, também, se se quiser, variações, para mais ou para menos, até um limite máximo e mínimo, da potência do desejo-apetite. Por outras palavras: variações da potência do homem. De fato, no escólio da Proposição 13, Espinosa afirmará: "Pelo que foi dito, compreendemos claramente o que é o amor e o que é o ódio." (E III P 13 Esc p. 181). O amor é definido como uma manifestação do afeto alegria tal qual Espinosa concebe este afeto - como aumento de potência do corpo e da mente de um homem. É uma alegria acompanhada (concomitante) da ideia de uma causa exterior. Esta causa exterior é algo que, na mente de um homem, estará presente como imagem da coisa exterior. Esta coisa exterior, representada na mente, será uma imagem. Tal imagem, representação da causa exterior, gera aumento da potência (alegria) daquele que a experiencia, que a possui na mente. E o avesso acontece. Isto é, pode ocorrer de, em vez de alegria, a imagem causar tristeza, diminuição da potência do corpo e da mente. Em tal caso, tem-se o ódio. Espinosa dirá que o ódio "[...] nada mais é do que a tristeza [...]." (E III P 13 Esc p. 181). E complementa: o ódio é uma tristeza acompanhada (concomitante) da ideia de uma causa exterior (E III P 13 Esc p. 181). Vê-se, assim, que os afetos amor e ódio são, em primeiro lugar, manifestações da alegria e da tristeza, respectivamente. Mas não apenas. São alegria e tristeza acompanhadas da ideia de uma causa exterior. Tal causa exterior, enquanto ideia, é uma imagem que gera, na mente de um dado homem, simultaneamente, um aumento de sua potência ou uma diminuição de sua potência - aumento no caso do amor, diminuição no caso do ódio. 67

Espinosa retoma todos os afetos de que tratou no decorrer da parte III, num rol apenas exemplificativo94, ao final, após o escólio da Proposição 59, a última desta parte. Chama esta seção de 'Definições dos afetos' (E III Def af p. 237 e sgtes). Nas definições, estabelece como conceito de amor, retomando o que dissera na Proposição 13, "[...] uma alegria acompanhada [concomitante] da ideia de uma causa exterior." (E III Def af 6 p. 241) e como conceito de ódio "[...] uma tristeza acompanhada [concomitante] da ideia de uma causa exterior." (E III Def af 7 p. 243)95. Na explicação da definição 6, que trata do amor, e que é indicada como sendo a mesma para o afeto ódio, mostra em que medida e como se distancia da tradição filosófica anterior e contemporânea a ele. Para a tradição, segundo Espinosa, o amor é "[...] a vontade do amante de unir-se à coisa amada [...]." (E III Def af 6 explic p. 241). Mas tal definição é insuficiente, de acordo com Espinosa, para definir o amor quanto à sua essência, sendo capaz, apenas, de indicar uma de suas propriedades. E por vontade, tema já trabalhado por Espinosa à revelia da tradição do livre-arbítrio, entende o autor não uma deliberação, nem um consentimento, nem uma livre decisão (ver E III Pref pp. 161-163 e E II P 48 p. 145). Vontade é definida por Espinosa como a satisfação [acquiescentiam] "[...] que a presença da coisa amada produz no amante [...]" (E III Def af 6 Explic p. 243), a qual aumenta a potência do amante, fortalece ou intensifica a sua alegria. E, no caso do ódio, a lógica afetiva é a mesma, sendo definido como a tristeza que é acompanhada da ideia da causa eficiente que se imagina que a gerou. Portanto, pode-se concluir, o conceito de afeto é diretamente ligado - estruturalmente ligado - a uma variação da potência-desejo-apetite de cada homem. E a recuperação de imagens pela mente, a colocação do ausente em forma de imagem na mente, faz que este ausente seja, paradoxalmente, presença-em-ato-como-

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Exemplificativo uma vez que o número de afetos supera os nomes que comumente são dados aos afetos. A variação dos afetos originários na vida afetiva dos homens é ilimitada, inumerável. Ver item (h) ainda neste capítulo. 95 Roberto Brandão apresenta uma tradução em que o conceiro de concomitância é mais evidente. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014, p. 64. Traduz da seguinte maneira: "O Amor (Amor) é a Alegria concomitante à ideia de uma causa externa". 68

imagem. E esta imagem, como analisado, gera, necessariamente, uma variação, uma transição (transitio) da potência de um homem96. Como, pelo mini-tratado do conatus, viu-se que o desejo dos homens é uma positividade, alimentada pela própria substância - é potência, em suma -, a mente se esforçará por imaginar as coisas que aumentam a transitio para mais, não para menos. Esses raciocínios, se alinhavados, salientam os pontos que serão tratados, posteriormente, neste trabalho. Primeiro, indicam a importância do afeto alegria no sentido da satisfação do homem como potência. Segundo, apontam para a proximidade entre os conceitos de desejo, alegria, tristeza, transitio, potência do homem e homem como conatus. Igualmente, apontam para o conceito de direito como potência, bem como para a importância dos afetos para a construção da cidade como instituição a ser forjada com o objetivo de criar a predominância, no corpo político, dos afetos de alegria em lugar daqueles de tristeza. Essas teses serão desdobradas no capítulo 2, momento em que a política se mostrará conceito fundamental para o exercício do desejo - e dos afetos alegres pelos homens na civitas. Nesta ocasião, procurarei analisar, de maneira bastante breve, a razão pela qual Espinosa concebe a democracia, no Tratado Teológico-político, como o mais natural dos regimes políticos (TTP XVI p. 242 G III 195), bem como procurarei explicitar as razões das disposições específicas a cada um dos regimes abordados no Tratado político - tudo isso tendo como pano de fundo a teoria dos afetos espinosana, como procurarei desenvolver com maior grau de detalhes no capítulo 2.

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Ver, sobre este tema: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 132. Afirma o comentador: “A tese desenvolvida por Spinoza sobre este tema é radical: é a imaginação que, normalmente, preside à elaboração da relação com o objeto, tecendo, entre o sujeito desejante e afetado de alegria ou de tristeza e os objetos que levam a estes afetos [os objetos causam estes afetos], as ligações que são privadas de necessidade intrínseca, tanto do lado do sujeito do afeto quanto do lado do objeto.” [tradução minha]. Diz ainda: "É então sob o fundo de representações imaginárias que vão se constituir as duas novas figuras do afeto que aparecerão em seguida na composição da maior parte dos complexos afetivos ou formações secundárias da afetividade, composição à qual eles vão servir de modelo: o amor e o ódio, que são as formas características do desejo, da alegria e da tristeza enquanto associadas pelos mecanismos imaginativos ligados às representações das coisas exteriores." [tradução minha].

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(e) Medo e esperança, segurança e desespero Os afetos medo, esperança, segurança e desespero são fundamentais para a instituição e continuidade da civitas - ou seja, são constitutivos do conceito de cidade tal qual Espinosa o concebe. Eis uma das hipóteses do presente trabalho. Este tema será desdobrado no capítulo 2, quando tais afetos serão movimentados no intuito de mostrar como Espinosa os utiliza para criar sua filosofia política sem traços de utopia, assim como o faz para forjar uma ética que se distancia da sátira (TP I 1 p.5). Ou, mais minuciosamente, a política terá por papel principal criar instituições que constituam imaginários afetivos ligados antes à esperança e à segurança que ao medo e ao desespero (TP V 6 p. 45). De que maneira o direito natural de cada homem está ligado a tais conceitos também será tema a ser analisado no capítulo seguinte. Passagens do Tratado político, nesta ocasião, serão movimentadas para mostrar a importância de tais afetos na construção e continuidade da potência da cidade (de seu direito civil como direito natural coletivo) e dos súditos-cidadãos (entendidos como capazes de exercer, da melhor forma, seu direito natural individual). Para este capítulo, no qual proponho, de um lado, a construção dos conceitos e, de outro, sua operacionalidade na mente e no corpo de cada homem, procurarei explicar - como no caso dos afetos anteriormente analisados -, apenas, como se dá a lógica de tais afetos. Somente no capítulo 2 mostrarei como estes conceitos desaguarão na política97. *** Começo pelas definições presentes na parte intitulada 'Definições dos afetos' (E III Def af p. 237 e sgtes). Nas definições 12 e 13, respectivamente, esperança (spes) e medo (metus) são conceituados da maneira seguinte: "A esperança [spes] é uma alegria instável [inconstans], surgida da ideia de uma coisa futura ou 97

Conferir, sobre a importância dos afetos para a política, um texto que contribuiu para salientar um enfoque mais afetivo da filosofia espinosana, o que não implica contradição nem com o modo geométrico da Ética, nem com o racionalismo espinosano: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998. A tese do livro de Kaminsky é a de que Espinosa é o filósofo do desejo e da paixão. Afirma: “As paixões são episódicas e precárias individuações de estados vividos, mas também argamassa do social, cristalizada sob a forma de instituições reais ou imaginárias.” p. 22 (tradução minha).

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passada, de cuja realização temos alguma dúvida." (E III Def af 12 p.243). "O medo [metus] é uma tristeza instável [inconstans], surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida." (E III Def af 12 p.243). Os mesmos afetos foram definidos, antes, no Escólio 2 da Proposição 18 (E III P 18 Esc 2 p. 187). No escólio 1 (E III P 18 Esc 1 p. 187) da mesma Proposição, fica claro que os conceitos de passado e futuro, bem como o de memória - já visto -, foram movimentados por Espinosa para chegar ao conceito de esperança e medo. Espinosa, sobre os conceitos de passado e futuro, afirma: "Chamo uma coisa de passada ou de futura à medida que, respectivamente, fomos ou seremos afetados por ela" (E III P 18 Esc 1 p. 187). A Proposição 17 da parte II, já analisada acima (item d.4), aponta para uma teoria da memória, a qual será fundamento para a compreensão dos afetos esperança-medo. Pela teoria espinosana da memória, a mente é capaz de imaginar o que ocorreu ou ocorrerá como algo presente em ato na mente no momento em que ela põe como presente este evento rememorado. Por outras palavras, Espinosa usa as expressões "fomos" ou "seremos" para se referir ao passado e ao futuro. Somente pela memória, isto é, pela capacidade da mente de colocar como presente algo que ocorreu ou que (imagina) ocorrerá (passado ou futuro), é que este passado e este futuro estarão presentes. E não estarão presentes como passado ou futuro, mas como imagem desses momentos "trazidos" ao presente, em ato, pela potência da mente em imaginar tais cenários. A Proposição 17 da parte II (E II P 17 p. 107) é citada por Espinosa para mostrar onde se funda, em sua ontologia, tal capacidade da mente dos homens. Não casualmente, portanto, a Proposição invocada é a que trata da teoria espinosana da memória. A memória tem o papel de fazer a "ponte" entre o passado, o futuro e o momento presente na natura naturata. E Espinosa desenvolve a argumentação afirmando que tais operações da mente fazem que haja dúvida quanto à realização do que foi imaginado por ela. Afirma por conseguinte: Como, entretanto, ocorre, geralmente, que aqueles que experimentam muitas coisas, ao considerarem uma coisa como futura ou como passada, ficam indecisos e têm, muitas vezes, dúvidas sobre sua realização [...], o resultado é que os afetos 71

que provêm de imagens como essas não são tão estáveis, mas ficam, geralmente, perturbados pelas imagens de outras coisas, até que os homens se tornem mais seguros da realização da coisa em questão. (E III P 18 Esc 1 p. 187).

A coisa passada (ou futura) presente na mente em ato e a dúvida sobre sua realização fazem que haja transição de potência do homem enquanto não há certeza acerca da coisa imaginada, enquanto os homens não se tornam "[...] mais seguros da realização da coisa em questão." (E III P 18 Esc 1 p. 187). Antes de dar continuidade à argumentação, é importante lembrar que tais experiências de dúvida somente são próprias aos modos finitos. Por quê? Por serem os homens, como modos finitos, partes da rede causal da substância e, portanto, não terem acesso cognitivo à totalidade de causas que geram a totalidade de eventos no interior da substância. Esta é a experiência mental-imaginativa (ou, para usar um termo contemporâneo, psíquica) da contingência, a qual todos os humanos, enquanto partes da e na substância, vivenciam98. Transição de potência: em havendo a dúvida quanto à realização da coisa imaginada, a experiência do modo finito é ou a de aumento da alegria ou a de aumento da tristeza. Se o que existe no modo é variação da alegria, em razão da dúvida quanto ao desfecho da coisa imaginada, o que tal homem experiencia é a esperança. Se o que existe é variação da tristeza, pela mesma lógica, mas no sentido inverso, isto é, de baixa da potência, tal homem experiencia a tristeza. A experiência mental da dúvida gerada pela ideia dessa coisa futura ou passada, enquanto imagem na mente em ato, é a esperança ou o medo como afetos de alegria [laetitia-spes] ou tristeza [tristitia-metus]. Se variação de potência para mais, é esperança. Se para menos, é tristeza. A instabilidade da alegria é a esperança, ao passo que a instabilidade da tristeza é o medo. E em ambas a dúvida acerca do desfecho do que é imaginado é o cerne desses dois afetos, por assim dizer, simbióticos.

98

Sobre estes temas, ver item c.1 (e notas de rodapé), em que são citados textos e autores que trataram do tema do possível e da contingência como experiência mental-imaginativa dos homens, mas não como realidade da substância, a qual opera por estrita necessidade causal. 72

Afetos simbióticos. É preciso dizer o porquê. Na explicação da Definição 13, que trata do medo, Espinosa afirma não haver medo sem esperança e esperança sem medo (E III Def af 13 Explic p. 243). Em razão da experiência mentalimaginativa (psíquica) da contingência, a flutuação do ânimo por causa de uma ideia passada ou futura sobre a qual paira a incerteza leva este mesmo ânimo da alegria à tristeza e vice-versa. Ou seja, o medo e a esperança são a transição de potência do desejo que flutua entre o crer que a coisa boa se realizará - ou se realizou - e a crença de que a coisa não se realizará - ou não se realizou. O fim da incerteza é a chave para que tais afetos, cujo alimento mesmo é a dúvida, se transmutem em outros dois afetos a eles ligados: segurança e desespero. Espinosa os conceitua nas definições 14 e 15 da Ética III: "A segurança [securitas] é uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, da qual foi afastada toda causa de dúvida." Por sua vez, "O desespero [desperatio] é uma tristeza surgida da ideia de uma coisa futura ou passada da qual foi afastada toda causa de dúvida." (E III Def af 14 e 15 p. 245). Retira-se a dúvida da esperança e do medo e se tem segurança e desespero, respectivamente99. Pela estrutura do more geometrico Espinosa costura uma trama que é de fato muito prática, como afirmou Deleuze100. Um exemplo banal, vivenciado no cotidiano, pode aclarar este ponto. Alguém fica sabendo que um irmão foi vítima de tentativa de homicídio. O evento é passado. Mas não se sabe se o irmão morreu ou se sobreviveu, pois paira a dúvida. O ânimo flutua entre a esperança de que tenha sobrevivido e o medo de que tenha morrido. Cessada a dúvida, no caso de que tenha sobrevivido, a esperança, alegria instável, se transforma em segurança, alegria estável. 99

Macherey nota, a meu ver com acerto, que o fim da dúvida nos casos da securitas e da desperatio não implica total estabilidade, numa espécie de cristalização afetiva absoluta, pois as coisas que vêm à mente do homem ficam apenas menos contingentes, uma vez finda a dúvida. Diz sobre tais sentimentos: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 174: "[...] sentimentos que restituem uma relativa constância à alegria e à tristeza que nos ligam à representação das coisas passadas ou futuras, na medida em que estas parecem menos contingentes." [tradução minha]. Ou seja, no mundo dos homens, a contingência é uma experiência psíquica (para usar um termo anacrônico) constitutiva do existir. 100 DELEUZE, Gilles. Spinoza - Philosophie Pratique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1981.

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Ao invés, cessada a dúvida, no caso de falecimento, o medo de que morresse, confirmado pela certeza da morte, faz que o medo se transforme em desespero. A flutuação do desejo - o homem determinado pelos afetos - acompanha o aumento ou a diminuição da potência do ânimo. Ou há a alegria da securitas ou a tristeza da desperatio - ambos, já, afetos sem a dúvida que outrora os alimentava e os caracterizava como esperança e medo. A explicação da definição dos afetos 15 apara as arestas do tema. São movimentados o corolário da proposição 31 da parte II, bem como escólio da Proposição 49 da parte II. Neste, Espinosa demonstrou que o conceito de não duvidar de uma coisa difere do conceito de ter certeza sobre a coisa. E o corolário da proposição 31 da parte II é importante neste argumento na medida em que se debruça sobre a questão da contingência. No início deste capítulo (itens (c), c.1 e c.2), procurei analisar o conceito espinosano de substância e um de seus mais importantes corolários, a saber, a tese da necessidade absoluta do real em sua autoprodução. Espinosa usa o corolário da proposição 31 da parte II, para o estudo da definição acima, objetivando estabelecer que jamais podemos “[...] estar certos da realização das coisas singulares [...].” (E III Def af 15 explic p. 245). O real, entretanto, não opera por estrita necessidade? Por que não é possível o acesso total à cadeia causal? É possível - aliás, é necessário - à substância ela mesma que isso ocorra. Isto é, do ponto de vista da substância, há intelecção total da cadeia causal pelo atributo pensamento, pois a substância tem intelecção, pelo atributo pensamento, de sua própria autoprodução, de sua necessidade no gerar efeitos. Mas o homem, como modo (intensidade) parcial da e na substância, na duração, não é ele mesmo substância. É, como já analisado nas linhas acima, modificação, intensidade parcial, potência que é rodeada de outras potências (E IV A p.269). A questão ganha os seus corretos contornos pela Proposição 31 da parte II, em seu corolário. Lá, Espinosa afirmara que “[...]todas as coisas particulares são contingentes e corruptíveis. Com efeito, não podemos ter, de sua duração,

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nenhum conhecimento adequado [...], e é isso que devemos compreender por contingência e corruptibilidade das coisas [...].”(E II P 31 cor p. 125). Esta condição dos homens, seu desconhecimento da cadeia causal do real, não implica que a substância não haja por absoluta necessidade. O fato de os homens não conhecerem a cadeia causal do real é que faz da contingência, como já visto (item c.2), uma experiência mental-imaginativa dos homens como modos finitos. Apenas em razão desta condição dos homens como tomando parte da natureza naturada é que se pode falar em dúvida e em contingência. Portanto, é esta condição ontológica que faz que os afetos esperança, medo, segurança e desespero sejam compreensíveis no interior da substância como variações de potência dos homens. De fato, não haveria medo, esperança, segurança e desespero se não houvesse, nos homens, a experiência mental-imaginativa da contingência, a memória, a capacidade de imaginar cenários que se apresentam em ato na mente, bem como a dúvida e seu cessar. Tais afetos não existiriam, igualmente, se não houvesse esse rol de conceitos gerando variações do desejo para mais ou para menos, sem constância, isto é, com variações abruptas (medo e esperança), ou com certa estabilidade (segurança e desespero). Em suma, a transitio da potência dos modos, no caso dos afetos ora analisados, passa pela relação entre os conceitos de contingência como experiência mental-imaginativa, memória e dúvida101. Todos terão importância na política, tema a ser tratado posteriormente.

101

Ver sobre o tema: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Deleuze afirma sobre esta variação (escrevo com minhas palavras): suponhamos que encontro Pedro e Paulo. De um, gosto. Do outro tenho medo. O de que gosto gera, em mim, uma ideia que aumenta minha potência. O contrário com o outro. Há, segundo o autor, neste caso, variação da “força de existir”; “vis existendi” ou potentia agendi. Deleuze diz que esta é uma variação contínua (p. 25). Cito: “Em outros termos, há uma variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumentodiminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem [...]” (p. 26); “[...] e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afeto (affectus), ao mesmo tempo, em sua correlação com as ideias e sua diferença de natureza com as ideias [...].” (p. 2575

(f) Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política Espinosa define o afeto indignação como "[...] o ódio por alguém que fez mal a um outro." (E III Def af 20 p. 245). No rol das Proposições da mesma parte III, sua definição é a de número 22, em seu escólio. Diz a Proposição 22 que "Se imaginamos que alguém afeta de alegria a coisa que amamos, seremos afetados de amor para com ele. Se, contrariamente, imaginamos que a afeta de tristeza, seremos, contrariamente, afetados de ódio contra ele." (E III P 22 p. 189). Os conceitos movimentados por Espinosa para o entendimento do afeto indignação são imaginação, alegria, amor, tristeza, ódio, e a relação com o outro. A relação com o outro fica clara quando Espinosa apresenta uma triangulação entre dois homens - no mínimo - e uma coisa, que pode ser outro homem. Tal triangulação ocorre da seguinte maneira: um homem - suponhamos A - afeta outro - suponhamos B - de alegria. Este outro é a coisa que amamos - supondo que sejamos (C, C', etc.). Por conseguinte, diz Espinosa, todo C será afetado de amor por aquele primeiro homem A. E vale o inverso no que se refere ao afeto tristeza. Se imaginarmos que A afeta B de tristeza, sendo B a coisa que amamos, nós - cada um de nós (C, C', etc.) - seremos afetados de ódio em face de A. Esse é o mecanismo afetivo, a lógica dos afetos, para a triangulação entre três homens - ou mais, numa complexificação da relação - e os afetos alegria, tristeza, amor e ódio. Assim, sinto amor por quem ama quem eu amo e ódio por quem odeia quem eu amo. Se aquele que odeia quem eu amo faz um mal a este, por esta lógica afetiva, será por mim odiado. Este afeto é a indignação, e sua estrutura decorre do mecanismo afetivo descrito na Proposição 22 da Ética III. Ocorre que esta relação pode se complexificar. Basta colocar mais homens num dos polos, experienciando o mesmo afeto. Suponhamos que trinta homens amam A. Isto é, pela lógica afetiva do amor, A provoca em cada um dos trinta homens uma ideia que faz que haja, em cada um deles, aumento da alegria, pois o amor é uma alegria ou amento da potência 26). Sobre estes afetos em outro importante comentador: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 173-182.

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acompanhada da ideia de uma causa exterior (E, III, Def af 6 p. 241). Neste caso, a causa exterior, em cada um dos trinta homens, é A ou uma ação feita por A. B faz a A algo que para este é um mal. Por conseguinte, os trinta homens odiarão B, isto é, sentirão o afeto indignação em face de B. B pode ser um conjunto de homens. Neste caso, todos estes homens serão objeto e motivo do ódio de outros, os quais sentirão indignação por aqueles. O mimetismo afetivo terá papel importante na disseminação desse afeto, por sentirmos pelo outro um afeto em razão da mera semelhança desse outro em relação a nós. Aprofundarei este ponto no item a seguir (item (g)). Não é difícil compreender a razão da importância do afeto indignação para a política. Ou, mais precisamente, ele interessa na medida em que pode apontar para a morte da cidade. O tema da política, como já afirmado, será aprofundado apenas no capítulo seguinte. No entanto, neste momento do texto, para mostrar mais claramente o conceito de indignação, farei uma incursão pela política para explicitar uma duplicidade deste afeto em relação ao corpo político. Duplicidade, isto é, seu papel pode ser entendido como uma espécie de critério da qualidade da cidade em face dos seus cidadãos-súditos e, simultaneamente, como sendo o da causa da morte da cidade como corpo político. Analiso em pormenor este ponto a seguir. No Tratado político, Espinosa abre o parágrafo102 4 do capítulo IV perguntando se o poder soberano está adstrito às leis e, consequentemente, se pode pecar. A questão do pecado do poder soberano em Espinosa deve ser entendido à luz do escólio 2 da Proposição 37 da Ética IV (E IV P 37 Esc 2 pp.309-311). Lá, como mostrarei em pormenor na ocasião propícia, Espinosa laiciza totalmente este conceito, ao dizer que pecado e injustiça podem ser considerados sinônimos. E ambos devem ser entendidos como uma violação, pelo súdito, de uma lei da cidade. A questão que abre esta passagem do Tratado político, portanto, é relevante na medida em que mostra que a cidade que não se submete às leis da natureza poderia ser considerada não uma cidade, mas uma quimera (chimaera G III 293). Por consequência, a cidade 102

Usei e usarei, por hábito, parágrafo em vez de artigo, ainda que Espinosa se refira aos parágrafos, no texto do TP, como sendo artigos. 77

está, escreve Espinosa, submetida às leis, e não pode pecar. Há um elemento ontológico, de potência, na lei da cidade, e esta natureza ontológica da lei não pode ser desconsiderada. As leis às quais a cidade está submetida têm relação com as leis da natureza como um todo, portanto. Fazer o que quiser com a mesa, ter direito sobre ela, não é o mesmo que poder fazer que ela "coma erva" (TP IV 4 p. 39), afirma Espinosa. Nesse sentido, entre outros, como mostrarei, o direito da cidade tem sua feição ontológica e sua submissão às leis da substância. Ora, os homens, como parte da natureza, também não podem ser objeto da violência da cidade. Isto é, o poder soberano não pode desconsiderar a natureza, e não pode desconsiderar a natureza humana, escreve Espinosa. Nesse sentido, afirma:

[...] embora digamos que os homens estão sob jurisdição não de si mas da cidade [homines non sui sed civitatis juris esse G III p. 293], não entendemos que os homens percam a natureza humana e adquiram uma outra, nem que a cidade tenha o direito de fazer com que os homens voem ou, o que é igualmente impossível, que os homens olhem como honroso o que provoca riso ou náusea; [...]. (TP IV 4 p. 39).

A seguir Espinosa diz que a cidade, para estar sui juris (sob jurisdição de si própria), tem de preservar as causas do medo e da reverência, pois de outro modo deixa de ser cidade (TP IV 4 p. 39). O medo não poderá ser disseminado no corpo político de modo que anule as potências dos súditos. Ainda aprofundarei a questão da relação entre potência da cidade e potência de cada cidadão-súdito. Por ora interessa mostrar como o afeto indignação se insere na discussão propriamente política. No parágrafo 6, Espinosa afirma - uma vez estabelecidas as balizas da questão de o poder soberano da cidade, por ser coisa natural, não poder desconsiderar a própria natureza - que as leis pelas quais a multidão (multitudo G III 294) "[...] transfere seu direito para um só conselho ou para um só homem [...]" (TP IV 6 p. 40) devem ser violadas quando à salvação comum interessa violá-las. Mas Espinosa acrescenta uma passagem a este raciocínio que deve ser analisada:

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Se, contudo, elas [as leis da cidade, o direito civil] são de natureza tal que não podem ser violadas sem que ao mesmo tempo se debilite a robustez da cidade, isto é, sem que ao mesmo tempo o medo comum da maioria dos cidadãos se converta em indignação [Quod si tamen ejus naturae sint, ut violari nequeant, nisi simul civitatis robur debilitetur, hoc est, nisi simul plerorumque civium communis metus in indignationem vertatur G III p. 294], a cidade, por isso mesmo, dissolve-se e cessa o contrato, o qual, por conseguinte, não é defendido pelo direito civil [jure civili] mas pelo direito de guerra [jure belli] (TP IV 6 p. 41).

O que significa esta rica passagem? Primeiro, Espinosa afirma que as leis da cidade devem ser violadas no caso em que a salvação comum está em jogo. Isto é, quando a cidade não é para cada um dos súditos-cidadãos, não existe para possibilitar o exercício da potência de cada um, mas para levar o conatus de cada um ao entorno de um grau zero103, é o caso de violá-las. Mas isso não implica que cada privado possa fazer o que quiser, exercer seu poder como lhe aprouver. Somente quem detém o imperium pode violar as leis (TP IV 6 pp.40-41). Logo depois desse raciocínio segundo o qual quem viola a lei é o soberano vem a passagem acima citada, como contraponto. Não casualmente, a passagem se inicia com "Se, contudo, [...]." (TP IV 6 p. 41). Ou seja, há uma exceção à regra do imperium como intérprete único da situação da violação do que é comum. Este é o caso, de acordo com o texto citado, em que as leis (ou seja, o direito civil da cidade) são de tal natureza que sua violação gera, ao mesmo tempo, a debilidade da robustez da cidade (civitas robur G III p. 294). Mas como isto ocorre? Ora, Espinosa utiliza a lógica dos afetos para explicar esta situação. De fato, a robustez da cidade abalada é sinônimo, indica o texto pela expressão isto é (hoc est), da situação em que o medo comum da maioria se converte em indignação. De fato, o que mantém a cidade 'como que sob uma só mente' é um imaginário de medo civil à punição das leis. Medo civil, e não medo paralisador da potência. A questão é mais complexa que esta afirmação, mas desdobrarei o ponto no capítulo seguinte. O que interessa para este momento é a tese espinosana de que um regime afetivo de, digamos, medo civil, medo da lei104, possa se transformar em regime afetivo da indignação. 103

O termo 'em torno de um grau zero' se inspira no artigo seguinte: LIRA, José Tavares Correia de. Suicídio e preservação de si: em torno de um grau zero de conatus. In: Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1996, pp. 113-134. 104

Ver sobre este tema: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 184. 79

A indignação, define a Ética III, ponto já analisado acima, é um afeto que pode ser entendido como "[...] o ódio por alguém que fez mal a um outro." (E III Def af 20 p. 245). O medo, como afeto triste, é, paradoxalmente, apropriado pelas instituições da cidade para gerar a segurança como afeto derivado da esperança cuja dúvida cessou. Isto é, a cidade é capaz de fazer da esperança uma segurança por meio de leis que são respeitadas. Cria-se um imaginário comum de futuro seguro, em que leis, que por hábito são cumpridas, continuarão a ser cumpridas. Mas há um custo. O súdito-cidadão tem que temer a punição, sob pena de que a luta entre potências individuais anule as potências individuais elas mesmas e transforme o estado civil em lugar do direito natural como abstração, como opinião (TP II 15 p. 19). É necessário certo grau difuso de medo da lei, ou da punição em caso de violação da lei, uma espécie de medo cívico, para que o súdito-cidadão possa ter o exercício de sua potência individual em um ambiente de relativa segurança, de equilíbrio do futuroimaginado-como-presente garantido por instituições. Mas por que o medo comum pode vir a ser indignação comum, afeto que rompe a lógica da comunidade ao mesmo tempo em que aponta para o fato de que havia apenas falsa comunidade? Ora, a chave para se entender este tema espinosano está na passagem citada acima. De fato, o medo comum como medo civil da punição em caso de violação da lei propicia robustez afetiva à cidade. E a cidade detém o imperium, aliás, é o corpo inteiro do imperium (TP III 1 p. 25). E tem a incumbência da república quem, por consenso comum, detém absolutamente o imperium (TP II 17 p. 20). Uma das incumbências de quem detém o poder soberano - incumbência da república - é decretar o conjunto de leis da cidade, interpretar tais leis e aplicá-las. O poder soberano, pois, faz as leis e as aplica. Mas como as leis fundam sua ontologia na potência da multitudo, tema que desenvolverei no capítulo seguinte, o conjunto de súditos-cidadãos deve temer as leis civis desde que estas não se apresentem contrárias à natureza humana e à natureza da cidade. Quando o soberano contraria a natureza (humana ou da cidade), o direito comum que o sustenta por meio do medo às suas decisões se transforma em

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ódio a alguém que fez mal a outro, ou seja, indignação comum ou indignação da maioria em face do poder soberano. O poder soberano que edita leis que procuram controlar o que se pensa e o que se diz, cujos membros correm ébrios ou nus com rameiras pelas praças (TP IV 4 p. 39), desrespeitam as leis que eles mesmos ditaram (TP IV 4 p. 39), assassinam súditos, os espoliam, entre outras atitudes que contrariam o motivo pelo qual o poder soberano foi criado, gera nos súditos um afeto que corrompe a cidade: a indignação. A lógica da indignação está em se odiar quem fez um mal a alguém que se ama. No caso da cidade, o medo das leis por ela editadas é que a sustenta do ponto de vista ontológico. O medo civil, isto é, o medo da punição da lei em caso de violação105, é um dos afetos-base da sustentação da cidade como equilíbrio ontológico de forças entre o direito de cada súdito e o direito do soberano. Quando tal medo se transmuta em ódio ao soberano que viola as próprias leis que editou, entre outras ações que levam à desnaturação da cidade, o que ocorre é que a potência de quem dá potência ao poder soberano se direciona no sentido de o dissolver. É isso o que Espinosa chama, na passagem citada, de defesa do contrato não pelo direito civil (jure civili G III p. 294), mas pelo direito de guerra106 (jure belli G III p. 294). Ou seja, quando o poder soberano gera um imaginário afetivo de medo transmutado em indignação, a potência dos súditos não mais se canaliza para dar potência ao soberano e às suas leis, mas para destruí-lo. De fato, neste caso, manter o "contrato" é o direito de guerra em face do "contrato". E o termo contrato, em Espinosa, como procurarei desenvolver em outra ocasião, tem sentido diverso de uma comunhão de vontades livres fundadoras de um pacto comum. O sentido parece estar mais próximo de um equilíbrio de forças que gera o poder soberano defensor do comum. Quando o soberano deixa de 105

Ver sobre o tema do medo da lei como diferente do medo bruto do estado de natureza: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 174 106 Sobre a prudência como a própria realidade do conatus, o qual pode, em defesa de sua liberdade, exercer um direito de guerra, ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09-101, especialmente p. 17. Para o tema da perspectiva da guerra e uma aproximação com Maquiavel, pp. 31-36. Sobre o tema da resistência, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 264-301.

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defender o comum, simultaneamente abre a possibilidade do surgimento do afeto que, difuso, será a causa de sua dissolução. Com efeito, nesta ocasião, apenas o direito de guerra, isto é, a luta contra o poder soberano opressor, restará como ponto de defesa dos direitos naturais dos súditos-cidadãos. A indignação é, portanto, o afeto que, se sentido pela maioria, põe em xeque a potência do soberano e dissolve a cidade em nome dos direitos naturais de cada súdito-cidadão. E sua face, por conseguinte, é dupla. De um lado, é o afeto que a cidade deve temer (TP III 9 pp. 30-31), pois é o afeto do suicídio da cidade, de sua dissolução. De outro, é sinal de que aquela configuração de poder já não mais atende à razão pela qual foi criada. Daí que o direito civil passe a ser, neste caso, o direito de guerra. Ou seja, o direito de defender o direito natural de cada um quando o poder soberano da cidade já não o faz mais. Ou, por outra, o direito de guerra se apresenta como o poder de retirar do soberano seu poder de dizer o que é a lei e de fazer leis. Neste caso, o direito civil, por ter se desnaturado como tal, se apresenta como direito de guerra. O ponto alto da argumentação espinosana está em que é um afeto, sentido coletivamente e direcionado a quem faz o mal à cidade - o afeto indignação -, o fundamento da dissolução da cidade. O conceito de direito espinosano, como mostrarei em detalhe no capítulo seguinte, corre também no trilho dos afetos: é potência.

(g) Mimetismo afetivo Uma psicossociologia, segundo Macherey, seria o termo usado contemporaneamente107 para o que Espinosa apresenta nas Proposições 21 a 34 da parte III da Ética. Nelas, a relação dos homens entre si se apresenta em sua lógica

107

O termo psicossociologia, utilizado por Macherey, é, certamente, anacrônico. Tal expressão não se encontra nos textos de Espinosa, mesmo porque o termo sociologia não havia sido criado no século XVII. O termo sociologia, mais precisamente, foi forjado na primeira metade do século XIX por Auguste Comte. É grego, por outro lado, o termo psyche, portanto anterior a Espinosa. Não obstante, a expressão psyche não se encontra nos seus textos. Mantenho, em alguns momentos do texto, por questões didáticas, o uso do termo psicossociologia, com essas ressalvas. Importa lembrar que Macherey o utiliza fazendo também uma ressalva ("[...] Spinoza se engaja numa empresa do que nós chamaríamos hoje de uma psicossociologia."- tradução minha, p. 188, nota 2). Ver: MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 188, nota 2. 82

afetiva. E, mais largamente, escreve o autor, referindo-se à parte III da Ética como um todo - no mesmo sentido da hipótese desta tese -, a teoria dos afetos embasa a socialidade e a política que daí decorre108. Uma psicossociologia, diríamos hoje, sobre como Espinosa relaciona mente-imaginação, lógica afetiva e construção de relações de vínculo social entre os homens. O que significa este conceito? Significa que os homens como conatus ou, mais especificamente, como seres desejantes, são abertos uns aos outros, assim como ao mundo. São espécies de Janus que, em vez de bifrontes, têm múltiplas faces, com janelas abertas para o mundo, aí inclusos os outros homens. Este regime de troca afetiva entre homens, esta economia dos afetos109, quando se apresenta como mimetismo afetivo110, é um dos fundamentos mais relevantes para a política. Analiso a seguir os fundamentos da tese espinosana da mimese afetiva. Seu

aspecto

central está

na

Proposição 27

e

em

seus

desdobramentos, isto é, demonstrações, corolários e escólios (E III P 27 pp. 195-197). Estabelece a Proposição 27 que "Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa imaginação, afetados de um afeto semelhante." (E III P 27 p. 195). Espinosa usa a expressão "Por imaginarmos". Ou seja, é a potência de imaginar da mente que traz um efeito à mente daquele que imagina. E isto ocorre quando este homem imagina uma coisa semelhante a si afetada de algum afeto. "Uma coisa semelhante a nós" (quod rem nobis similem - E III P 27 p. 194; G III p. 160): este termo remete a uma capacidade de ser movido pela imagem de algo semelhante a nós - imaginar um outro humano afetado de algum afeto. Remete, pois, ao conceito que será trabalhado no escólio da

108

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 188. Afirma o autor: “Esta temática propriamente política será explicitada na parte seguinte da Ética, e ela será explorada sistematicamente na última obra de Espinosa, o Tratado político: mas seus conceitos de base e suas grandes orientações se encontram já formulados no contexto da teoria dos afetos que constituem a terceira parte da Ética, onde são lançados os fundamentos de uma análise das formas humanas da socialidade”. (p. 188 - Tradução minha). 109 MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, p. 189, p. 215. Ver também: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídicopolítica na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 244. 110 O termo é usado como parte do título do capítulo 3 do livro de Macherey (MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 183262, especialmente pp. 214-226). 83

Proposição 50 da Ética IV, a saber, o de desumanização. Neste escólio Espinosa afirma que aquele que "[...] não é levado nem pela razão, nem pela compaixão [commiseratione], a ajudar os outros, é, apropriadamente, chamado de inumano, pois (pela prop. 27 da P. 3) parece não ter semelhança com o homem." (E IV P 50 Esc p. 323). Não desdobrarei o tema da desumanização a partir dos conceitos espinosanos, o que poderia indicar, para análises sobre os tempos atuais a partir dos conceitos espinosanos, penso, uma dissolução da política, um regime fascista, o qual pode inclusive vir travestido do mais pleno estado de direito111. No momento, o objetivo é explicar o mecanismo da imitação afetiva, fundado na Proposição 27 do de Affectibus112. O fundamento da Proposição 27, explicitado na Demonstração seguinte à Proposição, está em teses já expostas por Espinosa nas Proposições 16 e 17, escólio, da parte II da Ética (E II P 16 e P 17 Esc pp. 107-111). Nelas, Espinosa mostrou que as imagens das coisas são afecções do corpo e que as ideias desses corpos exteriores são presentes a cada um de nós. As ideias do corpo exterior envolvem a natureza do corpo exterior e a natureza do nosso corpo, que foi afetado pelo corpo exterior. Sendo a natureza do corpo exterior semelhante à do nosso corpo, "[...] se imaginarmos que uma coisa semelhante a nós é afetada de algum afeto, seremos afetados de um afeto semelhante ao seu." (E III P 27 dem p. 195). No escólio seguinte à demonstração, Espinosa usa a expressão imitação dos afetos (affectuum imitatio). E diz que tal imitação dos afetos, quando se refere à tristeza, chama-se compaixão113. Quando tal imitação se refere ao desejo (cupiditatem), chama-se emulação (aemulatio). E este afeto é definido como sendo o desejo de alguma coisa produzido

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Sobre o tema da desumanização, ver um belo ensaio de Laurent Bove, que traz um diagnóstico sobre o terror ordinário vivido pelas pessoas no mundo contemporâneo: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-multitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. Afirma o autor: “O terror não é apenas um simples sentimento de medo, e mesmo de pânico extremo, mas o poder mortal, silencioso e secreto que distancia o coração e o espírito da identificação espontânea à dor do semelhante.” (p. 118) (tradução minha). Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. 112 Quem usa o termo para se referir à parte III da Ética é P. Macherey. 113 Na tradução de Tomaz Tadeu, a expressão usada para o termo commiseratio é comiseração. Optei por usar compaixão, tradução pela qual opta Roberto Brandão. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza__etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014, p. 49. 84

em nós por imaginarmos que os outros, semelhantes a nós, têm esse mesmo desejo. No escólio, por fim, Espinosa afirma que essa vontade (voluntas) ou esse apetite (appetitus) - que para Espinosa, como visto, são sinônimos (E III P 9 esc p. 177) - de fazer o bem que provém da compaixão em face da coisa em relação à qual se quer fazer o bem chama-se benevolência (benevolentia), ou seja, um desejo surgido da compaixão (E III P 27 Esc p. 197). Depois, trata do apreço (favorem)114 e da indignação, remetendo ao escólio da Proposição 22 (E III P 22 esc p. 191). Gostaria de indicar, a seguir, por que há nesta Proposição e em seus desdobramentos (demonstrações, corolários e escólio) tanto uma psicossociologia para usar um termo anacrônico, porém didático - quanto um apontar para a socialidade e para a política. Uma psicossociologia pode ser entendida como um jogo de cada psique, de cada mente de cada homem, com a do outro, numa economia de psiques. Isso de tal maneira que se chega a um todo ou alguns todos, os quais se apresentam não mais como individuais no sentido de um homem separado do outro, mas como coindividuais ou sociais. Uso o termo co-individual para mostrar que, na imitação dos afetos, o indivíduo continua indivíduo, com sua ratio de movimento e repouso e com suas ideias se encadeando e, simultaneamente, partilhando do outro enquanto ideiaimagem presente em sua mente. Ou seja, cada homem como desejo experimenta o outro no seu corpo como afeto, mas não um afeto qualquer, mas uma imitatio, um caminhar no mesmo sentido do outro. Como os afetos primários são a alegria e a tristeza enquanto transição [transitio] do desejo de cada homem, quando um homem tem sua potência diminuída porque viu o infortúnio alheio (compaixão), pela lógica dos afetos, o que ocorre é o que segue: este homem é levado com o pathos do outro, ou melhor, é levado pelo pathos que o outro sente. Sentir-com o outro é ter uma presença do outro em si mesmo, como imagem, simultaneamente a um afeto de tristeza, portanto de diminuição da potência do desejo. Mas o que importa para a lógica da imitação é um afeto cuja mecânica é a mesma do afeto do outro, tudo isso produzido pela imagem do 114

Apreço é o termo que Roberto Brandão usa em sua tradução para o termo favorem. Tomaz Tadeu usa reconhecimento. Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014. 85

outro em mim e que me move no mesmo sentido do outro, provocando em mim, tal qual no outro, um mesmo sentimento de tristeza. Ambos os modos finitos, por imitação, vão num mesmo sentido afetivo. São, afetivamente, como um. A mesma lógica vale para a emulação, que nada mais é, escreve Espinosa, do que seguir o desejo do outro, isto é, o que ocorre quando o meu desejo segue o que o desejo do outro deseja. Como o desejo do outro é o desejo de alguma coisa, quando o meu desejo deseja o mesmo que o do outro, o afeto que sinto é a emulação (E III P 27 esc p. 195). Portanto, seja na diminuição da potência, seja em seu aumento, tanto as coisas do mundo podem estar presentes em meu corpo e mente, como outros homens podem também estar presentes - como imagens, como afetos. Na compaixão, o movimento do afeto em mim e nos outros é no sentido da tristeza. Na emulação, imito o desejo do outro e o impulso do corpo e da mente se dão no mesmo sentido do impulso do outro. Nesse momento, o outro e eu não mais somos apenas mentes isoladas, mas algo de comum nos une num sentido. Neste momento o laço social está formado. Por isso se trata, como bem definiu Macherey115, de uma psicossociologia fundada na imitação dos afetos. Os laços sociais, os quais fundarão a política, são eminentemente afetivos e, portanto, portadores de potências, de direitos116. 115

MACHEREY, Pierre. Introduction à l’Éthique de Spinoza: La troisième partie – La vie affective. Paris: PUF, 1995, pp. 183-262. Como afirmado em nota anterior, Macherey afirma que Espinosa faz o que hoje se chamaria de uma psicossociologia. Mantenho o termo, em alguns momentos do texto, por uma questão didática, como afirmado em nota anterior. 116 Para Espinosa, potentia sive jus (potência equivale a direito), como ficará claro no capítulo 2. No mesmo sentido, ver: BOVE, L, MOREAU, P-F., RAMOND, C., JAQUET, C. Le Traité politique: une radicalisation conceptuelle? In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 27-44, especialmente p. 38. Também, com a mesma tese: CHAUI, Marilena. Direito é potência: Experiência e geometria no Tratado político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 197-264. Para uma aproximação entre os conceitos de conatus, desejo, direito como potência e afetos, ver: NEGRI, Antônio. Spinoza, Baruch, 1632-1677. In: CHÂTELET, F., DUHAMEL, O. PISIER-KOUCHNER, E. (ORG). Dictionnaire des oeuvres politiques. Paris: PUF, 1989, pp. 765-777. Consultada tradução do verbete de http://www.spinoza_leitores.blogger.com.br/index.html. Acesso 14 FEV 2014. Afirma o autor: “A liberdade do indivíduo começa a ser definida como potência constitutiva. A potentia, figura geral do Ser, sustentando a concepção do conatus como impulso de todo ser para a produção de si mesmo e do mundo, exprime-se então como cupiditas e investe de maneia constitutiva no mundo das paixões e das relações históricas” (p. 3). Também sobre o tema: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 150. Diz na p. 201: "A doutrina de Espinosa sobre o direito natural resulta da aplicação do princípio metafísico do conatus ao campo jurídico." (p. 201). L. Bove mostra o direito em Espinosa como passando do domínio moral e jurídico para o domínio da ontologia. Ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. 86

O escólio da Proposição ora analisada trata, em seu final, do amor e do ódio em face daquele que "[...] fez o bem ou o mal à coisa que imaginamos ser semelhante a nós [...]." (E III P 27 Esc p. 197). Remete, para isso, ao escólio da proposição 22 da mesma parte. Como analisado, no referido escólio da Proposição 22 Espinosa trata do reconhecimento (favorem) (apreço na tradução de Roberto Brandão117) e da indignação (indignationem). E complementa dizendo que é possível sentir compaixão, apreço ou indignação por uma coisa pela qual não fomos tomados, anteriormente, de qualquer afeto, desde que a julguemos semelhante (similem) a nós. É o caso que se explica na Proposição 27, acima analisada. Portanto, o afeto indignação, acima explicado, aponta para sua natureza política na medida em que seu mecanismo pode se dar por imitação dos afetos. Assim, quando grande quantidade de homens sente ódio daqueles que compõem o poder soberano, a cidade deve temer sua dissolução. Pelo mesmo mecanismo, mas numa lógica dada com outro afeto, a emulação fará que a robustez da cidade, por um movimento de emulação de um desejo por muitos que desejam aquilo, possa ser formada. Se o desejo a ser emulado gera, pelo mecanismo afetivo da emulação, aumento da potência de cada um que experiencia este afeto, a alegria poderá ser experimentada na cidade. Procurarei mostrar, no capítulo 2, que a cidade é uma construção afetiva mais complexa, a qual envolve uma ontologia afetiva em exercício dos seus membros entre si e destes com o poder soberano. Em tal complexidade no exercício afetivo se destacam os afetos medo-esperança, segurança, ambição, entre outros, bem como o conceito de emulação. O direito, como transição de potência, tanto do soberano como de cada súdito-cidadão, também estará presente nessa construção da socialidade e da política.

d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, p. 09-101, especialmente pp. 09-10. 117

Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014.

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(h) Não há tantos nomes: os vocábulos e os afetos Ao se referir à definição de commiseratio (compaixão, comiseração) no Escólio da Proposição 22 da Parte III, Espinosa a conceitua, tal qual o fizera na Proposição 21, como "[...] a tristeza originada da desgraça alheia." (E III P 22 Esc p. 191). E logo acrescenta: "Não sei, por outro lado, como denominar a alegria originada da felicidade alheia." (E III P 22 Esc p. 191). Como denominar: Espinosa aponta aqui para a tese, que será recuperada em outras Proposições da mesma parte III, de que não há nomes para todos os afetos existentes e experimentados pelos homens. Outra tese está implícita nessa passagem: os nomes não dão à coisa uma natureza, bem como a natureza das coisas independe dos nomes. De fato, no que se refere aos afetos, a tese fundamental de Espinosa já fora apresentada no Escólio da Proposição 11. Segundo esta tese, o desejo, a alegria e a tristeza seriam os afetos primários (affectum primarium), e, tirante esses três, escreve Espinosa, "[...] não reconheço nenhum outro afeto primário." (E III P 11 Esc p. 179). Mas a tese se desdobra no momento em que o autor afirma que "[...] desses três provêm todos os outros." (E III P 11 Esc. p. 179). Compreende-se facilmente esta tese espinosana caso se entenda o homem como desejo-potência que transita (transitio) entre um máximo e um mínimo de intensidade, ou seja, entre um máximo e um mínimo de potência. Sendo a transição de um menos a um mais, tem-se a alegria, e sendo tal transição de um grau maior a um menor, tem-se a tristeza - o tema da transição foi analisado no item d.3, acima. Se há, pois, apenas desejo - de cada homem como coisa singular numa transição de um máximo a um mínimo e vice-versa, o número de nomes a serem dados aos afetos deve ser indeterminado, tal qual o número de círculos existentes entre dois círculos concêntricos de raios diversos. E Espinosa explicita este raciocínio no Escólio da Proposição 52. Após mostrar que o número de afetos derivados de alguns primários é grande - fala no mesmo Escólio da admiração, do pavor (consternatio), da veneração, do horror (derivado da ira e da inveja que se vê no outro), da adoração, do ódio, da esperança, da segurança -, conclui que se poderia deduzir "[...] muito mais afetos do que os que 88

são designados pelos vocábulos habitualmente aceitos." (E III P 52 ESc pp.223-225). E arremata: "É, pois, evidente que os nomes dos afetos foram cunhados muito mais por seu uso vulgar [vulgari usu] do que por seu conhecimento cuidadoso." (E III P 52 Esc p. 225). Conhecimento cuidadoso é exatamente o que foi proposto na Ética, e não casualmente ela foi elaborada more geometrico. Mas por que Espinosa insiste, então, em uma nominação dos afetos? Ora, em primeiro lugar - eis uma hipótese -, o que importa é mostrar que, pelo método geométrico, é possível definir, isto é, conhecer pela causa, cada um dos afetos mais comuns, que mais se apresentam na vida cotidiana dos homens. Afinal, se como dissera Espinosa no Prefácio ao De Affectibus, o que importa é conhecer o "[...] modo de vida dos homens [...]" (E III Pref p. 161) numa perspectiva diversa daquela que outros filósofos fizeram (E III Pref p. 161), importa, é evidente, mostrar, ou melhor, definir precisamente o que são (cada um) os afetos, sobretudo os mais comuns. Mas eis uma empresa impossível se definir fosse o mesmo que nominar. O projeto espinosano, entretanto, não pretende tornar sinônimos o nominar e o definir, mas, pelo método do conhecer pela causa, compreender o que são cada um dos afetos mais comuns, bem como compreender o mecanismo de todos eles. Assim, no projeto mais amplo de uma ética, que pretende compreender o campo da ação dos homens, fica claro que importa definir os afetos mais comuns no modo de vida dos homens. Porém, tal conhecer não é o conhecer do vulgo, mas o conhecer da gênese dos afetos, dos primários e de todos que deles derivam. Portanto, não há contradição entre Espinosa, de um lado, nominar um rol de afetos e buscar-lhes a gênese, isto é, defini-los, e afirmar, ao mesmo tempo, como fez no Escólio da Proposição 52, que os nomes não dão conta do número ilimitado de afetos existentes. Com efeito, a tese da transição do desejo permite a compatibilidade entre estes dois pontos. A tese fica clara no Escólio da Proposição 59. Nele, ao tratar dos afetos oriundos dos ditames da razão - generosidade e firmeza de ânimo 89

(generositatem e fortitudinem) -, e de vários afetos daí derivados, Espinosa afirma "[...] ter explicado e mostrado, por suas causas primeiras, os principais afetos e as principais flutuações de ânimo que derivam da composição dos três afetos primitivos." (E III P 59 Esc p. 237). Por fim, conclui, no mesmo sentido do que fora explicitado nas demais Proposições anteriormente analisadas, que "[...] os afetos podem compor-se entre si de tantas maneiras (...) que se torna impossível determinar seu número." (E III P 59 Esc p. 237). "[...] Mais curiosos que úteis." (E III P 59 p. 237). Com estes termos, Espinosa justifica o fato de ter tratado apenas dos principais afetos, e não de muitos mais. Logo após lançar mão destas teses, Espinosa explicita uma posição que, a meu ver, tem grande relação com a tese, hoje sustentada por vários comentadores118, de que o campo da imaginação tem enorme relevância para a política. Como mostrarei logo abaixo em tom inicial, e mais profundamente no capítulo seguinte, as imagens, e portanto o corpo, terão enorme importância para a vida ética e, sobretudo, para as construções políticas. O amor, que fora definido como o aumento da alegria concomitante à ideia de uma causa exterior (E III P 13 Esc p. 181), é recuperado neste Escólio para distanciá-lo de qualquer concepção não mundana ou transcendente. De fato, o exemplo do alimento que incita o desejo, "[...] algo que comumente nos agrada por seu sabor [...]" (E III P 50 Esc p. 237), é movimentado para mostrar ao menos duas importantes posições teóricas espinosanas. Em primeiro lugar, o exemplo para tratar do amor não aponta para a Ideia de belo ou bom, como na tradição platônica se o entende119. Trata-se, em vez disso, de algo do cotidiano dos homens, ou seja, o ato de se alimentar. Mas, depois de "[...] o estômago tornar-se cheio [...]" e o corpo se tornar "[...] diferentemente disposto [...]" (E III P 59 Esc p. 237), a indicação do desejo, em razão desta nova disposição do corpo, será outra. Ou seja, o afeto como uma ideia do corpo, tese que poderia parecer algo abstrata, é posta nesta passagem em toda a sua 118

Sobre o tema, ver o seguinte ensaio de Diogo Pires Aurélio: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000. 119 Ver: PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcante de Souza. In: PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Abril Cultural, 1972, especialmente pp. 47-48 (210a até 212c). 90

caracterização, por assim dizer, mundana. Tal importância do corpo, ou do afeto como algo corporal, cuja percepção pode se dar pela mente como ideia do corpo, se revela, na sequência do Escólio e na mesma linha de argumentação do ilimitado número das variações afetivas e dos tipos de afeto, algo ainda mais ousado. Com efeito, Espinosa enumera, após o exemplo do amor à comida, um rol de afetos que se referem predominantemente ao corpo. O tremor, a palidez, o soluço, o riso, escreve Espinosa, "[...] se referem exclusivamente ao corpo, sem qualquer relação com a mente." (E III P 59 Esc p. 237). Este Escólio, somado a outras passagens do Tratado político (TP I 7 p. 10; TP II 5 p. 12; TP VI 1 p. 47; TP X 9 p. 135) que serão analisadas, bem como a momentos da Ética em que Espinosa fala do comportamento mais comum aos homens, ou seja, de serem em geral contrários uns aos outros - "[...] é raro que os homens vivam sob a conduta da razão [...] o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos." (E IV P 35 Esc p. 303) - aponta para um dado relevante, a meu ver. Tal dado é o da importância fundamental da política como astúcia institucional fundada nas noções comuns120. Instância criada para que, mesmo por vias imaginativas predominantemente, os homens possam ser úteis uns aos outros. Tal utilidade, que seria máxima pelo uso da razão, ocorre por meio do que há de comum, já que aos homens o uso da razão é raro (E IV P 35 Esc p. 303, entre outras). O raro é o uso da razão. O mais frequente é que os homens sejam guiados pelos afetos, isto é, pelos afetos passivos (alegres ou tristes) mais comuns, que são imagens na mente advindas das afecções do corpo, e não pelos afetos ativos, advindos exclusivamente do uso da razão. Os homens, escreve Espinosa, julgam frequentemente as coisas apenas por seu afeto (E III P 51 Esc p. 221). Sendo o uso da razão raro, como afirma o autor em passagens da obra, poder-se-ia dizer, com alguma hipérbole, que é pela disposição do corpo que se construirá a política, isto é, é pelas imagens advindas do corpo que alguma astúcia da razão (fundada nas noções comuns) será possível, pois os homens, ainda que mutuamente nocivos uns aos outros (E IV P 35 Esc p. 303), sabem, entretanto, que "[...] o homem é um Deus para o homem" (E IV P 35 Esc p. 303), ou seja, "[...] dificilmente podem levar uma vida solitária [...]." (E IV P 120

Trabalho este tema nos itens (a), (b) e (c) do Capítulo 2. 91

35 Esc pp. 303-305). Se a concórdia máxima é rara, alguma concórdia será necessária para a vida em comum. Alguma frequência sob a conduta da razão será necessária para a construção política, mesmo que mínima. Isto ocorrerá, pois, uma vez que razão é acordo (E IV P 35 Dem p. 303), e o comum do social virá do acordo, de algum acordo - que, na hipótese que levanto, será construído pela astúcia da razão 121 ou das noções comuns no uso da imaginação. É o que procurarei mostrar no capítulo 2, bem como nos itens seguintes. O que importa salientar por ora, entretanto, retornando ao tema específico deste item, é que os afetos são inumeráveis, e nomes são dados àqueles que são mais frequentes. Conhecer o afeto significa entender sua causa próxima, sua gênese, e isso levou Espinosa ao encontro do homem como ser essencialmente desejante. Sendo inumeráveis os afetos, mas sendo a natureza humana a mesma, é o caso de entender, não de nomear, para o elaborar afetivo da construção política mais astuta. Será preciso o mergulho no mundo humano, isto é, nos afetos mesmos, em sua lógica, em sua gênese, para entender a política como prática e elaboração eminentemente afetivas. Da natureza afetiva dos homens decorrerá a política, e os conceitos dos principais afetos - no sentido preciso de 'definição dos afetos' - serão importantes para essa construção eminentemente humana.

(i) Agir, padecer: conhecimento, afetos, propriedades comuns No item d.1 deste capítulo, suspendi a análise dos conceitos de causa adequada e ação e causa inadequada e paixão. Retomo neste momento tais temas para completar a análise da teoria dos afetos espinosana. No de Affectibus, o tema aparece inicialmente nas Definições, logo após o Prefácio. Na definição 1, Espinosa chama de "[...] causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma." (E III D 1 p. 163). E, sobre causa inadequada, afirma: "Chamo de causa inadequada ou parcial, por outro 121

O tema da 'astúcia da razão' ainda será objeto de análises no capítulo 2. Tomo-o de: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191, especialmente pp. 182-184.

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lado, aquela cujo efeito não pode ser compreendido por ela só." (E III D 1 p. 163). A seguir, na definição 2, concebe como ação o que advém da causa adequada, e como paixão o que ocorre "[...] quando, em nós, sucede algo, ou quando de nossa natureza se segue algo de que não somos causa senão parcial." (E III D 2 p. 163). E, logo após definir afeto - na definição 3 -, na explicação da mesma definição, afirma: "Assim, quando podemos ser a causa adequada de alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário, uma paixão." (E III D 3 p. 163). O tema do agir e do padecer será retomado após a longa análise dos afetos, que se estende por quase toda a parte III da Ética. Apenas nas Proposições 58 e 59, antes do início das definições, enumeradas, de cada um dos afetos tratados nas Proposições, é que o tema do agir e do padecer será retomado. Espinosa inicia a Proposição 58 fazendo um corte em face do que fora tratado até então. Afirma que, de um lado, há a alegria e o desejo que são paixões (quae passiones sunt - E III P 58 p. 234) e, por outro, os afetos de alegria e de desejo que se relacionam aos homens à medida que estes agem. Há, portanto, afetos passivos e afetos ativos, ou seja, paixões e ações e, no rol dos afetos passivos, há os tristes e os alegres. Na demonstração desta Proposição, Espinosa afirma que a mente, quer quando tem ideias claras e distintas, quer quando tem ideias confusas, esforça-se por perseverar em seu ser. Esforço, escreve Espinosa, é o mesmo que desejo. Estes dois pontos se fundam em uma Proposição-chave da parte III da Ética, já analisada, a saber, a Proposição 9 e seu escólio. O esforço da mente para perseverar é desejo, seja este esforço capaz de ideias claras e distintas, seja este esforço capaz apenas de ideias confusas. A alegria se relaciona à concepção de ideias claras e distintas, de acordo com a Proposição 53 da Ética III, na qual Espinosa concebe que, quando a mente considera a si própria e a sua potência de agir, ela se alegra (E III P 53 p. 225). A alegria é um aumento da potência da mente. Mas, sendo a mente ideia do corpo (E II P 13 p. 97), ambos modos de dois dos atributos da substância, o aumento da potência da mente ao conhecer clara e distintamente sua potência de entender é, simultaneamente, aumento da potência do corpo.

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Portanto, para Espinosa, compreender clara e distintamente, por meio da potência da mente, gera, simultaneamente, um afeto de alegria. Não há dissociação, como costumamos compreender - talvez em razão do denso peso da tradição que aparta vontade, sentimento e razão -, entre afeto e conhecimento. O conhecimento claro e distinto é simultaneamente um afeto. É o que Espinosa afirmará, de maneira explícita, na Proposição 8 da parte IV da Ética: "O conhecimento do bem e do mal [do bom e do mal - boni et mali (E IV P 8 p. 276)] nada mais é do que o afeto de alegria ou de tristeza, à medida que dele estamos conscientes." (E IV P 8 p. 277)122. A ação adequada será uma ação simultânea a um conhecimento claro e distinto e a um afeto de alegria. O exemplo que Espinosa utiliza, para tratar do conhecimento, e que se relaciona à matemática, encobre e explicita, ao mesmo tempo, certa "materialidade" do saber adequado, do conhecimento adequado sobre qualquer coisa que se possa conhecer, isto é, um saber acerca da causa próxima da coisa. É preciso conceituar o que chamo de "materialidade". Por este termo quero explicitar que as noções comuns da razão, que são o fundamento do raciocínio dos homens (E II P 40 Esc 1 p. 131), são o resultado do acesso da mente, enquanto finita, às propriedades comuns das coisas (E II P 40 Esc 2 p. 135). Isto é, o saber adequado não é uma abstração, mas a formação, na mente, por sua própria potência, de noções comuns das propriedades das coisas - daí o uso do termo "materialidade". Espinosa afirma, sobre esta questão, que "[...] percebemos muitas coisas e formamos noções 122

Na tradução de Roberto Brandão, fica ainda mais clara a relação: "O conhecimento do bem e do mal é apenas o afeto de Alegria ou Tristeza, enquanto temos consciência dele". Ver: ESPINOSA. Ética. Tradução incompleta por Roberto Brandão. Disponível em: http://www.4shared.com/office/kfgvRmM2/spinoza_-_etica__em_portugues_.html. Acesso 15 ABR 2014. Para uma interpretação diversa da que aqui propus, afirmando que o conhecimento do mau, assim como o do bom, geram, ambos, afetos de alegria, por serem conhecimentos, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 52. Afirma Lazzeri: "[...] o conhecimento do bem e do mal é sempre uma ideia da alegria ou da tristeza, mas se trata, nesse caso, de um 'conhecimento verdadeiro do bem e do mal' em que o afeto é uma consequência do julgamento verdadeiro. No caso do conhecimento verdadeiro do bem, nós nos alegramos pelo conhecimento verdadeiro da coisa e pelo fato de que ela nos é útil. No caso do conhecimento verdadeiro do mal, nós nos alegramos pelo conhecimento verdadeiro da coisa e nos entristecemos pelo fato de que ela é prejudicial." (Tradução minha - p. 52). Discordo da tese de Lazzeri não apenas em razão das palavras presentes na própria Proposição 8 (E IV P 8 p. 277), mas sobretudo pela seguinte afirmação de Espinosa: "Ora, essa ideia está unida ao afeto da mesma maneira que a mente está unida ao corpo (pela prop. 21 da P. 2), isto é (como se demonstrou no esc. da mesma prop.), ela não se distingue efetivamente do próprio afeto, ou seja (pela def. geral dos afetos), não se distingue da ideia da afecção do corpo senão conceitualmente. Logo, o conhecimento do bem e do mal nada mais é do que o próprio afeto, à medida que dele estamos conscientes." (E IV P 8 Dem p. 277 - grifos meus). 94

universais: [depois de falar do conhecimento do primeiro gênero, pela experiência vaga e pela imaginação, fala do acesso da mente às propriedades comuns das coisas] [...] 3.Por termos, finalmente, noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas [...]." (E II P 40 Esc 2 p. 135). A esse modo de conhecimento Espinosa chama de razão e conhecimento de segundo gênero. Há, ainda, escreve o autor, a ciência intuitiva. O exemplo da matemática, que vem logo após estas considerações, serve para explicar tudo isso (E II P 40 Esc 2 p. 135). O exemplo é o do número faltante numa razão em que há três números e se quer obter o quarto que esteja para o terceiro como o segundo está para o primeiro. Os comerciantes usam o método da experiência vaga e, para tal, multiplicam o segundo pelo terceiro e dividem o produto pelo primeiro. Só alcançam o resultado correto porque há a propriedade comum dos números proporcionais. Assim como é pela mesma propriedade comum dos números proporcionais que, numa ratio entre 1, 2 e 3, sabe-se, por um golpe de vista (conhecimento intuitivo), que o quarto número é 6 (E II P 40 Esc 2 p. 135). No mesmo sentido, dá-se o exemplo do conceito de círculo e de esfera, sendo aquele o resultado do movimento de um segmento de reta ao entorno de um ponto fixo, e este o resultado do movimento do semicírculo em torno de um eixo fixo. Nos três casos, não há abstração123, e talvez Espinosa os tenha usado em razão de sua limpidez, no sentido de que por eles se mostra o conhecer em seu movimento de gênese, de conhecer pela causa próxima, isto é, a causa que faz que o efeito seja aquele efeito. Não há abstração alguma nestes exemplos, pois não existe abstração - entendida como ausência de causa ou deslocamento em face da causa numa filosofia da necessidade absoluta da substância em sua autoprodução. Dessa maneira, a produção do conhecimento da essência do círculo, da esfera ou do número faltante numa razão matemática têm a mesma natureza do conhecimento de qualquer 123

No campo da geometria, Espinosa parece usar o termo num sentido que nada tem de abstrato. Com efeito, etimologicamente, geometria vem de dois radicais gregos, a saber, ge(o)- e metrikos. Segundo o Houaiss (http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=ge%28o%29- ACESSO 28 ABR 2014), ge(o) significa: "antepositivo, do gr. gê,ês 'terra (em todos os sentidos), país, região'; ocorre em vários voc. formados no próprio gr., como geografia (geōgraphía), geográfico (geōgraphikós), geógrafo (geōgráphos), geoide (geoeidēs), geômetra (geōmétrēs), geometria (geōmetría), geométrico (geometrikós), e em grande número de cultismos do sXIX para cá (geoanticlinal, geo-história, geopolítica, geo-referenciar etc.); ver geia." (grifo meu). Ou seja, geo aponta para um sentido materialista ou material, por oposição a abstração. Uma medida (de metrikos) da terra. Este sentido etimológico está, a meu ver, mais próximo do que Espinosa entende pelo vocábulo, dando-lhe um sentido de medida do que é material, ou seja, do que é um saber acerca da propriedade comum das coisas. 95

outra realidade da substância, sendo sempre tal conhecimento um conhecimento da causa próxima por meio da potência da mente para conhecer. E, mais importante para o tema que ora se discute, conhecer é o mesmo que agir. Por outra, como já analisado, o conhecimento é o resultado de um desejo da mente de perseverar em seu ser. Assim, quando conhece adequadamente, isto é, quando tem acesso à causa próxima do que pretende conhecer - a noção comum derivada da propriedade da coisa -, a mente gera, simultaneamente, um afeto de alegria. Alegria é sinônimo de aumento de perfeição, de potência. Portanto, é agir, pois agir é o mesmo que ser causa adequada do efeito gerado pela potência da mente para conhecer. Alegria da mente é ação da mente para conhecer e ação do corpo em razão do aumento - movimento - de sua potência para perseverar no ser. Afeto alegre, potência da mente, potência do corpo, conhecimento claro e distinto, noções comuns, propriedade comum dos corpos e ação são conceitos inter-relacionados na construção ética espinosana124. Ainda neste item (i), analisarei as Proposições anteriores à Proposição 40 da Ética II, bem como a Proposição 40 e seus desdobramentos. Na Proposição 59, Espinosa nomeará e conceituará os afetos que considera decorrentes do conhecimento adequado da mente e, portanto, equivalentes a ações. Tais ações são referidas ao afeto fortaleza (fortitudinem), o qual Espinosa divide em firmeza (animositatem) e generosidade (generositatem) (E III P 59 Esc p. 235). A relação entre afetos ativos e conhecimento adequado se apresenta, pois, com nitidez. Com efeito, Espinosa afirma que "Por firmeza compreendo o desejo pelo qual cada um se esforça por conservar seu ser, pelo exclusivo ditame da razão [rationis 124

Penso que um exemplo dado por Deleuze aponta para o que chamo de "materialidade" do conhecimento adequado. "Materialidade" no sentido que dei acima, por oposição a abstração, e tendo uma relação com a propriedade comum dos corpos. Este exemplo explica, a meu ver, muito bem a relação entre conhecer, propriedades comuns, noção comum, corpo e afeto. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Afirma Deleuze, sobre a composição ou o mau encontro entre uma onda e um homem, o que segue. Pelo primeiro gênero de conhecimento, jogo-me nas ondas. Nada sei. Jogo-me simplesmente. E daí vêm os encontros. A onda me fez mal se com ela não encontro nada de comum (p. 241). Pelo segundo gênero, eu sei nadar, sei compor com a onda. Não se trata de algo matemático. Ainda que a matemática seja o segundo gênero, ela não o contém. É mais que a matemática. É um saber muito prático (pp. 241-242). Os gêneros de conhecimento, nesse sentido, são como modos de existência – mais que gêneros, portanto (p. 243). Os três operam ao mesmo tempo em todos nós. Alguns homens operam mais com o primeiro gênero, outros mais com o segundo. Ainda mais: Deleuze entende as noções comuns (segundo gênero de conhecimento) como as ideias de relações (p. 274). 96

dictamine conservare - E III P 59 Esc p. 234]." E por generosidade, diz, "[...] compreendo o desejo pelo qual cada um se esforça, pelo exclusivo ditame da razão [ex solo rationis dictamine - E III P 59 Esc p. 234], por ajudar os outros homens e para unirse a eles pela amizade." (E III P 59 Esc p. 235). O "exclusivo ditame da razão" dá o tom do afeto, é simultâneo ao afeto, seja ele a firmeza de ânimo, seja ele a generosidade, sendo um a vantagem de si (firmeza), e o outro a vantagem de um outro (generosidade) (E III P 59 Esc p. 235). Resta explicitar, de maneira mais detalhada, o que vem a ser e como se dá o ditame da razão. Ao que indicam os textos espinosanos que tratam do tema, as noções comuns são o conhecimento das propriedades comuns das coisas, e por aí passa o conhecimento adequado de que a mente é capaz. Procurarei mostrar este ponto pela análise da proposição 40, bem como escólios, da parte II da Ética, assim como pelas Proposições anteriores a esta, a saber, as de número 38 e 39 da mesma parte. O corolário da Proposição 38 estabelece que [...] existem certas ideias ou noções comuns a todos os homens [quasdam ideas sive notiones omnibus hominibus communes]. Com efeito, (pelo lema 2), todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos, os quais [...] devem ser percebidos por todos adequadamente, ou seja, clara e distintamente. (E II P 38 Cor p. 129).

O lema 2, citado por Espinosa, afirma que todos os corpos estão em concordância quanto a certos elementos (E II P 13 L 2 p. 99), o que é demonstrado pelo fato, referido na definição 1 da mesma parte, de os corpos serem modo finito do atributo extensão da substância, ou seja, um mesmo atributo, distinguindo-se apenas pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e lentidão, e não pela substância (E II P 13 L 1 p. 99). Isto é, os corpos são modos finitos da mesma qualidade da substância, variando não a substância, mas elementos do atributo extensão. Assim, os corpos têm coisas em comum por serem modos diversos de uma mesma qualidade, a saber, o atributo extensão da substância.

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A Proposição 38, da qual o corolário acima referido é parte, afirma que os elementos que são comuns a todas as coisas, os quais existem igualmente na parte e no todo, somente podem ser concebidos adequadamente (E II P 38 p. 129). A Proposição 39, complementando esta tese, estabelece que "Será adequada na mente [...] a ideia daquilo que o corpo humano e certos corpos exteriores pelos quais o corpo humano costuma ser afetado têm de comum e próprio, [...]." (E II P 39 p. 129). As ideias adequadas na mente (noções comuns) serão as ideias das propriedades comuns dos corpos, e as ideias adequadas na mente que se seguem de ideias adequadas na mente serão igualmente adequadas (E II P 40 p. 131). Esta argumentação espinosana resultará na doutrina dos modos de conhecimento explicitados na parte II da Ética, no escólio 2 da Proposição 40. Mais precisamente, as Proposições e corolários acima movimentados darão a Espinosa as bases de sua doutrina das propriedades comuns dos corpos, a qual será o fundamento das ideias adequadas, geradoras de ações nos homens. A ponte que importa construir é a da relação entre conhecimento e afeto, podendo-se dizer, como procurarei desenvolver a seguir, que o conhecimento é uma manifestação do desejo e, por conseguinte, é um afeto125. E o que afirma a doutrina espinosana dos modos de conhecimento desenvolvida na Ética126? No Escólio 1 da Proposição 40, Espinosa indica que foi explicada, pela Proposição 40 e sua Demonstração, "[...] a causa das noções ditas comuns e que constituem os fundamentos de nossa capacidade de raciocínio." (E II P 40 Esc 1 p. 131). No Escólio 2 da mesma Proposição, Espinosa afirma que somos capazes de formar noções universais (notiones universales formare) de três formas, sendo duas delas capazes de ter acesso a propriedades comuns dos corpos, ou seja, capazes de formar noções comuns. Os homens podem ter conhecimento parcial das coisas singulares sem "[...] a ordem própria do intelecto [...]" (E II P 40 Esc 2 p. 133), ou 125

MIGNINI, Filippo. Impuissance humaine et puissance de la raison. In: Lazzeri, C. (coord.). Spinoza: puissance et impuissance de la raison. Paris: PUF, 1999, pp. 39-61, especialmente pp. 46-47. 126 Espinosa trata do tema dos modos de conhecimento no Breve Tratado, no TIE e na Ética. Não entrarei, por fugir do objeto da tese, na diferença entre as concepções espinosanas nas diferentes obras. Um estudo clássico sobre o tema, já citado, e no qual se faz uma abordagem geral do tema, bem como específica a cada uma das obras, é: TEIXEIRA, Lívio. A doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo: Ed. Unesp, 2001. 98

por conhecimento originado da experiência vaga127 (experientia vaga) (E II P 40 Esc 2 p. 135), ou a partir de signos, modos de conhecer que Espinosa chama de conhecimento "[...] de primeiro gênero, opinião ou imaginação [...]." ( E II P 40 Esc 2 p. 135) [primi generis, opinionem, vel imaginatonem - E II P 40 Esc 2 p. 134]. Eis o conhecimento parcial, mutilado, apenas perceptivo: o conhecimento por imagens. Espinosa trata então dos modos de conhecimento que levam ao conhecimento adequado, total, e não parcial, da coisa. Tal conhecimento se dá, segundo Espinosa, "Por termos [...] noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas." (E II P 40 Esc 2 p. 135). Para fundamentar, no interior da geometria da Ética, esta tese, Espinosa recorre ao corolário da Proposição 38, à proposição 39 e seu corolário, bem como à Proposição 40, todas analisadas acima. Este é o modo de conhecer que Espinosa chama de segundo gênero de conhecimento. A este modo se soma outro, cujo resultado é o mesmo, isto é, o conhecimento adequado da coisa, e que Espinosa chama de ciência intuitiva - cujo conceito foi abordado parágrafos acima. A questão que interessa é menos a dos modos de conhecer como instâncias deslocadas, apartadas, estanques nelas mesmas, e mais sua relação com os conceitos de afeto ativo (alegre) e potência, ou sua relação com o conceito de afeto passivo triste, no caso do conhecimento inadequado que leva à diminuição de potência. Uma paixão triste, neste caso. É neste sentido que afirmo que há "materialidade", como oposição a abstração, no ato de conhecer em Espinosa. O conceito de propriedade comum das coisas como o que possibilita noções comuns como saber acerca das coisas, a meu ver, fundamenta o uso deste termo. E, de fato, se considerarmos correta a tese (bastante influente e presente em várias tradições filosóficas, como na cartesiana, por exemplo) que concebe o conhecer como puro conhecer, não será possível compreender a posição espinosana da ligação estrutural entre saber e afeto. "O exemplo de uma única coisa [...]" (E II P 40 Esc 2 p. 135), acima referido por Espinosa, a saber, o exemplo matemático, é a via mais fácil para explicitar 127

Tomaz Tadeu usa a expressão experiência errática (E II P 40 Esc 2 p. 135). 99

a tese da propriedade comum dos corpos. No caso deste exemplo da matemática, a propriedade comum dos números proporcionais. Para aqueles que observam e compreendem Espinosa à luz da tradição, isto é, com as lentes que apartam conhecimento de qualquer outra realidade, tudo indica que o exemplo da matemática se esgota em questões da matemática. Entretanto não é disso que se trata. "O exemplo de uma única coisa [...]", como o texto afirma, é apenas um exemplo para explicar o funcionamento geral do conhecer por meio do acesso da mente à propriedade comum das coisas, daí extraindo noções comuns128. Ou seja, em primeiro lugar, o acesso à propriedade comum de qualquer coisa é o acesso ao conhecimento pela causa próxima da coisa, daquilo que a gerou, daquilo que faz que ela seja o que é. Portanto, a propriedade comum dos números proporcionais é o meio pelo qual se descobre o número faltante na ratio entre números. Isto é, é apenas em razão de os números proporcionais terem propriedades comuns que se pode descobrir um quarto número a partir de três números dados. Mas há ainda um segundo ponto. Não apenas os números proporcionais têm propriedades comuns. Outras coisas têm propriedades comuns como já indicado -, e o conhecimento de tais propriedades comuns, pela potência da mente, leva ao saber verdadeiro sobre tais coisas. Outra consequência deve ser retirada do conjunto de argumentos acima. O conhecimento verdadeiro, adequado, gera uma ação, e, simultaneamente, leva ao aumento da perfeição do homem que conhece. Tal aumento de perfeição é o afeto de alegria, simultâneo ao saber verdadeiro. Mais uma tese espinosana que importa destacar, e que também decorre dos argumentos até aqui desenvolvidos, é a de que os modos de percepção não se dão, como nas teses platônicas, numa escalada à Ideia pura. Espinosanamente, não há escalada. Os modos de perceber e conhecer na imanência podem no máximo ter acesso às propriedades comuns das coisas, e tal acesso é o conhecimento 128

Escreve Deleuze, a quem sigo neste ponto, que o conhecimento matemático é do segundo gênero, mas este modo de conhecimento não se esgota no conhecimento de tipo matemático. Ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 241-242. 100

verdadeiro da coisa que se conhece. Ocorre que os demais modos de conhecimento, por imaginação sobretudo, ocupam a todo tempo, e mesmo simultaneamente ao conhecimento verdadeiro, as mentes dos homens. Portanto, as formas de percepção em Espinosa, para os homens, são simultâneas umas às outras, e geram afetos, nos homens, a todo tempo129. Por exemplo, a percepção do sol como tendo o tamanho de um pé humano é um saber por imagem, isto é, o homem imagina o sol como tendo este tamanho. Esta é a percepção imediata, imagética. Ocorre que simultaneamente o homem é capaz de saber, por um esforço da mente, que o sol é muito maior do que um pé humano. Tais saberes podem se dar ao mesmo tempo, sendo um advindo do uso adequado da razão e o outro mera percepção imaginativa. Mesmo mostrando que o homem é capaz de conhecimento adequado, e mostrando que de tal conhecimento advém a ação e a alegria, Espinosa, no escólio da Proposição 59, afirma que, "Pelo que foi dito, fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro, ignorantes de nossa sorte e de nosso destino." (E III P 59 Esc p. 237). Tal assertiva aponta para uma tese que será muito importante, a meu ver, na elaboração da política em Espinosa. Os homens são, de fato, capazes de conhecimento adequado e da máxima alegria e perfeição, e da máxima potência daí decorrente. Porém, é raro, escreverá Espinosa no Tratado político (TP I 7 p. 10; TP II 5 p. 12; TP VI 1 p. 47; TP X 9 p. 135), que os homens se conduzam pela razão. "[...] Agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras [...]." (E III P 59 Esc p. 237). Não é casual que Espinosa, após falar dos afetos ligados à razão, e exatamente deles, a saber, a fortaleza de ânimo e a generosidade, aponte para o fato, incontestável pela experiência, segundo o qual as causas exteriores, e não os afetos advindos da causa total, interna, sejam os afetos predominantes nos homens. Por esta razão os homens são mais agitados pelo que os afeta de fora do que por aquilo que os afeta a partir do conhecimento adequado.

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Sobre este ponto, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, especialmente p. 180. 101

Ser agitado por causas externas significa ter o desejo levado - isto é, ter o desejo determinado - por afetos passivos, os quais podem ser alegres ou tristes. Esta tese, indicada logo após a análise das proposições que tratam dos afetos ativos, explicita o importante lugar da imaginação na vida dos homens. Ser levado pelas causas exteriores é reagir às imagens que as coisas provocam no corpo e na mente. Não casualmente, portanto, a definição 1 dos afetos, logo a seguir à Proposição 59 e escólio, trará como conceito de desejo "[...] a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira." (E III Def Af 1 p. 237). Isto é, o desejo, como analisado em momento anterior, é a própria essência do homem. Esta essência (este desejo, este homem, este Pedro, este Paulo, etc.), entretanto, pode ser determinada a agir ou por causas adequadas, por meio do conhecimento adequado e da ação que daí decorre, ou por causas parciais, advindas do conhecimento imaginativo (imagens) que afeta os homens. Ou seja, por causas externas ao desejo e que o determinam de maneira que se apresente "[...] como ondas do mar agitadas por ventos contrários [...]." (E III P 59 Esc p. 237). Como os homens são essencialmente desejo, e este desejo é determinado, em geral, pelos afetos externos, isto é, pela imaginação, e não pelos afetos internos, ou seja, pelo conhecimento verdadeiro do bom, a conflituosidade será a marca das relações entre os homens. Apenas a política, conduzindo a imaginação humana por meio de instituições bem construídas, será capaz de contornar esta inevitável realidade de viver "[...] como ondas do mar agitadas por ventos contrários [...]." (E III P 59 Esc p. 237). Ela será a astúcia institucional de canalizar o conflito constitutivo das relações humanas para um veio adequado. Este veio adequado será tão mais bem construído quanto mais possibilitar o exercício do direito natural de cada homem por meio do direito natural coletivo130, isto é, por meio do direito civil da cidade. Em outras palavras: quanto mais os afetos alegres (sejam ativos, ações, ou 130

As leis da cidade - ou seja, o direito natural coletivo - terão estreita relação com as noções de imaginação e potência, segundo Diogo Pires Aurélio. Ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Natureza e Nação segundo Espinosa. In: BLANCO-ECHAURI, Jesús (Editor) Espinosa: Ética e Política. Encontro HispanoPortugués de Filosofía. Santiago de Compostela: Ed. Universidade de Santiago de Compostela, 1999, pp. 279-299, especialmente p. 297, na qual afirma que a lei é o rosto com que o conjunto das potências individuais aparece na imaginação de cada um. Ou seja, a lei é entendida como figura-imagem presente na mente dos súditos-cidadãos (p. 297).

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passivos, isto é, paixões alegres) forem exercidos, pelos súditos-cidadãos, no cotidiano da cidade, tanto mais a construção política terá sido bem sucedida.

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CAPÍTULO 2 - DIREITO, AFETOS E CONSTRUÇÃO DA POLÍTICA

(a) Direito natural e afetos: aproximações Espinosa elabora, ao tratar do direito, e especialmente do direito natural, uma revolução conceitual ou, para usar as palavras de Alexandre Matheron, uma revolução copernicana131. Já o fizera ao tratar de Deus, considerando-o imanente e identificando-o à natureza e ao real em sua autoprodução, como fica claro, por exemplo, na Ética I, e como procurei mostrar no item c.1 do capítulo 1. Faz a mesma revolução conceitual na Ética III (E III Pref p. 161) ao dizer que os homens na natureza não são um império num império (imperium in imperio - G II p. 137), isto é, são afecções ou modos da substância e, portanto, não possuem liberdade num sentido absoluto, pois são determinados a agir de certa e determinada maneira segundo as leis necessárias da natureza. Com o conceito de direito natural não poderia ser diferente, isto é, Espinosa o reelabora dentro de seu quadro conceitual mais amplo, o da ontologia, e assim também opera mudanças significativas no conceito. Faz, para usar o termo de um estudioso da obra, uma reconceitualização132 do direito. Mesmo em face de Hobbes, cuja definição de direito natural se identifica à liberdade que cada homem possui para usar o próprio poder (Leviatã I 14 p. 113) - em definição próxima à do autor holandês, como mostrarei em maiores detalhes a seguir -, Espinosa se distancia em alguns pontos de fundo. Ou seja, tanto em Espinosa quanto em Hobbes, as teses do direito natural fundado (a) ou em uma essência racional, (b) ou na natureza das coisas, cujo acesso se daria pela razão, ou ainda, (c) no acesso, pela razão, a um conceito divino transcendental, estão 131

Matheron usa o termo 'revolução copernicana em matéria de direito' em: MATHERON, Alexandre. Le pouvoir politique chez Spinoza. In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 131-140, especialmente na p. 134. 132 CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 17. O autor usa também o termo, retirado de M. Walther e J. Blanco-Echauri, 'revolução semântica'. Ver: M. Walther. in: ' Die Transformation des Naturrecht in der Rechtsphilosophie Spinozas', 1985, pp. 73-74. Mesma tese de J. Blanco-Echauri. 'Las concepciones Del Jus Naturale o lós fundamentos de la política em Grocio, Hobbes y Espinosa', 2003, p. 121. Apud CAMPOS, André Santos. Ibid. p. 19, nota 7. 104

descartadas. Entretanto, mesmo em face de Hobbes, ainda assim, há diferenças de fundo. Deleuze afirma que Hobbes foi o primeiro autor a identificar direito natural a potência, apartando-se da tradição essencialista-racional do conceito. De fato, afirma Deleuze, Hobbes será o primeiro a dizer que as coisas se definem não pela essência, mas pela potência133. Em Espinosa também se identifica o direito à potência, como mostrarei em pormenor a seguir. Porém, diferentemente de Hobbes, há uma ontologia da substância, equivalente à potência absoluta (Deus ou a natureza), que dá fundamento ao conceito134. Esse ponto será tratado a seguir, ainda neste item. Em Hobbes o direito de natureza prescinde de tal fundamento, pois seu sistema não decorre da ontologia da substância, além de sua definição de direito natural partir do indivíduo humano, portador de potência, cuja finalidade natural é preservar a vida135. Depois de percorrer a definição de esforço (endeavour - Leviatã I 6 p. 57) e os conceitos daí decorrentes (Leviatã I 6 pp. 57-65), Hobbes abre o capítulo XIV do Leviatã definindo direito natural, mas sem qualquer preocupação com o lastro ontológico do conceito. O que faz sentido no materialismo hobbesiano, cujo início, ao menos no Leviatã, se dá por meio de teses sensórias ou sensualistas. Não casualmente o título do capítulo 1 da parte I do Leviatã é 'Da sensação'. Isto é, o conceito de direito natural hobbesiano não parte de teses ontológicas como as de Espinosa, para quem o fundamento do direito - de qualquer direito - é a substância.

133

DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. Cito: "Ele [Hobbes] diz que as coisas não se definem por uma essência, elas se definem por uma potência. Então o direito natural é - não o que é conforme à essência da coisa - , mas sim, tudo o que pode a coisa. [...] É uma ideia simples, mas é uma ideia perturbadora. [...] Todo mundo sabe, sempre, que os peixes grandes comem os pequenos, mas ninguém nunca havia chamado a isto direito natural. Por quê? Porque se reservava os termos 'direito natural' inteiramente para outra coisa: a ação moral conforme a essência." (pp. 89-90). É Deleuze mesmo quem faz uma ressalva a esta afirmação, a saber, a de que Hobbes teria inaugurado a tradição do direito natural como potência. Cito: "Acrescento, para ser honesto historicamente, que isto não surgiu de um golpe, seria possível procurar, já na antiguidade, uma corrente, mas uma corrente muito parcial, muito tímida, na qual se formava já na antiguidade, uma concepção como esta do direito natural igual potência. Mas ela será abafada. Vocês a encontram em certos sofistas e em certos cínicos. Mas sua explosão moderna, será com Hobbes e com Espinosa." Ibid. p. 95. 134 No mesmo sentido desta afirmação, ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 103. 135 Ibid. p. 103. 105

Outra distância de fundo entre os conceitos espinosano e hobbesiano de direito natural está a seguir apontada. Qual é a definição de direito natural que abre o capítulo XIV do Leviatã? Afirma Hobbes que O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe 136 indiquem como meios adequados a esse fim. (Leviatã I 14 p. 113) .

E liberdade, por sua vez, é definida como "[...] a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, [...]." (Leviatã I 14 p. 113). As leis de natureza conceito também ligado aos dois acima -, trabalhadas por Hobbes nos capítulos XIV e XV do Leviatã, são definidas como "[...] um preceito ou regra geral estabelecido pela razão mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, [...]." (Leviatã I 14 p. 113). Preceito estabelecido pela razão. Esta mesma razão, pela qual os homens têm acesso às leis naturais, leis estas que "[...] ditam a paz como meio de conservação das multidões humanas, [...]" (Leviatã I 15 p. 131), poderá ter acesso a uma suma de todas as leis de natureza: "Esse resumo é: Faz aos outros o que gostarias que te fizessem a ti." (Leviatã I 15 p. 131). No capítulo XIV do Leviatã, após definir direito natural e lei de natureza, Hobbes estabelece uma diferença entre lex (lei) e jus (direito), "Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas." (Leviatã I 6 p. 113). Uma concatenação dos conceitos acima indicados mostra que a distância de fundo entre Espinosa e Hobbes quanto ao conceito de direito natural não se resume ao fato de que Hobbes conceitua direito natural a partir do indivíduo humano como endeavour (conatus), ao passo que Espinosa extrai seu conceito de homem como conatus da ontologia autoprodutora de potência da substância única. Há ainda a ligação do conceito de lei natural em Hobbes ao seu conceito de direito natural. Pois, se é certo que, como indicam os textos citados, jus não é o mesmo que 136

Hobbes define direito natural de forma semelhante em Do Cidadão I 7 p. 47. 106

lex, por outro lado é a lei natural, como preceito da razão, que obriga "[...] in foro interno, quer dizer, [as leis de natureza] impõem o desejo de que sejam cumpridas [...]". (Leviatã I 15 p. 131). Em Espinosa não há qualquer definição de lei de natureza ligada a preceito da razão e a impor, in foro interno, qualquer prescrição ao desejo. Portanto, mesmo em face de Hobbes, que, como mostrei, de acordo com Deleuze137, é o primeiro autor na história da filosofia a abandonar o moralismo essencialista no campo do direito natural, Espinosa se apresenta como uma revolução copernicana no campo jurídico. Mas o tema que pretendo tratar a seguir não vai diretamente ao cerne da questão de Espinosa ser ou não um jusnaturalista - questão de fundo à da reconceitualização -, a qual demandaria uma definição de jusnaturalismo que fundamentaria o enquadramento de Espinosa nesta ou naquela chave138. O intento principal é o de aproximar os conceitos de direito natural, de um lado, e de afetos, de outro, para mostrar, por meio da análise de excertos do Teológico-político, da Ética III e do Político, que tais conceitos têm uma relação de grande proximidade. Trata-se de um primeiro momento de movimento de argumentos com o objetivo de, nos itens seguintes deste capítulo 2, construir a concepção espinosana de política por meio do uso dos conceitos de direito natural, conatus, desejo, afetos, direito civil, multitudo e imitação afetiva, entre outros. Outro ponto que pretendo indiretamente tratar neste item é o do teor da revolução copernicana de Espinosa no campo jurídico. Isto ficará expresso por meio das definições de direito que o autor apresenta na Ética III, no Teológico-político e no Político. Definições estas que ligam o conceito de direito ao de potência, bem como distanciam Espinosa até mesmo do autor que primeiro identificou

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DELEUZE. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. 138 Para a questão do enquadramento de Espinosa na tradição jusnaturalista, ou sua exclusão por ser crítico desta concepção, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 20 a 24, especialmente nota 13, p. 21. Para o autor, a questão que interessa é menos a do enquadramento de Espinosa na tradição jusnaturalista e mais entender o valor, em sua filosofia, do direito associado à natureza e as pretensões aí inerentes (p. 21). 107

direito natural a potência, segundo Deleuze139, a saber, como analisado acima, Hobbes. *** Aparentemente, pela leitura deslocada ou panorâmica dos textos de Espinosa, especialmente a Ética, o Tratado político e o Tratado Teológico-político, não se vislumbra relação entre o conceito de direito e o de afeto. Um dos pontos-chave a ser sustentado nesta seção é precisamente o da grande proximidade entre tais conceitos. Este ponto é um dos fundamentos da construção afetiva da política, o que procurarei analisar nos itens seguintes deste capítulo. Neste primeiro tópico, em vez de tratar da questão mais ampla dos fundamentos da construção afetiva da política, objeto mais direto dos itens seguintes a este item (a), tentarei mostrar, por meio do movimento de passagens nucleares dos três textos acima indicados, que há relação entre tais conceitos. Não uma relação débil, mas de grande proximidade conceitual. O capítulo XVI do Tratado Teológico-político tem como tema e título "Dos fundamentos do Estado, do direito natural e civil de cada indivíduo e do direito dos soberanos [De Reipublicae Fundamentis; de jure uniuscujusque naturali & civili, deque Summarum Potestatum Jure G III p.189]." (TTP XVI p. 234). Trata-se de capítulo que elabora uma mudança de temática na economia da obra140. De fato, Espinosa afirma ali que até então procurara separar a filosofia da teologia, e agora tratar-se-ia de interrogar até onde deve ir, numa república141 bem ordenada (optima republica), a liberdade de cada um pensar e dizer o que pensa. Para isso, falará dos fundamentos da República e, antes disso, sobre o direito natural do indivíduo (TTP XVI p. 234). No segundo parágrafo do referido capítulo, Espinosa conceitua direito natural do indivíduo usando os seguintes termos: "Por direito e instituição 139

DELEUZE. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 89-90. 140 Ver, por exemplo, sobre a tese da possível ruptura completa deste capítulo em face dos demais, a nota 1 de Diogo Pires Aurélio à sua tradução do TTP. Nela, Aurélio cita A. Droetto, que no artigo 'Genesi e storia del Tratado Teologico-Político' (In: Studi Urbinati, 1969, pp. 135-179), sustenta a tese de que inicialmente a intenção de Espinosa seria dar a obra por finda depois dos capítulos sobre o problema teológico. Ver as considerações de Aurélio em: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 361. 141 'Estado' na tradução de Diogo Pires Aurélio, ora utilizada. Ibid., p. 234. 108

natural [Per jus & institutum naturae G III 189] entendo unicamente as regras da natureza de cada indivíduo [regulas naturae uniuscujusque individui G III 189], regras segundo as quais concebemos qualquer ser como naturalmente determinado a existir e a agir de uma certa maneira." E acrescenta, após tratar do direito dos peixes sobre as águas e dos maiores de comerem os menores, que "É, com efeito, evidente que a natureza, considerada em absoluto, tem direito a tudo que está em seu poder, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se estende a sua potência [Nam certum est naturam absolute consideratam jus summum habere ad omnia, quae potest, hoc est, jus naturae eo usque se extendere, quo usque ejus potentia se extendit G III p. 189] [...]." (TTP XVI p. 234). Logo após afirmar que a potência da natureza como um todo é a própria potência de Deus (TTP XVI p. 234) - pois a natureza e Deus são uma e a mesma coisa, como se vê na Ética142 -, Espinosa explicita uma de suas teses centrais, a saber, "[...] o direito de cada um estende-se até onde se estende a sua exata potência." (TTP XVI pp. 234-235). E ainda, para o que interessa ao tema do presente trabalho, explicita uma tese muito próxima, senão idêntica, a uma das mais importantes Proposições da Ética III, a saber, aquela segundo a qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser143. Mas Espinosa não reduz seu conjunto de argumentos ao que acima foi dito. Afirma, logo a seguir, que o homem não se diferencia de outros seres da natureza quanto a este ponto, isto é, quanto ao esforço para perseverar no ser. Isto também não diferencia, diz Espinosa, os homens dotados de razão daqueles que a 142

Ver item 'c' do capítulo 1. Espinosa inicia a redação da Ética em 1661. Publica o TTP em 1670. E finda a Ética, não a publicando em vida por motivos de perseguição política ao TTP e a si mesmo, apenas em 1675. Ou seja, Espinosa interrompe a redação da Ética para elaborar o TTP. Ao que tudo indica, a elaboração das teses, considerando-se esse lapso temporal entre 1661 e 1675, tem certo entrelaçamento no que se refere às duas obras. Ver, para esta cronologia: AURÉLIO, Diogo Pires. Introdução. In: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. XI-CXXXIII, especialmente pp. CXXIX a CXXXIII. 143 Conforme aponta Diogo Pires Aurélio na sua nota 5 ao capítulo ora em análise, a tese é a mesma que será apresentada na Ética, exceto pelo fato de lá se falar em perseverar no ser, e não em seu estado [in suo statu G III p. 189], como é o caso no TTP . Ver a nota de DPA em: ESPINOSA. Tratado Teológicopolítico. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 363. Entendo que a tese espinosana é a mesma neste texto e na Ética, mudando-se apenas uma expressão, certamente chave, o que não afeta o conceito de que se está a tratar. Isto é, lá e cá o conceito é o mesmo e as teses parecem ser de enorme proximidade, senão idênticas. Um parágrafo do Político, que será objeto de análise ainda neste item (a), parece corroborar este ponto.

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ignoram, bem como não diferencia os imbecis dos sensatos (TTP XVI p. 235). Em suma, o que vive segundo o instinto se iguala ao que vive segundo a razão, e ambos se igualam aos demais seres da natureza quando a questão é o esforço para perseverarem no ser. Tudo isso leva Espinosa a concluir que "O direito natural de cada homem determina-se, portanto, não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência [sed cupiditate & potentia determinatur G III p.190]." (TTP XVI p. 235). Muitos elementos essenciais da teoria do direito espinosana estão apresentados nestas passagens. E eles se aproximam sobremaneira dos elementos da teoria dos afetos presentes na Ética - eis uma hipótese, a ser desdobrada. Com efeito, no Tratado Teológico-político, pelas passagens acima, fica claro o uso de um vocabulário presente na Ética III. Com o objetivo de comprovar a hipótese, tomo alguns termos das passagens acima citadas diretamente ou por paráfrase: "[...] regras da natureza de cada indivíduo [...]" (TTP XVI p. 234); "[...] agir de uma certa maneira." (TTP XVI 234); "[...] que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja em si, por perseverar no seu estado [...]" (TTP XVI p. 235); "O direito natural de cada homem determina-se, portanto, não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência." (TTP XVI p. 235 - grifos meus). Tal rol de conceitos está presente - e, poder-se-ia dizer, é nuclear - na parte III da Ética. De fato, como já visto no capítulo 1 mais demoradamente, Espinosa faz, na Ética III, as afirmações a seguir descritas sobre o tema do desejo, do esforço e da variação da potência do homem. "Cada coisa esforça-se [unaquaeque res], tanto quanto está em si [quantum in se est], por perseverar em seu ser [in suo esse perseverare conatur]." (E III P 6 p. 173). Por sua vez, a Proposição 7 define este esforço: "O esforço [conatus] pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que sua essência atual." (E III P 7 p. 175). Nas definições dos afetos, por seu turno, este vocabulário fica ainda mais próximo ao do Teológico-político. Na definição 1, Espinosa afirma sobre o desejo: "O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira" (E III Def af 1 p. 237). E, na explicação a esta definição, escreve: "Compreendo [...] pelo nome de desejo todos os esforços [conatus], todos os impulsos [impetus], apetites [appetitus] e volições [volitiones] do homem, que variam de acordo com seu variável estado" (E III Def af 1 Explic p. 239). 110

Ora, no Teológio-político, como citado acima, o desejo foi definido como aquilo que determina o direito natural de cada homem. Isto é, o direito natural de cada homem, como afirmou Espinosa, "[...] determina-se [...] não pela reta razão, mas pelo desejo e pela potência." (TTP XVI p. 235 - grifo meu). Assim, pela definição de desejo acima dada na Ética, pode-se concluir que aquilo que determina o direito natural é o desejo, termo sinônimo a conatus, impulso, apetite, volição. O desejo foi definido como sendo "[...] a própria essência do homem [...]" (E III Def Af 1 p. 237). Mas não apenas. Espinosa complementa, como citado acima: "[...] enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira." (E III Def Af 1 p. 237). Assim, Espinosa parece sustentar, em ambas as obras, as seguintes posições: (a) O direito natural de cada homem é determinado pelo desejo e pela potência; (b) o desejo é o mesmo que apetite, vontade, impulso, conatus; (c) o desejo, por seu turno, é a própria essência do homem; (d) tal essência é desejo enquanto é determinada, por sua vez, por uma dada afecção de si mesma a agir de alguma maneira. Aprofundarei estas teses a seguir. O desejo, como já visto no item d.3 do capítulo 1, fora inicialmente definido no Escólio da Proposição 9 da Ética III, no mesmo sentido retomado na definição 1 dos afetos. Mas o que interessa a esta parte da argumentação é apontar a seguinte tese espinosana: o desejo é considerado um afeto primário (E III P 11 Esc p. 179), assim como a alegria e a tristeza. A alegria, como já analisado, é apenas uma transição [transitio] para um estado de maior potência, uma transição do desejo para mais, até um limite máximo, ao passo que a tristeza é uma transição para um estado de menor perfeição ou potência, até um limite mínimo144 (E III Def af 2, 3 p. 239). Limite máximo e limite mínimo em que a coisa singular deixa de ser o que é, isto é, deixa de ter certa e determinada disposição de movimento e repouso e de constituição de partes para manter o seu ser. Digo perfeição ou potência na medida em que aumento da perfeição é o mesmo que aumento de realidade (E II Def 6 p. 81), e a realidade é o ser da substância (E I P 10 Esc p. 23). Ora, o ser da substância é o mesmo que potência: "É [...] evidente que a natureza, considerada em absoluto, tem direito a 144

Para a questão de um limite máximo e mínimo da potência, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, p. 186. 111

tudo o que está em seu poder, isto é, o direito da natureza estende-se até onde se estende a sua potência, pois a potência da natureza é a própria potência de Deus [naturae enim potentia ipsa Dei potentia est G III p. 189]." (TTP XVI p. 235). Se o desejo é a transição da potência do homem, de um mais a um menos e vice-versa, até um limiar máximo e mínimo, é nesse sentido, ao que indicam os textos, que o desejo determina o direito natural de cada homem (TTP XVI p. 235). Por isso, talvez, Espinosa use as expressões "pelo desejo e pela potência" (TTP XVI p. 235) ao dizer que "pelo desejo e pela potência" se determina o direito natural de cada homem. De fato, sendo o desejo o afeto definidor da essência do homem - enquanto esta é determinada pelas afecções de si mesma -, sua transição é aumento ou diminuição da potência mesma da essência de cada homem. Em uma palavra: a transição do desejo é alegria, se há aumento do desejo, ou tristeza, se há diminuição do desejo. Some-se a isto a tese espinosana da identidade entre desejo, volição, impulso e conatus. E, outro ponto, ainda desdobrando os itens 'a', 'b', 'c', 'd' do parágrafo anterior, o agir ou padecer do homem decorre do desejo determinado pelas afecções da sua essência mesma, sejam tais afecções advindas dos encontros fortuitos ou, por outro lado, de uma causa adequada - um conhecimento adequado do bom -, conhecimento que também gera um afeto e, portanto, é uma afecção do corpo145. Parece claro, pelo que se argumentou até este momento, que o conceito de direito é mais amplo que o conceito de afetos. Afetos, ou seja, desejo, de um lado, e desejo em forma de alegria e tristeza, como transitio de um mais a um menos e vice-versa, de outro. Com efeito, o direito é a própria realidade da natureza inteira, é a potência mesma da substância (TTP XVI p. 234). Mas a realidade do direito natural no que se refere aos homens se dá afetivamente, como advindo da determinação do desejo, o qual, para os homens, é variação de potência dentro de um limiar mínimo e máximo. Nesse ponto, ao que indicam os textos, o tema do direito natural dos homens encontra o tema dos afetos dos homens146. 145

Ver item (i) do capítulo 1 - sobre a questão do conhecimento do bom como gerador, simultaneamente, de um afeto alegre e, por consequência, de um aumento da potência. 146 Diogo Pires Aurélio elabora tese próxima a esta, porém focando a questão da imaginação como uma das formas do conhecimento. Ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 116, onde diz: "O desejo é o principal dos afetos, entendendo-se por afeto a variação de potência mercê das afecções". Afirma, ainda, o autor: "A Parte III da Ética constituirá o momento em que a teoria da imaginação e a teoria do conatus se vão cruzar" (p. 112

Procurei mostrar, assim, como as passagens citadas no Teológicopolítico, acima analisadas, levam à constatação da existência de uma afinidade conceitual densa entre ambos os textos - Ética e Teológico-político -, e, especificamente, entre o capítulo XVI deste e a parte III daquela. Portanto, por esta leitura, o direito natural dos homens é conceito ligado ao de afetos humanos. Curiosamente, a palavra jus (direito), no que se refere à Ética, aparece, pela primeira vez, no Escólio da Proposição 3 da Ética II (E II P 3 Esc p. 83), mas lá está para explicitar uma tese que será combatida por Espinosa, a saber, a posição do vulgo quanto ao conceito de Deus como tendo direito sobre todas as coisas, o que traria, por consequência, às coisas, a contingência, visto que Deus, por meio de milagres, poderia intervir a qualquer momento no mundo criado. Após esta passagem, a expressão direito [jus] aparece apenas na parte IV da Ética, não havendo qualquer menção ao termo na parte III, ainda que haja o uso, por Espinosa, da expressão potência (por exemplo, em E III P 7 Dem p.175), que é sinônimo de direito para o autor. Tal ausência implica que não há qualquer relação entre direito e a parte III da Ética, a qual trata dos afetos dos homens? Minha resposta é pela negativa. Ou seja, de acordo com os argumentos levantados acima, há relação entre o conceito de direito e a parte III da Ética, ainda que a palavra jus (direito) não esteja presente na parte III. É certo, como visto, que o conceito de direito é mais amplo que o conceito de afeto. A potência da natureza como um todo é o direito da natureza como um todo, isto é, a potência da natureza inteira é o direito de um ponto de vista absoluto. Mas o direito, no mundo dos homens, se manifesta como variação da potência do desejo, como alegria ou tristeza, pois a variação afetiva é a variação da potência e esta é sinônimo de direito147 (TTP XVI pp. 234-235). 222). E, no mesmo sentido: "Há, em resumo, a cada afecção, uma variação do conatus, um pathos que tanto pode ser passional, no sentido cartesiano, e implicar uma limitação do esforço para perseverar no ser, como representar um acréscimo da potência com que o indivíduo se afirma" (p. 222). 147 Com a mesma posição está: JAQUET, Chantal. L'unité du corps et de l'esprit - affects, actions et passions chez Spinoza. Paris: PUF, 2004; Cito a tradução: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011. Sobre os afetos como transição de potência, a autora escreve: “Os afetos, por conseguinte, são todos por natureza estados de transição da potência” p. 138. Mas a autora vai mais longe e trabalha, na sequência, a questão do limiar, quando se chega à questão da beatitude, tema da Ética V. Este tema não será trabalhado nesta tese, entretanto, por fugir de seu objeto. Isto é, o tema de saber se a beatitude é um limite ou ainda um afeto e, 113

Antes de tratar do tema de como se entrelaçam os conceitos de direito e afetos na relação entre a Ética III e o Político, o que farei a seguir, desenvolvo uma breve digressão para mostrar outro ponto de distância entre Hobbes e Espinosa no que se refere ao conceito de direito natural. Com as definições e aproximações desenvolvidas até este momento, será clara esta nova distância entre os autores. De fato, como mostrei ainda neste item, Hobbes e Espinosa conceituam o direito natural dos homens como potência, ainda que com as diferenças de fundo já apontadas. Pois talvez, dadas as definições acima, se possa dizer que o conceito espinosano de direito natural, no que se refere aos homens, é mais amplo que o de Hobbes. Ou melhor, a compreensão do conceito em Espinosa implica entender que sua definição de direito natural, quando se trata dos homens como coisas singulares, é mais larga ou com consequências mais amplas, inclusive para o teor da filosofia política formulada por ambos. Com efeito, como apontado nas análises iniciais deste item (a), em Hobbes o movimento vital tem como estratégia para sua conservação o movimento animal (Leviatã I 6 p. 57), e o direito natural é o exercício desse poder de conservação da vida (Leviatã I 14 p. 113). A vontade e todas as manifestações de cada homem visam, no limite, à conservação do bios, da faceta fisiológica do homem em face das ameaças e das demais potências. Espinosa não se contentaria com esta definição, pois os afetos portanto, uma transição de potência. Com tese no mesmo sentido, ou seja, dos afetos como transitio da potência, ver: DELEUZE, Gilles. Spinoza et le problème de l`expression. Paris: Les éditions de Minuit, 1968, especialmente 3ª parte, pp. 179-181. Deleuze diz: "O finito não é então nem substancial nem qualitativo. Mas ele também não é aparência: ele é modal, isto é, quantitativo" (tradução minha - p. 181). Ou seja, o finito - no que se incluem os homens -, é uma quantidade certa e determinada de potência, a variar em função das causas externas ou internas que aumentem ou diminuam sua potência. Ainda, do mesmo autor, sobre a variação da potência e sua relação com os afetos e as ideias: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009. Diz: “Em outros termos, há uma variação contínua sob a forma aumento-diminuição-aumento-diminuição da potência de agir ou da força de existir de acordo com as ideias que se tem” (p. 26); “e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afeto (affectus), ao mesmo tempo, em sua correlação com as ideias e sua diferença de natureza com as ideias” (p. 25-26). Sobre a gênese do direito natural humano como advindo das relações cruzadas de afetos entre os homens, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato SoromenhoMarques. Lisboa, 2008. Para o autor, a gênese consolidada do direito natural humano se dá no cruzamento de operações de afetos desencadeados por relações circunstanciais entre homens (p. 293). No mesmo sentido dos afetos como transição de potência, ver: RAMOND, Charles. Vocabulário de Espinosa. Tradução de Claudia Berliner. Revisão de Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Sobre a relação forte entre afetos e potência: “Os afetos são, pois, os nomes das constantes flutuações, para mais ou para menos, de nossa potência”. (p. 19). 114

de alegria estão ligados ao seu conceito de potência dos conatus individuais humanos, como mostrei acima ao aproximar a Ética III do Teológico-político. Para se ter a dimensão do contraste num passar d'olhos, pode-se afirmar que Espinosa tem exigências mais largas para o seu conceito de direito natural. Exigências mais largas, ou seja, para ele, o direito natural humano não é mera preservação do bios, mas tem uma dimensão para além da conservação animal e da circulação do sangue, como já apontei no item d.2 do capítulo 1, ao citar o Político (TP V 4 pp. 44-45 e TP V 5 p. 45). A noção espinosana de autoconservação individual é mais complexa, não se resumindo à conservação da vida num sentido biológico (circulação do sangue, etc.). Autoconservação significa busca da afirmação da existência nos bons encontros, isto é, aqueles que aumentam a potência por meio de afetos alegres passivos - composição -, e busca da geração máxima de efeitos, por meio da ação (afetos ativos, que também são afetos alegres). Por isso, como apenas apontei no item d.2 e desenvolverei nos itens subsequentes deste capítulo, a filosofia política espinosana buscará instituições que correspondam a esta maior exigência do conceito de direito natural. Não basta, com efeito, a paz como ausência de guerra e a cidade com súditos inertes, pois não se terá aí cidade, mas solidão (TP V 4 pp. 44-45). As criações institucionais da cidade correspondem, para que a cidade seja de fato uma cidade, e não local da solidão, a uma definição de direito natural que é mais larga e envolve o exercício da potência individual na sua plenitude. Potência individual em plenitude significa afetos alegres de esperança e segurança, e não de medo e desespero, como afetos mais frequentemente capilarizados e cultivados pela cidade e por seus membros148. Feita a digressão para mostrar mais uma distância conceitual entre Hobbes e Espinosa quanto ao direito natural dos homens, volto ao tema central deste item (a). Tratei, até o momento, da relação de proximidade conceitual entre a Ética III e o Teológico-político. Procurarei mostrar, a seguir, a presença da Ética III no Político,

148

Sigo a interpretação de C. Lazzeri para estas afirmações acerca da maior complexidade do conceito de direito natural humano em Espinosa em relação a Hobbes. Ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998. Cito: "[...] para Hobbes, a autoconservação é a do movimento vital. Para Espinosa, [...] a noção de autoconsevação individual é mais larga e deslocada: ela tem por conteúdo não somente a existência mesma da essência como simples conservação da vida, mas a essência atual ela mesma em seu conteúdo, enquanto ela se esforça por afirmar tudo o que dela se deduz [...]." (p. 137 - tradução minha). 115

no que se refere, neste momento, ao tema em análise, isto é, a aproximação entre os conceitos de afeto e de direito natural. O Tratado político149, obra inacabada de Espinosa, trata diretamente do tema direito natural no capítulo 2 (TP II pp. 11-23). No primeiro parágrafo do Político já fica clara a tese da relação de estreita proximidade conceitual entre as três obras citadas, afastando qualquer diferença entre os conceitos que as sustentam em razão de um ou outro termo que poderia eventualmente apontar para a distância entre as obras. Ou, mais precisamente, não há ruptura ou incompatibilidade entre os conceitos usados nos três textos. O argumento é o de que Espinosa, já no início deste capítulo, faz referência ao Teológico-político e à Ética. E o faz para dizer que no Teológico-político tratou do direito natural e do direito civil, e na Ética explicou os conceitos de justiça e injustiça, pecado e mérito, bem como tratou da liberdade humana. E conclui, mostrando tratar de temas já trabalhados nessas duas obras, que "[...] para que os que leem o presente tratado não tenham o trabalho de ir procurar noutros aquelas coisas que respeitam mormente a este, proponho-me explicá-las de novo aqui e demonstrá-las apodidicamente." (TP II 1 p. 11 - grifo meu)150. O parágrafo terceiro do capítulo explicita a tese presente tanto no Teológico-político quanto na Ética, ou seja, "A partir [...] do fato de a potência pela qual existem e operam as coisas naturais ser a mesmíssima potência de Deus, entendemos facilmente o que é o direito de natureza." (TP II 3 p. 12). Ou seja, tal qual no Teológico-político (TTP XVI p. 234), a substância é identificada à potência de um ponto de vista absoluto, ou seja, ao direito da natureza como um todo. É daí, dada a imanência da substância e de tudo que há, que Espinosa extrairá o conceito de direito natural presente no Político. A tese da imanência da substância, defendida na Ética I, fundamento de todas as demais partes da Ética, e presente também no Teológico-político, está também presente no Político, e com os mesmos traços conceituais. Não por acaso, portanto, Espinosa, no parágrafo 4 do capítulo ora em análise, definirá direito de natureza da seguinte forma: "[...] por direito de natureza 149

Espinosa o escreveu entre 1676 e 1677, portanto depois de finda a Ética. Ver: ESPINOSA. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. CXXIX a CXXXIII. 150 A Ética é citada explicitamente no Político em: TP I 5 p. 08; TP II 1 p. 11; TP II 24 p. 23; TP VII 6 p. 68. 116

entendo as próprias leis ou regras [leges seu regulas G III p. 277] da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é [hoc est], a própria potência da natureza [...]." (TP II 3 p.12). O termo hoc est iguala os conceitos de 'leis ou regras da natureza' ao de 'a própria potência da natureza'. Espinosa entende, portanto, que as leis da natureza são a própria maneira de expressão da potência da natureza segundo uma causalidade que não é aleatória, mas obedece à causalidade necessária de autoprodução da natureza mesma. E Espinosa continua a definição: "[...] a própria potência da natureza, e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo, estende-se até onde se estende a sua potência." (TP II 3 p. 12). Na mesma chave conceitual da Ética e do Teológico-político, Espinosa identifica o conceito de direito natural ao conceito de potência, e a fonte deste direito à substância em seu exercício de autoprodução constante do real. Portanto, tal qual nas outras obras, Espinosa mantém, nesta última, a tese da amplitude do direito natural, enquanto potência, como equivalente à potência da natureza como um todo. Sendo cada indivíduo, humano ou não, modo finito da e na natureza, Espinosa pôde dizer, como indicado na última citação, acima, que o direito natural de cada indivíduo assim é em razão de ser este expressão da imanência da natureza: "[...] e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo [...]." (TP II 3 p. 12), disse Espinosa, equivalem à sua potência. O parágrafo seguinte aproxima o Político da Ética III. Espinosa, que até então falara do direito de natureza do ponto de vista da substância, e depois do ponto de vista dos indivíduos na natureza naturada, sejam eles humanos ou não, passa, neste parágrafo, a tratar dos homens. E o faz estabelecendo uma dicotomia. Diz que se a natureza humana fosse tal que os homens se conduzissem unicamente pela razão, o direito de natureza seria determinado exclusivamente pela potência da razão (TP II 5 p. 12), que gera concórdia necessariamente151. O autor mostra, nessa passagem, no mesmo sentido do que ficou explicitado no item (i) do capítulo 1, que a razão é afeto simultaneamente, uma vez que a expressão usada é "só pela potência da razão" [sola rationis potentia determinaretur] G III p. 277 (TP II 3 p. 12). Nesse mesmo sentido, dirá na sequência, "Reconheço, sem dúvida, que aqueles desejos que não nascem da razão não são tanto ações como paixões humanas." (TP II 5 p. 13 - grifo 151

Como visto no item (i) do capítulo 1. 117

meu). Isto é, no mesmo sentido da Ética152, da razão nascem desejos, ou mais precisamente, afetos ativos ou ações. Porém, diz Espinosa, mostrando agora o outro lado da dicotomia acima referida, tal potência da razão não tem lugar com mais frequência que o "desejo cego" (TP II 3 p. 12). Afirma: Porém os homens são conduzidos mais pelo desejo cego [caeca cupiditate - G III p. 277] do que pela razão, e por conseguinte a sua potência ou direito natural deve definir-se não pela razão, mas por qualquer apetite [appetitu] pelo qual eles são determinados a agir e com o qual se esforçam por conservar-se. (TP II 5 pp. 12-13).

A mesma tese presente em várias passagens da Ética III, a de que os homens são mais arrastados pelos afetos do que conduzidos pela razão, a qual geraria um afeto adequado, uma ação, está presente nestas passagens. A ligação entre os conceitos de direito e afetos fica ainda mais clara, agora na análise do Político, quando Espinosa, na sequência da argumentação, afirma: Mas uma vez que estamos aqui a tratar da potência ou direito universal da natureza, não podemos admitir nenhuma diferença entre os desejos que em nós são gerados pela razão e os que são gerados por outras causas, pois tanto estes como aqueles são efeitos da natureza e explicam a força natural pela qual o homem se esforça por perseverar no seu ser. (TP II 5 p. 13).

Analiso esta passagem fundamental, ligando-a à Ética III e seus conceitos. Espinosa, num primeiro movimento do texto, identifica direito universal da natureza e potência e afirma que é este o tema que está sendo tratado no Capítulo II do Político. Assim, uma consequência, com base no que fora dito, é retirada, a saber, não há diferença "entre os desejos" que "em nós" são gerados pela razão e os gerados por outras causas. Primeiro ponto: do tema do direito, mais universal, próprio de tudo o que há, da natureza mesma e de sua potência, Espinosa vai ao tema do desejo, típico dos homens, e definido, como já visto, na Ética III (E III P 9 Esc p. 177). Tais desejos, escreve Espinosa, são gerados "em nós" (TP II 5 p. 13). Ou seja, é dos homens que Espinosa fala. E tais desejos ou são gerados pela razão, remetendo ao conceito de ação, tratado na Ética III (E III P 58 e P 58 Dem p. 235; também E III D 3 Explic p. 163), ou são gerados "por outras causas" (TP II 5 p. 13), a saber, as paixões, tema tratado em toda a Ética III, e conceituado especificamente na Definição 3 e em sua explicação (E III D 3 e Explic p. 163). Segundo ponto: o desejo do homem, seja ele determinado pela razão, seja ele determinado por causas externas, é, estruturalmente, desejo, ou seja, potência de cada homem, seja ele sábio, conduzido pela razão, ou ignorante, 152

Ver item (i) do capítulo 1. 118

conduzido pelas paixões. Terceiro ponto do excerto: tais desejos são efeitos da natureza, uma vez que os homens são parte da natureza, modos finitos da e na natureza. E, ademais, tais desejos, diz Espinosa, explicam "[...] a força natural pela qual o homem se esforça por perseverar no seu ser." (TP II 5 p. 13; ver também TP II 7 p. 14)153. Ora, está Espinosa remetendo o leitor, aqui, explicitamente à Proposição 7 da Ética III, na qual fora definido o conceito de conatus (E III P 7 p. 175). A conclusão a que a análise dos textos das três obras remete é a de que os conceitos de direito e de afetos são interligados. Ainda que o termo jus não apareça diretamente no corpo do texto da Ética III, os conceitos desta parte da Ética estão presentes tanto no Teológico-político quanto no Político, como procurei mostrar na argumentação acima. A potência ou direito natural, quando se está a tratar dos homens, depende de como se determina o desejo, isto é, um dos afetos primários (E III P 11 Esc p. 179), e sua transição para mais potência (que é o mesmo que alegria), ou para menos potência (que é o mesmo que tristeza).

(b) Socialidade, cidade: o papel dos afetos metus, spes, desperatio e securitas No item (e) do capítulo 1, procurei mostrar a lógica de funcionamento dos pares afetivos esperança-medo e segurança-desespero. São afetos próprios aos homens na medida em que estes estão, na natureza naturada, submetidos à duração. São, igualmente, afetos que dependem dos conceitos de memória, passado, futuro, contingência como experiência mental-imaginativa (psíquica) dos homens e dúvida como conceito decorrente do desconhecimento da totalidade da rede causal, por parte dos homens, por serem modos finitos. Tal situação dos homens, em ato, na existência, faz que a alegria e a tristeza se manifestem em forma de medo e esperança, os quais, quando cessada a dúvida quanto a evento 153

Veja-se que aqui Espinosa usa o mesmo termo da Ética, isto é, perseverar em seu ser, e não em seu estado, termo usado no TTP (TTP XVI p. 235; G III p. 189). Entendo, como já explicado em nota anterior (nota 143), que tais expressões não alteram em nada a tese de que nas três obras Espinosa fala de um mesmo conceito. O principal argumento que tenho para defender tal posição já foi indicado neste item (a) do capítulo 2, e consiste em dizer que no TP, obra final de Espinosa, já no primeiro parágrafo do capítulo II, o autor faz referência à Ética e ao Teológico-político como tendo as mesmas teses que serão resumidas na sequência do Político, para que o leitor não tenha que recorrer aos conceitos que nas outras obras estão explicitados (TP II 1 p. 11). Ora, por ser o TP a última obra, e por fazer Espinosa referência explícita às duas obras, entendo que não é um mero deslize vocabular - o uso do termo 'perseverar em seu estado' no TTP, e do termo 'perseverar em seu ser' no TP e Ética - que invalida a semelhança conceitual entre as três obras. 119

futuro ou passado, se transmutam em afetos mais estáveis, a saber, desespero e segurança. Naquela ocasião, ao tratar dos afetos acima citados, indiquei que teriam importância para a constituição e manutenção da cidade. Teriam, assim, importância para a política e para a formação das relações sociais entre os homens, as quais forjam a cidade como corpo inteiro do imperium (TP III 1 p. 25). Procurarei mostrar, neste item (b) do capítulo 2, como tais afetos deságuam na política e qual sua importância para o conceito de política que Espinosa elabora. Outro ponto, a ser trabalhado ainda neste item, consiste em entender como os conceitos de cidade e de cidadão estão proximamente ligados à lógica de funcionamento de tais afetos. O que está por trás dessa argumentação é o que já foi apontado neste capítulo, no item acima, ou seja, os conceitos espinosanos de socialidade e de civitas - e, portanto, o conceito espinosano de política - estão ambos fundados na maneira afetiva como os homens se relacionam. É a política - ou, mais precisamente, a cidade e suas instituições, forjadas pelas relações afetivas entre os homens - que será o critério do exercício do direito natural de cada homem como algo efetivo ou como mera opinião (TP II 15 p.19). Outra tese espinosana - talvez decorrente da tese acima - que tem relação estreita com os conceitos de esperança-medo e com a instituição da política em Espinosa é aquela estabelecida no Teológico-político e depois retomada da Ética IV, a saber, a tese segundo a qual haveria uma "[...] lei universal da natureza humana [...]" (TTP XVI p. 237) que funda a socialidade e a cidade. O conteúdo desta lei, sua "prescrição" 154, seria a de que ninguém despreza o que considera ser bom, a não ser na esperança de um bem maior ou por medo de um mal maior (TTP XVI p. 237). Ou, para usar as palavras de Espinosa, "Entre dois bens, escolhe-se aquele que se julga ser o maior, e entre dois males, o que pareça menor." (TTP XVI p. 237). O intuito desta seção (b) será o de mostrar como tais afetos, e tal lei universal a eles ligada, na hipótese deste trabalho, estão intimamente relacionados ao

154

Vê-se aqui que a lei de natureza de que fala Espinosa não é um preceito da razão, como em Hobbes (Leviatã I 14-15 pp. 113-133), tese que também os distancia. Afirma Hobbes que "Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la." (Leviatã I 14 p. 113). 120

funcionamento e instituição do campo político. É claro, entretanto, que o arremate da rede conceitual envolvida no estudo da política em Espinosa depende de outros conceitos, os quais se interligam aos destes afetos e formam uma espécie de arquitetura da política no autor. Refiro-me aos conceitos de multitudo, soberania, imitação afetiva, nação e imperium, de um lado, e, de outro, ao direito de resistir (isto é, ao medo do soberano da cidade em face dos súditos-cidadãos) e à importante diferença entre paz como fortaleza de ânimo ou como mera ausência de guerra. Tais temas serão tratados a seguir, nos itens que serão desdobrados a partir dos conceitos que serão trabalhados nesta seção. *** Como e para quê surge a cidade e a política? Em Espinosa, a resposta não poderá furtar-se à ontologia. Ou, mais precisamente, em razão do imanentismo, da identificação da substância à natureza e a equiparação destes conceitos ao de infinito positivo e de potência absoluta, nada, nem mesmo a política, o artifício das cidades - em Espinosa paradoxalmente natural - e suas instituições, poderão ser forjados à revelia das leis naturais ou fora da substância155. Este é um ponto que deve ser levado em conta quando da análise da política, sob pena de se ter uma visão deformada das teses e argumentos políticos em Espinosa, como fez, por muito tempo, parte da tradição interpretativa156. Tal posição da política de Espinosa faz que seus conceitos tenham uma operacionalidade bastante peculiar, o que o coloca como autor anômalo em face da tradição e em face de seu tempo - talvez, até, em face da posteridade, ao que indica o recente retorno a suas teses políticas nos últimos anos157. A começar por um "contratualismo"

158

que apenas se explica como decorrência de

seus conceitos de direito como potência e seres humanos como afetivos. Sem tais

155

Para um esboço do conceito de substância, ver item (c) do capítulo 1. Para uma análise minuciosa e de rigor incomparável acerca das apropriações feitas da obra de Espinosa, bem como sobre as várias correntes de interpretação do espinosismo no correr da história da filosofia, conferir: CHAUI, Marilena. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol 1: Imanência. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 - Parte 1, pp. 113-321. 157 A título de exemplo, ver o excelente livro de ensaios sobre o Tratado Político, que inclui reflexões sobre sua atualidade: JAQUET, C.; SÉVÉRAC, P. et SUHAMY, A. La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008. 158 Tratarei do tema ainda neste capítulo. 156

121

elementos, em Espinosa decorrentes do imanentismo, dificilmente se terá um razoável entendimento de suas tese políticas. Procurarei mostrar o porquê nas linhas abaixo. No Teológico-político Espinosa estabelece a lei universal segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior, e entre dois males se escolhe o menor (TTP XVI p. 237). Tal lei, escreve o autor, "[...] está tão firmemente [firmiter] inscrita na natureza humana que temos que colocá-la entre aquelas verdades eternas que ninguém pode ignorar." (TTP XVI p. 237). E Espinosa acrescenta a esta tese um desdobramento, a saber, que dela resulta que ninguém prometerá renunciar ao direito que tem sobre todas as coisas, a não ser na esperança de um bem maior ou por medo de um mal maior (TTP XVI p. 238). Ou seja, somente se tem o direito a tudo no estado de natureza. Mas tal direito a tudo é uma abstração, uma opinião, como disse Espinosa, posteriormente, no Político (TP II 15 p. 19). Por conseguinte, a questão que se coloca é: como tal lei universal faz que, por medo ou esperança, crie-se a situação que possibilitará, para além da abstração, o exercício do desejo, ou seja, do direito natural que constitui os homens? É o que Espinosa explica com clareza no escólio 2 da Proposição 37 da Ética IV, considerado o momento, na Ética, em que o autor trata da cidade e da política, tema que procurarei desdobrar a seguir. Em E IV P 37 Esc 2 Espinosa aponta para conceitos da política e os relaciona explicitamente à referida lei universal e à afetividade dos homens como fundamento da socialidade. De início, Espinosa afirma que falará sobre o que é o mérito e o que é o pecado, bem como sobre o justo e o injusto. Para tratar de tais temas, entretanto, um desvio é proposto. E Espinosa diz que tal desvio é uma espécie de requisito para o trato do tema do pecado e do mérito - que só existirão laicizados e como sendo sinônimos de justo e injusto. Que desvio é este? É o momento em que Espinosa estabelece que falará do estado civil (statu civili) e do estado de natureza (statu naturali) dos homens. O início do texto afirma que é "[...] pelo direito supremo da natureza que cada um existe [...]" e é "[...] pelo direito supremo da natureza que cada um faz o que se segue da necessidade de sua própria natureza." (E IV P 37 Esc 2 p. 309). Aqui o autor apenas resume uma tese que já foi analisada neste trabalho, a

122

saber, a de que a substância única, que é equivalente à natureza inteira, é potência, é direito. Assim, os homens, como modos finitos da substância na natureza naturada, não poderiam ter outra realidade que a de potências, intensidades de direito natural advindas da potência absoluta da substância. Trata-se da tese do conatus explícita na Ética III (E III P 7 p. 175), porém referida, aqui, aos homens, por meio da expressão 'cada um' (unusquisque). Os homens, como coisas singulares, são também esforço, conatus. É pelo direito, continua Espinosa, que cada um julga o que é bom, o que é mau, o que é útil. Cada um, cada homem, como intensidade finita do direito e da potência que expressa, busca o útil pelo que seu desejo dita ser o útil - mesma tese já expressa na Ética III, quando Espinosa afirma que não há o bom em si, fora do desejo, mas o esforço em direção à coisa é que é o critério do bom e do útil, "[...] é por nos esforçarmos por ela [pela coisa], por desejá-la, que a julgamos boa." (E III P 9 Esc p. 177). Por isso busca e se esforça pelo que ama, e se esforça para se distanciar do que odeia. Com efeito, pelas definições desses afetos, já analisadas, tudo que gera no desejo de cada homem seu aumento em intensidade, é considerado algo que este homem ama. A alegria acompanhada (concomitante) à ideia de uma causa exterior é a definição mesma de amor (E III Def af 6 p. 241). E o raciocínio inverso aponta para a tristeza e para o ódio - este sendo definido como a tristeza acompanhada da ideia de uma causa exterior (E III Def af 7 p. 243). Se os homens se esforçam pelo útil, buscam aproximar-se do que amam e repudiar o que odeiam. Questão de direito, questão de preservação da potência, algo do que nenhum humano pode fugir, ainda que possa fazê-lo com altos graus de equívoco (TTP XVI p. 237). Espinosa faz na sequência uma ressalva, que simultaneamente explicita a importância da razão e aponta para seu uso escasso pelos homens. De fato, como já visto no capítulo 1 (item (i)), os afetos decorrentes do uso da razão, que faz que os homens tenham acesso, por meio de noções comuns, às propriedades comuns das coisas, somente levariam à concórdia. Esta é a tese repisada em E IV P 35 Cor 1 (p. 303). Se assim fosse, todos poderiam exercer sua potência sem a intermediação da política. Cada homem respeitaria o direito do outro sem a necessidade de coações ou ameaças. Mas Espinosa é claro quanto à pouca frequência dessa situação (E IV P 4 Cor 123

p. 275), e aponta para esta tese também no Político (TP I 7 p. 10; TP II 5 p. 12; TP VI 1 p. 47; TP X 9 p. 135). Ou seja, os homens estão, em geral, submetidos aos afetos, não sob a conduta da razão, mas determinados por paixões. Importa lembrar, neste ponto da argumentação, que não entendo que haja, numa concepção que seria uma espécie de platonização de Espinosa, uma escalada de um estado de não saber a um estado de pleno uso da razão159. Tudo ocorre em simultâneo na mente de cada homem. De fato, cada homem pode ter uma imagem do sol como sendo pequeno e girando ao redor da terra - um saber imaginativo - e, simultaneamente, por um esforço da mente, ter acesso à verdade segundo a qual o sol está parado e é muito maior que a terra. Um saber não exclui o outro, isto é, o acesso a noções comuns não impede que percepções equívocas do mundo se apresentem a cada homem, por meio do conhecimento imaginativo. E toda esta relação com o mundo, seja por meio de ações ou de paixões saber verdadeiro ou imagem, respectivamente -, leva a que os homens tenham sua potência aumentada ou diminuída, pois geram no homem afetos de alegria ou de tristeza - tema objeto do item (a) do presente capítulo. Volto ao texto em análise. Espinosa aponta que os homens, em geral, são contrários uns aos outros, arrastados pelos afetos que os colocam em conflito. Esta tese já fora indicada na Ética III, ao final da última proposição, quando Espinosa afirmara que "[...] fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas por ventos contrários, somos jogados de um lado para o outro." (E III P 59 Esc p. 237). No entanto, afirma também que o que os homens precisam é de ajuda mútua. Mas como conciliar esta situação de contrariedade afetiva, predominante entre os homens, e a necessidade de ajuda mútua para um exercício minimamente eficaz do direito natural, ou seja, para que este não seja mera opinião, como afirma no Político (TP II 15 p. 19)? A chave para isto é a política, que logo entrará explicitamente no texto ora em análise. Mas a entrada da política, à revelia da tradição, será por meio não da figura do contrato, mas pelo exercício da referida lei universal de escolha entre 159

Sobre este ponto, sigo a tese de: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 81-196. A autora afirma: "Em outras palavras, todos os homens são racionais, mas usam a razão de maneira intermitente, desordenada, mesclada aos dados oferecidos pela imaginação" (p. 180). 124

dois males o menor, e entre dois bens o maior, sendo que o critério do bom e do mau, nestes casos, somente poderá ser o desejo de cada homem quanto ao útil. E o útil, em Espinosa, não vem de deliberações mentais de uma razão pura e de uma vontade livre, de leis da natureza que são prescrições da razão (Leviatã I 14 p. 113), de contratos, mas decorre do que chamarei de 'cálculo afetivo', que pouco tem de racional. E como fazer que os homens, que precisam de ajuda mútua, vivam em concórdia? O texto do escólio ora em análise o vai mostrar. Mas inicio esse ponto por uma passagem do Teológico-político, na qual Espinosa parece apontar para a mesma tese que será desdobrada em E IV P 37 Esc 2. E, mesmo usando o termo 'pacto' (pactum G III p. 191), seu conceito terá relação explícita com o campo afetivo, na mesma linha que será explicitada na Ética IV, no escólio 2 da P 37 e, depois, no Político, como mostrarei nos itens a seguir, ainda neste capítulo 2160. Pergunta Espinosa no Teológico-político: "De que modo [...] deve esse pacto ser estipulado, para que seja ratificado e duradouro?" (TTP XVI p. 237). É pela lei universal, já referida acima, segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior, e entre dois males, o menor, que tal pacto se funda. E o autor completa a tese ao escrever que tal bem ou mal é aquele que, a quem escolhe, parece ser o melhor - pois as coisas "[...] podem não ser necessariamente assim como ele julga." (TTP XVI p. 237). Ao final da argumentação desse ponto, Espinosa ainda sublinha que somente se pode concluir de tudo isso que "[...] um pacto não pode ter nenhuma força [pactum nulla vim abere posse G III p. 192] a não ser em função de sua utilidade [...]." (TTP XVI p. 238). E sua utilidade se mede não em razão de promessas a serem cumpridas, mas em razão da lei universal referida, 160

Muitos comentadores entendem que há mudança conceitual entre o TTP, de um lado, e a Ética e o Político, de outro, sobretudo quanto à questão do pacto. Entendem que lá Espinosa ainda usava um vocabulário próximo ao de Hobbes; que seria, em suma, no TTP, um contratualista e que abandonaria as teses do contratualismo nos textos posteriores. Ver, concordando com a tese da mudança conceitual no interior da obra de Espinosa, por exemplo: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 176, p. 184. Afirma Lazzeri, por outro lado, que mesmo no TTP o contratualismo de Espinosa, ainda que próximo ao de Hobbes, ainda assim é muito pouco ortodoxo (p. 284). Penso que Espinosa não opera esta mudança conceitual entre os textos referidos (TTP, de um lado, e Ética e Político, de outro). Entendo que o fato de Espinosa não ter, ainda, o desenvolvimento das teses da Ética III quando da redação do TTP, sobretudo a de imitatio afetiva - explicação de Lazzeri para a diferença entre as obras; Ibid. p.284 - não implica que as teses e conceitos do TTP sejam diferentes daqueles da referida parte da Ética, bem como entendo que não diferem em face do Político. Pode haver diferença no uso do vocabulário - uso do termo pacto no TTP -, mas não de forma que se possa dizer que Espinosa mudou seus conceitos de uma obra a outra. É o que procuro sustentar neste item e em outras notas. É bom lembrar que Espinosa faz referência, no TP, às teses do TTP e às da Ética, pressupondo-as e não fazendo a elas qualquer reparo. 125

a saber, a de que o útil é entre dois males o menor e entre dos bens o maior. Ou, nas palavras de Espinosa, como resultante desta lei universal tão firmemente inscrita na natureza humana, "[...] que só por malícia alguém prometerá renunciar ao direito que tem sobre todas as coisas, e que só por medo de um mal maior ou na esperança de um maior bem alguém cumprirá tais promessas." (TTP XVI p. 238). Ou seja, o conceito de pacto, no autor, não passa pelo uso puro da razão e do cálculo, mas se interpreta por uma espécie de cálculo afetivo cuja explicação está na lógica dos afetos, não na deliberação racional. Espinosa não pode ser visto como exemplar da tradição contratualista, assim, sem mais, a não ser que se dê a este termo seus novos sentidos, que se o considere reconceitualizado161. Mas volto, após este pequeno desvio - cujo objetivo foi mostrar, de um lado, a existência da mesma tese da Ética IV no Teológico-político, e, de outro, que o "contratualismo" de Espinosa tem suas peculiaridades -, ao texto do escólio sob análise. Agora, espero tornar clara a semelhança entre este texto do escólio e as passagens do capítulo XVI do Teológico-político acima citadas e, ao mesmo tempo, mostrar a lei natural que leva à cidade, lei esta que não é senão resultado da lógica dos afetos, ou melhor, lei que estrutura a lógica dos afetos. Após escrever, em E IV P 37 Esc 2, que os homens, não obstante mutuamente nocivos, precisam de ajuda mútua, Espinosa analisará como isso pode vir 161

Aliás, o que Espinosa faz com frequência, se considerarmos, em seu sistema, por exemplo, os conceitos de: (a) liberdade, entendida como livre-necessidade; (b) Deus, entendido como substância única; (c) direito, entendido como potência, e não como dever-ser (lei posta) ou faculdade (direito subjetivo); (d) homem, entendido como intensidade ou modificação de dois dos atributos da substância (o pensamento e a extensão); etc.. Ou seja, Espinosa usa os mesmos termos da tradição, como é o caso ora analisado, de 'pacto' ou 'contrato', mas lhes dá uma reconfiguração tal que dificilmente se pode dizer que são a mesma coisa em outros sistemas filosóficos e no de Espinosa. Sobre a reconceitualização de termos da tradição e do senso comum por Espinosa, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp. 17 e 18. Relevante dizer que, para Campos, alguns estudiosos de Espinosa vêm aí não uma reconceitualização de termos da tradição, mas ambiguidade terminológica de Espinosa. Entendo, no mesmo sentido de Campos e de outros comentadores, que a tese da ambiguidade terminológica em Espinosa não se sustenta, havendo, isto sim, reconfiguração de sentidos dos termos usados pelo autor, os quais são colhidos, é claro, no vocabulário da tradição à qual pertence, mas ressignificados. Outras referências para a questão da revolução semântica: Walther, M. Die Transformation des Naturrecht in der Rechtsphilosophie Spinozas, 1985, pp. 73-74 - citado por CAMPOS, André Santos, Ibid., p. 19. Mesma tese de Blanco-Echauri, J.. Las concepciones Del Jus Naturale o los fundamentos de la politica em Grocio, Hobbes y Espinosa, 2003, p. 121. Citado por CAMPOS, André Santos, Ibid., p. 19.

126

a ocorrer. Para que "[...] vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é preciso que façam concessões relativamente a seu direito natural [ut iure suo naturali cedant] e deem-se garantias recíprocas de que nada farão que possa redundar em prejuízo alheio." (E IV P 37 Esc 2 p. 309). Fazer concessões quanto ao direito natural, sendo este, nos homens, exercício do desejo de perseverar no ser (conatus), significa ceder potência a uma instância criada pelos próprios homens, mas sem que estes venham a perder por completo sua potência, o que significaria que deixariam de ser o que são, se desnaturariam (TTP XVII p. 250). Espinosa formula então a questão chave para a política, ao perguntar, no estilo retórico do escólio, "[...] por qual razão isso pode vir a acontecer [...]" (E IV P 37 Esc 2), ou seja, como podem os homens, que estão submetidos aos afetos e, por esta razão, são inconstantes, dar uns aos outros garantias recíprocas (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311)? Os fundamentos são buscados na própria Ética (E IV P 7 e E III P 39), na qual se afirma o que já estava no Teológico-político, em seu capítulo XVI, acima analisado. Quais são, pois, os fundamentos da política?162 Ou, por outra: se são os homens afetivos, inconstantes, como se dão garantias recíprocas? Espinosa dirá que é pela mesma lei universal - já indicada no Teológico-político, e aqui apenas retomada. É porque "[...] nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um [unusquisque] se abstém de causar prejuízo a outro por medo de um prejuízo maior." (E IV P 37 Esc 2 p. 311). E conclui, logo após, que é com fundamento nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade. Portanto, na mesma chave indicada no Teológico-político, em seu capítulo XVI, Espinosa aponta para o fundamento afetivo da construção social. Apenas não mais utiliza o vocábulo 'pacto', outrora usado no Teológico-político. O par afetivo medo-esperança é que está na base da fundação política. E não apenas. Tal par afetivo é que dá sustentação à continuidade da socialidade e da cidade. Este ponto será aprofundado na ocasião em que procurarei analisar o conceito de imitação dos afetos, 162

O tema da instituição da política em Espinosa tem sido bastante estudado nos últimos anos, e a bibliografia é vasta. Ver nota a seguir. 127

multitudo, e cidade, no item seguinte. Sob esta lei, ou seja, a do medo e da esperança, afetos em exercício, a cidade se fundará. Mas Espinosa afirmara, anteriormente, que os homens cedem parte de seu direito natural. Tal cessão, agora se pode afirmar com mais elementos, não é uma promessa, um contrato163, um pacto formado por

163

Na linha de que Espinosa não é um contratualista no sentido estrito do termo, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196. Chaui vê a gênese da política não na razão, mas no conatus-cupiditas (p. 161) mesma posição desta tese. No mesmo sentido, a autora afirma, porém em outro texto: CHAUI, Marilena. Sobre o medo. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 133-172. Cito: “Para ele, o direito natural (isto é, a potência para existir e agir que define o conatus) é conservado no e pelo direito civil, que surge exatamente para concretizar a potência natural de cada um. O direito civil e a vida política nascem para fortalecer os conatus individuais que não podem realizar-se satisfatoriamente no estado de natureza ou numa vida pré-política." (p. 165). A posição de BOVE parece ser no mesmo sentido, isto é, da importância dos afetos para a constituição e manutenção da política: BOVE, L, MOREAU, P-F., RAMOND, C., JAQUET, C. Le Traité politique: une radicalisation conceptuelle? In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 27-44, especialmente p. 28 (C.Jaquet entrevista BOVE, RAMOND e MOREAU). Ver, também, para a posição de L. Bove: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010. Nesse texto, L. Bove contesta a problemática do contrato em Espinosa ao afirmar (fazendo uma suma do argumento do autor) que "Desde o Tratado Teológico-Político, a exploração dessa via indireta [da eficácia do poder soberano, via superstição, para capturar a energia dos conatus e direcioná-la à dominação dos membros do Estado pelo Estado (p. 121)] [...] contesta, de fato, a problemática teórica explícita e voluntarista do contrato, assim como a realidade de uma transferência de direito" p. 122. Também sobre o tema, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 27, p. 95 e seguintes; p. 125. Fala em uma "tensão teórica" no interior do TTP (p. 131). A posição de Matheron passa pelo fundamento afetivo da política, mas o autor continua achando pertinente o uso do termo 'contrato social'. Ver: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, p. 327. Sobre a gênese do Estado, o autor afirma: "Tal é então a gênese do Estado: passagem, não mais da dependência à independência, mas da interdependência flutuante do estado de natureza à interdependência consolidada pela qual a sociedade política pode se definir. Passagem não procurada de início, que não responde a nenhuma intenção, mas que decorre quase mecanicamente da interação cega dos desejos e dos poderes individuais. Passagem cujos momentos sucessivos se resumem no encadeamento seguinte: esboço de cooperação devido ao desdobramento da vida passional inter-humana no estado de natureza - esboço de disciplina coletiva - nascimento do Estado - reforço da disciplina coletiva - reforço da cooperação, etc. ..., em um ciclo indefinido" p. 327. André Santos Campos vê variações do conceito de transferência dentro do próprio TTP, usa o termo pacto para esta obra, mas fala em uma "reactualização do pacto", dizendo que o conceito de transferência em Espinosa tem suas peculiaridades, o que o diferencia de Hobbes. Na mesma linha, em parte, desta tese, afirma que "como a transferência de potência não é total ou absoluta, a afetividade do 'homem inter-ambiental' do 'estado de natureza' é precisamente a mesma do homem 'inter-humano' do 'estado civil', e todo homem, após a formação do pacto, vive conjuntamente com um pé no 'estado de natureza' e com o outro no 'estado civil'" (p. 252). Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 252. Desenvolve a questão da multitudo desdobradamente em pp. 243-292, constituindo o capítulo IV da tese. A posição de A. Negri é a da não existência de contratualismo em Espinosa. Ver: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 155. 128

palavras, um momento no tempo que não se repete. É algo mais complexo e que aponta para uma tensão entre potências. De um lado, a potência de cada um dos homens da comunidade como intensidade de potência, como direito natural individual. De outro, a potência do soberano, ao qual cada indivíduo, em razão da esperança de ter o real exercício da potência individual garantido, dá o direito de punir aquele que viola a norma. O medo da punição vinda da sociedade civil (sociedade esta que Espinosa chamará de civitas) faz que os homens não violem o direito natural do outro - por medo da ameaça representada pela punição da lei da cidade. E isso garante a sua própria liberdade política, ou seja, o outro também se abstém de violar o direito do próximo e assim sucessivamente, numa espécie de rede afetiva que envolve os membros da sociedade. Continua o movimento do texto, porém, ao estabelecer que, para que este estado de coisas funcione, é preciso que a sociedade "[...] avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bom e o mau164 [Bono et malo iudicandi]." (E IV P 37 Esc 2 p. 311). Assim, a sociedade terá o poder, a potência, advinda da potência dos homens que a compõem, cedida a cada instante na rede afetiva que tensiona poder da sociedade e poder dos indivíduos. E tal poder se desdobrará em leis, fundadas na norma de vida comum (communem vivendi rationem praescribendi). A lei universal de buscar entre os males o menor e entre os bens o maior é que leva os homens, afetivamente, a ceder o seu direito a um poder soberano. O medo existente em estados de baixíssima socialidade - estado de natureza - impede o exercício do direito natural, que é, nesta situação, mera opinião, abstração (TP II 15 p. 19). O cálculo afetivo se funda no medo bruto da morte violenta, da vida bruta, para citar Hobbes, quando do estado de natureza. Mas não é a razão, como puro cálculo, que leva à saída desse estado de coisas. Não são as leis de natureza, como o é em Hobbes (Leviatã I 14 p. 113), que indicam obrigações ao direito natural em exercício em cada homem e possibilitam o cálculo que leva à paz, com a confecção do Estado que fará as leis que obrigam in foro externo, com ameaças - pois "[...] os pactos sem a espada não passam de palavras [...]" (Leviatã I 15 p. 131 e II 17 p. 141). É o medo bruto do conflito com o outro, no qual o bios está em jogo, que será o primeiro catalisador. 164

Tomaz Tadeu traduz por bem e mal. 129

Assim, cada homem cede parte de seu direito natural a uma instância com mais poder, isto é, com mais direito, mas não o faz apenas em um momento específico no tempo, e não por meio de transferência pelo pacto, do direito natural, a uma persona ficta, a qual dará unidade, como representante, às vontades difusas (Leviatã II 17 pp. 134144). Em Hobbes, com efeito, a paz advém da transferência do direito natural de cada membro do corpo político a um poder comum, cuja única maneira de ser instituído é [...] conferir toda sua força e poder [de cada homem] a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem, ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas [...], todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. (Leviatã II 17 p. 144).

Conclui Hobbes que isso é "[...] uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, [...]" (Leviatã II 17 p. 144). Assim, em Hobbes, a tese da gênese do Estado está atrelada aos conceitos de transferência, representação e pessoa. O conceito de pessoa é definido no capítulo anterior do Leviatã, no qual Hobbes afirma: "Uma pessoa é aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de um outro homem, ou de qualquer outra coisa a que sejam atribuídas, seja com verdade ou por ficção." (Leviatã I 16 p. 135). E complementa afirmando que quando tais palavras ou ações são consideradas como suas próprias, trata-se de pessoa natural, ao passo que "Quando são consideradas como representando as palavras e ações de um outro, chama-se-lhe uma pessoa fictícia ou artificial." (Leviatã I 16 p. 135). O conceito de pessoa é a chave para que se entenda, na filosofia hobbesiana, como o Estado é representante de várias vozes e vontades e, também, de que maneira age como se se tratasse dos próprios membros que o criaram através do pacto. A unidade do poder está em que aquele que recebeu os direitos transferidos, seja um homem ou uma assembleia, pelo pacto, exerce o poder como re-presentante de cada pessoa que cedeu o direito. Literalmente, como se estivesse presente em-lugar-de. E o conceito de pessoa é que possibilita esta passagem do múltiplo das pessoas naturais ao uno da persona artificial. O pacto, por 130

meio dos conceitos de persona e de transferência, legitima as ações da pessoa artificial, depositária da soberania 165. Em Espinosa, diferentemente, este ceder ou transferir direitos é uma constante na medida em que sempre há, em simultâneo, na mente de cada homem, por meio da memória, a esperança do exercício humano da vida, por meio de momentos de alegria e aumento de potência, e o medo das ameaças que a lei comum estabelece em face de qualquer violação. Portanto a cidade deve projetar um imaginário de esperança transmutada em outro afeto, a segurança, como já dito em item anterior (item (e) do capítulo 1) 166. Em suma, esta construção é cotidiana, constante, na medida em que os afetos são sempre instáveis e cabe à política da cidade estabilizá-los167. Há, assim, uma política dos afetos168. A potência do soberano, construída por meio da potência dos cidadãos cedida, de seu direito natural cedido, é que garante, paradoxalmente, o exercício do direito natural de cada um169. Esta tensão entre potência do soberano e potência de cada um, este equilíbrio de potências, é que permite o exercício do desejo, tornando-o sempre mais intensidade, mais alegria, e nunca menos intensidade ou tristeza170.

165

Sobre este tema e estas diferenças entre Hobbes e Espinosa, sigo as interpretações de: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 262. Para Lazzeri, a teoria da pessoa artificial, em Hobbes, implica o representante como depositário da soberania. Como isso ocorre? Por uma convenção. No capítulo XVII do Leviatã, segundo Lazzeri, Hobbes soluciona a questão do exercício da soberania combinando a solução do mandato de autorização e sua concepção de unidade da multidão pela unidade do representante da multidão (p. 262). Ver também pp. 248-251. Tudo muito diferente da concepção espinosana, como procuro mostrar no texto da tese. Sobre a eliminação do conceito de representação em Espinosa, ver: Ibid. p. 281. 166 Lazzeri concorda com a tese da gênese e manutenção afetiva do Estado, na mesma linha do presente trabalho. Ver: Ibid. pp. 284-287. 167 Acompanha a tese da transferência cotidiana: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988, pp. 295-296. 168 O termo é inspirado em: KAMINSKY, Gregorio. Spinoza: la politica de las pasiones. Barcelona: Gedisa, 1998, um dos autores que chamou a atenção para a importância dos afetos na construção da política em Espinosa. 169 Mesma posição de: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 329. 170 Esta tese espinosana já estava presente no TIE 14 p. 11. Ou seja, lá Espinosa já falava da necessidade de construção da sociedade desejável para que o maior número possível de homens possa "alcançar" a felicidade. A virtude como potência e a felicidade como estado de mais alegria são conceitos que se tornarão mais claros e desenvolvidos nas outras obras de Espinosa, principalmente na Ética. 131

Volto ao texto sob análise. Espinosa dá, assim, a esta sociedade, o nome de civitas. Uma sociedade (societas) baseada nas leis e no poder de se conservar, cujos membros Espinosa chama de cidadãos (cives) (E IV P 37 Esc 2 p. 311). Poder (potestate) de se conservar: Espinosa usa este termo precisamente porque o poder da cidade, seu direito, é formado pelos direitos naturais de seus membros que foram e são cedidos ao poder soberano, constituindo-o. Espinosa não usa aqui o termo multitudo, presente no Político e que será chave para o entendimento mais preciso de funcionamento do mecanismo de transferência de intensidade de potência desta para o poder soberano da civitas. O termo 'consenso de todos' (omnium consensu), ao qual Espinosa se refere para afirmar, no movimento seguinte do escólio, que no estado de natureza não há os conceitos de bom e mau, é fundamental para mostrar os limites do poder soberano, da potência das instituições da cidade, em suma, do que pode fazer o poder soberano, cujo fundamento ontológico, como visto, é o direito natural de cada homem que se expressa sob a forma de direito natural coletivo171 da cidade. Este limite do poder soberano da cidade aparecerá claramente no Político, e será analisado em momento oportuno, em outro item deste capítulo 2172. O que interessa para este momento é dizer que no estado de natureza, segundo Espinosa, não se pode falar em bom e mau. Tais conceitos apenas se referem à sociedade política, a qual define, por consenso comum, as leis que dirão o que é o justo e o injusto, o pecado e o mérito. E tais leis serão decididas por consenso, ou, no texto latino, por communi consensu.

171

Sobre a tese do corpo político como sendo o direito natural coletivo, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, especialmente p. 170, em que a autora escreve: "Os homens operam constituindo um indivíduo coletivo ou complexo, a multitudo, e instituem o imperium ou, como lemos no parágrafo 2 do capítulo III do Tratado político, 'o corpo e a mente do poder' [...], dotado de toda potência que seus agentes lhe derem: o imperium é o direito natural comum ou coletivo cuja ação é o ânimo e a mente da massa". 172 Tratei também desse tema - o dos limites do poder da cidade em face dos cidadãos - no item (f) do capítulo 1, cujo título é 'Indignação: esboço conceitual e apontamentos para a política'. Lá também procurei mostrar algo que retomarei pelo viés mais acentuadamente político nos itens a seguir deste capítulo 2, a saber, a tese de que há coisas que levam os homens a sentirem afetos que apontam para a dissolução da cidade. Alguns atos dos que exercem o poder soberano podem causar na multidão o afeto indignação, que pode minar a potência do poder soberano. Ou seja, o poder soberano não pode tudo em face dos cidadãos-súditos. Se isto ocorrer, o campo afetivo muda e o que sustentava a cidade pode dissolvê-la, ou seja, a potência da multidão, que sustentava a cidade, pode dissolvê-la. 132

Portanto, é por consenso (communi consensu) que a cidade dá a si os parâmetros para dizer o que é o pecado e o que é meritório. Espinosa laiciza tais conceitos ao afirmar que "O pecado não é, pois, senão uma desobediência [...]." (E IV P 37 Esc 2 p. 311). Nesse sentido se explica o que havia sido apontado no item (f) do capítulo 1, a saber, que Espinosa laiciza os conceitos de pecado e mérito. Eles são, com efeito, o resultado do jogo de forças que é próprio da cidade ao estabelecer suas leis. O pecado, espinosanamente falando, não é senão uma violação da lei da cidade. Finalmente, Espinosa falará do justo e do injusto, conceitos que não existem no estado de natureza. O justo, para Espinosa, é dar a cada um o que é seu - retomando a definição romana173 - segundo as leis da cidade. Por conseguinte, apenas no estado civil isto é possível. Entretanto, Espinosa acrescenta um termo que faz toda a diferença conceitual de suas teses em face da tradição da justiça como apenas distribuição de bens: dar a cada um o que é seu segundo o communi consensu. Como mostrarei nos itens que seguem, esta expressão dará o tom de mais uma revolução copernicana de Espinosa no campo da filosofia política - e jurídica. Com efeito, procurarei deixar mais claro nos itens a seguir, nos quais o Tratado Político será analisado mais de perto, como esta expressão estabelece Espinosa como inovador também ao reformular este conceito da tradição. O 'dar a cada um o que é seu' terá um significado que passa tanto pelo campo dos afetos, quanto pelos limites a que está adstrito o poder soberano. Afinal, se a potência do soberano é apenas o direito natural cedido, uma espécie de direito natural coletivo, que objetiva estabilizar as potências e gerar mais afetos alegres que tristes, dar a cada um o que é seu terá também uma estreita relação com o campo de forças que tensiona o poder soberano e os súditos-cidadãos, estes sob a forma da multitudo. Este escólio da Ética talvez venha a ter alguns de seus termos aclarados com um mergulho no Político, local do qual procurarei extrair as teses espinosanas que trabalham o conceito de communi consensu e de 'dar a cada um o que é seu'. Estes são conceitos também relacionados ao campo afetivo que funda e mantém a civitas.

173

Suum cuique tribuere. Ulpiano. Digesto. I, I, 10.I. Citado por: VELASCO, Ignácio Maria Poveda. Direito, Jurisprudência e Justiça no Pensamento Clássico (Greco-Romano). In: Revista da Faculdade de Direito da USP. São Paulo: Vol. 101, jan-dez 2006, pp. 21-32, especialmente p. 24. 133

(c) Imitação dos afetos, multitudo, imperium, cidade c.1 Formar blocos de mentes No item (g) do capítulo 1, tratei da questão da imitação afetiva ou mimetismo afetivo, conceito fundado na Proposição 27 da Ética III (pp. 195-197). Apontei, na ocasião, que tal conceito teria importância na construção da socialidade e da política, segundo Espinosa. Retomo agora este conceito para lançar luz em outro local da cartografia política espinosana, a saber, o da relação entre mimetismo afetivo e os conceitos de multidão e cidade. Em outras palavras, se no capítulo 1 procurei mostrar o fundamento, na parte III da Ética, do conceito de imitação afetiva, sua lógica de funcionamento dentro do quadro geral de funcionamento dos afetos, trata-se, neste momento, de lançar os holofotes na questão política que daí decorre. Afinal, como visto no item (g) do capítulo anterior, a imitação afetiva é um conceito que gera 'blocos de mentes' orientadas num mesmo sentido, seja por meio da comiseração ou compaixão, afeto derivado da tristeza, seja por meio da emulação, afeto derivado da alegria, bem como por meio das várias derivações afetivas daí decorrentes benevolência, apreço ou reconhecimento, indignação, etc. (E III P 22 Esc p. 191 e E III P 27 Esc p. 197). A imitação do desejo do outro, que por sua vez é desejo de algo, gera comportamentos sociais, coletivos, os quais não são deliberações de vontades livres, mas decorrências do próprio funcionamento do maquinário afetivo. Blocos de mentes orientadas para cá ou para lá são socialidades de maior ou menor potência, e é este mecanismo, de ponta a ponta natural e de ponta a ponta afetivo, que será o fundamento e o cimento da cidade. Penso que isso possibilitará trazer à tona uma tese a meu ver importante. Na Ética, de acordo com temas analisados nos itens acima, já há, ainda que de modo incipiente e lacônico, uma elaboração explícita acerca da política (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311). Tal elaboração, como procurei mostrar, está em acordo com teses do Teológico-político, sobretudo no que se refere à tese de um "contratualismo" que se reelabora cotidianamente, numa tensão entre poder soberano, ao qual se cede potência, e os membros da cidade, que têm as potências individuais garantidas pelo direito civil. Este, por seu turno, é posto pela potência do soberano e fundado na lei universal segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dois males o 134

menor. Tal lei da natureza humana se apresenta, no funcionamento da cidade, por meio do par afetivo medo-esperança, afetos estes que são fundadores, bem como explicativos da manutenção constante do poder soberano. Mais precisamente, a esperança de um bem maior faz que os homens cedam parte de sua potência ao poder soberano, o qual edita leis que garantem o exercício das potências individuais. Mas tal lei universal da natureza humana, segundo o Teológico-político, quando apresentada na Ética IV, no momento da introdução da política no texto espinosano, não explicita ainda um conceito que terá fundamental importância na política e que aparecerá abundantemente174 no Político, a saber, o conceito de multidão. Não entendo, com isso, que haja contradição entre os três textos espinosanos que explicitamente tratam da política (TTP, Ética, TP), ou mesmo que haja uma falta conceitual na Ética por não conter o conceito de multidão175, ou por não trabalhar com tal conceito. Entendo que os objetos diversos das obras explicam a ausência ou presença do conceito, sua maior ou menor importância na economia desta ou daquela obra específica. De fato, o objeto explícito, o tema por excelência, da Ética, é o campo das ações humanas, que Espinosa explicitará em cinco partes, mostrando desde o fundamento do real, a tese da substância única e do imanentismo, na parte I, até a noção de beatitude, passível de ser alcançada pelo sábio, na parte V. Para isso, passa-se pela noção de afeto e de sua natureza, na parte III, bem como envereda-se pela noção de servidão humana e força dos afetos, na parte IV, sem deixar de passar pelo tema da natureza e origem da mente, na parte II. Na parte IV, a política irrompe, e os conceitos de mérito e demérito, bem como o de civitas e as noções de justiça aí implicadas, se apresentam como o momento lacônico de teses políticas no texto da Ética. E nada há a se estranhar nesse laconismo. Afinal, o tema é a ética, não a política, ainda que os fundamentos afetivos da política, a antropologia 174

O termo multidão, sob suas várias formas na sintaxe latina (multitudo, multitudinem, multitudinis, etc.), aparece 69 vezes no Político. A pesquisa foi feita na edição de Gebhardt, versão eletrônica. 175 Sobre a inexistência do conceito na Ética, afirma Aurélio o que segue: AURÉLIO, Diogo Pires. Introdução. In: ESPINOSA. Tratado Político. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. VII-LXVII. Cito: "A multidão é uma palavra que irrompe (...) nas páginas do TP. Até aí, ela comparecera, por junto, somente umas 14 vezes sob a pena de Espinosa, estando, inclusive, completamente ausente da Ética. Pelo contrário, no último tratado, que é um dos mais breves textos do autor, a palavra encontra-se algumas dezenas de vezes" (p. XXIV). Complementando a informação de Aurélio, 69 vezes no TP, como afirmado na nota acima. 135

espinosana, seja longamente analisada na Ética III, e o texto desta seja recuperado no Político, até mesmo explicitamente, como já tive ocasião de assinalar. O que importa, entretanto, para esta tese e seu tema, é a ideia de que o desdobramento completo do conceito de multidão poderá ser melhor compreendido à luz da Ética e de seu maquinário conceitual referente aos afetos. Do mesmo modo, o momento da Ética em que Espinosa fala da constituição do campo político (E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311), bem como as passagens do Teológico-político em que fala da lei universal inscrita firmemente na natureza humana (TTP XVI p. 237), penso, poderão ser melhor compreendidos à luz do conceito de multidão. Gostaria, assim, tendo como pano de fundo esse quadro geral, de explicitar como os conceitos de mimese afetiva, próprios da Ética III, bem como o conceito de multidão, próprio sobretudo do Político, são conceitos que se articulam e possibilitam um melhor ou mais claro entendimento das teses políticas de Espinosa. Entendo que o conceito de multidão dará o tom mais original do pensamento político espinosano ao resolver, pelo viés dos afetos e de sua lógica, a questão da fundação e da manutenção do corpo político, bem como a questão da importância da política como instância garantidora da alegria como afeto predominante na civitas. De fato, quanto mais alegria no corpo político, em forma de maior potência dos membros que o constituem, maior será, por assim dizer, a eficácia da cidade no que se refere à sua razão de existência. O limite inverso disso, dirá Espinosa, não se poderá chamar civitas, mas solidão (TP V 4 p.45).

c.2 Como num jogo de espelhos: a multitudo André Santos Campos resume bem a questão - ou o problema - do surgimento do corpo político, em Espinosa, a partir da vivência afetiva dos homens, ou seja, da antropologia espinosana

176

. Se o que há de comum na experiência dos

homens é a vivência afetiva, que pode os unir ou os tornar inimigos, por um lado, por outro lado há a experiência histórica. Esta, ao que indica o autor, aponta para uma 176

Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, pp.275-276. 136

superação desse paradoxo. Isso porque os homens, de acordo com a experiência histórica, são observados sempre vivendo em comunidades de cooperação, sem as quais a preservação de cada um, deixados a si mesmos, seria impossível. Assim, sendo os homens afetivos de ponta a ponta, e dado este quadro histórico, como justificar, pergunta o autor, "[...] a formação de laços humanos de cooperação sem a intervenção direta de princípios racionais pelos agentes cooperantes?"

177

Ou, em outras palavras,

"[...] se a imitação dos afetos tende a explicitar o comportamento natural passional dos indivíduos num 'estado de natureza' que jamais se abandona, como fundamentar pela mesma imitação dos afetos a passagem necessária a um plano de cooperação inter-humana, que é o veículo indispensável à performatividade na existência do conatus de cada um?" 178 A resposta espinosana passa, na interpretação que proponho, pelos conceitos de imitação dos afetos e de multidão. Ou seja, pela união de ao menos dois textos espinosanos fundamentais, o Político e a Ética, bem como de teses já existentes em alguns capítulos do Teológico-político. Inicio com a recapitulação da Proposição da Ética que trata da imitatio afetiva - vista no item (g) do capítulo 1. "Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto, seremos, em razão dessa imaginação, afetado de um afeto semelhante [simili]." (E III P 27 p. 195). O conhecimento imaginativo ou por imagens é o primeiro ponto a ser notado nesta proposição. De fato, uma percepção na mente de um homem de algo que afeta esta mente é o que Espinosa designa pela expressão "por imaginarmos". É do conhecimento do primeiro gênero que se trata aqui, isto é, o conhecimento imaginativo, o mesmo que percepção, para usar uma linguagem contemporânea. De fato, na demonstração da Proposição 27, Espinosa afirma que se a "[...] natureza de um corpo exterior é semelhante à de nosso corpo [...]" (E III P 27 Dem p. 195), por conseguinte, "[...] a ideia do corpo exterior que imaginamos [...]" (E III P 27 Dem p. 195) acarretará uma afecção de nosso corpo semelhante [similem] à do corpo exterior.

177 178

Ibid.. p. 275. Ibid.. p. 276. 137

Isto é, a imagem que tenho na mente acarreta em mim um afeto similar ao afeto que o ser semelhante imaginado sente. Espinosa, na sequência, constata que se trata, nesse caso, de affectum imitatio (E III P 27 Esc p. 195). Em suma, o imaginar pode gerar um caminho do desejo que vai no mesmo sentido do desejo do outro. O que o outro imagina, por ser imaginado por mim, faz que eu sinta algo similar (simili affectu - E III P 27 p.194) ou semelhante ao que o outro sente. O meu desejo se move, ou me move, portanto, no mesmo sentido do desejo do outro. Esse o traço geral, ou o mecanismo geral, da imitação afetiva. Ocorre que ela terá uma importância social e política fundamental, visto que para Espinosa os afetos constituem a tensão ontológica ou de potências que funda e mantém a civitas. Eis o ponto que pretendo desenvolver a seguir. Vários afetos são movimentados nas demonstrações, corolários e escólios da proposição 27. Todos decorrem do conceito fundante de imitação afetiva. Espinosa escreve, pois, já na primeira demonstração, que, do mesmo modo que imaginar uma coisa semelhante a nós, afetada de algum afeto, nos leva a experienciar afeto semelhante, o oposto pode ocorrer. Isto é, no caso de odiarmos uma coisa semelhante a nós, o afeto que nos afetará será o afeto contrário. Recorre Espinosa à Proposição 23 da Ética III (E III P 23 p. 191) para confirmar esta posição. Afirma, de acordo com esta proposição, que quem imagina que aquilo que odeia é afetado de tristeza, se alegrará, bem como quem imagina que aquilo que odeia é afetado de alegria, se entristecerá. O primeiro escólio da proposição 27, por conseguinte, traz a tese de que a imitação dos afetos pode - como não poderia deixar de ser dada a primariedade dos três afetos (desejo, alegria e tristeza) - se referir à tristeza ou à alegria. Quando referida à tristeza, é compaixão (comiseração, commiseratio). De fato, imaginar o sofrimento do outro leva a que se sofra também. Mas, quando a imitação é a do desejo do outro, é desejar o que o outro deseja, o que se tem é a emulação (aemulatio). E Espinosa usa a expressão "[...] o qual se produz em nós por imaginarmos que outros [alios], semelhantes a nós, têm esse mesmo desejo." (E III P 27 Esc da 1ª Dem p. 195). Alios, ou seja, "outros", semelhantes a nós, tendo o mesmo desejo, nos leva a desejar esta mesma coisa. Aí está o comportamento por excelência que leva ao coletivo: a imitação do desejo alheio por emulação. Espinosa ainda trata de outros 138

afetos derivados da imitação, e que provocam este comportamento coletivo, este bloco de mentes num sentido ou noutro. O amor (E III P 27 Cor 1 p. 195), o esforço para livrar quem nos causou compaixão de sua situação de desgraça ou infelicidade (miseria) (E III P 27 Cor 3 p. 195), bem como a benevolência (benevolentia), aqui entendida como uma derivação da compaixão, ou seja, um apetite ou desejo surgido da comiseração. Por fim, Espinosa ainda deriva da imitação afetiva, ou de seu mecanismo, dois afetos. Um, o reconhecimento, que é o amor que se sente por alguém que fez um bem a um terceiro (E III P 22 Esc p. 191). O outro, um afeto que já foi visto no capítulo 1, item (f), e que tem importância para a política, a saber, a indignação, que é o "[...] ódio a quem fez o mal a um outro." (E III P 22 Esc p. 191). Eis, em suas linhas mestras, o mecanismo de imitação afetiva que leva ao comportamento coletivo, fundante da socialidade e da cidade, instâncias indispensáveis à concretização do direito natural de cada membro da cidade (TP II 15 p. 19). Passo, a seguir, dado esse pano de fundo - aqui apenas recapitulado com os holofotes apontados para os blocos de mentes que derivam da imitatio afetiva -, ao conceito que une a Ética ao Político, bem como explica passagens do Teológicopolítico, a saber, o conceito de multidão (multitudo). *** O final do capítulo I do Político (TP I 7 p. 10) anuncia uma tese que está diretamente de acordo com a Ética III. Espinosa afirma nesta ocasião, em primeiro lugar, que os homens, onde quer que se juntem, formam costumes e um estado civil. Em segundo lugar, no mesmo parágrafo, afirma que as causas e fundamentos do imperium não decorrem de ensinamentos da razão. Devem "[...] deduzir-se da natureza ou condição comum dos homens [ex hominum communi natura seu conditione deducenda sunt]." (TP I 7 p. 10; G III p. 276). A condição comum dos homens, ou a antropologia espinosana, está desenvolvida na Ética III, momento em que Espinosa trata da origem e da natureza dos afetos.

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No primeiro passo deste item c.2, a afetividade humana foi focada no seu aspecto de imitação. O que leva, segundo Espinosa, ao que chamei de blocos de mentes que vão num ou noutro sentido. Em uma palavra, a tese é a de que os homens podem seguir o desejo do outro (ou dos outros) por imaginar o afeto que está no outro e passar a ter um afeto similar - trata-se da emulação. A condição comum dos homens é sua dinâmica afetiva. Mais precisamente, é serem, os homens, constituídos pelos afetos. Não casualmente, no Político, Espinosa explicita, já nas primeiras linhas do capítulo I, esta condição comum, ao afirmar que a afetividade ou o estar sob os afetos é próprio dos homens. O aspecto da afetividade logo acima explicado, a saber, a mimese afetiva, como afirmei, é a condição para que haja comportamentos em conjunto, comportamentos comuns. Como este estado de coisas, isto é, a imitação afetiva, devém multidão e devém imperium? Isto é o que Espinosa aponta como projeto a ser desdobrado no capítulo seguinte à afirmação acima indicada, do final do capítulo I, e o capítulo II do Político tratará, de início, do tema apontado. A questão que se apresenta a Espinosa, pois, é a de saber como se constitui e se mantém o imperium. Afinal, como aponta o texto do Político (TP I 7 p. 10), os homens formam costumes e estados civis. O conceito de mimese afetiva será utilizado por Espinosa para explicar esta união de homens, sem que o conceito, porém, seja explicitado, no Político, tal qual fora na Ética III. Procurarei extraí-lo do texto do Político. Isto porque, numa hipótese já indicada no presente trabalho, os afetos fundam a política e a mantêm. Um importante parágrafo em que o conceito de afetividade - e mais especificamente de imitação - está pressuposto nas análises espinosanas é o de número 10 do capítulo 2 do Político. Cito-o a seguir: Tem um outro sob seu poder quem o detém amarrado, ou quem lhe tirou as armas e os meios de se defender ou de se evadir, quem lhe incutiu medo ou quem, mediante um benefício, o vinculou de tal maneira a si que ele prefere fazer-lhe a vontade a fazer a sua, e viver segundo o parecer dele a viver segundo o seu. Quem tem um outro em seu poder sob a primeira ou a segunda destas formas, detém só o corpo dele, não a mente; mas quem o tem sob a terceira ou a quarta forma fez juridicamente seus [sui juris fecit (G III p. 280) ], tanto a mente como o corpo dele, embora só enquanto dura o medo ou a esperança; na verdade, desaparecida esta ou aquela, o outro fica sob jurisdição de si próprio. (TP II 10 p. 17).

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Espinosa trata, no referido parágrafo, de potência, ou seja, de estar sui juris ou alterius juris, como afirma em passagem anterior ao parágrafo citado (TP II 9 p. 16). O que está em jogo é estar sob a potência - ou seja, sob o direito - de si mesmo ou sob a potência de outrem, uma vez que jus sive potentia (TP II 5 p. 12 - G III p. 277). Dois casos dão ao detentor do direito o corpo do outro. São os dois primeiros, em que o outro está sob o poder daquele que o amarrou ou daquele que tirou os meios de se defender ou de fugir. Detém, entretanto, o corpo e a mente de um homem aquele que incute neste o medo ou, mediante um benefício, faz que este prefira abrir mão do próprio desejo imediato para ter acesso a um bem maior. Aquela lei indicada no Teológico-político, tão firmemente inscrita nos homens, (TTP XVI p. 237), e repetida na Ética IV (E IV P 37 Esc 2 p. 311), segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dos males o menor, é o que Espinosa aponta neste excerto. E tal poder sobre um outro, fundado nesta lei, opera a mesma lógica já apontada no TTP e na Ética, isto é, a do afeto medo-esperança fundando o 'estar sob', ou seja, fundando o ato de estar sob jurisdição de outrem. Desaparecida a esperança que funda a obediência ao poder de outrem, ou desaparecido o medo, desaparece o direito do outro sobre a mente e corpo deste ou daquele homem. Cada homem volta, assim, a estar sui juris, ou seja, num estado pré-civil ou de natureza, no qual os direitos naturais são abstrações (TP II 15 p. 19). As concessões quanto ao direito natural (iure suo naturali cedant - E IV P 37 Esc 2 p. 309), de que fala Espinosa na Ética IV, fazem parte da mesma lógica acima apontada. Ao fazer, num momento na história e cotidianamente, a cessão do direito natural ao poder soberano, na esperança de garantir a existência mesma do direito natural, cada homem transfere potência ao poder soberano, dá a esta instância poder para fazer que as leis por ele editadas sejam cumpridas. Ou seja, cada membro da cidade, em parte - pois não se cede toda a potência (TTP XVII p. 250) -, passa a estar sob a jurisdição (sui juris) do poder soberano, sob sua potência. Há, ontologicamente fundada, uma tensão entre potências. O soberano, de acordo com a lógica exposta no excerto citado (TP II 10 p. 17), detém mais poder que cada membro da cidade isoladamente na medida em que pode, por ameaças, fazer cumprir as leis. Mas este é apenas um lado da moeda, pois os membros da cidade cumprem a lei também na

141

esperança de que todos a cumpram, inclusive o próprio poder soberano, garantindo-se a paz no corpo social. Quando Espinosa afirma que alguém - ou algo - tem sobre outrem poder, sublinha, no caso do poder sobre a mente e o corpo, que são os afetos esperança e medo que garantem tal relação. E esta relação cessa findos o medo e a esperança. Ou seja, os membros da cidade, por, simultaneamente, temerem e esperarem garantias do poder soberano da cidade, mantêm uma relação de submissão ao soberano que é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, sua (dos membros da cidade) garantia de exercício da potência enquanto indivíduos, isto é, enquanto homens. Mas se trata aqui do medo da lei179, não do medo animal anterior a qualquer instituição. Um medo que é possibilitador, paradoxalmente, da alegria e da potência dos membros da cidade180. Por outro lado, o poder soberano somente subsiste enquanto tem como fundamento de sua potência a própria potência dos desejos dos membros da cidade, sob a forma de multidão, a qual alimenta o poder soberano, sem a qual o poder soberano não possui qualquer potência, ou seja, qualquer direito. Por isso Espinosa poderá dizer, acerca do imperium monárquico, por exemplo, a título de conclusão do capítulo VII do Político, "[...] que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta." E conclui: "Foi esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado [imperium] monárquico." (TP VII 31 p. 85). Porém, como os desejos, a princípio isolados e tumultuadamente contrários uns aos outros, como afirmado em E IV P 37 Esc 2 (p. 309), devêm multidão? Minha hipótese vai pelo seguinte veio: a mimese dos afetos esperança e medo, por parte dos membros da cidade em face do poder soberano, através da emulação, será o conceito necessário para que se entenda a passagem do Político que complementa o excerto do parágrafo 10 do capítulo II (TP II 10 p. 17) e que pode ser

179

Ver, sobre o tema do medo da lei: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191, especialmente p. 174 para a tese do medo da lei como diferente do medo animal presente no estado de natureza. 180 Nesse sentido, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 334. Para Aurélio, a liberdade política não exclui a alegria, pois o medo civil da lei não exclui a alegria, mas a possibilita (p. 334).

142

uma chave para a compreensão desta transformação. A passagem é a seguinte: "Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos." (TP II 13 p. 18). Analiso, a seguir, esta passagem à luz do excerto acima citado (TP II 10 p. 17). O objetivo é mostrar como surge aí o conceito de afeto e, mais precisamente, a necessidade da ideia de imitar o afeto do outro para que tal união subsista. O acordo somente ocorre, de forma completa, segundo Espinosa, com o uso da razão (E IV P 37 Esc 2 p. 309 e P 35 Cor 1 p. 303). Mas os homens raramente a usam, e estão submetidos aos afetos, que os põem em divergência (E IV P 37 Esc 2 p. 309). Porém, não obstante estarem em desacordo, simultaneamente sabem que "[...] o homem é um Deus para o homem." (E IV P 35 Esc p. 303), e por isso a experiência mostra que dificilmente os homens vivem uma vida solitária, e em geral vivem em sociedade, pois daí advêm vantagens, escreve Espinosa (E IV P 35 Esc p. 305). Entretanto, como sabem disso e por que vivem em sociedade, já que são, essencialmente, desejos em conflito? O parágrafo 13 do capítulo II do TP parece se fundar nisso que se pode chamar de convenientia ou 'astúcia da razão'

181

, ou seja, a razão que, sub-

repticiamente, se serve da esperança "para dar força operante à potência racional das noções comuns" 182. Dessa maneira, como dois se põem de acordo e juntam forças? Ora, por meio de uma operação, via afeto esperança, operação esta fundada na noção de convenientia, que põe no mundo afetivo as noções comuns da razão. Por outras 181

O termo é de Marilena Chaui. Ver: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191. Afirma a autora sobre o que permite a passagem do medo à esperança: “O que permite essa passagem de uma paixão à sua contrária é, de um lado, sob a lei do mal menor e do bem maior, a vitória afetiva da esperança, paixão de alegria, cuja força é superior e contrária à do medo, paixão da tristeza; e, de outro, o fato de que o que reforça a esperança, mesmo que ela não o saiba, são as noções comuns da razão, visto que estas são o fundamento ontológico da convenientia e, portanto, a mola racional invisível da cooperação entre humanos” (p. 182). E conclui: "Poderíamos até mesmo falar numa 'astúcia da razão', que se serve de uma paixão, a esperança, para dar força operante à potência racional das noções comuns" (p. 182). Tendo a concordar com a tese de Marilena Chaui caso se entenda que é do comum, das propriedades comuns das coisas, que emana a razão. Isto é, caso se entenda que a 'astúcia da razão' é o mesmo que convenientia, aquilo que possibilita o acordo pelo comum, o qual se constrói pela via afetiva. 182 Ibid., p. 182. Sobre as noções comuns, ver, nesta tese, o capítulo 1, item (i). 143

palavras, a esperança de uma potência maior, que faz que dois se juntem e possam mais, se funda nesta convenientia operando na natureza, a qual explicita um acordo que não se mostra em todas as suas facetas, que não se mostra diretamente pela razão, mas indiretamente, por meio de um afeto alegre, a esperança. Esse é - eis uma hipótese - um pano de fundo constituído pela astúcia da razão, a qual, no plano afetivo, se apresenta por meio da emulação, por parte de vários homens, dos afetos medo-esperança, culminando na cessão de potência a uma instância responsável por criar e manter a civitas, ou seja, o poder soberano, do qual emana o direito civil. De outro ângulo: os homens, ao juntarem força, o fazem somente porque há uma conveniência de fundo operando a possibilidade da cooperação. Mas tal racionalidade de fundo, que aqui chamei, inspirado em Marilena Chaui183, de 'astúcia da razão' como sinônimo de convenientia -, se manifesta, nos homens, como estreitamento de relações (TP II 13 p. 18), cujo fundamento mais visível é o par afetivo esperança-medo e a mimese, via emulação, desses afetos por parte dos homens que se unem. Dizendo por outras palavras, os homens imitam, por emulação, a esperança uns dos outros para se unirem e buscarem os benefícios, a utilidade desta união. Quando isto se tornar tão complexo a ponto de se necessitar de uma instância detentora da potência da cidade (o poder soberano), o par esperança-medo continua operando e sustentando, pela via da emulação, a potência deste mesmo poder soberano, ao qual se deu o poder de editar leis. Tais leis são respeitadas pelo medo da punição e na esperança de se ter paz e não guerra, de se viver uma vida digna, ou seja, com potência individual tendente ao máximo, com alegria como afeto predominante. E ainda mais: o par afetivo medo-esperança será transmutado, pelas instituições da cidade, em securitas, afeto mais estável e garantidor do exercício dos direitos naturais individuais na civitas. Na verdade, o afeto esperança se transmuta em segurança na medida em que a cidade, por meio do funcionamento das instituições, é capaz de diminuir a dúvida, nos cidadãos-súditos, quanto ao futuro. A cidade dever ser capaz de forjar este imaginário de segurança, o qual deve estar sempre presente nas mentes dos membros da cidade como uma espécie de futuro-antecipado-em-forma-deimagem-de-segurança. Somente instituições políticas da civitas são capazes de gerar

183

Ibid., p. 182. 144

tal imaginário de alegria em cada membro do corpo político, imaginário este que retroalimenta a própria força da cidade. Porém, do ponto de vista da lógica dos afetos como emanação de uma conveniência (convenientia), própria da natureza, como se dá esta união de dois ou mais homens que devém multidão? Como resultado, precisamente, desta conveniência de fundo - ou 'astúcia da razão' - operando com base nas propriedades comuns e se apresentando como noções comuns às mentes, há a imitação afetiva do desejo do outro. Por outras palavras, a conveniência, espécie de razão com 'r' minúsculo (em contraposição a uma razão do acordo pleno - o agir em plenitude em acordo com a razão, o que acarretaria o fim do desacordo entre os desejos (E IV P 35 Cor 1 p. 303) ), faz que os homens imitem os afetos uns dos outros no sentido da esperança comum e da segurança comum. Isto é, a mesma esperança que um homem sente ao se unir a um segundo é sentida por este segundo, simultaneamente, e assim sucessivamente, de modo que se tem um comportamento em bloco fundado num mesmo afeto, como num jogo de espelhos em que o comportamento de um é o mesmo do outro em razão da imitação afetiva. O mesmo se processa quanto ao afeto segurança, ainda mais estável e objetivo último da cidade. Apenas assim se pode explicar como funciona o que Espinosa expôs na passagem citada, ou seja, "Se dois se põe de acordo e juntam forças [si duo simul conveniant et vires jungant (G III p.281)], juntos podem mais [...]; e quanto mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos." (TP II 13 p. 18). O convir é sempre uma manifestação da razão, pois apenas pela razão os homens entram em acordo (E IV P 35 Cor 1 p. 303), ainda que por vias afetivas, pois o fundamento, aqui, é a emulação da esperança e da segurança do outro, uma forma, também, de conveniência. Conveniência talvez mais fraca do que se os homens se guiassem sempre pela razão, mas conveniência ainda assim. No texto latino, pela edição de Gebhardt, como se vê acima, há a ideia da simultaneidade e da conveniência (simul conveniant). O convir - esta 'astúcia da razão' ou razão de fundo se dá pelo comum, pelo que une, ainda que por vias afetivas - e em geral por vias afetivas -, por uma espécie de regramento ou lógica que atravessa a natureza e a natureza humana. Uma conveniência, no sentido de uma lógica de operação da natureza mesma, que funda a imitação, via emulação, dos afetos esperança e

145

segurança e, de outro lado, a emulação do medo da lei. Tais afetos, espelhados em múltiplos homens por emulação afetiva, levam ao comportamento que Espinosa designará pelo termo "[...] como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur]." (TP II 16 p. 19, entre outras). Não por acaso, portanto, escreve, no final do parágrafo 7 do capítulo III do Político, que "[...] esta união de ânimos [animorum unio G III p. 287] não pode de maneira alguma conceber-se, a não ser que a cidade se oriente maximamente [maxime intendat - G III p. 287] para o que a sã razão ensina ser útil a todos os homens." (TP III 7 p. 29). Espinosa não estabelece, aqui, que a cidade é fundada na razão, mas aponta para a pertinência da hipótese da 'astúcia da razão' (como o que emana do comum) ao afirmar que a união de ânimos, típica da multidão, não teria sentido se a cidade não se orientasse - isto é, não fosse 'no sentido de' - para o útil ensinado pela razão. Há, portanto - eis uma hipótese -, uma conveniência ou razão de fundo que fundamenta a concórdia via afetos alegres, ou pela via de afetos tristes que possibilitam afetos alegres, como é o caso do medo civil da punição da lei que faz que haja um mínimo de obediência às leis editadas pelo poder soberano e assim se chegue a um afeto alegre estável, a saber, a segurança. A convenientia é, nesse caso, também uma astúcia da política. Isto é, apenas a política é capaz de transmutar o medo da lei, afeto triste, em securitas, afeto alegre. Tese, portanto, diversa, em muitos aspectos, da hobbesiana, explicitando-se, uma vez mais, a distância entre ambas as filosofias políticas. Trato, abaixo, brevemente da concepção hobbesiana de multidão e sua relação com os conceitos de representação, transferência, pessoa natural e pessoa artificial. Tal movimento argumentativo destacará a inovação espinosana, no que tange ao conceito de multidão - atrelado, como visto, ao conceito de imitatio afetiva -, em face daquele elaborado por Hobbes. O capítulo 16 do Leviatã é o local em que Hobbes conceitua multidão.184 Afirma que "Dado que a multidão naturalmente não é uma, mas muitos, eles não podem ser entendidos como um só, mas como muitos autores, [...]" (Leviatã I 16 p. 137). Como unir o múltiplo? A solução hobbesiana se distancia da espinosana. 184

Hobbes define, igualmente, multidão como multiplicidade de vontades de pessoas naturais em Do Cidadão VI 1 p. 91. Também define multidão, diferenciando-a de povo (este entendido como unidade na e pela persona artificial), em: Do Cidadão XII 8 pp. 151-152. 146

Com efeito, afirma Hobbes que "Uma multidão de homens é transformada em uma pessoa quando é representada por um só homem ou pessoa [ou por uma assembleia de homens, como afirma em Leviatã II 17 p. 144], de maneira a que tal seja feito com o consentimento de cada um dos que constituem essa multidão." (Leviatã I 16 p. 137). Como, entretanto, pode Hobbes afirmar que muitos passam a ser um? A sequência do texto esclarece: "Porque é a unidade do representante, e não a unidade do representado, que faz que a pessoa seja una. E é o representante o portador da pessoa, e só de uma pessoa. Esta é a única maneira como é possível entender a unidade de uma multidão." (Leviatã I 16 p. 137). A tese da unidade da multiplicidade em Hobbes não passa pelos mecanismos afetivos, mas pelos conceitos de pessoa, representação e transferência, como indiquei no item (b) deste capítulo 2. Retomo os conceitos lá apontados para aclarar este ponto quanto ao conceito de multidão. O problema, pois, é o de saber como o múltiplo se torna uno. Há, como afirmou Hobbes no excerto citado acima, unidade do representante. De fato, o representante, através do conceito de persona, age como se fosse o representado, como se fosse o autor. Age em seu lugar. O pacto, que faz que a multiplicidade de homens transfira seu direito natural a um homem - ou a uma assembleia de homens (Leviatã II 17 p. 144) - forma a persona fictícia, o ser artificial que, como representante, está presente em-lugar-de, e a multiplicidade, por esta ficção, se torna una, com uma vontade. Forma-se assim o Estado (commonwealth ou civitas)

185

. O autor afirma, com efeito, "[...] que poucas coisas são incapazes de

serem representadas por ficção." (Leviatã I 16 p. 136). O sentido da palavra persona, Hobbes a retira dos gregos, significando o mesmo que rosto (prósopon), conforme disposto no Leviatã (Leviatã I 16 p. 135). E a pessoa é definida como "[...] aquele cujas palavras ou ações são consideradas quer como suas próprias quer como representando as palavras ou ações de outro homem [...]" (Leviatã I 16 p. 135), sendo de dois tipos, ou natural, ou artificial e, neste último caso, quando se representa as ações ou palavras de um outro (persona artificial) (Leviatã I 16 p. 135). Quando, pois, os homens transferem seus respectivos direitos naturais ao um da assembleia ou de um homem, autorizam, pelo mecanismo da representação e pelo conceito de pessoa, todas as suas 185

No texto original, editado por Gaskin, Leviatã II 17 p. 114. 147

ações. "Feito isto [afirma Hobbes], à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado [commonwealth], em latim civitas." (Leviatã II 17 p. 144)186. O conceito de multidão em Hobbes encontra, desse modo, sua unidade em uma commonwealth por meio dos conceitos de transferência, representação e pessoa. Tese, portanto, que pouco se assemelha à espinosana. Retorno a Espinosa. O que é, então, a multidão, a qual transfere potência ao poder soberano e lhe dá vida e potência? A multidão é a potência da multiplicidade dos desejos (sob a forma de esperanças e receios) articulados pelo que têm de comum, via emulação afetiva187. Os parágrafos 16 e 17 do capítulo II do Político articulam o conceito de multidão aos de poder soberano, direito civil e cidade como forma do imperium. É o que passo a analisar. Após afirmar que o direito natural de cada um, no estado natural, é "[...] nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade [...]" (TP II 15 p. 19), Espinosa afirma, no mesmo parágrafo, que "[...] o direito de natureza, que é próprio do gênero humano [jus naturae, quod humani generis proprium est], dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns e podem, juntos, reivindicar para si terras que podem habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles." (TP II 15 p. 19). Ou seja, o direito natural, tal qual Espinosa afirmara na Carta 50 a Jelles (Ep 50 pp. 308-309), se mantém e é efetivo apenas no estado civil. Não há, com efeito, abolição do direito natural. Mas como isto ocorre? No parágrafo 16, seguinte, Espinosa utiliza um termo que, penso, dá todo o tom do conceito de multidão e aproxima tal conceito das análises acima tecidas 186

Ver sobre o tema: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 282. C. Lazzeri, acerca da diferença do conceito de multidão em ambos os autores, afirma: "Para Hobbes, a multitude é apenas um conjunto (se podemos empregar este termo) natural de indivíduos desprovidos de qualquer princípio de unidade, o qual se forma somente no ato de representação de uma pessoa artificial e destinada a desaparecer - como multidão - em um povo, se ela dá a si por convenção um representante. Para Espinosa, cujo emprego constante do termo se explica em grande parte por sua crítica a Hobbes, a multitude é um conjunto natural de indivíduos cujo estado varia de acordo com o grau mais ou menos elevado de integração natural de seus membros em face do conjunto mais ou menos estruturado que eles formam." (p. 282 - tradução minha). 187 Uma definição próxima está em: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000. Diz o autor: "A multidão é um termo charneira, onde se articulam, por um lado, a multiplicidade de desejos ou receios, por outro, a potência comum que se afirma em resultado da sua insustentável dispersão" p. 275. 148

acerca da imitação afetiva. Afirma Espinosa que onde os homens têm direitos comuns "[...] e todos são conduzidos como que por uma só mente [una veluti mente ducuntur G III p. 281] [...]" (TP II 16 p. 19), é correto afirmar que cada membro do corpo político tem tanto menos direito em face da potência dos demais membros do corpo político (TP II 16 p. 19). Claramente Espinosa afirma que onde há direitos comuns, o que existe é uma condução de corpos e mentes num mesmo sentido, o que, de acordo com o parágrafo 13 (TP II 13 p. 18), faz que haja aí uma potência comum de desejos. Tal condução, indicada pelo termo "como que por uma só mente", se dá apenas em razão da emulação dos afetos alheios, o que redunda em blocos de mentes, em blocos de potência. Sendo assim, o homem enquanto indivíduo isolado, neste contexto de socialidade, tem menos direito que o bloco de indivíduos que se conduzem uns de acordo com os demais, pela mesma esperança e pelo mesmo receio. Por isso Espinosa afirma, no mesmo parágrafo, que este indivíduo, enquanto ente isolado em face dos demais, não tem direito para além da potência que o direito comum lhe concede. O direito comum enquadra o comportamento do membro que o contrapõe, aquele que quer subverter o comum. O jogo de espelhos da imitatio afetiva, aqui, tem papel de sustentar o direito comum depois de este ser imposto pelo soberano. Na esperança de ter segurança, todos se mantêm unidos quanto ao comum, manifesto no direito comum, espelhando-se uns nos outros por meio da emulação da esperança, da segurança e do medo da punição da lei comum, rechaçando o comportamento que não espelha a potência coletiva. Por isso o que há, neste parágrafo, quando do uso do termo "como que por uma só mente", é a manifestação do plano afetivo próprio aos humanos fazendo que o maquinário político se sustente com a potência do que é comum a todos os membros do corpo político.

c.3 Multitudo e imperium: questão de potência Na sequência do parágrafo 16, acima indicado (TP II 16 p. 19), Espinosa dá nome aos conceitos que utilizou, costurando-os entre si. Afirma: Esse direito [jus] que se define pela potência da multidão [quod multitudinis potentia definitur] costuma chamar-se estado [imperium]. E detém-no absolutamente quem, por consenso comum [ex communi consensu], tem a

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incumbência da república, ou seja, de estatuir, interpretar e abolir direitos, fortificar as urbes, decidir sobre a guerra e a paz, etc.. (TP II 17 p. 20).

Eis uma importante passagem do Político que articula uma miríade de conceitos fundamentais para a compreensão da filosofia política de Espinosa. O primeiro ponto de destaque, no excerto, a meu ver, é a definição do direito pela potência da multidão. O imperium188, na concepção espinosana, não 188

Sobre a questão da relação entre imperium, multitudo, e poder de cada membro do corpo político, há vasta bibliografia. Ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato Soromenho-Marques. Lisboa, 2008, p. 300, p. 311. A. S. Campos também analisa a tese de Antonio Negri, da relação potestas/potentia, dela discordando, por não levar em conta o regime afetivo (p. 300 e seguintes). Discorda também da tese de Matheron do Estado como indivíduo (p. 313). Na p. 343, define imperium. Também ver, sobre o conceito de imperium: JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução de Marcos Ferreira de Paula e Luís Cesar Guimarães Oliva. São Paulo/Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 190. Para um ensaio clássico sobre o tema, que aborda o imperium como tendo a forma de indivíduo: MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. Para a questão do imperium, p. 319 e seguintes. Para uma definição de imperium: RAMOND, Charles. Vocabulário de Espinosa. Tradução de Claudia Berliner. Revisão de Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 40-41. Do mesmo autor, para uma definição mais desdobrada de imperium: RAMOND, Charles. Dictionnaire Spinoza. Paris: edition Ellipses, 2007, p. 63; pp.168-177. Também sobre o conceito: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie General Française, 2002, pp. 09-101, p. 10. Do mesmo autor, acerca do tema, de modo mais aprofundado, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, pp. 241-301. Neste capítulo (IX), Bove desenvolve o tema da estratégia da potência da multidão como estratégia do conatus político. Para a tese da multitudo como detentora do imperium, ver: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196, p. 164 - a autora entende a multitudo como indivíduo coletivo singular (p. 164). Sobre as várias posições acerca do tema, ou seja, o estado da arte quanto ao tema 'estado' em Espinosa, a autora elabora, na nota 68, à p. 325, um resumo das posições. São as seguintes, e dos autores citados a seguir, segundo Chaui. Posição naturalista: a posição de A. Matheron (em Individu et commmunauté chez Spinoza (ver referências bibliográficas nesta tese). Para ele, o estado é entendido como um indivíduo complexo no sentido físico. Posição artificialista: Lee Rice e Den Uyl - em dois textos: Power, State and Feedom, deste último, e o artigo Individual and community in Spinoza's social psychology. In: P.-F. Moreau e E. Curley (orgs). Spinoza: Issues and directions. Leidenm and Brill, 1990, pp. 271-285, do primeiro. Diogo Pires Aurélio segue Norbert Elias para criticar as duas posições, pois uma reificaria um lado da questão, e a outra reificaria o outro polo (p. 326). Aurélio usa a noção de configuração, de Norbert Elias, para dizer que indivíduo, nação e estado não poderiam ser pensados isoladamente. A posição de Aurélio está em: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, pp. 303-304. Marilena Chaui entende que todas as teses estão corretas, desde que se compreenda o seguinte: imperium é natural porque, espinosanamente, não possui causas transcendentais e é artificial porque é instituição humana. É configuração porque é relação entre potências ou configuração entre potências. A multitudo é que pode ser aproximada da psicologia e da física da ética - porque se está a falar de potência. Daí que, para Chaui, Aurélio tenha tocado em um ponto importante da questão. Imperium, para Chaui, não é o estado. Espinosa usa, segundo a autora, para este conceito, Civitas e Res publica. O imperium seria uma lógica do poder, uma estrutura de ações que se corporifica nas instituições e se exprime nos costumes e nas leis - e estes é que são una veluti mente. Ainda, para a autora, o campo político seria como uma estrutura ou uma ação ordenada nela mesma, e para esta tese se inspira em Claude Lefort (pp. 326-327). Para o imperium como fundado pela 150

vem de uma decisão racional dos homens em assembleia, não decorre de ensinamentos da razão, num sentido forte do termo - pois se todos os homens agissem pela razão, o que se teria é acordo certo, sem necessidade da política (E IV P 35 Cor 1 p. 303) -, mas decorre, afetivamente e por potência, do comum nos homens, dos homens em multidão. A potência da multidão opera pela lógica da emulação afetiva, isto é, blocos de desejos, e portanto de potências, que vão num sentido ou noutro por meio dos mesmos afetos - uma simultânea mistura de esperança do melhor e medo do pior, com vistas à segurança, afeto que, se espelhado em todos os membros da multidão entre si, dá estabilidade aos conatus individuais. A multidão é este espelhamento de todos em cada um e de afetos comuns em todos, um agir de mentes individuais e de corpos "como se fossem uma só mente", ainda que isto tenha grande instabilidade caso se considerem médios e longos períodos de duração. O estado ou imperium (que tem a cidade como seu corpo) é, então, o direito definido, delimitado, alimentado, fundado pela multidão. Eis outro ponto de destaque, uma vez que a multidão é um conceito que pressupõe desejos comuns num mesmo sentido, ações de um bloco de mentes como se fossem uma só. Um terceiro ponto a se destacar no excerto é: quem detém absolutamente (absolute tenet) o direito de editar direitos, ou a potência de editar leis cujo fundamento mesmo é a potência da multidão, tem, de acordo com Espinosa, a incumbência da república. Quem tem esta incumbência? O poder soberano, que por consenso comum passa a ter tal função. Qual é esta função, esta incumbência? A de criar, interpretar e abolir direitos, fortificar a potência da urbe, ou seja, do espaço geográfico da cidade, decidir sobre a guerra com outras cidades ou sobre a paz, entre outras funções. Mas o passo fundamental do texto espinosano é precisamente o de mostrar o entrelaçamento entre os conceitos de direito, potência, multidão, imperium, consenso comum, república e cidade. E potência da multidão, no mesmo sentido entendido nesta tese, ver: CRISTOFOLINI, Paolo. Peuple et multitude dans le lexique politique de Spinoza. In: La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 45-58, p. 51. A posição de A. Negri sobre o conceito de multitudo está disseminada em sua obra. Ver, por exemplo, numa análise clássica da obra espinosana: NEGRI, Antonio. L'anomalia selvaggia: potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternitá in Spinoza). Roma: DeriveApprodi, 1998, p. 252, momento em que diz ser a multitudo o consenso organizado em república: "É a multitudo que se constitui em sociedade com todas as suas necessidades. Nem a paz é simplesmente segurança, mas é a situação na qual o consenso se organiza em república "(p. 252). Utilizei a tradução brasileira para a citação acima (NEGRI, Antonio. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 258). 151

explicitar uma tensão entre dois polos. De um lado, a multidão, com seus desejos pulsando o comum e alimentando o poder soberano, aquele que, por consenso comum da mesma multidão, tem as funções da república. De outro, o poder soberano que faz as leis e as faz cumprir, mas sempre respeitando o que é comum e a natureza comum dos homens. Da tensão entre estas duas esferas de potência, a fonte do direito do imperium, ou seja, a multitudo, e o poder soberano escolhido para levar à frente a república, o comum, advém a função da cidade, que é a de garantir o direito natural dos homens que nela vivem. Tal constatação impõe limites à tensão multidão versus soberano, uma vez que o soberano não pode elaborar leis que contrariem a potência da multidão que lhe dá, precisamente, a potência para existir. De fato, como afirma Espinosa, retomando o parágrafo 15 do capítulo II do Político, o direito do imperium ou dos poderes soberanos, "[...] não é senão o próprio direito de natureza [...]." (TP III 2 p. 25). Este direito se determina - eis o ponto chave - pela potência da multidão, não de cada um (TP III 2 p. 25). O conceito de imitatio logo aparece no momento em que Espinosa estabelece que a multidão se conduz "[...] como que por uma só mente [una veluti mente ducitur - G III p. 284] [...]." (TP III 2 p.25). Com efeito, para se conduzir como que por uma só mente, é preciso que o comportamento de cada membro do corpo da multidão seja a emulação do desejo do outro, simultaneamente, fazendo que haja ações num mesmo sentido, numa mesma direção. Analiso no item (d) (logo após o item c.4, abaixo) a questão dos limites do poder soberano à luz da passagem acima, segundo a qual o poder soberano é o próprio poder da multidão. Pretendo mostrar, agora sob ângulo mais político, algo que fora apontado no capítulo 1, item (f), ou seja, quais os limites do poder soberano em razão de este poder ser o próprio poder da multidão, a qual é a emulação afetiva em exercício e, portanto, simultaneamente potência coletiva ou direito natural coletivo em atividade.

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c.4 Gêneros do estado civil e distribuição da potência Até este momento do texto, a questão da relação entre os conceitos de potência da multidão, mimetismo afetivo, direito, imperium, consenso comum, poder soberano e república foi analisada. Resta, entretanto, analisar um ponto que resvala para a questão clássica da filosofia política, a saber, a questão dos regimes políticos. Ou, para usar os termos de Espinosa, a questão dos gêneros de estado civil. Novamente, em Espinosa, na medida em que todo o rol conceitual foi modificado, o que existe é, também neste ponto, o que se poderia chamar de uma reformulação conceitual. Esta reformulação, é claro, decorre dos conceitos acima analisados. Procurarei, a seguir, articular os conceitos já vistos com a proposta espinosana para a questão dos modos pelos quais a potência da multidão se organiza em formas de estado civil e segundo quais critérios. Espinosa afirma, como já analisado acima, que o direito definido pela potência da multidão costuma ser chamado de imperium (TP II 17 p. 20). Este ponto é retomado no capítulo 3 do Político para que a questão dos regimes seja colocada pela chave da distribuição da potência189. Escreve Espinosa logo no início do referido capítulo: Diz-se civil a situação de qualquer estado [imperii cujuscunque status dicitur civilis G III 284]; mas ao corpo inteiro do estado [imperii] chama-se cidade, e aos assuntos comuns do estado [et communia imperii negotia G III 284], que dependem da direção de quem o detém, chama-se república. Depois, chamamos cidadãos aos homens na medida em que, pelo direito civil, gozam de todas as comodidades da cidade, e súditos na medida em que têm de submeter-se às instituições ou leis da cidade. (TP III 1 p. 25).

Os conceitos explicitados neste excerto foram analisados acima à luz da questão da imitação dos afetos, mostrando como a lógica do estar sui juris ou alterius juris tem estreita relação tanto com a lei do mal menor e do bem maior, quanto com a imitação da esperança e do temor alheios, pela via da emulação afetiva. O conceito de multidão demanda os conceitos de jus e de imitatio afetiva. Ocorre que tais conceitos deságuam nos gêneros de estado civil, passagem que vem logo a seguir 189

Na mesma linha desta tese, de que importa, para Espinosa, a questão da potência e não a de uma especulação sobre o melhor regime, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012, p. 17. 153

à acima citada. Escreve Espinosa, após o excerto citado, agora derivando daqueles conceitos o dos gêneros de estado: Finalmente, dão-se três gêneros do estado civil [Denique status civilis tria dari genera G III p. 284], a saber, o democrático, o aristocrático e o monárquico [...]. Agora, antes de começar a tratar de cada um deles em separado, demonstrarei primeiro aquelas coisas que pertencem ao estado civil em geral, à cabeça das quais vem o direito soberano da cidade, ou dos poderes soberanos. (TP III 1 p. 25).

Espinosa dedicará, a seguir, alguns capítulos do Político à análise do estado monárquico, bem como outros à análise do estado aristocrático. Detalhará, igualmente, o modo de funcionamento de cada um desses gêneros de estado no sentido de mostrar como eles devem se constituir e se manter de maneira que sejam mais estáveis e garantam da melhor maneira o direito natural dos súditos. No mesmo sentido, detalhará as instituições aptas a cada um dos tipos de estado civil, e quais as que melhor operam, bem como a maneira de funcionamento de cada instituição em função do regime em que está em operação. Não analisarei, na presente tese, o detalhamento das regras que Espinosa estabelece para que cada regime melhor funcione. Apenas no que se refere ao regime democrático farei uma análise que tangenciará a questão das instituições. Isso porque interessa à presente tese, antes, mostrar como a questão da potência e dos afetos da multidão acaba sendo o que há de substrato ou fundamento para qualquer dos regimes. Este o ponto que será desdobrado a seguir. Volto, então, à questão dos regimes. O último capítulo do Tratado político, dedicado ao regime democrático, como se sabe, restou incompleto (reliqua desiderantur - o resto falta - G III p. 306; TP XI 4 p. 140). Espinosa faleceu antes de completá-lo. Entretanto, algumas considerações acerca desse tipo de estado poderão ajudar a esclarecer como a questão da distribuição da potência está na base dos raciocínios da filosofia política espinosana para a definição dos gêneros de estado civil. Procurei mostrar, nos itens acima, que o poder do soberano - ou direito do imperium - é o direito de natureza expresso, ou seja, determinado, pela potência da multidão, conforme Espinosa indica no Político (TP III 2 p. 25). Ao fazê-lo, procurei explicitar a presença da lógica dos afetos, assim como de sua imitação, para a

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constituição da multitudo e para que esta transfira potência ao poder soberano e o mantenha, bem como, consequentemente, mantenha o imperium. Porém, Espinosa fala, ainda assim, em gêneros do estado civil. O que os caracteriza e os define, dada a lógica afetiva e de potência na confecção do imperium? Espinosa indica três gêneros do estado civil: o democrático, o aristocrático e o monárquico (TP II 17 p. 20; TP III 1 p. 25). Afirma, também, que a potência da multidão, que define o direito, chama-se imperium (TP II 17 p. 20). Isto se dá pela lógica dos afetos, na hipótese deste trabalho. Quem detém este direito por completo, absolutamente? Aquele que, por consenso comum (communi consensu G III p. 282), tem a incumbência da república (curam reipublicae ex communi consensu habet G III 282), que é a de estatuir, interpretar, abolir direitos, etc.. E o que define o tipo de estado? Espinosa diz que é precisamente aquele ou o quê fica com a incumbência da república que define o tipo de imperium. Se a incumbência da república pertencer a um conselho que é composto pela multidão comum (communi multitudine componitur G III p. 282), o estado é democrático. Se o conselho for composto por alguns eleitos, trata-se de aristocracia. Se o imperium, isto é, a incumbência da república, estiver nas mãos de um, o estado é monárquico. Portanto, ao que indicam os textos, os critérios dos tipos de estado civil em Espinosa apenas formalmente passam pela questão do número de governantes. Por outro lado, não se duvida que a questão do número dos que detêm o poder de dizer o direito importa. E o prova o fato de que Espinosa se refere aos números, à quantidade - todos, alguns, um - dos que têm a incumbência da república ao tratar dos gêneros de estado civil, como mostrado no Político (TP II 17 p. 20). Mas o que sustentará a potência do imperium não é o número dos que têm a incumbência da república, mas a potência da multidão. O que de fato sustentará a potência da cidade, por meio da potência da multidão, é o acesso dessa potência aos conselhos ou ao conselho supremo - no caso da existência de outros conselhos. Assim, se todos têm acesso ao conselho, se todos podem vir a fazer parte dele (ou seja, os membros da multidão comum), tem-se por conseguinte a democracia. A democracia não parece ser, pois, o governo de todos simplesmente. Ela

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está mais próxima de ser, ao que indicam os textos, a possibilidade de todos virem a compor o conselho, segundo regras instituídas de acesso a este mesmo conselho. Em outras palavras, as regras de acesso ao conselho, num estado democrático, possibilitam que todos que compõem a multidão comum, segundo regras de idade ou pertencimento à cidade, venham a tomar parte dele e venham a exercer o poder soberano, que tem a incumbência da república. E a potência desse conselho será, assim, a expressão da potência da multidão comum190.

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Sobre a questão da democracia em Espinosa, questão tão mais polêmica em razão de o autor não ter terminado o Político exatamente no momento em que trataria deste gênero de estado civil, os intérpretes divergem abundantemente. Para a tese de que a democracia é impossível, ou de difícil estabilização, e que teria Espinosa chegado a uma aporia, ver uma interpretação clássica em: BALIBAR, Etienne. Spinoza and Politics. Translated by Peter Snowdown. London, New York: ed. Verso, 1998. Versão original: BALIBAR, Étienne. Spinoza et la politique. Quatrième édition. Paris: PUF, 2011 [1ª ed.1984]. Cito Balibar: "a democracia é um conceito problemático, pois ela corresponderia ao modo de existência de uma multidão já equilibrada, substancialmente 'unânime'" p. 86 (tradução minha). No texto da tradução para o inglês, há um capítulo não publicado na versão original francesa, no qual o autor diz: "em vez de uma teoria da democracia, o que nós temos é uma teoria da democratização, que é válida para qualquer regime" (p. 121 da versão inglesa). Num sentido ainda mais explícito, ver: BALIBAR, Etienne. Ultimi Barbarorum - Espinosa: o temor das massas. Discurso - Revista do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo, vol. 18, pp. 7-35, 1990. Afirma o autor: "A democracia é pensável, mas ela está desarmada" p. 17. Em interpretação oposta, a qual aponta que só é legítimo maximamente o poder se democrático, afirmando a necessidade da democracia no pensamento político de Espinosa, ver: ANDRADE, Fernando Dias. Pax Spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da FFLCH-USP como critério parcial para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientadora: Marilena de Souza Chaui. São Paulo: 2001, p. 60 especialmente. No mesmo sentido, dizendo que Espinosa sempre teve em mira a democracia como melhor regime, mesmo ao tratar de outros regimes, ver: ANDRADE, Fernando Dias. A essência da política - necessidade da democracia no Tratado Político de Espinosa. In: OLIVA, Luís César Guimarães (org.). Necessidade e Contingência na Modernidade. São Paulo: Ed. Barcarola, 2009, pp. 247-281. Com tese próxima a esta, ver: ROCHA, André Menezes. Sobre a definição de democracia no TT-P. In: Cadernos Espinosanos XIX. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 2013, pp. 91-101. A. Rocha entende que a essência da democracia é anterior tanto ontológica como cronologicamente à essência dos demais regimes. Isto pode significar, segundo ao autor, que desde o TTP, toda a política de Espinosa está fundamentada na definição da essência da democracia (p. 91; p. 98). Com a tese de que sobre a democracia já se teria o essencial, mesmo não tendo Espinosa findo o capítulo XI do TP, ver: BOVE, Laurent. Introduction. In: Spinoza. Traité Politique. Trad. d’Émile Saisset. Révisée par Laurent Bove. Int. e notes par Laurent Bove. Paris: Livrarie general Française, 2002, pp. 09101, p. 87. Democracia como prudência ou liberdade do corpo coletivo, e menos como estratégia de um estado perfeito (p. 92). Acerca da superioridade do regime democrático em Espinosa, ver: AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, pp. 283-284. Com tese de que, do ponto de vista da legitimação do regime, não haver diferença entre eles - tese, a meu ver, de difícil sustentação -, ver: AKAL, Cemal Bâli e ERGÜN, Reyda. Sobre la incompatibilidad entre TP y el TTP. In: CHAUI, M.; TORRES, S.; BAHR, F.. Spinoza: cuarto coloquio. Córdoba: Brujas, 2008, pp. 407-416, p. 414. Sobre o verdadeiro lugar da decisão política e desta como saída para a guerra entre potências, ver: BOVE, Laurent. O direito à decisão em Spinoza e a questão do “sujeito” político. In: MARTINS, A.; SANTIAGO, H.; OLIVA; L.C. (org.). As ilusões do eu: Spinoza e Nietzsche. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, pp. 137-161. Diz: “o verdadeiro lugar da decisão política não é o sujeito soberano (rei ou assembleia), mas o dispositivo dinâmico global que determina um Direito e/ou um regime da potência da multidão e seu processo de auto-organização política” (p. 156

No Teológico-político, Espinosa afirmara que o que caracteriza o regime democrático é a sociedade instituída sem contradição com o direito natural (TTP XVI p. 239). Ou seja, cada indivíduo deve "[...] transferir para a sociedade toda a sua própria potência, de forma que só aquela detenha, sobre tudo e todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania suprema, à qual todos terão de obedecer, ou livremente, ou por receio da pena capital." (TTP XVI pp. 239-240). E conclui: "O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia, a qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm colegialmente o pleno direito a tudo que estiver em seu poder." (TTP XVI p. 240). Mais à frente, Espinosa concluirá que a democracia é o mais natural, o que mais se aproxima "[...] da liberdade que a natureza reconhece a cada um." (TTP XVI p. 242). As instituições que seriam as mais adequadas a este tipo de estado civil certamente Espinosa desdobraria no Político, a obra inacabada. É o que indica o projeto apresentado na Ep.84, reproduzido pelos editores das OP como prefácio ao Político (TP Pref p. 3). Mas talvez algumas hipóteses possam ser levantadas a partir do que há no capítulo XI do TP. O que significa, pois, nesse sentido, dizer que o conselho é composto pela multidão comum? O que seria a democracia para o TP? Inicialmente, penso, cabe afirmar que minha hipótese é a de que não há aqui contradição entre as teses do Teológico-político, em seu capítulo XVI, em momento acima citado, quando é tratada a democracia, e o Político. Quando Espinosa escreve, no Teológico-político, que a democracia é o regime "[...] que mais se aproxima 146-147). Sobre a interessantíssima questão dos regimes políticos contemporâneos como regimes do fascismo cotidiano, mesmo quando se denominam democráticos, verificar: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-multitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. O regime do terror do fascismo não seria o regime do espírito moderno? - pergunta o autor (p. 114). Um 'viver como cão', uma animalização, seria o traço de tais regimes (p. 113). Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. Posição de Marilena Chaui em: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, pp. 173-191. Cito a autora: “Isto significa que a política que efetiva a segurança é aquela que mantém a multidão sob seu próprio governo, ou seja, em que instituições e leis não se separam dos cidadãos, mas lhe são imanentes; em suma, a instituição democrática” (p. 185). Também em: CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 81-196. Contestando esta posição: TORRES, Sebastián. Securitas: retracción y expansión de la potencia democrática spinoziana. In: TATIAN, Diego (org). Spinoza. Segundo Coloquio. Buenos Aires:Altamira, 2006, pp. 295-308, p. 304. 157

da liberdade que a natureza reconhece a cada um." (TTP XVI p. 242), entendo que se trata da natureza de conatus de cada homem como parte da natureza, como intensidade de potência, na natureza naturada, da sustância única. Ou seja, entende Espinosa, nesta passagem, cada homem como potência para perseverar no ser, tese decorrente da ontologia espinosana e de sua noção de substância como potência e dos homens como modos finitos de intensidade desta mesma potência. E é claro que na democracia, na medida em que um maior número de homens detém colegialmente o direito a tudo (TTP XVI p. 240), um maior número será o responsável, como potência, pelas regras que todos deverão obedecer. Em uma palavra, o maior número poderá compor a instância instituidora do direito (das leis civis) que todos deverão obedecer. Nesse sentido a democracia, no Teológico-político, é definida como o regime mais natural. É uma questão de potência do maior número definindo quais serão as regras para todos. Daí que seja o regime que mais se aproxima do estado de natureza e do direito de natureza de cada homem. Não, entretanto, no sentido do direito natural como abstração (TP II 15 p. 19), mas no sentido de exercício da potência natural, via poder soberano, na medida em que o maior número pode ocupar tal poder e instituir as regras comuns - ter as incumbências da república. Assim se está mais próximo da natureza humana no sentido de que cada homem quer governar e não ser governado. Na democracia, esta máxima, decorrente da natureza humana - querer governar e não ser governado -, mais se aproxima de sua realização, pois o maior número decide as regras que serão aplicadas a todos. No Tratado político talvez se tenha apenas maior clareza quando ao modo como isto se instrumenta no regime democrático. Que se trata de questão de potência da multidão na definição de qualquer regime uma passagem da análise espinosana da monarquia deixa claro. É a seguinte: "Concluímos, assim, que a multidão pode conservar sob um rei uma liberdade bastante ampla, desde que consiga que a potência do rei seja determinada somente pela potência da mesma multidão e mantida sob a guarda desta." (TP VII 31 p. 85). Mas a conclusão é ainda mais clara acerca do critério da potência da multidão como sendo o critério do regime do estado civil: "Foi esta a única regra que segui ao lançar os fundamentos do estado monárquico" (TP VII 31 p. 85).

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Volto à democracia e a analiso sob a ótica do último capítulo do Tratado político. Ao que indicam os parágrafos restantes (quatro), são vários os gêneros possíveis de estado democrático, segundo Espinosa (TP XI 3 p. 138). Mas todos parecem passar pelo critério de que os membros da multidão comum, segundo regras aceitas por ela mesma, possam ou não participar do conselho supremo e ter acesso a cargos públicos na cidade. É o que diz Espinosa no parágrafo 1 do capítulo XI. De fato, afirma Espinosa, todos cujos pais sejam cidadãos, ou que tenham nascido no solo pátrio, ou que são beneméritos da república, ou aqueles a quem a lei, por outros motivos, manda atribuir o direito de cidade, poderão ter "[...] o direito de voto no conselho supremo e de aceder por direito a cargos de estado [...]." (TP XI 1 p. 137). Ou seja, ao que indica o texto, o critério inicial é o de poder votar no conselho supremo e o de poder ter acesso a cargos do imperium. A questão é quem pode ter acesso a estas ações e cargos. Como dissera o parágrafo 17 do capítulo II, a democracia se caracteriza por ter um conselho cuja composição é feita pela multidão comum. O capítulo XI apenas indica que as regras para que essa participação ocorra podem ser várias - ter pais cidadãos, nascer em solo pátrio, etc.. Em suma, o critério é institucional. Mas a questão da potência logo aparece no texto no parágrafo 3 do capítulo XI. Espinosa lá escreve que não tratará de cada um dos gêneros, mas apenas daquele onde têm direito de voto e de aceder a cargos do imperium os que estão obrigados somente às leis da cidade e aqueles que estão sui juris. Ora, estar sui juris é o mesmo que ter direito e potência, não estar sob o poder de outrem. O primeiro critério mostra que se quer dar ao conselho potência de quem pertence ao imperium. Se ele é a potência da cidade, deve ter potência para fazer leis que tenham potência. Portanto, o conselho perderia em potência caso fosse formado por membros estrangeiros. Ainda, há outro critério: estar sui juris. Isto exclui, segundo Espinosa, mulheres e servos, que estão sob o direito dos homens e dos senhores, respectivamente. Independentemente da questão polêmica da exclusão das mulheres (questão que abordarei apenas em uma nota nesta tese191) da possibilidade de compor 191

Entendo que a questão das mulheres na democracia está posta muito laconicamente no capítulo XI do Político. Isso porque Espinosa, provavelmente, não teve tempo de desdobrar a questão em itens 159

o conselho que definirá a potência da cidade, pois definirá suas leis, o que parece ser comum é a exclusão da possibilidade de participação daqueles que não podem levar potência ao conselho, o que poderia indicar diminuição da potência do conselho e, consequentemente, do poder soberano. O ponto que interessa ressaltar neste item c.4, na esteira do que vem sendo afirmado sobre a filosofia política de Espinosa até o momento, mas agora para tratar espinosanamente da questão dos tipos de estado civil, é que o critério definidor do tipo de estado civil, segundo Espinosa, se funda na ontologia, o que liga a política ao livro I da Ética. Tanto o estado monárquico quanto o estado democrático - as duas pontas da linha de distribuição da potência da multidão no conselho supremo - se fundam na potência de seus membros, isto é, dos componentes do conselho cujos membros têm a potência definida pela multitudo mesma. No regime monárquico, com efeito, Espinosa define como critério de seu bom funcionamento, de sua estabilidade, subsequentes, uma vez que faleceu antes de completar o texto do Político. Numa leitura literal, sem refinamentos e cotejo com as demais obras, Espinosa parece realmente excluir, por natureza, as mulheres do governo democrático. Mas esta afirmação coloca o Espinosa do final do Político em contradição com o Espinosa da Ética e do Teológico-político. Parece que a tese da exclusão pura e simples das mulheres realmente não se coaduna com o restante da obra do autor. Sobre o tema: SALVIANO, Jarlee Oliveira Silva. O lugar da mulher na ontologia e no pensamento político de Espinosa: encontros e desencontros. In: Revista de Filosofia Kalagatos. Fortaleza: Publicação do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, 2007, pp. 109-127. Defendendo a possibilidade de uma ética para as mulheres em Espinosa, não obstante o final do Político, ver: LARRAURI, Maite. Spinoza e as Mulheres. Apresentação e tradução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso. In: Revista de Filosofia Kalagatos. Fortaleza: Publicação do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, 2006, pp. 209-244. Para um estudo clássico acerca do tema, ver: MATHERON, Alexandre. Femmes et serviteurs dans La démocratie spinoziste. In: Études sur Spinoza et lês philosophies de l'âge classique. Lyon: ENS Éditions, 2011, pp. 287-304. Matheron entende que o texto do final do TP é desconcertante (p. 304). Em texto ainda não publicado, lido em reunião do Grupo de Estudos Espinosanos (FFLCH USP), Marilena Chaui elabora uma análise da questão das mulheres em Espinosa: CHAUI, Marilena. Seminário Tratado político X e XI. Reunião do Grupo de Estudos Espinosanos na FFLCH USP. Na ocasião, a autora analisou a questão das mulheres no Político. São Paulo, 25 de junho de 2013. A posição da autora pode ser resumida na seguinte passagem do texto lido na ocasião: Espinosa exclui as mulheres por natureza, não por instituição. Mas se fosse a natureza das mulheres, Espinosa estaria em contradição consigo mesmo, visto que na Ética homens e mulheres são desejo para perseverar no ser. Não há diferença ontológica. Então afirma: "É, portanto, a paixão libidinosa masculina a causa natural da fraqueza das mulheres na política. A naturalidade da fraqueza ou a afirmação de que ela não é produto da instituição não se refere à natureza feminina e sim à forma natural da relação passional que os homens estabelecem com as mulheres" (grifos da autora, p. 20). Isto é, as mulheres levariam a cidade à instabilidade uma vez que a relação dos homens com elas não leva em conta a prudência ou outra característica das mulheres, mas o afeto libidinoso.

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a potência do rei ser fundada e mantida pela potência da multidão (TP VI 31 p. 85). No estado civil democrático, no mesmo sentido, o critério para votar no conselho e aceder a cargos do imperium, ao menos segundo o Político de modo explícito (TP XI 3 pp. 138139), passa pelo conceito de potência dos que serão membros. De fato, só pode votar e aceder a cargos públicos quem está sui juris - excluindo-se servos, filhos, pupilos e mulheres, todos sob o argumento de que não estariam sui juris. Ou seja, o critério é sempre o da potência, e assim os fios da ontologia da Ética I, dos afetos da Ética III e dos conceitos políticos do Teológico-político e do Político permanecem atados.

(d) Limites do soberano e o direito de resistir: há coisas que a cidade deve temer Indiquei no item c.3 deste capítulo que retomaria a questão dos limites do poder soberano. Coloco-a da seguinte maneira: o poder soberano é, em certo sentido, a própria multidão, pois é ela que, por ser potência fundante e mantenedora da potência do soberano, dá-lhe a incumbência da república. Como analisado, incumbência da república significa criar direitos, interpretá-los, aboli-los, etc.. Mas pode o poder soberano, independentemente do gênero de estado civil, criar qualquer lei ou há limites ao seu exercício da potência? É certo que há limites, e Espinosa trabalha esta questão de modo explícito em passagens do Político. Já no parágrafo 2 do capítulo III do TP, afirma que o poder do soberano é o poder da multidão (TP III 2 p. 25). No parágrafo seguinte, Espinosa novamente afirma que o direito natural de cada homem não cessa no estado civil. Diz que em ambos os estados - o civil e o natural - os homens agem segundo a natureza (TP III 3 p. 26). E o que significa agir segundo a sua natureza? Ora, significa, como não poderia deixar de ser, de acordo com o já afirmado na Ética III e repisado no Político, que os homens agem de acordo com a natureza uma vez que são parte e tomam parte nela (E III Pref p. 161). É pelo desejo, pelo esforço em perseverar no ser que agem. E tal ação, escreve Espinosa a seguir no Político, se dá da maneira seguinte: "O homem, sublinho, em ambos os estados, é pela esperança ou pelo medo que é conduzido a fazer ou a omitir isto ou aquilo." (TP III 3 p. 26), sendo a principal diferença entre ambos os estados a de que no civil todos temem as mesmas coisas, por

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ser idêntica a todos a causa de segurança e a regra de vida, sem que isso impeça, aponta Espinosa, a capacidade de julgar de cada um (TP III 3 pp. 26-27). Mesma tese, aliás, quanto à capacidade de pensar o que se quer e dizer o que se pensa, exposta e analisada no Teológico-político (TTP XX pp. 300-310). O ponto importante para o que se quer analisar neste momento é que nada nem ninguém podem estar fora das leis e regras da natureza, e é por este veio que Espinosa mostrará os limites do poder soberano e sua relação com este equilíbrio entre a instância que edita leis - o soberano - e aquela que lhe dá potência de existir - a multidão. Há coisas que a potência do soberano não pode fazer, e tal critério é a própria natureza, suas leis, e portanto a natureza dos homens, os quais operam segundo as leis da substância única. Quais são tais limites? O parágrafo 8 do capítulo III do Político adianta alguns pontos. Há coisas que ninguém pode ser induzido a fazer, seja por recompensas ou ameaças advindas da potência do soberano. Espinosa então afirma que "[...] ninguém pode ceder a faculdade de julgar [...] [judicandi facultate G III p. 287]." (TP III 8 p. 29). Outro limite: "[...] pode o homem ser induzido a amar quem ele odeia, ou a odiar quem ele ama?" (TP III 8 p. 29). E ainda, escreve Espinosa, não pode um homem "[...] testemunhar contra si mesmo, torturar-se, matar os seus pais, não se esforçar por evitar a morte e coisas semelhantes [...]." (TP III 8 p. 29). De fato, por que razão não pode o poder soberano, por meio seja de ameaças, e sobretudo pela promessa de bens maiores, induzir quem quer que seja a tais atos? Ora, porque tais atos seriam uma afronta a leis naturais inscritas no próprio funcionamento do desejo de cada homem. De fato, é um paradoxo uma potência, qualquer que seja, e mesmo a do poder soberano, exigir que qualquer humano julgue como bom aquilo que para ele é mau. A faculdade de julgar é inalienável. É um dos pontos que Espinosa já ressaltara no Teológico-político como inalienável (TTP XVII p. 250 e TTP XX pp. 300-310). E, pela lógica dos afetos, se explicam os demais limites ao poder soberano acima enumerados. Sendo o amor uma alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior (E III Def af 6 p. 241), como experienciar a alegria se a causa é de tristeza? Como amar quem se odeia e vice-versa? No mesmo sentido, tudo o que contraria a lógica afetiva elementar em cada homem, como atentar contra a própria razão de ser, em face de seu conatus

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(E III P 6 p. 173), como é o caso de testemunhar contra si mesmo ou torturar-se, não pode ser objeto da potência ou das leis editadas pelo poder soberano. Espinosa é ainda mais explícito quanto ao tema dos limites do poder soberano no capítulo IV, parágrafo 4, do Político. Na ocasião em que analisei o afeto indignação (item (f) do capítulo 1), apontei para o tema da política que daí decorria. Naquele momento mostrei, no mesmo sentido indicado acima, que o poder soberano não pode desconsiderar a natureza e, portanto, não pode agir contra a natureza humana sem que daí advenham consequências que podem desconstruir aquela específica estrutura do poder soberano. Não retomarei aqui a análise mais longa que lá empreendi acerca da relação entre o afeto indignação e a desconsideração, pelo poder soberano, das leis da natureza humana. Apenas relembro - focando no tema da multidão -, como já fiz acima movimentando outras passagens do Político, que a tese espinosana é a de que o poder soberano tem como fonte de potência a própria multidão. Pode-se dizer que o poder soberano somente tem poder de criar e aplicar o direito civil na medida em que a multidão, conduzida "como que por uma só mente", dá a ele esta incumbência e a mantém pela lógica dos afetos. Ou, mais precisamente, pela lógica da imitatio afetiva, por sua vez fundada na tese da decisão pelo bem maior e pelo mal menor. Quando a cidade - que é o corpo do imperium (TP III 1 p. 25) - realiza, em face de seus súditos, atos que desconsideram as consequências dos afetos destes, perde potência na medida em que o afeto indignação, por meio de blocos de mentes que vão contra o poder soberano da cidade, se estabelece e se capilariza entre os súditos-cidadãos. Pode ocorrer, nesse caso, a morte do corpo da cidade por perda de potência da instituição responsável pela criação e aplicação do direito civil. Ou seja, o poder soberano da cidade, responsável pelos atos da república, pode se dissolver. Quando e como ocorre o mecanismo de indignação que expliquei com maiores detalhes no item (f) do capítulo 1? Ocorre, aponta Espinosa, quando a cidade pensa poder fazer com os homens o que contraria, ou seja, não leva em conta, a natureza destes. Por exemplo, exigir dos membros que "[...] olhem como honroso o que provoca riso ou náusea [...]." (TP IV 4 p. 39). Ou, ainda e no mesmo sentido, quando aquele - ou aqueles - que detém o poder do imperium passa a "[...] correr ébrio ou nu com 163

rameiras pelas praças, fazer de palhaço, violar ou desprezar abertamente as leis por ele próprio editadas [...]" (TP IV 4 p. 39) e ainda desejar manter a majestade, ou seja, a potência. Isto é o mesmo, escreve Espinosa, que querer "[...] ser e não ser ao mesmo tempo." (TP IV 4 p. 39). Como também analisei no item (f) do capítulo 1, neste caso o que ocorre é que o direito da multidão, o qual se manifesta pelo afeto indignação, passa a não mais dar potência à cidade e se canaliza para a sua destruição. Recapitulo este ponto. Sendo a indignação um afeto no qual se sente ódio àquele que faz mal a outrem, o mecanismo neste caso é: as ações dos desejos que compõem a multidão e que dão potência à cidade passam a esvaziar esta mesma cidade de potência. Quando o poder soberano, isto é, os seus representantes, passam a agir ignorando os resultados afetivos de seus atos nos membros da multidão - com ações que vão desde correr nus ou ébrios com rameiras até mandar que se odeie o que se ama e vice-versa (TP IV 4 p. 39) -, fazem que as mentes dos membros da multidão se encham de indignação. Neste caso, a multidão passa a odiar o poder soberano na medida em que este está a fazer mal à própria cidade, ao imperium. Ora, como o poder do imperium advém do poder dos desejos em multidão192, quando estes sentem não a esperança ou a segurança, mas a indignação, o direito passa a ser o direito de guerra em face daquele em relação a quem se sente indignação. Por isso Espinosa constata que há coisas que a cidade deve temer (TP III 9 p. 30), pois são coisas que levam a potência da cidade, e portanto seu direito, ao entorno de um grau zero. De fato, este ponto se apresenta em toda sua clareza ao final do capítulo IV do Político, momento em que Espinosa afirma que "O contrato [contrato seu leges G III p. 294]193, ou as leis pelas quais a multidão transfere o seu direito para 192

Sobre a questão da potência de multidão, e não da multidão, ver: CAMPOS, André Santos. Ius sive potentia. Individuação jurídico-política na filosofia de Spinoza. Tese apresentada ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientador: Professor Doutor Diogo Pires Aurélio e Professor Doutor Viriato SoromenhoMarques. Lisboa, 2008. Diz o autor: "A multidão não é potência do comum, é o conceito explicativo da realização da potência individual em comum" (p. 292). 193 Interessante notar que mesmo utilizando a expressão 'contrato', Espinosa diz: contrato seu leges (G III p. 294). Ou seja, depois de usar a expressão 'contrato', afirma que este, por meio do termo seu leges, é o mesmo que 'as leis pelas quais a multidão transfere', o que aqui pode ser a lei segundo a qual se quer o maior bem e o menor mal sob a forma de um regramento qualquer - de qualquer povo - que define como a transferência se dá. 164

um só conselho ou para um só homem devem, sem dúvida, ser violadas quando interessa à salvação comum violá-las." (TP IV 6 p. 40). Logo depois, entretanto, Espinosa diz que não é qualquer juízo que pode fazê-lo, não é qualquer privado que pode fazê-lo (TP IV 6 pp. 40-41). Não obstante, acresce, na sequência, um "se, contudo" [quod si tamen] (TP IV 6 p. 41). E afirma: Se, contudo, elas [as leis] são de natureza tal que não podem ser violadas sem que ao mesmo tempo se debilite a robustez da cidade [por exemplo, mandam amar o que se odeia e vice-versa, violar-se, mutilar-se, matar os pais, etc.], isto é [hoc est], sem que ao mesmo tempo o medo comum da maioria dos cidadãos se converta em indignação, a cidade, por isso mesmo, dissolve-se e cessa o contrato, o qual, por conseguinte, não é defendido pelo direito civil, mas pelo direito de guerra. (TP IV 6 p. 41).

Analisei esta passagem, à luz do mecanismo do afeto indignação, no item (f) do capítulo 1. Apenas recordo, neste momento, que é a multidão, por sentir, em conjunto (como que por uma só mente), o afeto indignação, que neste momento, para defender o direito natural de cada um, exerce seu direito de guerra. Ou seja, as leis, por não expressarem mais a potência da multidão - pois em vez de formarem o imaginário da esperança e da segurança, formam o da indignação -, levam esta mesma multidão não à manutenção do soberano, mas ao seu esfacelamento. E tal se dá porque o contrato, expresso por estas leis sem potência, já não mais se sustenta afetivamente, ou seja, com afetos alegres, tais como a esperança e a segurança. O que há é indignação levando as mentes dos membros individuais em multidão a desconstruir aquela específica forma de imperium na medida em que ela já não mais atende, efetivamente, à demanda afetiva da multidão. E a demanda afetiva da multidão, por questões ontológicas, é por afetos alegres, por maior potência do todo da multidão e de cada um de seus membros.

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(e) A política e seu avesso: paz como fortaleza de ânimo versus paz como ausência de guerra194 O prefácio ao Político, na verdade a carta 84 acrescida ao tratado pelos organizadores das obras de Espinosa publicadas postumamente, é uma espécie de mapa para o leitor do livro. Com efeito, Espinosa escreve ao destinatário anônimo195 que estava empenhado em obra útil, a saber, o Tratado político. Mostra então ao destinatário os caminhos já percorridos e os que ainda estavam por ser realizados. Seis capítulos do tratado já estavam concluídos na ocasião196. E passa Espinosa a fazer um sumário que indica os seguintes caminhos: capítulo primeiro contendo uma introdução à obra; o segundo tratando do direito natural; o terceiro dos poderes soberanos; o quarto acerca dos assuntos políticos que dependem dos poderes soberanos; o quinto, do fim mais elevado e último que uma sociedade pode ter em vista; o sexto, de qual a ratio de um imperium monárquico para que não resulte em tirania. Escreve, por fim, que se ocupa na ocasião do capítulo sétimo, no qual esmiúça as instituições da monarquia bem ordenada. E aponta para o que faria após, a saber, trataria do imperium aristocrático e do popular (democrático [populare imperium - G IV 336]), para, ao final, escrever acerca das leis e outros assuntos relativos à política (TP Pref pp. 3-4). Sabe-se que Espinosa findou as reflexões acerca do imperium aristocrático, mas deixou incompleto o tratamento da democracia, bem como as questões gerais respeitantes às leis e à política. O que há de surpreendente nesta ordem, para o que interessa ao ponto central desta tese, é o tema e o lugar do capítulo quinto. Ou seja, "[...] qual o fim último e mais elevado que uma sociedade pode ter em vista [...] [quintum quidnam sit illud extremum et summum, quod societas potest considerare G III p. 272]." (TP Pref p. 3). Por que não tratar deste tema em cada um dos capítulos referentes aos regimes, para mostrar que o democrático é o que mais satisfaz a natureza humana, ecoando o 194

Uma parte dos temas deste item (parágrafo sexto em diante), com redação diversa, foi apresentada na ANPOF 2014 (GT Pensamento do Século XVII), realizada em Campos do Jordão de 27 a 31 de outubro de 2014. O título da apresentação foi: Medo, desespero ou O avesso da Política. 195 Sobre o destinatário anônimo, ver: ESPINOSA. Correspondencia. Introducción, traducción, notas e índices de Atilano Dominguez. Madrid: Aliança editorial, 1988, p. 413, nota 442. 196 A Carta é provavelmente do segundo semestre de 1676. Ver: ibid., p. 413. 166

Teológico-político e o refinando? Minha hipótese passa pelo argumento seguinte: é claro, pelo texto do Teológico-político, que Espinosa mira a democracia como o mais natural dos regimes, isto é, aquele que mais satisfaz a natureza humana, na medida em que ninguém quer ser governado e todos querem governar. Trata-se do regime de melhor equação entre homens como potência, de um lado, e desejo de mando e de não ser comandado, de outro (TTP XVI pp. 240-242). Entretanto, mesmo em regimes como o monárquico, no qual há o governo de um, Espinosa se esforça por mostrar que o que dá potência ao rei é a multidão (TP VII 31 p. 85). Um apenas, com sua potência isolada, não tem como governar, pois a "[...] potência de um só homem é, de longe, incapaz de sustentar tão grande peso." (TP VI 5 p. 49). Daí a necessidade de uma distribuição da potência do soberano para os conselhos, cujos membros devem ser numerosos. Como propõe Espinosa, "[...] os conselheiros do rei, que estão próximos ou logo a seguir a ele em dignidade, devem ser bastante numerosos [...]." (TP VI 15 p. 53). A questão do melhor gênero de estado civil deve ser iluminada pela questão que é objeto do capítulo quinto, o qual antecede os capítulos em que os regimes passarão a ser objeto direto do tratado, ou seja, capítulo sexto e seguintes. Em suma, a hipótese é a de que o capítulo quinto está localizado estrategicamente entre os capítulos gerais (Desde a Introdução até o capítulo quarto) e o primeiro capítulo que tratará da questão clássica dos regimes (monárquico, aristocrático e democrático), depois do qual virá o tratamento dos demais regimes. Interessa destacar, portanto, que o capítulo quinto mostra que há uma questão de fundo a iluminar qualquer análise de gêneros de estado civil ou de tipos de regime, a saber, a do fim maior e mais elevado que uma sociedade pode ter em vista, independentemente do regime. É certo que no regime democrático há o melhor para as potências individuais. Espinosa procurará mostrar, entretanto - daí o lugar do capítulo quinto na economia do texto do Político, pois o que ali foi desenhado vale para qualquer dos regimes a serem tratados na sequência -, como a fortaleza de ânimo dos súditos-cidadãos pode ser garantida da melhor maneira, em cada gênero de estado civil, em razão de suas peculiaridades. Mostrarei, assim, a importância deste capítulo para as questões que foram trabalhadas anteriormente na presente tese. A frequência dos afetos alegres, 167

bem como, correlato a isso, a intensidade do direito natural dos súditos-cidadãos na cidade, irromperão como sendo a razão da importância do referido capítulo. E não apenas os afetos em geral, mas aqueles ligados ao que se poderia chamar de política de realização máxima do desejo dos membros do corpo político e de seu direito natural individual. E, outro lado da moeda, o que significa a não realização destes desejos, e que se poderia chamar de situação em torno de um grau zero de potência197. Trata-se da questão que Espinosa coloca nos seguintes termos: a diferença, de enorme importância para a reflexão política, entre paz como ausência de guerra e paz como fortaleza de ânimo. *** Na famosa Carta 50 a Jarig Jelles, Espinosa explicita o fosso que o separa da filosofia política hobbesiana ao dizer que mantém sempre o direito natural (Ep. 50, p. 398). De fato, como visto pontualmente nos itens (b) e parte final do item c.2, ambos do capítulo 2, Hobbes entende, pelos mecanismos de transferência de direitos naturais dos súditos-pactuantes ao soberano, por intermédio dos conceitos de pessoa (Leviatã I 16 p. 135) e representação, que o poder soberano passa a deter os direitos naturais transferidos pelo pacto. Afirma, nesse sentido: [...] é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado [commonwealth], em latim civitas. (Leviatã II 17 p. 144).

Ressalte-se, entretanto, que Hobbes impõe limites à transferência, ligados à razão mesma de criação do Estado, ou seja, a preservação da vida, num sentido fisiológico. Se os homens em estado de natureza estão em uma guerra de todos os homens contra todos os homens (Leviatã I 13 p. 109), levando uma vida "[...] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta" (Leviatã I 13 p. 109), o Estado não poderá se furtar à função precípua para a qual foi criado, a saber, a de garantir a vida instituindo a paz - aqui entendida como ausência de guerra de todos contra todos

197

Sobre a questão que inspirou a expressão 'em torno de um grau zero de potência', ver: LIRA, José Tavares Correia de. Suicídio e preservação de si: em torno de um grau zero de conatus. In: Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, 1996, pp. 113-134. 168

(Leviatã I 13 p. 109). Daí que, mesmo havendo transferência do direito natural de cada homem a um homem, ou a uma assembleia de homens (Leviatã II 17 p. 144), há limites ao soberano: o direito de cada homem, mesmo em face do poder do Estado, "[...] de evitar a morte, os ferimentos ou o cárcere." (Leviatã I 14 p. 119). A paz como ausência de guerra é conceito preciso no texto do Leviatã, o que pode dar um parâmetro, por contraste, de como Espinosa se posiciona em face desse conceito, propondo, como mostrarei a seguir, a definição de paz como força advinda da fortaleza de ânimo (TP V 4 pp. 44-45). O conceito de paz em Hobbes, segundo o Leviatã, é apresentado no capítulo XIII da Parte I. Hobbes o define nos seguintes termos: [...] durante o período em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; [...] pois a guerra não consiste apenas na batalha, [...] mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida. [...] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz. (Leviatã I 13 p. 109).

Portanto, para Hobbes, a paz é definida como o período em que não há o ânimo de travar batalha entre os homens, por oposição ao período em que este ânimo existe. O tempo de paz é definido por oposição ao conceito de guerra, de modo que este último é definido como sendo o período em que os homens vivem sem um poder comum que os disponha ao respeito mútuo - a commonwealth ou Estado. Volto à afirmação de Espinosa de que mantém o direito natural na civitas para, após, tratar de seu conceito de paz. Esta curta passagem do início da carta (Ep. 50, p. 398) talvez possa ser esclarecida e aprofundada com a análise do Tratado político à luz dos conceitos da Ética, alguns dos quais trabalhados em outros momentos da tese. Para entender a questão da permanência do direito natural no estado civil - um direito natural que, à luz dos demais textos de Espinosa, deverá ser exercido com qualidade, como potência tendendo ao máximo e com predominância de afetos alegres -, a tese que diferenciaria Espinosa de Hobbes segundo a carta, o tema da diferença entre paz como ausência de guerra, de um lado, e paz como fortaleza do ânimo, por outro, será chave.

169

Fica evidente a importância dos afetos para as teses do Tratado político quando Espinosa escreve, logo no primeiro parágrafo da obra, que os afetos serão tratados por ele de forma diversa daquela que os demais filósofos os trataram (TP I 1 p. 5). Ou seja, na mesma linha argumentativa já explicitada na Ética III (E III Pref. p. 161), não serão tratados como vícios, mas como coisas naturais, "[...] propriedades que lhe [ao homem] pertencem, tanto como o calor, o frio, a tempestade, o trovão e outros fenômenos do mesmo gênero pertencem à natureza do ar, [...] e têm causas certas, mediante as quais tentamos entender a sua natureza." (TP I 4 p.8). Espinosa desdobrará esta importância dada aos afetos e o seu tratamento como fenômeno natural no decorrer do Político. Procurarei indicar alguns pontos da obra em que fica evidente a importância dos afetos acima apontados para forjar a política da cidade ou seu avesso, isto é, um grau quase zero de potência dos súditos que faz que se possa apontar para o fim da política, da cidade, isto é, para a situação em que aquilo que há é um deserto de potências individuais. Deserto de potências individuais, ou seja, algo que está próximo de um grau zero de intensidade do corpo e da mente ao se observar cada homem na civitas. Portanto, situação, para os súditos-cidadãos, avessa ao que Espinosa entende como sendo a razão de ser do imperium e da cidade como seu corpo inteiro (TP III 1 p. 25). Sua razão de ser, ou seja, instituição da paz na cidade como vis ou força dos seus membros. No parágrafo segundo do capítulo quinto do Político, Espinosa estabelece que a finalidade do estado civil no imperium é "[...] a paz e a segurança de vida [...]" (TP V 2 p. 44). E, pouco depois, diferencia um imperium sem guerra daquele que está em paz. De fato, escreve que "[...] a paz não é ausência de guerra, mas virtude que nasce da fortaleza de ânimo [Pax enim non belli privatio, sed virtus est, quae ex animi fortitudine oritur - G III 296] [...]". E complementa: "[...] aquela cidade cuja paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer uma solidão [solitudo]198 do que uma cidade." (TP V 4 pp. 44-45).

198

Na tradução de Émile Saisset, revisada por L. Bove, a expressão usada é "c'est une solitude". Ver: SPINOZA. Traité politique. Traduction d´Émile Saisset révisée par Laurent Bove. Introduction et notes par Laurent Bove. Paris: Librairie Génélare Française, 2002, p. 159. Na nota referente à expressão, L. 170

Paz e segurança de vida [pax vitaeque securitas G III p. 295] como finalidades do imperium (TP V 2 pp. 43-44). Paz como virtude que nasce da fortaleza de ânimo [Pax enim non belli privatio, sed virtus est, quae ex animi fortitudine oritur - G III p. 296]. Com tais conceitos Espinosa faz a ponte entre direito como potência, afetos, cidade, política e o conceito de paz. Desdobro a seguir este ponto, esclarecendo a tese de que a paz é fortaleza de ânimo dos súditos, não ausência de guerra199. Procurei mostrar que o homem é povoado, por assim dizer, pelos afetos, os quais não são senão transições de intensidade de potência. Quando o Bove diz que Espinosa evocaria uma palavra atribuída a Galgacus, chefe caledoniano (Caledônia é a atual Escócia) que resistiu à invasão romana. Galgacus teria dito, sobre os conquistadores, que faziam um deserto onde diziam ter estabelecido a paz. A citação seria de Tácito em Vie d'Agricola, 30 (p. 162). No mesmo sentido, dizendo que Espinosa se referiria à citação de Tácito [ubi solitudinem faciunt pacem appellant], e traduzindo como 'a desert', ver: SPINOZA. Political Treatise. Translated by Samuel Shirley. In: Complete Works. Indianapolis: Hackett Publishing Company, 2002, p. 699. A. Dominguez usa 'soledad'. Ver: SPINOZA. Tratado político. Traducción, Introducción, índice analítico y notas de Atilano Dominguez. Madrid: Alianza editorial, 1986, p. 120. Na tradução de R.H.M. Elwes, usa-se 'desert'. Ver: SPINOZA. A Theologico Political Treatise and A Political Treatise. Translated from the Latin by R.H.M. Elwes. New York: Dover publications, 1951 (first edition), p. 314. 199 Laurent Bove, ao analisar o espírito contemporâneo como de terror ordinário, cotidiano, levanta uma tese, de fundamento espinosano, muito rica em desdobramentos (tema já apontado no item (g) do capítulo 1, em nota de rodapé, e aqui retomado). Afirma Bove: "O 'terror' não é, portanto, um simples sentimento de medo ou até mesmo de pânico externo, mas o poder assassino silencioso e secreto que desvia o corpo e o espírito da identificação espontânea à dor do semelhante. Essa 'aptidão para viver a vida de outrem (e, na vida em comum, a viver da vida de outrem) é uma potência artista ('puissance artiste'), diz Camus, a da comunicação da 'carne'. Anterior a toda história, a 'carne, seja ela sofredora, seja ela feliz', é assim o cadinho mesmo da hominização. Quando, ao contrário, se apaga sua particular aptidão que lhe 'permite reconhecer a constante justificação dos homens que é a dor', o espírito do homem se dispõe a um novo tipo de julgamento, animalizado. Animalidade não (apenas) da 'besta' nazi, que oprime segundo a Lei, mas do homem ordinário que, 'com o coração em paz porque sem dúvida já tomou seu café da manhã', pode, sem 'vergonha', viver na indiferença pela opressão e a 'dor humana', cumprindo suas funções (às quais ele se identifica) com cuidado e senso de dever" (pp. 96-97). As expressões entre aspas (como 'terror', etc.) referem-se a várias notas de rodapé do texto original que não indiquei nesta nota. São termos extraídos de excertos das obras completas de Albert Camus, da conferência La crise de l´homme. Ver nota 96 do livro de L. Bove, citado abaixo (p. 90). Ou seja, a questão das democracias que não capilarizam pelo corpo político a hilaritas pode ser colocada no rol maior das questões políticas relativas à diferença entre paz como ausência de guerra e paz como fortaleza de ânimo. Por outra, que tipo de democracia se tem quando o afeto dominante é o desespero - causado pelo Estado, pela burocracia, pelo desemprego, pela precarização dos modos de vida, etc.? Ver: BOVE, Laurent. Vivre contre un mur: diagnostic sur l’état de notre nature en regime de terreur ordinaire. In: Multitudes. 2/2008 (nº 33), pp. 111-122. Disponível em: http://www.cairn.info/revuemultitudes-2008-2-page-111.htm. Acesso 29 JUL 2011. Artigo traduzido em: BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. (Coleção Invenções Democráticas). Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 89-98. Citação e paginação da citação acima a partir da tradução indicada. Sobre a questão do conatus humano como resistência estratégica, ver: BOVE, Laurent. La stratégie du conatus. Paris: J. Vrin, 2012. O autor desdobra a questão do conatus como resistência e estratégia e mostra, assim, que a ação em face de regimes tirânicos, que diminuem o conatus, somente pode ser a resistência. Se o nosso tempo for o de terror ordinário, como afirma ao autor no texto supra, nada mais jurídico que a resistência em face das instituições que levam à diminuição da potência dos súditos-cidadãos. Ver o capítulo 3 desta tese para um desdobramento contemporâneo do tema do direito natural como resistência. 171

homem é causa adequada de uma afecção, tem-se um afeto alegre e uma ação ou afeto ativo, diz Espinosa na Ética (E III Def 3 Explic p. 163). Quando a afecção é causada externamente, o afeto que se tem é uma paixão, ou seja, um afeto passivo (E III Def 3 Explic p. 163). Se todos os homens tivessem conhecimentos adequados do que lhes é útil, e vivessem sob as prescrições da razão, sempre, não haveria necessidade de uma cidade, nem da política, pois estariam os homens sempre de acordo entre si (E IV P 35 Dem p. 303). Entretanto, escreve Espinosa, "[...] é raro que os homens vivam sob a conduta da razão." (E IV P 35 Esc p. 303). O que ocorre com mais frequência é que os homens vivam sob os afetos passivos. Ou, como afirma ao final das proposições da parte III da Ética, "[...] fica evidente que somos agitados pelas causas exteriores de muitas maneiras e que, como ondas do mar agitadas pelas causas exteriores, somos jogados de um lado para o outro [...]." (E III P 59 Esc p. 237). A cidade é forjada precisamente para ser o veio no qual os homens possam ter paz e segurança. Mas, se a paz não é o mesmo que ausência de guerra, mas virtude (de vis, força, em latim) que nasce da força do ânimo, há que se levar em conta o tipo de afeto predominante que o imperium determina nos súditos. Todos os afetos derivam dos três primários, como Espinosa mostra, e dos quais todos os demais são manifestações. O par esperança-medo é que vem a ser, cessada a dúvida, segurança ou desespero, afetos mais estáveis. Este deriva do medo quando cessa a dúvida. Aquela deriva da esperança quando cessa a dúvida, como analisei nos itens (e) do capítulo 1 e (b) do capítulo 2. O desespero é tristeza, diminuição da perfeição, menor intensidade de potência, uma espécie de direito natural exercido precariamente, pois com pouca intensidade ou potência. A segurança é alegria, portanto intensidade maior do conatus de tal ou qual homem, direito natural deste homem sendo exercido com estabilidade e qualidade maiores. Como Espinosa define, na Ética III, a fortaleza de ânimo? Fortitudinem ou fortaleza - mesma expressão utilizada no Político (TP V 4 p. 45) na passagem acima citada -, quando indicada na Ética, aparece como firmeza e generosidade (animositatem et generositatem). As definições são as seguintes: por firmeza o autor compreende o desejo "[...] pelo qual cada um se esforça [conatur] por conservar seu ser pelo exclusivo ditame da razão." (E III P 59 Esc p. 235). Por generosidade, escreve, "[...] compreendo o desejo pelo qual cada um se esforça 172

[conatur], pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar os outros homens e para unir-se a eles pela amizade." (E III P 59 Esc p. 235). Mas o agir de acordo com a razão, nos homens, é algo raro (E IV P 35 Esc p. 303). Como pode ocorrer, pois, que tais afetos surjam com mais frequência nos homens? Minha hipótese é a de que a fortaleza de ânimo será possibilitada por instituições bem construídas pela política. Por isso Espinosa utiliza este afeto, no Político, ao tratar do seu conceito de paz como dele advindo. Analiso este tema abaixo. A política é o meio pelo qual os homens podem vir a ter a alegria em seu maior grau, ou seja, a experiência dos afetos do fortalecimento de si mesmo e do fortalecimento do outro - os afetos firmeza e generosidade. De fato, se os homens apenas se conduzissem pela razão, a fortaleza de ânimo seria um afeto experimentado por todos, pois necessariamente todos concordariam entre si (E IV P 35 Dem p. 303). Mas como é raro que isto ocorra, isto é, que os homens se conduzam pela razão (E IV P 35 Esc p. 303), a política é a astúcia institucional que leva à concórdia, isto é, o canal possibilitador do exercício adequado - real - do direito natural e do cultivo, consequentemente, dos afetos alegres. A cidade é o local em que tais afetos podem vir a existir com maior frequência nos homens, mas não sempre, visto que, caso se conduzissem pela razão, não seria necessária a política, nem a cidade. Some-se a este ponto o que foi afirmado acima, isto é, que a paz é virtude que nasce da fortaleza de ânimo (TP V 4 pp. 44-45 - ex animi fortitudine oritur G III p. 296), e se pode concluir, a partir desses argumentos, que a paz que a cidade propicia pode ser aferida pelas intensidades dos ânimos dos súditos, uma vez que virtude para Espinosa é o mesmo que potência do homem (E IV P 20 Dem p. 289). Com efeito, "A virtude [virtus] é a própria potência humana [...] que é definida exclusivamente pelo esforço pelo qual o homem se esforça por perseverar em seu ser." (E IV P 20 Dem p. 289). Como se encaixa, neste raciocínio, o conceito de multidão? A paz é possibilitada pela política, conforme analisei acima. E a política - e aqui está o papel da multidão - é forjada na e pela multitudo no interior da cidade. A segurança da vida, que Espinosa estabeleceu como sendo conjugada à paz, ambas sendo finalidades do imperium (TP V 2 p. 44), é, como procurei mostrar acima, um afeto. Este afeto, expressão da alegria, deriva da esperança que a cidade gera nas mentes dos homens que nela vivem. Entretanto, a esperança pode vir a ser medo e novamente esperança, 173

dada a precariedade desse par afetivo. Às instituições da cidade caberá dar estabilidade ao afeto esperança, isto é, transformá-lo, nas mentes dos homens, em segurança de uma vida que poderá ser vivida para além da sobrevivência, do mero bios. A cidade dá aos homens um horizonte imaginário de futuro seguro, e este afeto, em predominância, sustenta a cidade, pois a multitudo, formada pelos desejos dos homens, é que sustenta o poder soberano da cidade. Por isso Espinosa afirmará, no passo seguinte ao movimento cidadesolidão (TP V 4 p. 45), que a multidão - multiplicidade de desejos ou receios articulados à potência comum, na definição de Diogo Pires Aurélio200 - subjugada conduz-se mais pelo medo, ao passo que a multidão livre conduz-se mais pela esperança (TP V 6 p. 45). Afirma Espinosa, para concluir este movimento argumentativo, que "[...] aquela [a multidão livre, que se conduz mais pela esperança que pelo medo] procura cultivar a vida, esta [a multidão subjugada, que se conduz mais pelo medo que pela esperança] procura somente evitar a morte [...]." (TP V 6 p. 45). A multidão que procura cultivar a vida é aquela que sustenta um tipo de poder soberano que cria instituições - o direito civil da cidade - propiciadoras de um imaginário afetivo de presente e futuro seguros. Neste imaginário, presente nas mentes dos membros da cidade e emulado pelos desejos desses mesmos membros, via imitatio afetiva, os afetos predominantes são os derivados da alegria. Por isso a vis (a virtude como potência ou força) constitutiva do conceito de paz espinosano nasce da fortaleza de ânimo. Somente súditos que se reconhecem no que o poder soberano da cidade faz por eles - pois o direito civil vem, neste caso, do "[...] decreto comum da cidade [ex communi civitatis decreto G III p. 296] [...]" (TP V 4 p. 45) - podem viver na paz entendida como situação em que os conatus têm alto grau de potência. Não vivem, pois, subjugados pelo soberano, mas constituem, tomam parte nas decisões da cidade e procuram estimular instituições que capilarizem afetos alegres no interior do corpo político. O medo, por outro lado, é o afeto que, se estimulado pelo poder soberano, poderá se estabilizar, nas mentes dos homens, como desespero. Afeto triste, no qual a dúvida acerca do medo antes sentido cessa, o desespero é o retrato de uma cidade cujos súditos não têm ânimo, virtude, potência. A intensidade dos conatus 200

AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 275. 174

individuais é cerceada pelo medo e pelo desespero. Súditos "como ovelhas" (TP V 4 p. 45) geram não a cidade, mas o deserto, termo que, segundo Laurent Bove em nota à sua revisão da tradução de Émile Saisset, indicaria uma palavra atribuída a Galgacus, chefe caledoniano (Caledônia é a atual Escócia) que resistiu à invasão romana. Galgacus teria dito, sobre os conquistadores, que faziam um deserto onde diziam ter estabelecido a paz201. "Súditos como ovelhas" é sinônimo de intensidades de direitos naturais individuais que gravitam em torno do grau zero de potência. Se a política é o meio para que os direitos naturais de cada um não sejam apenas opinião (TP II 15 p. 19), a cidade que institui o medo e o desespero como formas de garantir a paz não podem ser propriamente o local da política, nem podem ser adequadamente chamadas de cidade, mas de deserto ou solidão. Assim, pode-se afirmar, agora com mais clareza, que a afirmação de Espinosa a Jarig Jelles na Carta 50, de que mantém sempre o direito natural, traz muitas consequências para o tipo de cidade que é pensada por Espinosa, bem como para o conceito de paz como vis que decorre da fortaleza de ânimo. Na hipótese aqui levantada, trata-se de um conceito de política (e de cidade) que estabelece uma fina relação entre três instâncias que devem ser pensadas em conjunto. A antropologia espinosana, fundada em uma concepção de homem como grau de potência. Certa concepção do que sejam os afetos, isto é, transição de potência de um mais a um menos, até um limite, e vice-versa. E, por fim, o paradoxo de uma potência do poder soberano da cidade que deve estimular o medo à lei202 visando à segurança como afeto alegre predominante no corpo social. Se assim não for, tem-se o que Espinosa chamou, ao tratar da paz duradoura e miserável do imperium Turco (TP VI 4 p. 49), de barbárie, servidão e isolamento.

201

SPINOZA. Traité politique. Traduction d´Émile Saisset révisée par Laurent Bove. Introduction et notes par Laurent Bove. Paris: Librairie Génélare Française, 2002, p. 162. 202 Sobre a diferença entre o medo à lei e o medo animal, ver: CHAUI, M. Medo e esperança, guerra e paz. In: Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 173-191, especialmente p. 174. 175

CAPÍTULO 3 - A ALTA VOLTAGEM POLÍTICA DO DIREITO NATURAL ou ESPINOSA CONTRA AS VIOLÊNCIAS TRAVESTIDAS DE DIREITO 203

(a) Direito natural: uma concepção enfraquecida

Uma observação, ainda que panorâmica, da grade curricular dos cursos de direito no Brasil explicita um ponto de interesse para o tema deste capítulo. Grande parte das disciplinas dos cursos jurídicos tem como objeto de estudo o direito positivado pelo Estado. Do direito civil ao penal, do direito ambiental ao tributário, o que se estuda gira em torno do direito estatal. Estuda-se, com efeito, apenas a legislação e a doutrina, isto é, a produção “científica” dos especialistas de cada área sobre os institutos jurídicos. Ou, por outra, o que têm a dizer os doutrinadores sobre o conjunto de normas atinentes a sua especialidade. Este tipo de estudo ou de produção pode analisar decisões judiciais de várias instâncias, como complemento ao estudo abstrato dos institutos, ainda que não necessariamente o faça. Tal pedagogia jurídica, focada nos manuais que analisam o direito posto, não traz, necessária e mecanicamente, sua estrutura constitutiva para a prática dos chamados operadores do direito204. Esta questão, não obstante sua pertinência, não será abordada neste capítulo, cujo escopo será o de analisar a predominância de certa estrutura do jurídico como definidora do direito. Com efeito, a estrutura do

203

Uma versão resumida deste texto foi apresentada na 'Jornada Marxistas Leitores de Espinosa', realizada nos dias 28, 29 e 30 de maio de 2013, na FFLCH USP, organizada pelo Grupo de Estudos Espinosanos. Naquela ocasião, este texto era o resultado, em parte, do ponto a que havia chegado a pesquisa de doutoramento. O desvio da apresentação em face do resultado das pesquisas se deu apenas no sentido de incorporar ao ponto em que estava a pesquisa a questão da pertinência do conceito de direito natural em nossos tempos, com a consequente crítica ao formalismo jurídico predominante nos cursos jurídicos. As apresentações foram reunidas no volume 30 dos Cadernos Espinosanos. Ver: Emancipação e direito como potência: apontamentos espinosanos sobre a concepção atual do jurídico. In: Cadernos Espinosanos XXX. São Paulo: publicação do Departamento de Filosofia da FFLCH USP, jan-jun 2014, pp. 106-122. 204 Sobre a questão da relação ensino-pesquisa, por um lado, e práticas jurídicas, por outro, nas faculdades de direito, ver: NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. In: Cadernos Direito GV 1. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/2779. Acessado em 04 de junho de 2012. O artigo analisa a questão da pesquisa em direito no Brasil e em alguns outros países. Toca, também, na questão da relação entre ensino-pesquisa e prática dos profissionais do direito. 176

direito positivo é tomada, por grande parte dos estudiosos do direito, como sendo o direito, ocultando áreas importantes da geografia jurídica. Não é casual, portanto, que as “doutrinas” ou filosofias do direito natural apareçam nos cursos jurídicos como história - em disciplinas como Introdução ao Estudo do Direito ou História do Direito -, ou como conceito - na disciplina Filosofia do Direito205. No cotidiano jurídico, isto é, nas decisões judiciais e nas petições dos operadores jurídicos, o conceito de direito natural se apresenta, no máximo, como argumento retórico - no sentido fraco do termo. O que pode ser considerado direito, tanto no ensino-pesquisa, quanto na operação decisional, passa ao largo de qualquer “doutrina” do direito natural, clássica ou moderna206. Certa vertente da literatura que trata do tema não hesita em afirmar, de modo mais alargado - não se restringindo ao Brasil, nem ao direito presente nas faculdades de direito, como se fez nos parágrafos anteriores -, que a positivação do direito é fenômeno contemporâneo por excelência. E vai ainda mais longe ao afirmar que direito, do século passado ao atual, seria praticamente sinônimo de direito positivo ou, mais precisamente, de dogmática jurídica207. Em uma palavra, no confronto entre direito natural e direito positivo, no mundo contemporâneo, há a predominância quase absoluta do entendimento do

205

Tais disciplinas podem mudar de nome de instituição a instituição, bem como os conteúdos dados em cada uma delas. Mas isso é menos importante. O que interessa, para o tema proposto, é a maneira como o direito natural aparece nos cursos de direito e qual a relevância dos conceitos de direito natural em face do direito posto. 206 Deleuze, em aula ministrada em Vincennes em 09.12 de 1980, aborda o tema do direito natural panoramicamente e estabelece as linhas mestras do que define o direito natural clássico - e desdobramentos no medievo -, bem como as inovações trazidas sobretudo por Hobbes e Espinosa, os quais ligam, modernamente, o conceito de direito natural ao de potência, segundo Deleuze. Para as considerações de Deleuze, ver: DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, pp. 83-103. O direito natural clássico, em resumo, para Deleuze, seria aquele "[...] que está conforme a essência." (Ibid. p. 87), ao passo que a inovação hobbesiana, no que é acompanhado por Espinosa, seria introduzir no conceito a tese da potência, isto é, o direito natural passa a ser definido como potência (Ibid. pp. 89-90). 207 Tal conceito abrange as seguintes instâncias: lei, como vontade objetivada segundo um ritual previsto no próprio regramento legal; doutrina, como estudo dos especialistas acerca dos institutos e leis positivadas pelo Estado, jurisprudência ou julgados, como decisões tomadas a partir do direito posto para os casos concretos que chegam ao judiciário. 177

jurídico como direito posto em contraposição a qualquer definição que se aproxime de conceitos de direito natural. Mostrarei, a seguir, como se manifesta parte da literatura que constata a perda de funcionalidade das doutrinas de direito natural nos séculos passado e atual. Tercio Sampaio Ferraz Junior afirma, nessa linha, que a dicotomia direito natural versus direito positivo está, sobretudo nos tempos atuais, enfraquecida. Mais precisamente: sua operacionalidade está enfraquecida. Mas o que significa a tese do enfraquecimento operacional da dicotomia? Afirma o autor: Essa autonomia do direito natural em face da moral e sua superioridade diante do direito positivo marcou, propriamente, o início da filosofia do direito como disciplina jurídica autônoma. Isso foi assim até as primeiras décadas do século XIX. Depois, a disciplina sofre um declínio que acompanha o declínio da própria ideia de direito natural. [...]. Na ciência dogmática do direito, porém, embora a ideia esteja até hoje sempre presente (por exemplo, na fundamentação do direito subjetivo na liberdade), a dicotomia, como instrumento operacional, isto é, como técnica para a descrição e classificação de situações jurídicas normativamente decidíveis, perdeu força. [...] Uma das razões do enfraquecimento operacional da dicotomia pode ser localizada na promulgação constitucional dos direitos fundamentais. Essa promulgação, o estabelecimento do direito natural na forma de normas postas na 208 Constituição, de algum modo “positivou-o".

A ideia de direito natural, sua existência como conceito e como questão, persiste, de acordo com o excerto. Sua influência, entretanto, seja na caracterização do jurídico, seja nas decisões cotidianas tomadas a partir do direito, declinou. A dicotomia perdeu força uma vez que o direito positivo passa a ser o direito em operação, aquele que será o fundamento das decisões nos conflitos existentes na sociedade e apresentados ao órgão responsável pela decisão, a saber, o judiciário. Um dos motivos elencados pelo autor para tal enfraquecimento - a positivação dos conteúdos do direito natural pelas Constituições - apenas reitera o argumento da perda de sentido e de força do conceito. Com efeito, o que resta da influência do conceito de direito natural no mundo contemporâneo apenas subsiste em razão de uma espécie de mudança de natureza. Não se trata mais de direito natural, mas de direito natural positivado, presente no ordenamento e por isso

208

FERRAZ JUNIOR, T.S.. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003, pp. 170-171. 178

passível de aplicação pelo órgão competente, podendo mudar como qualquer outro direito posto. Tercio Sampaio desenvolve o argumento da trivialização dos direitos humanos - sinônimo de indiferenciação do direito natural frente ao direito positivo em outro texto. Neste estudo mais detido, baseando-se em Luhmann209, afirma, no mesmo sentido do excerto acima citado: O traço mais característico do direito contemporâneo é, nestes termos, o fenômeno da positivação. [...] No processo de positivação do direito, alarga-se a importância do direito positivo, como aquele que vale em virtude de uma decisão e 210 só por força de uma nova decisão pode ser derrogado .

A razão para o fenômeno acima descrito, afirma Tercio neste último texto, seria - fazendo uma suma da longa argumentação do autor - a predominância de um tempo em que se está em uma “[...] sociedade de operários, de uma sociedade de consumo [...]”

211

. Tal sociedade demandaria um direito cambiável e despreocupado

com a questão do fundamento na medida em que requer de seus membros um funcionamento meramente automático, [...] como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse por assim dizer deixar-se levar, abandonar a sua individualidade [...] e aquiescer num tipo funcional de 212 conduta entorpecida e tranquilizante.

Luiz Werneck Vianna, na mesma linha argumentativa, mas retirando consequências bastante diversas, escreveu artigo cujo título é: Poder Judiciário, “Positivação” do Direito Natural e Política. Ao tratar do final do século XX, escreve: Pragmático, este fim de século não se comprometeria com uma exploração metafísica da ideia de justiça, assim como evitaria a clássica contraposição entre o direito natural e o direito positivo, sendo marca contemporânea a “positivação” 213 daquele direito nas cartas constitucionais.

Portanto, parte da literatura afirma ser traço indubitável das sociedades contemporâneas o da predominância do jurídico como fenômeno positivo, 209

LUHMANN, N.. Legitimação pelo Procedimento. Brasília: ed. UNB, 1980. FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110. 211 FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110. 212 Ibid. p. 110. 213 VIANNA, L.W.. Poder Judiciário, “Positivação” do Direito Natural e Política. In: Revista Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 9, n.18, p. 263-281, 1996, p. 264. 210

179

bastante adequado, segundo concepções conservadoras e menos críticas, para a solução “mecânica” de conflitos nas sociedades contemporâneas214. Em chave semelhante à da constatação da perda de importância contemporânea do conceito, mas com viés crítico às posições dos manuais que tratam do tema, Deleuze afirma que [...] esta história concernente ao direito natural, é preciso que compreendam isto: hoje, à primeira vista, nos parece muito ultrapassada, tanto juridicamente como politicamente. Nas teorias do direito natural, nos manuais de direito, ou nos manuais de Sociologia, vemos sempre um capítulo sobre o direito natural, [...] mas hoje, ninguém mais está interessado nisso, no problema do direito natural. Esta 215 visão não é falsa, [...], mas é uma visão muito escolar.

Os manuais teriam uma visão escolar sobre o problema do direito natural, segundo Deleuze, precisamente por não levarem em conta a questão histórica, passando ao largo das razões do problema colocado, ou seja, do problema do direito natural inserido nas questões históricas que o engendraram216. Penso, a partir, em parte, da constatação de Deleuze - a da visão escolar dos manuais acerca do conceito -, que certa vertente da longa e complexa tradição do direito natural pode ter, na geografia do direito - supondo-o um grande mapa -, importância capital nas reflexões contemporâneas sobre o tema. Penso especificamente na tradição inaugurada, segundo Deleuze, por Hobbes217, e desdobrada, com modificações significativas, por Espinosa, como mostrei nos capítulos

214

Sabe-se que o direito estatal não mais tem dado conta de resolver os conflitos sociais em um tempo razoável e de maneira adequada. A temporalidade do direito - da prova e da contraprova, do contraditório - tem sido solapada pela temporalidade social, altamente influenciada pela velocidade das transações econômicas. Para uma análise refinada acerca desse tema, ver: FARIA, J. E. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 2004. É bom lembrar que este autor está em chave diversa daquela que pensa ser o direito positivo estatal adequado para a solução dos conflitos sociais em sociedades complexas. 215 DELEUZE, Gilles. Cursos sobre Spinoza (Vincennes, 1978-1981). Seleção e Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Hélio Rebello Cardoso Júnior. Tradução Emanuel Angelo da Rocha Fragoso; Francisca E. B. de Castro, Hélio R. C. Júnior, Jefferson A. de Aquino. Fortaleza: ed. UECE, 2009, p. 86. 216 Ibid. p. 86. 217 Ibid. pp. 89-90. É Deleuze mesmo quem faz, acerca desta afirmação - de que Hobbes teria inaugurado a tradição do direito natural como potência -, uma ressalva, como já assinalado no item (a) do capítulo 2, em nota de rodapé, por ocasião de discussão de outro tema. Cito: "Acrescento, para ser honesto historicamente, que isto não surgiu de um golpe, seria possível procurar, já na antiguidade, uma corrente, mas uma corrente muito parcial, muito tímida, na qual se formava já na antiguidade, uma concepção como esta do direito natural igual potência. Mas ela será abafada. Vocês a encontram em certos sofistas e em certos cínicos. Mas sua explosão moderna, será com Hobbes e com Espinosa." Ibid. p. 95. 180

1 e 2 em alguns de seus movimentos. A tradição do direito natural como potência, a ser mantido no corpo da civitas (Ep. 50 p. 398) - uma das teses mais inovadoras de Espinosa -, tem muito a contribuir para iluminar terrenos do jurídico apagados pelas teorias do direito que compreendem o fenômeno do direito como exclusivamente positivista. Mais precisamente, o direito natural de viés espinosano não apenas seria pertinente em tempos atuais, contrariando, portanto, a visão da perda de funcionalidade das teorias do direito natural, como seria uma espécie de fonte de reflexão para o entendimento do direito como instância emancipatória. Nesse sentido, o conceito de direito natural pode ter alta voltagem política e jurídica no interior de teorias e práticas jurídicas contemporâneas. O que teria a concepção de direito natural espinosana a dizer sobre esse estado de coisas, ou seja, sobre a constatação, acima analisada, de que as teorias do direito natural não têm lugar, ou perdem funcionalidade, na reflexão jurídica contemporânea? Em outros termos: o que se pode extrair desta concepção do jurídico que signifique uma espécie de cunha no entendimento do direito como fenômeno positivista? Qual a potência de seu conceito de direito natural frente à ideologia218, por assim dizer, do direito como fenômeno quase exclusivamente positivo? É o que pretendo analisar a seguir. (b) Ontologia e direito: o direito como potência Espinosa concebe o jurídico em chave ontológica. Mais precisamente: tudo o que é, para Espinosa, é em Deus, isto é, na substância absolutamente infinita. Deus, como procurei analisar no item (c) do capítulo 1, é sinônimo, para Espinosa, de natureza, ou seja, equivale à imanência do real. O direito, por conseguinte, só poderia se apresentar em chave ontológica, na imanência da substância. De fato, escreve Espinosa na Ética: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido.” (E I P 15 p. 31). Deus ou a natureza (Deus sive natura), como afirma Espinosa, se apresenta como a realidade única, o dentro sem fora. E tal realidade é a potência absolutamente infinita da 218

Sabe-se da multiplicidade semântica do conceito. Quer-se com ele dizer, neste capítulo, um conjunto de ideias e doutrinas que mascaram ou ocultam outros entendimentos possíveis sobre dado fenômeno. No caso, o direito. Para um belo estudo acerca da diversidade e da história do conceito, ver: BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 181

substância única (E I P 34 p. 63). O direito, assim, como algo que existe na natureza, somente poderá se apresentar em chave ontológica, qualquer que seja seu estatuto, isto é, como direito natural ou como direito civil. No Tratado Político, de maneira mais minuciosa, afirma Espinosa que A partir, pois, daqui, quer dizer, do fato de a potência pela qual existem e operam as coisas naturais ser a mesmíssima potência de Deus, entendemos facilmente o que é o direito de natureza. [...] Assim, por direito de natureza entendo as próprias leis ou regras da natureza segundo as quais todas as coisas são feitas, isto é, a própria potência da natureza, e por isso o direito natural de toda a natureza, e consequentemente de cada indivíduo, estende-se até onde se estende a sua potência. (TP II 3-4 p.12).

Direito de cada indivíduo significa, portanto, potência. E potência parcial na medida em que a potência total é a da realidade como um todo, da natureza como um todo, da substância (E IV ax, p. 269; TP II 3 p. 12). O que há no real é luta entre potências de coisas individuais que são modos finitos da e na natureza. Em suma, o direito natural em Espinosa significa, pois, uma só coisa, a qual pode ser vista de pelo menos dois pontos de vista. Direito da natureza inteira é sinônimo de Deus, ou seja, a natureza única: a potência considerada do ponto de vista da totalidade (TP II 3 p. 12). Por outro lado, da perspectiva individual, há o direito como intensidade parcial da potência da natureza total, seja de um homem como equilíbrio corporal e mental, seja como coisa coletiva que expressa uma potência coletiva (TP II 4 p. 12). E cada indivíduo é potência parcial porque intensidade parcial da potência da natureza. Daí Espinosa afirmar, como visto acima, que a potência das coisas naturais é “[...] a mesmíssima potência de Deus [...].” (TP II 3 p. 12). Deus, aqui, importa destacar, é conceito diverso do Deus da tradição judaico-cristã. (c) Direito e afetos219 O livro III da Ética é aquele em que Espinosa trata da origem e da natureza dos afetos. O autor conceitua afeto da seguinte maneira: “Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções.” (E III Def 3 p. 163).

219

Tratei desse tema no item (d) do Capítulo 1 e no item (a) do Capítulo 2. Retomo-o aqui, resumidamente, para dar encadeamento ao movimento argumentativo. 182

Logo a seguir, no postulado 1, afirma que “[...] o corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor.” (E III Post 1 p. 163). Na proposição 7 da mesma parte III da Ética, estabelece a noção de esforço como a essência das coisas - entre elas os indivíduos humanos. Em latim, conatus. Afirma: “O esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que sua essência atual [Conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur, nihil est praeter ipsius rei actualem essentiam].” (E III P 7 p. 175; G II 146). Este esforço da coisa em perseverar em seu ser é a potência dessa coisa, como fica claro na demonstração desta proposição, quando Espinosa identifica esforço e potência (E, III, P 7 Dem p.175). Tal esforço, quando se refere à mente e ao corpo, é chamado por Espinosa de apetite, que é tão somente a essência de cada homem, isto é, de cada coisa singular humana. Por fim, diz que entre apetite e desejo não há diferença, a não ser a de que o desejo é o apetite de que se tem consciência (E III P 9 Esc p. 177). No escólio da proposição 11 da parte III da Ética, Espinosa chama a atenção para a existência de apenas três afetos primários: o desejo, do qual se falou acima, que se identifica ao apetite e pode ser considerado a essência mesma de cada homem e, além do desejo, a alegria e a tristeza. Conatus (esforço para perseverar no ser), apetite, desejo, afetos: como se entrelaçam tais conceitos entre si e com o direito? O conatus, como define a Proposição 7 da parte III da Ética, acima citada, é a essência de cada coisa: é esforço para perseverar no ser. Isto ocorre na medida em que cada coisa é modo finito da potência infinita da substância. Daí que no Tratado Político o autor afirme que a potência das coisas naturais é a mesma de Deus, ou seja, é a potência da natureza (TP II 3-4 p.12). O apetite é este esforço quando considerado ao mesmo tempo em relação à mente e ao corpo. O desejo é o apetite junto da consciência que dele se tem (E III P 9 esc 177). O desejo é um afeto primário, assim como a alegria e a tristeza. Deles derivam todos os demais, numa inumerável variação.

183

Como Espinosa não pode considerar a mente sem o corpo e viceversa, visto se tratarem de modos da substância única, expressões finitas de dois de seus infinitos atributos - a extensão e o pensamento -, usará dois nomes para a mesma coisa. O afeto da alegria, quando referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo, é chamado de contentamento. O afeto da tristeza, por sua vez, quando referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo, é chamado de dor ou melancolia (E III P 9 esc 177). E o apetite é o esforço referido ao mesmo tempo à mente e ao corpo. Como os corpos se relacionam uns com os outros afetando-se uns aos outros, a todo momento a potência de agir de cada corpo aumenta ou diminui. O corpo, com efeito, é, para Espinosa, um equilíbrio, uma proporção (ratio) de movimento e repouso que procura se manter na dinâmica das relações com outros corpos (E II P 13 esc axiomas 1 e 2, Lemas 1, 2 e 3 p. 97-99). Um indivíduo que tem sua mente - por meio de um afeto que chega a seu corpo - afetada pela imagem de um corpo que lhe causa alegria, tem aumento de sua potência: tem aumento de seu apetite. Ao contrário, um indivíduo que tem sua mente afetada pela imagem de um corpo que lhe causa tristeza, tem diminuição de sua potência: tem diminuído seu apetite. Eis os afetos passivos, isto é, aqueles em relação aos quais o homem não tem qualquer ação, mas apenas padece. Entretanto, os afetos podem ser ativos quando a mente é causa adequada das afecções do corpo, ou seja, quando não recebe um afeto de um corpo externo - uma paixão -, mas gera uma ação ao ser causa adequada, em vez de causa parcial ou inadequada. Os afetos ativos são muito importantes. Ocorre que são raros. A ação, por meio de conhecimentos adequados do que é bom para o desejo, isto é, o agir de acordo com a razão, gerando afetos ativos, é pouco frequente. Escreve Espinosa: “Entretanto, é raro que os homens vivam sob a conduta da razão. Em vez disso, o que ocorre é que eles são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos.” (E IV P 34 cor II esc p.303). Caso se conduzissem pela razão, somente haveria acordo, pois é pela razão que os homens acordam em natureza (E IV P 35 p. 301). E conclui Espinosa no Tratado Político: [...] de tal modo que aqueles que se persuadem de poder induzir, quer a multidão, quer os que se confrontam nos assuntos públicos, a viver unicamente segundo o que a razão prescreve, sonham com o século dourado dos poetas, ou seja, com uma fábula. (TP I 5 p. 9).

184

Não que a razão influencie, diretamente, o campo afetivo. Um afeto somente pode ser contraposto por outro afeto, contrário e mais potente. É que o conhecimento verdadeiro do bom gera afetos alegres, os quais geram ações cuja causa é adequada. É o que estabelece a proposição seguinte: “O conhecimento do bem [bom] e do mal [mau] nada mais é do que o afeto de alegria ou de tristeza, à medida que dele estamos conscientes.” (E IV P 8 p.277)220. Ou seja, o conhecimento do bom (assim como o conhecimento do mau) é, simultaneamente, um afeto. Ou melhor: o conhecimento do que é bom ou do que é mau gera, simultaneamente, um afeto de alegria ou de tristeza. Assim, completará Espinosa na E IV P 14, o conhecimento verdadeiro do bom e do mau, apenas enquanto conhecimento, nada pode em face de um afeto, mas enquanto afeto, pela mesma P 8 (E IV P 8 p. 277), pode refrear outro afeto a ele contrário. A alegria advinda do conhecimento adequado pode se contrapor à tristeza advinda do conhecimento parcial. Daí o conhecimento ter um papel importante na orientação da boa conduta. No entanto, não enquanto puro conhecimento, mas enquanto afeto - o mais potente dos afetos, afirma Espinosa (E V P 7 Dem p. 377). Ora, como o esforço ou conatus é o apetite de cada indivíduo (esforço da mente e do corpo), um dos afetos originários, e este esforço é a potência mesma de cada um como manifestação parcial da potência da natureza inteira, este esforço é o direito natural de cada indivíduo. Aliás, como afirma o autor no excerto já citado do Tratado Político (TP II 3-4 p. 12), bem como em outros momentos da obra. Como ocorre então a manifestação desse direito como poder, desse direito natural, no mundo dos afetos entre indivíduos? Em outras palavras, como os afetos de alegria e de tristeza se apresentam na existência dos homens e o que têm a ver com o direito natural, com o poder de cada indivíduo? Quando uma coisa ou um indivíduo humano causa em outro indivíduo humano um afeto alegre, aumenta neste a potência, isto é, o conatus. Por outro lado, quando uma coisa ou um indivíduo humano causa em outro um afeto 220

Discorda desta tese C. Lazzeri, para quem o conhecimento do mau também gera, por ser conhecimento verdadeiro, um afeto alegre. Ver: LAZZERI, Christian. Droit, pouvoir et liberté: Spinoza critique de Hobbes. Paris: PUF, 1998, p. 52. Cito: "[...] o conhecimento do bem e do mal é sempre uma ideia da alegria ou da tristeza, mas se trata, nesse caso, de um 'conhecimento verdadeiro do bem e do mal' em que o afeto é uma consequência do julgamento verdadeiro." (p. 52 - tradução minha). 185

triste, diminui a potência deste, seu conatus. Ainda, toda vez que o homem tem um conhecimento adequado do que é bom para si, produz um afeto alegre, o qual é causa adequada de sua ação. Se o conatus é a própria essência atual de cada ser, vê-se que a maneira como os seres se relacionam, causando aumento ou diminuição de potência uns nos outros, mostra o exercício, em ato, do direito natural em cada indivíduo humano. Essa tensão entre conduzir-se pela razão e concordar (E IV P 35 p. 301), por um lado, e ser nocivo em face do semelhante (E IV P 35 Esc p. 303) - “[...] são, em sua maioria, invejosos e mutuamente nocivos.” -, por outro lado, não impede que, de alguma maneira, os homens tenham certeza, completa ou parcial, de que viver em sociedade aumenta sua potência em face dos perigos do mundo. É o que diz o final do citado escólio da P 35 da Ética IV: “Mas, apesar disso [de serem nocivos e invejosos], dificilmente podem levar uma vida solitária [...].” Essa via entre a conduta segundo a razão, que gera o afeto ativo e a causa adequada, mas que é, como visto, rara, e o afeto passivo alegre, que gera um aumento da potência mesmo na passividade, parece ser o caminho para a descoberta, completa ou parcial, da utilidade do homem ao homem. O que importa é ressaltar, sem grandes desenvolvimentos neste capítulo221, que o homem constata, de alguma maneira, que a vida em sociedade é mais humana e digna de ser vivida. Nela o direito natural como potência se manifesta com uma qualidade maior. Em outras palavras, alguém afetado de alegria pela imagem de outrem, ou sendo causa adequada geradora de alegria, tem mais direito na medida em que tem mais potência, maior apetite: tem seu esforço de perseverar no ser aumentado. O mesmo ocorre no sentido inverso: algo ou alguém que causa em outro diminuição de potência causa neste outro diminuição do direito natural. Este relacionamento de indivíduos humanos entre si e com as coisas do mundo é muito complexo. Daí que haja uma transição (da alegria à tristeza e viceversa) da potência dos indivíduos ao longo do tempo e, portanto, uma flutuação do direito natural de cada um. Importa dizer, também, que num estado de baixíssima socialidade e institucionalização de regras comuns, o direito natural tende a zero, é quase uma 221

Ver item (c) do capítulo 2 para o desdobramento deste tema. 186

abstração, visto que a luta bruta entre potências anula o exercício da potência de cada indivíduo. Por isso Espinosa afirma: Como, porém (pelo art. 9 deste cap.), no estado natural cada um está sob jurisdição de si próprio na medida em que pode precaver-se de modo a não ser oprimido por outro, e como um sozinho em vão se esforçaria por precaver-se de todos, segue-se que o direito natural do homem, enquanto é determinado pela potência de cada um e é de cada um, é nulo e consiste mais numa opinião que numa realidade, porquanto não há nenhuma garantia de o manter (TP II 15 p.19).

A questão passa a ser, pois, a de estabelecer uma situação tal entre os homens que possibilite - isto é, garanta - o exercício do afeto originário, a essência mesma de cada homem, seu conatus, sem que este seja mera abstração ou opinião. Portanto, trata-se de dar condições ao exercício do afeto originário da maneira a mais efetiva. E tal garantia será forjada pelos homens sem que o direito perca seu caráter ontológico, o que para Espinosa seria impossível. Como fazer valer o direito natural? Espinosa escreve no Político, como já escrevera na Ética: “Se dois se põem de acordo e juntam forças, juntos podem mais, e consequentemente têm mais direito sobre a natureza do que cada um deles sozinho; e quantos mais assim estreitarem relações, mais direito terão todos juntos.” (TP II 13 p.18). Mais à frente, conclui: E, assim, concluímos que o direito de natureza, que é próprio do gênero humano, dificilmente pode conceber-se a não ser onde os homens têm direitos comuns e podem, juntos, reivindicar para si terras que possam habitar e cultivar, fortificar-se, repelir toda a força e viver segundo o parecer comum de todos eles. Com efeito [...], quantos mais forem os que assim se põem de acordo, mais direito têm todos juntos. (TP II 15 p.19).

Mas como haver acordo se os homens são naturalmente desejantes e, dado que o desejo os move cada qual em uma direção, estão em conflito a todo momento?

(d) O corpo político, os afetos e a garantia da potência do direito natural O afeto medo (da morte bruta, da força do outro, etc.) pode ser contraposto pelo afeto esperança de uma vida de efetivo exercício da potência. Isto porque Espinosa mostra (pela experiência) e demonstra (geometricamente) que os afetos são contrapostos por afetos contrários e mais fortes, nunca pela razão (E III P 2 187

p. 167). Uma vez que constatam a importância do homem para o homem, de um mínimo acordo entre homens, fundado na esperança do exercício efetivo da potência, bem como na repulsa do afeto medo por esta esperança, tem-se o afeto esperança levando, ainda que apenas inicialmente, os homens à união em busca do objetivo comum: o exercício da potência individual. Para tal, instituem um direito comum. Mas esperança e medo formam um sistema afetivo precário, como se verá a seguir222. Esse direito comum poderá fazer da esperança um afeto mais constante, retirando-o de sua estrutura precária, de flutuação: da esperança pode-se chegar à segurança. Como isto ocorre? A alegria é um dos afetos originários. Sua definição está relacionada ao aumento da potência, ou seja, ao aumento da virtude, da perfeição ou do direito natural (E III Def 2 p.239). Ela não é a perfeição, mas a passagem a uma perfeição maior na medida mesma do aumento da potência da coisa, de seu conatus. A esperança e o medo estão interligados. Ambos são afetos instáveis e estão ligados à finitude humana223. Ou seja, porque não são capazes de conhecer toda a cadeia necessária do real, na medida em que são finitos, os seres humanos flutuam entre o medo e a esperança. De fato, a esperança, pela definição 12 dos afetos, “[...] é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida.” (III Def 12 p. 243). E o medo, definido logo a seguir, “[...] é uma tristeza instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida.” (E III Def 13 p. 243). A segurança será a esperança que se transmutou em função do afastamento da dúvida. O desespero será o medo que se modificou também em função do afastamento da dúvida. Na definição 14, escreve o autor: “A segurança é uma alegria surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, da qual foi afastada toda causa de dúvida.” (E III Def 14 p. 243). Portanto, o direito comum será construído em razão de um impulso afetivo. A esperança - afeto instável, que pode se transmutar em medo - de uma vida 222

Para o tema dos afetos medo-esperança e segurança-desespero, ver item (e) do capítulo 1, bem como item (b) do capítulo 2. Desenvolvo o tema, ainda que resumidamente em relação aos capítulos 1 e 2, para dar consistência ao fio argumentativo do objeto deste capítulo, a saber, a questão da pertinência do conceito de direito natural espinosano para o arejamento das discussões sobre o direito emancipatório em tempos contemporâneos. 223 CHAUI, M. Desejo, paixão e ação na Ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 173-191. 188

com mais previsibilidade leva os homens a criarem mecanismos que tragam o fim à dúvida sobre o futuro do exercício da potência. E tal esperança se transforma em segurança com o direito comum. O direito comum garante, numa medida maior do que na situação de ausência de direitos instituídos, a segurança quanto ao futuro, isto é, certa previsibilidade. O medo da punição pela lei, num primeiro momento, faz que o homem não haja simplesmente pelo impulso bruto do desejo. Este controle do impulso gera o afeto segurança, porque se espera que todos agirão de modo análogo em face da lei comum. O medo gerado na esfera civil toma o lugar do medo mais forte do momento da falta quase total de instituições - do medo presente no estado de natureza. E tal medo da esfera civil, próprio da cidade, o medo da punição em face da violação da lei, gera o afeto civil mais importante para a estabilidade da civitas: a segurança. Entretanto, é fundamental, segundo Espinosa, atentar para o fato de que este direito comum, constitutivo do imperium (do estado), não pode anular o direito natural de cada ser singular humano que vive sob e dá potência a este mesmo imperium. Ao invés, é ele, o direito comum, que deve possibilitar efetivamente o direito natural de cada membro do imperium. Sem tal direito comum, o direito natural, como afirma Espinosa no Tratado Político, é opinião, é abstração (TP II 15 p. 19). Dada a complexidade das relações entre os homens, isto é, sua flutuação da potência em face das relações de afeto, as regras comuns devem viabilizar a esperança - e ainda mais a segurança - de exercício da potência de cada homem. Portanto, esses afetos devem predominar em relação a todos os afetos que sentirão cada um dos homens uma vez instituído o direito comum. Desse modo, a segurança não pode vir à custa da anulação quase total da potência dos indivíduos. Ou seja, o exercício da potência dos membros da cidade deve ser real, não uma abstração, sob pena de o direito comum não cumprir sua função de possibilitar o exercício dos conatus individuais. Esta parece ser uma importante e difícil lição da filosofia política de Espinosa. Importante na medida em que mostra o direito comum como condição do 189

exercício mais efetivo do direito natural como conatus ou apetite, isto é, afeto originário. E este mesmo regramento comum é aquele que faz do exercício dos apetites individuais aumento da alegria de cada cidadão, o mais possível, na cidade, e não paz garantida ao preço de todo e qualquer afeto alegre. O afeto predominante deve ser a segurança, advinda da esperança, e não o desespero, advindo do medo. Espinosa escreve no Tratado Político que a obediência, com efeito (pelo parágrafo 19 do cap. II), é a vontade constante de executar aquilo que, pelo decreto comum da cidade, deve ser feito. Além disso, aquela cidade cuja paz depende da inércia dos súditos, os quais são conduzidos como ovelhas, para que aprendam só a servir, mais corretamente se pode dizer solidão do que uma cidade (TP V 4 p. 45).

Portanto, a decisão que leva ao conjunto de leis comuns pode vir a quase anular as potências dos indivíduos que compõem a cidade. Eis, por exemplo, o caso da tirania, fundada no afeto medo e difusora de tristeza na cidade. Em vez, nesse caso, de predominar a segurança para o exercício do conatus, predomina o desespero, advindo do medo difuso do outro, do tirano, de seus próximos, etc.. Daí se tem a decisão do soberano contra os súditos, isto é, tem-se a cidade - o corpo do imperium como violência travestida de direito224. De fato, um direito coletivo que praticamente capilariza na “cidade” o medo semelhante ao medo existente em estado de natureza explicita a solidão dos súditos deste corpo político e não traz a segurança como afeto alegre predominante. O que há, neste caso, é um aparato legal que, no momento mesmo em que diz garantir as potências individuais, as anula por completo. Trata-se de um aparato legal que põe o imperium contra os súditos em vez de garantir a segurança destes simultaneamente à garantia do exercício do direito natural de cada um. Mas se a cidade, cuja potência é a potência mesma de seus membros (da multitudo) (TP III 9 p. 30), impede que a potência dos súditos se exerça plenamente, é o caso de ela (a cidade) temer. Como escreve Espinosa no Tratado político: Há certamente coisas que a cidade deve ter medo, e da mesma forma que cada cidadão ou cada homem no estado natural, assim também a cidade está tanto menos sob jurisdição de si própria quanto maior é o motivo que tem para temer (TP III 9 p. 30-31).

224

Para a análise mais longa do tema da paz como fortaleza de ânimo em contraposição ao tema da paz como ausência de guerra (TP V 4 pp. 44-45), ver item (e) do Capítulo 2. 190

(e) Nem toda lei é direito ou O exercício do direito natural de cada homem como termômetro da qualidade do direito civil Pode-se concluir, a partir dos conceitos espinosanos, que - para dizer de modo sucinto - nem toda lei posta pela cidade é direito. Isto é, podem existir direitos positivos que, em vez da segurança, espalham o medo e geram a solidão. Outra importante tese é a de que o direito natural deixa de ser instância cuja operacionalidade se constata enfraquecida, em razão da positivação, inclusive de seus conteúdos, e passa a ser o critério do direito positivo mais útil aos conatus. Mais útil, isto é, o que garante, com a maior qualidade possível, o exercício dos conatus individuais como potências na cidade. O afeto segurança, e não o afeto medo, desdobrado em desespero, deve predominar na cidade. Pode-se levantar a tese, agora com mais elementos, de que o direito positivo somente é direito, espinosanamente falando, caso seja a potência coletiva da cidade, isto é, caso seja o direito natural coletivo. A dicotomia direito natural versus direito positivo225, assim, passa não apenas a ser, do ponto de vista de um direito entendido como potência, vazia de sentido, como o exercício efetivo do direito natural por parte dos cidadãos se apresenta como o ponto fundamental que justifica a existência da cidade226. Se a hipótese lançada por Tercio Sampaio Ferraz Junior como causa histórica para o enfraquecimento operacional do direito natural em face do direito

225

No vocabulário espinosano, o que aqui se está chamando, com alguma margem para imprecisões, de direito positivo, é o direito civil (jus civile), isto é, o conjunto de leis que a civitas dá a si mesma e a partir das quais define a ação dos seus membros como meritocrática ou digna de punição pelo direito da cidade. Ver, por exemplo, E IV P 37 Esc 2 pp. 309-311; G II 237-239. A proximidade conceitual entre as expressões direito positivo, direito civil e leis é um problema filosófico que não é objeto deste capítulo. Vale lembrar que Espinosa não usa a expressão direito positivo. Um dos intuitos do capítulo, entretanto, é o de explorar, com o repertório conceitual espinosano, a dicotomia direito natural versus direito positivo. Pelas lentes espinosanas, é possível apontar duas importantes hipóteses. Uma: a hipótese da pertinência do conceito de direito natural contemporaneamente, à revelia do que afirma boa parte dos autores da filosofia do direito dos séculos XX e XXI, como se viu no início deste capítulo. Outra: talvez a dicotomia seja ilusória, sendo o critério da potentia o mais adequado para medir o direito, mas de tal modo que a potência coletiva garanta o exercício da potência de cada homem na cidade. Em suma: interessa usar os conceitos espinosanos para mostrar a pertinência do conceito de direito natural como potência tanto para o indivíduo humano quanto para a civitas como corpo do imperium. 226 Agradeço a Luís César Guimarães Oliva pela questão que levou à confecção deste parágrafo e da nota anterior. A ideia presente no parágrafo (e na nota acima), seu erro ou acerto, entretanto, é de minha responsabilidade. 191

positivo estiver correta, talvez seja o caso de se repensar o papel emancipatório de certa concepção do direito natural no mundo contemporâneo, isto é, momento histórico da predominância do direito positivo como técnica de decisão. Afirma Tercio Sampaio como possível causa histórica para o fenômeno da positivação, como já indicado, de modo mais sintético, no início deste capítulo:

[...] na sociedade de consumo confere-se à força de trabalho o mesmo valor que se atribui às máquinas, aos instrumentos de produção. Com isso, se instaura uma nova mentalidade, a mentalidade da máquina eficaz, que primeiro uniformiza coisas e seres humanos, para depois desvalorizar tudo, transformando coisas e homens em bens de consumo, isto é, bens não destinados a permanecer, mas a serem consumidos e confundidos com o próprio sobreviver, numa escalada em velocidade, que bem se vê na rapidez com que tudo se supera, na chamada civilização da técnica. O que está em jogo aqui é a generalização da experiência da produção, na qual a utilidade para a sobrevivência é estabelecida como critério último, para a vida e para o mundo dos homens. [...] E no direito esta lógica da sociedade de consumo torna-o mero instrumento de atuação, de controle, de planejamento, tornando-se a ciência jurídica um verdadeiro saber tecnológico. O último estágio de uma sociedade de operários, de uma sociedade de consumo, que é a sociedade de detentores de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático, como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da espécie e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse por assim dizer deixar-se levar, abandonar a sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda sentidas individualmente, e aquiescer num tipo 227 funcional de conduta entorpecida e tranquilizante.

Assim, a virada do direito natural - no sentido espinosano - seria dupla. Primeiro, trata-se de entender este conceito não como um instrumento de operacionalidade enfraquecida em face do direito posto, mas como critério da qualidade do direito positivo. O direito positivo seria, na verdade, o direito natural coletivo, pois alimentado pela potência da multitudo (do povo livre, fonte da potência da lei positiva, instância que sustenta e dá potência ao poder soberano228). E cada homem na cidade teria seu direito natural (sua potência) garantido pelo direito positivo assim concebido. Em segundo lugar, o direito natural passaria a ser o ponto central da reflexão jurídica emancipatória. Se os corpos políticos contemporâneos trazem, em seu interior, indivíduos “[...] de conduta entorpecida e tranquilizante [...]”229, e se o direito de tais corpos políticos é técnica com vistas à decisão, nada mais 227

FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, pp. 109-110. 228 Sobre este ponto, ver itens (c) e (d) do Capítulo 2. 229 FERRAZ JUNIOR, T.S.. A trivialização dos direitos humanos. In: Revista Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 28, p. 99-115, OUT., 1990, p. 110. 192

jurídico que a potência que ainda resta nos corpos e nas mentes dos membros desses corpos políticos. E, outra face da mesma moeda, nada menos jurídico do que os direitos positivos instituídos que levam os “cidadãos” à violência da solidão. Pode-se afirmar, agora com mais elementos, que por meio da filosofia espinosana é possível resgatar a pertinência do direito natural como cunha a ser introduzida nas violências travestidas de direito positivo.

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CAPÍTULO 4 - ESPINOSA E O DIREITO CRÍTICO ou DA ATUALIDADE DE UM CLÁSSICO 230 (a) Constatações do direito crítico acerca do direito contemporâneo A dogmática jurídica231, por sua limitação estrutural, não é capaz de fazer diagnósticos precisos acerca do direito. Seu foco em questões sobre a arquitetura formal do direito - validade, vigência, completude do ordenamento jurídico, hierarquia normativa, etc. - não permite visão interdisciplinar e análises de horizonte amplo. De fato, segundo um dos representantes do direito crítico232, as razões para as limitações da dogmática jurídica podem ser constatadas pelos seguintes argumentos: Nas Constituições contemporâneas, como é sabido, essa proteção [ao valor social do trabalho, à busca de uma sociedade justa e solidária, às políticas públicas voltadas à erradicação da pobreza, etc., todos temas objeto de normas constitucionais] costuma ser inseparável de suas garantias. No entanto, se é certo que tais garantias são, conceitualmente, orientações programáticas e limitações normativas impostas à discricionariedade do poder público, em todas as suas instâncias e escalões, é igualmente correto que elas somente têm condições de se 230

Versão bastante resumida deste capítulo foi apresentada no 'X Colóquio Internacional Spinoza e as Américas', ocorrido de 18 a 22 de novembro de 2013, no Rio de Janeiro, e depois publicada em coletânea intitulada Spinoza e as Américas, VOL 1 (MONTANS BRAGA, Luiz Carlos. Espinosa e o direito crítico: aproximações. In: GRASSET, Baptiste Noel Auguste; FRAGOSO, Emanuel Angelo da Rocha; ITOKAZU, Ericka Marie; GUIMARÃES, Francisco de; ROCHA, Maurício. Spinosa e as Américas. (VOL. 1). Rio de Janeiro-Fortaleza: Ed. UECE, 2014, pp. 243-253). O objetivo, na ocasião, era o de debater alguns conceitos da pesquisa de doutoramento e mostrar como Espinosa poderia auxiliar em ao menos uma visão crítica do direito contemporâneo, a saber, a de José Eduardo Faria. 231 Proponho a seguinte abrangência ao conceito 'dogmática jurídica': lei, como vontade objetivada segundo um ritual previsto no próprio regramento legal; doutrina, como estudo dos especialistas acerca dos institutos e leis positivadas pelo Estado, jurisprudência ou julgados, como decisões tomadas a partir do direito posto para os casos concretos que chegam ao judiciário. José Eduardo Faria tem definição diversa, com certos pontos de semelhança, à acima proposta: "A dogmática jurídica é o resultado da convergência entre (a) a consolidação de um conceito moderno de ciência, voltado não tanto ao problema da verdade ou falsidade das conclusões do raciocínio científico, mas ao seu caráter sistemático e lógico-formal; (b) a identificação entre os conceitos de direito e lei positiva, num primeiro momento, e entre direitos e sistema conceitual de ciência, num segundo momento; (c) a separação entre teoria e práxis e a consequente afirmação de um modelo de saber jurídico como atividade prioritariamente teórica, avalorativa e descritiva; (d) a ênfase à segurança jurídica como sinônimo de certeza de uma razão abstrata e geral, resultante de um Estado soberano, com a subsequente transposição da problemática científica aos temas da coerência e completude da lei em si mesma." Citação em: FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 43, nota de rodapé 23. Para uma análise das limitações da dogmática jurídica, ver: FARIA, José Eduardo. Paradigma Jurídico e Senso Comum: Para uma Crítica da Dogmática Jurídica. In: LYRA, Dereodó Araujo (org.). Desordem e Processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, pp. 39-64. 232 Refiro-me a José Eduardo Faria, com quem procurarei realizar um diálogo, usando os conceitos espinosanos, na sequência do texto. Para uma visão introdutória e panorâmica do tema do direito crítico, consultar: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002. 194

tornarem efetivas por intermédio desse mesmo poder. [...] [como tais garantias não são efetivadas via políticas públicas do poder executivo, ocorre o que segue] Não é por acaso que, nas sociedades não tipicamente tradicionais e fracamente integradas, sujeitas a fortes discriminações sócio-econômicas e político culturais, como a brasileira, muitas declarações programáticas em favor dos direitos humanos e sociais, nos textos constitucionais, acabam tendo apenas uma função tópica, retórica e ideológica. [...] Preparado somente para lidar com questões rotineiras e triviais, nos planos cível, comercial, penal, trabalhista, tributário e administrativo, por tratar o sistema jurídico com um rigor lógico-formal tão intenso que inibe os magistrados de adotar soluções fundadas em critérios de racionalidade substantiva, o Judiciário se revela tradicionalmente hesitante diante das situações não rotineiras; [...] É aí, justamente, que se percebe como os direitos humanos e sociais, apesar de cantados em prosa e verso pelos defensores dos paradigmas jurídicos de natureza normativista e formalista, nem sempre são tornados efetivos por uma justiça burocraticamente inepta, administrativa e processualmente superada; uma Justiça ineficiente diante dos novos tipos de conflito. [...] É aí, igualmente, que se constata o enorme fosso entre os problemas 233 sócio-econômicos e as leis em vigor .

Em outro estudo do mesmo autor, o diagnóstico de limite e exaustão do paradigma jurídico vigente é exposto nos seguintes termos: "[...] o direito e o pensamento jurídico, [...], encontram-se próximos de uma exaustão paradigmática."234 E na sequência o autor desdobra a tese com o raciocínio seguinte: Dada a impressionante rapidez com que muitos dos conceitos e categorias fundamentais até agora prevalecentes na teoria jurídica vão sendo esvaziados e problematizados pelo fenômeno da globalização, seus códigos interpretativos, seus modelos analíticos e seus esquemas cognitivos revelam-se cada vez mais carentes 235 de operacionalidade e funcionalidade.

O primeiro excerto, mesmo ao tratar mais especificamente dos desdobramentos do formalismo jurídico - de certo modo de compreensão e prática do direito - para o campo da relação entre eficácia e direitos humanos (inclusos os direitos sociais), aponta para um ponto que também é de interesse ao presente capítulo, a saber, o das limitações do entendimento do jurídico como atrelado à dogmática jurídica. O segundo e terceiro excertos mostram que tal exaustão de paradigma, que traz ao centro das discussões a ineficácia dos direitos humanos e sociais previstos em normas positivadas, se estende a todas as áreas do direito. De fato, o paradigma do formalismo jurídico estreita a compreensão do direito, pois o apreende em dimensão diminuta em relação à sua área de ocupação efetiva. Em 233

FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 97-99. 234 FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39. 235 Ibid. p. 39. 195

outros termos, o direito é mais amplo, conceitualmente, do que as definições e temas propostos pelo formalismo jurídico. Por conseguinte, o direito assim conceituado oculta partes importantes do fenômeno jurídico. Tais partes deslocadas ou não explicitadas pelo formalismo jurídico, penso, têm importância para uma compreensão emancipatória do fenômeno jurídico. Na mesma chave de crítica às limitações do formalismo jurídico, bem como da crise de paradigma da dogmática jurídica, se posiciona Boaventura de Sousa Santos, ao apontar que O direito estatal desorganiza-se, ao ser obrigado a coexistir com o direito nãooficial dos múltiplos legisladores não-estatais de facto, os quais, por força do poder político que detêm, transformam a facticidade em norma, competindo com o 236 Estado pelo monopólio da violência e do direito.

O conceito de direito espinosano parece ser uma chave relevante para que esses terrenos menos explorados venham a fazer parte de uma conceituação mais ampla e libertária do direito, a ser considerada para a elaboração da institucionalidade jurídica da cidade. O que intento destacar com as considerações acima é a necessidade de se recorrer às pesquisas de outras áreas do saber para que uma análise acerca da crise do direito possa ser devidamente encaminhada. Isto somente ocorre uma vez que a dogmática jurídica e o formalismo jurídico não são capazes de lançar luz nos

236

SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 65. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 03-76, p. 13. Disponível em: http://rccs.revues.org/1180. Acesso: 12 MAR 2015. Vejo como muito bem construídos os argumentos do autor para constatar a crise do direito como direito positivado pelo Estado e as exclusões de vastas camadas de pessoas - de uma vida digna, da cidadania, da cultura, etc. - advindas de fascismos como o do capital financeiro (o termo 'fascismo financeiro' é do autor - Ibid. p. 23). Vejo, entretanto, como ingênuas as constatações do final do referido artigo. Por exemplo, ao afirmar que há o "Estado como movimento social" (p. 64) quando se constata a prática do orçamento participativo. O exemplo citado pelo autor é o de Porto Alegre. Boaventura afirma ainda que tal experiência estaria se espalhando para as esferas regional e nacional. Não foi o que ocorreu (o artigo é de 2003). Em suma, discordo do autor no que se refere à existência, segundo ele, "[...] hoje em dia, por todo o mundo, [de] um sem número de exemplos concretos de experiências políticas de redistribuição democrática dos recursos resultante da democracia participativa ou de um misto de democracia participativa e representativa." (Ibid. p. 66). Vejo, em vez disso, movimentos coletivos de revolta ou reivindicatórios que, espinosanamente, chamaria de direito natural coletivo em exercício. O que é diferente de constatar "[...] exemplos concretos de experiências políticas de redistribuição democrática dos recursos resultante da democracia participativa[...]" (Ibid. p. 66). Em uma palavra, concordo com o diagnóstico, mas não com as projeções que o autor faz a partir daí. 196

problemas jurídicos contemporâneos - afinal, sua compreensão do conceito de direito é demasiado estreita. Não casualmente, portanto, a vertente crítica do direito acima citada, em contraposição ao formalismo jurídico, toma a dianteira explicativa quando o tema é a crise jurídica contemporânea. Tal vertente faz uso de um leque de áreas do saber que extrapolam as paredes fechadas da dogmática jurídica. E não poderia ser diferente, pois sem este salto de muros nada poderia ser visto. Isto é, um Estado penal ou um Estado que investe em políticas públicas, para análises a partir da dogmática jurídica, seriam semelhantes do ponto de vista jurídico. Isto ocorre na medida em que o objeto de análise principal, para um estudo do direito como expressão da legalidade, é a validade dos sistemas jurídicos de cada um desses Estados, entre outros temas correlatos. Dentre as várias expressões do direito crítico237, recorro, para ensaiar um aprofundamento de suas teses por meio dos conceitos espinosanos, a um de seus representantes, a saber, José Eduardo Faria. E o faço por duas razões. Primeiro, pelo fato de que há grande originalidade e potência explicativa nas teses de Faria acerca do direito, sobretudo em sua crítica ao formalismo, declarando-o paradigma em fase de superação238, como afirmado acima. Faço-o, em segundo lugar, em razão de enxergar em Espinosa e em seus conceitos jurídicos e políticos grande capacidade de dar mais vivacidade e poder explicativo ao campo do direito crítico, e principalmente porque Faria não o cita e não faz uso do rol conceitual espinosano. Esta vertente do direito crítico, ora apontada, envereda-se pela sociologia do direito preponderantemente, mas faz uso, também, da economia, da filosofia e da teoria do direito. Aprofundo, a seguir, alguns temas de destaque desta versão do direito crítico, os quais podem ser adensados pelos conceitos espinosanos - ponto que tratarei após a análise das teses de Faria para o campo dos direitos humanos e sociais.

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Para visão panorâmica do tema, ver, como citado em nota anterior: WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2002. 238 Conferir: FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 39-51. 197

Em um capítulo intitulado ‘As Novas Formas e Funções do Direito: Nove Tendências’, o qual compõe o livro ‘Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura’239, o autor trata, entre outros temas, da questão dos direitos sociais e dos direitos humanos, bem como do fortalecimento do Estado penal. Tais temas são desenvolvidos em duas das chamadas nove tendências do direito contemporâneo. Sobre a situação dos direitos sociais e dos direitos humanos, o diagnóstico não é de avanço, mas de retrocesso. Escreve o autor: A oitava tendência é de aumento no ritmo de regressão tanto dos direitos sociais quanto dos direitos humanos consagrados ou tutelados pelo direito positivo. [...] uma vez que o 'enxugamento' do Estado-nação e a retração da esfera pública reduzem sua cobertura legal e judicial, o alcance jurídicopositivo dos direitos humanos acaba sendo igualmente diminuído, o que implica [...] uma redução ou um rebaixamento qualitativo da própria cidadania. [...] O mesmo acontece com os direitos sociais, cuja eficácia depende de orçamento em volume suficiente para financiar as políticas públicas necessárias à sua implementação. [...] Os princípios básicos e os padrões morais inerentes aos direitos humanos e aos direitos sociais - como a dignidade, a igualdade, a solidariedade e a inclusão econômica [...] estão levando a pior na colisão frontal com os imperativos categóricos da 240 economia globalizada [...].

239

FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura. Série GVlaw. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. 240 Ibid. pp. 104-105. O autor trabalha, de modo mais aprofundado, a questão da diminuição do poder do Estado quanto à implementação de políticas públicas para efetivação dos direitos sociais, apontando causas econômico-financeiras para tal fato, em: FARIA, José Eduardo. Poucas certezas e muitas dúvidas: o direito depois da crise financeira. In: Revista Direito GV. Nº 10. São Paulo: JUL DEZ 2009, pp. 297-324. Disponível em: http://direitosp.fgv.br/publicacoes/revista/edicao/revista-direito-gv-10. Acesso em 14 MAR 2015. Afirma o autor acerca desse tema: "Até o final do século 20, especialmente no período dos governos social democratas do pós-guerra, das políticas keynesianas de pleno emprego e das Constituições-dirigentes que se seguiram aos períodos autoritários, o poder político se impunha de modo incontrastável sobre os capitais financeiros. Na passagem do século 20 para o século 21, com a desterritorialização dos mercados, o advento dos grandes conglomerados e a unificação do espaço econômico mundial, o Estado nacional perdeu parte de sua força como instância de mediação política e regulamentação, parte de seu papel como mecanismo de determinação de rumos coletivos. Com isso, justamente num momento em que os valores democráticos alcançam um prestígio inédito na história, as condições de sua efetivação paradoxalmente parecem exaurir-se. Quanto mais as decisões econômicas se internacionalizam e quanto maior é a interconexão dos mercados financeiros e a integração dos mercados de bens e serviços em escala global, menor tende a ser o alcance das decisões democráticas sobre elas. Quanto mais as empresas conseguem reinstalar-se em cidades, estados, países e continentes onde podem obter vantagens comparativas, em termos de níveis salariais e carga tributária, menor tende a ser a força do Estado para promover justiça social por vias fiscais, por exemplo." (pp. 304-305).

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No que se refere à metamorfose do Estado, passando de um Estado que investe em políticas públicas a um Estado penal, o autor afirma, ao tratar da nona tendência: A nona e última tendência é de prevalecimento do primado Lei e Ordem no âmbito do direito penal, seja por meio de uma crescente criminalização das condutas [...], seja por meio de uma pertinaz campanha de desqualificação de propostas alternativas. [...] Essa tendência tem sido alimentada, [...], pela deterioração difusa do tecido social, pela criminalidade de massa, pela violência urbana, pela multiplicação dos espaços onde a autoridade estatal 241 enfrenta dificuldades para se impor de modo efetivo

Conclui o autor que a política de ênfase na eficiência punitivorepressiva encerra o risco de "[...] criminalizar sumariamente os marginalizados, do ponto de vista socioeconômico, sem qualquer objetivo mais consistente de disciplina, de recuperação e de ressocialização no âmbito especificamente penal."

242

E conclui,

no mesmo sentido, que "[...] enquanto nos demais ramos do direito positivo vive-se uma fase de desregulamentação, deslegalização e desconstitucionalização, no âmbito do direito penal verifica-se justamente o inverso." 243 A chave da análise de José Eduardo Faria, como a dos demais autores citados em notas de pé de página é, eminentemente, sociológica, tomando o direito como objeto (sociologia jurídica), mas com lastro também na economia e na filosofia 241

Ibid. p. 107. Para o tema da criminalização das condutas e da ascensão do Estado Penal, ver: WACQUANT, Loïc. L'ascension de l'État pénal en Amérique. In: Actes de la recherche en sciences sociales. De l’État social à l’État pénal. Vol. 124, 1998, pp. 7-26. Disponível em http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1998_num_124_1_3261. Acesso em 12 MAR 2015. O autor trata do tema também em: WACQUANT, Loïc. Les prisons de la misère. Paris: Raison D’agir, 1999. Com diagnóstico semelhante ao de José Eduardo Faria quanto ao tema das clivagens presentes nas cidades, afirma Boaventura de Sousa Santos: "Existem, a meu ver, quatro formas principais de fascismo social. A primeira é o fascismo do apartheid social. Quero com isto significar a segregação social dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas selvagens são as zonas do estado natural hobbesiano. As zonas civilizadas são as zonas do contrato social, encontrando-se sob a ameaça permanente das zonas selvagens. Para se defenderem, as zonas civilizadas transformam-se em castelos neofeudais, enclaves fortificados característicos das novas formas de segregação urbana – cidades privadas, condomínios fechados, comunidades muradas.[...] No que ao Estado diz respeito, a divisão consubstancia-se num duplo padrão da acção estatal nas zonas selvagens e civilizadas. Nas zonas civilizadas, o Estado actua de forma democrática, comportando-se como um Estado protector, ainda que muitas vezes ineficaz e não fiável. Nas zonas selvagens, ele actua de uma forma fascizante, comportando-se como um Estado predador, sem a menor consideração, nem sequer na aparência, pelo Estado de direito." (p. 21). Cito a partir de: SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? In: Revista Crítica de Ciências Sociais. nº 65. Coimbra: Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, 2003, pp. 03-76, p. 21. Disponível em: http://rccs.revues.org/1180. Acesso: 12 MAR 2015. 242 Ibid. p. 110. 243 Ibid. p. 111. 199

do direito. Trata-se, em suma, de análises interdisciplinares. O que pretendo a seguir é somar a este diagnóstico alguns apontamentos espinosanos sobre a cidade (civitas) e sobre o direito. Isto é, pretendo mostrar como as concepções espinosanas apontam para a deterioração do corpo da cidade (civitas) no momento em que as leis da cidade, por não extraírem da multitudo seu direito, passam a não possuir potência. Ou seja, as leis deixam de ser, em alguma medida, direito, pois potentia sive jus (TP II 4 p. 12). Em uma palavra, gostaria de tratar da crise do direito como lei levando em conta o momento em que a lei da cidade não considera a fonte físico-ontológica do seu direito, isto é, a potência do povo livre ou multitudo244. E, corolário daí advindo, o direito, que não mais está nas leis da cidade, passa a estar em outras instâncias do corpo político, algumas delas ameaçando sua deterioração. Os conceitos espinosanos, desse modo, se mostrarão capazes de trazer à discussão contemporânea sobre a crise do direito - tema apontado pela vertente do direito crítico acima esboçada - novos elementos. Não apenas por se poder, pela via espinosana, recuperar o velho tema do direito natural, com novas roupagens e enorme pertinência, como procurei mostrar no capítulo 3, mas também por outro motivo. Por meio dos conceitos espinosanos de multidão e permanência do direito natural no interior mesmo da civitas, como afirma Espinosa na Carta 50 (Ep. 50 p.398), o campo jurídico pode ser compreendido de maneira alargada, infiltrando no debate conceitos apagados ou deslocados pelo formalismo jurídico. Nesse sentido, por expandir o conceito de lei, por exemplo, dando-lhe ares de potência (a lei da cidade tem fundamento ontológico), a filosofia espinosana pode ser uma das melhores referências para o direito de resistência em face do formalismo vazio que violenta os membros da cidade no momento mesmo em que se apresenta travestido de expressão de interesses da coletividade. Os conceitos espinosanos podem iluminar ainda mais o que o direito crítico é capaz de apontar como pontos de crise do direito. E podem dar mais força a concepções emancipatórias de direito.

244

Para a problematização do conceito de multitudo livre ou serva, ver, entre outros artigos do mesmo livro: ZOURABICHVILI, François. L’énigme de la ‘multitude libre’. In: JAQUET, Chantal; SÉVÉRAC, Pascal, SUHAMY, Ariel (org.). La Multitude Libre: Nouvelles Lectures du Traité politique de Spinoza. Paris: ed. Éditions Amsterdan, 2008, pp. 69-80. Trato do conceito de multidão no item (c) do Capítulo 2. 200

(b) A cidade, o direito civil e o poder do súdito-cidadão Na Ética IV, Espinosa afirma sobre a cidade, as leis e a justiça: Para que os homens, portanto, vivam em concórdia e possam ajudar-se mutuamente, é preciso que façam concessões [cedant] relativamente a seu direito natural e deem-se garantias recíprocas de que nada farão que possa redundar em prejuízo alheio. [...]. Mais especificamente, é porque nenhum afeto pode ser refreado a não ser por um afeto mais forte e contrário ao afeto a ser refreado, e porque cada um se abstém de causar prejuízo a outro por medo de um prejuízo maior. É, pois, com base nessa lei que se poderá estabelecer uma sociedade, sob a condição de que esta avoque para si própria o direito que cada um tem de se vingar e de julgar sobre o bem e o mal. E que ela tenha, portanto, o poder de prescrever uma norma de vida comum [communem vivendi rationem] e de elaborar leis, fazendo-as cumprir não pela razão, que não pode refrear os afetos [...], mas por ameaças. Uma tal sociedade, baseada nas leis e no poder de se conservar, chama-se cidade [civitas appellatur] e aqueles que são protegidos pelos direitos dessa sociedade chamam-se cidadãos [cives]. [...] no estado natural [statu naturali], não há nada que se faça que se possa chamar justo ou injusto. Isso é possível, entretanto, no estado civil, no qual se decide, por consenso [communi consensu decernitur], o que é deste ou daquele. (E IV P 37 Esc 2 p. 311; G II 237-238).

É por meio da lei segundo a qual o útil é, entre dois bens, o maior, e entre dois males, o menor, que se funda a cidade245. Não é pela razão, mas pelos afetos, que a socialidade da cidade se funda e se mantém. Tudo se passa como em um campo físico-ontológico de forças no qual o direito da cidade deve superar o direito dos cidadãos para que estes, paradoxalmente, tenham direito a algo. De fato, as potências dos homens - seu direito natural -, em estado de natureza, são opiniões (TP II 15 p. 19). É preciso que a cidade, por meio de sua potência coletiva, isto é, do direito civil, das leis que ela dá a si mesma, garanta a potência ou direito natural de cada um de seus constituintes por meio, como diz o texto da Ética, de “ameaças”. Espinosa pode afirmar então, como no excerto acima, que a cidade é esta tal sociedade “[...] baseada nas leis e no poder de se conservar [...]”. E concluirá que o justo e o injusto, que não existem no estado de natureza, só são conceitos concebíveis na cidade e aferíveis por meio das leis que esta se dá “[...] por consenso [...] [communi consensu decernitur]” e que dizem “[...] o que é deste ou daquele [quid huius quidve illius sit]." (E IV P 37 Esc 2 p. 311; G II 237-238).

245

Sobre este tema, ver itens (a), (b) e (c) do capítulo 2. 201

As expressões “poder de se conservar [potestate sese conservandi]”, “leis [legibus]”, “justo ou injusto [iustum et iniustum]” e “por consenso [communi consensu]” são fundamentais para compreender que o critério do justo na cidade é a lei, mas não qualquer lei. Tais leis, pelo espírito do texto da Ética, devem ser aquelas definidas pela expressão communi consensu, ou, traduzindo literalmente e realçando a redundância que a língua portuguesa traz: consenso comum. O texto parece apontar para a importante constatação de que as leis que não venham do communi consensu não têm potência e podem impedir que a razão pela qual a cidade foi criada, a saber, a preservação do direito natural dos cidadãos, continue a existir246. Leis sem potência podem levar a cidade à destruição. Tais leis - de uma tirania, por exemplo (a Turca é citada em TP VI 4 p. 49) -, quando se afastam da potência da multitudo, passam a não ser direito por não possuírem o que define o direito, isto é, por não possuírem potência. Por isso Espinosa escreve, no Tratado político, que: deve-se ter em conta que pertence menos ao direito da cidade aquilo que provoca a indignação da maioria. [...] E uma vez que o direito da cidade se define pela potência comum da multidão, é certo que a potência e o direito da cidade diminuem na medida em que ela própria ofereça motivos para que vários conspirem. Há certamente coisas de que a cidade deve ter medo (TP III 9 p. 30).

Não por acaso no imperium monárquico descrito no Tratado político o rei não expressa sua vontade sozinho. Ninguém sozinho tem potência suficiente para governar muitos (TP VI 5 p. 49). Ele apenas explicita a decisão do amplo Conselho (TP VI 15 p. 53; VI 17 pp. 54-55). E é importante lembrar que, para Espinosa, o imperium monárquico somente será estável se for determinado pela potência da multitudo. De fato, os fundamentos do estado monárquico puro, descrito nos capítulos VI e VII do Tratado Político, seguem uma única regra, segundo Espinosa: “[...] que a potência do rei seja determinada somente pela potência da [...] multidão e mantida sob a guarda desta.” (TP VII 31 p. 85). E também não é casual que no imperium monárquico os cidadãos tenham armas e formem o exército (TP VI 10 p. 51). Para o equilíbrio de potências esta instituição (cidadãos armados) é fundamental.

246

Acerca deste tema, ver item (d) do capítulo 2. 202

Em uma palavra, para Espinosa, a cidade (civitas), isto é, o corpo inteiro do estado (imperium) (TP III 1 p. 25), tem o poder de dar a si suas leis e de se conservar desde que tais leis, que definem o que é deste e daquele, sejam alimentadas pela potência da multitudo. Sem potência a lei é, tal qual o direito de cada um em estado de natureza, mera opinião (TP VII 2 p. 64). A potência da multidão, por meio da imitação dos afetos, como mostrei com mais cores no item (c) do capítulo 2, é o conceito espinosano que explica a fundação e a manutenção da cidade. Quando a cidade perde a potência que advém da multidão, por meio de atos do poder soberano que causam o afeto indignação nos súditos, como expliquei no item (f) do capítulo 1, ela perde sua constituição de civitas. O afeto indignação, quando sentido por grande parte dos membros do corpo político, por meio da imitatio afetiva, é índice de desnaturação daquela forma específica de corpo político. Trata-se do suicídio da cidade. As leis, nesse caso, podem não ter o caráter de direito, uma vez que sua potência se esvazia com a perda do fundamento de sua existência. Isto é, a potência da multidão, que outrora estava a sustentar a força da cidade, se canaliza para sua destruição. Tal rol conceitual - direito como potência, imitação dos afetos, multitudo, lei de natureza do bem maior e do mal menor, direito do poder soberano como potência, etc. - pode ser boa lente para potenciar as análises do direito crítico. É o que procurarei fazer a seguir, ainda que em forma de apontamentos, uma vez que esse tema demandaria aprofundamentos maiores, os quais podem vir a ser objeto de pesquisas futuras.

(c) Espinosa e as análises do direito crítico Analisei no item (a) deste capítulo algumas teses de uma das vertentes do direito crítico, a qual funda seus argumentos em especial no aparato teórico da sociologia jurídica. Por sua visão exterior à dogmática jurídica, tal lente teórica é capaz de captar a exaustão do formalismo jurídico, isto é, sua perda de funcionalidade. Com efeito, o autor analisado afirma que "[...] o direito e o

203

pensamento jurídico, [...], encontram-se próximos de uma exaustão paradigmática" 247 e constata, no mesmo sentido da exaustão paradigmática, "[...] o enorme fosso entre os problemas sócio-econômicos e as leis em vigor." 248 No que se refere à esfera dos direitos humanos e sociais, tema que interessa de perto às discussões do direito emancipatório, as constatações não poderiam ser mais claras e menos animadoras. Há, como analisado, regressão quanto à eficácia dos direitos humanos e sociais, principalmente em se tratando de países, como é o caso do Brasil, com sociedades pouco integradas, com fortes discriminações sócio-econômicas, culturais e políticas

249

. Os dispositivos legais que tratam desses

temas, de acordo com as análises do direito crítico indicadas, passam a ter "[...] uma função tópica, retórica e ideológica." 250 Ponto que decorre da mesma crise do direito e da exaustão paradigmática é, simultaneamente à regressão quanto aos direitos humanos e sociais, o aumento da presença do Estado penal e, corolário, o aumento do número de tipos penais e da força e eficácia do Estado na área penal-punitiva, em contraposição ao Estado de bem estar social. É o que afirma Faria em outro texto, citado no item (a), indicando a nona tendência do direito contemporâneo, havendo, assim, o primado da lei e ordem, com a desqualificação de propostas alternativas, tendência que tem sido alimentada "[...] pela deterioração difusa do tecido social, pela criminalidade de massa, pela violência urbana, pela multiplicação dos espaços onde a autoridade estatal enfrenta dificuldades para se impor de modo efetivo." 251 Desse modo, se as análises do direito crítico, na vertente esboçada nesta tese, acerca dos direitos sociais, dos direitos humanos e do direito penal têm consistência, havendo uma regressão quanto aos primeiros (direitos humanos e sociais) e um aumento do poder do segundo (direito penal), Espinosa pode ser uma

247

FARIA, José Eduardo. O Direito na Economia Globalizada. 1ª edição, 3ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 39. 248 FARIA, José Eduardo. Direitos humanos, direitos sociais e justiça. 1ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 99. 249 Ibid., p. 98. 250 Ibid., p. 98. 251 FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: Direito e Conjuntura. Série GVlaw. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 107. 204

chave interpretativa do direito contemporâneo que se soma às análises de corte sociológico-jurídico. Para Espinosa, de fato, como analisado no correr da tese, a civitas deve ser o lugar de predominância de afetos alegres. Do contrário, a cidade não atende às razões pelas quais foi criada, e se apresenta como solidão (TP V 4 pp. 44-45) ou, se não levar em conta as leis naturais, não será cidade, mas quimera [chimaera G III 293] (TP IV 4 p. 38). Mais precisamente, de acordo com as teses espinosanas analisadas nos itens (a), (b), (c) e (d) do capítulo 2, a fundação e manutenção do campo político são o resultado afetivo da lei natural segundo a qual entre dois males se escolhe o menor e entre dois bens o maior. Esta lei, firmemente inscrita na natureza de cada homem (TTP XVI p. 237), faz que eles "transfiram", pela esperança do bem maior, seu direito natural ao poder soberano. Tal "transferência" não é um ato de cálculo racional e não é, a rigor, uma alienação completa. Há, na busca da securitas afeto alegre decorrente da cessação da dúvida quanto à esperança -, um jogo de potências entre os membros (súditos-cidadãos) da cidade e os responsáveis pela confecção, interpretação e aplicação da lei civil, ou seja, o poder soberano ou aqueles que detêm a incumbência da república (TP II 17 p. 20). Entretanto, como a instância de sustentação do soberano é a multitudo, "[...] onde se articulam, por um lado, a multiplicidade de desejos ou receios, por outro, a potência comum que se afirma em resultado da sua insustentável dispersão"

252

, o soberano tem limites ao exercício da

sua potência. Caso extrapole tais limites, o afeto indignação, como analisei no item (f) do capítulo 1, pelo mecanismo da imitatio afetiva, ao ser capilarizado nos membros da multidão - como que por uma só mente é o mecanismo que dá vida à multitudo -, pode desnaturar aquela específica configuração ou estruturação do corpo político por meio do jogo de potências e de afetos entre multidão e soberano. Por essa razão, como analisado no item (d) do capítulo 2, os membros do poder soberano, ou seja, aqueles que detêm a incumbência da república (TP II 17 p. 20), que fazem, interpretam e aplicam a lei, não têm direito - ou seja, potência - de "[...] fazer com que os homens voem [...]" e "[...] que olhem como honroso o que provoca riso ou náusea [...]" (TP IV 4 p. 39). Pois, como conclui Espinosa, "Assassinar e espoliar súditos [...] e coisas 252

AURÉLIO, Diogo Pires. Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: edições Colibri, 2000, p. 275. 205

semelhantes convertem o medo em indignação e, por consequência, convertem o estado civil [statum civilem - G III 293] em estado de hostilidade [statum hostilitatis - G III 293]." (TP IV 4 p. 39). O parágrafo acima objetivou recuperar, em breves palavras, a discussão presente de modo desdobrado em praticamente todo o capítulo 2. Tal olhar em panorama sobre a discussão mais longa do capítulo 2 tem por objetivo trazer, num lance, os principais conceitos espinosanos que podem ser somados às análises do direito crítico indicadas no item (a) deste capítulo253. De fato, como já afirmado, penso que Espinosa traz elementos novos à discussão proposta pelo direito crítico, mostrando, pelo mecanismo afetivo, como a lei civil ganha ou perde potência, e como a cidade se torna, nessa medida, lugar da fortaleza do ânimo ou da solidão (TP V 4 pp. 44-45), sendo que neste último caso deixa de ser civitas. Esta é uma lição chave da filosofia política de Espinosa ao direito crítico. É o ponto conceitual em que as teses espinosanas podem trazer ao direito crítico, ao menos em sua versão esboçada neste capítulo, contribuições quanto a dois pontos. Primeiro, quanto ao alargamento do conceito de direito e a pertinência do 253

Outra importante vertente do direito crítico, a de Roberto Lyra Filho, poderia ter sido trazida à discussão neste capítulo. Optou-se pela de José Eduardo Faria, ficando a análise da contribuição de Lyra Filho para outra ocasião. Mas um ponto que pode ser desdobrado em outro trabalho, e que tem relação com os argumentos do item (c) do presente capítulo, está presente em artigo de Marilena Chaui sobre Roberto Lyra Filho, e mais especificamente sobre seu ensaio clássico O que é Direito (LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 2003 [1982 -1ª ed.]). Trata-se do tema jurídico-político para o qual, a meu ver, como procuro mostrar neste item (c), Espinosa poderia ser de grande valia a várias vertentes do direito crítico. Segundo Chaui, Roberto Lyra Filho teria sido inovador, entre outros motivos, pela seguinte razão - e eis o valor de Espinosa ao qual me referi acima: "Ora, se considerarmos que uma formação social concreta exprime para si mesma sua constituição política no momento em que determina o justo e o injusto segundo a lei, notaremos porque a diferença entre jus e lex é necessária, pois a definição do justo determinará a qualidade e natureza das leis. Isto significa, contra o positivismo, que a ordem estabelecida não é ponto de partida, mas o resultado de um processo que depende de quem, na sociedade, definiu o justo a partir do qual será feita a lei. Mas significa também, contra o iusnaturalismo, que a definição do justo não é natural, mas social e histórica." p. 19. Cito a partir de: CHAUI, Marilena. Roberto Lyra Filho ou Da Dignidade Política do Direito. In: LYRA, Dereodó Araujo (org.). Desordem e Processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986, pp. 17-27. A meu ver, os conceitos espinosanos de imitatio afetiva, mutitudo, justo, lei, direito como potência, etc., podem ser úteis para esta discussão. Ou seja, para um conceito de direito que não se fixe nem nas amarras de um justo natural metafísico, nem na identificação do direito a qualquer lei. Esta tese está na mesma linha de Marilena Chaui ao tratar do conceito de direito natural espinosano e de sua relação com as formas de regime político, no artigo citado (Ibid. p. 23), no sentido de apresentar tais conceitos como próximos ao que Lyra Filho propõe em sua definição de direito. O que se soma a esta tese de Chaui, apresentada no artigo, é o uso dos conceitos de multitudo e o de imitatio afetiva como complementares às ideias de Lyra Filho. Em suma, Espinosa traz novos elementos a esta discussão, tema que poderá ser desdobrado em outra pesquisa. 206

conceito de direito natural. Com efeito, o conceito de direito da concepção espinosana coloca em pauta a importância da potência de cada homem como intensidade finita da e na substância, conceito que se articula a uma busca de vida digna, por meio da experiência de afetos alegres, para além da mera preservação da vida - como é o caso na concepção hobbesiana254. Esta maior exigência do conceito de potência dos homens em Espinosa permite sua inserção, de maneira a meu ver pertinente, no seio mesmo da reflexão jurídica crítica. Como consequência, há um segundo ponto de soma ao direito crítico. Ao se alargar a geografia do direito, reconceitualizando-o, o que é conduta passível de penalização para o formalismo e para o Estado Penal, passa a ser movimento coletivo do direito resistindo a todo Estado que dissemina no corpo político afetos tristes, como o medo e o desespero, gerando a solidão. De fato, as condutas dos movimentos coletivos, os quais se contrapõem, como potência conjunta, por imitatio afetiva - por exemplo, da esperança de bens maiores, ou da indignação em face do soberano -, em relação às violências de muitos Estados, passam a ser entendidas como direito coletivo, e não como infração da lei. Pois se o Estado não é capaz de capilarizar, por meio de suas instituições, um imaginário de futuro-como-securitas nas mentes dos súditos no presente, ou seja, um futuro-seguro-imaginado-como-presente e garantido por instituições, está-se mais próximo do que Espinosa define como sendo a característica do imperium turco. Nesta organização política, a duração da paz - aqui entendida como ausência de guerra - foi longa. Entretanto, como assinala Espinosa, "[...] se a servidão, a barbárie e o isolamento se devem apelidar de paz [pax appellanda - G III 298], então não há nada mais miserável para os homens do que a paz." (TP VI 4 p. 49). Usando o arcabouço conceitual da filosofia espinosana, pode-se dizer que o Estado penal, ao tomar, cada vez mais, o lugar do Welfare State, apenas distancia as leis do direito. Leis que diminuem a potência do direito natural dos cidadãos (seu conatus), seja com a desregulamentação no âmbito do direito público, seja com o aumento das condutas criminalizadas pelo direito penal, apenas distanciam o Estado da multitudo. Sem a potência da multitudo, diria Espinosa, a cidade, corpo 254

Analiso este tema em Hobbes, pontualmente, como contraponto à concepção espinosana, no item d.2 do Capítulo 1 e no item (a) do Capítulo 2. 207

inteiro do imperium (TP III 1 p. 25), pode ser fraturada pela indignação das potências dos marginalizados de toda espécie. Os movimentos em escala mundial, interpretados espinosanamente, parecem ser a manifestação do direito natural coletivo frente às leis sem potência dos diversos tipos de Estado. Há certamente coisas que a cidade deve temer, ou considerar, para se manter potente, isto é, detentora do direito. Contra o movimento lei e ordem, contra o Estado penal, contra as desregulamentações do arcabouço legal que dá garantias mínimas de dignidade, nada mais jurídico do que os movimentos dos marginalizados, manifestação do direito natural como potência coletiva, fissura na cidade que deve ser ouvida.

208

CONCLUSÃO

Espinosa é um clássico de alta voltagem conceitual. É anômalo no dezessete em face de seus contemporâneos, bem como em face da tradição que o antecede na história da filosofia, assim como formula conceitos que, se aplicados às análises políticas e jurídicas contemporâneas, se mostram inovadores. A pesquisa que resultou na tese procurou seguir dois caminhos derivados dessas constatações. No primeiro movimento argumentativo, composto pelos dois primeiros capítulos, procurei explicitar a presença da teoria dos afetos espinosana em sua filosofia política. Para isso, analisei de perto passagens da Ética III, dos textos exclusivamente políticos de Espinosa, a saber, o Tratado Teológico-político e o Tratado-político e partes da Ética IV. Antes, nesse mesmo movimento argumentativo, transitei pelas teses ontológicas de Espinosa, uma vez que elas são, na leitura que propus, fundantes das teses políticas e a elas ligadas. Todo o capítulo 1 procurou se enveredar pelas questões que constituem uma espécie de pano de fundo necessário para tratar das questões políticas e jurídicas em Espinosa. Aliás, as teses jurídicas de Espinosa, como explicitei sobretudo no capítulo 2, com desdobramentos nos capítulos 3 e 4, não podem ser dissociadas de suas teses políticas. Antes dessas questões de fundo, analisei, no mesmo capítulo 1, o que intitulei notas acerca da tradição em face da qual Espinosa se posicionou contrariamente. Tais notas tiveram o papel de mostrar que a questão da relação entre política e afetos não foi posta pela primeira vez por Espinosa. Uma de suas inovações em face da tradição foi a de tratar os afetos como coisas naturais e constitutivas dos homens255, tema que desenvolvi no primeiro momento do capítulo 1. A sequência do capítulo 1, em seu item (b), aprofunda esta posição anômala de Espinosa em face de seus contemporâneos e de seus antecessores mais influentes na história da filosofia. O capítulo 1 tratou, após esta breve introdução que localiza Espinosa em face de outros campos de teses filosóficas, do pano de fundo ontológico para as 255

CHAUI, Marilena. A instituição do campo político. In: CHAUI, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 155 e seguintes. 209

teses políticas do autor. De fato, procurei, nesta ocasião, construir um fio ligando a ontologia espinosana aos conceitos de conatus, potência e afetos (desejo, alegria, tristeza). No tema dos afetos, houve a análise em pormenor de alguns daqueles fundamentais para a filosofia política espinosana, na leitura que propus neste trabalho. Procurei, seguindo o fio acima indicado, costurar a ontologia espinosana aos conceitos de amor, ódio, medo, esperança, securitas, desperatio e indignação. Na hipótese que abriu a pesquisa, tais afetos seriam - e de fato se mostraram - fundamentais para a fundação da cidade, bem como para sua manutenção enquanto corpo político. Alinhavei tais conceitos tanto à ontologia como ao mecanismo do mimetismo afetivo. De fato, este conceito, na leitura proposta, se mostra decisivo para explicar o funcionamento dos afetos na sustentação da cidade. O mimetismo afetivo e os afetos operando segundo tal mecanismo estão ligados à lei, tão fortemente inscrita nos homens, de acordo com Espinosa, segundo a qual entre dois bens se escolhe o maior e entre dos males o menor, como analisado nos itens do capítulo 1. O capítulo encaminha-se ao seu desfecho tratando das questões de fundo à ontologia e aos afetos, a saber, a tese espinosana de que os afetos são mais numerosos que os nomes que se lhes dão, uma vez que são derivações, em variação ilimitada, do desejo, da alegria e da tristeza. Por fim, o capítulo tratou dos conceitos de ação e paixão, ligandoos tanto ao conceito de homem como coisa singular potente, intensidade modal na ontologia espinosana, quanto aos conceitos de conhecimento, propriedades comuns e noções comuns. Em uma palavra, o capítulo 1, analisando passagens centrais da Ética I e da Ética III, procurou preparar o terreno afetivo-humano, de ponta a ponta fundado na ontologia espinosana, com o qual se construiu, no capítulo 2, a filosofia política do autor. A principal conclusão a que levou o capítulo 1 (e a razão de seu lugar na tese) é a presença das teses ontológicas como fundamento da política, bem como a derivação da teoria dos afetos desta mesma ontologia. A partir daí se inicia o caminho do capítulo 2, que é, pode-se afirmar agora com mais elementos, decorrente das teses ontológicas de Espinosa e do lugar

210

dos homens e seus afetos na substância única. No capítulo 2 a política e o direito são temas que aparecem como implicados pelo veio acima percorrido. O capítulo 2, dessa maneira, como continuidade do fio ontológico, apresenta a política. Primeiro, aproximando o conceito de direito espinosano ao conceito de afeto. A seguir, extraindo da ontologia e dos conceitos de direito e afetos os conceitos de socialidade e de cidade. Mais precisamente, os afetos trabalhados no capítulo 1, especialmente os pares afetivos medo-esperança e segurança-desespero, são focados em seu papel político ou de confecção da política, isto é, seu papel de instâncias fundantes da civitas. Na cartografia espinosana, chega-se a um momento chave da tese, que é o de mostrar que a filosofia política de Espinosa é tributária de sua ontologia.

Mais

estritamente, de sua teoria dos afetos, a qual, por sua vez, se funda na tese da substância única e absolutamente potente. Neste momento, alguns temas da inovação espinosana foram apresentados. Primeiro, a ligação, na leitura que propus, entre os conceitos de imitatio afetiva, multitudo, imperium e civitas. Procurei mostrar qual a lógica de funcionamento da multidão, que Espinosa afirma operar 'como que por uma só mente', por meio do conceito de imitação afetiva. O imperium, nesse sentido, é alimentado pela potência da multidão, que lhe dá direito a criar, interpretar e aplicar o direito civil aos súditoscidadãos. A incumbência da república, que é precisamente a da criação, interpretação e aplicação dos direitos criados, é função do soberano do imperium. Há, entretanto, limites ao exercício deste poder, tema que tratei com algum pormenor ao final do capítulo 2, em seu item (d). Eis um dos pontos em que as teses ontológicas de Espinosa, quando se trata de compreender os modos singulares humanos na cidade, se mostram mais presentes. De fato, sendo os homens intensidades de potência, naturais, com afetos que assim também o são, não pode a cidade tudo em face deles. Uma vez que a potência da multidão é aquilo que dá potência ao soberano por meio da imitação e emulação dos afetos esperança e segurança, quando o poder soberano passa a violar as leis civis ou praticar atos que são contrários à natureza dos súditos, disseminando o medo e o desespero, aquilo mesmo que antes sustentava o imperium passa a se canalizar para sua destruição. Na leitura que propus, portanto, pode-se concluir que a função da civitas como corpo do imperium (ou, para usar um termo

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impreciso, a função do Estado) é disseminar com frequência um imaginário de alegria, por meio dos afetos esperança e segurança. Do contrário, a cidade deve temer, isto é, o poder soberano que faz suas leis civis pode ser desestruturado por meio da multidão imitando e emulando o afeto indignação, que é o ódio em face de alguém que fez mal a um outro. No caso, o ódio dos súditos em face do soberano que faz mal aos membros da cidade. A potência do soberano da cidade, assim, se esvazia, pois o poder que o sustentava passa a dissolvê-lo, e assim à cidade, tudo em nome da preservação das potências individuais elas mesmas, dos desejos ou direitos naturais de cada um dos membros do corpo político. Daí decorre outra tese espinosana de alta voltagem, que se desdobrou ensaisticamente nos capítulos 3 e 4. Ao final do capítulo 2, como decorrência do movimento interno das teses de Espinosa, chega-se a outra de suas inovações maiores. A tese de que a cidade, e a filosofia política que a embasa, somente poderiam ser a da construção da paz como presença do afeto fortaleza de ânimo (TP V 4 p. 45), afeto que na Ética III se desdobra em firmeza e generosidade (animositetem et generositatem) (E III P 59 Esc p. 235). Como são ambos afetos ligados à razão, a qual é rara nos homens, isto é, a conduta dos homens raramente se funda exclusivamente na razão (E IV P 35 Esc p. 303), formulei a hipótese de que as instituições políticas é que propiciariam tais afetos ligados à paz. Portanto, para Espinosa, paz difere de ausência de guerra, sendo antes uma vis (força, potência) que está ligada ao tipo de afeto experienciado pelos súditos-cidadãos. Mais alegria, em forma de esperança e segurança, é, simultaneamente, mais firmeza e generosidade e, portanto, fortaleza de ânimo ou paz política. Estas as conclusões a que o veio percorrido na pesquisa levou. No primeiro movimento da tese o método foi o da análise cuidadosa dos textos do autor para confirmar a hipótese que abriu a pesquisa, como já apontado, a saber, a da relação de intersecção entre os conceitos de afetos, política e direito em Espinosa. Para isso os fios da ontologia foram os que fizeram a costura afetiva da política. O livro I da Ética, assim, se liga ao livro III e aos textos políticos, seja parte da Ética IV, seja o Político ou o Teológico-político.

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Abri esta conclusão afirmando a alta voltagem conceitual de Espinosa. Ela esteve presente no núcleo duro da pesquisa, a saber, os capítulos 1 e 2, acima citados para explicitar as conclusões advindas da pesquisa de textos e de comentadores, confirmando a hipótese inicial. Entretanto, a alta voltagem conceitual espinosana tomou um caminho mais ousado, contemporâneo e ensaístico nos capítulos 3 e 4. Alguns apontamentos conclusivos podem ser retirados desses capítulos finais. Importa lembrar, como atestei na Introdução, que tais capítulos têm método e consistência diversos dos dois primeiros. A rigor, os dois primeiros formam o que intitulei núcleo duro da pesquisa, local em que procurei responder às demandas do projeto de pesquisa inicial. Os capítulos 3 e 4 têm o traço próprio ao ensaio. Neles, trouxe Espinosa aos tempos atuais do jurídico. E Espinosa se apresenta, na leitura que propus, autor de grande valia. A conclusão a que o capítulo 3 aponta é a de que as linhagens de direito natural, se por um lado se encontram em franco declínio aos olhos positivistas e formalistas, podem ter seu ponto alto em ao menos uma de suas vertentes, a saber, a espinosana. A linhagem espinosana se distancia das anteriores e contemporâneas a ele na medida em que procura aproximar, ao modo hobbesiano, mas dele mantendo importantes distâncias, o direito da potência. A identificação espinosana do conceito de direito natural a potência o distancia das vertentes metafísicas e abre espaço para teses jurídicas que podem enfrentar as positivações de leis que instituem violências. Eis a conclusão mais clara do capítulo 3: o direito natural de viés espinosano pode ser, para o direito emancipatório, a cunha teórica que põe em xeque direitos positivos que não disseminam a hilaritas (os afetos de alegria) na civitas. O capítulo 4, na mesma chave de trazer ensaisticamente conceitos espinosanos à discussão jurídica contemporânea, adota a postura de aproximar conceitos jurídico-políticos de Espinosa aos de um autor da vertente do direito crítico. Há uma miríade de escolas e vertentes críticas do direito. Seu ponto comum é a recusa do formalismo e da identidade do direito à lei positivada pelo Estado. Em razão desta variância, optei por uma de suas vertentes, a meu ver original e bem construída teórica

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e empiricamente. Os conceitos espinosanos, ao serem acoplados às análises do direito crítico, dão a eles mais potência. Essa a conclusão principal a que o capítulo 4 chegou. Na arquitetura da tese, composta de dois movimentos, Espinosa foi, inicialmente, analisado à luz da intersecção de seus próprios conceitos, momento em que procurei solucionar o problema da relação entre três pontos centrais da construção teórica do autor. Como afirmei no início da tese, o objetivo foi o de iluminar certa seção da geografia conceitual espinosana, sem com isso contradizer seu racionalismo absoluto. Questão de lançar os holofotes ali onde os comentadores caminharam com menos frequência. A hipótese inicial foi confirmada na leitura que procurei fazer, isto é, a da relação conceitual entre os conceitos espinosanos de afeto, direito e política. No segundo momento, as teses espinosanas serviram a duas constatações que se ligam. Primeiro, se mostram muito úteis para o desmonte das concepções segundo as quais todas as vertentes do direito natural perderam sua funcionalidade em razão da positivação dos seus conteúdos nas cartas constitucionais dos Estados democráticos contemporâneos. Segundo, se mostram capazes de trazer novos elementos mesmo às vertentes mais críticas ao formalismo e ao legalismo jurídicos.

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As edições das obras de Espinosa indicadas no início da tese, com as abreviações, e que constam nestas Referências Bibliográficas, foram as utilizadas nas citações no corpo da tese. Elas em geral foram cotejadas com a edição de Carl Gebhardt. Importa salientar que houve consulta sistemática a todas as edições citadas nas referências bibliográficas, sobretudo nos momentos em que os tradutores pareciam não se fiar ao sentido dos conceitos do texto original (cuja fonte foi a edição de Carl Gebhardt). Imperium e civitas são exemplos de termos cuja tradução varia conforme a versão consultada. Às vezes, portanto, preferi usar o termo latino para manter os conceitos próximos do sentido dado por Espinosa. 215

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